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O RISO EM MIGUEL DE CERVANTES: UMA LEITURA DE

DOM QUIXOTE
Jeferson Silva Ribeiro
Jaime Estevão dos Reis

Introdução

Esta comunicação nasceu das reflexões iniciais da pesquisa de mestrado que estamos
iniciando pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de
Maringá. A pesquisa a ser desenvolvida, têm como objetivo analisar como Cervantes, em sua
obra clássica, Dom Quixote de la Mancha, escrita em dois volumes, um em 1605, e outro em
1615, apresenta a figura do cavaleiro de forma cômica, ou parodística. Paródia construída
tendo como modelo as novelas de cavalaria, ainda muito difundidas em seu período.
Algumas transformações ocorridas nesse período, com relação a Idade Média,
testificam uma sociedade em transição, na qual os ideais, e a função da cavalaria medieval
perderam a sua vitalidade diante das novas condições sociais e mentais, pois, ao fim da Idade
Média alguns elementos contribuem para a mudança da utilização da força bélica. Novas
tecnologias, novas formas de confronto e a reorganização social, são os principais desses
elementos. Com a reorganização social pós-crise, uma nova política também vai surgindo. A
formação dos Estados Modernos é acompanhada pela necessidade de uma nova forma de
combate, mais “profissional”, devido ao maior tempo despendido nas guerras e as novas
tecnologias nela empregadas – como o arco longo – os velhos combatentes – nobres em seus
cavalos, que deviam um tempo determinado de serviços bélicos a seus senhores (40 dias no
máximo) – tornam-se obsoletos.
A publicação por Cervantes de Dom Quixote de la Mancha, marca o auge dessa
mudança ideológica no seio da cavalaria. Publicado pela primeira vez em 1605, a obra
apresenta a configuração da nova mentalidade do homem moderno. E principalmente, nota-se
que a velha apreciação da cavalaria não cabe mais nessa sociedade. A forma que Cervantes se
propõe a satirizar os ideais de cavalaria presentes nas novelas e crônicas, ainda difundidos em
seu tempo, leva-nos a pensar no total desequilíbrio mental do protagonista como um

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anacronismo invertido onde ele passa a ler o seu tempo através das páginas amarelecidas dos
livros de cavalaria, que embora tenha sido representado como tipo ideal outrora, agora só
servia para lembrar as desventuras utópicas e irracionais de um passado recente.
Considerando, portanto, a característica cômica da obra de Cervantes, procuraremos
entendê-la a partir da história do riso. Analisar o fenômeno do riso ao fim da Idade Média e
início do Renascimento é essencial para entendermos a paródia Quixotesca, uma vez que o
riso, fenômeno típico da natureza humana, pode nos ajudar na constatação de um ideal
cavaleiresco que jaz nas covas fechadas ao fim do feudalismo, e que Cervantes faz questão de
lhe cravar um belo epitáfio, que ao invés de chorar faz rir.
Dessa forma, o presente artigo tem como objetivo discutir a relação de Cervantes com
o cômico, para isso caminharemos em dois sentidos. No primeiro momento apresentaremos
algumas teorias clássicas sobre o riso como, Henri Bergson, Mikhail Bakhtin e George
Minois, que nos ajudaram a compreender a forma que esta foi utilizada por Cervantes ao
escrever a história desse louco cavaleiro. No segundo momento apresentaremos uma
discussão metodológica sobre a interpretação de Dom Quixote, dentro do discurso cervantino
e seu contexto, assim, os teóricos, Umberto Eco, J. A. Pocock, e Roger Chartier nos ajudaram
neste caminho que será essencial para a interpretação do romance. Ao final do artigo
esperamos ter, ao menos, elaborado um caminho a seguir para a boa interpretação da piada de
Cervantes.

1. Funções do Riso: para entender a paródia.

Para darmos continuidade a nossa abordagem é indispensável pensarmos a função do


riso em Dom Quixote, já que o próprio Georges Minois nos adverte no início de sua obra
História do riso e do escárnio, que “o riso é um caso muito sério para ser deixado para os
cômicos”(MINOIS, 2003, p. 15), e afirmava também que o riso é um “fenômeno universal,
ele pode variar muito de uma sociedade para outra, no tempo e no espaço”(Idem, p. 16).
Dessa forma, queremos entender melhor esse fenômeno, que Aristóteles já o definia como de
natureza puramente humana, no momento que convencionamos chamar de Renascimento,
mais precisamente no século XVII espanhol. Para isso, vamos buscar auxílio em Mikhail
Bakhtin; Henri Bergson e, o já citado, Georges Minois.

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Como já dissemos, a obra de Cervantes têm um caráter essencialmente humorístico. E
seu objetivo, como podemos ver em suas próprias palavras é o de “derrubar a mal fundada
máquina dos livros de cavalaria, aborrecidos por alguns, enaltecidos pela maioria”
(CERVANTES, 2004, p. 14). A paródia será, então, a principal ferramenta usada por
Cervantes para cumprir seu objetivo. Sendo assim, é essencial entendermos o elemento
cômico de sua obra.
Bergson, em sua obra O riso, propõe-se a apresentar algumas características desse
fenômeno. Principalmente no início da obra, ela deixa claro que vê o riso como uma
manifestação da própria vida e que só pode ser entendida pelo seu contato com o social, ou
seja, para Bergson o cômico é entendido enquanto manifestação coletiva, que só pode ser
entendido no contato com mais pessoas (BERGSON, 1993, p. 18).
Para Bergson, alguns elementos podem definir o cômico, dentre eles três nos chamam
mais atenção por podermos relacionar com nosso cavaleiro enlouquecido: a humanidade; a
insensibilidade; e a coletividade. E segundo ele, o que propriamente faz rir nestes aspectos é a
involuntariedade, ou, a rigidez mecânica.
Sobre a humanidade do riso, entendemos de forma simples, quando ele diz que não
existe cômico fora do que é propriamente humano. Quanto à insensibilidade, Bergson
argumenta que “o cômico não pode produzir a sua vibração senão caindo numa superfície de
alma bastante uniforme, bastante calma. A indiferença é o seu meio natural. O riso não tem
maior inimigo que a emoção” (BERGSON, 1993, p. 18, 19). Dificilmente alguém poderá rir
do objeto que se produz afeição e piedade. O ato de rir concentra-se em uma indisposição à
alteridade se molda no jogo que vê no outro objeto de riso, e para tanto não deve estar
imbuído de piedade. “O cômico exige, pois, finalmente, para produzir todo o seu efeito,
qualquer coisa como uma anestesia momentânea do coração” (BERGSON, 1993, p. 19).
Devemos ter em mente que para Bergson, que publica a obra em 1899,ou seja, ainda
com muitas influências do positivismo, a indiferença está relacionada a intelectualidade, ou a
racionalidade, que por esta lógica se distância de um pensamento emotivo, portanto inferior.
Outro aspecto do riso, salientado por Bergson, é a sua coletividade. Para ele, dado a
ausência da “emotividade” presente na riso, sua proximidade é maior com a racionalidade, ou
a inteligência, mas essa inteligência deve viver em contato com outras inteligências. O riso
têm, segundo Bergson, a necessidade de um eco, é preciso ser entendido por uma

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coletividade, relacionar-se com um grupo, se não perde seu sentido (BERGSON, 1993, p. 20),
falaremos mais sobre esse ponto adiante, quando direcionarmos nossa abordagem ao próprio
riso de Cervantes.
O terceiro elemento que Bergson pontua sobre o riso, ou melhor, sobre o que faz rir, é
a mecanização da naturalidade. Para ele todos nosso movimentos, falas e gestos, deveriam ser
traduzidos pela própria naturalidade do ser. Essa naturalidade está ligada a própria existência,
enquanto estamos em transformação a todo momento não aconteceriam repetição que
pudessem ser classificadas, ou mesmo percebidas. Quando podemos verificar certa repetição
nos movimentos, passiveis de imitação, perde-se a naturalidade possibilitando o riso. Bergson
dá o exemplo de um homem que ia correr, mas tropeçou e caiu, as pessoas que passavam
riram dele. Riram, segundo Bergson, devido a involuntariedade do movimento, ou seja, a
mudança não é a provocativa direta do riso, mas a falta de adaptabilidade a essa mudança; “os
músculos continuaram o mesmo movimento quando as circunstâncias exigiam outra coisa”
(BERGSON, 1993, p. 21).
Essa fórmula poderá ser pensada posteriormente nas várias manifestações do riso. Seja
pela imitação, pela repetição, pela caricatura, ironia ou paródia, essa mecanização estará
presente, ou no ato em si, ou na figuração artística do ato. Mesmo no ato programado para
fazer rir, ou naquele acidental, o que se nota é a falta de mobilidade do objeto, que se torna
risível, para se adaptar à situação que lhe foi apresentada. Esse efeito, que pode ser
considerado como distração, está presente também em Dom Quixote – o próprio Bergson,
salienta a questão. Já que é risível a falta de mobilidade para com as situações, ou a distração
para o mundo que lhe é apresentado, imagine quando aquele que ri pode ver a distração nascer
e crescer sob seus olhos. Esse é o caso de Dom Quixote, ai repousa parte da genialidade de
Cervantes: dar ao seu leitor a possibilidade de participar da distração de Dom Quixote desde
sua origem, e criar o ambiente, que o leitor sabe, servirá para que Quixote, na companhia de
Sancho Pança, aplique sua inadaptabilidade, devido à rigidez mecânica que lhe foi posta
devida a loucura proveniente da leitura das novelas de cavalaria (BERGSON, 1993, p. 23-24).
A obra clássica que também nos ajuda a pensar a comicidade de Dom Quixote é A
cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais de
Mikhail Bakhtin. Obra escrita na Rússia da década de 60, portanto tendo em si várias
características de um marxismo pulsante, mas que para além disso, ou mesmo com essa visão,

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apresenta uma “luta de classes” em um sentido cultural, não mais estritamente econômico.
Assim, as análises do carnaval e das obras de Rabelais, é, para Bakhtin, resultado de uma
inversão de valores que se dá em alguns momentos, aproximando às festividades aos mitos
cosmogônicos do renascimento, em que o caos domina tudo, para que dele tudo renasça.
Dessa forma Rabelais, é para Bakhtin, um intelectual que entende a cultura popular, e
dela extrai as formas que dá vida em suas obras, como Pantagruel e Gargantua, em um
ambiente – o Renascimento – que os acolhe melhor que a Idade Média. O tema principal
dessas comédias é a degradação, ou seja, “entrar em comunhão com a vida da parte inferior
do corpo, a do ventre e dos órgão genitais, e portanto com atos como o coito, a concepção, a
gravidez, o parto, a absorção de alimentos e a satisfação das necessidades naturais”
(BAKHTIN, 2010, p. 19).
Para Bakhtin esta fórmula está presente também em Dom Quixote, não em toda a sua
perfeição, como nas obras de Rabelais, que é, segundo ele, o modelo máximo do gênero. O
“realismo grotesco”, que se trata dessa aproximação com o vulgar, ou com o baixo material,
em conflito com o idealismo é também usado por Cervantes.

Sancho Pança é a degradação cômica (baixo) dos ideais de Quixote (alto).


Sua pança, sua gula, contrapõem-se e populariza as utopias quixotescas. O
alegre túmulo corporal (a barriga, o ventre, e a terra) aberto para colher o
idealismo de Dom Quixote, um idealismo isolado, abstrato e insensível; ali o
“cavaleiro da triste figura” parece dever morrer para nascer novo, e melhor e
maior. Sancho é o correspondente natural, corporal e universal das
pretensões individuais, abstratas e espirituais (BAKHTIN, 2010, p. 20).

Na História do riso e do escárnio George Minois faz um apanhado histórico sobre a


manifestação do riso desde a Grécia Antiga até o mundo contemporâneo. Segundo ele,

o humor surge quando o homem se dá conta de que é estranho a si mesmo;


ou seja, o humor nasceu com o primeiro homem, o primeiro animal que se
destacou da animalidade, que tomou distância em relação a si próprio e
achou que era derrisório e incompreensível (MINOIS, 2003, p. 79).

Encontramos nessa definição um caminho que liga às abordagens de Bergson à Bakhtin.


O que faz rir no homem é a diferença, mesmo que ela se apresente de várias formar em vários
períodos. Sua abordagem, mesmo que superficial, devido ao grande espaço temporal que

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contempla na obra, traz uma ideia interessante para pensar o riso: a continuidade e
descontinuidade. Por exemplo, ao tratar do riso na Baixa Idade Média, tempo de crises, peste,
fome e guerra – mesmo que posteriormente esse período possa ser visto também como
portador de grandes inovações – para os contemporâneos a manifestação do riso se dava
diretamente em contraponto ao choro, ou segundo Minois “rir para não chorar”. A
proximidade com a morte cria a “dança macabra” e o Decamerão de Boccaccio.
É bom termos esse riso em mente, pois o que será inaugurado no Renascimento
provoca uma ruptura drástica com esse período. Minois, afirma que

a Renascença foi a rejeição da cultura oficial da Idade Média pelo riso


popular, por uma carnavalização direta da consciência, da concepção do
mundo e da literatura. Os humanistas utilizaram a cultura popular cômica
medieval como alavanca para reverter os valores culturais da sociedade
feudal (MINOIS, 2003, p. 272).

É nesse sentido, portanto, que queremos entender a obra de Cervantes, como ruptura
dessas forças medievais através do riso, mas para isso é importante entendermos melhor o seu
período, o mundo que o cerca e que lhe dá as ferramentas e as formas para que ele possa
esculpir sua bela arte na figura do decrépito cavaleiro andante.

2. O riso no contexto de Cervantes

Vimos até agora algumas discussões teóricas sobre o riso e algumas reflexões sobre o
humor em Cervantes, mas o que significa esse riso? Como podemos interpretá-lo na própria
visão do contexto cervantino? Como podemos nos aproximar dessas respostas? E quais
cuidados devemos tomar, enquanto historiadores para evitar os excessos interpretativos da
obra?
Como um clássico, torna-se obvio a imensa produção sobre a obra de Cervantes, e
com ela uma grande possibilidade de leituras e interpretações. Este ano comemorou-se o
quarto centenário da publicação do segundo volume de Dom Quixote, e algumas releituras
interpretativas são bem convenientes, como é o caso da dissertação escrita em 2011 por
Valéria da Silva Morais, intitulada O cômico e o riso em Dom Quixote. Um dos objetivos
principais dessa dissertação é entender o caráter cômico da obra, pois, segundo Morais,

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durante algum tempo, entre fins do XVIII e uma parte do XIX (romantismo) a obra foi lida
como um caráter idealista que apresentava uma luta do materialismo terreno contra os ideais
de Dom Quixote, que apresentava o caminho a ser seguido para resolver uma espécie de crise
moral espanhola nos séculos XVI e XVII (MORAIS, 2011, p. 6, 7).
É importante aqui, nos remetermos a Umberto Eco para pensarmos nos limites da
interpretação. Em uma obra intitulada Interpretação e Superinterpretação, ele adverte sobre o
papel do leitor na interpretação dos textos. Advertir, aqui, não têm um sentido de proibição,
aplico-o no sentido pedagógico, já que para Eco, o leitor têm total liberdade para fazer o que
quer do texto, mas há um leitor, que ele chama de “modelo”, que procurará às intenções do
autor ao escrever a obra – e é como esse leitor que queremos nos aproximar da obra de
Cervantes. Dessa forma ele anunciará a seu leitor o que pode ser considerado uma
superinterpretação, ou seja, excessos interpretativos do texto.

Dizer que a interpretação (enquanto característica básica da semiótica) é


potencialmente ilimitada não significa que a interpretação não tenha objeto e
que corra por conta própria. Dizer que um texto potencialmente não tem fim
não significa que todo ato de interpretação possa ter um final feliz (ECO,
2005, p. 28).

Vemos então que, mesmo partindo de uma análise semiótica, o intérprete tem seus
limites, e esses serão apresentados, na maioria das vezes, pelo próprio texto, como o exemplo
irônico dado por Eco, em que ele diz que possivelmente, se Jack Estripador dissesse que a
motivação para seus crimes encontra-se no evangelho de Lucas, o tomaríamos logo por
extremamento louco – mesmo que seja difícil dizer que assim não fosse.
Para apresentar os “limites de uma interpretação” Umberto Eco fala de uma
“economia textual”, que poderá ser definida como a relevância, ou não, da interpretação
sugerida, que muitas vezes tenta apresentar elementos forçados para uma interpretação que
não faz parte do texto, ou nem mesmo de qualquer abordagem que poderia ser proporcionada
pelo autor.
Dessa forma, quando observamos as interpretações que quiseram dar um
encaminhamento idealista para o Dom Quixote, no decorrer do século XIX, percebemos que
elas não se atentaram para qualquer intenção que poderia proceder do autor e deram enfoque a
intenção do próprio texto, que, segundo Eco, desligado do autor e do contexto em que foi
produzida, pode proporcionar as interpretações mais absurdas. O texto assim, desligado de

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seu mundo que o produziu cria a visão totalmente parcial daquele que lê e o aplica
diretamente ao seu próprio (leitor) mundo.
Portanto, quando resgatamos a obra, em seu contexto, sob a visão de seu autor, e de
seus primeiros leitores, podemos ter uma noção mais clara da interpretação possível da obra.
E de acordo com a visão de Peter Russell e Antony Close – retomados por Valéria Morais, em
sua dissertação – a obra de Cervantes têm o caráter cômico e, mesmo tendo outras
características, devido a sua complexidade, é escrita nessa intenção, já definida por Cervantes
no próprio prólogo, de fazer rir (MORAIS, 2011, p. 5, 6).
Mas para chegar a essa conclusão não basta simplesmente ler a obra, segundo J. A.
Pocock, devido ao nosso distanciamento da fonte temos uma grande dificuldade em definir a
estrutura linguística que a perpassa e assim propor uma intencionalidade do autor. Por isso, a
função do historiador será encontrar não apenas a intencionalidade, mas também a linguagem
que envolve o mundo do autor. Pocock sugere, então, uma participação da história na análise
linguística, pois entender a estrutura linguística que o autor se serve para produzir sua obra
depende, não apenas de comparações discursivas, mas de uma boa compreensão do contexto
em que se escreve (POCOCK, 2001, p. 148).
Assim, no que tange aos discursos produzidos na época de Cervantes, e que poderão
nos ajudar em uma boa interpretação da obra, acompanhamos a obra de Valéria Morais, pois
ela compara Dom Quixote, ou melhor, o enquadra em uma série de produções que
acompanhavam o renascimento da poética aristotélica, e com ela novas concepções sobre o
cômico; além de podermos consultar as obras que Cervantes dialoga diretamente na produção
de seu texto, devido a participação que ele dá ao leitor no trabalho de escritor; o episódio do
escrutínio da biblioteca de Dom Quixote pelo padre e o barbeiro é um exemplo disso
(MORAIS, 2011, p. 10, 11).
Agora sobre o contexto, tão caro a Pocock para uma boa interpretação da obra,
podemos recorrer a própria vida de Cervantes e como suas experiências contribuem para seus
escritos e como essa esta atrelada a história da Espanha, e principalmente a receptividade de
sua obra ao público. Lembremos que Bergson assinala que o riso só existe em quanto grupo,
ou seja, em uma coletividade. Dessa forma, Pocock também nos motiva a uma melhor
observação do contexto cervantino para podermos entender as suas piadas, pois às piadas não
são escritas para nós, leitores do século XXI, mas para uma Espanha do século XVII, leitores

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das novelas de cavalaria, ou ao menos que sabiam do que se tratava esses livros, portanto,
aqueles que sabiam ler, ou que se interessavam por ouvir.
Veja-se, por exemplo, no capítulo XXI, em que Dom Quixote luta para conquistar o
Elmo de Mambrino. Durante essa cena, Dom Quixote vê um barbeiro que traz uma bacia na
cabeça, e jura aos céus, e principalmente a Sancho, que está em sua frente um cavaleiro com
um Elmo mágico, que ele deverá conquistar pela força de seu braço, e assim o faz, e calça
orgulhosamente a bacia/elmo em sua cabeça, tornando-se vitorioso nessa aventura
(CERVANTES, 2011, p. 275 – 288).
O jogo apresentado aqui por Cervantes é bem simples, porém, belamente elaborado.
Tudo se trata de inversões de valores, onde uma bacia usada por um barbeiro é um elmo
mágico, o próprio barbeiro em seu jumento é um bravo cavaleiro, e a luta desleal que ele trava
é uma aventura épica dada pelo próprio Deus. Algum leitor desatento, que não conhecesse as
novelas de cavalaria, poderia pensar, que não se trata aqui de um jogo de inversões, mas de
uma critica social às posições dos personagens, ou quem sabe uma luta de classes, que o
oprimido, e pobre, barbeiro sai mais uma vez derrotado perdendo seu único bem, uma bacia –
tudo depende de quem, e como lê. Mas não é disso que se trata, como falamos acima, o
publico a quem ele escreve entende a sua obra como esse jogo de inversão, conseguem – pela
quantidade de consumo da leitura das novelas de cavalaria – entender a fragilidade da figura
do cavaleiro nesse novo período que se ergue.
Dada essas condições, é importante lembramos que, para Roger Chartier, o texto deve
ser analisado em três vertentes: a do autor, do editor, e do leitor. Essas três vertentes se inter-
relacionam na produção da obra, e definem tanto a forma de ler, como a forma de escrever, já
que o autor faz parte direta do mundo do leitor, ele é também leitor do seu mundo, portanto,
não pode ser considerado como figura solitária durante a produção (CHARTIER, 1992, p. 220
– 222).
Devemos pensar então em Cervantes como participante direto de seu contexto, e como
leitor de seu mundo, reproduz o mundo que se apropria através de sua leitura à seus leitores,
que farão o mesmo exercício. E assim, já que o escritor se comunica na mesma língua de seu
público – que ele mesmo faz parte – percebemos aí o foco do historiador: entender como, nas
palavras de Bourdieu, acontecem essas “trocas linguísticas”. Para isso Pocock, nos ensina a
nos aproximarmos do contexto de produção, e mesmo não conseguindo captar toda a

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intencionalidade do autor, poderemos, através da maior “participação” intelectual da vida do
autor, entender melhor as formas que ele expõe em sua obra.
Quanto mais nos aproximarmos de Cervantes e de seu tempo, com leituras de outras
obras do período, da discussão historiográfica, melhor poderemos entender as suas piadas e o
que elas querem dizer. Talvez, um dos gêneros que apresente maior dificuldade de
interpretação seja a comédia, dada a ambivalência do que se diz, mas tentaremos por meio
desses caminhos, compreender o riso em Cervantes.

Conclusão

Cervantes deixa claro no prólogo do primeiro volume a intenção de suas piadas, e


observando às noções acima descritas sobre o riso podemos entender o jogo que ele elabora
para destruir os ideais de cavalaria ainda presentes em seu contexto, divulgados pela “mal
fundada máquina” das novelas de cavalaria.
Conforme vimos em Bergson, o riso, na maioria das vezes é acompanhado dessa falta
de sensibilidade. Acredito que pode ser também motivado por sentimentos opostos ao objeto.
Mas a questão é que o riso, normalmente tem uma função desmoralizadora, que apresenta o
objeto enquanto caricatura, ou seja, expõem às imperfeições minímas, que podiam ficar
escondidas à olho nu, mas não se escondem do olhar experiente do caricaturista. Ele afirma
que:

A arte do caricaturista consiste em apreender este movimento, por vezes


imperceptível, e torná-lo visível a todos os olhos, aumentando-o. Ele obriga
seus modelos a fazerem caretas como eles próprios as fariam. Adivinha, por
debaixo das harmonias superficiais da forma, as revoltas profundas da
matéria. Põe a claro desproporções e disformidades que poderiam ter
existido na natureza em estado de veleidade mas que não puderam
concretizar-se, recalcadas por uma força melhor (BERGSON, 1993, p. 31).

Com essa noção podemos atribuir o retrato pintado por Cervantes da cavalaria, no
quadro quixotesco, como uma caricatura, das novelas de cavalaria. Cervantes apresenta às
imperfeições, escondidas aos olhos comuns, dessas obras que já não falavam de seu tempo.
Ele apresenta a seus leitores as caretas cavaleirescas que não podem mais serem reproduzidas
em seu período. Partindo do estilo de Cervantes, podemos notar uma nova noção de literatura.
Seu contato com o realismo é abordado desde a própria estética de sua narrativa, em que a

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realidade do autor permeia a obra. Nesse realismo o providencialismo autoral que marcara as
novelas cavaleirescas não tem mais espaço. O mundo ficcional só existe na cabeça do
protagonista, mas ele é sempre atingido pelo peso da realidade que não se conforma a seus
sabores.
Interpretar Dom Quixote nesta perspectiva, não é apenas exercício para leitores que
não querem ver ali a atuação do próprio autor. É preciso enxergar o autor se relacionando com
seu mundo, interpretando e transformando-o, fazendo nascer o novo do seu mundo conhecido.
A nós historiadores cabe verificar esse mundo e, na medida do possível, lançarmos nossas
interpretações que querem traduzir um mundo, por vezes, muito distante. Papel difícil é claro,
mas se assim não fosse qual seria o sentido de tentar?

Referências:

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de


François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 2010.

BERGSON, Henri. O Riso, ensaio sobre o significado do cómico. Lisboa: Guimarães


Editores, 1993.

CHARTIER, Roger. Textos, Impressões, Leituras. In: HUNT, Lynn. A nova história cultural.
São Paulo: Martins Fontes, 1992.

ECO, Umberto. Interpretação e Superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

KEEN, Maurice. La caballería: la vida caballeresca en la Edad Media. Barcelona: Ariel,


2010.

MINOIS, George. História do Riso e do Escárnio. São Paulo: Unesp, 2003.

MORAIS, Valéria da Silva. O cômico e o riso no Quixote. São Paulo: USP, 2011.
Dissertação de mestrado.

POCOCK, J. G. A. Historia intelectual, un estado del arte. Revista Prismas, n. 5, p. 145 –


173, 2001.

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