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RECENSÃO

História de Angola da Pré-História


ao Início do Século xxi,
de Alberto Oliveira Pinto,
por Maria da Conceição Neto

Análise Social, liv (1.º), 2019 (n.º 230), pp. 181-185


https://doi.org/10.31447/as00032573.2019230.08
issn online 2182-2999

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https://doi.org/10.31447/as00032573.2019230.08

pinto, Alberto Oliveira


História de Angola da Pré-História ao Início do Século xxi, 2.ª ed.,
Lisboa, Mercado de Letras, 2017, 830 pp.
isbn 9789728834265

Maria da Conceição Neto

Alberto Oliveira Pinto é mestre e doutor sivo e um “Mapa de reis, governadores,


em História de África pela Faculdade altos-comissários e presidentes” de Por-
de Letras da Universidade de Lisboa, tugal, da colónia de Angola e de alguns
com vários ensaios publicados. É tam- antigos Estados africanos. Esta 2.ª edição
bém um homem da literatura, membro não difere da 1.ª na estrutura nem no
da Associação Portuguesa de Escritores conteúdo (com muito poucas alterações).
e da União dos Escritores Angolanos, e O maior número de páginas deve-se à
já recebeu prémios em Portugal (Asso- inclusão de uma resenha de opiniões elo-
ciação Portuguesa de Escritores, 1990) giosas sobre a 1.ª edição (pp. 21-27), uma
e em Angola (Prémio Sagrada Espe- nota do autor à 2.ª edição (pp. 29-30) e
rança, 1998). Os livros mais recentes um índice remissivo (pp. 803-820).
incluem Imaginários da História Cultural Desde o início, Oliveira Pinto avisa
de Angola (Prémio Sagrada Esperança, que, apesar de “susceptível de consulta
2016) e A Criança Branca de Fanon. e de leitura por outros académicos” este
Ensaio Ego-Histórico sobre o Facto Colo- “não é, de modo algum, um livro acadé-
nial Angolano. Esta pequena nota biográ- mico” pois “destina-se a qualquer leitor”
fica, que os leitores facilmente poderão (p. 33). E faz bem em dizê-lo, já que a
ampliar, justificaria por si só a expecta- obra será estimulante sobretudo para
tiva criada pela sua História de Angola quem não conhece o tema, incentivando
– da Pré-História ao Início do Século xxi, o interesse por factos ali abordados e cha-
agora em 2.ª edição. mando a atenção para datas, episódios e
O título é ambicioso e excessivo para personagens ignorados ou esquecidos
o que a obra nos apresenta, como vere- do grande público. Uma boa ideia, con-
mos, mas talvez se deva aos interesses do siderando esse público, é a sintética cro-
editor, de olhos no mercado. O livro con- nologia que abre cada capítulo. O livro,
tém 20 capítulos, um prefácio do consa- porém, apresenta demasiadas lacunas e
grado historiador e professor de história insuficiências para servir de guia num
de África Elikia M’bokolo e um posfácio nível mais especializado, como o ensino
do historiador e crítico de arte Adriano universitário. Ao assumir que não fez um
Mixinge. Além das breves notas do autor “livro académico”, o autor justifica tam-
à 1.ª e 2.ª edições, há um índice remis- bém a quase total ausência de referências
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de suporte às afirmações e interpretações a bibliografia não poupa espaço para


que apresenta. É um ponto de vista defen- incluir literatura de ficção, de Júlio Verne
sável numa obra de divulgação, evitando a Bocage, de Castro Soromenho a Reis
o recurso constante a notas de rodapé. Ventura e Pepetela.
Mas em obras deste tipo é usual indicar, Nos limites desta recensão não cabe
por exemplo, as leituras fundamentais comentar, capítulo a capítulo, os erros
para cada capítulo. Deixar apenas uma factuais, as insuficiências bibliográficas,
bibliografia final, onde tudo se mistura as opções temáticas ou as conceções his-
– fontes primárias, obras de referência, toriográficas subjacentes a essas opções.
literatura de ficção – não resolve o pro- Erros à parte, é normal que Oliveira Pinto
blema da necessária indicação das fontes defenda as suas escolhas. O que, porém,
mais confiáveis e pouco ajuda o leitor que não é “normal” são os graves desequilí-
queira avançar na exploração dos temas. brios no tratamento dado a diferentes
Apresentado o livro no geral, há que períodos, regiões e temas, que impedem
reconhecer o óbvio: na ausência de sín- esta obra de ser “abrangente” ou “exaus-
teses da história de Angola (excetuando tiva” (adjetivos do próprio autor), ou de
sínteses parcelares, como as que Jill Dias ser apresentada como uma súmula da
(1825-1890) e Aida Freudenthal (1890- investigação contemporânea sobre histó-
-1930) redigiram há 20 anos para a Nova ria de Angola.
História da Expansão Portuguesa) esta Não se justifica, por exemplo, que
proposta de panorâmica geral de Alberto o século xviii ocupe pouco mais de 50
de Oliveira Pinto terá por um bom tempo páginas (pp. 421-476) e quase exclusi­
público garantido, em países de língua vamente consagradas à área Kongo
portuguesa, ao trazer uma apreciável (a sul e a norte do rio Zaire) e aos “gover-
soma de informações (sobretudo na pri- nos pombalinos” e outros aspetos da
meira metade do livro, anterior ao século pequena colónia portuguesa de então.
xviii) e usar um tom narrativo suficien- A produção historiográfica das últimas
temente atraente para manter o interesse três décadas permitiria um panorama
pela leitura. Precisamente por tentar muito diferente, disponibilizando fontes
preencher um vazio evidente, não lhe e estudos sobre regiões de Angola fora do
faltaram os elogios, antes de leituras mais controlo português e daquele quadrante
atentas lhe apontarem as debilidades. As noroeste cuja “supremacia” historio-
críticas vieram sobretudo de colegas que gráfica (devida, precisamente, às fontes
investigam e ensinam história de Angola existentes) já não tem tanta justificação
e não entendem a omissão de bibliografia depois do século xvii. Considerando o
fundamental (o século xvii sem B ­ eatrix que o tráfico transatlântico de escravos
Heintze?…) que teria evitado não poucos implicou de dinâmicas, relacionamentos
erros e o relativo alheamento de conce- mais ou menos distantes, crises e ajusta-
ções historiográficas menos descritivas mentos, no território de Angola e zonas
e mais problematizantes. Note-se que vizinhas (e não se entenderá a “história
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de Angola” sem elas), são autores inad- Delgado). Autores notoriamente ausen-
missivelmente ausentes Joseph Miller tes são (numa indicação sumária, já que
(Way of Death) e José Curto, para indi- facilmente se encontrarão as referências
car os mais óbvios. Ao século xix, para o online) Maria Emília Madeira Santos,
qual a historiografia vem cobrindo, tam- Beatrix Heintze (para além de duas obras
bém há décadas, quase todo o território citadas) Roquinaldo Ferreira, Mariana
angolano, são dedicadas 140 páginas Cândido, Linda Heywood, Jan Vansina
(pp. 477-617). Ou seja, o livro reserva (How Societes are Born), entre outros.
a estes dois séculos apenas 200 das suas Um exemplo bastará: apesar de ser o
mais de 700 páginas. Assim, quando pre- comércio de marfim, cera, oleaginosas
cisamente se entra no período em que e, depois, borracha, a alimentar a econo-
podemos, com mais segurança, integrar mia de Angola quando declina o tráfico
na “história de Angola” regiões e povos de escravos, nos capítulos xiv, xv e xvi
que virão a constituir “Angola” atual, o que cobrem a segunda metade do século
autor volta as costas à bibliografia essen- xix não se mostra interesse pela expan-
cial e parece reduzir o seu interesse pelos são dos Cokwe nem pelo comércio de
processos em curso nas sociedades afri- longa distância dos Ovimbundu ou dos
canas independentes. Bazombo.
Alguma disparidade entre povos e Quanto ao século xx, com cerca de
áreas geográficas seria sempre inevitá- 150 páginas, bastaram 17 para “resolver”
vel, dado o contraste entre zonas “ricas” o período 1961-1974 (pp. 710-727), no
e zonas onde a escassez de fontes dispo- qual esperaríamos ver, por um lado, o
níveis deixa vazios dificilmente superá- desenrolar da guerra pela independência
veis. Porém, não seria difícil referir com (várias organizações, várias frentes e for-
mais destaque as regiões do leste, do mas de luta) e, por outro lado, mudan-
centro e do sul. Esta é uma “história de ças legislativas, económicas e sociais que
Angola” centrada no noroeste angolano, acompanharam a resposta militar por-
incluindo a colónia portuguesa que, até tuguesa e sem as quais não se entende
meados do século xix, se limita a uma a sociedade angolana na altura da inde-
parte dessa região, à excepção do eixo pendência. De novo, mais do que apontar
Benguela-Caconda, mais a sul. O argu- os erros factuais, criticaremos a ausência
mento de falta de estudos para o resto do de autores obrigatórios: John Marcum,
território, legítimo para épocas anterio- René Pélissier (La colonie do Minotaure),
res, não faz sentido para os séculos xviii Christine Messiant, Marcelo Bittencourt,
e xix. O autor ignorou tanto a bibliografia Jean-Martial Mbah, Didier Péclard,
contemporânea como a ajuda de docu- Franz Heimer, entre outros.
mentação publicada desde os tempos Não se trata de exigir um saber enci-
coloniais sobre as terras “do sul” (como clopédico ou obra definitiva, que não
os dois volumes de Ao Sul do Cuanza ou existe em história, mas de reconhecer que
A Famosa e Histórica Benguela de Ralph qualquer história de Angola “­condensada
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num só livro” (p. 31) deve ­trazer ao leitor Grandes desequilíbrios cronológicos,
um quadro equilibrado e o mais abran- regionais e temáticos (as questões eco-
gente possível. Como justificar a não nómicas perdem, de longe, para as lite-
utilização de bibliografia que permitiria rárias…) pesam sempre negativamente
cumprir, apesar de inevitáveis lacunas, em obras deste tipo e impedem que
esse objetivo? possamos considerar o livro de Oliveira
Fica também por explicar a distinção Pinto uma boa “síntese” da história de
“Angola” e “Cabinda” nos títulos (ver Angola, muito menos um “manual” para
capítulo xii e seguintes). Deduz-se das universitários. Os programas de História
indicações do próprio autor que pre- de Angola em vigor em universidades
tendeu escrever uma história das socie- angolanas há décadas, ou as atas publi-
dades existentes no espaço que veio a cadas de várias conferências internacio-
ser ocupado pelo país (atual) Angola, nais de História de África e de História
cujas fronteiras não faz sentido projetar de Angola, algumas organizadas ou co-
para o passado. Por isso, não se entende -organizadas pelo Ministério da Cultura
destacar “Cabinda” a partir de certa angolano, revelam uma história (e uma
altura quando, na mesma época (século historiografia) mais diversificada do que
xviii), também o reino do Kongo não o autor faz supor.
era “Angola”, nem a Matamba o era, nem Propositadamente mencionamos An­
Kasanje, Mbalundu ou Viye nem, na ver- gola, pois é estranho que Oliveira Pinto,
dade, a maior parte do que no futuro faria visitando Luanda várias vezes, ignore o
parte da colónia portuguesa. Além disso, que tem sido publicado, de angolanos e
Oliveira Pinto parece usar “Angola”, em não angolanos, pelas editoras Kilombe-
capítulos seguintes, para designar o limi- lombe, Nzila, Mayamba, Mulemba e pelo
tado espaço dominado por Portugal ou próprio Arquivo Nacional de Angola.
com relações diretas com ele. Introduz- Não se trata de sobrevalorizar a modesta
se, assim, um elemento de confusão no historiografia angolana, mas da obri-
leitor sobre o que é “história de Angola”, gação de conhecer não só resultados de
ou “história da colónia portuguesa de investigações como reflexões metodoló-
Angola”, ou “história da presença portu- gicas que, dentro e fora de Angola, vêm
guesa em Angola”, confusão que, noutras permitindo aprofundar a sua história.
ocasiões, o próprio autor rejeitou. São muitas as dificuldades no cami-
O índice remissivo (pp. 803-820), ins- nho de quem pretenda fazer obra deste
trumento inegavelmente útil, ganhará género, sintetizando o melhor da histo-
em ser revisto em próximas edições. Nele riografia existente e, simultaneamente,
se encontram “telefones” e “queimadas” cartografando os vazios que se fazem
mas não chefes políticos referidos no sentir, quer se considerem horizontes
texto como Ndunduma, Ekwikwi ii e o geográficos, temporais ou epistemológi-
seu sucessor Numa, Sihetekela, e outras cos. O insucesso de tentativas anteriores
personalidades e lugares importantes. (p. 31) justificou os aplausos ao facto de
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Alberto Oliveira Pinto ter enfrentado de factos mais ou menos interessantes,


o desafio e publicado a sua “história de temperados com digressões literárias,
Angola”. Para muitos poderá ser uma útil adjetivação e comentários libertos da
iniciação, com informação interessante e obrigação de se justificarem. Citando o
nem sempre fácil de obter fora de restri- autor (p. 30), “a concretização de projec-
tos círculos académicos. Mas o resultado tos mais abrangentes sobre a história de
ficou muito aquém do anunciado e do Angola… continua a ser uma premên-
que poderia ter sido, se o autor se liber- cia”. E, acrescentamos, uma promessa
tasse mais dos seus trabalhos anteriores adiada.
e explorasse melhor a vasta bibliografia
existente (estudos de caso, sínteses par-
ciais, edições críticas de fontes, debates neto, M. da C. (2019), Recensão “História de
metodológicos) dentro e fora dos espa- Angola da Pré-História ao Início do século xxi,
ços de língua portuguesa. Isso permi- 2.ª ed., ­Lisboa, Mercado de Letras, 2017”. Análise
Social, 230, liv (1.º), pp. 181-185.
tiria, também, evitar muitos dos erros
veiculados no texto. Fundamentalmente, Maria da Conceição Neto » saoneto@yahoo.com »
é preciso que não se confunda a sín- Faculdade de Ciências Sociais, Universidade Agos-
tinho Neto » Avenida Ho Chi Minh, n.º 56, Caixa
tese histórica, mesmo assumidamente
Postal n.º 1649, Luanda, Angola.
­provisória e lacunar, com um repositório

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