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A biografia é um daqueles gêneros de fronteira que seduz e preocupa tanto historiadores

quanto críticos literários, na medida em que a representação, pela escrita, da trajetória


de um indivíduo traz questões sobre a possibilidade de a mesma remeter à História de
uma época focalizada a partir de uma pessoa ou de criar literariamente uma versão bela,
todavia não verdadeira sobre ela e seus contemporâneos.
Como se pode aquilatar, a biografia problematiza fronteiras entre história e ficção, mas
também entre essas disciplinas e a antropologia social, ao abordar a memória, a
subjetividade e os símbolos de uma sociedade.

Memória individual e caminhos sociais

Por trabalhar com a matéria volátil da memória, o texto biográfico revela os impasses
do esquecer e do lembrar, fazendo com que as escolhas de dizer e silenciar fatos,
pessoas ou grupos não sejam apenas opções pessoais do narrador, mas
As questões que emolduram esse texto, expostas até aqui de maneira rápida e algo
simplificada têm em mira o livro Picadas de um matumbo angolano, de Percy
Freudenthal (2019), escrito com a assessoria de Leonor Vaz Pinto.
O próprio autor, aliás, na introdução do volume faz questão de afirmar que a perspectiva
adotada para contar sua história é a de um drone, já que “Olhar de alto permite ver de
longe, sem contornos nítidos e sem percebem bem o que se vê e, principalmente, o que
não se vê”. (p. 9). Dessa forma, de maneira inteligente, como todo o texto demonstra a
respeito desse astuto narrador, indica-se aos leitores que as lacunas que por acaso
houver no relato o serão em razão do distanciamento escolhido e não por falha do
biógrafo.
E de que nos fala Percy Freudenthal? De uma vida em Angola, nos anos que
precederam e naqueles depois da independência do país, vividos por um ator
privilegiado, já que ele desempenhou funções de relevo na vida da jovem nação
africana, notadamente frente ao setor petrolífero, um dos mais importantes na economia
do país. Trata-se, como se pode aquilatar, de um discurso obrigatoriamente atravessado
pela História, fundamental para os que se interessam pelos rumos de Angola desde as
lutas pela independência, até os momentos atuais. Trata-se, pois, de um daqueles relatos
exemplares de autores que viveram de perto – e mais que isso, tiveram papel ativo – na
formação do estado-nação angolano.
Nesse sentido, o livro deixa de ser apenas o relato de uma memória individual, para
tornar-se discurso em que as tensões, conflitos e perspectiva de um tempo conturbado
como os anos 1970 e 1980 na história angolana ganham relevo. Para lembrarmos aqui
Bourdieu no texto “A ilusão biográfica”1, se Percy Freudenthal é em seu livro
“personalidade designada pelo nome próprio, isto é, o conjunto das posições
simultaneamente ocupadas num dado momento por uma individualidade biológica
socialmente instituída”, ele é também, graças às atribuições e atributos apresentados na
biografia, um agente que intervir intervém como agente eficiente em diferentes campos.
Referida a exemplaridade do relato, deve-se citar suas qualidades literárias, pois se trata
de uma narrativa que prende o leitor, a partir de uma prosa elegante e com particular
senso de humor. A abundante presença de fotografias e reproduções de documentos e
recortes de jornais é percorrida com curiosidade por quem lê o volume pois, se por um
lado comenta e ilustra o texto, por outro torna-se, especialmente a partir do Capítulo II –
Juventude, iconografia importante para a história de Angola, pois encontram-se desde
imagens da Casa dos Estudantes do Império, até telegramas indicando a posição do
governo estadunidense com relação ao petróleo angolano, ou uma foto pouco usual nos
livros de História sobre o içar da bandeira do país no 11 de novembro de 1975. A
qualidade do material é indiscutível, assim como o próprio volume, com um cuidado
gráfico esmerado.
Além de todas essas qualidades há um elemento que faz de Picadas de um matumbo
angolano um depoimento sui generis: seu autor define-se logo às primeiras páginas do
livro, como um branco judeu angolano. Ou seja, faz parte de uma minoria quando
pensamos nos depoimentos sobre a luta de libertação existentes até o momento.
Não poucos leitores verão nesse

1
BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Moraes. AMADO, Janaína
(org). Usos & abusos da História oral. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas,
p.190.)

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