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DOIS OLHARES SOBRE MAQUIAVEL:

a presença de Maquiavel nas histórias da literatura de Asor Rosa e Peter Brand;


Lino Pertile
Eliziane Mara de Souza (PGET/UFSC)
A tarefa do historiador certamente é servir de
anjo que registra, e não de juiz que condena .
(Skinner, 2010, p.119)

No ano de 2013 O Príncipe completará 500 anos e segue como alvo de interesse,
debates, interpretações. A epígrafe desta comunicação serve, assim, como uma perene
advertência feita pelo historiador Quentin Skinner aos que se lançam à intrincada tarefa
de “interrogare la sfinge” maquiaveliana (ARON, 2007, p. 5).
Como resultado dessas investigações sobre o pensamento de Maquiavel, alguns
autores continuam privilegiando em suas análises o Maquiavel político, enquanto outros
efetuam um estudo mais abrangente, envolvendo também as suas obras de cunho
literário, militar e históricas, além de incluir outros textos como o epistolário.
Assim, o objetivo desta comunicação é verificar a presença de Maquiavel em
uma das mais recentes e importantes histórias da literatura italiana a Storia Europea
della Letteratura Italiana (2009), organizada por Alberto Asor Rosa e uma história da
literatura estrangeira, The Cambridge History of Italian Literature (1996), organizada
por Peter Brand e Lino Pertile, a fim de verificar que tipo de Maquiavel emerge desses
dois olhares: o literato? o político em ação? o historiador?
Asor Rosa (2009) tratará de Maquiavel especificamente no Capítulo Sétimo,
intitulado Il Rinascimento e la grande catastrofe italiana, usando a periodização como
estratégia de análise e tendo como foco um período (1492-1530) que envolverá tanto a
entrada de Maquiavel no palco de Florença (o início de sua vida pública, como
funcionário da República florentina) como a sua derradeira saída (a morte em 1527).
O historiador italiano expõe uma visão ampla e ao mesmo tempo minuciosa da
Renascença, em que estão imbricadas condições sociais, históricas, políticas,
econômicas, obras, personalidades, locais, entre outros. Assim, partindo deste ponto de
vista, Asor Rosa sugere que existem duas obras de Maquiavel, uma formada pela
totalidade de seus escritos e outra que constitui o seu epistolário e ressalta a variação de
temas que elas contêm, daí a dificuldade em compreender o escritor florentino.
O nome de Maquiavel aparece citado já no início do longo capítulo, como uma
das grandes personalidades do período, seguido pelas relações entre a experiência e o

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pensamento do escritor florentino, além da formação de uma nova geração de literatos.
E ele dedica boa parte do final do Capítulo Sétimo unicamente a Maquiavel, reforçando
a importância do pensador florentino no contexto em que ele se inseria, além de levar
em conta os reflexos posteriores da teoria maquiaveliana no mundo moderno.
Maquiavel, conforme Asor Rosa, amava Dante, sua pátria e a política. Era um
“puro politico” (ASOR ROSA, 2009, p. 546), um homem de ação, que não queria ficar
como mero expectador da crise italiana, mas sim fazer parte da vida pública de
Florença.
A base humanística de Maquiavel é demonstrada na imitação de modelos
antigos, como a tratadística dos espelhos de Príncipes, vislumbradas no capolavoro, O
Príncipe, ou no título original, De Principatibus. Com esta obra deixa como legado o
modelo de um “capo di Stato, inflessibile e assoluto, energico e dominatore” (ASOR
ROSA, 2009, p. 453), que será percorrido pela civilização italiana posteriormente.
Assim Maquiavel tanto é um homem de seu tempo e seus textos se ligam ao
movimento humanista bem como aos estudos sobre a Roma Antiga. A novidade do seu
pensamento está, segundo Bagno (2011), no fato de que graças as suas observações e
reflexões ele conseguiu reunir e fixar regras gerais na política que constituíram o
pensamento e ação política da Modernidade.
Ao buscar englobar em sentido amplo as idéias de Maquiavel, Asor Rosa faz
comentários a praticamente todas as obras maquiavelianas, mesmo as consideradas
menores. Menciona reflexões feitas sobre o poder nas obras políticas de Maquiavel,
esclarece termos teóricos relevantes do Príncipe, como virtù e fortuna, enquanto
desmitifica idéias sobre o autor e sana incongruências por meio de uma análise atenta da
obra como um todo.
Por outro lado, Asor Rosa atribui um peso grande ao Maquiavel literato,
mencionando as heranças delle tre corone: Dante, Petrarca e Boccaccio e o estilo
maquiaveliano. Ao abordar a Mandrágora o crítico literário discorre sobre a presença
do obsceno em livros renascentistas e liga os versos iniciais de tal comédia teatral com a
visão desencantada, pessimista e a amargura de Maquiavel com sua situação, que o fez,
naquele momento, voltar-se para escritos literários, embora achasse que suas maiores
contribuições estavam no livro que ele escolheu publicar (O Príncipe) e na sua virtù
para a vida política.

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Outro aspecto que Asor Rosa salienta é a crítica sempre presente na obra de
Maquiavel, que na Mandrágora se vislumbra no tom anticlerical, na sátira aos costumes
florentinos da época, ao apego ao luxo e ao dinheiro. Outro aspecto de particular
interesse é o destaque dado por Asor Rosa (2009) ao epistolário maquiaveliano, que
considera um dos mais importantes epistolários do Renascimento, em que emergem o
lado cômico, a espontânea vivacidade, os dissabores e a astúcia nas observações,
considerando, por isso, o epistolário como se fosse outra grande obra. Nas palavras de
Asor Rosa o epistolário é:
certamente il piú intenso e il meno letterario (quindi il più moderno)
della nostra letteratura, che solo un malinteso senso del pudore e um
pregiudicio di natura, appunto, retorica hanno finora relegato al rango
di documento umano o di semplice serbatoio di spunti per la
comprensione delle opere maggiori, svela con estrema chiarezza
l’impossibilità di stabilire in lui una cesura fra sensibilità e
intelligenza, fra struttura materiale della psicologia e funzionamento
del cervello (2009: p. 540).

Parte dos temas e diálogos entre Maquiavel e outras importantes personalidades


renascentistas, Guicciardini e Vettori, é reconstituída e será passada uma imagem de um
Maquiavel servidor fiel e ligado aos amigos e família. O conteúdo das cartas possui um
peso tão grande para o historiador italiano que ele as usa quase como “um documento”
de aspectos do período renascentista.
Passando à The Cambridge History of Italian Literature (1996), organizada pelo
historiador Peter Brand e pelo linguista paduano Lino Pertile, de modo diverso, não são
mencionadas as cartas. Pelo menos não são feitas menções expressas às cartas, mas à
página 189 está presente a informação amplamente conhecida de que Maquiavel
pretendia dedicar seu capolavoro a Giuliano De’ Medici, falecido em 1516 (mas com
sua morte, acabou dedicando-o a Lorenzo, Duque de Urbino, neto de Lorenzo, O
Magnífico). Tal informação está contida em uma das cartas mais famosas de Maquiavel,
a que ele anuncia a escrita do Príncipe, endereçada ao seu amigo, embaixador de Roma,
Francesco Vettori, de 10 de dezembro de 1513.
Não obstante a ausência de menções ao epistolário, o nome de Maquiavel
constará já na contracapa do livro e na apresentação, sendo considerado como um
grande humanista da Renascença, ao lado de Ariosto e Tasso. No mesmo patamar,
aparecem outros escritores que, conforme a apresentação, contribuíram para a tradição
literária italiana: Dante, Petrarca, Boccaccio, bem como dramaturgos “pioneiros” como

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Pirandello, Dario Fo, poetas como Leopardi, e Montale, e, por fim, entre os
“romancistas” Manzoni, Calvino e Eco.
Por outro lado, enquanto a história literária italiana contém autoria única, a em
língua inglesa, conta com organização de Brand e Pertile e, ao mesmo tempo, é formada
por 19 ensaios de estudiosos de universidades de vários países de língua inglesa, como
as Universidades da Califórnia, de Nova York, Harvard, de Birmingham, Londres,
Edinburgh, Toronto, Sydney, etc.
No Prefácio, os organizadores ressaltam que o objetivo é fornecer um panorama,
em um volume único, da literatura italiana. Enfatizam que em virtude deste escopo,
surgiram problemas de seleção e compreensão, dada a magnitude do assunto, uma
tradição literária de mais de 700 anos e o considerável fomento a estudos acadêmicos e
críticos na época recente, ressaltando-se a importância da criatividade da literatura
italiana no contexto da história da literatura. São escolhidos tanto autores clássicos, que
contarão com um grande destaque na obra, como também citados alguns autores
considerados como menores.
A organização também esclareceu ter tentado dar unidade ao livro, algo
complicado, por se tratar de uma história escrita por especialistas em diferentes campos
e assim fornecer uma visão sobre o estado das investigações críticas em cada área.
Assim, buscou-se uma uniformidade de abordagens e de estilo, além de se sanarem
possíveis discrepâncias e repetições nos capítulos.
O livro foi concebido para os leitores em geral, mais que aos especialistas no
assunto. Em virtude de tal fato foi feita a escolha de uma linguagem mais acessível e
tomou-se o cuidado de acompanhar as passagens citadas em italiano, que poderiam não
ser compreendidas, de uma tradução para o inglês logo em seguida.
Ainda, para facilitar a compreensão do leitor e ao mesmo tempo chamar atenção
para o conteúdo da obra, existem vários paratextos, além de uma breve apresentação do
volume e opiniões de periódicos presentes na contracapa, tem-se, ainda, antecedendo o
texto em si, uma lista de colaboradores e suas respectivas universidades de origem,
apresentação e prefácio, mapa da Itália Moderna, cronologia dos eventos políticos,
literários e culturais das origens até o século XX.
Ao final, tem-se uma bibliografia, isto é, são descritos alguns livros usados como
fonte primária ou secundária de pesquisa. Assim, estudos bibliográficos, periódicos,
trabalhos acadêmicos, livros, são relacionados em cada um dos capítulos. Também há

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um índice alfabético remissivo, onde aparece o nome de Maquiavel, bem como de suas
obras principais e se indica também onde se encontram informações sobre a recepção e
influência do pensamento maquiaveliano.
No que concerne a estrutura, dividiram o tempo em séculos. Dentro de cada
século aparecem sessões nomeadas como: poesia, prosa, teatro, ópera. Ou então
aparecem nomes de autores de destaque do período como o nome de Dante, Petrarca e
Boccaccio. Algumas vezes é citado o período (década de 80) ou um movimento literário
ou cultural marcante como o humanismo e o romantismo.
O capítulo dedicado ao Cinquecento está dividido em quatro partes: a) Prosa, a
cargo de Brian Richardson, citados Maquiavel, Guicciardini, Castiglione, entre outros;
b) narrativas poéticas, com destaque para Boiardo, Ariosto e Tasso, por Peter Marinelli;
c) Poesia Lírica, mencionados os nomes de Bembo, Tasso, Ariosto, Michelangelo,
Berni e Aretino, de autoria de Anthony Oldcorn e d) Teatro, escrito por Richard
Andrews, com destaque para a Commedia dell’arte.
O ensaio dedicado à prosa do Cinquecento de Richardson, da Universidade de
Leeds, inicia falando de formas literárias de prosa, da retórica, da publicação e censura
de livros, informando que Maquiavel escolheu apenas um trabalho não literário para ser
publicado. Há um tópico pequeno dedicado inteiramente a Maquiavel, antecedido por
outro que fala de aspectos históricos e políticos de Florença, antes da entrada de
Maquiavel para a vida pública, notadamente o poder dos Medici e de Savonarola,
Richardson no décimo primeiro capítulo o ressalta as brilhantes e originais
contribuições de Maquiavel para o pensamento político. Isto se deve à experiência
adquirida na administração dos territórios florentinos, às suas atividades como
diplomata e as dificuldades envolvendo a necessidade de um exército armado.
Richardson comentará as três obras mais famosas de cunho político, O Príncipe,
Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio e A Vida de Castruccio Castracani di
Luca.
Quanto ao Príncipe, ele será considerado com um tratado que se baseava na
experiência prática de Maquiavel e no seu conhecimento de história antiga. Seu autor
acreditava que o conteúdo teórico ali reunido poderia ser beneficamente empregado
pelos Medici, diante das oportunidades oferecidas naquele momento na Itália.
Richardson dividirá os capítulos de O Príncipe em várias partes. A primeira, do
capítulo 1 ao 11, dedicada ao estudo dos tipos de principado, concentrando-se nos novos

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na figura de Cesare Borgia. Em seguida, serão mencionados os capítulos 12 a 14, para
se concentrar longamente sobre o capítulo 15, e em pontos específicos do pensamento
maquiaveliano como a verità effettuale della cosa, a questão do uso do bem e do mal e
da tirania pelo Príncipe. Por fim, refere-se à “efervescente” exortação de Maquiavel aos
Medici de liberarem a Itália das mãos dos bárbaros. Trata também do estilo literário de
Maquiavel: o uso de imagens e metáforas.
Os Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio têm uma menção um pouco
menos detalhada, embora se destaque a importância da afirmação das principais idéias
políticas maquiavelianas efetuadas nele e sua correlação com as discussões
empreendidas por Maquiavel no Orti Oricellari, os jardins da família Rucellai em
Florença. Não à toa quando na Itália se estuda Maquiavel se começa pelos Discursos e
não pelo Príncipe, como no Brasil, pois isto possibilita uma leitura mais ampla e
coerente da obra de Maquiavel, ligada aos autores que compuseram a sua base teórica e
ao contexto florentino e italiano da época.
Outra obra citada será a Arte da Guerra,diálogos também oriundos das lições do
Orti Oricellari e que justificam a criação de uma milícia nacional que poderia levar os
Medici a governarem toda a Itália. Por fim, será mencionada a escrita sobre o
condottiere Castruccio Castracani de Lucca e alguns eventos e personalidades das
Histórias Florentinas.
Será ressaltado, fechando a seção, o grande interesse na Itália e no exterior pelas
idéias de Maquiavel, inclusive circulando versões manuscritas de algumas obras na
Inglaterra e impressos entre 1562 e 1595. Em 1602, aparece a tradução da obra de
Gentillet atacando O Príncipe, originalmente publicada em 1576 em francês.
Em outras partes do Cinquecento o nome de Maquiavel será citado, por
exemplo, na seção em que se fala de Francesco Guicciardini e de sua amizade com o
autor do Príncipe. O pensamento literário de Maquiavel será comentado em outros
tópicos junto a outros escritores, o que acaba por sugerir um predomínio da atenção
sobre as reflexões políticas. No item denominado ficção narrativa, será feito um resumo
da obra Belfagor em um capítulo. Na seção dedicada ao Teatro, serão descritas obras
teatrais influenciadas por Plauto e Terêncio, como Mandrágora e Clizia e feitas
comparações entre os escritores do período como entre Maquiavel e Aretino.
Da observação dos livros de Maquiavel citados em toda a obra, percebe-se uma
intenção de abranger um pouco (em outras palavras o que é considerado principal) das

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várias facetas maquiavelianas: o historiador, da História de Florença, o literato da
Mandrágora e Belfagor, o político do Príncipe e dos Discursos e o estrategista militar
de Arte da Guerra. Assim, também, atrairá olhares de interessados em política,
literatura, história, etc.
Esta breve comparação entre essas duas histórias da literatura italiana nos
permitiu verificar o grau de interesse por determinadas obras de Maquiavel, como as
cartas. Se na obra de Brand e Pertile as cartas escritas por Maquiavel não são
mencionadas, isso não surpreende tendo em vista que em outras obras sobre literatura
italiana as cartas ou não aparecem, ou o fazem de maneira bastante marginal.
Diversamente, Asor Rosa embora não use as cartas pelo seu valor literário em si,
opta por citá-las no corpo do texto, como forma de tangenciar os fatos e possibilitar um
ângulo de visão bem mais amplo, capaz de captar o Renascimento e a coerência do
pensamento maquiaveliano em sua totalidade.
Observou-se também um grande interesse de ambas as histórias pelo Maquiavel
teórico político mas também pelo literato, sendo citadas as obras literárias mais famosas
e tecidas algumas considerações importantes sobre elas.
Porém, enquanto na história da literatura de Brand e Pertile, ainda predomina o
teórico político, mas já com vários momentos de abertura ao literato, na de Asor Rosa,
busca-se um equilíbrio entre o político, o literato, o estrategista, o historiador e uma
tendência a recuperar o passado em sua complexidade, desconstruir mitos prejudiciais e
construir uma imagem positiva, embora se saiba que, como se lê na lápide de Maquiavel
“nenhum epitáfio pode fazer jus a tão grande nome” (SKINNER, 2010, p.119).

REFERÊNCIAS

ARON, Raymond. Machiavelli e Marx. In: MACHIAVELLI, Niccolò. Il Principe.


Milano: Rizzoli Libri, 2007, p.5-27.

ASOR ROSA, Alberto. Storia europea della letteratura italiana. Torino: Einaudi. 2009.

BAGNO, Sandra. La lettura Desanctiana del Principe di Machiavelli. In: Settimana


della Lingua Italiana nel Mondo: Buon Compleanno Italia! Florianópolis, 01 de
novembro de 2011.

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______.“Maquiavélico” versus “maquiaveliano” na língua e nos dicionários.
Cadernos de Tradução, Florianópolis, Brasil, n. 22, 2008, pp.129-150.

BRAND, Peter; PERTILE, Lino. The Cambridge History of Italian Literature.


Cambridge: Cambridge University Press, 1996.

DE SANCTIS, Storia della letteratura italiana. Tomo 1 e 2, Op. Grande biblioteca


della letteratura italiana, Torino, Einaudi, 1958.

SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. Revisão Técnica:


Renato Jeanine Ribeiro. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1996.

______. Maquiavel. Tradução de Denise Bottmann. Porto Alegre: LPM, 2010.

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