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f

Wencesláu de Queiroz

(1863-1921)
W e n c e s l á u d e Q u e i r o z

ezas do Diab

1 9 3 9

E m p r e z a G r a p h i c a d a «Revista dos T r i b u n a e s »
R u a X a v i e r d e T o l e d o , 72 — S ã o P a u l o
P R E F A C I O

Hagop Touriane escreveu e W e n c e s l á u de Queiroz


traduziu, sob o titulo " A verdadeira m o r t e " :

Quando minha alma convolar para essa


Região da morte que ninguém deslinda,
E gelada pender minha cabeça,

Notae-o bem! — estarei vivo ainda...

Quando, por entre o incenso, sobre a eça,


Tiver dos padres a oração infinda
Para que em paz eu adormeça,
Notae-o bem! — estarei vivo ainda...

Mas quando não houver nem mais um traço

Do meu leito final no chão escasso


Do Campo Santo; ah! quando o mundo absorto

Desta existência na fugaz passagem,


Esquecer para sempre a minha imagem,
Sabei-o! — só então estarei morto...

Wencesláu de Queiroz não está morto. Está vivo

ainda, na saudade, no amor, na a d m i r a ç ã o filial, que


colligiu as "Rezas do Diabo" e as publicou em volume.
Está vivo nos seus versos, que lhe prolongarão a me-

m ó r i a pelos tempos afóra. N ã o esquecemos a sua ima-

gem, nós os que viemos vinte ou trinta annos depois


delle, n ó s os que o temos presente na sua obra de poeta

como deveríamos tel-o na sua obra de critico literário

e musical, de jornalista, do operário das letras que por

mais de quarenta annos manteve o fogo sagrado numa

época em que raras e heróicas eram as vestaes.

"Rezas do D i a b o " apparece fóra do seu tempo.

Esvahiram-se as influencias baudelairianas, extinguiu-se

o culto satanista, passou a nevrose ou t o m o u novas fôr-

mas, n u m m u n d o em que as dores n ã o são mais doen-

ças, s ã o revoltas. O éco que estes poemas tiveram nas

paginas ephemeras dos jornaes e das revistas, n ã o re-

percutirá hoje ao redor do livro.

Mas W e n c e s l á u de Queiroz, que estreou aos 18 nn-

nos c o m u m a pequena collectanea de versos, "Goivos", e

f i r m o u reputação, sete annos depois, c o m seus "Versos",

ha de ser julgado na distancia em que se situou, através

da sua p r o d u c ç ã o da maturidade, que são estas "Rezns

do Diabo". Pena é que se conserve ainda inédito outro

livro, "Cantilenas", que nos permittiria acompanhar pas-

so a passo a evolução do seu lyrismo para as amarguras

e os desesperos do derradeiro período.

Os poetas, de nervos vibrateis e de sensibilidade

aguda, soffrem mais do que o c o m m u m dos mortaes as

angustias ambientes da humanidade. Feridos pelos ho-

mens, esmagados pelo destino, n ã o podendo vencer as

contingências inherentes aos terricolas, voltam-se para o

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passado, que os inspira; constróem futuros, em que o

h o m e m n ã o é mais o lobo, é o irmão do h o m e m ; ou re-

fugiam-se no sonho, no m u n d o creado pela imaginação,

a que pedem felicidade e de que m a n a m torturas. Hoje,

um derivativo é a questão social; em certa data, sacrifi-

cados na terra, descrentes do céo, voltaram-se, n u m a atti-

tude que era escarneo intencional e snobismo inconscien-

te, para Satan.

W e n c e s l á u de Queiroz leu Baudelaire, os que o pre-

cederam, os que o acompanharam, e impregnou-se das

suas idéas e dos seus processos, por motivos concorren-

tes. Antes de tudo, u m a relativa affinidade espiritual,

que já se sentia nos seus primeiros accordes. Depois, o

poder da imitação, que faz as modas e as escolas. Por

fim, decisivamente, duros golpes successivos, na perda

dos filhos, que o rebellou contra o Deus que lhe tirava,

u m a u m , inexorável, os mais fortes e mais quentes af-

fectos.

Sem as repetidas catastrophes, que lhe ennegrece-

ram o coração e lhe intoxicaram a alma, este devoto de

Satan, que atemorizava a gente piedosa e christã do S.

Paulo dos começos do século, teria rematado sua carreira

com preoccupações philosophicas, que eram da essência

do seu ser, mas á luz do lyrismo, que repontava nos seus

primeiros versos e se desatou ainda em flores nas "Can-

tilenas". A postura rebelde, de incréo e blasphemo, n ã o


era senão u m a reacção do sentimentalista que n ã o soube

ter a resignação de Job ante as desgraças c o m que o céo

o experimentou. N ã o era por dureza de coração e ve-

neno de alma, era exactamente porque tinha a alma affe-

ctiva e o coração sensivel que W e n c e s l á u de Queiroz se

insurgia contra as dores que amargavam o seu amor

de pae.

Nas suas tres phases, W e n c e s l á u de Queiroz teve

posturas differentes perante a vida, mas f o i invariavel-

mente artista. Seus versos t ê m sempre a ourivesaria em-

pregada pelos parnasianos, cujo maior mérito, quanto á

technica do verso, f o i a imposição da f ô r m a cuidada

mesmo aos que n ã o se submetteram á escola. Explique-

mos ainda o rythmo, a melodia, a suavidade dos versos

pelo culto do som de quem f o i poeta e f o i t a m b é m

musico.

W e n c e s l á u de Queiroz n ã o está todo nos seus livros

de versos. N e m mesmo se dirá que ahi se acha a sua

p o r ç ã o maior. Porque longa e intensa f o i a sua activi-

dade na critica literária, na critica theatral e na critica

musical. E n ã o s ó : jornalista profissional, tem u m a

extensa folha de serviços á imprensa, onde debateu os

problemas do dia, escrevendo editoriaes, travando po-

lemicas, c o m uma fecundidade que encheu largo p e r í o d o

do nosso jornalismo,

8 s
Como critico era rigoroso; c o m o polemista, bravio.

Mas sabia ter generosidades c o m os novos e cavalheiris-

mo c o m os adversários. Á distancia, apparece-nos como

u m lutador estrenuo, que se bateu pela verdade, pela

justiça e pela belleza.

A geração de hoje, vivendo u m a época de vibrações

jornalísticas, de effervescencias literárias, na florada do

pensamento e da arte que illumina e p e r f u m a S. Paulo,

não p ô d e ter idéa do que era o valor, a coragem, o estoi-

cismo dos poucos bravos que sustentavam a trincheira

das letras ha trinta ou quarenta annos atraz. Pequenos

mesmo os nossos grandes jornaes. Editor nenhum, salvo

os do Rio de Janeiro e Lisboa, que editavam os consa-

grados. Publico escasso e indifferente nas suas massas.

fíavia só a Escola Normal, só o Gymnasio do Estado, só

a Faculdade de Direito. Para fundar a Academia Pau-

lista de Letras, recorria-se aos politicos mais cultos, aos

médicos mais illustres, aos advogados mais celebres, para

que c o m a sua intelligencia e cultura viessem completar

os quarenta necessários.

A esse tempo, que é recente e t ã o distante já está,

W e n c e s l á u de Queiroz occupava sempre u m posto da pri-

meira linha. Nos jornaes e revistas, c o m folhetos e livros,

foi u m combatente obstinado e valente, que manteve de

p é a bandeira quando outros desertavam o campo de


batalha ou se conservavam á sua margem, de armas en-

sarilhadas. N ã o teve desfallecimentos n e m tréguas. N ã o

recuou n e m descansou. Era sozinho u m exercito, a p i -

pocar metralhadoras, a tonitroar canhões, a sobrevoar

em reconhecimento e em combate, c o m as esquadrilhas

da sua curiosidade, dos seus sonhos, das suas coleras.

S. Paulo deve-lhe esse irresgatavel serviço. Se da

sua historia literária se supprimisse a obra de Wences-

láu de Queiroz, abrir-se-iam vasios enormes, crear-se-iam

desertos, formar-se-iam solidões, zonas de silencio onde

está o poeta das "Rezas do Diabo" a cantar e t a m b é m a

combater dia após dia, mez apóz mez, anno após anno,

operoso e infatigavel, intransigente e apaixonado, valente

e bellicoso. E o bardo e lidador enche o seu tempo c o m

a musica dos seus versos, c o m a trepidação da sua cri-

tica, c o m o ruido das suas polemicas, na missão que se

impoz e cumpriu, mantendo accesa a c h a m m a votiva do

culto ás letras e ás artes, nesta nossa Piratininga então

muito mais commercial e cafeeira do que literária e

artística.

São Paulo, novembro, 1938.

RUBENS DO AMARAL

10 m
M A G I A S N E G R A S
A R T E M A L D I T A

A r t e m a l d i t a ! Circe feiticeira!

B e b i t a m b é m teu philtro de estramonio

P a r a sonhar a m i n h a vida inteira

N o m e i o deste h u m a n o p a n d e m ô n i o ;

Para não vêr, numa feliz cegueira,

D a Realidade o n e g r o h o r r o r g o r g o n i o ,

F u g i n d o assim á m u l t i d ã o rasteira

Sobre as. azas rebeldes do d e m ô n i o . . .

Interpretando os symbolos eternos

D a Natureza, encantos e pavores,

G o s o de q u e m percorre c é o s e i n f e r n o s . . .

E vou crystallizando no meu verso

— N o m e u verso onde estalam tantas dores,

O sonho astral d o c o r a ç ã o perverso.


N O S T A L G I A D O C É O

Eil-o que sonha, triste e s ó . . . Q u e e x t r a n h o a u g u r i o

A a l m a te agita, A r c h a n j o N e g r o ? Q u e m a g i a ,

Q u e sortilegio, á d u r a abobada sombria,

N o O r c o , te prende o c h a m m e j a n t e olhar sulphureo?

Que encantamento kabbalistico assedia

T u a c a b e ç a ? E m que palácio, e m que t u g u r i o ,

A* e v o c a ç ã o de G r a n d e M a g o , n o p e r j ú r i o

Presa ficou t u a infernal f i g u r a esguia?

Nada de mais... Lembra Satan a immensa Quéda

N o b o q u e i r ã o da E t e r n a S o m b r a que lhe v é d a ,

E t e r n a m e n t e , eternamente, v ê r os c é o s . . .

Punge-o a saudade, a nostalgia, a funda magoa

D e estar (Satan j á t e m os olhos rasos d'agua!)

L o n g e da L u z , longe do A z u l , l o n g e de D e u s !

14 =
P H I L O S O P H I A D A B L A S P H E M I A

A Leopoldo de Freitas.

E o Homem vae no turbilhão da vida

L e v a d o c o m o u m g r a n u l o de areia,

S e m saber o D e s t i n o que o norteia,

C o m o a taboa de u m n a u f r a g o p e r d i d a . . .

Em cima: o Céo de arcanos se rodeia

Sob u m a téla a z u l sempre e x t e n d i d a . . .

E m b a i x o : o M u n d o — arena r e v o l v i d a —

E m que a lucta dos Ó d i o s se i n c e n d e i a . . .

Que muito é, pois, que elle fraqueje um dia,

Prosternando-se, p a v i d o e contricto,

E sob o vasto A z u l u m D e u s adore?

Que muito é, pois, também que na agonia,

M a l abafando na garganta u m grito,

J á m o r i b u n d o , elle blaspheme e c h o r e ? . . .

m 15
W e n c e s l á u d e Q u e i r o z

I I

E elle chora e blasphema, porque em volta

D o seu viver os M a l e s se condensam,

E espera e m b a l d e que a divina b e n ç a m

L h e p o n h a u m t e r m o á causa da revolta.

Porém, as trevas mais e mais se adensam

O b u m b r a n d o - l h e a m e n t e desenvolta,

E elle passa n o m e i o dessa escolta,

F i t a n d o o c é o , á espera que o c o n v e n ç a m . ..

Paladino sem fé nem esperança,

C o n t e m p l a e n t ã o n o pobre altar despido

A s i m a g e n s de D e u s s e m entendel-as...

E erguendo o olhar ingênuo de criança

A o A z u l n ã o v ê mais, entristecido,

D o que estrellas... estrellas... s ó estrellas...

16 =
D O U T O R F A U S T O

A Vitaliano Rotèlinu

(Segundo uma gravura alleman).

Côa o luar no gothico aposento.

Fausto, fincando o cotovelo a g u d o

N a mesa, as m a g r a s m ã o s na fronte, m u d o ,

Sente invadir sua a l m a o desalento.

Dos alfarrábios consumiu no estudo

A m o c i d a d e . . . C o m o a folha ao vento,

T u d o que levantou seu pensamento,

T u d o cahiu, desfeito e m cinzas, t u d o . . .

Dentro do frágil cárcere de argila,

D a innocua i n f â n c i a rústica e tranquilla

O doce a l v ô r lembra-lhe a a l m a e m v ã o . . .

Pensa na morte.. . Sonda-lhe o horror profundo. .

Nisto, entre c h a m m a s , do aposento ao f u n d o ,

Surge a rir M e p h i s t o f eles do c h ã o . . .

W m 17

Cad. 2
W e n c e s l á u d e Q u e i r o z

I I

Ao velho Fausto o Tentador dizia,

E x t e n d e n d o n o c h ã o seu r u b r o m a n t o :

— " D o u - t e de n o v o o j u v e n i l encanto

E m troca de tua a l m a . " — E o D i a b o r i a . . .

Fausto lhe respondeu com ironia:

— " A troca m e c o n v é m . . . D a r - t e por tanto

T ã o p o u c o ! S ó n ã o t'o daria u m s a n t o . . . "

E a a l m a vendeu, sabendo o que v e n d i a . . .

E o velho viu cahir-lhe aos pés nessa hora

A l o n g a b a r b a . . . E o D i a b o , s e m demora,

N o seu m a n t o , de súbito, o c o l h e u . . .

E ambos partiram pelo Azul superno:

Z o m b a n d o o sábio do poder do I n f e r n o ,

O D i a b o r i n d o do poder do c é o . . .

18 =
H E R A N Ç A D O M A L

Numa noite azul de luar de prata


ouvi fallar assim a uma estrella, que
fulgia mais do que as outras no céo
translúcido.. •

— "Pagando com usura o trágico estipendio

D a M o r t e , c o m o u m verme, estorce-se, lá e m baixo,

O H o m e m , que s ó h e r d o u o onusto e v i l dispendio

D e E r r o s e Culpas d o P r i m e i r o M a c h o .

Humilde embora como o humillimo escalracho,

J á n ã o tolera, e m f i m , t a m a n h o vilipendio,

Pois nutre a p r e t e n ç ã o , c o m seu pequeno facho,

D e atear no A z u l u m f l a m m e j a n t e i n c ê n d i o . . .

Subir! Subir! Subir! - Tal é o que elle, emtanto,

Aspira, e m b o r a v á dentro do r u b r o m a n t o

D o D i a b o , c o m o Fausto, f a s c i n a d o . . .

E sóbe... e sóbe... e sóbe... até que as azas foscas

Colhe o D i a b o , e elle cae nas terebrantes roscas

D a serpente de bronze do Peccado." —

sa 19
S O N E T O P O S T H U M Õ

(de um philosopho suicida).

H a dentro e m m i m dous seres: — u m que nega,

O u t r o que affirma, n u m a eterna lucta:

— L u c t a incessante, f o r m i d á v e l , céga,

E m q u e a victoria cada q u a l disputa.

Este combate pela Crença e escuta

A v o z do c o r a ç ã o que a D e u s se entrega;

Serve aquelle ao D e m ô n i o que perscruta

O espirito das cousas n a r e f r é g a . . .

Concita o Sentimento: — "Em Deus confia,

H o m e m feito de argila q u e a Serpente

Instiga ao M a l n a eterna r e b e l d i a . . . " —

Mas a Razão replica: — "O* Homem forte!

Repousa e m paz n o seio do Inconsciente,

P o r q u e s ó tens u m a certeza — a m o r t e . " —

20 Í =
S O N E T O S D E U M M A G O

A Sciencia Occulta pertence ao


Diabo.
(Do Livro I V de CORNELIUS

AGRIPPA).

Numa noite de inverno em que eu relia

F ó l i o s poentos, velhos alfarrábios,

Q u e t r a t a m da K a b b a l a e da M a g i a ,

— Sciencias occultas dos antigos sábios,

Vi de repente uma figura esguia,

O l h o s de fogo, c h a m m e j a n t e s lábios,

Q u e m e disse, c o m laivos de ironia,

S o b r a ç a n d o papyros e astrolabios:

— "Si queres penetrar no Mundo Excelso

D o s Arcanos, e m p u n h a f i r m e m e n t e

A espada f u l g u r a l de Paracelso.

Pois que num vivo duello, de improviso,

H a s de partir o gladio refulgente

D o A n j o que te expulsou do P a r a í s o . " —


W e n c e s l á u d e Q u e i r o z

I I

E perguntei-lhe: — "O pomo da Verdade

E x i s t e acaso na A r v o r e da Sciencia,

O n d e tentaste o Pae da H u m a n i d a d e ,

Desatando-lhe as azas da C o n s c i ê n c i a ?

Não és acaso o Deus da Falsidade

Q u e n o t h r o n o da H u m a n a Intelligencia

Queres reinar, i m p o n d o - l h e a maldade,

E m troco de u m a t u r b i d a e x i s t ê n c i a ? " —

— "Como te enganas! — exclamou, cerrando

O s p u n h o s para o C é o o R e b e l l a d o —

C o m o te enganas, filho m i s e r a n d o

Da raça eterna de Kain maldito!

E u tenho para o C é o que está fechado

A chave dos A r c a n o s do I n f i n i t o . " —

22 m
E S P H Y N G E A Z U L

...Ali fond des cieux, au fond de 1'altitude


Des c i e u x , les astres blancs et froids, sans lassitude,
A force d'être loin au sein de la Nuit rude,
Garderont, au dessus des maux, leur quiétude.

( E M I L E GOUDEAU).

Por mais que tu, ó Crente, o céo pesquizes,

Dos c o r u c h é o s o u dos mais altos mastros,

A r r a s t a r á s nos p é s os t é r r e o s lastros

Nessa legião dos Tristes e Infelizes.

És como o egypcio que no Templo d'Isis

Pedia e m v ã o , de joelhos e de rastros,

Q u e a eterna esphynge a z u l do c é o , nos astros,

L h e predissesse as mais funestas crises...

Millenios. ha que o vasto céo se arquêa

C o m o u m docel de rutila turqueza

O n d e u m a c h u s m a de astros e n x a m ê a . . .

E quando, ó Crente, nessa Immensidade,

V i s t e u m s ó astro encher-se de tristeza

C o m as tristezas desta H u m a n i d a d e ?

m 23
L Ó G I C A D O D I A B O

Si D e u s existe, c o m o a B i b l i a ensina,

E o H o m e m t i r o u do C h ã o s , do grande N a d a ,

P a r a a lucta da V i d a , á r d u a , assassina,

E n t r e o E g o í s m o feroz e o A m o r t r a v a d a ;

Si Deus na alma nos poz, ardente e alada,

A c r e n ç a do Ideal e, negra sina!

Fel-a depois cahir, d'aza quebrada,

N a s p r ó p r i a s garras da illusão divina;

Si Deus, depois de tanto desengano,

C e r r o u ouvidos ao l a m e n t o h u m a n o ,

Q u e ha millenios p r o c u r a o azul dos c é o s ;

Si Deus matou seu próprio filho — Christo;

( F a l l o por v ó s , ó m ã e s ! ) si D e u s fez i s t o . . .

( F a l l o p o r v ó s . . . ) — M a l d i t o sejas, D e u s !
J E S U S

La religion du Christ est une re-


ligion de désespoir, puisqu'il desespe-
re de la v i e et n ' e s p è r e qu en 9
l'éterniié.

ALFRED DE VIGNY.

Só porque minha Mãe, doce lembrança!

T e u n o m e , entre orações, m e repetia,

Q u a n d o apenas eu era u m a c r e a n ç a

E ia dizendo o que ella m e dizia:

Meu lábio inda hoje, numa prece mansa,

Repete-o sempre, ó filho de Maria,

H o j e que já perdi toda a e s p e r a n ç a

D e ir ter c o m t i g o lá n o c é o u m d i a . . .

Mas nem por isso, ó rude carpinteiro,

Q u e expiraste no t r á g i c o madeiro,

Allucinado por u m s o n h o insano,

Eu desconheço os males do teu erro,

Pois n ã o nos d é s t e mais, neste desterro,

Q u e a religião do desespero h u m a n o . . .

=ü 25
A T E N T A Ç Ã O D E C H R I S T O

Intendam des somptueux pechés et


des grands vices, Satan, c'est toi que
nous adorons, D i e u logique, D i e u juste!

(HUYSMANS. — Lá-Bas. — Mes-

se noire).

Satan, o tenebroso Archanjo Trismegisto,

L e v o u o N a z a r e n o ao c i m o da m o n t a n h a ,

E p o n d o e m sua v o z u m a a t t r a c ç a o t a m a n h a ,

Soberano e revél, faliou assim a C h r i s t o :

.— "Olha — e apontava o mundo — é meu, é meu tudo isto,

E dal-o posso a q u e m acreditar na e x t r a n h a

F o r ç a do m e u poder que a terra t o d a g a n h a . . .

A d o r a - m e , e s e r á s ó teu o que tens visto."

Christo lhe respondeu: — "Retira-te! Somente

A d o r o m e u Senhor, m e u Deus, m e u Pae c l e m e n t e ! "

E o D e m ô n i o f u g i u . . . — D e tanta d o r ao cabo,

Dize-me, ó carpinteiro ingênuo da Judéa:

P a r a que nos serviu t u a divina I d é a ?

A n t e s tivesses feito u m pacto c o m o D i a b o . . .

26 m
A V E L H A S E R P E N T E

— " M a l d i t a sejas tu, V e l h a Serpente,

Q u e á p r i m e i r a M u l h e r que v e i u ao m u n d o

D é s t e a comer, maliciosamente,

O p o m o sensual do A m o r fecundo.

"Tal é teu crime, que no lodo immundo

C a m i n h a r á s de r o j o eternamente,

C o m o o bicho mais v i l e n a u s e a b u n d o . . ,

M a l d i t a sejas tu, V e l h a Serpente!" —

Assim Deus te fallou no Paraíso,

Depois que A d ã o colheu nos lábios de E v a ,

N u m l o n g o beijo, o virginal s o r r i s o . . .

E tu, Serpente, desde então rastejas,

M a s ouves s ò do teu g o l p h ã o de treva

E s t a o r a ç ã o de a m o r : — " B e m d i t a sejas!"
A D Ã O

O Pae do gênero humano foi en-


terrado no monte Calvário. Quatro m i l
annos depois, a cruz de Jesus-Christo
foi plantada sobre a mesma sepultura

de Adão.
(Padre J. G Á U M E . — "Ca&h. de
Perseverança").

— "Quatro mil annos faz, Jesus, que nesta alpestre

E á r i d a serra, onde h o j e expiras c o m o u m r é o ,

Achei, — s o f f r e n d o ainda o e s t y g m a atroz do C é o , —

O m e u pouso final na h a b i t a ç ã o terrestre.

"Mas repousei emfim... Porque, Divino Mestre,

V e n s hoje m e acordar c o m t a m a n h o escarcéu,

F a z e n d o r e m u g i r a dor de u m p o v o l é u ,

N a m u d e z ancestral desta m o n t a n h a alpestre?

"Pesa-me tua Cruz como si ella tivesse

O peso secular do h u m a n o S o f f r i m e n t o

Desde que m e feriu o a n a t h e m a fatal.

"Jesus! morres em vão, expiando o Mal reféce!

P o r q u e e m t o r n o da C r u z — a C r u z do t e u t o r m e n t o ! —

Colleará, silvando, eternamente, o M a l . " —

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A M U L H E R D E J O B

A p o d r e c i a Job no muladar. N o emtanto,

N ã o lhe q u e i m a v a a l í n g u a o f o g o de u m a praga

C o n t r a q u e m o prostrou na terra de H u s , e, o m a n t o

Roto, deixou-o n ú e o corpo, aberto e m c h a g a . . .

Mas a mulher de Job pensava, com espanto,

C o m o podia ser que, da v i r t u d e e m paga,

Elle soffresse, m u d o e só, represo o pranto,

A injustiça do c é o que nos abate e e s m a g a . . .

Disse-lhe, então: — "Amaldiçoa a Deus e morre!

Desengana-te, Job! que D e u s n ã o te soccorre!" —

E n ã o havia q u e m deixasse de ter d ó

Dessa agonia, desse horror, dessa miséria,

Desse d i s f o r m e pesadelo da m a t é r i a . . .

T o d a a r a z ã o , p o r é m , tinha a m u l h e r de Job.
O B E I J O D E S A T A N

( P A R A P H R A S E )

Quando o remorso mais e mais latente

Judas, o falso a p ó s t o l o , sentia,

E da arvore fatidica pendente

Seu corpo, b a m b o n o ar, se contorcia:

O Demônio o fitava bem em frente,

T o c a d o de t ã o m í s e r a agonia,

T é que lhe v i u n a bocca h o r r e n d a m e n t e

A derradeira c o n t r a c ç ã o s o m b r i a . . .

Satan então sorriu, fitando o rosto

D e Judas, m o r t a l m e n t e descomposto

N u m esgar de m a l d i t o d e s a f o g o . . .

E em paga desse beijo que inda em vida

D e u e m Jesus o traidor suicida,

Beijou-lhe o rosto a sua bocca e m f o g o . . .

30 os
A U M C A O

Quando escrevi estes v e r s o s , en t i -


nha os olhos arrasados de lagrimas: é
que morreste, ó m e u amigo, pobre c ã o !
que no recanto de meu lar eras co-
nhecido pelo imponente appellido de
"Monarcha", apesar de seres bondoso,
fiel, humilde e obediente...

Quando um monarcha — um príncipe da terra—

M o r r e , t r o a m c a n h õ e s , os sinos c l a m a m ,

C u r v a m - s e as hastes dos p e n d õ e s de guerra,

E l a g r i m a s pomposas se d e r r a m a m .

Nos penetraes do Arcano Formidando

O m o r t o paramenta-se de gala;

C o m o que a D o r t r i u m p h a , clarinando,

E, i m p e r a t i v a , os» â n i m o s abala.

Erige-se na sua sepultura

U m m a u s o l é o de bronze e de granito,

Q u e p o r séculos e séculos perdura,

E n t e s t a n d o n o p á r a m o infinito.

m 31
W e n c e s l á u d e Q u e i r o z

Seu epitaphio é u m trecho de e p o p é a ,

— R e s u m o do seu largo poderio,

Q u e no estuário do t ú m u l o collêa,

A t é perder-se, c o m o u m largo r i o . . .

Assim é que do Tempo a lima surda,

S e c u n d a n d o a Justiça, e n t ã o carcome

O m a u s o l é o , que pelo c h ã o chafurda,

Desfeito e m poeira, c o m o regio n o m e .

E a Egreja reza um cantochão funereo

P a r a lhe dar no C é o , c o m s e g u r a n ç a ,

U m logar que equivalha ao seu I m p é r i o :

U m b o m logar na B e m a v e n t u r a n ç a !

I I

Pobre c ã o ! m e u Monarcha! que contraste!

Leva-te ao N a d a o c a r r o ç ã o do lixo,

E custa m e s m o achar j á q u e m te arraste,

P o r q u e n ã o passas de u m n o j e n t o bicho.

32 ==
R e z a s d o D i a b o

U m a c h u s m a de vespas e moscardos

A c o m p a n h a - t e o carro f u n e r á r i o ,

Que, p u x a d o p o r dois m u a r e s tardos,

Solavancando vae n o i t i n e r á r i o . . .

Do azul suspenso como um candelabro

D e ouro, l a m p e j a o claro sol, n o emtanto,

E accende irisações n o v o l u t a b r o

O n d e vaes atirado para u m c a n t o . . .

Bella compensação da Natureza!

N ã o tens da E g r e j a as luzes n e m os dobres,

M a i s doira o sol a vasta redondeza

D o c é o , e c a n t a m aves nos a l f o b r e s . . .

Reza o vento nas ramas do arvoredo

U m a oYação de anceios e de m a g o a s ;

C o m o lugentes harpas, e m segredo,

C h o r a m da f o n t e as crystallinas á g u a s . . .

Cad. 8
W e n c e s l á u d e Q u e i r o z

E dizei-me, P h i l o s o p h o s do m u n d o ,

Si se distingue u m potentado m o r t o

Deste m e u c ã o sobre o m o n t u r o i m m u n d o

Q u a n d o a m b o s s e g u e m para o m e s m o p o r t o . . .

Tudo é lodo e vaidade! A egualitaria

Sciencia p r o c l a m a esta certeza d ' a ç o :

— Q u e cada ser, n a escala eterna e varia

Dos- seres, se t r a n s f o r m a pelo e s p a ç o . . .

Por isso, ó meu amigo! ó meu Monarcha!

C o m o q u a l q u e r m i s e r r i m o vivente,

D e i x a s saudade nesta v i d a parca,

Desde q u e foste b o m , leal, c l e m e n t e . . .

E quero crer que, si algum prêmio existe

P a r a os bons nesse A l é m que n ã o diviso,

P o b r e c ã o ! c o m o u m santo j á subiste,

A h ! j á subiste, s i m , ao P a r a í s o . . .

34 m
R E D E M P Ç A O D E J U D A S

A Joaquim Teixeira de Freitas.

Diz a Escriptura que vendeu a Christo

Judas p o r u m a bolsa de d i n h e i r o . . .

M e n t i r a ! n ã o f o i este o verdadeiro

M o t i v o p o r q u e o m í s e r o fez i s t o . . .

Acompanhava o santo carpinteiro

U m t y p o de j u d i a nunca v i s t o :

A f o r m o s a M a g d a l a ! — o seu b e m q u i s t o

S o n h o ! o ideal d o seu a m o r p r i m e i r o !

Mas a linda judia o despresava,

P o r q u e a Jesus queria d o u d a m e n t e

E a a l m a trazia desse a m o r e s c r a v a . . .

Quando, uma noite, Judas viu, tremente,

V i u q u e Jesus essa m u l h e r beijava

A o f u l g ô r de u m luar resplandescente...

m 35
W e n c e s l á u d e Q u e i r o z

I I

Judas, em pranto, ouviu, desde essa noite,

N a a l m a invadida de u m clarão do inferno,

O r u m o r desses beijos, doce e terno,

C o m o sibilos de cortante a ç o i t e . . .

A serpente de um odio surdo e interno,

C u j o s dentes n i n g u é m a ver se affoite,

A c h a u m lugar e n t ã o o n d e se açoite

N o c o r a ç ã o do j u s t i ç a d o eterno.

Jurou vingar-se... Até que veiu o dia

E m que o m e i g o rabbi a a l m a serena

E x h a l o u n u m a alpestre p e n e d i a . . .

Mas teve inda mais odio ao ver tal scena,

P o r q u e escutou ao p é da C r u z s o m b r i a

O choro de M a r i a M a g d a l e n a . . .

36 m
R e z a s d o D i a b o

I I I

Existe por ventura dor mais forte

( D i z e i - m e agora, pallidos levitas

D o A m o r ! ) que as ancias trágicas, malditas,

D e Judas q u a n d o p r o c u r o u a m o r t e ?

Quando, ao ouvir imprecaçoes afflictas,

C o m o u m r é o sentenciado, o r p h a m da Sorte,

V i u M a g d a l e n a — a estrella do seu n o r t e ! —

D o C a l v á r i o nas sombras infinitas?

Dizei-me, emfim, si o eterno condemnado

N ã o merece o p e r d ã o da N a t u r e z a

Sob esse m a n t o azul do sonho a m a d o ?

M a r t y r do A m o r ! t u gemes s e m defesa

N o c á r c e r e do opprobrio emparedado,

Preso aos grilhões de u m a m o r t a l t r i s t e z a . . .

a 37
e n c e s l á u d e Q u e i r o z

I V

Judas! eu vejo em ti o soffrimento

D a injustiça do c é o c o m o da terra,

O n d e se p e r p e t ú a a h u m a n a guerra

Sob o esplendor azul do f i r m a m e n t o .

Que dor mais alta que a mais alta serra

E ' a tua! pois teu b á r b a r o t o r m e n t o

O u ç o na v o z do mar, na v o z do vento,

N a v o z das cousas que este m u n d o encerra.

Grande foi teu amor como teu crime!

T a n t o que a m o r t e procuraste, afflicto,

A m o r t e que de t u d o nos e x i m e . . .

E és para todos um judeu proscripto:

M a s eu escuto o a m o r que te redime,

Q u e te r e d i m e o c o r a ç ã o m a l d i t o . . ,
P R O P H E C I A D E M I C H É A S

A Landulpho Monteiro.

Do grande e poderoso reino de Is-


rael restava somente a argulhosa capi-
tal de Samaria quando o propheta M i -
chéas de Morasthi, em f a c e da idolatria
sacrilega do seu povo, entoou o canto
fúnebre das dez tribus israelitas. Eis
a interpretação livre dessa elegia de
bronze que ainda soa, atravez das eda-
des, numa vibração intensa de desespe-
ro, como um carrilhão tocando a re-
bate numa cidade incendiada...

Escutae! escutae, povos da Terra! Eu vejo

Descer e c a m i n h a r o Senhor sobre o M u n d o :

F u l g e n o seu olhar colérico l a m p e j o !

Passa na sua v o z u m f r ê m i t o i r a c u n d o !

Derretem-se-lhe aos pés cadeias de montanhas,

C o m o a cêra ao calor da c h a m m a e m p a r o x y s m o ;

Somem-se vales c o m o rolos d'agua, e m sanhas,

M u g i n d o na garganta escura de u m a b y s m o . . .
W e n c e s l á u d e Q u e i i o z

Israel! Israel! arrepende-te e chora!

Q u e nada mais j á tens que a pobre Samaria,

— R e d u z i d o t o r r ã o do teu reino de outr'ora,

Q u e h o j e te vaticina a p r ó x i m a agonia.

Assim, dia virá que, em vez de uma cidade,

A c h a r á o viajor nesse m e s m o reducto

D e idolatria v ã , de t o r p e i n i q ü i d a d e ,

S ó pedras, pedras só, cheias de eterno luto. . .

E eu, propheta que sou do Senhor, clamo e choro,

E n c h o o ar c o m a v o z soturna do m e u grito,

— G r i t o de alarma, grito i m m e n s o , alto e sonoro,

M a s triste c o m o os guais de u m p á s s a r o m a l d i t o . ..

Carne vil! veste o sacco atroz da penitencia!

D e i x a vasar teu sangue e l a g r i m a s tressua!

M a s sê c o m o o D r a g ã o que, u i v a n d o , na inclemencia

D o Deserto, perlustra a árida terra n u a . . .

40 =
R e z a s d o D i a b o

Q u e os Philisteus, p o r é m , n ã o o u ç a m vosso pranto,

Ó p o v o de Israel! Chorae! de p ó cobri-vos!

M a s abafae, do lar no h u m i l i m o recanto,

V o s s o choro, assim c o m o u m bando de captivos . ..

Oh! bella Samaria! Oh! bella entre as mais bellas

Cidades de Israel! T e u f a d o hostil supporta!

Vaes d o r m i r , ao pallôr da lua e das estrellas,

N a tua solidão c o m o cidade m o r t a . . .

Oh! mãe israelita! o teu cabello, agora,

Corta, e chora de dor a u m golpe t ã o certeiro!

O l h a : teu filho vae m a r c h a r ( c o m o elle chora!)

A o captiveiro, ao captiveiro, ao c a p t i v e i r o . . .

ü= 41
V I S Ã O D E S. J O Ã O

(Segundo o Apocalypse).

Ao dr. Carlos de Campos.

Eis que apparece

N o A z u l , de l u z solar vestida,

A doce V i r g e m - M ã e que resplandece,

Plena de eterna v i d a . . .

Traz a cabeça

D e doze estrellas coroada,

E sob os p é s , c a l ç a n d o , e m baixo, a espessa

Noite, a l u a a r g e n t a d a . . .

Treme-lhe o seio

D o a m o r ao f r ê m i t o f e c u n d o :

E* que ella traz ao collo, e m doce enleio,

O Salvador d o M u n d o .

Súbito, erguendo

Sete c a b e ç a s c o m diademas,

O D r a g ã o apresenta o aspecto h o r r e n d o

D a s rebelliões supremas.
R e z a s d o D i a b o

Nesse m o m e n t o

Q u a n d o , sanhudo, a cauda agita,

M u i t o s astros do vasto f i r m a m e n t o

N o e s p a ç o p r e c i p i t a . . .

O Monstro espera,

N u m a insistente e m u d a a m e a ç a ,

R o u b a r o Filho áquella M ã e austera

— A M ã e , cheia de G r a ç a . . .

Quer devoral-o

P a r a f u g i r ao seu d o m í n i o ,

P a r a t o r n a r o M u n d o n u m vassalo

D o seu poder fulmineo.

Nisto, a Creança

D o P a d r e E t e r n o ao t h r o n o ascende,

E o archanjo S. M i g u e l no e s p a ç o a v a n ç a

E o D r a g ã o s u r p r e h e n d e . . .

m 43
W e n c e s l á u d e Q u e i r o z

T r a z a phalange

D e anjos de Deus, e m p u n h o a espada,

Q u e a l u z dos astros rutilos r e f r a n g e

N a noite a l v o r o ç a d a . . .

Trava-se a lucta

C o m o D r a g ã o e seus sequazes,

Q u e se exasperam p o r vencer n a b r u t a

Sanha de Satanazes.

L o g o a victoria

Clarins r e s ô a m p r o c l a m a n d o :

" G l o r i a ao Senhor pelas alturas! Gloria

A o Senhor f o r m i d a n d o ! "

E n t ã o , convulso,

J u r a n d o ao Q é o eterna guerra,

R ó l a o D r a g ã o n o azul, do C é o expulso,

E v e m cahir na T e r r a .

44 m
R e z a s d o D i a b o

M a s a Serpente

Persegue a V i r g e m - M ã e , de perto,

Carregue-a e m b o r a u m a á g u i a ali-potente

A o s antros do Deserto:

Persegue-a... e expelle

D a sua bocca f u m e g a n t e

A a g u a de u m rio que arrebata a imbelle

N u m vórtice e s p u m a n t e . . .

Em vão! Por isso,

Investe contra o m u n d o , irado,

E faz nelle brotar, cheia de viço,

A s e á r a do Peccado.

= 45
T E M P L O D E S A T A N

A u m padre missionário.

Quem lê hoje Missaes? A Natureza

Fazes b e m de banir da A r t e C h r i s t ã ,

P o r q u e sabes de ha m u i t o , c o m certeza,

Q u e a N a t u r e z a é o t e m p l o de Satan.

E' da montanha na áspera grandeza

Q u e canta o S o l a missa de A h r i m a n ,

D i f f u n d i n d o , n o valle e n a devesa,

L a r g a s b e n ç a m s de l u z f e c u n d a e s ã . . .

E amando a Natureza, eu amo a Terra,

Cybele eterna! que n o seio encerra

A vida de u m Messias r e d e m p t o r ,

Que o Céo escalará para o Futuro,

E l e v a n d o , e m l u g a r de u m T e m p l o escuro,

A T o r r e de B a b e l do G r a n d e A m o r !
C A N Ç Ã O D O L O U C O
(De PAETEFI SANDOR, poeta húngaro).

M e u p ã o , m e u v i n h o e a t é m i n h a agua

E n v e n e n a r a m . . . T r i s t e a c ç ã o !

E depois, c o m fingida magoa,

D e p o i s cercaram m e u caixão.

N ã o lhes m o s t r e i a cara m á . . .

A h ! A h ! A h ! A h !

A cada um, ao beijar-me o rosto,

D e odio m o r d i quasi o n a r i z ;

M a s f i z m e l h o r pondo-os a gosto:

Empestei-os eu por u m triz

C o m o cheiro da carne m á . . .

A h ! A h ! A h ! A h !

No adusto areai da África em fogo

C a v a r a m - m e o t ú m u l o , onde eu

J á repousava, q u a n d o l o g o

F e r o z h y e n a appareceu,

P o r é m , c o m o elles, n ã o t ã o m á !

A h ! A h ! A h ! A h !

= 47
W e n c e s l á u d e Q u e i r o z

Desenterrou-me, mas, c o m e n d o

M e u c o r a ç ã o cheio de fel,

Sentiu e n g u l h o t ã o h o r r e n d o

Q u e teve a m o r t e m a i s c r u e l . . .

E u a e n g a n e i . . . Q u e a c ç ã o t ã o m á !

A h ! A h ! A h ! A h !

Porque me rio como um louco,

Q u a n d o devia s ó prantear,

N u m eterno s o l u ç o rouco,

D o s h o m e n s a m a l d a d e alvar?

E ' que possuo a sina m á . . .

A h ! A h ! A h ! A h !

Deus não chorou por ter creado

O m u n d o ? P a r a que serviu?

T a m b é m de D e u s é n e g r o o f a d o :

Pois seu pranto, q u a n d o cahiu,

T o r n o u - o e m l o d o a terra m á . . .

A h ! A h ! A h ! A h !

48 =
R e z a s d o D i a b o

M i n h a m e n t e j á se c o n s o m e . . .

M a s aprendi t u d o isto c o m

Certo philosopho que a f o m e

M a t o u p o r ser austero e b o m . . .

E ' que a V i r t u d e é sempre m á !

A h ! A h ! A h ! A h !

Antes fosse elle um assassino,

Q u e a l c a n ç a r i a a gloria v ã ,

O u v i n d o e m cada bocca u m h y m n o

A o seu a m o r de a l m a c h r i s t ã !

( C o m o és blasphema, ó bocca m á ! )

A h ! A h ! A h ! A h !

Diz-se que um fructo já maduro

D e v e c a h i r . . . a p o d r e c e r . . .

O h ! T e r r a ! — eterno exilio escuro! —

M a d u r a e s t á s ! Deves m o r r e r !

A s s i m te a u g u r o a queda m á . . .

A h ! A h ! A h ! A h !

Mas si amanhã tu não findares,

E u te farei c o m o u m paiol,

E m c h a m m a arder, voar nos ares,

C o m u m facho, m a i o r que o sol,

O h ! T e r r a T r i s t e ! O h ! T e r r a m á !

A h ! A h ! A h ! A h !

Cad. 4
E S C A D A D E J A C O B

(A u m poeta satanista).

Jacob (refere a Biblia) vê, sonhando,

N u m a escada de luz, do c é o á terra,

D e anjos descer u m m y s t e r i o s o b a n d o . . .

E os vis cuidados que sua alma encerra

Jacob esquece, a pleiade f i t a n d o

Q u e nos vastos degraus de n u v e n s e r r a . . .

Sonhas também, poeta... Mas teu sonho

N ã o prende a terra ao claro c é o superno

P o r esse laço m y s t i c o e r i s o n h o

D o s anjos t r i u m p h a e s do coro e t e r n o . . .

Teu sonhar é hyperbolico e tristonho:

Pois, e m vez de subir, n u m eviterno

Pavor, desce, phantastico e m e d o n h o ,

Torcicollando, ao b o q u e i r ã o do inferno.
O S O N H O D E P A R A C E L S O

Ao dr. Eugênio Egas.

Fitando o luar que flue nos vitraes da janella,

Paracelso, o alchimista, o velho visionário,

N o seu laboratório, entre retortas, véla,

Enlevado, a sorrir, n u m sonho e x t r a o r d i n á r i o . . .

Vêem-se drogas lethaes, dentro de um velho armário,

E m ambulas de vidro. A r d e u m f o g ã o na cella,

O n d e f u n d e os metaes o sábio solitário.

D e u m gato escuro, a u m canto, o verde olhar estrélla.

Sonha o alchimista: — o seu olhar agora via

T r a n s m u n d a d o s e m ouro os vis metaes; e, agora,

E r a senhor da f o r ç a occulta da M a g i a ;

E, como possuidor de tamanha riqueza,

O u v i a m i l clarins, p o r céos e terra e m fóra,

P r o c l a m a n d o o poder de sua alta realeza.


A C A B E Ç A D E S. J O Ã O B A P T I S T A

N o seu leito incestuoso repousava

H é r o d i a d e , a lubrica judia,

Q u a n d o entre sonhos v i u , t o r v a e sombria,

A c a b e ç a do Santo que ella amava.

Ao contempla-a, sua carne escrava

N a labareda da l u x u r i a ardia. ..

M a s a f r o n t e do Santo estava fria,

A l í n g u a m u d a , a face triste e c a v a . . .

Lembrou-se então do dia em que o propheta

Repelliu seu a m o r c o m o u m asceta

Q u a n d o do c á r c e r lhe transpoz a p o r t a . . .

Lembrou-se ainda da homicida sanha...

Nisto, a chorar de c o m m o ç ã o extranha,

Beijou-lhe a gélida c a b e ç a m o r t a . . .

52 m
A S M Ú M I A S E G Y P C I A S

( D a s Piedras Preciosas — de SALVADOR

RUEDA) .

Não é dado a ninguém tornar a vida

Inerte e m u d a c o m o simples nada,

P o r q u e n ã o é m a t é r i a i n a n i m a d a

A escoria de u m a carne a p o d r e c i d a . . .

Disso que chamam alma •— desunida,

E c o m o p ó universal mesclada,

Ella sempre revive, t r a n s f o r m a d a

E m flor, o u ave, o u cousa i n d e f i n i d a . . .

Múmias! que lei contrária ao ser vivente

V o s quer fazer parar eternamente

N a e v o l u ç ã o dos seres, e das cousas?

Em vão! porque sereis na Vida, em breve,

N a eterna r o t a ç ã o que ella descreve,

Cardos o u lyrios, r ã s o u m a r i p o s a s . . .

m 53
A P R A G A D O M E N D I G O

Ao dr. Odilon Goulart.

— " P a r a encobrir, ó m i n h a m ã e , teu erro,

N a roda m e puzeste s e m piedade,

E a v i d a para m i m f o i u m desterro,

D e m i n h a i n f â n c i a á m i n h a mocidade.

Arrastei a miserrima orphandade,

C o m o u m f o r ç a d o e m vis g r i l h õ e s de ferro,

E v i passar toda a florente edade,

N o d u r o esquife do m e u p r ó p r i o e n t e r r o . . .

Agora, como invalido mendigo,

S e m familia, sem p ã o e s e m abrigo,

E s p e r o a paz na m o r t e d e l e t é r i a . . .

Talvez habites a região celeste...

M a s de u m m i n u t o de prazer fizeste

O i t e n t a annos de dor e de m i s é r i a ! " —


V I S Õ E S D O P R O P H E T A

A A. Goulart.

(Versão livre de ALEXANDRE POU-

CHKINE, o m a i o r poeta l y r i c o da Rússia,

nascido e m 1799 e m o r t o em duello em


1837).

Pela sêde atormentado

D e luzes celestiaes,

E u m e arrastava, ajoelhado,

N u m deserto s ó povoado

D e ferozes, animaes,

Quando, armado de seis azas,

V i baixar u m Seraphim,

E n v o l t o e m fulgidas g a z a s . . .

( N o s painéis das Santas Casas

I g u a l eu n ã o v i assim!)

Tocou-me então com seus dedos

O s o l h o s . . . Q u e talisman!

T u d o avistei, sem segredos.,

Q u a l á g u i a que dos rochedos

O l h a , altaneira, a r e c h a n . . .
W e n c e s l á u d e Q u e i r o z

Das m i s é r i a s deste m u n d o

V i logo o n e g r o crisol,

C o m o de u m p â n t a n o i m m u n d o

O verde, o lodoso f u n d o ,

E x p o s t o ao q u e i m ô r do s o l . . .

Roçou-me também o ouvido

C o m sua sagrada m ã o :

O u v i logo, embevecido,

O r u m o r indefinido

Das estrellas na a m p l i d ã o . . .

(Que contraste! O humano vicio,

C o m o f a n f a r r a infernal,

L a n ç a v a ao C é o o convicio

Das p a i x õ e s do seu flagicio

N u m a infrene s a t u r n a l , . . )

Depois, beijando-me os lábios,

A l í n g u a e n t ã o m e a r r a n c o u :

L i n g u a cheia de resabios

Dessa m e n t i r a dos s á b i o s

Que de E r r o s a s a t u r o u . . ,

56 =
R e z a s d o D i a b o

E na m i n h a bocca ardente

Collocou, e m seu logar,

O a g u i l h ã o de u m a serpente,

— B i f i d o g u m e t r e m e n t e

E s f u s i a n d o sempre n o a r . . .

Senti nesse mesmo instante

U m a anciã douda, febril,

D e m e arrastar, soluçante,

J u n t o a u m a cruz negrejante,

N a s urzes de u m cerro h o s t i l . . .

Fendeu-me o peito, em seguida,

C o m sua espada de luz,

E p o r sangrante ferida

M e u c o r a ç ã o j á s e m vida

N a s suas m ã o s veiu a f l u x . . ,

E no meu peito vasio

U m c a r v ã o e m c h a m m a s poz,

Q u e m e f e z n o corpo frio

F e r v e r o sangue tardio

N u m curso quente e veloz.

m 57
W e n c e s l á u d e Q u e i r o z

Mas, á s súbitas, n o e s p a ç o ,

O S e r a p h i m se perdeu,

N ã o deixando n e m u m t r a ç o

D o seu rutilante passo

N a s profundezas do c é o . . .

Nisto escutei, em voz cava,

O que m e disse I a h v e h :

— " Levanta-te, argilla i g n a v a !

A n d a ! P r é g a á t u r b a escrava

A biblia de m i n h a F é .

"Percorre o M u n d o , c l a m a n d o

C o n t r a o E s p i r i t o R e v é l :

Q u e o teu V e r b o f o r m i d a n d o

A o s poucos i r á m i n a n d o

A diabólica Babel.

" C o m tua a l m a i l l u m i n a d a

D e luzes celestiaes,

L e v a , carcassa a n i m a d a !

M i n h a Palavra abrazada

A o c o r a ç ã o dos M o r t a e s . " —

58 m
A U M E S T O I C O

O h o m e m vive pouco sobre a terra,


mas a sua vida é cheia de misérias:
"Brevi vivens tempore, repletur multis
miseriis".
( D o Livro de Job).

N u m castello de cartas derruido

Cifram-se as tuas illusões fallazes,

E m que, s o m b r i o anatomista, fazes

A p r ó p r i a a n a t o m i a do g e m i d o .

Sarjam-te a alma os bisturis mordazes

D a i r o n i a . . . Q u e i m p o r t a ? O busto erguido,

Palpando ainda o c o r a ç ã o ferido,

A f f r o n t a s , c o m desprezo, os Satanazes.

Não que ambiciones as coroas parvas

Neste valle de lagrimas de lodo,

O n d e a V a i d a d e occulta ascosas l a r v a s . . .

— E' que a idéa do Nada te consome:

Pois o que aspiras neste m u n d o todo

E* u m a pequena l a p i d e . . . sem n o m e .

m 59
C É R E S D E G N I D O

(Das Piedras Preciosas — de SALVÀDOB

RUEDÁ).

A d i v i n h a - s e o par de p o m a s duras

Q u e u m filho a m a m e n t o u dando-lhe a vida,

A t r a v é s da r o u p a g e m m a l cingida

Q u e do corpo te envolve as f o r m a s p u r a s . . .

Do féto a gestação estremecida,

S ó te causa volupias e venturas,

A t é que te revês, nas angusturas

D o parto, e m o u t r o ser r e p r o d u z i d a . . .

Lembras-me a Virgem-Mãe do Christianismo,

E m c u j o olhar soluça o m y s t i c i s m o

D e u m a luz s e m p r e u n g i d a de p i e d a d e . . .

Mas eu te encaro com amor mais franco,

P o r q u e palpita n o teu ventre branco

A dor sagrada da maternidade.

60 m
M I S S A N O V A

Fazes-me rir, a n g é l i c o T a r t u f o ,

N o p ú l p i t o s o m b r i o das Egrejas,

Q u a n d o , a p r é g a r , n u m largo assomo buffo,

C o n t r a o a m o r , apopletico, esbravejas...

E' que, a despeito desse teu arrufo,

Beijarias, eu sei, e m taes pelejas,

C o m tanta u n c ç ã o , o bico de u m p a n t u f o ,

C o m o a patena de ouro, á missa, b e i j a s . . .

Cala-te, pois, padre funambulesco:

Q u e n ã o passa de u m caso picaresco

A castidade ideal d o teu s e r m ã o .

Eia! cá fóra, como um homem, gosa!

A m a ! cantando, e m plena l u z radiosa,

A missa n o v a da p r o c r e a ç ã o .
A R E S U R R E I Ç A O D E L Á Z A R O

Ao Padre Senna Freitas.

(PARAPHRASE)

L á z a r o ergueu-se á v o z d o N a z a r e n o . . .

— " P o r q u e , doce R a b b i , — assim dizia, —

M e chamas t u á vida a u m t e u aceno

Q u a n d o na m o r t e j á n ã o m a i s soffria?

Porque escutaste o lacrimoso threno

Dos* c o r a ç õ e s de M a r t h a e de M a r i a ,

Q u a n d o , bondoso Espirito sereno,

L i v r e da eterna dor, eu j á d o r m i a ?

Acaso commetti algum peccado

T ã o deshumano, que eu m e torne agora

D o s d e s g r a ç a d o s o m a i s d e s g r a ç a d o ?

Punes em mim os crimes do teu povo...

Pois nesta escura, i n e x o r á v e l hora,

T o r n o a viver para m o r r e r de n o v o . . . " —


t O R S O D E B E L V E D E R E

Ao dr. Baptista Pereira.

(Das Piedras Preciosas — de SALVADOR

RUEDA).

Em que batalha entraste, que, em pedaços,

H é r c u l e s i m m o r t a l ! voltas á vida?

Q u e m n o corpo te abriu tanta ferida

Q u e ao torso te arrancou pernas e b r a ç o s ?

Foi acaso em coléricos rechassos,

N o m a i s acceso da guerreira lida,

Q u e te rolou dos h o m b r o s , desprendida,

A c a b e ç a febril de rudes t r a ç o s ?

Vendo talvez do Mal a triumphante

B a b e l erguer-se, t u a m ã o possante

Q u i z derribal-a para h u m a n o e x e m p l o . . .

E esbarrondando a aboboda em teus hombros

Sepultado ficaste nos escombros

C o m o S a n s ã o n o l e g e n d á r i o t e m p l o .

B S 63
A U M A N O V I Ç A

Em nome do Amor e da Natureza!


maldita sejas, n o i v a de Christo, que o
mundo abandonaste p o r um convento...

Grite a luxuria no teu corpo em febre,

— C o r p o v i u v o do a m o r o s o beijo, —

M a s n o leito vasio e n t ã o se quebre,

Estertorando, a v o z do t e u desejo.

Tua carne queixosa emfim se alquebrç

D a velhice ao c o n g é l i d o bafejo,

E , c o m o nas ruinas de u m c a s é b r e ,

Leve-lhe o i n v e r n o o u l t i m o l a m p e j o . . .

Mas, nesse "dies irae" da Matéria,

A o p é da C r u z , e m pranto, q u e m i s é r i a !

N ã o aches nella o m í n i m o c o n f o r t o .

E a morte esperes, monja ciliciada,

S e m que o u ç a s n u n c a u m a palavra a m a d a

D o s lábios frios do teu C h r i s t o m o r t o . . .


C O N T R I C Ç A O D E V E R L A I N E

A t i , Santo sem altar, Glorioso


»
Martyr do Sonho Mystico, a ti, Bem-
aventurado do Inferno da Carne, a ti,

que escreveste o piedoso livro — Sa-


gesse, depois da magia negra dos Poè-
mQê Saturniens...

Na purificação da culpa que te encarde

T o d o o passado — culpa trágica e solemne! —

V ã m e n t e , a l m a c h r i s t ã ! v ã m e n t e e m c h a m m a s arde

T e u c o r a ç ã o v o t a d o ao c é o e m laus-perenne!

Sim! de tanto fervor para que tanto alarde,

Si, c o m o seu p e r d ã o e m b o r a D e u s te acene,

T u a carne se insurge e e x c l a m a : — " E * tarde! E ' t a r d e ! " —

N a v o l ú p i a infernal do seu desejo infrene?

Assim, por mais que suba a alma que te acompanha,

N u m a a s s u m p ç ã o de luz, ao alto da M o n t a n h a ,

O n d e j a m a i s b r o t o u do M a l o v i l tortulho,

Não te podes conter na hora mortal do Tédio,

Pois ouves, c o n c l a m a n d o , e m tenebroso assédio,

A v o z do Sangue, a v o z do A m o r , a v o z do O r g u l h o . . .

= 65

Cad. 6
D I O G E N E S

A Américo de Campos Sobrinho.

Verdadeira miséria é viver na terra.


Quanto mais espiritual quizer ser o
homem, tanto mais amarga lhe será a
vida: porque sente com maior intensi-
dade e vê mais claramente os defeitos

da corrupção humana.

(KEMPIS, l i v . I , cap. XXII).

Liberto da illusão de todos os amores,

O l h a n d o o m u n d o c o m o antro de f é r a s bravas,

D e n t r o de t u a cuba, ó Diogenes, rosnavas

A n t e esta f a r ç a v a n de risos, e de dores.

Quiz um dia, porém, Aspasia vêr si a amavas,

E f o i , ó sábio c ã o , coberta de esplendores,

T e n t a r - t e n o canil c o m jóias e c o m flores,

Pois lhe disseram que de t o d o a m o r z o m b a v a s . . .

— "Despe-te, cortezan, — disséste logo, é certo, —

" N e s s e t e u corpo assim de p é r o l a s coberto

" V e j o o p r a n t o da plebe envolta e m seus. f a r r a p o s . . . "

Com isso a bella Aspasia, ó sábio, confundiste...

M a s q u a l s e r á mais v i l , m a i s cynico, m a i s triste:

— O o r g u l h o do seu l u x o ? o o r g u l h o dos teus. trapos?

66 m
M A G I A S D A C A R N E
I R R E P A R Á V E L

Impressão de uma agua-forte —


"A Bebedora de absintho", — de FELI-
CIEN ROPS, um dos "malditos" inicia-

dos no espiritualismo da luxuria de


BAUDELAIRE: — o Satanismo.

Bocca sangüínea e quente — golpe vivo

D e u m a gélida l a m i n a acerada! —

C o m o u m a flor de v i n h o e fél, q u e i m a d a

N o f o g o estéril do seu beijo e s q u i v o . . .

Verdes olhos de pérfido attractivo,

Que, saturando c o m o o absintho, e m cada

Olhar, d e i x a m de tédio a a l m a gelada,

S e m u m consolo, s e m u m l e n i t i v o . . .

Mãos de Febre e de Sonho, transparentes,

Affeitas a cerrar os olhos crentes

D o s q u e d e s m a i a m n o seu f r i o s e i o . . .

Ventre infecundo mas voluptuoso

Q u e a L o u c u r a p r o p i n a c o m o G o s o . . .

— E i s a m u l h e r que eu a m o e que eu odeio!


D E P R O F U N D I S C L A M A V I

(Paraplirase de C H . BAUDELAIRE).

I I

Exoro-te piedade, imploro-te soccorro,

Deste a b y s m o onde jaz m e u frio c o r a ç ã o ,

O n d e v i v o a m o r r e r , onde a viver eu m o r r o ,

Cheia a bocca de fél, de horror, de m a l d i ç ã o . . .

E' uma região polar que em lagrimas percorro,

C o m os p é s sobre a neve, o olhar n a escuridão.

Q u e encobre o c é o azul c o m o c h u m b a d o f o r r o :

U m paiz s e m calor e s e m v e g e t a ç ã o .

Acontece, porém, que a luz de um sol de gelo

Trespassa a l g u m a v e z a e s c u r i d ã o polar,

C o m o si a trespassasse u m algido c u t e l l o . . .

E sinto em cada fibra um urso branco a uivar,

— T r o p e g o o passo, o olhar e m c h a m m a , hirsuto o pêllo, —

C o m f o m e d o t e u beijo, archanjo tutelar!

70 m
B E A T A B E A T R I X

I I I

Dizem que és casta, és santa, és pura...

E , na verdade, q u e m te veja

O r o s t o . . . os o l h o s . . . a figura

Q u e l e m b r a as santas de u m a E g r e j a ,

Por Deus! negar não pôde, jura

Q u e és pura, és santa, és casta, e beija,

C o m unctuosa jcompustu/ra,

T u a m ã o franca e b e m f a z e j a . . .

Mas que o Senhor me fira em cheio

O c o r a ç ã o , si, e m l o n g o anceio

D a m a i s b r u t a l p a i x ã o espúria,

Teu corpo em meus braços de ferro

N ã o p a l p i t o u o u v i n d o o b é r r o

D o b o d e ;£<?rr© da L u x u r i a !
M I S S A D E A M O R

I V

Sobre o teu branco ventre, cor de leite,

— A l l u c i n a n t e m á r m o r e de Paros, —

Canto, ó m e u sonho, a missa d o deleite,

E u , o m i n i s t r o de teus sonhos raros*.

Lubrificam-te os olhos, como o azeite

D a l â m p a d a de u m t e m p l o , os estos claros

D a v o l ú p i a . . . A i , assim, amo-te, amei-te,

A l t a r u n g i d o de m e u s beijos caros.

Vamos! Que as hóstias brancas do teu seio,

T r e m u l a s , saltem da camisa, l o u c a . . .

Q u e o calix seja a tua bocca l a n g u e . . .

De joelhos, présto! A missa vae em meio. ..

— P o d e o beijo cantar na t u a bocca!

— P o d e r o m p e r a orchestra d o t e u sangue!

72 m
D O N N A F R A N C E S C A

(GABRIEL « T A N N U N Z I O ) .

Quando, uma noite, com a mão nervosa

D o teu quarto afastei o reposteiro,

E s t a v a s no teu leito feiticeiro,

B r a ç o s e m cruz, n u m a o r a ç ã o piedosa.

Tinhas em frente a imagem dolorosa

D e C h r i s t o que m o r r i a n u m m a d e i r o ;

M a s , ai de m i m ! e m b r i a g o u - m e o cheiro

D a t u a carne de verbena e r o s a . . .

E approximei-me como um sacerdote,

U n g i n d o - t e de beijos, no decote,

D o s seios rijos o pequeno p a r . . .

Mas quando tu despiste a alva camisa

E m a l v i t u a pelle branca e lisa,

C a h i de joelhos c o m o ao p é do a l t a r . . .
V U L N U S A M O R I S

V I

Ninguém sonde jámais a viva chaga

Q u e n o m e u sangue se a l i m e n t a agora,

— B o c c a v o r a z de amor, lasciva e m a g a ,

Q u e a a l m a d e m e n t a e o c o r a ç ã o devora.

Mas essa bocca, que tortura e afaga,

Q u e m o r d e e beija, que m a l d i z e implora,

D i r á s o m e n t e a dor que m e e m b r i a g a

N a hora da m i n h a m o r t e , s ó nessa h o r a . . .

Porque esse amor, voluptuoso e occulto,

Q u e tanto eleva, tanto abate, elando

D u a s almas, dois corpos, n u m s ó culto,

Me faz gosar os mais febris assombros,

Pois eu vivo, entre o i n f e r n o e o c é o voando,

C o m as azas de L u c i f e r nos h o m b r o s !
C R E D O

V I I

— "Não crer em Deus! que horror e que peccado!"

Ella assim falia e f i t a - m e c o m pena

D e v e r - m e ao f o g o da infernal G e h e n n a

Irremissivelmente c o n d e m n a d o .

E, compassiva, a sua mão pequena

Estende-me n u m gesto a b e n ç o a d o . . .

M a s eu que aos p é s lhe caio, ajoelhado,

Confesso-lhe a p a i x ã o que m e c o n d e m n a :

— "Não creio em Deus; mas creio no teu beijo

Q u e o sangue m e a l v o r o t a nas artérias

N a rebellião do m a i s carnal desejo:

"Creio no ardor de teus abraços, louca!

Si tenho, neste valle de misérias,

A m i n h a bocca sobre a t u a b o c c a . . . " —


P S A L M O S E E X O R C I S M O S
A C O M E D I A D O A M Ô R

A A. Salies Júnior.

ENCORE UN INSURGÉ!

(Le Mal de Misere — de H .


NAPIAS).

Attrahidos e presos num abraço

Beijam-se os dous na syncope a m o r o s a . . .

Q u e l o n g o beijo! Q u e apertado laço

D e a m o r ! Q u a n t o esse par anceia e gosa!

— "Que venturoso par! Que venturosa

Scena de a m o r ! " — d i r e i s . . . M a s eu que passo

D a V i d a a p e r q u i r i r a a l m a anciosa,

C o m o das Cousas o segredo escasso,

Eu vos direi: — "Que desgraçados! Antes

M o r r e s s e m , tendo os c o r a ç õ e s a m a n t e s

Atravessados de punhaes buidos»,

Do que houvessem gerado mais um ente,

U m revoltado, u m p á r i a impenitente,

N a q u e l l e beijo cheio de g e m i d o s . . . "


F R E I S A T A N A Z

(Lenda da Edade Média).

Na bibliotheca de um convento (um frade

D a E d a d e M é d i a narra e m m a n u s c r i p t o )

A c h o u - s e u m livro pelo D i a b o escripto

Q u a n d o fez parte da c o m m u n i d a d e . . .

Era a novella de um amor maldito

Q u e teve Satanaz na M é d i a E d a d e

P o r u m a Santa, que, na mocidade,

V o t o u a D e u s seu c o r a ç ã o contricto.

Esse livro foi posto num brazeiro

D e a n t e dos m o n g e s do e x e m p l a r m o s t e i r o

E reduzido a cinzas n u m m o m e n t o . . .

E para que do livro não ficasse

N e m u m argueiro, da i r m a n d a d e e m face,

A s p r ó p r i a s cinzas dispersou o v e n t o . . .
R e z a s d o D i a b o

I I

Mas pelo manuscripto do indiscreto

C h r o n i s t a - i r m ã o soube-se logo, u m dia,

Q u e existiu n u m a cella estreita e fria

O h e r ó e da historia desse extranho affecto.

E ninguém houve nessa confraria

Q u e n ã o tivesse c o m p a i x ã o do quieto

E triste frade (livido esqueleto!)

Q u e s ó e m preces e e m jejuns v i v i a . . .

Conta-se até as folhas do Breviario

E m que rezava o D i a b o solitário,

T i n h a m signaes de l a g r i m a s . . . C o i t a d o !

E que numa manhan de frio inverno

F o i encontrado o T e n t a d o r eterno,

N o seu g e n u f l e x o r i o — desmaiado <..

Cad. 6
W e n c e s l á u d e Q u e i r o z

I I I

Numa noite de horrível catadura,

— N o i t e s e m astros, noite de procella, —

C o m e ç a r a m os sinos da capella

A d o b r a r . . . a d o b r a r . . . na torre escura.

Alguém agonizava numa cella:

— E r a o frade tristonho e s e m ventura

Q u e e m sua m ã o gelada e m a l segura

Premia, e m ancias, u m a cruz s i n g e l a . . .

Por entre os uivos da nortada intensa

Ouviu-se e n t ã o , dentro da noite i m m e n s a ,

O Miserere n u m c l a m o r p r o f u n d o . . .

E a confraria o misero fitava,

E n t r e os fuzis da tempestade b r a v a

Q u e parecia destruir o m u n d o . . .

82 m
R e z a s d o D i a b o

I V

Foi posto na capella erma, deserta,

F r e i Satanaz, t ã o triste c o m o outr'ora,

A l u m i a d o somente, noite e m fora,

D o alampadario pela luz i n c e r t a . . .

E no outro dia, mal rompia a aurora,

D o b r a v a o c a r r i l h ã o : A l e r t a ! A l e r t a !

E a confraria, ainda m a l desperta,

E n t r a v a na capella s e m demora.

Mas qual não foi de cada monge o espanto

Q u a n d o se v i u sob o m o r t u a r i o m a n t o

Seu esquife vasio e d e s c o n j u n c t o . . .

Refere a lenda que da egreja as portas

Se a b r i r a m de repente á s horas m o r t a s

E os anjos c o n d u z i r a m o defuncto.

== 83
P E R G U N T A S A O S O L

A Nuto SanfAnna.

( P A R A P H R A S E )

Interroguei um dia ao sol nascente:

— " P o r q u e , na festa f u l g u r a l da aurora,

Q u a n d o surges do m a r , o c é o do O r i e n t e

D e vivas cores t r i u m p h a e s se e n f l o r a ? "

Deu-me em resposta o sol: — "E' que eu, amigo,

N e s t a v i a g e m pelo c é o p r o f u n d o ,

L e v o a e s p e r a n ç a — o grande sonho a n t i g o ! —

D e ser feliz, i l l u m i n a n d o o m u n d o " . —

II

Ao sol poente perguntei um dia:

— " P o r q u e , q u a n d o n o m a r desappareces,

D o horizonte na linha f u g i d i a

O c é o occidental e m p u r p u r e c e s ? "

O sol me respondeu: — E' que, no mundo,

V e j o m i s é r i a s taes que m e e n v e r g o n h o ,

E , cheio de rubor, de asco p r o f u n d o ,

N o occaso escondo o m e u eterno s o n h o . . . "


O E S P E C T A C U L O D A V I D A

(Das Piedras Preciosas — de SALVADOR

RUEDA).

Ai de v ó s , escribas e phariseus hy-


p o c r i t a s , q u e s o i s c o m o os t ú m u l o s : por
f o r a sois f o r m o s o s , n a v e r d a d e , m a s por
dentro estaes cheios de ossos de mor-
tos e de todas as immundices.

(Palavras de JESUS CHRISTO).

Ante meus olhos, com secreto espanto,

V i desfilarem, nesta h u m a n a vida,

Seres e seres de honradez fingida,

D a hypocrisia sob o falso m a n t o .

Quantos sorrisos contraíeitos! Quanto

R e m o r s o na consciência c o r r o m p i d a !

Q u a n t a dobrez n u m a cerviz erguida!

Q u a n t a m e n t i r a n o a m o r o s o encanto!

E dos homens que tenho conhecido

U m entre m i l achei que d i g n o ha sido

D e ornar a f r o n t e c o m virentes palmas.

Descreu por isso minha sã consciência

A o attentar, no palco da existência,

E m tantos h o m e n s e t ã o poucas almas.

m 85
N I H I L

(S. R U E D A ) .

Si as cinzas do mais f o r t e Soberano

C a b e m na m ã o c o m o u m p u n h a d o leve,

E o T e m p o edaz a escarnecer se atreve

D a Gloria astral do p r ó p r i o G ê n i o H u m a n o ;

Si a áurea grandeza do poder romano

Desapparece c o m o sonho breve,

E o H o m e m , por mais que no saber se eleve,

E ' de si m e s m o o mais cruel t y r a n n o ;

Sciencia! — não gastes mais tua energia

E m p r o l o n g a r do c o r a ç ã o desperto

A dolorosa e barbara agonia.

P'ra que alongar nosso destino incerto,

Si das p r ó p r i a s p y r a m i d e s u m dia

A poeira r o l a r á pelo deserto?!


A D E U S

(Soneto de E. HÀRAUCOURT).

Si é verdade que t u , ó Deus, Juiz S u p r e m o ,

Existes, m a s a q u e m b l a s p h e m e i ; si é verdade

Q u e devo u m dia, i n e r m e e n ú , na Eternidade,

Esperar a teus p é s o m e u castigo e x t r e m o :

Tu, ó Deus, perdoarás o meu grito blasphêmo,

T u , ó Deus, p e r d o a r á s a m i n h a iniqüidade,

Pois sabes que, na D o r , a D u v i d a m e invade

E n ã o m e escuta o C é o q u a n d o por terra eu g e m o . . ,

Sabes — e tu somente! — o fundo desta chaga

Q u e toda a m i n h a vida e m p r a n t o e sangue alaga;

Sabes t u s ó , s ó t u , m e u desespero eterno.. .

Ninguém sondou meu mal — mal secreto e profundo!

P o r q u e f i z sempre r i r m e u p r a n t o neste m u n d o

E sempre enchi de luz e de anjos m e u I n f e r n o !


A C T O D E C O N T R I C Ç A O

(escripto depois da leitura de uma


poesia de Santa Thereza d e Jesus, quan-
do esta carmelitana se refere a Satan).

Já que meu coração, no desencanto

D a s illusões do O r g u l h o e da Vaidade,

E n c r u o u na feroz iniqüidade,

C o m o na rede de i n f e r n a l amianto,

Dae-me, Senhor! um pouco de piedade,

P a r a que eu possa, c o m esse oleo santo,

U n g i r m e u seio onde seccou o pranto,

C o m o a estéril G o m o r r h a da I m p i e d a d e .

Uma lagrima só que me tombasse,

C o m o divino balsamo, na face,

Desfaria, Senhor! m i n h a c e g u e i r a . . .

E essa gotta de lagrima salgada

Lavaria, n u m sonho de alvorada,

A s m a l d i ç õ e s de m i n h a v i d a inteira.
D I A L O G O

— " C o m o podes viver s e m c r e n ç a a l g u m a

C o m esse r i r feito de fel, z o m b a n d o

D e toda a c r e n ç a que o ideal r e s u m a

D o christão neste m u n d o m i s e r a n d o ? . . .

"A que bordão te arrimas, caminhando

A p ó s u m a m i r a g e m que se e s f u m a

E vae f u g i n d o ao teu olhar nefando

A t é se desfazer e m fria b r u m a ?

"Não acreditas que na Immensidade

E x i s t a u m D e u s de a m o r e de bondade

Q u e os B o n s premeia e os M á u s do c é o afasta?

— "Abençôa-me, padre! a alma descrida.

Pois tenho u m a s ó c r e n ç a nesta v i d a :

Creio n o a m o r de m i n h a m ã e , e basta." —
Salute, ó Satana,
O rebellione!

(G. CABDUCCI).

Cloire et louange à toi 9 Satan...

(C. BAUDELAIRE).

— "Gloria a ti, ó Satan, no eterno paroxismo

D o E r e b o eterno! G l o r i a a t ^ A r c h a n j o exul,

Q u e sonhas c o m o u m Deus, nas t é n e b r a s do A b y s m o ,

N o s t á l g i c o do A z u l ! . . .

"Gloria a ti, ó Revel, que o monge em mysticismo

T e n t a s no claustro, e, a léste, ao oeste, ao norte, ao sul,

Reinas no M u n d o , a rir das rezas do exorcismo,

Sarcasta A r c h a n j o e x u l !

"Gloria a ti, ó soberbo Arauto do extermínio,

Q u e insurges contra a C a r n e o exercito f u l m i n e o

D o s Sonhos sensuaes!

"Gloria a ti, ó Demônio ultriz, de azas sulphureas,

Q u e queimas n o brazeiro i n i q u o das L u x u r i a s

O s corpos v i r g i n a e s ! "
S I N O S D O N A T A L

A José Vicente Sobrinho.

Meia noite. R e p i c a m os 6 Í n o s . Que


dizem elles? "Nasceu Jesus! Nasceu
Jesus!" E um luar de prata banha o
céo, banha a terra, emquanto escuto a
voz dos sinos do Natal.

Não sei que occulta mão nos leva, sei apenas

Q u e v a m o s c a m i n h a n d o , á s tontas, c a m i n h a n d o ,

Sob a carga m o r t a l de mysteriosas penas,

A n t e a f o r ç a m i n a z d o h o r ó s c o p o n e f a n d o . . .

Mas o oásis do Amor, em miragens serenas,

N o s sorri, nos a t t r a e . . . E passa o nosso b a n d o

E m b a l a d o na v o z de extranhas cantilenas...

E vae c a n t a n d o . . . e vae s o n h a n d o . . . e vae passando...

Bemdito seja o Amor que enfeita de sorrisos

A terra, e faz sonhar, creando p a r a í s o s

N o c é o ! B e m d i t o seja e n o c é o e n a terra!

E' o Amor que nos dá os Christos pequeninos...

B i m b a l h a e , b i m b a l h a e n o A z u l , sonoros sinos!

D o s çonvalles e m flor á s cuspides da s e r r a . . .


O D E M Ô N I O A Z U L

(De A D A NECRI — T e m p e s t e ) .

D a noite apenas a luctuosa t r a m a

E n v o l v a t u d o — o céo, a terra, o mar, —

U m d e m ô n i o v e r á s , olhos e m c h a m m a ,

A f r o n t e m e beijar.

E eu, tremula e branca, abandonando

O leito e m que a t e u lado estou, o passo

D a q u e l l e bello v u l t o f o r m i d a n d o

Seguirei pelo e s p a ç o .

E elle ha de segredar aos meus ouvidos

O m y s t e r i o fatal da C r e a ç ã o ,

Q u e m e d e s p e r t a r á , entre gemidos,

A D o r n o c o r a ç ã o .

Ahi meus cantos de infernal magia

C o m o echos v i b r a r ã o de m i l clamores-:

— M e u s cantos que s o l u ç a m n a agonia

D e i n c o m p o r t a v e i s dores;

Que aos Miseráveis, na batalha insana,

O s c é o s a p o n t a m — os l o n g í n q u o s c é o s ! —

O n d e t e r á a grande C h a g a H u m a n a

O balsamo de D e u s ;
R e z a s d o D i a b o

Q u e s ã o feitos de P r a n t o s e Peccados,

Q u e O d i o tressuam, que P a i x õ e s t a m a n h a s

A t e i a m , desde os astros inviolados

D a terra a t é á s entranhas. —

Nessa hora de volúpia e de loucura

N ã o m e perturbes c o m teu z ê l o ; pois

A o s b r a ç o s teus, c o m o parti, t ã o p u r a

E u voltarei depois.

Submissa, feiticeira, enamorada,

E u voltarei para i m p l o r a r t e u beijo

— T h r e n o de luz, doce c a n ç ã o alada, —

Q u e m e aplaca o desejo.

E hei de pousar a minha fronte mansa,

R i n d o e sonhando, sobre o seio teu,

C o m o c â n d i d a fronte de c r i a n ç a

Que, a rir, a d o r m e c e u . . .

ü= 93
T E S T E M U N H O D E C H R I S T O

— " E u te a m o . . . eu te a m o . . . " disse-me, beijando

A bocca, os olhos, os c a b e l l o s . . . N i s t o ,

P o r t e s t e m u n h a desse a m o r , j u r a n d o ,

T o m o u a effigie do m e u bronzeo Christo.

Foi-me, emtanto, infiel... Por isso, quando

E s s a i m a g e m c o n t e m p l o , eu m e contristo,

E v e j o duas l a g r i m a s r o l a n d o

D o s olhos cavos do m e u bronzeo C h r i s t o . . .


A C A V E I R A H U M A N A

P o r traz da carne existe u m a fria caveira,

Q u e r i de n ó s , que r i do nosso ardente esforço,

Desde o e m b r y ã o vital e m seu p r i m e i r o escorço,

Desde a c ó v a do ventre á cova derradeira.

Seja o athleta a lutar, de músculo retorso,

N a arena, seja o poeta e m sonho a vida inteira,

Ella zomba, p o r traz da mascara de poeira,

Desse eterno labor que lhes c o r c ó v a o d o r s o . . .

Desejo insatisfeito! eis o acicate em braza

Q u e e s p o r ê a o a n i m a l h u m a n o toda a vida,

A t é que o leva ao N a d a e m que a D o r extravasa.

Não importa! a caveira ainda ri mais forte,

Pois que ella passa, e n t ã o , a mascara descida,

D a comedia da vida á c o m e d i a da m o r t e .
A U T Ó P S I A

(ADA NEGRI).

I m p a s s í v e l doutor, que e m p u n h a s o caléllo,

Incapaz de qualquer sentimento m a i s b r a n d o ,

V a e s o m e u corpo n ú , s e m o m e n o r desvélo,

T a l h a n d o e r e t a l h a n d o . . .

Ah! ignoras quem fui... Não vês que desafio

O golpe c r u de t u a l a m i n a glacial?

Pois j á vaes conhecer do m e u d r a m a s o m b r i o

O que f u i , afinal.

Donde vim? Do peccado: engeitaram-me, creio;

N u n c a soube o que fosse u m c a r i n h o m a t e r n o ;

N ã o tive lar, soffri o ríspido b l o q u e i o

D a s nevascas do i n v e r n o .

Curti noites de febre e insomnia, a arfar, deante

D a s minazes visões do dia de a m a n h a n :

— H o r a s de inútil prece, horas de f o m e uivante,

H o r a s de rude a f f a n . . .
R e z a s d o D i a b o

A s s i m f u i percorrendo, ao peso das fadigas,

U m por u m , da M i s é r i a escusos corredores,

Por entre c r i s p a ç õ e s de faces inimigas

E mascaras de d o r e s . . .

Até que, um dia, entrei, exangue e combalida,

N o lobrego hospital, j á prestes a m o r r e r :

F o i e n t ã o que paguei, c o m uns. restos de vida,,

O c r i m e de viver.

Sem ouvir, junto a mim, uma oração magoada,

Q u e m e fizesse crer na paz do c é o venturo,

D e i x a r a m - m e extinguir, n u m cátre, abandonada,

C o m o u m c ã o n o m o n t u r o . . .

A Natureza, emtanto, irônica e indiscreta,

D a belleza m e deu o i m m o r t a l esplendor;

Mas, para que? P a r a atiral-a á vasa infecta,

S e m u m beijo de amor.

= 97

Cad. 7
W e n c e s l á u d e Q u e i r o z

A n t e s disso, b o f é ! que o bisturi lascivo

M e recorte a epiderme, o corpo m e e s v i s c é r e !

Q u e i m p o r t a ! E m m i m se encarna o sonho r e d i v i v o

D e u m a lubrica h e t é r e . ..

Mas, agora, reparo, estoico anatomista,

Que, suspenso o cutéilo, hesitas e m sarjar

A neve do m e u collo, estremecendo, á vista

Dessa flor de l u a r . . .

Vamos! golpeia présto! esquadrinha e procura

O logar e m que está m e u c o r a ç ã o . .. C o r a g e m !

A D o r nelle m o r o u qual n u m a f u r n a escura

U m a n i m a l selvagem.

Ah! não basta... Depois, no meu ventre excavado,

S o n d a o m y s t e r i o atroz da f o m e ; pois, talvez,

Resolvas a q u e s t ã o desse m a l n u m " T r a t a d o " ,

P a r a o rico burguez.

98 m
R e z a s d o D i a b o

M a s observa, afinal, c o m teu olhar p r o f u n d o ,

Q u e o m e u olhar de gêlo, i m p á v i d o , te accusa,

C o m o algoz de m e u corpo — o u l t i m o algoz! — no m u n d o ,

E m que f u i u m a i n t r u s a . . .

Eis a scena final... Vamos! arreia o panno

Sobre o m e u corpo n ú , s e m gesto e sem a c ç ã o . . .

Q u e i m p o r t a ! V i b r a e m m i m todo u m c l a m o r h u m a n o

D e d o r e m a l d i ç ã o !

e 99
O C É O . . .

( C H . BAUDELAIRE).

Por onde quer que vá, sobre o mar, sobre a terra,

M o r a d o r da cidade o u do c a m p o distante,

N o concavo de u m valle o u n o alto de u m a serra,

Sob u m clima de gelo o u sob u m sol f l a m m a n t e ,

Mendigo tenebroso ou Créso rutilante,

Q u e r se conserve e m paz, quer se destrua e m guerra,

— O H o m e m cae a tremer, e m q u a l q u e r parte, deante

D o M y s t e r i o que o C é o — t r á g i c o a b y s m o — encerra...

Sempre o Céo! sempre o Céo! — tecto que se illumina,

N o theatro d o m u n d o e m que o H o m e m representa

— M a s c a r a d o h i s t r i ã o ! — a c o m e d i a d i v i n a ;

Em que o Homem, — pobre actor, cheio de desenganos, —

D a s p a i x õ e s arrostando a terrível t o r m e n t a ,

Chora, b l a s p h e m a e r i — ha m a i s de dez m i l a n n o s . . .

100 m
A T O R R E D E B A B E L

(Dos Sonnets Amers 9 de

JEAN RICHEPIN).

Mais alto! ainda mais alto! estes altos pilares

E r g a m o s ! T o r r e s sobre torres! N o s espaços,

T e r r a ç o s collossaes sobre vastos t e r r a ç o s

Percam de vista, e m c i m a e ao longe, a terra e os mares!

Toquemos com a mão os constellados paços.!

Mais arcarias! mais paredes aos m i l h a r e s !

Subamos sempre! a t é q u e lá n o azul dos ares

D e i x e m o s o signal f i r m e dos nossos passos...

Mas em vão nosso orgulho, armado de paciência,

A torre de B a b e l e m construir persiste,

Creando a Religião, a A r t e , a Industria, a Sciencia...

Em vão! porque essa torre, instável como a bruma,

N ã o passa de illusão que s ó na m e n t e existe,

E o c é o nos f o g e . . . o c é o se a f a s t a . . . o c é o se e s f u m a . . .

üü 101
A C A V E I R A D E Y O R I C K

Eis o que a caveira de Yorick diz


a Hamlet, depois que este, n u m gesto

d e d e s d é m , a j o g a a o c h ã o » e se o c c u l t a
entre as arvores do cemitério, ao pas-
sar o enterro de Ophelia...

— "Hamlet! Hamlet! como te illudes, si procuras

N e s t a cidade m o r t a os m o r t o s illudir!

N ã o v ê s ? C a d a caveira, a rir, a rir, a rir,

Escarnece de t i , n o c h ã o das sepulturas!

Pranteando o passado e sonhando o porvir,

S a n g r a teu c o r a ç ã o e m pavidas agruras,

E , livido, beirando estas covas escuras,

O s m y s t e r i o s d o A l é m receias descobrir.

Tua dor theatral nem mesmo a comprehendes,

P r í n c i p e d o u d o ! que vieste p e r t u r b a r

E s t a m a n s ã o de f o g o s fatuos e d u e n d e s . . .

Na tua mente, como um pêndulo, a oscillar,

A d u v i d a te absorve a a l m a . . . Q u e p r e t e n d e s ? . . . ,

Q u e pretendes, e n t ã o , fazer neste l u g a r ? "

102
L E N D A D O J U D E U E R R A N T E

Ia o m e i g o R a b b i para o Calvário,

Q u a n d o v i u , á soleira de u m a porta

Sentado, u m h o m e m pobre, u m operário,

U m triste que a existência m a l s u p p o r t a . . .

Jesus lhe disse: "A cruz, meus hombros corta;

T r e s vezes j á cahi neste f a d a d o ;

D e i x a - m e entrar e d e s c a n s a r . . . " — Q u H m p o r t a !

C a m i n h a ! " — respondeu o proletário.

Então, Jesus, o Bom, o Justiceiro,

P r a g u e j o u : — " A n d a r á s por toda a vida,

S e m descansar j á m a i s , no m u n d o i n t e i r o . . . "

Com effeito, segundo reza a lenda,

O proletário, errante, sem guarida,

Soffre a t é agora a p u n i ç ã o t r e m e n d a . . .

i = 103
W e n c e s l á u d e Q u e i r o z

I I

E caminha.. . e caminha, noite e dia,

A ' luz do sol, ao pallido luar,

C o r r e n d o a t r á s da m o r t e fugidia,

P o r q u a n t o a v i d a é o seu m a i o r p e s a r . . .

Caminha sempre... Quanta vez revia,

E m v a g o sonho, o f u m o do seu lar!

E elle, d e s a m p a r a d o de alegria,

N a terra, a caminhar, a c a m i n h a r . ..

Valles, montes, desertos e cidades

V i u , a t r a v é s de todas as edades*,

E ele n u n c a p a r o u . . . Q u e m a l d i ç ã o !

Viu todos os recantos deste mundo

E n ã o achou u m b a r a t h r o b e m f u n d o

P a r a enterrar seu m o r t o c o r a ç ã o . . ,

104 s
R e z a s d o D i a b o

Contam que, um dia, o coração lhe aperta,

L o n g a e f u n d a , a s a u d a d e . . . E n t ã o p r o c u r a

A terra e m que nasceu, na r ó t a incerta,

P a r a cavar a sua s e p u l t u r a . . .

Entra em Jerusalém: era deserta.

O i n c ê n d i o lavra na cidade i m p u r a ;

P o r entre as c h a m m a s , a voar, liberta,

A á g u i a negra dos C é s a r e s f u l g u r a . . .

Tombam muralhas com fragor medonho...

E elle v ê desabar o antigo tecto

Q u e o v i u nascer, brincar, feliz, r i s o n h o . . .

"Dae-me, Senhor, a morte! — exora o triste;

Pois que perdi o derradeiro a f f e c t o :

O tecto de m e u s paes n ã o mais e x i s t e . . . "

= 105
W e n c e s l á u d e Q u e i r o z

I V

Esperança tão vã! Como seus passos

Deter, si elle o u v e a m a l d i ç ã o fatal,

A l l i m e s m o partir, entre fracassos,

D a s ruinas do tecto paternal?

Allucinado, erguendo então os braços,

N u m instante de cólera infernal,

Envolve-se das chammas. nos b a r a ç o s ,

C o m o o g ê n i o terrifico do m a l . . .

Em vão! Repelle o fogo o filho espúrio

D a V i d a , a dardejar, alto e p u r p u r e o ,

E m tetanicos v o l v u l o s de h o r r o r . . .

Adeus, Salem! adeus, Salém divina!

T e u filho segue a i r r e v o g á v e l sina

Q u e lhe i m p o z Jesus C h r i s t o — o R e d e m p t

106
R e z a s d o D i a b o

Eil-o que corre agora, desvairado,

C o m o a f u g i r da p r ó p r i a sombra, corre,

Certo de que, da m o r t e m e s m a odiado,

C o m o u m eterno reprobo, n ã o m o r r e . . .

Da fronte em bagas o suor lhe escorre...

E m b o r a ! impelle-o para deante o F a d o :

Corta cidades, solidões percorre,

A t é que chega a R o m a o d e s g r a ç a d o . . .

Mas Roma, entregue ao saque, nesse dia,

C o m a i n v a s ã o dos B á r b a r o s do N o r t e ,

L a v a d a e m pranto e sangue, t r i p u d i a . . .

Então, sem negaceadas equivanças,

E ' de ver, c o m o ancioso, busca a m o r t e

N u m t o r v e l i m de espadas e de l a n ç a s . . .
W e n c e s l á u d e Q u e i r o z

V I

— "Emfim! — disse elle, vou morrer! Bemdita

A l a n ç a que varar m e u c o r a ç ã o ! " —

E s p e r a a m o r t e e, c o m inveja, fita

C a d a guerreiro a escabujar n o c h ã o . . .

Tudo baldado! Porém deixa a avita

R o m a envolta de s a n g u e n u m g o l p h ê o . . .

P r o c u r a o m a r , n o m a r se precipita,

M a s sobre a praia cospe-o u m v a g a l h ã o . . .

Sóbe ao Vesuvio e engolpha-se no abysmo...

C o m o si houvesse u m g r a n d e cataclysmo,

V o m i t a - o e m c h a m m a s o v u l c ã o t a m b é m . . .

Interna-se na selva e no deserto,

E as f é r a s f o g e m , evitando o incerto

Passo do V e l h o de J e r u s a l é m . . .

108 =
R e z a s d o D i a b o

V I I

De um casebre lhe acena um criança,

Q u a n d o passava, u m dia, n u m a aldeia:

U m a a l m a e m f l o r ! u m sonho! u m a e s p e r a n ç a ,

A r i r . . . O triste p á r a e t i t u b e i a . . .

E da infantil caricia á luz tão mansa

O c a m i n h e i r o m a i s e m a i s se e n l e i a . . .

M a s u m a voz, travada de v i n g a n ç a ,

C o m o u m t r o v ã o , de súbito, e s t r o n d e i a . . .

"Caminha!" — a voz imperativa brada...

A h i , tapa os o u v i d o s o m e s q u i n h o ,

M e d o n h o o olhar, a face d e m u d a d a . . .

Mas, afinal, blasphema o Velho Errante,

Q u a n d o , na e x t r e m a c u r v a do c a m i n h o ,

P e r d e de vista o carinhoso i n f a n t e :

ü= 109
W e n c e s l á u d e Q u e i r o z

V I I I

— "Maldito sejas tu que o vil supplicio

M e d é s t e de viver, cruel Jesus,

— Sacrifício m a i o r que o sacrifício

Q u e supportaste ao peso de u m a c r u z . . .

Pois que, acima do humano precipício,

Foste h a b i t a r n u m a r e g i ã o de luz,

L o g o q u e conheceste o m a l e f í c i o

Q u e a todas as m i s é r i a s nos c o n d u z . . .

Ouve, porém... Caminha sempre o Homem,

E m q u a n t o os Deuses i m m o r t a e s se s o m e m

A* analyse glacial d o sábio i n c r é o . . .

E tu mesmo, ó divino missionário,

Q u a n d o subiste a serra d o C a l v á r i o ,

N u n c a pensaste achar deserto o c é o . . . " —

110 m
I L L U S A O D A C A R N E

A João Silveira Júnior.

Como és bella, mulher! Bella, somente?

N ã o . . . Q u e n ã o basta a m o d e l a g e m p u r a :

E's t a m b é m a m u l h e r de sangue ardente

Q u e a m a — e n o seu a m o r se t r a n s f i g u r a . . .

Feliz de quem, como eu, sorve a doçura

D o beijo no teu lábio que n ã o mente,

E , a u m t e m p o , nessa esthetica f i g u r a

Gosa o p r i m o r da carne f l o r e s c e n t e . . .

Mas, que tristeza a minha! quando penso

Q u e esse corpo de m á r m o r palpitante,

Sob o acicate de u m prazer intenso,

Não passa, flor, de um esqueleto immundo,

Q u e aperto nos m e u s b r a ç o s , delirante,

C o m o u m thesouro s e m igual no m u n d o . . .

= 111
V I S Ã O D E S A N T A B R I G I D A

(Ao dr. Joaquim Leitão).

Une sainte, trois fois canonisée par

1'Eglise, sainte B r i g i t t e , a b i e n o s é nous


montrer Jésus-Christ, offrant à Satan

une grace pleine et entiére, 60us la


condition d'une parole de repentir.

(T. D U L A M O N ) .

No mystico fervor de uma oração, ungida

A a l m a de A m o r , de Paz, de G r a ç a e de Piedade

Pelos q u e v ã o cahindo, e m lucta, nesta V i d a ,

Pelos q u e v ã o tacteando, e m pranto, a Escuridade,

Santa Brigida viu (chorando, enternecida)

Satan ante Jesus que, cheio de bondade,

Supplice a v o z , l h e d i z : — " O * A l m a decahida!

R o g a a D e u s o p e r d ã o d a t u a I n i q ü i d a d e " . —

Satan, zombando, ri; porém tanta é a brandura

D e Jesus Christo, e a u n c ç ã o de sua v o z t ã o pura,

Q u e aos p é s l h e cae Satan, c o l h e n d o á bocca o r i s o . . .

•— "Senhor! — implora então — eis-me aqui ajoelhado...

L a v a - m e pois, Senhor! a m a n c h a d o Peccado". —

E a Santa v i u Satan subir ao P a r a i s o . . .


1

S A O M A R T I N H O

Ao c o n e g o dr. Valois de Castro.

Estava São Martinho, a orar, em sua cella,

— Cinza á cabeça, os rins sangrando n o cilicio, —

Prostrado ante u m a c r u z que aos olhos lhe revela

A m o r t e do Senhor n o t r á g i c o Supplicio:

Quando, entre chammas, viu surdir, extranha e bella,

A figura do D i a b o — o eterno D e u s do vicio —

Q u e assim lhe disse, r i n d o : " — O h ! Santo! abre a janella:

Distante é o c é o ! V ê c o m o é v ã o t e u sacrifício!" —

Tinha Satan na fronte um rutilo diadema,

Dos h o m b r o s lhe cahia a p u r p u r a , de g e m m a

E de o u r o o r n a d a . . . Nisto, e m m e i o da o r a ç ã o ,

O Santo, olhos na cruz, com venerando aspeito,

A o D i a b o respondeu, c r u z a n d o as m ã o s n o peito:

— " M e n t i r a ! o c é o eu t r a g o a q u i n o c o r a ç ã o ! " —

B 113

Cad. 8
O N O M E D E M A R I A

(De LORENZO STECCHETTI — Nova

Polemica) .

Nem a distancia nem o tempo (embora

C o r r a este, e aquelle s ó de t i m e aparte)

Jamais c o n s e g u i r ã o que eu, c o m o outr'ora,

H o j e possa do espirito apagar-te.

E quando mesmo se approxime a hora

E m que de d o r o c o r a ç ã o se parte,

D i r e i o n o m e t e u que sempre fora

O l e m m a d o m e u rutilo estandarte.

E hão de faliar de mim: "Na hora do pranto

Converteu-se o rebelde ; eil-o vencido,

B u s c a n d o a m p a r o nesse n o m e santo".

Mas não. Só do meu lábio moribundo

T a l n o m e e s c a p a r á c o m o u m g e m i d o

E m m e m ó r i a d o b e m que a m e i n o m u n d o .

114 m
N O C O N F E S S I O N Á R I O

Io non puedo absolver-te


De u n pecado tan grande, D i o s eterno!
(MORALES FERRER).

Joelho em terra, cabisbaixo e attento,

A a b s o l v i ç ã o elle esperava, q u a n d o

O padre — a n c i ã o de rosto m a c i l e n t o —

Disse: — " M e u filho, t u peccaste, a m a n d o . . . " —

Elle ergueu-se, de súbito, corando,

C o m o ferido p o r u m sentimento,

E deante do padre venerando

P r o f e r i u o seguinte j u r a m e n t o :

— "Padre, si Deus», perdoando os meus peccados,

M e reserva u m logar n o p a r a í s o ,

E n t r e os eleitos bemaventurados.,

Eu juro, ó padre, sobre a tua estola,

Q u e j a m a i s trocarei u m seu sorriso

P o r essa misera e divina esmola". —

m 115
O S E N H O R M O R T O

E n t r e i n o t e m p l o q u a n d o entraste. A o f u n d o

D a nave, sobre o altar illuminado,

Via-se o corpo livido, chagado,

D e Jesus C h r i s t o — o R e d e m p t o r do m u n d o .

Depois que, a medo, com fervor profundo,

Beijaste o rosto do Crucificado,

Beijei t a m b é m . . . m a s o l u g a r sagrado,

E m que p o u s o u teu lábio s i t i b u n d o . . .

Mas que Deus me perdoe a irreverência:

N a q u e l l e rosto i n d a senti o a r o m a

D e teus lábios repletos de i n n o c e n c i a . . .

E, ai de mim! como um louco, depois disto,

S u r d o c i ú m e o c o r a ç ã o m e t o m a

Desses teus lábios e daquelle C h r i s t o . . .


A U M M O R T O Q U E P A S S A

(Verifiquei depois, p o r acaso, que


era o cadáver de u m pobre operário
que havia sido posto completamente
nú dentro do esquife...)

Quem quer que fosses tu, morto que passas,

E u te saudo c o m o m e u c h a p é o . . .

F o s t e feliz? o u foste das d e s g r a ç a s

Deste m u n d o corrido c o m o u m r é o ?

Morreste herege, ou recebeste as graças

D e D e u s ? Foste christão, o u foste i n c r é o ?

Q u e l u z te enleva essas pupillas b a ç a s ?

V a e s para o I n f e r n o o u s ó b e s para o C é o ?

Nada sei eu de ti. Morreste: eis tudo.

S o m e n t e n u m a cousa n ã o m e i ü u d o :

N ã o h o u v e a l g u é m t ã o pobre c o m o t u . . .

Mas ninguém, como tu, que foste pobre,

F o i m a i s honesto, consciencioso e n o b r e :

Pois saes d o m u n d o c o m o vieste: n ú !


A M Ú M I A D E C H E Ó P S

A /?. Lagoa.

C h e ó p s , u m poderoso e antigo rei do E g y p t o ,

M a n d o u que se elevasse, u m dia, u m a segura

P y r a m i d e eternal de rígido g r a n i t o

P a r a nella fazer a sua sepultura.

Nesse alto mausoléo, longe da lama escura,

O n d e esfervilha o v e r m e e m pavoroso attricto,

J u l g o u o rei que sua m ú m i a , eterna e pura,

D e s c a n ç a r i a e m paz j u n t o ao c é o i n f i n i t o . . .

Mas, no curso veloz dos séculos, um dia,

A c h o u - s e o m a u s o l é o do rei e, q u e ironia!

S ó nelle se e n c o n t r o u u m p u n h a d o de p o e i r a . . .

Assim, a Gloria van, em vão, persegues, Homem!

P o r q u e t u d o na T e r r a os séculos, c a r c ó m e m

E a Gloria H u m a n a é a atroz m e n t i r a d e r r a d e i r a . . .

118 S É
P L A N T A M A L D I T A

E ' da noite na escura estufa que, e m resguardo,

Cinzela o e x t r a n h o artista a orchidea do seu estro,

— R u b r a e exquisita flor, m i x t o de euphorbia e cardo,

Q u e a a l m a lhe prende e traz n u m infernal s e q ü e s t r o .

Dentro do coração do feiticeiro bardo,

Q u e da v i s ã o do m a l jamais perdeu o sestro,

Ella finca a raiz c o m o b i g u m e o dardo

C o m que o t r a n s f i x a a d o r n u m golpe v i v o e d e s t r o . . .

Dessa planta lethal não sorvam o perfume,

Q u e faz gosar, b e m sei, m a s u m veneno instilla

E accende e m cada veia inextinguivel l u m e . . .

A alma do poeta, assim, é o tormentoso mangue,

O n d e essa flor de m a l d i ç ã o rutila,

Desabrochada e m finas p é t a l a s de s a n g u e . . .
A M A I O R D Ô R

Que grande d o r é essa q u e t e para-


lysa o espirito e o corpo, deixando este
sem gesto e aquelle sem entendimento,
reduzindo-te afinal a uma estatua de
pedra?
(De um poema hindú).

No confuso tropel das idéas a esmo

Q u e m e t o m a m de assalto o c é r e b r o aturdido,

D o n d e parece ter m i n h a r a z ã o f u g i d o ,

P r o c u r o i n u t i l m e n t e encontrar-me a m i m m e s m o . . .

E nesse chãos mental de tamanho alarido

E m v ã o eu m e concentro, e m v ã o eu m e e m s i m e s m o :

P o b r e espirito m e u ! o desespero f e z - m o

C a h i r na p r o s t r a ç ã o c o m o u m h e r ó e v e n c i d o . . .

Sou qual um desertor da Vida, inda vivendo,

N o silencio estatual do m e u t r e m e n d o espanto,

N a f a k i r i z a ç ã o do m e u pesar t r e m e n d o .

Ah! quem déra que dessa esphinge de granito,

C o m o u m signal de dor, espadanasse o pranto,

C o m o u m libello contra o C é o , partisse u m g r i t o ! . . .

120 m
A V O Z D O S I L E N C I O

A Manoel Viotti.

N e m todos o u v e m essa v o z q u e e u o u ç o

A t r a v e z d o silencio desconforme

D a noite, q u a n d o a N a t u r e z a d o r m e

C o m o n o f u n d o de insondavel p o ç o .

E' uma voz supplicante, de anciã enorme,

C o m o q u e estrangulada n a l g u m fosso,

Q u e s ó b e ao c é o d a terra — e r m o d e s t r o ç o !

C o m o a agonia de u m titan d i s f o r m e . . .

Si elevo ao céo, no emtanto, o olhar ardente,

C o n t e m p l o esse docel resplandescente

N a festa das estrellas q u e elle e n c e r r a . . .

Mas quanta indifferença eu noto, afflicto,

Nesse azul constellado, ao grande grito

Deste hospital de pranto e sangue: — a T e r r a !

121
O V I N H O

A Figueiredo Pimentel.

(Contaste-me tu, velho operário!

a historia do teu amor e, commovido,


fizeste-me escrever estes versos inspi-
rados nas tuas lagrimas...)

- "Dá-me tu que beber, ó taverneiro oleoso,

D o v i n h o secular da t u a garrafeira,

Desse r a r o licor, e x t r a n h o e capitoso,

Q u e m e faz afogar n o S o n h o a v i d a i n t e i r a . . .

"Bofé! Enche-me a taça! A vida é uma canceira,

E d á - m e s ó prazer teu v i n h o generoso,

Pois q u a n d o o bebo, r i , c o m o histrião de feira,

A cantar, a folgar, m e u c o r a ç ã o choroso.

"Mas reparo: emborquei hoje mais de uma taça

D o t e u vinho, e n ã o posso esquecel-a, esquecel-a,

P o r m a i s que eu, ebrio já, e tonto, e s f o r ç o s f a ç a . . .

Outro vinho, por Baccho! outro vinho mais forte,

Q u e m e f a ç a c o m que j a m a i s eu possa vel-a,

E d e s c a n ç a r e m paz na e m b r i a g u e z da m o r t e . " —
M E U A B S Y N T H O

T u que, n o d o u d o e g o í s m o de u m m o m e n t o ,

A p u n h a l a s t e as m i n h a s alegrias,

D a n d o - m e e m troca, b l a s p h e m o e violento,

O desespero de cruéis harpias,

Para que, cheia de arrependimento,

Á v i n c a s , entre inúteis agonias,

T e u rosto, que consome, lento e lento,

O sal de tantas lagrimas tardias?

Esquece! Para mim já não existe

Esse passado — esse passado triste! —

Q u e hoje deploras s e m n e n h u m r e m é d i o .

Faze como eu que me esqueci de tudo,

E vivo a s ó s , c o m o u m c o n v i v a m u d o ,

T r a g a n d o o a b s y n t h o a m a r g o do m e u tédio.
N O V A E U C H A R I S T I A

Feliz n o m a g o exilio do teu sonho,

— I m m a c u l a d a anemona, — ao flagicio

F o g e s do m u n d o b á r b a r o , m e d o n h o ,

Q u e te allicia c o m o u m p r e c i p i c i o . . .

Nada vês, nada escutas do enfadonho,

H u m a n o a b y s m o onde estrondeia o vicio,

Que, sob u m estendal flóreo e risonho,

P é r f i d o , occulta os ferros do supplicio.

Mas tua carne virgem — branco hostiario

Q u e ainda i n c u b a o goso v o l u p t u a r i o ,

S e m que n i n g u é m o c o m m u n g a s s e , — u m dia,

Ha de sentir a garra da luxuria,

E d a r á de beber, ó flor purpurea,

O v i n h o de u m a n o v a e u c h a r i s t i a . . ,

124
H I S T O R I A V U L G A R

Os homens m o r d i a m de dor a pró-


pria lingua. E por causa de suas do-
res e de suas chagas, elles blasphema-

ram contra o Deus do céo.

(APOC, X V I , 10, 11).

Quando, ás primeiras luzes da alvorada,

Parti, c a m i n h o e m f o r a da existência,

E u levava e m m i n h a a l m a enamorada,

U m thesouro de a m o r e de innocencia.

Mas logo na primeira encruzilhada

F e r i u - m e a D o r c o m barbara inclemencia,

Pois v i cahir n u m féretro, enrolada,

A bandeira de m i n h a adolescência.

Desceu depois a noite como um crépe

Sobre o m e u c o r a ç ã o — m e d o n h o e s t é p p e ! —

A m o r t a l h a d o n u m pezar p r o f u n d o . . .

Foi então que, perdendo o meu thesouro,

C l a m e i e m v ã o , coberto de desdouro,

C o n t r a Deus, contra os Homens., contra o M u n d o .

= 125
V A T I C I N I O

(Da CONTESSA LARA, poetisa italiana).

F o g e — si podes! — ao m o r t a l q u e b r a n t o

Q u e nos encarcerou d e n t r o de u m sonho,

D u r a n t e o t e m p o e m que gosamos tanto

L o n g e do h u m a n o vortilhão m e d o n h o .

Desse passado corta o liame santo

N u m gesto alegre e f u t i l ; n o e n f a d o n h o

Prazer da orgia busca n o v o encanto,

E segue o u t r a m u l h e r , m e i g o e r i s o n h o . . .

Mas, ai de ti! eu sei que dentro em pouco,

D e p o i s de t u colheres, c o m o u m louco,

A flor do V i c i o que a p a i x ã o consome,

Proferirás um dia, — exangue o rosto,

A m ã o crispada, o gesto descomposto, —

C o m o u m soluço t r e m u l o , m e u n o m e . . .
P R I M E I R A C O M M U N H Ã O

F o i n a p r i m e i r a c o m m u n h ã o , q u a n d o ella

T i n h a doze a n n o s . . . q u a n d o apenas t i n h a

N a a l m a — o candor i m m a c u l o da estrella,

E n o c o r p o — a leveza da a n d o r i n h a . . .

Foi nessa edade rutilante e bella,

Q u a n d o da egreja m a l sahindo v i n h a

Sob o v é o b r a n c o e a virginal capélla,

— Q u e ella j u r o u . . . que ella j u r o u ser m i n h a .

Nas minhas mãos as suas mãos tomando,

Beijei-a e n t ã o , e ella, a tremer, corando,

N a sua bocca v i r g e m de desejo

Deu-me, — como lhe deu o celebrante,

J u n t o d o altar, a h ó s t i a alva e brilhante, —

A c o m m u n h ã o do seu p r i m e i r o b e i j o . . .
V I R G E M S A N T Í S S I M A

Q u a n d o ella á egreja vae, e n a discreta

Prece deixa v o a r a a l m a piedosa,

N o seu livro de missa u m a violeta

E ' que lhe m a r c a as folhas cor de rosa.

Talvez se occulte nessa flor mimosa,

— P r e n d a a m a d a e gentil de a l g u m poeta, —

O f i o de u m a historia dolorosa,

O doce f é l de u m a p a i x ã o secreta.

Contam que a viram, quando orava um dia,

B e i j a r essa relíquia sacrosanta,

Q u e n o seu livro d ' o r a ç õ e s jazia;

E então, vencida de uma funda magua y

T i n h a nas faces u m pallor de santa,

E os negros olhos arrasados d'agua.

128 m
N A Q U A R T A - F E I R A D E C I N Z A S

Pulvis es...

Q u e t u é s p ó — disse-te o padre, Elvira,

Fazendo-te u m a c r u z de cinza escura

N a testa branca, virginal e p u r a . . .

" P U L V I S E S ! " — Q u e i m p o s t o r e que m e n t i r a !

E mente! Juro pela minha lyra!

Elle n ã o v i u q u e l u z d o c é o f u l g u r a

N o teu o l h a r ! N e m v i u q u a n t a c a n d u r a

T u a bocca de p u r p u r a transpira!

Como podes ser pó, tu, que na terra

Trazes n o peito u m c o r a ç ã o que encerra

A m o r t ã o santo q u e m e salvaguarda!

Não! esse padre nunca amou! Portanto

N ã o p o d e v e r e m t i s e m grande espanto

A s azas d o m e u b o m a n j o da g u a r d a . . .
I M P O S S Í V E L

Q u e m m e diz que entre n ó s , c o m o u m coveiro,

O tédio sepultar n ã o venha, u m dia,

A p a i x ã o q u e nos traz o corpo inteiro

N u m sonho de v o l ú p i a f u g i d i a . . .

Pois que nos gele a bocca, traiçoeiro,

O beijo! Q u e da nossa phantasia

Parta a illusão n u m v ô o derradeiro!

Q u e nos f u j a dos olhos a alegria!

V e n h a o t é d i o ! N u m R E Q U I E M doloroso

M o r r a e m m i m , m o r r a e m t i , chorando, o goso

Solte a carne sua u l t i m a c a n ç ã o !

Que todo o mal nos faça o escuro verme!

P o r é m , fazer q u e deste a m o r i n e r m e

N o s e s q u e ç a m o s para s e m p r e . . . n ã o !
T E D I U M V I T J B

(Sobre a morte de Júlio Riedel).

Soavam inda as lúcidas fanfarras

D e teus sonhos, na p o m p a irial da aurora,

E ias da vida pelo m a r e m fóra,

C h e i a de rosas e virentes parras,

Quando do teu batei, musa canóra,

D e s p e d a ç a d a s todas as amarras,

A h ! naufragaste, do suicídio ás garras,

E m plena vida, na m a n h ã s o n o r a . . .

Descança em paz... Da terra na retorta

T o r n a r - s e - á e m alcalóides logo

T e u a r c a b o u ç o de m a t é r i a m o r t a ,

Emquanto, como dromedário tardo,

C a d a u m de n ó s , neste areai de fogo,

E s p e r a o dia de alijar seu f a r d o . . .

= 131
A M I N H A S O M B R A

(Soneto posthumo de um clown

phantasista).

Q u e r a D o r eu sentisse, quer o Goso,

D a m i n h a vida na m u n d a n a farça,

N u m discreto silencio m y s t e r i o s o

Seguiu-me c o m o u m c ã o esta c o m p a r s a . . .

E eu via nella essa tristeza esparsa

D e a l g u é m que segue u m féretro, choroso,

M a s que n o rosto as l a g r i m a s d i s f a r ç a

P a r a conter o c o r a ç ã o a n c i o s o . . .

E ella só me deixou quando, na terra,

Se fez a c ó v a que m e u corpo encerra

Sob a c a m a d a de u m a verde a l f o m b r a . . .

Agora, livre de cruel fadiga,

Sei que n ã o tive e n t ã o m e l h o r a m i g a

E a m a n t e mais leal que a m i n h a s o m b r a .

132 È =
N A O !

A filhinha m o r r i a - l h e nos b r a ç o s

D o l e n t e m e n t e c o m o u m passarinho,

Q u e as azas c ó l h e de cruéis c a n ç a ç o s

E expira, triste, á beira do seu n i n h o . . .

E ella disse: — "Deus meu! sustae os passos

D a m o r t e q u e a arrebata ao m e u c a r i n h o . . . " -

M a s o alento final — os m e m b r o s lassos

S a c u d i u d o seu m i s e r o c o r p i n h o . . .

Approximei-me. Ella embalava ainda

A filha m o r t a — a n é m o n a t ã o linda! —

Q u e lhe crescia sobre o c o r a ç ã o . . .

Nisto eu lhe disse: — "Deus roubou-te a filha.

E nesse D e u s que assim te prostra e h u m i l h a

I n d a acreditas?" — R e s p o n d e u - m e : — " N ã o ! "


N O E N T E R R O D E U M A C R E A N Ç A

E n c a r c e r a d a nesse esquife leve,

Pallido anjinho, q u e ahi vaes t ã o triste,

E m d e m a n d a do c é o , que n u n c a viste,

— O n d e deixaste as azas cor de neve?

Pois tua pobre mãe, quando partiste,

Disse: " F o i para o c é o ! Q u e D e u s o l é v e ! "

— C r é d u l a m ã e ! N e s t a existência breve,

Q u e c é o m e l h o r que o c é o , d o n d e sahiste!

Si Deus, portanto, te não deu as azas,

C o m que possas voar, pallido anjinho,

D o vasto azul entre as nitentes gazas,

Espera! a Natureza, — mãe dilecta, —

Cedo t r a n s f o r m a r á o t e u c o r p i n h o

N a s azas leves de u m a b o r b o l e t a . . .

134 m
P O V E R A M A D R E !

Quando o Senhor lhe deu uma filhinha,

— R i s o n h o p r ê m i o do seu p u r o amor, —

E l l a disse: " A h ! que linda a filha m i n h a !

Obrigada, Senhor !

Cabellos de oiro... olhos de azul celeste...

C o r p i n h o de ave e m cálice de f l o r . . .

N o s seus olhos azues dois céos m e d é s t e !

O b r i g a d a , S e n h o r !

II

Expirou-lhe nos braços a filhinha,

— U l t i m o s o n h o do seu p u r o amor, —

E ella disse: " A h ! que linda a filha m i n h a !

T r i s t e de m i m , Senhor !

Cabellos de oiro... olhos de azul celeste...

T u d o se a b y s m a nesta m i n h a dor!

Restituo-te os céos que t u m e d é s t e . . .

T r i s t e de m i m , Senhor !
D E P O I S D E M O R T O . . .

D e p o i s de m o r t o , depois de m o r t o ,

Q u a n d o s e m p o m p a s f o r enterrado,

L a r v a s da terra! dizei-me: — " Q u e m

I r á levar-me, c o m o u m conforto,

A o d u r o leito, no c h ã o cavado,

U m a s ó prece de a m o r ? " — " N i n g u é m ! " —

Depois de morto, depois de morto,

Q u a n d o m e u corpo tiver despido

A carne alegre, desfeita e m p ó ,

N a m i n h a cova, c o m o n u m H o r t o ,

S o m e n t e o cardo t e r á crescido

Sobre a carcassa t á b i d a e s ó . . .

Depois de morto, depois de morto,

U m a cruz pobre d i r á s o m e n t e

O n d e repouso c o m o u m christão,

— P h a r o l de angustias, que indica o p o r t o

A o s que, e m p r o c u r a do c é o clemente,

C h o r a m , perdidos, na e s c u r i d ã o . . ,

136 m
R e z a s d o D i a b o

D e p o i s de m o r t o , depois de m o r t o ,

Si a D o r , n o emtanto, se transformasse

E m m á r m o r e negro, m e u m a u s o l é o

Seria ( E * grande m e u desconforto!)

T ã o elevado que, face a face,

M i n h a s tristezas diria ao c é o . . .

Depois de morto, depois de morto,

Q u a n d o s e m p o m p a s f o r enterrado,

L a r v a s da terra! dizei-me: — " Q u e m

I r á levar-me, c o m o u m conforto,

A o d u r o leito, n o c h ã o cavado,

U m a s ó prece de a m o r ? " — " N i n g u é m ! " —

m i 3 7
S O L I L O Q U I O D O T É D I O

CUPIO DISSOLVI.

(S. Paulo).

Entre o Pavor e o Tédio oscillas tristemente,

M e u c o r a ç ã o ! m e u c o r a ç ã o doente!

F a z frio! O u ç o u m a l o n g a e f ú n e b r e c a n ç ã o

D e a l g u é m talvez que p r é g a o m e u c a i x ã o . . .

Porque tirito, a medo e a sós, como um demente,

D a n o r t a d a a escutar a v o z dolente?

E* que m e apalpa a l g u é m , n o h o r r o r da e s c u r i d ã o ,

C o m u m a branca, u m a gelada m ã o . . .

Homem! que és tú senão um verme que afurôas,

Famelico, tenaz, o c a d á v e r da T e r r a ,

G e r m e n d o m a l que te envenena o ser?

Fazes rir, torvo anão! que, em busca de coroas.

E de palmas, s ó tens, fazendo á M o r t e guerra,

E s t a a m b i ç ã o : V i v e r ! V i v e r ! V i v e r !

138 ==
1

S U P R E M O R E S G A T E

Receio a Morte, sim, si o Pensamento

D e v e sobreviver á carne triste,

E si atraz desse A z u l , n o f i r m a m e n t o ,

A l g u m a c o u s a . . . a l g u m a cousa existe...

Maldição! Maldição! si no momento

E m que m e fira a t u a foice e m riste,

O ' M o r t e , n ã o f i n d a r o m e u T o r m e n t o ,

E persistir a D o r que e m m i m persiste!

Ah! mas si colhes minha vida inteira,

O m e u ser: — a l m a e corpo, — de maneira

Q u e t u d o a c a b e . . . t u d o m o r r a , e n t ã o

Bemditas sejas, Morte cubiçada,

P o r q u e sem odio, sem amor, sem nada,

N u n c a mais p u l s a r á m e u c o r a ç ã o .

1= 139
O E N T E R R O

(PARAPHRASE)

A Luiz Carneiro.

L'homme n'e8t rien qu'un mort

qui traine sa carcasse.


Du M A Y .

Desfila o enterro. Para o cemitério

Vae, entre p o m p a s lugubres, o m o r t o .

E ' longo, é extenso o prestito funereo,

E ouvem-se nelle vozes s e m c o n f o r t o . . .

Mas quem é esse que o sinistro porto

Busca, deixando-nos. pesar t ã o sério?

—• Pois teve acaso, c o m o Christo, u m H o r t o ?

— Pois lhe n ã o f o i a vida u m sonho ethereo?

Ricos brocados entre sedas luzem...

A contemplar, p o r é m , j á n ã o m e atrevo

P o m p a s t ã o vans que a m u l t i d ã o seduzem.

Quanta dor! Por um morto — quanto enlevo!

V e d e : u m c a d á v e r mais de m i l c o n d u z e m :

Sozinho, emtanto, o m e u c a d á v e r l é v o . . ,

140 m
Í N D I C E

Prefacio 5

MAGIAS NEGRAS

Arte maldita 13

Nostalgia do céo 14

Pfailosophia da blasphemia 15
Doutor Fausto 17
Herança do mal * 19
Soneto posthumo 20
Sonetos de um mago 21
Esphynge azul 23

Lógica do Diabo 24
Jesus , 25

A tentação de Christo 26

A velha serpente 27

Adão 28

A mulher de Job 29

O beijo de Satan 30

A um cão . 31

Redempção de Judas 35

Prophecia de Michéas 39

Visão de S. João 42

Templo de Satan 46

P i 141
W e n c e s l á u d e Q u e i r o z

Canção do louco 47
Escada de Jacob . » 50

O sonho de Paracelso 51
A cabeça de S. João Baptista 52
As múmias egypcias 53

A praga do mendigo 54
Visões do Propheta 55

A um estoico 59
Céres de Gnido 60
Missa nova 61
A resurreição de Lázaro 62
Torso de Belvedere 63
A uma noviça , 64
Contricção de Verlaine 65
D i o genes , 66

MAGIAS DA CARNE

I — Irreparável 69

II — De profundis clamavi 70
III — Beata Beatrix 71

IV — Missa de amor 72

V — Donna Francesca 73
V I — Vulnus amoris 74

V I I — Credo 75

142 =
R e z a s d o D i a b o

PSALMOS E EXORCISMOS

A comedia do amor 79
Frei Satanaz . 80

P e r g u n t a s ao sol 84

O espectaculo da vida 85
Nihil 86
A Deus 87

Acto de contricção 88
Dialogo , 89

Gloria a ti, ó Satan! 90


Sinos do Natal 91

O demônio azul 92
Testemunho de Christo 94
A caveira humana 95
Autópsia 96
O céo 100

A Torre de Babel 101


A caveira de Yorick 102
Lenda do Judeu Errante 103
Illusão da carne m
Visão de Santa Brigida 112

S. Martinho 113
O nom© de Maria 114

No confessionário 115

m 143
W e n c e s l á u d e Q u e i r o z

O Senhor Morto 116

A um morto que passa 117

A múmia de Cheóps 118

Planta maldita 119

A maior dor 120

A voz do silencio 121

O vinho 122

Meu absyntho 123

Nova euchari6tia 124

Historia vulgar 12S

Vaticinio 126

Primeira communhão 127

Virgem Santíssima 128

Na quarta-feira de Cinzas 129

Impossível , . . 1 3 0

Tedium vitae 131

A minha sombra 132

Não! 133

No enterro de u m a creança 134

Povera madre! , 135

Depois de morto 136

âoliloquio do tédio 138

Supremo resgate , 139

O enterro 140

144 m
* Este livro f o i composto e impresso

nas officinas da Empreza Graphica

da «Revista dos Tribunaes», á rua

Xavier de T o l e d o , 72 — São Paulo,

em Janeiro de 1939.
Impresso na
E. G. "Revista dos TribunaeJ
(
A

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