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Índice

Editorial ------------------------------------------------------------- p. 05
Daniel Rodas (Traduções de Alejandra Pizarnik) ---------- p. 10
Claudia Baeta Leal ------------------------------------------------ p. 20
Blenda Santos ------------------------------------------------------ p. 27
Larissa C. G. Oliveira -------------------------------------------- p. 35
Anna Apolinário --------------------------------------------------- p. 38
Felipe Braga -------------------------------------------------------- p. 42
Isabela Lemos ------------------------------------------------------ p. 47
Hugo Bessa --------------------------------------------------------- p. 50
Leandro Almeida -------------------------------------------------- p. 53
Marcela Alves ------------------------------------------------------ p. 57
Géssica Menino ---------------------------------------------------- p. 61
Isabel Furini -------------------------------------------------------- p. 63
Terezinha Malaquias --------------------------------------------- p. 69
Nalberty Medeiros Santos --------------------------------------- p. 76
Amanda Parente --------------------------------------------------- p. 85
Agradecimentos e Contatos ------------------------------------- p. 91
Editorial
Tu
Que te escreve aqui
Tu
Que reescreve lá

Tu
Que se inscreve ali
Tu
Que escreve cá

Tu
Que escrevendo aqui
Tu
Reescreve lá

Tu
Reescrito aqui
Tu
Te escreves cá

Tu: reescrito em si
Eu: reescrito lá

Tu que te escreve em ti
Eu reescreve em Ká

[IMPROVISO MORNO Nº28]

Há cinco mil anos. Em Kemet ou na Suméria. Num bloco de tempo. Ou num fio de
miséria. Se fez: um rabisco em pedra. Se faz: um fiapo em terra. E de um traço teceu. O
que tudo nasceu. Dali: a ideia encerra.

Será? Só que nada fecha. Escrito: não. Se abre: < Palavra regurgita o dito. Remói o que
recôndito dito. Indito: não. Revivo: palavra aberta em frase. Em boca. Em risco.
Palavra impressa. Palavra-Nilo. Eufrates Ganges ou São Francisco. Palavra gravada num
cisco. Palavra: assumir o risco.

De criar. De tecer. De fiar retecendo o traço. De tecer desfiando o laço. Refazendo o aço.
Do verbo em vidro e em fogo. Do ato: palavra-fogo. O ato de escrever com fogo. O tato:
de tocar o jogo.

Hieróglifos: riscos e traços. Cordas – bambos e bambus. De onde tiram os talos: papiro.
De onde cosem o couro: escrito.

Toth: íbis ou pato. Ave avoante zabelê. Pardal papa-capim ou bacurau. Deus da palavra
e do tempo. Deus da garganta e da escrita. Deus: da sabedoria (ina)ú(dita). Poeta. Poema
e urubu. O deus que escrito na pedra. Karnak Uruk ou Ingá:

SUCURU!

[Paraíba: Junho do Ano do Risco de Dois Mil e Vinte e Três]

Equipe Sucuru
*

* *
5 POEMAS DE ALEJANDRA PIZARNIK – TRADUZIDOS
POR DANIEL RODAS

A poeta Alejandra Pizarnik (Fonte: Wikipédia)

Nascida em Avellaneda, Argentina, em 29 de abril de 1936, com o nome de batismo


“Flora”, filha de imigrantes judeus-ucranianos, Alejandra Pizarnik foi uma das mais
destacadas poetas argentinas do século XX. Com uma produção que se estende da poesia
à prosa, não raro produzindo hibridismos, sua escrita é marcada por uma dicção bastante
própria, original, tributária de certos aspectos do surrealismo e do romantismo – mas nem
por isso menos “moderna”.

Iniciando sua vida literária ainda na primeira metade da década de 1950, com a publicação
de seu livro de estreia, La tierra más ajena (1955), Pizarnik passou por uma considerável
guinada estética após uma temporada em Paris, de 1960 a 1964, na qual travou contato
com artistas do calibre de Octávio Paz, Julio Cortázar e Rosa Chacel, ao mesmo tempo
em que se deixou influenciar pelos surrealistas. Após o seu retorno à Argentina, publicou
as coletâneas Árbol de Diana (1962), Los trabajos e las noches (1965) e Extracción de la
piedra de locura (1968), onde mescla um estilo concentrado, conciso, a uma profusão de
figuras e referências simbólicas que giram em torno do mesmo conjunto de imagens-
temas: a noite, a morte, a aurora, o anjo, etc.

Após a sua morte prematura, aos 36 anos, decorrente de suicídio (1972), seu trabalho
ganhou destaque cada vez maior, impulsionado pelo reconhecimento de sua maestria
poética, assim como pela releitura de sua obra à luz das teorias feministas. No Brasil, a
editora Relicário tem realizado nos últimos anos um projeto de tradução da poesia da
autora – inédita no país durante anos, a exceção da obra em prosa A condessa sangrenta
(1971). A despeito desse esforço editorial, que publicou no Brasil, até o momento, quatro
obras da autora – Árvore de Diana, Os trabalhos e as noites, Extração da pedra da
loucura e Inferno musical – Pizarnik continua sendo inexplicavelmente pouco lida no
país, enquanto boa parte de sua produção poética ainda aguarda tradução.

Considerando a referida lacuna, selecionamos e traduzimos cinco poemas da coletânea


Las aventuras perdidas (1958), obra da primeira fase da poeta, ainda sem tradução em
livro no Brasil. Mesmo se tratando de uma de suas obras iniciais – anterior, portanto, à
estadia parisiense – já é possível perceber nessa obra aspectos do conjunto simbólico que
permeia a escrita impactante e “negativa” de Pizarnik, proporcionando ao leitor uma
experiência de estranhamento e êxtase.

A seguir, os poemas selecionados da autora, em tradução do nosso editor e poeta Daniel


Rodas:

A NOITE

Pouco sei da noite


porém a noite parece saber de mim,
e mais ainda, me assiste como se me amasse,
me cobre a consciência com suas estrelas.

Talvez a noite seja a vida e o sol a morte.


Talvez a noite seja nada
e as conjecturas sobre ela nada
e os seres que a vivem nada.
Talvez as palavras sejam o único que existe
no enorme vazio dos séculos
que nos arranham a alma com suas lembranças.

Porém a noite há de conhecer a miséria


que bebe de nosso sangue e nossas ideias.
Ela há de lançar ódio a nossos olhares
sabendo-os cheios de interesses, de desencontros.

Mas acontece que ouço a noite chorar em meus ossos.


Sua lágrima imensa delira
e grita que algo se foi para sempre.

Alguma vez voltaremos a ser.

LA NOCHE

Poco sé de la noche
pero la noche parece saber de mí,
y más aún, me asiste como si me quisiera,
me cubre la conciencia con sus estrellas.

Tal vez la noche sea la vida y el sol la muerte.


Tal vez la noche es nada
y las conjeturas sobre ella nada
y los seres que la viven nada.
Tal vez las palabras sean lo único que existe
en el enorme vacío de los siglos
que nos arañan el alma con sus recuerdos.

Pero la noche ha de conocer la miseria


que bebe de nuestra sangre y de nuestras ideas.
Ella ha de arrojar odio a nuestras miradas
sabiéndolas llenas de intereses, de desencuentros.

Pero sucede que oigo a la noche llorar en mis huesos.


Su lágrima inmensa delira
y grita que algo se fue para siempre.

Alguna vez volveremos a ser.

***

A JAULA

Lá fora há sol.
Não é mais que um sol
Porém os homens o fitam
e depois cantam.

Eu não sei do sol.


Eu sei a melodia do anjo
e o sermão quente
do último vento.
Sei gritar até à aurora
quando a morte posa nua
em minha sombra.

Eu choro debaixo do meu nome.


Eu agito lenços na noite
e sedentos de realidade
dançam comigo.
Eu escondo pregos1
para escarnecer dos meus sonhos enfermos.

1
Do original espanhol, clavos, cujo significado pode remeter tanto a “pregos”, quanto a “unhas”. Aqui,
optamos pela primeira solução.
Lá fora há sol.
Eu me visto de cinzas.

LA JAULA

Afuera hay sol.


No es más que un sol
Pero los hombres lo miran
y después cantan.

Yo no sé del sol.
Yo sé la melodía del ángel
y el sermón caliente
del último viento.
Sé gritar hasta el alba
cuando la muerte se posa desnuda
en mi sombra.

Yo lloro debajo de mi nombre.


Yo agito pañuelos en la noche
y sedientos de realidad
bailan conmigo
Yo oculto clavos
para escarnecer a mis sueños enfermos.

Afuera hay sol.


Yo me visto de cenizas.

***
FESTA NO VAZIO

Como o vento sem asas fechado em meus olhos


é o chamado da morte.
Só um anjo me enlaçará ao sol.
Onde o anjo,
onde sua palavra

Oh perfurar com vinho a suave necessidade de ser.

FIESTA EN EL VACÍO

Como el viento sin alas encerrado en mis ojos


es la llamada de la muerte.
Sólo un ángel me enlazará al sol.
Dónde el ángel,
dónde su palabra.

Oh perforar con vino la suave necesidad de ser.

***

TEMPO
A Olga Orozco

Eu não sei da infância


mais que um medo luminoso
e uma mão que me arrasta
a minha outra margem

Minha infância e seu perfume


em carícia de pássaro.2

TIEMPO
A Olga Orozco

Yo no sé de la infancia
más que un miedo luminoso
y una mano que me arrastra
a mi otra orilla.

Mi infancia y su perfume
a pájaro acariciado.

***

FILHA DO VENTO

Vieram.
Invadem o sangue.
Cheiram a plumas,
a carência,
a pranto.
Mas tu alimentas ao medo
e à solidão
como a dois animais pequenos
perdidos no deserto.

2
Um sentido literal, a partir do original “su perfume / a pájaro acariciado”, seria “seu perfume / de pássaro
acariciado”. Entretanto, “em carícia de pássaro” parece manter a ambiguidade de sentido do poema, uma
vez que reforça o “medo luminoso” a partir da lembrança da infância: a “carícia de um pássaro” pode tanto
ser a de pássaro que acarinha – ou que é acarinhado –, quanto o arranhão de uma garra.
Vieram
a incendiar a idade do sonho.
Um adeus é tua vida.
Porém tu te abraças
como a serpente louca de movimento
que só se encontra a si mesma
porque não há ninguém.

Tu choras debaixo do teu choro,


tu abres o cofre dos teus desejos
e és mais rica que a noite.

Porém há tanta solidão


que as palavras se suicidam.

HIJA DEL VIENTO

Han venido.
Invaden la sangre.
Huelen a plumas,
a carencia,
a llanto.
Pero tú alimentas al miedo
y a la soledad
como a dos animales pequeños
perdidos en el desierto.

Han venido
a incendiar la edad del sueño.
Un adiós es tu vida.
Pero tú te abrazas
como la serpiente loca de movimiento
que sólo se halla a sí misma
porque no hay nadie.

Tú lloras debajo de tu llanto,


tú abres el cofre de tus deseos
y eres más rica que la noche.

Pero hace tanta soledad


que las palabras se suicidan

*
O TRADUTOR

Daniel Rodas é escritor, poeta e dramaturgo. Graduado em Letras e Mestrando em


Literatura e Interculturalidade (UEPB). Editor da Revista Sucuru. Autor da plaquete Eros
e Saturno (Editora Primata, 2021) e do livro Umbuama (Editora Urutau, 2021). Integrou
as antologias Poesia fora do eixo (Toma Aí Um Poema, 2022), Engenho Arretado: poesia
paraibana do século XXI (Patuá, 2023) e Casa Encantada: o conto fantástico paraibano
(Arribaçã, 2023). Tem textos publicados em vários meios eletrônicos nacionais e
internacionais. Pensa na poesia como um fluxo, como o fluir incontrolável da vida.
COIVARA

Você, fogueira de São João.


Eu, coivara.
Ramagem em brasa,
espalhando lenta na paisagem.
Seara em fogo lento.
Você, crispando na escuridão.
Barulho e luz e sombras -
o que está e não está:
projeção.
Eu, que ardo.
Temperatura aguda no tempo longo,
teimosia de chama no rescaldo
Você, explosão.
Fogaréu traçando caminho em procissão,
fogo e fé.
Eu, autocombustão.

DESVIO

sigo o longo rio


pela margem d'água
sento à sua margem
quando fito a imagem
de um sorriso d'água
curva do longo rio
beira de onde mergulho
em um sorriso-miragem
e desvio suave o rio
em nova margem
outra curva e
outra imagem
paisagem
que sorri
sorrio
desvio
é também
direção

QUARENTENA

Encharquei
de água quente
tristezas novas em folha.
Já não suporto álcool nessa quarentena,
preciso de chá
e novos vícios.
Vou beber a infusão
de aborrecimento morno
enquanto penduro
roupas
e
pernas
na janela
por um pouco de sol.
Olhar a rua

[por frestas]

me aborrece
e perdi a curiosidade pelas janelas.
Também cansei de lavar louça,
varrer a casa,
limpar o chão,
arrumar bem as palavras.
Agora vai
bagun
çado

mes
mo.

NUM FORRÓ

Anoiteço feito forró tristonho,


como xote sem jeito,
envergonhado,
em que o pé se arrasta num desalento mecânico.
Um triângulo, perdido num tililim, tililim, tililim sem coro;
zabumba surdo, abafado, como se ao longe,
quase rouco.
Fole vem, fole vai
fole vem, fole vai,
ignorando o compasso -
parece conversar consigo só.
Poeira baixa,
a luz pouca aumenta o salão vazio.
Já é quase dia
e danço sozinha, cheia de sono e mágoa.
Amanhã chega e não sei partir.
Fole vem, fole vai,
fole vem, fole vai...

BOCA A BOCA

boca
e voz
som alto e claro
em demasia
vontade de um lado só
que não cala na boca
boca boca boca
pronúncia em batom vermelho
berro
discusão e exagero
bate-boca
boca boca boca
pedra atirada na vidraça
mancha na toalha limpa
grito no ouvido
canção fora de hora
e sem graça
boca boca boca
também delicadeza
arrepio
sussurro e um beijo
murmúrio, leveza, psiu!
ágil movimento de boca
boca a boca
pergunta e mais pergunta
persistência
insistência sem proposta
sem silêncio
ou não como resposta
boca boca boca
quando transborda
apressa
atropela
nem bem começou
boca boca boca

*
PELE E TATO

poema de pele e tato


barulho sem jeito de toque
quando encosto em seu braço
pressa
chama acesa

poema de arrepio
na espera e presença
quando é quente e é frio
quando é quase surpresa
desvio
bar, ato e hotel

quando é palavra
e é história
vento forte, fogo, lava
explosão e arrepio
conto oculto, acaso
e memória

quando molha feito chuva


quando a lembrança sorve e sopra e suga
seu gosto

poema de vontade
de você,
de um beijo, de seu rosto

poema (meio óbvio)


de saudade.

*
POESIA DE RUA

Deixo aqui essa poesia de rua,


escrita ao longo do meio fio,
que grita, incomoda, fede, sua,
que me faz mal, que me faz feia,
de que não gosto e desconfio que mais ninguém leia.

Poesia que corre a céu aberto, feito esgoto,


em estrofes mal cheirosas, sujas, infectadas
de consciência, mentira e desgosto.
Vaidade e tolice que rimam e que disperso
nos vãos e buracos do asfalto, em semente e verso.

Claudia Baeta Leal – Paulistana acolhida no Rio de Janeiro, historiadora, professora,


servidora pública e poeta sempre que posso. Autora de Itinerário: ida e volta (Letramento,
2019) e de poemas publicados em Alagunas (2018), 7faces (2020), Urro! - Contragolpe
cultural (2020), Caderno de Poesias #1 do Urro! (2021), Subversa - Literatura Luso-
Brasileira (2021), Fruta Bruta (2022) e Revista Toró (2023).
Crio tecnologias com a boca

uma mulher carregando no ventre um caixão de uma tonelada levantou voo nesta
madrugada

um menino correndo na rua atrás de uma bola também desafiou as leis da física

ela que não aprendeu a ler, me ensinou a escrever poesia

e se eu esquecer, eu nem sei mais o que fazer

eles não queriam que eu viesse, mãe

e eu sou poeta

crio tecnologias com a boca, pois preciso lembrar de cada animal em extinção nesse
país, em que todo mundo sonha em ter um pai

nós não somos iguais e graças a deus

um movimento contínuo para queimada de sutiãs nunca me disse tantas coisas assim

desde então, eu era mordaça com folhas de flandres

de onde eu vim, águas passadas movem moinhos


não esqueço das que vieram e abriram caminhos

ketu, nagô, gege, bantu

não quero sua cor, sua cultura, sua lida

não quero seu espaço, sua crença, sua língua

nós não somos iguais e graças a deus

os reconheço pelo cheiro de quem desde o primeiro banho, nunca mais parou de feder

quem tem punho cerrado que erga

eu escrevo para todas aquelas que virão depois de mim


Antecedentes

não me convence de coisa alguma

quem diz que um corpo precisa passar por entre facas

para assim aprender sobre algo

não existe esse que saia ileso de campos de concentração

guerras não foram feitas para ensinar nada

sangues não podem ser tintas sobre telas

balas mesmo que de borracha deixam cicatrizes

o que antecede é a única fórmula mutável

mas ninguém está interessado nas lágrimas


Isidório

Isidório tem dentes grandes e olhos do mesmo tamanho

aprendeu a sorrir com os dois porque não gosta de perder tempo

é menino e homem para não cometer desperdícios

faz questão de manter o seu avô vivo e por isso, todas as vezes não mente

Isidório dorme de olhos abertos para não roubarem seus sonhos

raciocínio rápido e lógico, filosofia e matemática

daqueles que reprovam em cada matéria e ainda assim conseguem levantar uma casa
com as próprias mãos

Isidório lê livros sem se atentar ao nome do autor e sua origem

se contenta com fios de roupas amarrados em seu copo para assim guardar lembranças

entrega coisas e mesmo que não te devolvam, ele repete o ato

pois antes de entender, tem preferência pelo sentido

Isidório escreve sempre com letras bonitas e enfileiradas, sem caderno de caligrafias ou
réguas

se na mercearia falta uma moeda, logo volta para nada mais faltar

não repete as mesmas palavras, para ele só uma vez basta

Isidório sempre esquece de tirar o ferro que liga a articulação de um dos seus ombros

por isso só se deita de um lado da cama

velocidade e precaução, tudo ao mesmo tempo

50 por cento de uma coisa e 50 por cento de outra

o equilíbrio entre os motivos pelo qual acumula diversas histórias marcadas no corpo

Isidório ama como quem se ama o reino dos bichos e dos animais

não lembro da última vez em que ele falou o meu nome

tem preferência por me chamar de um jeito que só ele pode

odeia que roubem suas ideias, mesmo as mais óbvias como a cor de nossa pele
Quando não se provoca barulho algum

possivelmente eu dou risada de quem prefere as palavras que nunca li

procuro sinônimos para não repeti-las

contrario alguma coisa da minha própria cabeça

eu disse: pedro, já pensou se você gaguejar?

o meu tio tentou enfiar a língua na minha garganta

eu fui correndo contar ao meu pai

ele não fez nada

e eu nunca imaginei pedro gaguejando

dia desses dei de chorar como tem sido desde o primeiro contra-ataque

inoperante

quando não se provoca barulho algum

ninguém manda aceitar porque dói menos mas no final de até agora

nunca mais parou de doer

e ainda assim, mesmo sem querer, eu insisto em dizer as mesmas palavras

falar sobre tangerinas ao invés da história que todos esperam que eu conte

falar de novo, repetir até me sentir calma demais e exatamente por isso cansar

quase como acreditar em movimentos contínuos

quase como pertencer a uma vanguarda de qualquer coisa

quase como meninas brancas plantando bananeira sem calcinha

o meu medo da raiva nunca me protegeu de nada


Versos também são escritos dentro do ônibus

veja, como escrevo feito quem tem pressa de voltar

nunca quis nada que não fosse tão ligeiro

não me peça para ter calma

não me peça para seguir as suas normas poéticas

a verdade é que isso nunca me interessou

lembrei de um outro homem

falando sobre esse negócio não pertencer a um tipo especial de pessoa

mas a minha mãe não sabe ler

e os homens não sabem de quase nada

pois foi o que faltou nas aulas de português

pois foi o que não falou aquele professor que nos pedia silêncio o tempo inteiro

eu odeio a calma, o silêncio e o capítulo do livro que traz um texto sobre o exílio no
beleléu daquele

cantor de merda que distribui flores

versos também são escritos dentro do ônibus

um poema não é só como quem começa e mesmo perdendo consegue lembrar de


alguma parte

não se pode falar de amor de um outro jeito

mas os meninos brancos esqueceram

não ouço o canto dos pássaros

não vejo árvores bonitas

não me banho em mares tão azuis

e é exatamente por isso

que eu também sou poeta


Pedra

aprendi que o tempo de preenchimento sanguíneo em um absorvente


diana será o mesmo para cada uma de nós em dias de sexta-feira
aprendi a odiar poemas com palavras como celas e pessoas ilustrando conquistas
históricas

aprendi a lamber os seus dentes e depositar o seu gosto em minha gengiva durante exata
uma semana
aprendi a confeccionar cotonetes com o laço de minha calcinha

dessa vez

e talvez a mais longa,

isso não é

sobre a quantidade de tempo que leva para uma carne ficar cor verde

ou sobre como dipironas são o suficiente para curar o estrago da cor verde de uma carne

muito menos sobre como vai de mal a pior um congresso defendendo projetos de leis
que consideram o nosso amor, regalia

ainda escrevo como quem se escolhe palavras pela boca

ainda escrevo com uma multidão de mulheres me atravessando os olhos

ainda escrevo me sentindo galo em uma rinha

no meio do caminho havia uma pedra

e nós

fizemos amor em cima dela


Descarte de escravos no mar mudou o hábito dos tubarões

Escrevo para criar outras imagens de você deitado

Para fazer com as próprias mãos justiça

E lembrar que aqui não se pode temer, nem se pode esquecer

Descarte de escravos no mar mudou o hábito dos tubarões

Meu amor, não esqueça de não acordar com uma bala perdida nas costas

Eu tenho pressa de voltar, de percorrer na cabeça o caminho de casa

Se a periferia é extensão de quilombo, o futuro só pode ser ancestral

Estamos à beira do precipício que é sonhar

Mas ter medo de acordar, nunca foi uma opção para olhos como os nossos

Minha boca aberta é arma

É reparação histórica

É contar a verdadeira história por eles mal contada

Como o amor para quem teve seus filhos arrancados dos braços

Para quem presenciou seus companheiros apanhando sem razão

Branco até aguenta preto resistindo

Mas nunca revidando

É inadmissível que todas as dores do mundo

Seja a única coisa que eu possa falar

Blenda Santos é poeta, produtora cultural e foi a primeira representante de Sergipe no


Slam BR - Campeonato Brasileiro de Poesia Falada. Nascida e criada no Santos Dumont,
bairro periférico de Aracaju, capital de Sergipe, iniciou o seu trabalho com a literatura em
2016 e desde então circula por diversos espaços, utilizando a união da poesia falada e da
performance corporal como ferramenta de reconstrução das narrativas do povo preto e
periférico. Produz o CPP - Circuito de Poesia Preta, faz parte do Coletivo Entre Becos, é
slammaster do Slam Entre Guettos e do Slam Sergipe – Campeonato Estadual de Poesia
Falada.
O sonho de São João

O último dos profetas,


segura a tocha
e acende a fogueira,
que ilumina o sonho,
e com ele prepara o caminho
de mil estrelas crepitantes,
para se guiar na noite mais escura.
Cria trilhas através dos desertos
Enfrenta a aridez dos povos e da alma,
para encontrar uma terra nova
onde a solidariedade possa florescer.

Origens

Na casa de minha vó,


que era de uma linhagem de filhas da terra,
durante a época da colheita e das chuvas, era festança,
gerações de lavradoras cultivavam, ralavam, e moíam o milho em pilão,
mesmo sem se lembrar das línguas antigas,
que guardavam consigo as raízes do milho.

Mas os milharais ainda se lembram,


de seu pai Ceontl e sua Mama Sara,
que nos Andes enchia os grãos de sagrada paixão,
e dava às espigas o dom de nutrir as almas e corpos famintos.

Os milharais ainda se lembram,


das viagens pelas montanhas, matas e pela kaatinga.

Milho é andarilho que vagou com ajuda das palavras


dos diversos povos, que conversavam,
trocavam línguas, trocavam espigas,
trocavam enfim, sementes frutíferas.
E a comunicação dera origem a novos frutos,
novos corpos, novas línguas,
e os milharais ganharam
a forma da riqueza infinita.

Larissa C. G. Oliveira nasceu em Campina Grande, na Paraíba, Brasil. Gosta de sonhar


e escrever histórias desde que se entende por gente. Para respirar nesse mundo precisa de
uma boa dose de poesia, e o antídoto consegue fazer, como um alquimista, através da arte.
BEIJOS DE ABRACADABRA – POEMAS AUTOMÁTICOS BILÍNGUES
ANNA APOLINÁRIO

HOLOGRAMA XAMÂNICO

Um milagre após outro,


O vento dilacera o tempo
Os arquipélagos golfam sangue
Minha voz abre redemoinhos de mel
No enxame mundano
As máscaras de Circe
Brilham no centro da floresta
A noite reverdece suada de seus músculos
Mil ventres suspiram beijos de abracadabra

BÓREAS

As cadeiras voam por toda a sala


Os pontos cardeais da eternidade respiram
Através de minha plumagem mágica
Mesas mastigam os ponteiros dos relógios
Sombras atiram destinos pelas janelas
Minhas garras gotejam tempo

Beijos de Abracadabra é uma série de 25 poemas automáticos escritos no tempo limite


de 5 minutos, durante 5 noites em 2021, ainda em contexto pandêmico. Uma aventura
criativa regida pela escrita automática, método essencialmente advindo do surrealismo,
genuína dinamite imagética, arsenal capaz de erguer céus ofuscantes, descortinando o sal
cintilante de cada palavra, o sol deslumbrante de cada sílaba, o indelével encanto em cada
poema.

O brilho hipnótico dos versos se expande ao espanhol pela tradução do poeta, ensaísta,
tradutor e editor Floriano Martins. O livro será publicado pela Editora Triluna, a arte de
capa é de autoria de Aline Cardoso, poeta, editora idealizadora e responsável pela Triluna.

Poemário mágico e experimental, teia imagética alimentada pela adrenalina de um ritmo


visceral e alucinante, Beijos de Abracadabra é apimentado pelo fluxo incessante de
delírios lúcidos.

Os versos trovejam nas mãos da poeta, rutilam o tempo inteiro em seus lábios, alterando
o ritmo da respiração, erguendo fogueiras nos olhos, numa potência energética
indescritível. Um redemoinho vertiginoso, voltagem de uma voz que levita
freneticamente e arquiteta a revolução dos sentidos, criação inaudita de reinos
desvairadamente sensíveis.

SOBRE A CAMPANHA:

A campanha de financiamento do livro está aberta até dia 11 de julho no site:


https://benfeitoria.com/projeto/beijosdeabracadabra, com diferentes faixas de apoio:

LIVRO FÍSICO – R$40,00

LAMBES – R$10,00

PRINT DA CAPA DO LIVRO – R$20,00

Apoie, colabore, espalhe! Assim fortalecemos a autoria feminina e o trabalho de editoras


independentes!

Anna Apolinário (João Pessoa - PB, 1986) Escritora e poeta, pedagoga, Mestranda em
Letras (PPGL/UFPB), produtora cultural independente, organizadora do Sarau
Selváticas, fundadora da Cia Quimera – Teatro e Poesia, publicou os livros Solfejo de
Eros (CBJE, 2010), Mistrais (Prêmio Literário Augusto dos Anjos, Funesc 2014),
Zarabatana (Patuá, 2016), A chave selvagem do sonho (Triluna, 2020).
1789 DUTY FREE

O Partido da Guilhotina exige três coisas:

a) não ser partido;

b) uma guilhotina;

c) um convite irrecusável:

“(...) tirar peso de cima dos ombros da Faria Lima,

é tirar peso de cima das costas do país”

Diretor de Política Monetária

Banco Central do Brasil

I. A Revolução Francesa precisou de menos de uma XP

[Investimentos para acontecer]

II. 2018 mostrou até onde a Faria Lima é capaz de ir: 1964,

[quiçá 1933]

III. Se a Faria Lima perdeu a cabeça, é preciso responder

[com elegância, à francesa]


WARHOL

today t amo

tomorrow tchau

testoste-trip, te app:

let’m top’té o talo

t’áfim?
POEMA SUJO

Saudade é o amor que fica no vão

de quem foi embora. Tesão é

homenagem vascular ao corpo de

quem merece. Vontade de vomitar,

sem a ânsia certa pra se desfazer, é

timidez de te ligar, matar seu ex

que há em mim. Tesão passa com

uma punheta. Amor tranquilo

como uma poça, no vão do piso

que não se limpa: vai ficando.

Felipe Eduardo Lázaro Braga (1989) nasceu em Osasco, na região metropolitana de


São Paulo. Filósofo, cursa pós-graduação na Universidade de São Paulo (USP) no
programa de Sociologia. Escreve sobre arte urbana, política e matemática, e já publicou
textos* em revistas literárias (Pixé, SubVersa, Desenredos), portais de política
(Justificando, Caos Filosófico, Revista Híbrida, Money Times, Público), antologias
(OFF-Flip) e jornais impressos (O Estado de São Paulo). Em 2010, quando tinha 20 anos,
foi a Brasília assistir a posse da primeira mulher presidente do Brasil.
Seguir a estrada dos quereres

Seus quereres a movem num mundo moldado para dilacerar desejos. Não compreende
bem a realidade. Se pergunta se, em algum momento, vai se sentir um pouco mais
adaptada. Às vezes desejava que a estrada fosse um pouco menos tortuosa.

Olha desatenta pela janela do ônibus, as folhas das árvores secas no inverno. Na parada
em um posto de gasolina, pegou a mochila e saiu andando. O motorista gritou, vamo ficar
aqui só quinze minutos, tá, moça? Ela se virou, mas não soube como responder. Seguiu
pela rodovia, conhecia bem todo aquele trecho. Avistou a estrada de terra, e virou à
direita, na direção de um córrego que sabia encontrar pelo caminho.

Depois de duas horas de caminhada no sol da tarde, chegou ao poço. Cansada, atordoada
na melancolia, sentou na terra e começou a descascar a mexerica que tinha mochila. Não
tá fácil, dizia pra si mesma.

Sabia que se fechava em um casulo, e ali dentro não cabia mais ninguém. Não que ouvisse
muitos sons de batidas na porta. Andando em círculos, tentando se manter no bando. Mas
sempre acabava se desviando.

Cambaleava em ritmo próprio. Abraçava a beleza da incerteza, segue, tropeça,


desequilibra. Da costura que ia fazendo da própria vida, percebia quase todos os fios se
soltando, frouxos, e a estrutura do tecido se perdendo.

Sugava com vitalidade tudo o que podia, e ainda assim sentia sede. Sede do frio na
espinha, do arrepio na nuca, do inédito apaixonar. Feita de amor, mesmo que não tenha
experimentado certas variantes dele. Criou com régua e compasso os espaços para
compartilhar esse afeto. Folha quase transparente, rabiscos desencontrados. Porém, nunca
ouviu um eu te amo de quem havia deitado ao seu lado na cama.

Sentia falta da intimidade compartilhada, da coragem para ser vulnerável. De chegarem


em casa abrindo o armário de copos, servindo café na caneca meio quebrada. De se
achegar dando um cheiro em lugares improváveis. Da perna sobre perna.

Tira toda a roupa, se joga na água gelada, que vai se aderindo ao corpo nu, e se mantém
ali, inerte, admitindo as leves ondas que parecem estar ali só para confirmar o desígnio
de Heráclito.

Nesse modificar do rio, ela também se sentia atravessada, a água parece expandi-la, como
toques suaves que a abrem para um inacabamento, fronteiras não delineadas.

Olhando de fora, quase não se percebe esse movimento, a não ser dentro de si. O casulo
vai aos poucos sendo rompido, perplexo com a claridade do mundo, excitado com os tons
do desabrochar mundano.

Noite de lua cheia, corpo tá mais vivo. Música adentra como cheiro de terra molhada.
Anda pela rua balançando os braços como quem dança, conhece os contornos de sua
liberdade, vento no rosto. Quase sempre distraída, mas aberta pro encanto.

A mão que toca o cabelo cria aconchego cúmplice. A risada que corta o ar, caminho
interrompido. Não ensaiou pra essa cena, saberá se comportar? Vai no improviso, volta
outra, em si mesma.

Isabela Lemos, tem 30 anos, é professora de história em Belo Horizonte. Defensora


intransigente da educação pública. Interiorana que fica meio lá meio cá, um pé no mato,
um pé no asfalto. Escreve para criar outros mundos que também sejam seus, e pra
entender aquele onde vive.
*

Ele fechou os olhos e focou nos sons. E o que sentiu mesmo foi o cheiro. Não de mato.
O cheiro da memória. Ali, o de maconha. Durante muitas tardes, ainda adolescente, subiu
a serra para fumar acompanhado de amigos com os quais perdeu o contato. Foi ali também
que mencionou pela primeira vez com Ivana sobre se casarem. Nada planejado. Apenas
saiu. E teve a certeza de que era um caminho sem volta, estariam para sempre
interlaçados.

Sentia saudades da pessoa que fora um dia, porém não se lamentaria, não naquele
momento. Impediria que a melancolia borrasse suas lembranças. Não era mais o cara
amargurado de ontem. Agora, podia pegar seu carro e subir a serra com uma desconhecida
apenas para sentir a brisa, olhar a paisagem e comer algo gostoso durante a semana. Tinha,
depois de anos, a possibilidade de se reinventar.

Parou um pouco com seus devaneios e olhou para o lado. Joana estava de olhos fechados,
de certo sentindo a brisa trazer alguma lembrança, igual aconteceu com ele. Queria que
ela também pudesse se reinventar, deixando de ser a mulher sem graça e medrosa que
demonstrava. Todo mundo deveria ter esse direito. Apostava que por trás do rabo de
cavalo frouxo dela havia uma mulher solta e firme.

Hugo Bessa (@hugobessaescritor) nasceu em Volta Redonda (RJ), mas foi em Cruzeiro
(SP), onde cresceu e vive hoje, que descobriu sua paixão pelas histórias. É jornalista,
especialista em Língua Portuguesa, e atua na produção de conteúdo para comunicação
empresarial. Como escritor, já publicou os livros “Em Um Lugar Melhor” e “Todas as
Cores da Vida” e recentemente lançou “Por um momento, um dia, uma vida ou sei lá o
quê…” pela editora Penalux.
VERSEJADOR

Seja verso e inverso


quem tu és e podes ser
Ou mesmo diverso,
sujeito a embaraço e nó
Converse com os que versam
a resolver
Controverso ou adverso,
mas não estarás só

(Di)versifique-se e nisso fique


se quiser
Seja livre em todo o teu ser
diferente
Incontroverso a cada
e onde houver
Vence e vais olhar
o caminho para frente

Fazes teu caminho sem medo,


um sonho utópico
Reverse a rever o teu jeito de viver
para mudar
A fim de ser
transverso, extroverso, enigmático
Um versejador
adverso e fadado a incomodar
A VIDA É MUITO CURTA

A vida
é muito curta
Para não vivê-la
intensamente
Para estar
como quem mente
E ser
uma pessoa fajuta

A vida é muito curta,


querido
Para não amar
com liberdade
Com respeito
e igualdade
E deixar o coração
Ferido

A vida é muito curta,


gente
Para não querermos
o bem do outro
A despeito
do desgosto
De quem não deseja
igualmente

A vida é muito curta,


amor
Pra perder
meu precioso tempo
Em momentos
de lamento
E não enfrentar
minha dor

A vida é muito curta,


linda
Para você não olhar
pra mim
Quando faço tudo
por ti
E não me quererdes
ainda

A vida é muito curta,


eu
Para serdes
tão medroso
Sendo que um espírito
corajoso
Guarda
o interior teu

Leandro de Sousa Almeida é nascido em Sumé-PB. Doutorando pelo Programa de Pós-


Graduação em Literatura e Interculturalidade da Universidade Estadual da Paraíba.
Membro da Academia Internacional de Literatura Brasileira no Registro 0831.
Coordenador da comunidade leiautora do projeto "Desacelere-se" de empreendedorismo
psicoartístico-sociocultural. Colabora como escritor em coletâneas literárias do Projeto
Apparere da Editora PerSe. Professor de Linguagens e Códigos na Secretaria de Educação
da Prefeitura Municipal de Sumé-PB e Diretor da Biblioteca Pública Municipal no Centro
de Formação de Professores de Sumé-PB. Entre suas obras estão a novela Munluzes - O
Mistério da Salvadora (Amazon, 2021) e o cordel dramatúrgico Almas Livres à coletânea
Inês&Nós: Trinta e Uma Novas Histórias de Inês de Castro (EDUEPB, 2022).
Da pertença

quando nasci
o amor garantiu
que fôssemos eu e a realidade
uma coisa só
permitiu
que criasse o mundo
abrigasse tudo
a sorte de pedir e ter

quando descobri que não sou deus


e que nada me deve a vida
eu caí em mim
e aquele amor primeiro
me livrou da queda infinita

o destino do colo é virar chão


o destino do homem é abrigar outro homem:
bicho apanhador de horizonte entre
uma queda e outra

A terceira realidade [trecho]

(...)

da costela do impossível o poema nasce


e o verbo que não se faz carne
também habita e ronda os azuis
entre o que é e o que não pode ser
há uma terceira realidade
pois é dela que eu vivo
e inauguro a manhã
Ressureição

mesmo que tenham desligado


aquelas máquinas
interrompendo bruscamente o sol
que nunca mais vai nascer
em seus olhos
ainda que esteja agora
o mundo
vagando sem utilidade
por não mais conseguir entrar
pelos seus poros
e diante de todo horror
que me anuncia
a noite sem clemência
ao me aproximar
ternamente
do seu corpo
apanhei seus sonhos
quentes ainda
respirando na minha mão

Marcela Alves (@amarcelaescreve) nasceu em 1991, em Divinópolis, MG. É psicóloga


formada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), especialista em psicologia
da saúde e atua na prática clínica. Escreve desde a infância. “Da costela do impossível”
(Urutau) é seu primeiro livro.
Em algum lugar…

nas profundezas da terra, não muito distante das raízes

cuja planta cresce, dá frutos, sombra e voz ao vento

em que a imaginação corre solta à procura de uma esperança

mitológica, além do uso da espada e do fogo, da pintura e da escrita

em que a terra é do tamanho de nosso polegar onde somos formigas

aglomeradas pela disputa por poder, justiça, avanços e retrocessos

registramos através da oralidade, da pena, da caneta, do teclado, do software,

nossas histórias, estórias, ideias, avanços, retrocessos, pesquisas e descobertas

ultrapassamos nosso limite, nossa matéria, reinventamos a música, investigamos

o espaço e nos conduzimos ao abismo da matéria que se esvai e do planeta que sofre

[e
desintegra

Géssica Menino, mãe do Christopher, poeta e escritora. Autora de contos e de inúmeros


poemas publicados em revistas e pela Editora Toma Aí Um Poema (TAUP), assim como,
autora do livro de contos As laranjas de Alice Mazela, vencedor na Categoria “Capa” do
Primeiro Prêmio Candango de Literatura. Autora de vários poemas da Cemana de 22
(Revista Literária em comemoração ao centenário da Semana de Arte Moderna), podendo
ser acessada em: https://www.cemanade22.com/.
NAUFRÁGIO

Quando o amor naufraga


as ondas repetem: "Nunca mais"

a jovem poetisa percebe


que a Poesia se espalha
no céu, no mar
e nas frias gotas de água
de intensos maremotos
e sentimentos rotos
que atravessam os olhos
e se transformam em lágrimas.

EGO&MANIA

o som de um tambor
quebra a monotonia da manhã

o ego
assustado
precisa de um afago

o som do tambor revela


que o ego é um troglodita mimado
quer ser alimentado
sem descanso

o ego precisa do elogio demorado


do aplauso
exige carinho
quer ser notado
quer se impor
como o som de um tambor
a palavra que o guia é autossatisfação

o ego nasceu rei - um leão mimado


ele quer ser amado
mas nunca pensa em amar
nem em compreender
nem em valorizar
aqueles que estão a seu lado.

BELEZA OCULTA

para sobreviver à crítica


e ao fogo dos dragões
o poema
esconde
a sua essência
e não revela
que nadou
no oceano
do nada
procurando
ecoar a sonoridade do silêncio.

SEM ARMADURAS

Jogar as armaduras e olhar o outro com ternura


- sem preconceitos
sem a miragem do controle

o mundo precisa
de inofensividade e de cordura
o mundo precisa
de gente que caminhe pela rua
com a alma nua

gente capaz de sentir o sabor doce, amargo,


salgado, azedo, umami
magnânimo ou perverso
de cada gesto
de cada palavra
e de cada verso.

SOBRE O SER DE PARMÊNIDES

pensamentos são guarda-chuvas


agitados pelos ventos
voam em dias de chuva
voam em dias cinzentos

a mente é a criadora
da ilusão do movimento

para Parmênides, o Ser


é eterna e imutável quietude
a mudança é fruto da aparência
mas no seu âmago, na sua essência
o Ser é único é imóvel.
UM LAR PARA OS MORTOS

É noite na alma
e Sarah navega sobre o mar profundo
de dúvidas e culpas

sua alma volta os olhos para o próprio rosto


ela pensa que a morte é um exílio involuntário
no qual as almas refletem as armas Winchester

Sarah ouve os gritos de mortos e feridos


e um médium sustenta que o único auxílio
está estruturado na esfera do bem realizado

para esses espíritos sem luz, derrotados


Sarah oferece uma casa: a mansão Winchester.

MAGNUM OPUS

O poeta faz acrobacias nos trapézios de arqueológicos alfabetos


coloca emoções ideias palavras afetos conceitos
no alambique do coração
constrói um atanor de versos na cabeça
reinventa rimas
estuda fórmulas antigas da alquimia
mergulha na subjetividade para escrever e para sobreviver

todos os poetas
(admirados – portentosos – ignorados ou desprezados)
todos os poetas fazem parte de uma espécie de seres muito estranhos
poetas sãos seres mutilados
pois para realizar a Magna Obra
não é suficiente poetizar oceanos
nem perseguir os voos dos urubus
nem misturar o sal o mercúrio e o enxofre
nem dançar entre as plantas de bambu
é necessário devastar o próprio coração desamparado
com o poder do veneno da cobra real
reerguer-se das sombras do mundo astral
e nutrir-se do coração do nada

o poeta precisa socavar o próprio coração


(mantendo o oceano do amor inalterado)
para realizar a Obra Magna.

Isabel Furini é escritora, poeta e palestrante. Autora de 35 livros, entre eles, Os corvos
de Van Gogh (poemas). É criadora do Projeto Poetizar o Mundo; recebeu Comenda
Ordem de Figueiró, no Rio de Janeiro; foi nomeada Embaixadora da Palavra pela
Fundação César Egido Serrano (Espanha, 2017); Seus poemas foram premiados no
Brasil, Espanha e Portugal, Palestrou sobre a arte de escrever em diversas Férias do Livro.
SELEÇÃO DE TEXTOS DE "BANZO E AFETOS", DE TEREZINHA
MALAQUIAS

Amor

Coração
Não
Dói.
Sangra
Quando
Não
Ama.
Quando
O
Amor
Chega
Ele
Atravessa
Sem
Sangrar
Ar

O sangue não derrama mais


Dos corpos pretos
A bala
Mata
A faca
Fere, rasga, apaga
Sem nos atingir
Os joelhos dobram
Só para rezar
Só para clamar
Nunca, nunca, para matar
A criança não fica sozinha
Nas ruas, casas, elevadores
Mãe e pai
Que perdeu filhas e filhos
Sejam envolvidos em luz
Justiça
Para todas essas vidas
Que não respiram mais
Ar.
(Para George Floyd)
Vou jogar os quilos extras ao vento

No primeiro Natal sem meu pai, minha mãe teve


a ideia de convidar todas as irmãs dele e as sobrinhas
e sobrinhos para o nosso triste almoço de Natal. Fazia
apenas um mês e dois dias que meu pai havia falecido.
De sobremesa, minha saudosa tia Maria e eu tomamos
um quilo de sorvete, na tentativa de adoçar a dor que
gritava em nós.
No mesmo dia, 25 de dezembro de 2003, viajei,
por volta das 18h, de São Paulo, onde morava, até Águas
da Prata, em Minas Gerais. Na manhã seguinte, come-
cei a fazer o Caminho da Fé, que termina na Basílica
de Nossa Senhora Aparecida, no estado de São Paulo.
Foi extraordinário caminhar; a sensação que eu sentia
era indescritível, um passo após o outro. Fui com meu
grupo, passando por sítios, fazendas, vilarejos e cidades.
Mesmo sem ter me preparado antes, consegui caminhar
sem dificuldade alguma. Mal acreditava que caminha-
va, passo a passo, rumo ao destino esperado.
Na Basílica, participei da missa dos peregrinos,
junto com meus companheiros de andanças, depois
de telefonar para minha mãe. Pedi também para que o
Eduardo e o Custódio falassem com ela. Eu chorava o
tempo todo, tamanha era a emoção por ter conseguido
completar o percurso. Todos os dias eu sentia a presença
do meu pai, que era um homem do campo, como se ele
caminhasse ao meu lado. Foram treze dias de jornada
que fortaleceram muito o meu interior. Amo caminhar
em grupo, mas amo ainda mais caminhar comigo mes-
ma. Em silêncio, com meditação e oração, do meu jei-
to, contemplando as matas, o cântico dos pássaros, os
animais em meio à natureza, admirando o nascer e o
pôr do sol... à minha maneira.
Depois que voltei para casa, fui com minha mãe,
dona Ozita, e minha irmã Célia para um SPA na região
de Itu, interior de São Paulo. Já na entrada da recepção
optei por comer apenas 600 calorias por dia, fazer ginás-
tica na academia e caminhar. Nas horas vagas, ainda ia
para a hidroginástica. No terceiro dia entendi que preci-
sava comer mais, meu corpo necessitava de mais calorias.
Quando fui tomar o café da manhã, pedi para mudar mi-
nha dieta para 900 calorias diárias. Nem tive paciência
ou vontade de esperar a nutricionista chegar para receber
um novo cardápio. Estava realmente faminta.
Nesse mesmo dia, as meninas da minha família
que me acompanhavam resolveram me surpreender;
elas saíram de carro para conhecer a cidade, mas não
fui com elas. Na volta, minha irmã e minha mãe me
ofereceram docinhos de leite enrolados na palha. Cé-
lia apareceu com um saquinho de doces e uma carinha
de criança arteira, perguntando-me se eu queria experi-
mentá-los; respondi que não. Eu estava esforçando-me
tanto para jogar fora alguns quilos extras e não aceitaria
comer “porcarias doces”, perdendo todo o meu traba-
lho suado nas atividades físicas. Cá entre nós, confesso
que sentia muita vontade de dar umas boas palmadas no
bumbum da Célia. Bom, ela estava merecendo.
Vinte anos depois, eu lembro-me desses dias e dos
docinhos de leite enrolados na palha e quase arrepen-
do-me de não tê-los comido. Perdi a chance de saborear
aquelas delícias ao lado de duas mulheres que são refe-
rências na minha vida. O que eu sei hoje é que, na pró-
xima vez que alguém me oferecer delícias em forma de
comida, vou comer em homenagem à vida. E os quilos
extras, eu vou jogá-los ao vento.

Terezinha Malaquias (@terezinhamalaquias) vive em Freiburg, na Alemanha, desde


2008. É artista da palavra. Terezinha escreve, compõe, trabalha com vídeo e com
performance, transitando com leveza entre as mais diferentes linguagens da arte,
explorando temas como: ancestralidade, memória, afeto, silêncio, contemplação, racismo,
mulheres e violência. É autora de oito livros, escrevendo tanto para o público infantil
quanto para adultos. Trabalha em uma das galerias do centro cultural E-werk Freiburg.
Mantém o canal do YouTube - TereMalaquias - onde divulga suas experimentações
artísticas
Vida bucólica: pelos prados

Onde estais fagueira mocinha


Que caminhos trilhais sozinha
Sobre a ravina destes prados
Sob esse céu de glaucas cores?

Que formoso torrão teus passos


De leda deidade tocam
Que terras te abrigam
Que astros antojas nos céus?

Será, que sobre a abóboda


Teu corpo despido adeja
Como fulgente fada?

Será que o céu e as estrelas


Ensejam tuas formosuras
E a ti somente fulguram?

II

Quantas tardes procurei tua fronte,


Embalde ação que me deixou dolente,
Debalde encontrei as vestes
Cor de carmesim que usastes,

No dia em que me abastonastes,


Sem me permitir ver teu semblante
Teus olhos anis de diamantes,
Para nas veigas caminhar somente.

E sobre essas tuas pulcras vestes,


O eflúvio sinto do teu corpo casto
Que fluiu rumo as belezas agrestes,

Desses campos de tantas verduras,


Desses prados que teu corpo vela,
Dessas terras que me são anelas.

III

Sorrias quando eu contemplava


Teus olhos de diáfano luzir
Fugias daquele que buscava
O teu etéreo sorrir.

E ao sorrir ditosa brincavas


E ao brincar me amavas
E ao me amar jocosa enlevavas
Mas tão logo fugias,

E ao fugir me encontravas,
Mas asinha logo singravas
Para tão longe de mim.

E como fada fugidia evadias


Com os seios de fada despidos
Para o vergel de outros campos.

IV

E nesses meus bucólicos campos


Faltam as flores de teus primores,
Faltam os primores de teus cantos,
E o augusto pudor de teus amores.

Musa minha, que prados laureias


Com os ramos de tua castidade,
Que caminhos alcatifa com rosas,
E sobre este deita tua divina mocidade?

Será que sobre meus campos


Ainda resiste teu odorante aroma?
Ou agora enseja outros prados

E sobre outras relvas,


Teu fulvo corpo de musa
Despido sobre flores repousa?

Repousas sobre as relvas


Desses prados tuas graças
Despido sobre os flavos
Frutos desses campos.

Velado sobre os ramos


De figueiras e de flores
Repousas sobre os fulvos
Prados, teus, teus amores!

Mas, ai! Uma aporia toma o peito


Desse impávido cativo teu
Pois quiçá um ser poluto,

Nas trevas a esmo te eiva a flor


Mas espero que com esmero
Os deuses cautos guardem teu pudor.

VI

Musa de áureos amores


Será que te velam bons pastores
Ou quiçá outras deidades
Te logram os pudores?
Pois tuas graças rutilam nas ravinas
Como um translúcido cristal
E por isso, será que sobre o arrozal
Não tramam contra te outras divas?

Será que te velam olhos cautos


Ou algo entumece teu ventre
Com indômitos agouros?

Pois teus rubídios lábios


Ao certo enervam as moças
Que moram nessas campinas.

VII

E nesses pastos estranhos


A esmo teu corpo em flor
Em saltos sobre os ramos
Galga um outro amor.

Um outro candor enlevas


E a mim soturno deixas
Com as flores da saudade
Daquele amor da mocidade,

Quando teu corpo vestal


A mim somente adejava
E por estas ravinas pairava,

Com as espáduas de cristais


Ao silvo do vento despidas
Como as ninfas das matas.

VIII

Pelas vagas soidades


Destes campos teus
Pelas soturnas saudades
Vaga os beijos meus,

Por estes prados


Com o âmago em roto e fel
Em busca dos lábios de mel
Da pudica fada destes campos.

Mas só há saudades
E quantas saudades
Volvem estas ravinas,

Por onde jocosa adejavas


Com o corpo de nume despido
Em idílico amor embebido.

IX

E eu, poeta dos desvarios


Exulto em mim as ilusões somente
Nesse impávido peito que contente
Repousavas teus ebúrneos encantos.

Sou um pastor de face altiva


Mas de desilusões vivo somente
A relembrar teu corpo fulgente
Que por estes prados adejava.

Mas o que fazer se fugistes


Entumecendo estes campos teus
Com acerbas saudades?

Como ser ledo se partistes


Para outros campos que não os meus
Para outros vergéis que não os teus?
X

Ter-te, infanta, é dorido intento


Pois ao amar-te de ti me separo
Ao beijar-te, toco o silvo do vento
Ao suplicar-te não me dás amparo.

E quando antojo tua fronte ditosa


Logo volves p'ra longe de mim
E quando te clamo, formosa!
A esmo olvidas de mim.

Mas por que como vulto foges


Quando fausto singro a ti
Com o ser em ternos amores?

Por que não esbate os clamores


Deste impávido pastor
Que em frêmito roga por teu ardor?

XI

Quisera, flor, pelas vagas frestas da soidade,


Clamar a ti o cândido amor polido,
E ao olhar do teu glauco olhar, deidade:
Beijar os lábios teus que vão sumindo,

Pelos prados estranhos que vais


Partindo, abandonando-me sozinho,
Sobre o obrejo antojar deste caminho,
Relembrando os beijos, ululando ais, ais!

E, em ais, alquebrado antolho os caminhos,


Por onde (asinha) singrastes,
Sozinha, em brandos sonhos.

Partistes, e pelas fragas que galgastes


Silente volvo namorando o abismo;
Que sobre o dorido peito meu deixastes.

XII

Por que, se és dos numes a mais cauta


Olvidas aquele que busca teu semblante
Pelos prados dessa relvosa mata
Pelos campos que te cingem a fronte?

És na abóbada a mais formosa


Que nos astros a fulgir adeja
Como os lábios de uma virgem donosa
Que um divino homem enseja.

Mas tu me matas ao amar-te


Eivando aquele que te proclama
Destoando aquele que te ama.

Matando esse teu cativo


Que ao glauco firmamento
Teu doce nome clama.

XIII

Cantar, quisera novamente


“E amar?” pergunta-me o transeunte
Digo: “Somente a ela”
Somente a minha anela,

Do resto, que rasque-se os véus,


Que dilacere-se os céus,
Que as vagas do oceano, convulso
Bradem sobre o torrão rochoso.

Mas, amar somente a ela


E se um dia amar quiçá
Uma outra que não aquela,

Que de meu malsã pecado


Nasça-se caliginoso abismo
Sobre este peito meu maldito.

XIV

Aos raios do luar enluarado


Num amar tão incólume e profundo
Teus olhos de luzidia fada
Enleavam-se em um cismar velado.

E, sobre o silente véu do mundo


Ao beijar as faces do abismo
Ias lembrando os beijos teus contidos
Nas solidões dos vagos cismos.

Mas superado as solidões do teu frágil peito


Agora vives num cismar tão ledo
Que vais, que vais amando.

E sobre o véu do antigo degredo


Vais com flores laureando
Este amor que tens no impávido peito.

Nalberty Medeiros Santos – Graduado em Filosofia pela Universidade Estadual da


Paraíba (UEPB). Foi bolsista do Programa Residência Pedagógica (2018-2020) e bolsista
do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (2020-2022). Participante do
Núcleo de Estudos e Pesquisas em Filosofia (NEPEFIL/UEPB/CNPQ). E atualmente, é
mestrando no Programa de Pós-Graduação em Literatura e Interculturalidade (PPGLI)
pela Universidade Estadual da Paraíba.
A Mulher Invisível

A primeira vez que a vi, ela ainda estava inteira. É verdade que cobria ao máximo a sua
pele; usava uma blusa de mangas compridas e gola alta que não combinava nem um pouco
com o calor de Teresina. Os seus cabelos escondiam boa parte da sua face. Ela abraçava
a si mesma, os braços pressionados contra o peito, a postura acanhada, os olhos
semicerrados. Os lábios eram uma linha reta. Mas ela estava ali. Completa. O ônibus
parou e ela desceu, tão discreta, que acreditei ser a única passageira que notou sua
presença. Assombração que era.

Demorou algumas semanas para que a visse novamente. Dessa vez, um susto: havia
perdido uma de suas mãos. Não quero que me mal interpretem, sua mão não havia sido
amputada ou algo do tipo, ela apenas havia perdido a sua solidez, como se estivesse se
integrado ao ar — aterrorizante sublimação. Ocasionalmente seus olhos aflitos voltavam-
se para a mão ausente e eu me perguntava: “pode só ela vê-la e angustia-se porque
ninguém mais o faça?”

Depois, passou a andar por aí sem pernas. Era uma visão quase engraçada, um tronco
flutuante, como uma árvore mágica. Ela continuava cabisbaixa, nunca olhava para
ninguém e ninguém além de mim olhava para ela. Uma curiosidade tomou conta de mim.
Quem era ela? Para onde ela ia todos os dias? O que fazia da vida? Notei que nunca havia
ouvido ela falar uma coisa sequer. Me perguntei se sua voz também havia sido tirada dela.
Considerei dizer-lhe ‘olá’ só para vê se ela responderia.

Eu não lhe disse ‘olá’ e ela perdeu a cabeça. Seu pescoço era um pilar sem razão para
existir — arquitetura feita supérflua. E quanto mais ela desaparecia mais ela florescia em
mim. Queria segui-la, queria entendê-la, queria consumir o que restava dela. Não
importava por onde ela andava, eu estava sempre por perto. Mas nunca lhe dirigi uma
palavra. Não tinha coragem. Parecia que existíamos em dois mundos diferentes e eu tinha
medo de abrir a porta que me levaria ao dela. De ser trancada para sempre em seu mundo
insólito.

Um dia, ela sumiu completamente. Nunca soube seu nome, endereço, se tinha alguém em
sua vida. Acredito que não, ou ela estaria aqui, para ser vista. Mas do jeito que as coisas
aconteceram, jamais saberei se desistiu de sair de casa devido ao seu estado ou se vaga
por aí completamente invisível. Em momentos de dor, me perguntei se poderia tê-la
salvado do seu destino. Mas logo me convenci de que não havia nada que eu pudesse ter
feito. Afinal, a ciência é bem clara: não há tratamento para a invisibilidade. Agora, só sei
o que sinto: esse vazio no coração como se ele também estivesse me deixando, virando
um órgão translúcido, rarefeito dentro de mim.

Amanda Parente tem 28 anos e nasceu em Teresina-PI. Formada em Letras-Inglês


(UFPI), é atualmente mestranda em Literatura pela mesma instituição. Apaixonada pela
ficção e escritora nas horas vagas.
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