Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
morte, mas cuja sonoridade fosse de tal forma trabalhada que adquirisse um status
da poética simbolista.
habitual nessa poética é a visão da morte como consolo a uma vida de amargor; a morte
vista como transcendência, o retorno ao Todo original e Absoluto; o único caminho para
Durante muito tempo, [...] a peça Axël, de Villiers de L’Isle-Adam (1839-1889), ficou
conhecida sobretudo como aquela em que o protagonista, a exemplo do próprio autor,
expressa seu desprezo pela existência real, abdicando de viver (“-Viver!, prosseguiu,
Viver? Nossos empregados farão isso por nós”). A legenda dessa renúncia elitista – ao
gosto, é verdade, de um certo decadentismo – serviu providencialmente a Edmund Wilson,
em O Castelo de Axël, como metáfora geral não apenas do Simbolismo mas da própria
literatura, cujas grandes figuras na virada do século XIX para o XX eram justamente
escritores vinculados de maneira direta ou indireta a essa tradição.(SISCAR, 2005, p. 209).
1
É bacharel em Letras pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo (FFLCH-USP), com habilitação em português e em francês. Atualmente, é aluno do curso de
Mestrado do programa de pós-graduação em Literatura Portuguesa da mesma instituição. Tem sua
pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Contato:
bamatangrano@yahoo.com.br.
Na mentalidade de Axël, por conseguinte, não há porque viver; viver é sofrer,
não há, pois, motivos para suportar tal tormento e a solução é a morte. O que vale da
vida é o sonho e o Ideal que jamais deve ser alcançado, posto que seja, justamente, seu
suicidam quando se dão conta de que estão no momento mais feliz e perfeito de suas
vidas e que, portanto, dali em diante só haveria desgosto. A célebre fala de Axël
emblematiza bastante essa questão (citação livre): “Viver? Nossos criados farão isso por
nós”. Esse gosto decadente pela morte se espalhou pelo simbolismo e está presente em
vários do poema de Cruz e Sousa, como em “Música da Morte”, do qual se tratará mais
adiante.
No que diz respeito à música, é importante ter em mente que a poesia simbolista
se pretende, acima de tudo, sugestiva, por isso buscará diferentes formas de fazê-lo, seja
extremamente musical, pois como consideravam a música a mais sugestiva das artes, ao
estreitar relações entre as duas artes, a poesia ganharia maior poder de sugestão. E,
tratando-se de música, é unânime que Verlaine foi aquele que melhor atingiu esse
objetivo; seu célebre verso (que se tornou máxima): “De la musique avant toute chose”,
Chanson d'automne 2
2
VERLAINE, 2007, pp. 72-3. (“Canção de Outono”: “Estes lamentos/ Dos violões lentos/ Do outono/
Enchem minha alma/ De uma onda calma/ De sono.// E soluçando,/ Pálido, quando/ Soa a hora,/ Recordo
todos/ Os dias doudos/ De outrora.// E vou à toa/ No ar mau que voa,/ Que importa?/ Vou pela vida,/
Folha caída/ E morta.” Trad. de G. de Almeida, in VERLAINE, 2009, p. 43).
2
1 Les sanglots longs
Des violons
De l'automne
Tout suffocant
Et blême, quand
Sonne l'heure,
10 Je me souviens
Des jours anciens
Et je pleure
Et je m'en vais
Au vent mauvais
15 Qui m'emporte
Deçà, delà,
Pareil à la
Feuille morte.
francês que, por vezes, ecoou em Cruz e Sousa e Camilo Pessanha. Aqui a morte não se
faz presente de maneira efetiva, mas a melancolia da imagem da folha morta não deixa
“Voz débil que passas”, de Camilo Pessanha, em que essas questões parecem se colocar.
“Música da Morte” toca, já em seu título, nos dois temas aqui escolhidos: a
música e a morte. A morte é tema recorrente e ambíguo, posto que seja vista como fim
3
dos tormentos e retorno ao Todo, mas também como forma de esquecimento, o fim
Música da Morte3
vida e a morte se encontram e o Eu deixa o mundo conhecido de uma vez por todas. A
morte é para ele uma incógnita, cuja resposta receia descobrir, a despeito de se fascinar
A música de que fala o poema é o som que o sujeito poético ouve no momento
em que sua alma deixa seu corpo; não é uma música qualquer e, tampouco, é vulgar; ao
harmonioso, um som que aflige, ao mesmo tempo em que encanta esse Eu ensandecido,
como que ébrio por essa canção de poder encantatório. Marcado por múltiplas
sensações, muitas delas sugeridas pela morte, o Eu se deixa levar pela canção, uma
3
SOUSA, 1995, p. 129.
4
De acordo com a mitologia grega, “Letes” era um dos rios infernais, cujas águas tinham o poder de
levar, a quem dela bebesse, ao esquecimento. (Cf. COMMELIN, 2008, p. 203).
4
Todo o poema acompanha o movimento dessas ondas, “nervosas” e “atrozes”,
música mortal; música esta, de tal forma indescritível, que o poeta recorre à sinestesia
apreender o inefável.
A magnitude dessa música é tamanha que ela tem o poder de privar o sujeito de
suas faculdades mentais, tal como uma droga; ela o alucina, suscita vertigens e delírios
e, por fim, fascina. É, pois, uma morte gloriosa, ao som de tão grandiosa canção. O Eu
sofre, é evidente, mas é um sofrimento permeado pelo prazer e que, por fim, leva o
sujeito a tudo esquecer e a cair num estado letárgico. A esse respeito, comenta Ivone
Daré Rabello:
Nos anos em que Cruz e Sousa criava Faróis e Últimos sonetos, a morte foi se tornando
seu tema dominante na lírica. Em “Música da Morte”, de Faróis, as ondas sonoras que
invadem a subjetividade provocam-lhe atração e repulsa, lucidez e alucinação. A música,
correlato dos paradoxos da sensibilidade, é também a aspiração máxima dessa poética que
deseja entregar-se ao fascínio da dissolução de contornos, nas sinestesias, na acumulação
metafísica e na saturação de signos que se repetem. (RABELLO, 206, p. 59).
Tudo no poema é, como se disse, ambíguo, tal como é a morte e sua música. A
ideia de música da morte pode sugerir ainda a imagem do deus grego Apolo que, a um
só tempo, era o deus da música, da morte repentina e também o deus da perfeição física
que poderia ser lido como metáfora da forma (soneto). Música e morte andam juntos,
portanto, desde a mais antiga das tradições, como se verifica nas palavras de Walter
Friedrich Otto:
5
músico, é o mesmo instituidor da ordem, o conhecedor do justo, do necessário e do
vindouro. (OTTO, 2005, pp. 66 e 68.).
A morte, assim como o deus grego, inspira ao eu-lírico sentimentos
porém dolorosa, com que vem buscá-lo... Apolo é implacável tanto com o arco, quanto
com a lira; ao fim, o efeito é o mesmo e o Eu se sente arrebatado por sua flecha (física
ou sonora).
vida para a morte, mas a passagem é mais sutil, sem grandes aflições, sem sequer
canções. A morte do sujeito poético, aqui, é mais sutil e silenciosa, menos fascinante e,
Se vens, às escuras,
Confiar-me ao ouvido
Não sei que amarguras...
10 Suspiras ou falas?
Por que é o gemido,
O sopro que exalas?
– Passados amores? –
20 Animas-te, dizes
Não sei que terrores...
Fraquinha, deliras.
– Projetos felizes? –
24 Suspiras. Expiras.
5
PESSANHA, 2009, p. 90.
6
Nesse poema quem morre não é o sujeito poético e, sim, seu interlocutor, que
fraco, geme, com sua voz débil. O Eu não sabe o que o deixou assim, é um estrangeiro
que parece de nada saber; contudo, acompanha os últimos momentos desse ser
moribundo que nada faz senão se queixar com sons débeis e fracos.
Ao ouvir seus gemidos, o Eu suspeita que ele esteja pedindo algo, porém, não o
sabe; o ser que agoniza, treme, mescla-se à parede, talvez por sua palidez, em um
verso é “No chão sumir como faz um verme”. O moribundo tenta falar; quer ser
escutado, e, por isso, o eu-lírico aproxima-lhe os ouvidos já tendo em mente que ouvirá
que a criatura tão fraca deixa escapar. Talvez esteja a rezar, conclui o eu-lírico, uma vez
o Eu o indaga duas vezes, mas não chega realmente a saber se o que perguntou era o
que de fato o quase-morto queria saber. O sujeito tenta animá-lo, embora saiba que nada
o privará dos terrores da morte. E a criatura fraquinha delira (é, portanto, uma mulher?):
“Projetos felizes?” – eis suas últimas palavras, pois em seguida expira com um suspiro.
A morta em Camilo Pessanha é mais sutil, é mais silenciosa, nem por isso é
suas últimas palavras, ao contrário da outra que morre alucinada em meio a uma canção
bastante musical, o que lhe proporciona uma cadência de canção bem ritmada, que, uma
vez lidas em voz baixa, talvez pareça emular as falas entrecortadas do moribundo que
murmura rezando.
7
Se o quase-morto do poema de Cruz e Sousa é levado a tudo esquecer, pelo
sublime da situação, não se sabe o que acontece à morta de Camilo Pessanha depois que
expira, já que o poema termina, mas o leitor acompanha todo o seu sofrimento e vê seu
suspiro (aliviado?), pois o sofrimento enfim cessou. Ambos terminam com a sugestão
Numa tentativa de tecer uma conclusão com os fios que ficaram soltos até aqui,
leitura dos poemas “Música da Morte”, de Cruz e Sousa e “Voz débil que passa”, de
passagem, por assim dizer, em dois movimentos distintos: quer seja numa música
funesta e encantatória, quer seja na agonia frágil e emudecida de quem expira com um
Cruz e Sousa ou em Camilo Pessanha, seja na música ou na morte, é apenas uma: o som
do silêncio.
Fontes, 2008.
MURICI, Andrade (org.). Cruz e Sousa: Obra Completa. 1ª ed. atualizada por Alexei
8
PESSANHA, Camilo. Clepsidra. Org. Paulo Franchetti. São Paulo: Ateliê Editorial,
2009.
ADAM, Villiers de. Axël. Trad. Sandra M. Strparo. Curitiba: Ed. da UFPR, 2005.
__________. A voz dos botequins e outros poemas. São Paulo: Hedra, 2009.
RESUMO
O presente trabalho pretende mostrar a importância do tema da morte na conjuntura da
poética simbolista brasileira e portuguesa, ao mesmo tempo em que visa apontar como
este topos se manifestou nas obras dos dois maiores expoentes do movimento simbolista
de língua portuguesa: o brasileiro João da Cruz e Sousa (1861-1898) e o português
Camilo Pessanha (1867-1826). Através da leitura e análise de poemas de ambos os
poetas, espera-se verificar como são produzidas atitudes distintas no que concerne à
morte, atitudes em que se percebe a dúvida e a hesitação, oscilando entre a aceitação
pacífica e a revolta diante do fim certo; entre a crença em uma transcendência e uma
espécie de ceticismo. Além disso, pretende-se discutir os símbolos mais utilizados por
Pessanha e Cruz e Sousa na representação do tema da morte em suas obras poéticas, na
tentativa de mostrar suas semelhanças e diferenças no âmbito de um movimento
melancólico como foi o Simbolismo.