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RÉQUIENS SIMBOLISTAS: MANIFESTAÇÕES DA TÓPICA DA MORTE NA

POESIA DE CRUZ E SOUSA E DE CAMILO PESSANHA

Bruno Anselmi Matangrano1

I. Introdução: sobre a tópica da morte e a musicalidade verlainiana

Na tentativa de unir uma opção estético-formal do movimento simbolista (isto é, a

musicalidade) com uma temática frequente à poética (o tema da morte), pensou-se

ludicamente no título: “Réquiens Simbolistas”, isto é, poemas cuja temática fosse a

morte, mas cuja sonoridade fosse de tal forma trabalhada que adquirisse um status

musical, por assim dizer.

Antes de adentrar propriamente no universo de Cruz e Sousa e de Camilo

Pessanha, parece interessante voltar um pouco às origens dessas questões na conjuntura

da poética simbolista.

No que diz respeito à morte, a partir de um viés schopenhaueriano, o mais

habitual nessa poética é a visão da morte como consolo a uma vida de amargor; a morte

vista como transcendência, o retorno ao Todo original e Absoluto; o único caminho para

a completude. A esse respeito, comenta o estudioso Marcos Siscar, a propósito do livro

Axël, do poeta francês Villiers de L’Isle-Adam:

Durante muito tempo, [...] a peça Axël, de Villiers de L’Isle-Adam (1839-1889), ficou
conhecida sobretudo como aquela em que o protagonista, a exemplo do próprio autor,
expressa seu desprezo pela existência real, abdicando de viver (“-Viver!, prosseguiu,
Viver? Nossos empregados farão isso por nós”). A legenda dessa renúncia elitista – ao
gosto, é verdade, de um certo decadentismo – serviu providencialmente a Edmund Wilson,
em O Castelo de Axël, como metáfora geral não apenas do Simbolismo mas da própria
literatura, cujas grandes figuras na virada do século XIX para o XX eram justamente
escritores vinculados de maneira direta ou indireta a essa tradição.(SISCAR, 2005, p. 209).

1
É bacharel em Letras pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo (FFLCH-USP), com habilitação em português e em francês. Atualmente, é aluno do curso de
Mestrado do programa de pós-graduação em Literatura Portuguesa da mesma instituição. Tem sua
pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Contato:
bamatangrano@yahoo.com.br.
Na mentalidade de Axël, por conseguinte, não há porque viver; viver é sofrer,

não há, pois, motivos para suportar tal tormento e a solução é a morte. O que vale da

vida é o sonho e o Ideal que jamais deve ser alcançado, posto que seja, justamente, seu

status inatingível o que o torna desejável. Em Axël, as duas personagens principais se

suicidam quando se dão conta de que estão no momento mais feliz e perfeito de suas

vidas e que, portanto, dali em diante só haveria desgosto. A célebre fala de Axël

emblematiza bastante essa questão (citação livre): “Viver? Nossos criados farão isso por

nós”. Esse gosto decadente pela morte se espalhou pelo simbolismo e está presente em

vários do poema de Cruz e Sousa, como em “Música da Morte”, do qual se tratará mais

adiante.

No que diz respeito à música, é importante ter em mente que a poesia simbolista

se pretende, acima de tudo, sugestiva, por isso buscará diferentes formas de fazê-lo, seja

através de símbolos (tradicionais e novos), seja através de recursos formais (como a

sintaxe fragmentada e a sonoridade trabalhada). Por isso, a poesia simbolista será

extremamente musical, pois como consideravam a música a mais sugestiva das artes, ao

estreitar relações entre as duas artes, a poesia ganharia maior poder de sugestão. E,

tratando-se de música, é unânime que Verlaine foi aquele que melhor atingiu esse

objetivo; seu célebre verso (que se tornou máxima): “De la musique avant toute chose”,

do poema “Art Poétique” se tornou um norte a todos os simbolistas que o sucederam.

À guisa de ilustração dessa musicalidade, pode-se pensar em “Chanson

d’Automne”, antológico de Paul Verlaine:

Chanson d'automne 2

2
VERLAINE, 2007, pp. 72-3. (“Canção de Outono”: “Estes lamentos/ Dos violões lentos/ Do outono/
Enchem minha alma/ De uma onda calma/ De sono.// E soluçando,/ Pálido, quando/ Soa a hora,/ Recordo
todos/ Os dias doudos/ De outrora.// E vou à toa/ No ar mau que voa,/ Que importa?/ Vou pela vida,/
Folha caída/ E morta.” Trad. de G. de Almeida, in VERLAINE, 2009, p. 43).

2
1 Les sanglots longs
Des violons
De l'automne

Blessent mon coeur


5 D'une langueur
Monotone.

Tout suffocant
Et blême, quand
Sonne l'heure,

10 Je me souviens
Des jours anciens
Et je pleure

Et je m'en vais
Au vent mauvais
15 Qui m'emporte

Deçà, delà,
Pareil à la
Feuille morte.

Nesse poema, a musicalidade é usada de maneira bastante expressiva, de

maneira a evocar o movimento da folha que cai lentamente. O ambiente outonal,

monótono e decadente reproduzem uma atmosfera muito frequente no simbolismo

francês que, por vezes, ecoou em Cruz e Sousa e Camilo Pessanha. Aqui a morte não se

faz presente de maneira efetiva, mas a melancolia da imagem da folha morta não deixa

de lhe fazer alusão.

II. Duas maneiras de se saudar a morte

Entendidos esses dois conceitos, acima exemplificados com o poema de Verlaine,

propõe-se a seguir, a leitura de dois poemas: “Música da Morte”, de Cruz e Sousa e

“Voz débil que passas”, de Camilo Pessanha, em que essas questões parecem se colocar.

“Música da Morte” toca, já em seu título, nos dois temas aqui escolhidos: a

música e a morte. A morte é tema recorrente e ambíguo, posto que seja vista como fim

3
dos tormentos e retorno ao Todo, mas também como forma de esquecimento, o fim

absoluto, numa perspectiva onde não há transcendência. Lê-se o poema:

Música da Morte3

1 A música da Morte, a nebulosa,


Estranha, imensa música sombria,
Passa a tremer pela minh’alma fria
Gela, fica a tremer, maravilhosa...

5 Onda nervosa e atroz, onda nervosa,


Letes sinistro e torvo da agonia,
Recresce a lancinante Sinfonia,
Sobe, numa volúpia dolorosa...

Sobe, recresce, tumultuando e amarga,


10 Tremenda, absurda, imponderada e larga,
De pavores e trevas alucina...

E alucinando e em trevas delirando,


Como um ópio letal, vertiginando,
14 Os meus nervos, letárgica, fascina...

O soneto “Música da Morte” trata, como já se disse, do exato instante em que a

vida e a morte se encontram e o Eu deixa o mundo conhecido de uma vez por todas. A

morte é para ele uma incógnita, cuja resposta receia descobrir, a despeito de se fascinar

por seus tétricos segredos.

A música de que fala o poema é o som que o sujeito poético ouve no momento

em que sua alma deixa seu corpo; não é uma música qualquer e, tampouco, é vulgar; ao

contrário, é um som ambíguo, a um só tempo, prazeroso e doloroso, horrível e

harmonioso, um som que aflige, ao mesmo tempo em que encanta esse Eu ensandecido,

como que ébrio por essa canção de poder encantatório. Marcado por múltiplas

sensações, muitas delas sugeridas pela morte, o Eu se deixa levar pela canção, uma

espécie de “onda” que o “traga”, levando-o ao rio do esquecimento 4.

3
SOUSA, 1995, p. 129.
4
De acordo com a mitologia grega, “Letes” era um dos rios infernais, cujas águas tinham o poder de
levar, a quem dela bebesse, ao esquecimento. (Cf. COMMELIN, 2008, p. 203).

4
Todo o poema acompanha o movimento dessas ondas, “nervosas” e “atrozes”,

um movimento de ascendência (“recresce” e “sobe”) que embala o eu-lírico ao som da

música mortal; música esta, de tal forma indescritível, que o poeta recorre à sinestesia

(numa “lancinante sinfonia”) e às antíteses (em sua “volúpia dolorosa”), na tentativa de

apreender o inefável.

A magnitude dessa música é tamanha que ela tem o poder de privar o sujeito de

suas faculdades mentais, tal como uma droga; ela o alucina, suscita vertigens e delírios

e, por fim, fascina. É, pois, uma morte gloriosa, ao som de tão grandiosa canção. O Eu

sofre, é evidente, mas é um sofrimento permeado pelo prazer e que, por fim, leva o

sujeito a tudo esquecer e a cair num estado letárgico. A esse respeito, comenta Ivone

Daré Rabello:

Nos anos em que Cruz e Sousa criava Faróis e Últimos sonetos, a morte foi se tornando
seu tema dominante na lírica. Em “Música da Morte”, de Faróis, as ondas sonoras que
invadem a subjetividade provocam-lhe atração e repulsa, lucidez e alucinação. A música,
correlato dos paradoxos da sensibilidade, é também a aspiração máxima dessa poética que
deseja entregar-se ao fascínio da dissolução de contornos, nas sinestesias, na acumulação
metafísica e na saturação de signos que se repetem. (RABELLO, 206, p. 59).
Tudo no poema é, como se disse, ambíguo, tal como é a morte e sua música. A

ideia de música da morte pode sugerir ainda a imagem do deus grego Apolo que, a um

só tempo, era o deus da música, da morte repentina e também o deus da perfeição física

que poderia ser lido como metáfora da forma (soneto). Música e morte andam juntos,

portanto, desde a mais antiga das tradições, como se verifica nas palavras de Walter

Friedrich Otto:

Porém, o mais notável é que suas flechas também provocam um maravilhoso


desfalecer. Voam invisíveis e portam morte suave que surpreende o homem e conserva-lhe
o semblante fresco como o de um adormecido. [...] “Suaves” são ditos os projéteis do deus.
[...] Sabe-se o quanto era natural para os gregos conceber o reto conhecimento segundo a
imagem de um bom disparo do arco. Essa comparação nos convence imediatamente.
Achamos estranho, porém, identificar a música e o canto com a arte de disparar flechas;
neste caso, não pensamos em retidão e conhecimento. É bem este o ponto em que a
essência da música apolínea deve revelar-se a nós. [...] Da música de Apolo brota, a ressoar,
um conhecimento divino. Em tudo visa e alcança a forma. [...] Assim, a música é a grande
educadora, a origem e o símbolo de toda a ordem do mundo e da vida humana. Apolo, o

5
músico, é o mesmo instituidor da ordem, o conhecedor do justo, do necessário e do
vindouro. (OTTO, 2005, pp. 66 e 68.).
A morte, assim como o deus grego, inspira ao eu-lírico sentimentos

contraditórios como o medo e o fascínio pelo desconhecido e pela rapidez fulminante,

porém dolorosa, com que vem buscá-lo... Apolo é implacável tanto com o arco, quanto

com a lira; ao fim, o efeito é o mesmo e o Eu se sente arrebatado por sua flecha (física

ou sonora).

De modo bastante distinto, também Camilo Pessanha tratará da passagem da

vida para a morte, mas a passagem é mais sutil, sem grandes aflições, sem sequer

canções. A morte do sujeito poético, aqui, é mais sutil e silenciosa, menos fascinante e,

talvez por isso, mais humana:

1 Voz débil que passas, 5


Que humílima gemes
Não sei que desgraças...

Dir-se-ia que pedes.


5 Dir-se-ia que tremes.
Unida às paredes,

Se vens, às escuras,
Confiar-me ao ouvido
Não sei que amarguras...

10 Suspiras ou falas?
Por que é o gemido,
O sopro que exalas?

Dir-se-ia que rezas.


Murmuras baixinho
15 Não sei que tristezas...

– Ser teu companheiro? –


Não sei o caminho
Eu sou estrangeiro.

– Passados amores? –
20 Animas-te, dizes
Não sei que terrores...

Fraquinha, deliras.
– Projetos felizes? –
24 Suspiras. Expiras.

5
PESSANHA, 2009, p. 90.

6
Nesse poema quem morre não é o sujeito poético e, sim, seu interlocutor, que

fraco, geme, com sua voz débil. O Eu não sabe o que o deixou assim, é um estrangeiro

que parece de nada saber; contudo, acompanha os últimos momentos desse ser

moribundo que nada faz senão se queixar com sons débeis e fracos.

Ao ouvir seus gemidos, o Eu suspeita que ele esteja pedindo algo, porém, não o

sabe; o ser que agoniza, treme, mescla-se à parede, talvez por sua palidez, em um

processo de apagamento, quase como o do primeiro poema de Clepsidra, cujo último

verso é “No chão sumir como faz um verme”. O moribundo tenta falar; quer ser

escutado, e, por isso, o eu-lírico aproxima-lhe os ouvidos já tendo em mente que ouvirá

amarguras. “Suspiras ou falas?” O Eu não lhe compreende os gemidos, o fraco sopro

que a criatura tão fraca deixa escapar. Talvez esteja a rezar, conclui o eu-lírico, uma vez

que o ser agonizante murmura (tristezas?) quase emudecido. Na tentativa de entendê-lo,

o Eu o indaga duas vezes, mas não chega realmente a saber se o que perguntou era o

que de fato o quase-morto queria saber. O sujeito tenta animá-lo, embora saiba que nada

o privará dos terrores da morte. E a criatura fraquinha delira (é, portanto, uma mulher?):

“Projetos felizes?” – eis suas últimas palavras, pois em seguida expira com um suspiro.

A morta em Camilo Pessanha é mais sutil, é mais silenciosa, nem por isso é

menos assustadora. A “figura” igualmente sofre, muda, “fraquinha”, tentando exprimir

suas últimas palavras, ao contrário da outra que morre alucinada em meio a uma canção

quase frenética que a embriaga num vai e vem ondulante.

O poema é totalmente composto em redondilhas menores, verso por si só já

bastante musical, o que lhe proporciona uma cadência de canção bem ritmada, que, uma

vez lidas em voz baixa, talvez pareça emular as falas entrecortadas do moribundo que

murmura rezando.

7
Se o quase-morto do poema de Cruz e Sousa é levado a tudo esquecer, pelo

sublime da situação, não se sabe o que acontece à morta de Camilo Pessanha depois que

expira, já que o poema termina, mas o leitor acompanha todo o seu sofrimento e vê seu

suspiro (aliviado?), pois o sofrimento enfim cessou. Ambos terminam com a sugestão

de silêncio da música que termina ou do ser que expira...

III. O Silêncio como conclusão

Numa tentativa de tecer uma conclusão com os fios que ficaram soltos até aqui,

pode-se dizer que o debate acerca da morte, e, conseguintemente, do porvir, leva à

leitura dos poemas “Música da Morte”, de Cruz e Sousa e “Voz débil que passa”, de

Camilo Pessanha, em que mais do que o pós-morte, percebe-se o próprio instante da

passagem, por assim dizer, em dois movimentos distintos: quer seja numa música

funesta e encantatória, quer seja na agonia frágil e emudecida de quem expira com um

suspiro, em um poema altamente melódico. A conclusão, em ambos os caso, seja em

Cruz e Sousa ou em Camilo Pessanha, seja na música ou na morte, é apenas uma: o som

do silêncio.

BIBLIOGRAFIA CITADA NO ENSAIO:

COMMELIN, P. Mitologia grega e romana. Trad. E. Brandão. São Paulo: Martins

Fontes, 2008.

MURICI, Andrade (org.). Cruz e Sousa: Obra Completa. 1ª ed. atualizada por Alexei

Bueno. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.

OTTO, Walter Friedrich. Os Deuses da Grécia – A imagem do divino na visão do

espírito grego. Trad. de Ordep Serra. São Paulo: Odysseus, 2005.

8
PESSANHA, Camilo. Clepsidra. Org. Paulo Franchetti. São Paulo: Ateliê Editorial,

2009.

RABELLO, Ivone Daré. Um Canto à Margem – Uma leitura da poética de Cruz e

Sousa. São Paulo: Nankin: EDUSP, 2006.

SISCAR, Marcos. “As ‘Paradoxais-Sutilezas’ de Villiers de L’Isle-Adam”, in: L’ISLE-

ADAM, Villiers de. Axël. Trad. Sandra M. Strparo. Curitiba: Ed. da UFPR, 2005.

VERLAINE, Paul. OEuvres poétiques complètes. Paris : Gallimard, 2007.

__________. A voz dos botequins e outros poemas. São Paulo: Hedra, 2009.

RESUMO
O presente trabalho pretende mostrar a importância do tema da morte na conjuntura da
poética simbolista brasileira e portuguesa, ao mesmo tempo em que visa apontar como
este topos se manifestou nas obras dos dois maiores expoentes do movimento simbolista
de língua portuguesa: o brasileiro João da Cruz e Sousa (1861-1898) e o português
Camilo Pessanha (1867-1826). Através da leitura e análise de poemas de ambos os
poetas, espera-se verificar como são produzidas atitudes distintas no que concerne à
morte, atitudes em que se percebe a dúvida e a hesitação, oscilando entre a aceitação
pacífica e a revolta diante do fim certo; entre a crença em uma transcendência e uma
espécie de ceticismo. Além disso, pretende-se discutir os símbolos mais utilizados por
Pessanha e Cruz e Sousa na representação do tema da morte em suas obras poéticas, na
tentativa de mostrar suas semelhanças e diferenças no âmbito de um movimento
melancólico como foi o Simbolismo.

Palavras-Chave: Cruz e Sousa, Camilo Pessanha, Paul Verlaine, Musicalidade, Tópica


da Morte;

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