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Literatura Clássica

Diário de bordo #2 – Os dois sonetos da hora triste, Álvaro Feijó

https://www.youtube.com/watch?v=82Mu7d4P8-c
(Pela voz de Maria Barroso. Escutado no funeral de Mário Soares.)

Estes dois sonetos de Álvaro Feijó, lidos sequencialmente, remetem-nos para um amor
separado pela distância, porventura pela morte, mas reavivado pela saudade.
Poderíamos escutá-los pela voz de Penélope cuja razão de viver, no meio de tão grande
provação, é a esperança - quase idealizada em mito - do regresso de Ulisses, que a sustém,
na certeza de que “há de morrer primeiro do que [ele]”. No limite, o sofrimento passivo de
não saber se Ulisses vive é superior ao sofrimento ativo deste de não conseguir regressar a
casa.
A amada confessa ao amado que, mesmo que a morte os separe, as imagens que ficaram
impressas na alma (“continua a espelhar-te nos meus olhos / (…) como quando sorrias no
meu colo”) de tudo quanto partilharam perdurarão. E que a presença, outrora sentida e
agora desejada, se poderá fazer sentir de outro modo, mais espiritual, mais puro.
Por outro lado,uma tal declaração de amor, uma tal despedida, recheada de elementos
marítimos e escatológicos (“Farei a nebulosa travessia / E o rastro da minha barca / Segui-
los-á em pensamento. Abarca / Nele o mar inteiro, o porto, a ria... “) seria compatível com
as sucessivas viagens que Ulisses enfrenta no seu regresso a Ítaca. O mar, como habitat
natural do regresso sempre adiado é assim transferido para a eternidade da amada.
Além disso, é notável a referência à comunhão espiritual a estabelecer entre a amada e o
herói, quer pela morte, quer pela memória. Na verdade, o nível de intimidade revelado por
aquela “Penélope nostálgica” superaria o mero caráter presencial do amor, apontando
para níveis transcendentes (“E viverei em ti como um eflúvio, uma recordação. “). Um nível
de amor onde o choro não se dá “para fora”, como quem se sente ausente, mas “para
dentro”, porque a presença se pressente. (“E não quero que chores para fora, / Amor, que
tu bem sabes que quem chora / Assim, mente.”)
Por fim, essa intemporalidade e “intespacialidade” que o amor verdadeiro possibilita faz
antever um horizonte, “já” no aqui e “ainda” no além, de esperança e total comunhão. (“E,
se quiseres partir e o coração / To peça, diz-mo. A travessia é longa... /Não atino/ Talvez na
rota. / Que nos importa, aos dois, ir sem destino?”
Diário de bordo #3

Os Lusíadas - Canto IX – A Ilha dos Amores Vaso- As Sereias e os marinheiros


Odisseia – Canto XII – versos 39 a 54

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Nesta frescura tal desembarcavam
Já das naus os segundos Argonautas,
Onde pela floresta se deixavam
Andar as belas Deusas, como incautas.
Algũas, doces cítaras tocavam;
Algũas, harpas e sonoras frautas;
Outras, cos arcos de ouro, se fingiam
Seguir os animais, que não seguiam.

65
Assi lho aconselhara a mestra experta:
Que andassem pelos campos espalhadas;
Que, vista dos barões a presa incerta,
Se fizessem primeiro desejadas.
Algũas, que na forma descoberta
Do belo corpo estavam confiadas,
Posta a artificiosa formosura,
Nuas lavar se deixam na água pura.

A passagem de A Odisseia representada no vaso – a abordagem das sereias à embarcação


de Ulisses e seus companheiros – remeteu-me para o episódio camoniano da “Ilha dos
amores”, pela dimensão da sensualidade que evoca, ainda que com índoles diversas.

Em ambas as epopeias, o tema da navegação é central e a narrativa desenrola-se através


das peripécias ocorridas em cada uma das viagens. A certa altura, ambos os grupos de
navegantes deparam-se com criaturas femininas sedutoras, que provocam uma atração
que os levaria a parar para gozar de tais prazeres.

Se, por um lado, a Ilha dos amores representa um prémio que visa glorificar os feitos dos
portugueses naquela expedição, as sereias d’ A Odisseia representam uma autêntica
tentação, não só desviante do caminho de regresso, mas potencialmente fatal para quem a
ela sucumbisse.
Assim, os portugueses liderados por Vasco da Gama, aportam para gozarem do merecido
descanso, enquanto os Ateus, precavidos por Circe, cobrem os ouvidos com cera e
amarram Ulisses ao mastro. Em linguagem inaciana, preparam o tempo da desolação,
pondo meios para a enfrentar, ainda que ela apareça “sob aparência de bem”.

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