“Acordando” Em sonho, às vezes, se o sonhar quebranta Este meu vão sofrer, esta agonia, Como sobe cantando a cotovia, Para o céu a minh'alma sobe e canta.
Canta a luz, a alvorada, a estrela santa,
Que ao mundo traz piedosa mais um dia... Canta o enlevo das coisas, a alegria Que as penetra de amor e as alevanta...
Mas, de repente, um vento húmido e frio
Sopra sobre o meu sonho: um calafrio Me acorda - A noite é negra e muda: a dor
Cá vela, como dantes, a meu lado...
Os meus cantos de luz, anjo adorado, São sonho só, e sonho o meu amor!
No poema “Acordando”, de Antero de Quental, “é nítida a oposição
Sonho/Realidade, que constitui precisamente o tema do poema.
Na verdade, estes dois aspetos estão perfeitamente delimitados no
texto, estando o Sonho expresso nas quadras e a Realidade nos tercetos. Assim, poderemos distinguir dois momentos neste soneto: - o primeiro, correspondente às duas primeiras estrofes, onde o poeta manifesta o desejo de se evadir da realidade, que lhe provoca sofrimento, através do sonho;
- o segundo, constituído pelos dois tercetos, iniciado pela conjunção
coordenativa adversativa "Mas" que marca, precisamente, a oposição ao sonho do qual o sujeito poético desperta em consequência da ação do vento que o leva novamente para a realidade fria, desconfortável e desoladora.
O soneto apresentado para objeto de comentário é da autoria de Antero de
Quental, poeta da segunda metade do século XIX, que teve uma ação preponderante em todos os movimentos culturais do seu País, nomeadamente na chamada Questão Coimbrã (1865) e nas célebres Conferências do Casino (1871). No primeiro caso, bateu-se pela renovação contra o imobilismo de Castilho e da geração que este representava, pela inovação contra a imitação sem originalidade, pela liberdade e isenção contra o compadrio e a dependência do poder estabelecido; no segundo acontecimento, lançou, com outras eminentes personalidades, os fundamentos programáticos da ação renovadora. É considerado unanimemente a "alma" da Geração de 70, constituída por um vasto leque de exímias personalidades, de nível sobretudo literário, empenhadas na transformação política, Europa como modelo a seguir. Educado tradicionalmente, místico por natureza, chegou a Coimbra e sofreu os efeitos de um meio totalmente diverso do familiar. Sentindo-se atraído por um mundo ideal, utópico, deixa-se influenciar pelo socia lismo de Proudhon e pelo idealismo de Hegel. A mediocridade da realidade contrasta com o mundo que traz gravado no seu coração e, por isso, sente-se sempre um inadaptado, vivendo um permanente conflito, oriundo dessa oposição.
A oposição entre o sonho e a realidade é precisamente o tema do soneto
"Acordando", composto, como é de lei, por duas quadras e dois tercetos, com o esquema rimático abba, ccd, eed, de versos decassílabos interpolados (a a, d d) e emparelhados (bb, cc, ee). O sonho está expresso sobretudo nas quadras – primeiro momento -, através de vocabulário de carácter positivo: “o sonhar quebranta...”, "a cotovia", "Céu", "canta", "luz", "alvorada", "estrela", "dia", "enlevo", "alegria" e "amor". Sente-se a atração, a magia que este conjunto semântico de felicidade exerce sobre o sujeito poético. Com efeito, é através do sonho que o Poeta se eleva para o "Céu", para o ideal, aquele mundo perfeito que Platão soube expor em textos ainda sedutores e identificados com o desejo do "Bem Absoluto", aspiração que mora na alma de cada ser humano. Comparando-se a uma cotovia, é embalado pelo canto desta ave: a repetição do verbo "subir" e do verbo "cantar" acentua essa evasão para o paraíso do sonho. De realçar o gerúndio "cantando" a sugerir a permanência do canto/sonho, e ainda a expressividade da substância fónica dos versos 3 e 4 realizada, quer pelas leves aliterações /c/, /t/, /s/, quer pelo tom nasal, quer pela repetição da vogal /i/. Nesta quadra, encontra-se já claramente definida a oposição entre o sonho e a realidade. Há dois campos semânticos opostos: sofrer, agonia", cotovia, Céu. A rima explicita também esta oposição: quebranta/canta, agonia/cotovia. O entusiasmo, a magia do canto é muito mais evidente na segunda quadra. Na verdade, o verbo cantar, repetido anaforicamente, dá O tom a todo um discurso embalador, feito sobretudo da enumeração assindética de muitos elementos, todos eles apelando para um mundo pleno de alegria. A rima entre santa e alevanta, dia e alegria, o vocabulário positivo, luminoso, a pontuação suspensiva, a construção paralelística (vv. 5-6, 7-8) são aspetos bem sugestivos de que no mundo do sonho paira um mar de felicidade. Todavia, nos versos 1 e 2, há um indício claro de que o sonho é passageiro e a realidade persiste: "às vezes, se o sonhar quebranta/Este meu vão sofrer, esta agonia". É essa realidade que se instala no primeiro terceto e no primeiro verso do segundo terceto - segundo momento do texto.
A adversativa "Mas" impõe uma oposição. Por isso, o discurso regressa à
realidade, trazendo para o texto todo um vocabulário negativo: "vento húmido e frio", "um calafrio", "A noite é negra e muda", "a dor", recupera-se o vocabulário dos versos 1 e 2 da primeira quadra, numa circularidade simbólica, a sugerir o eterno retorno à realidade cruel.
Personificando o vento, caracterizado pelo duplo adjetivo "húmido" e "frio",
faz dele o elemento destruidor do mundo onírico: "Sopra sobre o meu sonho", que acorda, em calafrio, o Poeta. Repare-se no travessão como divisória, afastando o sonho e impondo a crueldade da realidade: "A noite é negra e muda". As palavras de sentido negativo, a aliteração do som nasal [ n ] e [m], a dupla adjetivação, tudo se agrupa num campo semântico para criar a relação antitética entre dia e noite, sonho e realidade. Em consequência, nova realidade antitética se gera: a alegria e a dor. Já não há canto, já não há aves, já não há luz, já não 'há amor; só a dor aparece vigilante. O encavalgamento estrófico é elucidativo do estado de tristeza que avassala a realidade. O verbo "velar", do campo semântico da vigilância, que não pode permitir evasões, impõe a dor, personificada, feita companheira inseparável do sujeito poético. Compreende-se a expressividade do título "Acordando", um gerúndio, a sugerir a dificuldade do abandono do sonho e da entrada na realidade. Em sinal de honestidade, o sujeito poético não deixa de, num terceiro momento, se dirigir em apóstrofe ao seu destinatário "anjo adorado", lembrando-lhe que os seus cantos – os seus poemas - são "sonho só" e nada mais. Ele sonha o "seu amor". Nova circularidade a ressaltar que a passagem do mundo real ao mundo irreal se faz "às vezes", mas a realidade acaba sempre por se impor.
Poema belo, simples e dramático. Vocabulário fácil e expressivo, realidade
dramática: o "eu" não consegue libertar-se do mundo real, que o oprime.
Quem não vê aqui a trajetória da evolução literária de Antero? Poeta
combativo, luminoso, otimista, paladino de um mundo orientado pela Razão, Justiça, Verdade, Amor, Liberdade, procurando "O palácio encantado da Ventura", tentando realizar o que afirmara em 'Odes Modernas': "A Poesia moderna é a voz da Revolução"; poeta abatido, desalentado, destruído, pessimista, apelando ao Nada, ao Nirvana, ao Não-Ser, onde possa descansar do seu inútil combate. Ele é verdadeiramente o cavaleiro andante que, no "Palácio encantado da Ventura", encontrou "silêncio e nada mais". Ficou, todavia, a sua obra como manifestação imorredoura do drama que acompanhará sempre a humanidade dividida entre o sonho e a realidade. Tudo de Antero Quental: Quando lidas as poesias de Antero de Quental, tem-se a impressão de que ele é um poeta atual. Elas são entendidas, nos dias de hoje, devido à história de vida do autor (Século XIX).
São características do período anteriano: o sentido dos conceitos de
pessimismo, evasão e morte, a importância da liberdade existencial, o âmbito do Pluriverso Anteriano e o significado da “presença” histórica.
A metafísica é uma sub-característica de sua obra, ou seja, aborda a
essência das coisas, as primeiras causas, os primeiros princípios. O poeta filosofava na poesia as ideias do homem.
Em meados de 70, utilizava a morte e a existência como tema de
suas reflexões e produções literárias. Tinha como preocupação o problema do destino humano e o significado do universo, como Antero confirma: “... Da luta que então combati, durante 5 ou 6 anos, como meu próprio pensamento e o meu próprio sentimento que me arrastavam para um pessimismo vácuo e para o desespero, dão testemunho... muitas poesias.”
Em seus sonetos o autor foge de expressões românticas, o que vai ao
encontro das suas aspirações do absoluto. Ele também foi um dramatizador dos problemas da consciência.
Sua filosofia de vida é dividida em quatro ciclos: Lirismo da juventude
(1860-1866), A euforia e subsequente pessimismo do apostolado social de Antero (1866-1873), Os desejos de evasão e oblívio e o anseio da morte (1874-1880) e O Pluriverso (1880-1891).
Lirismo da juventude (1860-1866): durante esse período, o poeta
não exalta apenas coisas boas, fala de seus fracassos e desilusões. Ele utiliza, em seus poemas, de sonhos amorosos e amores secretos, expressa uma explosão de emoções e convulsões carnais cultuando a figura feminina. Como mostra a estrofe (“Amor Vivo”) a seguir:
“Sim, vivo e quente! e já a luz do dia
Não virá dissipá-lo nos meus braços Como névoa da vaga fantasia...”
Porém, Antero não escrevia somente poesias sensuais. Em seus
textos encontra-se também o amor puro, sensível e triste. Exemplificando com uma estrofe de “Idílio”: “Quando nós vamos ambos, de mãos dadas, colher nos vales lírios e boninas, e galgamos dum fôlego as colinas dos rocios da noite inda orvalhadas...”
Em A euforia e subsequente pessimismo do apostolado social de
Antero (1866-1873), Antero de Quental é intitulado como iniciador e condutor da literatura portuguesa porque sua obra refletia o choque entre o idealismo filosófico e político e as teorias socialistas. O autor pertencia a esta última classe e nos seus escritos mostrava características socialistas. Além disso, preocupava-se com o drama da decadência de Portugal, interessava-se por política e lançou-se a reforma geral da causa lusíada. Em seus textos menciona causas liberais e socialistas. Antero confessa: “...Queria reformar tudo, eu nem sequer estava ainda a meio caminho da formação de mim mesmo”.
No poema “No Circo” ele refletia a rebeldia contra o tradicionalismo
português e a voz do povo e também mostrava o anarquismo da época e a euforia da população em relação aos acontecimentos citados:
“... Senti um monstro em mim nascer nessa hora,
E achei-me de improviso feito fera... - É assim que rujo entre leões agora!...”
Mesmo em meio a essas confusões, ele ainda demonstrava confiança
no futuro e no progresso da humanidade.
Já em 1870, começa a fase do negativismo e pessimismo, motivado
por sua doença. Perdeu sua vida social e sua filosofia estava carregada de pensamentos ruins. Em meados do mesmo ano, rejeitou o anarquismo; ícone de sua contradição.
Tal ciclo chega ao fim devido às incompreensões humanas e tragédia
de sua doença.
Os desejos de evasão e oblívio e o anseio da morte (1874-1880): sua
doença transformou sua vida numa série de desistências, tanto para o homem de ação como para o filósofo e artista. A partir desses fatores, desprezou a vida social, pois achava que esta corrompia a inteligência e a consciência.
Houve uma contradição de crenças e princípios, e o pessimismo
tornou-se seu companheiro. Perdeu a esperança e enxergou a realidade no meio político e social. O futuro não importava, o presente estava destruído. Comprovando por meio de um fragmento da poesia “A J. Félix dos Santos”: “... Ai! Que importa o futuro, se inclemente Essa hora, em que a esperança nos consiste, Chega... É presente... E só à dor assiste? ... Assim, qual a esperança que não mente? ...”
Passada a fase do pessimismo, encontrou na Virgem Santíssima um
refúgio; tinha Ela como figura materna, sendo que antes a considerava um mero símbolo.
Segundo Oliveira Martins “... A visão é a Virgem Santíssima, e a
poesia é tão sincera, tão verdadeira, tão cheia de piedade que... um monge cristão escreveria isto. E Antero de Quental nem é cristão, nem crê em Deus, nem na Virgem...”. Indo ao encontro disso, segue uma estrofe da poesia “Mãe”:
“Descuidada, feliz, dócil também,
Se eu pudesse dormir sobre o teu seio, Se tu fosses, querida, a minha Mãe.”
Quental encarava a morte como consequência da busca do homem
pela perfeição e também como a afirmação do espírito, este buscava alcançar a indiferença. Atingiu o estado de espírito ideal, desprendendo-se do individualismo e sensibilidade e logo chegou ao vácuo, buscando o esquecimento total e existencial.
Essas ideias resultaram na obra “Nirvana”:
“ Para além do Universo luminoso,
Cheio de formas, de rumor, de lida, De forças, de desejos e de vida, Abre-se como um vácuo tenebroso."
Conceitos de evasão e morte: seu pessimismo repudiava a si mesmo,
a religiosidade e os valores éticos e estéticos.
O poeta percebia em tudo a ação maquiavélica de uma natureza má e
depravada. Chorava sua desgraça, amargura, dor, tristeza, via a existência como torturante incerteza. Exemplificação disto é parte da poesia “O Palácio da Ventura”:
“Abrem-se as portas de ouro, com fragor...
Mas dentro encontro só, cheio de dor, Silencio e escuridão – e nada mais!”
Já no Pluriverso (1880-1891), período filosófico no qual desenvolveu
as mais belas poesias e criou seu pluriverso, no qual o centro é o espírito –engloba todo o universo e os seres em evolução – ou ideia revolucionária – requer que o ser humano conheça a si próprio. Este novo “mundo” surgiu da exploração de novos horizontes existenciais e novas dimensões da verdade. Sua análise quanto ao pluriverso defendia que o espírito é a incógnita do problema que o atormentava.
Mantinha-se em oposição ao positivismo – banalidade e filosofia
deficiente – e ao naturalismo do século XIX. Ambos exageravam na adoração da vida material, deixavam insatisfeitos o sentimento, consciência e espírito.
Segundo Quental, a filosofia que excluía a metafísica – princípio
autêntico a vida do espírito filosófico – era confusa. Desprendeu-se da fé e no início da metafísica afirmava que o espírito não tinha consciência da sua existência. No texto “Ignotus” o espírito proclama:
“ – Não vos queixeis, ó filhos da ansiedade,
Que eu mesmo, desde toda a eternidade, Também me busco a mim... sem me encontrar!”
O anteriano é dominado pelo egoísmo, instinto e paixões. É na
comunidade que ele conhece a si próprio e se depara com outros seres humanos, confrontando situações em que predomina: dor, tédio, morte, ilusão e desengano. Na estrofe a seguir, do poema “Evolução”, o homem debate sua origem:
“Hoje sou homem – e na sombra enorme
Vejo, a meus pés, a escada multiforme, Que desce, em espirais, na imensidade.”
Neste ciclo, Antero voltou com o sentimento do “Bem” – momento
mais íntimo da evolução do ser humano que o homem deve seguir – o qual em sua fase anterior não era praticado e encontrou explicações para suas dúvidas anteriores.
A partir de suas ideias e obras, Antero de Quental foi nomeado como
modernizador e modelo da poesia portuguesa.
O poeta escreveu textos durante toda a sua vida, inclusive na época
em que adoeceu. Porém, as diferenças na sua poesia eram gritantes, de acordo com o seu estado de espírito.
Foram temas de seus poemas: o amor puro e carnal, a revolta contra
os princípios de Portugal, o desejo de morte, a busca por um estado de espírito ideal, a Virgem Santíssima, o pessimismo, a metafísica e o homem na sociedade. Toda essa contradição de sentimentos em versos, torna-o um dos grandes poetas da literatura portuguesa, um autor eclético que conseguiu expressar todas essas fases de sua vida em suas obras.