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Autor: Igor Guterres (FFLCH)

Figurações da purificação em Romance de la pena negra

A natureza fragmentária da forma romance, na qual foi escrito Romance de la pena


negra1, faz com que a leitura do texto seja um processo de criação de sentido a partir de
lacunas. Somado a isso, o tom onírico assumido na linguagem faz com que sua
legibilidade dependa da organização de fragmentos e livre associação entre
significantes, o que aproxima sua interpretação à de um sonho.

Essa valorização da semelhança entre sonho e literatura se observa em diversas


camadas, a começar pelas metáforas visuais relacionadas à luz. O poema inicia
justamente com o amanhecer, período de indeterminação entre o dia e a noite. Isso
imprime um teor fantástico à aparição de Soledad Montoya, aproximando-a a um sonho,
a uma alucinação ou mesmo a um “fantasma”, se lermos nessa ambiguidade entre dia e
noite uma confluência entre vida e morte, isto é, luz e sombra.

Também é possível observar instabilidade referencial em alguns versos do


diálogo entre o eu-lírico e Soledad Montoya, de modo que em alguns momentos não é
possível distinguir com clareza quem está falando. Esse estado de crise do real ocorre
também no domínio dos sonhos, em que algo pode ser mais de uma coisa ao mesmo
tempo. Também configura certa indeterminação a presença de, pelo menos, dois planos
narrativos, um na primeira estrofe e outro na segunda. Os versos Por abajo canta el río /
Volante de cielo y hojas (vv.39-40), que inicam a segunda estrofe, revelam uma camada
a mais de texto, um texto que vinha fluindo por baixo. Esse espelhamento que aparece
no rio, volante de cielo y hojas, metaforiza algumas dicotomias que o texto sugere: vida
e morte; realidade e sonho; Soledad Montoya e o povo cigano.

1
GARCÍA LORCA, F. “Romance de la pena negra”, em Poema del Cante Jondo y Romancero gitano.
Madri: Cátedra, 1992, pp. 247-250.
Esse espelhamento que se configura a partir da simultaneidade de planos aponta
para uma relação de hiperonímia entre a segunda estrofe e a primeira, o que justificaria
um imbricamento entre social (povo cigano) e individual (Soledad Montoya); uma vez
que o tema da segunda estrofe é o povo cigano, não mais Soledad. A personagem estaria
encarnando uma ferida que é coletiva; sua escrita seria também a escrita de um trauma
histórico e as formas de se lidar com isso. E assim como o sonho opera uma espécie de
purificação em nós, considerando teorias que apontam nesse fenômeno um modo de
elaboração da experiência e contato profundo com o dito subconsciente, também o
poema parece efetuar algum tipo de purificação, que se ritualiza em Soledad mas que
estende a seu povo.

A leitura dessa purificação é possível principalmente nas menções à água. Para


citar algumas passagens, Al fin encuentra la mar / Y se lo tragan las olas (vv. 17-18)
denota redenção e liberdade que, como se sugere mais adiante, talvez seja possível
apenas na morte, se considerarmos o estado de sofrimento tanto de Soledad quanto de
seu povo. Depois, Lloras zumo de limón / Agrio de espera y de boca (vv. 25-26) evoca
o ícone da lágrima, símbolo de tristeza mas também de uma espécie purificação e
alento. Contudo, são lágrimas de limão; o choro não é alívio, mas ainda mais
sofrimento, corrosão à fragilidade do olho. Desse modo, encontramos nessas duas
passagens não o esboço do alívio, mas a impossibilidade deste.

Contudo, no final da primeira estrofe, e essa posição de final é significativa, há


efetivamente um processo, ou a menção a um processo, de redenção, alívio e cura.
Soledad: lava tu cuerpo / Con agua de las alondras / Y deja tu corazón / En paz,
Soledad Montoya (vv. 35-38). Essa purificação dos sentimentos e do corpo pela água
confere um teor alquímico para a narrativa; isso se de fato há aí uma transformação de
estados, a passagem da angústia para a paz que, como mencionamos acima, talvez só
seja possível na morte, o que proliferaria os sentidos do fim no texto.

Considerando isso, a necessidade de expressão do sofrimento parece ser o ponto


de partida de Romance de la pena negra. Da ferida escorre o sangue, a lágrima, a arte e
o sonho. E estaria nesses fluxos não somente uma reação natural ao sofrimento, mas
também, e por isso, uma possibilidade cura. Cura que se opera na linguagem, na
memória e parte de uma estranha necessidade de beleza frente ao vazio da falta, tal
como um sepultamento.

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