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Brasil: Povo Criado Por Mulheres

Lucas Gonçalves Rangel

O Brasil vive uma epidemia de abandono paterno. Muitas pessoas nem sequer chegaram
a conhecer seus progenitores paternos e os que tiveram essa sorte, muitas vezes se viram
abandonados por esses durante algum período da vida. Mesmo nos casos em que isso não
aconteceu, é muito difícil encontrar alguém que teve seu pai tão presente quanto a sua
mãe, tanto no âmbito prático dos cuidados quanto no âmbito afetivo da criação. Como
veremos a seguir esse é um problema enraizado na nossa cultura há pelo menos meio
milênio, tempo suficiente para se tornar um problema estrutural: não pode ser resolvido
no campo individual, pois sua perpetuação foi legitimada socialmente por tanto tempo
que marcou o inconsciente coletivo. Por isso há de se pensar o abandono paterno tanto a
partir de uma perspectiva pública como de uma perspectiva subjetiva. É nesse sentido que
“Minha Fortaleza: Os Filhos de Fulano” se faz tão urgente: o último filme da diretora
Tatiana Lohmann documenta essa problemática de forma tão intimista que consegue
fazer, até com quem não sofreu com essa experiência, sentir um pouco dessa realidade.

Por muito tempo a história do Brasil foi contada de forma romantizada a partir do mito
da democracia racial. Enraizado na obra de Gilberto Freyre, o mito defende que as
relações entre escravizadores e escravizados se deram de forma cordial. Mas o resultado
do Projeto DNA Brasil veio para desmentir a lenda contada em Casa Grande e Senzala.
O povo brasileiro formou-se a partir do estupro sistémico de mulheres indígenas e negras
por colonizadores. O projeto coletou dados de centenas de pessoas e chegou à conclusão
de que 70% da herança materna teve origem em populações autóctones e africanas, já a
herança paterna foi 75% europeia. Segundo uma das geneticistas responsáveis pela
pesquisa, Tábita Hünemeier, em uma entrevista à Folha de São Paulo, esses números
comprovam que os homens não europeus pouco deixaram descendentes por aqui. Mas
se analisarmos essa realidade historicamente a situação fica ainda mais grave.
A união estável entre homens brancos e mulheres não brancas era vista, no Brasil Colónia,
como reprovável pelo moralismo católico eurocêntrico da época. Apesar disso aos
homens portugueses era recomendado que engravidassem tanto mulheres indígenas,
quanto afrodescendentes. Além disso poucas mulheres vinham da metrópole para colônia
e muitos dos homens, num período inicial, ficavam aqui por tempo determinado para
enriquecerem até que voltassem para Portugal. Esses deixavam seus filhos desprovidos
de qualquer direito ao reconhecimento da paternidade. Pouquíssimos eram os casos de
filhos entre homens brancos e mulheres indígenas, ou em situação de escravidão, que
eram reconhecidos pelo pai, visto que em sua maioria, esses eram casados oficialmente
com mulheres de origem europeia. Essa política, incentivada pelo governo e pela igreja,
tinha como objetivo o povoamento do território para dificultar as tentativas de domínio
de nações concorrentes, como França e Espanha. Tudo isso fez com que durante a maior
parte da nossa história fossemos um povo órfão de pai, um povo criado quase
exclusivamente por mulheres. E não atoa, hoje, depois de tanta luta, o feminismo emerge
no Brasil como a importante força transformadora da sociedade.
Se a família é a base da sociedade, as mulheres são seus alicerces. Cerca de 37,3% das
famílias brasileiras são chefiadas por mulheres, segundo censo demográfico do IBGE
realizado em 2010. Esse número representa um crescimento vertiginoso se comparado
com o censo anterior: em 2000 eram 22,2%. Mesmo que as mulheres sempre tenham sido
quase a totalidade na chefia de famílias monoparentais, esse aumento se deu
principalmente devido as fato de cada vez mais famílias biparentais serem chefiadas por
elas. Nesses casos, houve um aumento de 19,5% para 46,4% entre o mesmo período
citado anteriormente. Segundo a reportagem de O Globo, o conceito de chefia familiar
para o IBGE é o reconhecimento pelos outros integrantes. Isso demonstra que as
mudanças sociais experimentadas nas últimas décadas pelo Brasil têm colaborado para
um maior equilíbrio no reconhecimento da importância feminina.

Apesar disso ainda estamos muito longe de alcançar a almejada igualdade de gênero.
Mesmo que as mulheres estejam lutando para superar os obstáculos estruturais impostos,
a fim de alcançar uma posição justa nas relações de poder, essa desigualdade ainda habita
o inconsciente de muitos, fazendo com que não raramente elas sejam idealizadas: vistas
como se estivessem acima do plano da humanidade. Contudo, apesar das aparências, a
idealização também é uma forma de dominação, que visa limitar as ações de uma pessoa
a partir da imposição de um Ethos. E é esse um dos principais problemas abordados no
longa documental “Minha Fortaleza: os Filhos de Fulano”, cujo cartaz emblemático
mostra uma pele negra tatuada com a imagem da Virgem Maria. Como fica a situação da
mulher que assume sozinha a responsabilidade por uma família após o abandono paterno?
É sobre esse panorama social que a diretora Tatiana Lohmann foi convidada, pela
produtora Câmera Escura, para uma conversa virtual sobre seu filme, que se deu logo
após sua exibição. Segundo contado por Tatiana, não foi ela que chegou até a história,
mas o contrário, e esse primeiro encontro certamente vale ser retratado devido ao seu
aspecto representativo em relação a obra: tudo começou durante as gravações de um
documentário sobre a produção do Carandiru de Babenco. Fernando Macário, que então
fazia um papel de figurante, pediu a Tatiana para que ela o acompanhasse durante uma
sessão na qual tatuaria um retrato da mãe no peito, pois faria um videoclipe com essas
imagens. A diretora, sem saber muito o porquê, topou, mas seu instinto para histórias não
falhou. Ao chegar no tatuador viu que esse tinha o nome da mãe tatuado e começou a
folhear seu portifólio, ficando curiosa, pois havia muitas outras tatuagens de mães e
muitas também de Nossa Senhora. Ao fim da sessão Tatiana havia percebido que aquilo
ali não mais seria um videoclipe (que por sinal ainda não chegou a ser gravado), mas sim
um filme. A partir de então Fernando Macário apresentou Tatiana Lohmann a Vila Flavia,
quebrada da Zona Leste de São Paulo, que viria a ser o cenário de “Minha Fortaleza”.

O filme conta a história de três homens que possuem alguma relação com a questão do
abandono paterno, tema que vai ser tratado durante a maior parte do tempo. Em um
segundo plano, o filme mostra como se passa a vida das mulheres que tiverem que assumir
o papel dos progenitores ausentes. Há uma grande discussão sobre a importância do pai
e quanto as marcas que sua falta pode fazer, mas também sobre como essa falta pode ser
ressignificada. As personagens femininas da história, por sua vez, são apresentadas
claramente como as heroínas da história, porém devido a escolha narrativa elas são
mostradas como mães, sem muitas outras facetas: mas isso se explica pelo fato de o
documentário assumir o ponto de vista dos filhos, que é justamente a forma como a
maioria de nós enxerga as mulheres, ou seja, como mães. Essa escolha narrativa se mostra
ainda mais acertada mais para o final da obra, quando os protagonistas masculinos
mostram um novo futuro possível, a partir da relação cultivada com seus filhos.

Esse ponto de vista comum, que relega o papel das mulheres a cuidadoras de famílias, se
torna mais multifacetado no filme devido as nuances que diferenciam cada umas das três
histórias. Um exemplo disso é a história de Barão, que, apesar de ser um dos
protagonistas, acaba por ter menos visibilidade do que sua esposa: esteticista e dona do
próprio negócio, ela cuida sozinha da família e ainda se vira para visitar, sempre que
possível, seu marido, na cadeia há 8 anos. Fernando Macário, por outro lado, se encontra,
pela primeira vez, com sua mãe biológica que o abandonou após dá-lo à luz e o conta um
pouco da própria história, logo antes de vir a falecer. Já Negotinho faz um rap para Dona
Vera, cujo nome virará o título do filme: Minha Fortaleza. A homenageada, que é a estrela
do filme, é a responsável pelo desfecho. A última cena simboliza o momento que passou
a poder desfrutar a vida: tomando um banho de mar na sua casa de praia, tranquila por ter
conseguido criar seus filhos sozinha e ainda assim torná-los bons pais.

O filme desperta infinitas reflexões, principalmente por ter uma forma tão intimista: nos
transportando assim para aquele ambiente e dessa forma produzindo diversas reações
afetivas em quem assiste. É nítido o quanto os personagens se sentiram numa posição
extremante confortável enquanto estavam sendo filmados, resultado obtido não só pela
relação que a diretora construiu com eles, mas também pela maneira com que foi
realizado: com uma equipe bem reduzida. Além disso, segundo Tatiana Lohmann, outros
cuidados contribuíram para tal efeito, como a decisão por evitar ao máximo o uso de
equipamentos de iluminação.

Dentre tantas questões levantadas com o belíssimo “Minhas Fortaleza: os Filhos de


Fulano” vale ressaltar a que é suscitada já no título da obra. Quais seriam as
consequências de ser uma fortaleza? Essa questão é respondida no filme a partir de cenas
que mostram toda a humanidade escondida atrás do manto da Santa que muitas vezes é
imposto as mulheres, principalmente quando essas são mães que tiveram que assumir o
papel dos pais ausentes. Como seria possível que homens, filhos de mulheres tão especiais
como a Dona Vera, Dona Edith e a Dona Fátima, pudessem passar a vê-las para além da
imagem modelo do feminino, que é o da Virgem Maria? Como seria possível para uma
pessoa que vivenciou o abandono paterno ressignificar o conceito do masculino, para
além do estereótipo, que se confirmou (e marcou) em sua vida? Muitas dessas perguntas
são respondidas quando vemos o amor que os protagonistas Fernando, Negotinho e Barão
demonstram pelos seus filhos.

“Minha Fortaleza” é um filme com enorme potencial curativo. E mesmo para os que não
possuem essa ferida, tão comum entre nós, brasileiros, é capaz de abrir os olhos para esse
problemática social tão grave: homens também são pais e mães também são mulheres.
Por fim, fica um afetuoso agradecimento a toda equipe responsável. Aos personagens que
abriram as portas de suas casas e de seus corações. E a grande diretora Tatiana Lohmann,
por ter dedicado um pouco do seu tempo para conversar conosco, alunos do AudioVisual,
e principalmente por ter doado o seu olhar delicado a um tema tão caro ao nosso futuro.
Bibliografia:

Folha de São Paulo: https://www1.folha.uol.com.br/ciencia/2020/09/estudo-com-1200-


genomas-mapeia-diversidade-da-populacao-brasileira.shtml

O Globo: http://g1.globo.com/brasil/noticia/2012/10/familias-chefiadas-por-mulheres-
sao-373-do-total-no-pais-aponta-ibge.html
Imagem: http://www.festivaldorio.com.br/br/filmes/minha-fortaleza-os-filhos-de-fulano

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