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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS - UNISINOS

UNIDADE ACADÊMICA DE GRADUAÇÃO


CURSO DE PSICOLOGIA

RENATA FREITAS

“HISTÓRIAS CRUZADAS”, APEGO, GÊNERO E RAÇA

Porto Alegre
2020
RENATA FREITAS

“HISTÓRIAS CRUZADAS”, APEGO, GÊNERO E RAÇA

Trabalho apresentado para a disciplina


Psicologia da Criança I, pelo Curso de
Psicologia da Universidade do Vale do
Rio dos Sinos – UNISINOS, ministrada
pelo professor Chrystian da Rosa Kroeff.

Porto Alegre
2020
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Histórias Cruzadas, originalmente “The Help”, estreou no ano de 2012 sob direção
de Tate Taylor. O filme é um relato autêntico do preconceito sofrido pelos negros
nos EUA e conta o drama das empregadas negras durante a luta por direitos civis
em meados de 1960, quando a divisão entre negros e brancos era acentuada pelo
apartheid. A história se passa em Jackson, pequena cidade no estado do Mississipi,
mostrando diversas questões raciais da época, como banheiros e ônibus somente
para negros.

Antigamente, as empregas eram chamadas de help, e cuidavam além de tarefas


domésticas, das crianças que praticamente eram abandonadas por seus pais
biológicos. Essas mulheres, por anos, ofereciam atenção e carinho, mas nunca
recebiam consideração, sendo que poderiam ser demitidas por qualquer motivo e a
qualquer hora.

Cabe aqui destacar registro histórico e antropológico conforme SEGATO, R. L


(2006, p. 4) “As práticas “de longa duração histórica” que Suely Gomes Costa chama
maternidade transferida, “presentes na vida social desde os primórdios coloniais”
(Gomes Costa 2002: 305) incluíram, durante a Colônia e até a segunda metade do
século XIX, os serviços das amas-de-leite, que, a partir de então, foram restringindo-
se lentamente aos de amas-secas ou babás”.
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[...] cabia às escravas negras o serviço de ama-de-leite, criando-se assim a


figura da mãe preta, tão presente na literatura brasileira [...]. A utilização de
amas-de-leite, que originalmente era uma prática das famílias abastadas,
passa a ser uma demanda também da classe média urbana a partir do
século XIX, o que pode ser atestado pela quantidade importante de
anúncios na imprensa oferecendo ou procurando o serviço de amas-de-leite
de aluguel, e também pela presença constante dessa questão no discurso
médico da época (Sandre-Pereira: 473-474).

SEGATO, R. L (2006, p. 5) ainda pontua que “é, contudo, nas estatísticas, que
podemos rastrear a persistência contemporânea da instituição da mãe-preta, já na
sua função de mãe-seca e polivalente criadeira dos filhos da classe meia”.

As negras, então, limpavam, cozinhavam, ciceroneavam os seus empregadores e


suas visitas satisfazendo-lhes quaisquer caprichos e cuidavam da prataria, dentre
tantos outros inimagináveis afazeres exigidos arbitrariamente pelos patrões. Ainda,
de uma maneira notável, tomavam conta das crianças, suprindo-lhes o amor, o
carinho e a educação negligenciados pelos casais brancos, ocupados estes que
eram apenas em nascer e morrer.

No filme, Skeeter (Emma Stone) é uma jovem que sonha em ser escritora. Recém
formada, consegue um emprego em um jornal local escrevendo uma coluna sobre
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conselhos de limpeza. Mesmo tendo crescido em Jackson e pertencendo a alta


sociedade, Skeeter difere das mulheres de sua idade, não demonstrando interesse
em casar ou ter filhos e principalmente porque tem uma sensibilidade para com a
realidade de segregação, desigualdade e preconceito à qual se encontra. Para
escrever a coluna, Skeeter pede ajuda a Aibileen (Viola Davis), a empregada
doméstica de sua amiga, que é uma das protagonistas do filme e enriquece a
narrativa com seu ponto de vista.

Skeeter também teve uma mãe negra, mas fez disso um móvel para a alteridade,
não adotando o comportamento discriminatório de suas irmãs de pele.

Nesse sentido, segundo SEGATO, R. L (2006, p. 15) é possível compreender as


motivações de Skeeter, pois

“uma criança amamentada ou simplesmente cuidada, desde cedo, por uma


ama de pele mais obscura, uma ama com raízes na escravidão, terá
incorporada esta imagem como própria. Uma criança branca, portanto, será
também negra, por impregnação da origem fusional com um corpo materno
percebido como parte do território próprio, ainda no caso relativamente
pouco frequente de que não tivesse rastros de uma miscigenação ocorrida
nas três últimas gerações em sua genealogia. Nas diatribes, portanto, que
opunham um “leite mercenário” e contaminador ao “leite gratuito” e benigno
da mãe biológica, não somente a voz do discurso higienista se encontrava
presente: a modernização se superpunha aqui à “ojeriza racial voltada
contra os negros” (Ibidem: 66). Discurso modernizador e racismo se
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entrelaçavam aqui num enunciado só contra um inimigo que impregnava, de


dentro e a partir de sua própria interioridade, a ontologia do branco no Brasil
(Carvalho 1988; Segato 1998)”.

O filme traz outra questão importante relacionada ao apego. Skeeter desenvolveu


um vínculo com sua mãe negra. Os autores EIZIRIK, C.; BASSOLS, A.M. (2013, p.
215) conceituam que

O apego é um vínculo recíproco e duradouro entre o bebê e o cuidador,


cada um contribuindo para a qualidade do relacionamento. De um ponto de
vista evolucionista, o apego tem valor adaptativo para o bebê, assegurando
que suas necessidades tanto psicossociais quanto físicas sejam satisfeitas
(MacDonald, 1998).

E é por isso que, contudo, novamente em contato com a realidade de sua cidade, a
jovem se sente incomodada com a realidade dessas mulheres, e decide tentar
escrever sobre suas histórias, frente a uma realidade onde mulheres negras
literalmente criam filhos que não são seus, limpam, passam e cozinham, por salários
baixíssimos tendo sua liberdade e honra desconsideradas. Essas mulheres nunca
haviam sido respeitadas por pessoas brancas, muito menos ouvidas. Devido ao
contato das empregadas domésticas com a criação das crianças nas famílias para
as quais trabalham, um ponto muito importante nessa película são as relações
familiares nessa sociedade. As mulheres negras, tratadas como objetos,
trabalhavam na criação das crianças enquanto os pais se ocupavam em outras
tarefas. Essa contradição aflige quem assiste ao filme, pois apesar do repúdio pelos
funcionários, a conveniência em não se ocupar com as crianças fala mais alto,
mesmo à custa do amor dos filhos.

Tamanha a complexidade dessa relação que SEGATO, R. L (2006, p. 15) nos


elucida da seguinte maneira: “A objetificação do corpo materno – escravo ou livre,
negro ou branco – fica aqui delineada: escravidão e maternidade revelam-se
próximas, confundem-se, neste gesto próprio do mercado do leite, onde o seio livre
oferece-se como objeto de aluguel. Maternidade mercenária se equivale aqui à
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sexualidade no mercado da prostituição, com um impacto definitivo na psique do


infante no que respeita à percepção do corpo feminino e do corpo não branco”.

As babás negras, também chamadas “amas de leite” criavam os filhos das brancas
com amor e carinho sem esperar nada em troca. Era o que faziam e sabiam fazer,
até que uma das personagens cria uma iniciativa de também ter banheiros
separados para as babás negras. Skeeter tem que conviver com suas amigas
egoístas e insensíveis, mas resolve escrever um livro com os depoimentos de várias
babás negras sobre como se sentem e suas histórias vividas nas casas dos
brancos.

Apesar de diferirem o lugar e a época, há de se fazer comparações com o Brasil do


século XXI.

Quanto ao Brasil, o preconceito com os afrodescendentes tem sido um problema


desde a colonização, e afeta a sociedade atual. Ainda há uma divisão evidente entre
pessoas com a cor de pele distinta.

Dessa maneira, Histórias Cruzadas é um filme emocionante, que eleva os desejos


de justiça e igualdade de quem assiste.
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Os versos, ditos rotineira e poeticamente por Aibileen à menina Mae Mobley, “você é
gentil”, “você é importante” e “você é inteligente” são sementes plantadas na
personalidade da menor com vistas à construção de uma pessoa bondosa e ética.
Mas, para além das palavras, o acolhimento físico – isto é, o colo, o abraço e o
conforto dado quando do choro – é doado com dedicação por Aibileen.
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Ao passar um tornado pela cidade, Aibileen está agachada, rodeada por móveis
caídos no chão, ela própria com medo, mas não deixando de abraçar, proteger e
consolar a menor Mae. Não arbitrária, nem coincidentemente, Aibileen passa a ser
vista por Mae como a sua verdadeira mãe, desabrochando entre elas o vínculo
afetivo de mãe e filha. A mãe biológica, por estar sempre envolvida com o marido e
com eventos sociais, chega a evitar a menor, a qual, ao seu turno, não a reivindica
como mãe. Não há como se concluir de outro modo: Aibileen é a mãe de Mae.

O filme é primoroso ao mostrar como elas utilizavam da palavra para transmitir


valores de humanidade e de autoestima àquelas crianças, valores que não
constituíam preocupação alguma por parte dos pais biológicos.
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REFERÊNCIAS

EIZIRIK, C.; BASSOLS, A.M. O ciclo da vida humana: Uma perspectiva


psicodinâmica. 2ª Ed. Porto Alegre: Artmed, 2013.

GOMES COSTA, Suely: “Proteção social, maternidade transferida e lutas pela saúde
reprodutiva”. Revista de Estudos Feministas N° 2, 2002, 301-323.

HISTÓRIAS CRUZADAS. Direção: Tate Taylor. EUA, 2011.

PAPALIA, D.E. Desenvolvimento Humano. 12ª ed. Porto Alegre: Artmed, 2013. Cap.
6: Desenvolvimento Psicossocial nos três primeiros anos.

SANDRE-PEREIRA, Gilza: “Amamentação e Sexualidade”. Revista de Estudos


Feministas, 11(2), pp. 467-491, julho-dezembro, 2003.

SEGATO, R. L. O Édipo Brasileiro: a dupla negação de gênero e raça. Série


Antropologia, 2006.

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