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O mito da maternidade: uma análise dos contos “Quantos filhos Natalina teve?

” e
“Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos”, de Conceição Evaristo.

No prefácio à edição de bolso do livro “Um amor conquistado: o mito do amor


materno”, Elisabeth Badinter revela que a maternidade, naquela época, 1985, era um
termo sagrado, que continuava difícil de se questionar o amor materno e que “a mãe
permanece, em nosso inconsciente coletivo, identificada a Maria, símbolo do
indefectível amor oblativo”. Hoje, em 2021, tal questionamento ainda causa estranheza.
Dependendo da cultura, da forma como a pessoa foi criada, do lugar onde ela vive, das
relações que estabelece com as outras pessoas, da religião que pratica ou fé que
professa, questionar o amor materno é, praticamente, uma ofensa. A crença de que toda
mulher possui um instinto maternal e que é capaz de renunciar seus próprios desejos e
de realizar qualquer sacrifício pelos filhos parece ser algo que faz parte do imaginário
geral.

O mito do instinto, do amor materno é algo tão difundido na nossa cultura que
parece levar grande parte das mulheres, ainda que nem todas queiram, a performar o
papel de mãe. Quando foge a esse padrão, a mulher é constantemente questionada. Se,
por exemplo, uma mulher se casa e, depois de algum tempo, ainda não se tornou mãe,
começa a ser cobrada por isso, o que revela que o papel de mãe já é algo pré-
estabelecido para as mulheres em nossa sociedade.

Além disso, não apenas se espera que a mulher seja mãe, como também é
esperado que ela se identifique completamente com a maternidade, sinta prazer em
gerar o filho durante os noves meses de gravidez, espere ansiosamente a sua chegada,
regale-se com o prazer de poder amamentar a criança, esqueça os cuidados consigo
própria depois que o bebê nascer para se dedicar única e exclusivamente àquele
serzinho, que, a partir de então, deve ser o centro da sua vida , o ser pelo qual será capaz
de abdicar de todos os seus sonhos, desejos e de fazer qualquer sacrifício.

Butler (2006), em “Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade”


nos fala sobre atos performativos, pré-estabelecidos por regras e formações discursivas,
que levariam as pessoas a atuarem de acordo com o que se espera do seu sexo. Meninos
e meninas são educados de forma diferente na sociedade. Ensina-se a menina a se vestir,
falar, andar, se portar de uma determinada forma e os meninos de outra. Também se
destinam a ela os trabalhos da casa, o cuidado dos irmãos menores, se os há, como se
fosse uma preparação para, mais tarde, assumir o papel de esposa, dona de casa e mãe.

À medida que vão crescendo, meninos e meninas continuam sendo educados


para performar determinados papéis. Estimula-se o garoto a namorar, chegando ao
cúmulo, de algum tempo atrás, os pais levarem os filhos ao bordel para iniciá-los na
vida sexual; enquanto se espera que as garotas se mantenham virgens até o casamento,
sejam boas esposas e boas mães.

Como se pode notar, por meio desses exemplos, desde o nascimento, já se


estabelece papéis diferentes para meninos e meninas e a educação que vão recebendo ao
longo da vida tem a função de fazer com que se conformem a eles. A educação
oferecida é artibitrária e quem não se conforma a essas regras e papéis pré-estabelecidos
sofre punições, como por exemplo, os homossexuais, transexuais, intersexuais, etc., que
são relegados à margem da sociedade, não considerados sequer como pessoas por não
performarem os atos condicionados ao seu sexo. O mesmo ocorre com as mulheres que
não se submetem aos papéis que lhe foram histórica e culturalmente impostos, como
aquelas que não se casam, não têm filhos ou que, por algum motivo, abandona-os.

Segundo Saffioti (1987), em “A mulher na sociedade de classes: mito e


realidade”, a identidade social da mulher, assim como a do homem, é construída através
da atribuição de distintos papéis, que a sociedade espera ver cumpridos pelas diferentes
categorias de sexo. A sociedade delimita, com bastante precisão, os campos em que
pode operar a mulher, da mesma forma como escolhe os terrenos em que podem atuar
os homens (SAFFIOTI, 1987, p. 8).

A educação dos filhos, por exemplo, é uma tarefa atribuída à mulher, inclusive,
àquelas que trabalham fora. Nesse último caso, a sociedade permite que ela os deixe os
aos cuidados de alguém da família ou de uma pessoa paga para esse fim. Entretanto, só
há essa permissão quando tal mulher precisa ganhar seu próprio sustento ou
complementar a renda familiar. Todavia, essa não é uma regra que se aplica a todas as
mulheres, pois as das classes dominantes não têm essa necessidade de justificar a
delegação da tarefa de cuidar dos filhos a outrem. Entretanto, ainda assim, mesmo
ficando livre do trabalho manual de educá-los, são elas quem deve supervisionar o
trabalho das outras pessoas para isso. Dessa forma, independente da classe social a que
pertence, a responsabilidade última com o cuidado da casa e a educação dos filhos é um
papel atribuído às mulheres, atribuindo-lhes, assim, total responsabilidade pela
maternidade, algo que muitas vezes é vivenciado de forma totalmente solitária.

De uns tempos para cá, porém, além de algumas mulheres começarem a dizer
com todas as letras que não querem ser mães e de outras começarem a falar sobre as
dificuldades da maternidade, do pós-parto, do cuidado com os filhos; há também as que
revelam não sentir esse amor incondicional pelos seus rebentos. Entretanto, tais
mulheres, ao relatarem suas experiências, não recebem muito apoio. Pelo contrário, são
extremamente criticadas como se estivessem a cometer algum crime.

Não se aceita que não performem o papel “mãe extremosa e abnegada”. Quem
tenta subverter a essa ordem “natural das coisas” a esse padrão é considerado uma
aberração, porque a sociedade vem sendo educada por diversos dispositivos: igreja,
família, escola, mídia, etc. a ver a mulher representando o papel de mãe e esposa e a se
sentir feliz assim.

A literatura também tem sido um dispositivo a contribuir para esse fim.


Personagens femininas, sobretudo brancas, em muitas obras literárias, só encontram a
realização total no casamento e na maternidade, esta sendo constantemente descrita
como o que completaria mulher, fazendo com que se sentisse plena; tanto que muitas
personagens chegam a ponto de quase enlouquecer por não conseguirem “dar um filho
amo marido”.

Entretanto, alguns autores, sobretudo autoras, talvez por vivenciarem a


experiência da maternidade ou partilhá-la com outras mulheres; conhecendo, portanto,
as nuances e tudo que envolve ser mulher e ser mãe numa sociedade misógina,
machista, sexista e racializada começam a criar personagens femininas que não se
enquadram nos papéis pré-estabelecidos como os de esposa e mãe amorosa. Conceição
Evaristo, escritora contemporânea, em seu livro “Olhos d’água”(2014), nos dá um bom
exemplo disso.

No conto “Quantos filhos Natalina teve?”, por meio da técnica de flashback,


Evaristo nos conta a história de Natalina, que está na sua quarta gravidez, porém,
considera que tem apenas um filho, ou seja, esse que está para nascer, pois ele será
apenas seu, de homem nenhum. Esse é o único filho desejado por ela, apesar de ter sido
fruto de um estupro. Natalina odiara as outras gestações e nenhum amor tivera pelos três
filhos frutos delas: “Não aguentava se ver estufando, estufando, pesada, inchada e
aquele troço, aquela coisa mexendo dentro dela. Ficava com o coração cheio de ódio”
(EVARISTO, 2014, p.45).

A primeira gravidez foi quando ela era ainda quase menina, quatorze anos. O pai
era seu namoradinho da infância com quem ela descobrira o prazer. Quando a mãe
soube e perguntou se ela queria o filho, respondeu que não, pediu que ela não contasse a
ninguém, pois iria dar um jeito: “Natalina sabia de certos chás. Várias vezes vira a mãe
beber. Sabia também que às vezes os chás resolviam, outras vezes, não” (EVARISTO,
2014, p.46).

Ela mesma preparou o chá e o tomou por vários dias, mas sem resultado. A mãe
então resolveu ela mesma preparar os chás, pois já havia sete pessoas morando na casa e
não tinham condições para criar mais uma. Se os chás não resolvessem, teria de levá-la
a Sá Praxedes, uma velha parteira, que tinha má fama na região, inclusive a fama de que
comia as crianças. Com medo de ser levada à parteira, Natalina foge para longe, o filho
nasce e ela o entrega a uma enfermeira que ajudara no parto.

Aqui se observa algo diferente do que aponta Paula Cristina Silva na sua tese
“Aqui é tudo uma família só: maternidade e práticas culturais de um grupo de mulheres
em uma comunidade quilombola no Alto Jequitinhonha” (2020). Ao acompanhar a vida
as mulheres nesse quilombo, ela percebe que lá a maternidade é compartilhada, as
mulheres se ajudam na criação dos filhos, irmãs mais velhas cuidam dos irmãos mais
novos, vós cuidam dos netos, tias dos sobrinhos e todas cuidam dos filhos de todas nos
momentos em que trabalham juntas.

Natalina não encontra essa rede de solidariedade na família, nem no lugar onde
vive: uma favela. Sua mãe não deseja acolher mais aquela criança em uma casa em que
o pouco espaço e a pouca comida já são divididos por muitos. Na realidade da
comunidade quilombola onde Silva (2020) realizou seu estudo a lógica seria outra:
“Onde comem 7, comem oito” .

Na segunda gravidez, embora Natalina estivesse mais esperta e se precavesse, a


semente vingou. Quando o pai da criança soube, queria formar uma família. No entanto,
Natalina não queria família nenhuma, nem o filho. Quando a criança nasceu, esta ficou
com o pai que voltou para sua terra sem entender Natalina: “Tonho chorou e voltou para
a terra dele, sem nunca entender a recusa de Natalina diante do que ele julgava ser o
modo de uma mulher ser feliz. Uma casa, um homem, um filho...” (EVARISTO, 2014,
P.48).

Como se pode observar, não foi apenas a falta de uma rede de solidariedade que
ajudasse Natalina na criação dos filhos que a faz abandoná-los. Ela simplesmente não os
quer e, talvez pela realidade em que vive, a falta de uma educação sexual adequada, a
dificuldade de acesso a contraceptivos, não se previna.

A terceira gravidez também não foi desejada. A patroa de Natalina é que a


desejou. A mulher não conseguia ter filhos e pediu que a empregada deitasse com seu
marido: “Ela e o marido já haviam conversado. Era só a empregada fazer um filho para
o patrão. Eles se pareciam um pouco. Natalina só tinha um tom de pele mais negro. Um
filho de Natalina com o marido podia passar como sendo seu” (EVARISTO, 2014,
P.49).

Evaristo (2014) nos apresenta, de um lado, uma mulher capaz de uma atitude
extrema para realizar o desejo de ser mãe e, do outro, Natalina que engravida e tem um
filho como se executasse uma tarefa qualquer, que carrega em seu ventre esse filho,
pensando nele como uma coisa de que logo ela se livrará.

Nesse conto, Evaristo rompe com a imagem estereotipada, disseminada na


cultura brasileira, inclusive, nos textos literários, que é a de que a mulher já nasce com
uma predisposição natural de ser mãe e que toda mãe ama seu filho. Tonho, pai do
segundo filho de Natalina, não conseguiu entender como ela não poderia estar realizada
tendo uma casa, um homem e um filho. Mas Natalina foge do padrão imposto pela
sociedade. Não quer filhos, não quer se casar. Quer ser livre, dona de si. Quer poder
fazer da sua vida o que quiser. Ainda que não possamos julgar seus atos como certos ou
errados, ela é uma mulher capaz de escolher, de decidir o que quer para a própria vida.
O modo como ela encara a gravidez, a falta de afeto pelos filhos nos choca, chega a
parecer que algo assim não é possível de existir tão acostumados estamos com o ideal
do instinto materno.

Em outro conto “Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos”, a personagem


principal é Zaíta. Ela está brincando com suas figurinhas e ao espalhá-las no chão,
percebe que falta uma. Exatamente a que mais gosta e aquela que a irmã sempre lhe
propunha uma troca. Sabia que tinha sido pega por ela, mas de nada adiantava contar a
mãe, pois esta ficaria com raiva e bateria nas duas: “A mãe de Zaíta estava cansada.
Tinha trinta e quatro anos e quatro filhos” (EVARISTO 2014, p. 76). Duas meninas
pequenas e dois filhos homens. Um estava no exército e outro, desde muito cedo, estava
no mundo do crime.

Na esperança de encontrar a figurinha, a menina vira no chão uma caixa de


brinquedos velhos. Sabia que a mãe não gostava de que fizesse aquilo, mas, depois de
procurar e nada encontrar, levantou-se, deixando os brinquedos espalhados pelo chão.
Após procurar a irmã nos fundos da casa, saiu para a rua, sem nada avisar a mãe, que
arrumava uns poucos mantimentos no armário, pois tinha medo dela. Saiu pelo beco à
procura da irmã e as pessoas que a encontravam perguntavam-lhe por que ela estava tão
longe de casa.

A mãe de Zaíta ao perceber o silêncio na casa, sentiu certo temor e foi até a sala
à procura das filhas, mas, ao chegar lá, e encontrar os brinquedos espalhados, a
preocupação cede espaço à raiva. Ela pega uma boneca negra, a mais bonitinha de
todas, e a destrói. Enquanto Zaíta andava distraída, um tireteio começou. Algumas
pessoas chamaram-na para dentro de suas casas, mas ela só pensava na figurinha.
Diversas balas atingiram o corpo da menina. Depois de um minuto, quando tudo estava
terminado, diversos homens sumiram pelos becos e cinco ou seis corpos, como o de
Zaíta jaziam no chão.

Nesse conto, Evaristo (2014) aborda um dos maiores problemas enfrentados


atualmente nas favelas brasileiras: a morte de crianças. Ora nos tiroteios de gangues
rivais, ora nas ações dos policiais. Não há proteção para as crianças que vivem nas
comunidades. Elas vivem no limite da vida. A mãe de Zaíta não consegue protegê-la,
pois é mãe solo, está atarefada com as tarefas diárias, cansada pelo trabalho fora de casa
e preocupada com as contas. Não tem com quem compartilhar a maternidade. As
atribulações do dia a dia são tantas que não há espaço para o afeto. Criar os filhos não é
um sonho colorido para mãe de Zaíta, mas sim uma difícil realidade.

Assim como ela, a comunidade também não consegue proteger a menina, nem
ser uma rede de apoio para a mãe. Várias pessoas, percebendo o perigo que a criança
corria ao se distanciar tanto de casa, aconselham-na a voltar. Porém, ninguém intervém
de fato, pegando na mão dela e levando-a para dentro ou de volta à sua casa.
Provavelmente, não é a falta de amor, de solidariedade que os impede, mas o medo de
serem alvo de uma bala perdida. Nesse caso, a realidade é bastante diferente da do
quilombo em que “aqui é tudo uma família só” e todo mundo cuida de todo mundo. Na
realidade da favela, muitas vezes, é imperativo que cada um cuide de si para garantir a
própria vida. Não estou dizendo que não existam redes de solidariedades nesses locais.
O que penso é que, neles, as condições em que as pessoas vivem não contribuem para
que funcionem com a mesma força que parece acontecer no quilombo estudado por
Silva (2020). No caso da mãe de Zaíta, a maternidade parece ser muito mais solitária do
que compartilhada.

Ao narrar a história de Zaíta, sua morte precoce, Evaristo coloca em cena,


assuntos negligenciados pela literatura canônica, mostrando que nem todas as meninas
crescem amparadas e cuidadas por seus pais, pela sociedade e nem todas as mães têm o
direito de cuidar de seus filhos, pois muitas estão ocupadas demais cuidando das casas,
dos filhos dos outros. A mãe das meninas rompe com o estereótipo da mãe amorosa.
Está tão cansada, tão preocupada em sustentar a família que deixa as meninas em
segundo plano, mesmo sabendo dos perigos de não se manter uma vigilância constante
em relação a elas.

Portanto, há que se concordar com Badinter (1985), quando ela reflete que o
amor materno é um mito e não há uma conduta materna universal e necessária. Tal amor
varia conforme a cultura, ambições ou frustações da mãe. Como qualquer outro
sentimento, o amor materno é frágil, incerto e imperfeito. Contrariamente ao que se
pensa e se propaga, não está inscrito na natureza feminina. Não é um determinismo, mas
sim algo que se adquire.

Referências bibliográficas:

BADINTER, Elisabeth. Um Amor conquistado: o mito do amor materno. Trad.


Waltensir Dutra. — Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

SILVA, Paula Cristina. Aqui é tudo uma família só: maternidade e práticas culturais
de um grupo de mulheres em uma comunidade quilombola no Alto Jequitinhonha.
2020.

EVARISTO. Conceição. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas, 2014.

SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. Petrópolis:


Vozes, 1986.

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