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” e
“Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos”, de Conceição Evaristo.
O mito do instinto, do amor materno é algo tão difundido na nossa cultura que
parece levar grande parte das mulheres, ainda que nem todas queiram, a performar o
papel de mãe. Quando foge a esse padrão, a mulher é constantemente questionada. Se,
por exemplo, uma mulher se casa e, depois de algum tempo, ainda não se tornou mãe,
começa a ser cobrada por isso, o que revela que o papel de mãe já é algo pré-
estabelecido para as mulheres em nossa sociedade.
Além disso, não apenas se espera que a mulher seja mãe, como também é
esperado que ela se identifique completamente com a maternidade, sinta prazer em
gerar o filho durante os noves meses de gravidez, espere ansiosamente a sua chegada,
regale-se com o prazer de poder amamentar a criança, esqueça os cuidados consigo
própria depois que o bebê nascer para se dedicar única e exclusivamente àquele
serzinho, que, a partir de então, deve ser o centro da sua vida , o ser pelo qual será capaz
de abdicar de todos os seus sonhos, desejos e de fazer qualquer sacrifício.
A educação dos filhos, por exemplo, é uma tarefa atribuída à mulher, inclusive,
àquelas que trabalham fora. Nesse último caso, a sociedade permite que ela os deixe os
aos cuidados de alguém da família ou de uma pessoa paga para esse fim. Entretanto, só
há essa permissão quando tal mulher precisa ganhar seu próprio sustento ou
complementar a renda familiar. Todavia, essa não é uma regra que se aplica a todas as
mulheres, pois as das classes dominantes não têm essa necessidade de justificar a
delegação da tarefa de cuidar dos filhos a outrem. Entretanto, ainda assim, mesmo
ficando livre do trabalho manual de educá-los, são elas quem deve supervisionar o
trabalho das outras pessoas para isso. Dessa forma, independente da classe social a que
pertence, a responsabilidade última com o cuidado da casa e a educação dos filhos é um
papel atribuído às mulheres, atribuindo-lhes, assim, total responsabilidade pela
maternidade, algo que muitas vezes é vivenciado de forma totalmente solitária.
De uns tempos para cá, porém, além de algumas mulheres começarem a dizer
com todas as letras que não querem ser mães e de outras começarem a falar sobre as
dificuldades da maternidade, do pós-parto, do cuidado com os filhos; há também as que
revelam não sentir esse amor incondicional pelos seus rebentos. Entretanto, tais
mulheres, ao relatarem suas experiências, não recebem muito apoio. Pelo contrário, são
extremamente criticadas como se estivessem a cometer algum crime.
Não se aceita que não performem o papel “mãe extremosa e abnegada”. Quem
tenta subverter a essa ordem “natural das coisas” a esse padrão é considerado uma
aberração, porque a sociedade vem sendo educada por diversos dispositivos: igreja,
família, escola, mídia, etc. a ver a mulher representando o papel de mãe e esposa e a se
sentir feliz assim.
A primeira gravidez foi quando ela era ainda quase menina, quatorze anos. O pai
era seu namoradinho da infância com quem ela descobrira o prazer. Quando a mãe
soube e perguntou se ela queria o filho, respondeu que não, pediu que ela não contasse a
ninguém, pois iria dar um jeito: “Natalina sabia de certos chás. Várias vezes vira a mãe
beber. Sabia também que às vezes os chás resolviam, outras vezes, não” (EVARISTO,
2014, p.46).
Ela mesma preparou o chá e o tomou por vários dias, mas sem resultado. A mãe
então resolveu ela mesma preparar os chás, pois já havia sete pessoas morando na casa e
não tinham condições para criar mais uma. Se os chás não resolvessem, teria de levá-la
a Sá Praxedes, uma velha parteira, que tinha má fama na região, inclusive a fama de que
comia as crianças. Com medo de ser levada à parteira, Natalina foge para longe, o filho
nasce e ela o entrega a uma enfermeira que ajudara no parto.
Aqui se observa algo diferente do que aponta Paula Cristina Silva na sua tese
“Aqui é tudo uma família só: maternidade e práticas culturais de um grupo de mulheres
em uma comunidade quilombola no Alto Jequitinhonha” (2020). Ao acompanhar a vida
as mulheres nesse quilombo, ela percebe que lá a maternidade é compartilhada, as
mulheres se ajudam na criação dos filhos, irmãs mais velhas cuidam dos irmãos mais
novos, vós cuidam dos netos, tias dos sobrinhos e todas cuidam dos filhos de todas nos
momentos em que trabalham juntas.
Natalina não encontra essa rede de solidariedade na família, nem no lugar onde
vive: uma favela. Sua mãe não deseja acolher mais aquela criança em uma casa em que
o pouco espaço e a pouca comida já são divididos por muitos. Na realidade da
comunidade quilombola onde Silva (2020) realizou seu estudo a lógica seria outra:
“Onde comem 7, comem oito” .
Como se pode observar, não foi apenas a falta de uma rede de solidariedade que
ajudasse Natalina na criação dos filhos que a faz abandoná-los. Ela simplesmente não os
quer e, talvez pela realidade em que vive, a falta de uma educação sexual adequada, a
dificuldade de acesso a contraceptivos, não se previna.
Evaristo (2014) nos apresenta, de um lado, uma mulher capaz de uma atitude
extrema para realizar o desejo de ser mãe e, do outro, Natalina que engravida e tem um
filho como se executasse uma tarefa qualquer, que carrega em seu ventre esse filho,
pensando nele como uma coisa de que logo ela se livrará.
A mãe de Zaíta ao perceber o silêncio na casa, sentiu certo temor e foi até a sala
à procura das filhas, mas, ao chegar lá, e encontrar os brinquedos espalhados, a
preocupação cede espaço à raiva. Ela pega uma boneca negra, a mais bonitinha de
todas, e a destrói. Enquanto Zaíta andava distraída, um tireteio começou. Algumas
pessoas chamaram-na para dentro de suas casas, mas ela só pensava na figurinha.
Diversas balas atingiram o corpo da menina. Depois de um minuto, quando tudo estava
terminado, diversos homens sumiram pelos becos e cinco ou seis corpos, como o de
Zaíta jaziam no chão.
Assim como ela, a comunidade também não consegue proteger a menina, nem
ser uma rede de apoio para a mãe. Várias pessoas, percebendo o perigo que a criança
corria ao se distanciar tanto de casa, aconselham-na a voltar. Porém, ninguém intervém
de fato, pegando na mão dela e levando-a para dentro ou de volta à sua casa.
Provavelmente, não é a falta de amor, de solidariedade que os impede, mas o medo de
serem alvo de uma bala perdida. Nesse caso, a realidade é bastante diferente da do
quilombo em que “aqui é tudo uma família só” e todo mundo cuida de todo mundo. Na
realidade da favela, muitas vezes, é imperativo que cada um cuide de si para garantir a
própria vida. Não estou dizendo que não existam redes de solidariedades nesses locais.
O que penso é que, neles, as condições em que as pessoas vivem não contribuem para
que funcionem com a mesma força que parece acontecer no quilombo estudado por
Silva (2020). No caso da mãe de Zaíta, a maternidade parece ser muito mais solitária do
que compartilhada.
Portanto, há que se concordar com Badinter (1985), quando ela reflete que o
amor materno é um mito e não há uma conduta materna universal e necessária. Tal amor
varia conforme a cultura, ambições ou frustações da mãe. Como qualquer outro
sentimento, o amor materno é frágil, incerto e imperfeito. Contrariamente ao que se
pensa e se propaga, não está inscrito na natureza feminina. Não é um determinismo, mas
sim algo que se adquire.
Referências bibliográficas:
SILVA, Paula Cristina. Aqui é tudo uma família só: maternidade e práticas culturais
de um grupo de mulheres em uma comunidade quilombola no Alto Jequitinhonha.
2020.