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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

UFRJ

Débora Muramoto Alves de Castilho

AS CONTRADIÇÕES DA MATERNIDADE DA DOMÉSTICA:


REFLEXÕES DE UMA “FILHA EMPRESTADA”

RIO DE JANEIRO
Dezembro de 2022
Introdução
Este ensaio autoetnográfico trata da minha experiência como pessoa cuidada por uma
doméstica, ou, nas palavras dela, como sua “filha emprestada”. De origem nortista e
periférica, ela - a quem, aqui, chamarei pelo pseudônimo de Margarida -, acompanhou a
minha vida até o recente momento da sua morte, pouco antes da escrita deste texto.
Essa relação contraditória fundamenta-se na esfera do racismo, do sexismo e das
desigualdades sociais, pilares inerentes ao capitalismo. Como esses elementos socialmente
estruturantes são tão encarnados na esfera da família brasileira, percebo que debater a vida das
domésticas na célula familiar é central, não só da perspectiva das pessoas vulneráveis, mas a
partir de uma visão crítica dos beneficiados desse trabalho, implicados no processo. Assim, a
partir dos debates sobre família, gênero e racismo, analisarei a minha experiência com
Margarida, sujeita do entrelugar de central e marginal na maternidade, e que construiu, em
minha vida, um lugar estranhado de filha. Proponho, assim, criar inteligibilidades acerca do
tema e contribuir para o entendimento do papel das domésticas brasileiras e seus impactos na
constituição subjetiva dos envolvidos.
Antes, quero esclarecer a opção epistemológica pela autoetnografia, suas
possibilidades de produção de saberes e relações com o tema.

A autoetnografia e a ficção da neutralidade


A autoetnografia consiste em um paradigma qualitativo de pesquisa que viabiliza o
conhecimento a partir da análise de experiências pessoais. Entre o método e o gênero literário,
ela trata, segundo Maia e Batista (2020), de elementos da etnografia e da autobiografia, se
vale dos métodos etnográficos de pesquisa de campo e da substancialidade subjetiva da
autorreflexão. A investigação, portanto, emana do pesquisador, colocando-o no eixo central
dos estudos e o seu corpo político no debate, o que nega uma autoridade etnográfica absoluta
e pretensamente neutra, viabilizando a subjetividade na escrita científica.
Nessa metodologia, um processo marcante na experiência é metonímia de debates
sociais. Por essa razão, ela é útil para analisar temáticas sobre sujeitos marginais e suas
relações, como as domésticas. Esse grupo, historicamente invisível na hierarquia social do
Brasil, ganha destaque em uma pesquisa dessa natureza, pois, conforme afirma a antropóloga
Fabiene Gama (2020), além de possibilitar o olhar direto aos seus discursos, abarca as
relações partilhadas a partir dessas falas. Dessa maneira, reflito desse contexto, pois, embora
eu não seja uma doméstica, ter sido criada por uma desde a primeira infância me localiza no
universo construído por elas e, portanto, me torna apta a contribuir para entendê-las.
Desenvolvimento
Faltavam somente dois dias para a minha alta, quando minha mãe chegou com
Margarida para me visitar no hospital. Eu estava recém operada há quase 15 dias, e aquele
momento trazia alguma agitação aos dias que demoravam a passar no CTI. Margarida morava
longe e foi a primeira vez que conseguiu se organizar para me ver, o que me deixou muito
feliz. Para evitar atrasos a qualquer lugar que ia, saía sempre muito cedo, mas naquele dia,
pela ansiedade, saiu cedo demais e chegou com três horas de antecedência. Disse ao porteiro:
“Eu vim ver a minha filha”; ele respondeu: “A senhora chegou muito cedo”, e ela sentou e
esperou. Próximo ao horário de abertura da visita, ela começou a conversar com uma senhora
que também aguardava e que logo a reconheceu. “Eu conheço você! Do meu bairro, você
andava com uma menina”. A senhora morava no meu bairro e lembrou de Margarida dos
tempos em que eu era criança e caminhávamos exercendo a prática da sociabilidade.
A entrada de Margarida na minha vida remonta aos meus dois anos de idade, no final
da década de 80. Em um Brasil hostil, saído da ditadura, esperava por uma oportunidade, em
uma agência que intermediava contratações de empregadas domésticas. Ali, recebeu a notícia
de que um casal precisava de alguém para cuidar da sua bebê e fazer faxina. Disponível pelas
circunstâncias, Margarida pegou a sua trouxa de roupas e foi encaminhada para conversar
com a minha mãe, uma jovem médica de 35 anos. Foi uma reunião para acertar um trabalho,
mas, inegavelmente, um encontro entre duas mulheres radicalmente diferentes: a do interior
do Norte, descendente de negros e indígenas, e lutava contra a pobreza, e a outra, do interior
do Sul, descendente de colonos japoneses, e com uma carreira promissora pela frente.
Esse arranjo familiar em minha história - mãe, pai e babá/doméstica - não é,
infelizmente, uma realidade isolada no Brasil. Ele se diferencia desse paradigma familiar
porque, para além daqueles envolvidos na união heterossexual do casamento, no enquadre
brasileiro há a marca extraconjugal de um terceiro entre os adultos, cuja entrada é definida
pela venda da força de trabalho e o corpo é historicamente racializado. Esse sujeito ocupa um
entrelugar fundamental para o bom funcionamento da célula familiar da classe média, no qual,
ao mesmo tempo em que ele é necessário, é, também, invisibilizado. Esse apagamento se dá
em uma estrutura familiar que mimetiza a família europeia burguesa, como comenta a
antropóloga Mariza Corrêa (2007), mas, na contemporaneidade do século XX, ganha
contornos da emancipação feminina branca nos trópicos. Assim, pela necessidade que a
minha mãe tinha de trabalhar fora de casa e pela inutilidade doméstica do meu pai - traço
comum na unidade familiar patriarcal - que Margarida passou a cuidar da limpeza e de mim.
A nossa convivência dividia-se entre os turnos da manhã, quando eu ficava em uma
creche, e da tarde, quando Margarida me buscava. Nos passeios, à tarde, de onde a senhora da
fila reconheceu Margarida, encontrávamos outras mulheres com crianças, algumas
domésticas, outras, somente mulheres da região, com as quais Margarida jamais se furtava de
conversar para saber das novidades. Tais experiências, que vejo como cruciais na constituição
da minha autonomia, me remetem a Corrêa (2007), quando a antropóloga comenta sobre o
trabalho de Jim Swan. Em seu texto, a autora pontua que Swan ressaltou a importância da
babá como uma grande referência no desenvolvimento, a ponto de afirmar que há, na
realidade, duas mães: uma boa e uma má. Certamente, posso afirmar que Margarida era a boa
mãe, não pela minha mãe biológica ser moralmente má, mas pela sua ausência. A ausência era
ruim e ela estava sempre muito cansada na presença. Ela chegava em casa tarde - e nesse
ínterim, Margarida ia embora - e, em sua dupla jornada, cozinhava para o dia seguinte. Assim,
posso afirmar que minha mãe esteve presente, mas somente quando era imprescindível. Ela
elogiava Margarida, em tom de alívio sobre ela saber lidar com crianças, saber sobre o asseio
e os temas mais complexos, como transições alimentares e cuidados de saúde. Tudo isso não
só porque a minha mãe não dispunha de tempo, mas também porque meu pai não se
interessava em participar, mesmo estando em casa por mais tempo que ela. Assim, da
intensidade dessa convivência, não é uma surpresa que cultivei fortes laços com Margarida.
No entanto, as problemáticas que nascem desse tipo de vínculo mostram-se flagrantes
a médio e longo prazo, mesmo nas relações consideradas amigáveis. Primeiro porque nascem
contradições da hierarquia de um trabalho que, no Brasil, remete à escravidão e tem
determinados os lugares sociais de cada ator envolvido. Dessa forma, quando eu tinha cerca
de seis anos, Margarida precisou trazer sua filha, da minha idade. Ela era fruto de um
relacionamento antigo e, pelo que eu soube, o pai da criança morava na Bahia. Margarida
queria, portanto, ficar com a menina. No entanto, nesse período, nós recebemos em casa a
irmã da minha mãe, minha tia, com um câncer de mama avançado, e meu primo, da minha
idade. Meu pai estava desempregado nessa época e, perdulário, ele gastava boa parte do
dinheiro da minha mãe. Ao final, contávamos todos com a minha mãe. Um dia, diante das
circunstâncias, minha mãe precisou pedir a Margarida que levasse a filha embora, pois estava
difícil sustentar a situação, tanto financeiramente como emocionalmente. Dependente do
trabalho, Margarida aceitou e recorreu ao pai da sua filha, que levou a criança para a Bahia
definitivamente. Depois que a minha tia faleceu, Margarida partiu pela primeira vez - pois ela
partiu outras vezes e voltaria mais outras a fazer parte das nossas vidas.
Penso que esse episódio específico explicita muitas problemáticas que envolvem o
trabalho doméstico. O que mais salta aos olhos é a impossibilidade de todas as mulheres
exercerem o papel de mãe, pois enquanto a mulher de classe média luta para cumprir jornadas
duplas de trabalho, mas mantém a estrutura familiar, a outra, periférica, é a única que precisa
lidar com jornadas triplas e chegar ao ponto de optar por deixar de ver a própria filha. Mesmo
sendo inegável a sobrecarga que minha mãe vivia, advinda, sobretudo, da falta de
acolhimento e rede de apoio ainda reais, o peso do gênero, em Margarida, aumenta quando se
consideram raça e classe, pois, até seus últimos dias, ela não conseguiu mais reatar laços com
a filha biológica. Eu fui a última filha a vê-la antes de ela partir. A “filha emprestada”, de uma
concessão injusta.
Desse empréstimo, constitui-se a teia social brasileira, racista e desigual, conforme
comenta Corrêa (2007), quando diz que “(...) amas de leite negras tinham de abdicar de
amamentar seus filhos - ou amamentá-los secundariamente - quando eram convocadas, ou
alugadas para amamentar as crianças brancas” (CORRÊA, 2007, p.78). Analogamente, isso
ocorreu à Margarida, pois ao ser chamada para cuidar de outra criança, acabou por ter de
abdicar aos cuidados da filha, solicitação que alcançou o preço da sua sobrevivência. Ela foi,
como afirma Lélia Gonzalez (1984), a minha “mãe preta”, quem me dedicou atenção e afeto,
não por ser um “(...) exemplo extraordinário de amor e dedicação totais (...)” (GONZALEZ,
1984, p.235), mas por ter sido minha mãe verdadeiramente. Lembro que a cada partida dela,
sempre motivada por razões das dificuldades da vida, principalmente financeiras, eu
experimentava uma confusão de sentimentos sofridos, talvez por não compreender
completamente que estava sendo abandonada pela mãe. Por uma delas, a mãe preta que não
tinha direito de escolha e viveu 66 anos pressionada a abandonar seus filhos. Seja a biológica,
sejam os emprestados - pois houveram outros depois de mim.
Eu estava triste no dia em que Margarida foi me visitar, pois a rotina do CTI era
exaustiva. Quando ela chegou, eu a abracei com força, e não bastaram 15 minutos para que
estivéssemos eu, ela e a minha mãe alegres. Ela estava particularmente animada, pois
faltavam poucos meses para a sua aposentadoria, algo que sei que era de grande desejo dela.
Quando foram embora, ela disse que me visitaria já em casa, algo que nunca aconteceu.
Margarida partiu definitivamente, trabalhando, em uma terça-feira de setembro, de um infarto
fulminante, três dias depois de me ver. Recebi essa notícia com muita dor, na convalescença, e
não fui ao enterro pois ainda não conseguia levantar da cama. Para me despedir, fiz um altar
em casa em sua homenagem e acendi uma vela. Ainda irei ao cemitério.
Considerações Finais
Embora a minha vivência com Margarida seja individual, é possível generalizá-la
como uma experiência social. Em um Brasil ainda elitista, racista e machista, mulheres
periféricas, como ela, continuam a se encarregar do trabalho doméstico e a criar muitas
crianças que não colocaram no mundo. Nesse cenário, mesmo que a minha mãe nunca tivesse
voluntariamente destratado Margarida - em nossa casa, ela sempre comeu conosco, usava
todas as dependências sem restrições, tinha a carteira de trabalho regularizada, o que era o
mínimo de dignidade laboral que um indivíduo deve receber -, em um momento de
tensionamento, ela foi a primeira posta em sacrifício. Acredito que isso ocorreria
inevitavelmente, pois como membro da família, Margarida ocupava um papel secundário.
Poderia - e deveria - ter sido o meu pai, mas o seu papel protagonista na formação familiar
tradicional cristã, em oposição ao de Margarida, o protegeu. E, ainda sim, ela retornou várias
vezes, tanto para trabalhar, nos visitar ou para nos ajudar em momentos difíceis.
Nessas complicadas relações, os afetos são construídos como flores no asfalto. Eles
nascem das contradições do capitalismo, esse sistema de exploração do homem pelo homem,
fundamentado nas questões de gênero, raça e classe. Das situações emergentes, misturam-se
carinhos com a forma como recebemos as opressões do mundo. Elas envolvem dor, o que, por
vezes, nos faz mascará-la na ausência, como minha mãe, ou na gratidão, como Margarida.
Hoje, percebo o pedido da minha mãe a Margarida como equivocado, mas acho que
dificilmente teria sido diferente. Há, nesse tipo de situação, a influência inegável de estruturas
nas quais sujeitos estão inseridos e, assim, são levados a disputarem e a se anularem, ainda
que guardem afetos entre si. No lado da minha mãe biológica, a família tradicional, cujo
parentesco se fundamenta no casamento cristão, e o trabalho, que representa, no capitalismo, a
emancipação segregacionista que jamais abarcará todas as mulheres. Ficar em casa para
cuidar dos filhos, executando um papel entendido como feminino, significaria não trabalhar e
desfazer o seu casamento implicaria abrir mão de uma instituição que a validava como
mulher. No lado de Margarida, em contrapartida, havia somente a sobrevivência, porque ela
era um corpo cuja permissão para sequer existir ainda é posta em dúvida pelo sistema. Não
abrir mão da própria parentalidade significaria abrir mão da subsistência. Ao final, ambas as
maternidades são afetadas, de formas e intensidades diferentes, o que nos sinaliza para a
necessidade de reconstruir as nossas sociabilidades de maneira radicalmente antissistêmica,
porque só assim nos direcionaremos a um horizonte mais justo.
Referências
CORRÊA, Mariza. A babá de Freud e outras babás. Cadernos Pagu, Campinas, n.29,
p.61-90, 2007. Disponível em:
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/8644818
GAMA, Fabiene. A autoetnografia como método criativo: experimentações com a esclerose
múltipla. Anuário Antropológico, Brasília, v.45, n.2, p.188-208, 2020. Disponível em:
https://journals.openedition.org/aa/5872
GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje,
Anpocs, São Paulo, p. 223-244, 1984. Disponível em:
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/5509709/mod_resource/content/0/06%20-%20GON
ZALES%2C%20L%C3%A9lia%20-%20Racismo_e_Sexismo_na_Cultura_Brasileira%20%2
81%29.pdf
MAIA, Suzana; Batista, Jeferson. Reflexões sobre a autoetnografia. Revista Prelúdios,
Bahia, v.9, n.10, p.240-246, 2020. Disponível em:
https://periodicos.ufba.br/index.php/revistapreludios/article/download/37669/26323#:~:text=
A%20autoetnografia%2C%20assim%20como%20a,%C3%A7%C3%A3o%20com%20o%20
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