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ETNOGRAFIAS EM TEMPO DE PANDEMIA: COMO MÃES ARTISTAS

ACADÊMICAS VEM TRABALHANDO SUAS PRODUÇÕES EM MEIO AO


ISOLAMENTO SOCIAL DADO PELA COVID-19 NO ESTADO DO CEARÁ.

Bartira Dias de Albuquerque 1

RESUMO:
Este artigo investiga como mães artistas e acadêmicas da coletiva de arte PARE (Provocação
Artística Ritual Experimental), que se situa no estado do Ceará, tem lidado com suas
pesquisas científicas e projetos artísticos em tempos de pandemia. Dispus-me em pesquisar a
Coletiva, pelo fato do grupo ser bem diverso, pois temos desde mães trans não binária à
pessoa sem filhxs. Meu interesse acerca desta temática é devido a minha própria condição de
mãe solo também pertencente ao grupo, diante de uma necessidade de pensar
etnograficamente com tantas distâncias traçadas pelo isolamento social desde 2020. Resolvi
pensar esta diferença que somos desde os anos 2010, e assim colaborar com uma rede de
mães artistas pesquisadoras para que juntxs possamos lidar com aquilo que nos é demandado,
de maneira mais tranquila em tantas quarentenas. Percebi que no início do processo
pandêmico em março de 2020 até os dias atuais, muitas mães, pesquisadorxs e artistas estão
tendo dificuldades de lidar com a quantidade de demandas que passaram a enfrentar:
trabalhos domésticos, educação das crianças de forma domiciliar, além de suas ocupações
profissionais. Destarte, muitas de nós tem buscado construir redes de apoio com outras mães
para lidar com todas as demandas diárias, e ter o mínimo de visibilidade artística e
acadêmica. A partir destas análises, lanço mão de reflexões acerca do fazer etnográfico e
também da antropologia da performance em Peirano (2006, 2014) e Turner (2013) e também
sobre a antropologia digital por Miller (2012, 2013, 2020) , relacionando a isto, o conceito de
communitas e antiestrutura em Turner (2013) para analisar as potencialidades estabelecidas
pelo conjunto de relações que são vivenciadas através de redes sociais colaborativas,
compondo novas formas de fazer arte e pesquisa entre mães artistas e acadêmicas. Deste
modo vou delineando também a minha maneira de trabalhar a etnografia nestes tempos
pandêmicos e como, através da pesquisa, podemos contribuir com a visibilidade de mães
artistas enquanto espécie de communitas e antiestrutura, colaborando com encontros, com as
produções das mesmas, partilhando cuidados e saberes. A pesquisa etnográfica trabalhada
através de uma antropologia digital ainda se encontra em processo e vale ressaltar que por
sermos de uma mesma coletiva e há tempos nos encontramos distantes, tivemos experiências
através da corporeidade e também dentro do espaço virtual há algum tempo, no entanto
realizar este trabalho em tempos de COVID-19 trouxe outras questões, bem como uma maior
aproximação. Nos acendeu a vontade de reencontros, abrindo possibilidades novas de
intervenções artísticas e de pesquisas, seja off-line ou dentro de estudos etnográficos on-line.

PALAVRAS-CHAVES: PARE; MÃES ARTISTAS; ANTROPOLOGIA DIGITAL;


ETNOGRAFIA; PANDEMIA; COMMUNITAS, ANTIESTRUTURA

1
Bartira Dias de Albuquerque é artista, ativista, performer e poeta, formada em Ciências
Sociais pela Universidade Estadual do Ceará (UECE), Mestra e Doutora em Educação
brasileira pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
MÃES ARTISTAS E ACADÊMICAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: UMA
EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA NO CAMPO DIGITAL PARA SONHAR
COMMUNNITAS ONLINE E OFFLINE.

No início da pandemia no Brasil, em março de 2020 tive que lidar com uma série de
demandas domésticas que me afastaram tanto do meu fazer artístico quanto do acadêmico,
sem contar com os problemas que enfrentava no meu trabalho como socióloga na Secretaria
de Assistência Social e do Trabalho (SAST) no município de Campos Sales. Morava apenas
eu e minha filha mais nova numa cidade que não era a nossa e, portanto, difícil de manter
relações confiáveis, ainda mais quando é preciso se isolar das pessoas para que não haja
contaminação dada pela COVID-19. Nesse período demandas com escola, aulas, tarefas e
apenas com um celular e um computador “enfadado”, ficava difícil acompanhar tudo o que
precisava fazer.

Mãe solo em pandemia me custou terapias e antidepressivos, e sei que esta é a


realidade de muitas como eu, mas infelizmente há outras mães que não possuem o privilégio
de terem um momento para cuidar de si com tratamentos e medicamentos. Foi então que senti
a necessidade de me comunicar com outrxs cuidadorxs para saber como estava a situação
delxs, e pensei em fazer lives para que pudéssemos dialogar e nos ajudar a respeito, até
porque com tantas dificuldades financeiras, estava também difícil se inscrever em editais de
auxílio emergencial, fato este que implicava em mais invisibilidade de artistas mães.

Pensei em criar projetos de lives para falar da nossa situação enquanto mães artistas e
acadêmicas solos, que não tinham tempo para produção, e portanto ficava cada vez mais
difícil fazer parte do mercado das artes e escrever sobre nossas pesquisas. No entanto, este
processo ficou também como ideia sem possibilidade de acontecer, pois não encontrava
tempo para isto, o que me sobrava era para descanso, entre um cigarro e outro, onde eu
pudesse me encontrar sozinha do lado de fora da casa, sem que ninguém se aproximasse, nem
mesmo xs gatxs, a cahorra, e o cágado que sumia vez ou outra.

Em setembro de 2020, resolvi mudar para minha terra natal, interior em que moravam
meus pais e minha filha mais velha, no período em que a pandemia parecia ter tido uma baixa
e um certo controle. Assim, pude diminuir as preocupações que me entristeciam relacionadas
ao distanciamento da filha mais velha, e contar com meuas2 pai e mãe para a divisão de

2
Para as definições de gênero ou ausência de , usarei para o plural de pronomes possessivos o “a” entre “u” e
“s”, como meuas, seuas, etc, quando se tratar de abarcar mulheres, homens, trans e não bináries ou agêneros.
demandas em fins de semana. As aulas do curso de pedagogia que iniciei, iriam começar no
ensino à distância (EaD), e estas aconteciam sexta e sábado, foi então que comecei a ter horas
mais vagas para estudar, me inscrever em editais e produzir minhas artes.

Uma amiga me trouxe conhecimento sobre grupos de mães artistas3 de Recife, que
estavam criando redes de apoio às mães, e residências de artes para as mesmas, foi então que
me inscrevi para um encontro da coletiva4. Senti-me mais amparada ao ouvi-las, vê-las se
juntarem e ganharem um edital que culminou com uma exposição coletiva destas artistas
(cheguei atrasada para a residência por não saber da existência do grupo, portanto não pude
fazer parte). Senti falta de mães cearenses, pois haviam muitas cuidadoras de todo Brasil,
principalmente da região Nordeste, mas no Ceará havia apenas eu.

Mantive a comunicação com elas, falei de minhas ideias anteriores em relação ao


trabalho com mães solos artistas, e foi assim que dei continuidade a pesquisa de acolhimento
que havia pensado desde o início da pandemia no Brasil. Quis iniciar com um grupo pequeno
e diverso, “E por que não o PARE (Provocação Artística Ritual Experimental)?” Coletivo em
que faço parte, que se iniciou desde os anos 2010 e teve seu grande boom entre 2010 e 2012.
Hoje houve muitas mudanças na vida de cada mulher pertencente à coletiva, algumas foram
embora, outras não se identificaram mais e se retiraram este ano.

O PARE é um grupo de artes que trabalha com performance nas artes visuais, e que
atualmente encontra-se formado por 5 pessoas, 4 consideradas mulheres cis e uma não
binárie, e todas hoje são mães solos, apesar de que uma delas se casou novamente, e
engravidou de seua quintx filhx este ano. Antes havia mais três na coletiva, uma que saiu por
volta dos anos 2012 e também não é mãe, outras duas saíram este ano por não se sentirem
mais identificades5 com o grupo. Ume destxs passou pelo processo de transicionamento neste
período de pandemia e não sentia a coletiva abordar tais questões, estu também é mãe solo.

Quando eu estiver falando de ume amigue trans, o “e” e “u” serão usados porque é desta maneira que elu se
afirma. No mais, permanecerei com o “x” para atravessar todes os gêneros, quando o “e” e “u” não derem conta
de incluir pela sonoridade e pelos plurais masculinos terminados em “e”. Sei dos problemas que um “x” provoca
na tradução para leituras em braile, mas seu uso para mim, vai para além das normas portuguesas, e abrange
questões biológicas, já que o cromossomo x está em todos os corpos. Quando eu estiver inclusa no texto no
plural ou no singular, colocarei x, a ou e, pois me considero agênero, não binarie.
3
Para mais informações acerca deste grupo, ver https://www.instagram.com/p/CPonGKuHvHy/
4
A preferência por usar coletiva ao invés de coletivo vem pelo modo de como elas se referiam. Da mesma
forma faço uso de coletiva para se referir ao PARE.
5
Quando estiver me referindo a estu ex-integrante colocarei os gêneros neutros “e” e “u” como expus na
primeira nota.
Pensando sobre os diversos trabalhos do PARE, desde o período em que surgiu,
tínhamos apenas quatro mães, três casadas e uma solo, as questões que nos eram implicadas,
perpassavam o controle sobre os corpos femininos: a estética, o consumo, reflexões acerca do
turismo sexual, problemas relacionados à saúde em torno da mulher dada por padrões
corporais, em suma, situações que nos inquietam até hoje e nos fazem produzir arte como
forma de resistência contra a cultura do capitalismo.

Atualmente depois de muitas mudanças com cada uma de nós, e em meio às nossas
inúmeras demandas como mães solos artistas e/ou acadêmicas em meio a COVID-19,
pudemos nos encontrar virtualmente para delinear nossas redes de apoio mesmo que
acessadas por um processo de antropologia digital (MILLER, 2012) e assim, numa vontade
communnita (TURNER, 2013) de nos reerguer como trabalhadoras e profissionais.

Diante das limitações da pandemia, algumas perguntas vieram à tona acerca desta
pesquisa: Como pensar o espaço, o olhar, a escuta diante de uma tela, já que não podemos
estar juntes enquanto coletiva para ações e conversas presenciais? Será que uma rede de
apoio digital supre algumas necessidades sentidas de forma presencial? Como podemos
ajudar com os cuidados às mães em meio a este distanciamento social? Como se dá as
diferenças entre o público e o privado em relação às nossas produções e interações umes com
us outres, neste lugar de mães artistas e acadêmicas?

Devido a estas questões lancei mão da antropologia digital como estratégia analítica
nesta pretensa etnografia à distância para tentar superar as adversidades da pesquisa, pois
como coloca Miller (2020), a forma como pensamos método e metodologia mudará após as
mudanças significativas dadas pelo isolamento social. Será necessário saber como lidar com
as novidades tecnológicas, éticas e técnicas, e repensarmos nossos projetos de pesquisa,
principalmente no campo etnográfico onde nos colocamos à deriva para se inserir no mundo
dx outrx.

Segundo Peirano (2014) há uma complexidade acerca do método etnográfico:

A pesquisa de campo não tem momento certo para começar e acabar. Esses
momentos são arbitrários por definição e dependem, hoje que abandonamos as
grandes travessias para ilhas isoladas e exóticas, da potencialidade de estranhamento,
do insólito da experiência, da necessidade de examinar por que alguns eventos,
vividos ou observados, nos surpreendem. E é assim que nos tornamos agentes na
etnografia, não apenas como investigadores, mas nativos/etnógrafos. Essa dimensão
incita ao questionamento da etnografia como método. (p.379)
Para Miller (2020) o processo etnográfico se faz de maneira flexível e adaptável às
circunstâncias que nos encontramos:

Seu método é algo que você aprende, não algo que já começa com você. Argumento
que exatamente o mesmo se aplica online. E essa é a mensagem mais importante que
gostaria de transmitir aqui. Quando usamos a palavra ‘método’ em Antropologia,
geralmente a descrevemos como observação participante e alguns podem
compreendê-la como aquilo que fazemos quando estamos em campo. Então, diriam,
‘se você só pode fazer isso on-line agora, talvez precise apenas efetuar muitas
entrevistas, em vez de participar’. Quero sugerir exatamente o oposto: exatamente
porque você estará trabalhando principalmente on-line, é necessário se concentrar
ainda mais na observação participante, em vez de coisas como entrevistas. Por quê?
Porque, como você deve perceber, há muitas oportunidades para a observação que
agora não serão possíveis. Diante disso, o que você precisa fazer nessa espécie de
mudança para um novo regime é encontrar maneiras de compensar esse problema, ao
prever um modo como fará seu trabalho de campo. (MILLER, p. 4, 2020,
https://www.youtube.com/watch?v=NSiTrYB-0so )

Em meio a estas discussões busquei me desafiar e ampliar meu olhar através da


flexibilidade etnográfica, tendo em vista que podemos pensar a cultura material dentro do
espaço virtual, e entender que as sociedades são mais compreendidas a partir de análises de
seus aspectos materiais (MILLER, 2013), e assim analiso como mães artistas e acadêmicas se
utilizam da cultura digital em relação ao distanciamento social, com a materialidade que
modela suas práticas artísticas e acadêmicas através de suas necessidades neste período que
nos encontramos.

Vamos assim percebendo até que ponto o digital pode ser material, saindo da
interpretação reducionista do código binário dado ao digital, como expõe Miller (2020), já
que a antropologia digital como subdisciplina mantém certo holismo metodológico típico da
antropologia, se ocupando em contextualizar e não generalizar (MILLER, 2020) fazendo uso
de particularidades culturais que se integra a certo modo com os aspectos materiais relevantes
de dadas culturas.

Dentro deste recorte da antropologia digital e da ideia-mãe da antropologia, a


etnografia, como explicita Peirano (2014), adiciono ao fazer antropológico dentro da
pandemia, a reflexão acerca de communitas e antiestrutura em Turner (2013) já que estamos
vivenciando limitações em vários aspectos da nossa vida e buscando por outros modos de
expansão em outros diversos pontos que inclui trabalhos, cuidados, relações afetivas e sociais
etc, nossos rituais acabam sendo percebidos sob outras condições, como por exemplo, na
busca por redes de apoio de certos grupos que encontram no digital modos de existir e de se
fortalecer para poder dar conta de suas demandas.
Dito isto, e fazendo uso do método etnográfico como recusa a uma orientação
previamente definida (PEIRANO, 2014) e sabendo que “(...) a própria teoria se aprimora pelo
constante confronto com dados novos, com as novas experiências de campo, resultando em
uma invariável bricolagem intelectual” (idem, idem, p.381), exponho as aprendizagens, as
experimentações e os fazeres artísticos e acadêmicos que algumas integrantes do coletivo
PARE vem desenvolvendo como estratégia de existência e re-existência em meio ao
isolamento social dado pela pandemia.

A priori, para fazer esta pesquisa, me servi de conversas individuais e coletivas com o
grupo, pesquisei seus perfis em redes sociais, tivemos inúmeras interações pelo nosso perfil
no whatsapp, passando inclusive por um processo que nos rendeu algumas dores de cabeça
através de um artigo publicizado em torno de um trabalho artístico meu, individual, e um da
coletiva PARE6. Dentro do processo de investigação. Já deixo de antemão, que me utilizo da
ausência como ferramenta de aprendizagem e elemento constitutivo de análise do contexto do
qual as mães artistas e acadêmicas estão inseridas, pois que muitos de nossos encontros
virtuais precisaram ser adiados devido às inúmeras demandas que estamos sujeites.

No início da Pandemia, uma das integrantes do PARE, sentiu a necessidade de


fazermos o perfil coletivo do grupo no whatsapp, para que pudéssemos reavivar nossas ações
e compor novas ideias, além de também partilhar sobre nossas vidas e necessidades, este fato
nos reaproximou, ao mesmo tempo que distanciou ume integrante que não partilhava de
algumas discussões que foram colocadas no grupo.

Quando resolvi fazer a pesquisa acerca das mães da coletiva, outra integrante, a única
que não era mãe, se retirou do espaço, pois precisava lidar com demandas individuais.
Conversei com ela em particular sobre o fato de minha pesquisa ser apenas com mães, e
disse que era para um trabalho em específico, mas em que nenhum momento gostaria de
isentá-la do grupo, até porque as relações entre mães dentro do mundo das artes e de coletivas
feministas, se dão para além de suas perspectivas, e é necessário inclusive não mães para uma
rede de apoio, ainda mais quando se trata de um grupo como o nosso que resiste a padrões

6
Este artigo foi publicado na revista Concinnitas | v.21 | n.38 | Rio de Janeiro, maio de 2020 DOI:
10.12957/concinnitas.2020.49804, sem as correções, havendo plágio de algo que escrevi em meu portfólio e
também algumas falas e episódios que não condisseram com a realidade de fato . A curadora que o escreveu não
fez a errata para esta publicação, fez apenas para outra que se encontra em processo de ser publicada.
capitalistas delimitadores de nossas corpas7. A integrante compreendeu este processo e
seguimos sem desentendimentos.

MÃES ARTISTAS E UMA COLETIVA DAS DIFERENÇAS E VONTADE DE FAZER


ARTE E RESISTÊNCIA.

O PARE (Provocação Artística Ritual Experimental) é um grupo de artistas que atua


com as linguagens das artes visuais mais especificamente com a performance e intervenções
urbanas, que trata sobre questões que se dão acerca do corpo da mulher controlado e
“remendado” dentro dos interesses de uma sociedade capitalista. Ele se iniciou em 2010 e
teve suas principais ações até o ano de 2012, formado inicialmente por cinco mulheres cis,
das quais apenas três eram mães na época, após alguns meses entraram mais três integrantes.

Esta coletiva feminista foi a primeira nas artes visuais em Fortaleza, a usar nudez em
praça pública para pensar a liberdade que buscamos com nossas corpas desde muito tempo.
Essa primeira aparição consistiu em cinco mulheres emplastificadas com isofilme, e
etiquetadas com a palavra-marca "ESCAPE", em que circulamos pela Praça do Ferreira no
dia da mulher, de maneira bem agrupada, durante cerca de uma hora, até nos voltarmos em
um círculo para dentro, gritando o mantra “Om” e numa espécie de transe nos desfazemos
dos plásticos e das etiquetas que nos vinculam a este CIStema8 e nos diminui enquanto
sujeitas e agentes de transformação da sociedade.9

Entre os anos de 2010 e 2012 fomos chamadas para vários eventos, fizemos inúmeras
performances, intervenções e instalações. Após 2012 três componentes da coletiva se
mudaram de cidade, uma para estudar mestrado na Espanha, outra por não ter condições
financeiras para educar suas filhas na capital cearense, após a separação com seu
companheiro, voltou para sua cidade natal, ficando mais próxima de sua família, uma outra
integrante foi para o Rio de Janeiro fazer também o mestrado, e com mais algum tempo, duas

7
Faço uso da palavra corpas no feminino compreendendo nosso corpo como dissidente, fora das normas
estabelecidas pelo capital.
8
Coloco CIS com “c” e em caixa alta para enfatizar que o sistema capitalista nos controla pelo corpo, sexo,
gênero, sexualidade, nos impondo uma cultura cisheteronormativa que devemos aceitar sem questionar.
9
para ver mais acerca da coletiva PARE acessar https://www.instagram.com/pare_koletiva_de_artes/
integrantes passaram a morar fora do Ceará, uma em Brasília e outra na Bahia. Apenas três
continuaram pela capital cearense.

Embora não fizessemos mais ações coletivas, ainda nos comunicávamos e


partilhávamos de ideias e ações, nos ajudando em nossas produções individuais e pensando
meios de trabalhar coletivamente. Em 2017, as integrantes, exceto uma delas, que já não
estava mais no grupo, retornaram para Fortaleza. Mas em meio a tantas mudanças e
prioridades, pensar encontros, ações coletivas, se tornou complicado, pois havia as crianças
para cuidar de maneira solo (já que a maioria de nós havia se separado e uma das que não era
mãe, se tornou mãe de 4 crianças), como também cuidar da nossa carreira acadêmica e
artística, além de ter os afazeres domésticos e precisar fazer dinheiro com as nossas
habilidades, fato este que demanda bastante tempo. Assim, nossos encontros tornaram-se
mais necessidade afetiva do que processos de composições artísticas.

Em 2020, com o perfil na rede whatsapp, flertamos com a possibilidade de ações na


pandemia, mas houve alguns desentendimentos sobre os feminismos que compartilhamos.
Hoje há 5 componentes, das quais não entrevistei apenas uma devido ao tempo limitado da
mesma, pois além de parteira e artista, está gestando seua quintx filhx, e a outra integrante
sou eu. Conversei também de maneira mais rápida com as outras duas que saíram em meio
ao distanciamento social.

O primeiro encontro para minha pesquisa aconteceu através de videoconferência com


a ferramenta Zoom, e contou com a participação de quatro de nós: Diana Medina, Naná
Blue10,Tatiane Sousa e eu. Ficamos aproximadamente três horas conversando de maneira
descontraída, e as perguntas iam surgindo conforme dialogamos sobre como estávamos indo,
nossas artes, pesquisas e filhxs, relacionamentos afetivos, enfim, uma complexidade de
experiências únicas que o contexto pandêmico quase que “naturalmente” nos leva. Embora
sobrecarregadas, ao menos todas nós estávamos bem de saúde e vacinadas com a primeira
dose.

Uma das integrantes falava de uma rede de balanço, e mal conseguia se mover fazia
alguns dias, pois teve um problema na lombar, lombalgia, que prejudicava todo o movimento
de seu corpo; outra delas estava dividida entre dar atenção ao seu filho mais novo de 6 anos, e
falar conosco, precisou sair da reunião mais cedo, pois havia prometido assistir um filme com
10
Naná Blue no coletivo PARE era Naiana Cabral, hoje a artista faz uso do nome artístico Naná Blue, devido a
sua experiência artística com o azul que será melhor explicada mais à frente.
o pequeno, que aguardava ansioso. Falou pouco e foi embora mais cedo da reunião, sua
expressão embora estivesse cansada, demonstrava leveza e paciência. Tentamos falar com a
criança, mas o que ele queria mesmo era estar a sós com sua mãe. A terceira componente se
mostrou muito empolgada e feliz, tanto em nos ver como também em relação aos seus
estudos, projetos e descobertas. Estava numa casa de praia na Taíba, litoral cearense há 70 km
de Fortaleza, para se concentrar melhor em sua pesquisa de doutorado.

Após este encontro, estive em mais três reuniões particulares com cada uma delas pela
ferramenta do google meet, e um último encontro coletivo pela mesma ferramenta, apenas
com duas delas, pois a que tinha um filho menor, de seis anos, estava extremamente
sobrecarregada com a escrita de seu TCC e as aulas de teatro que ministrava.

Agora apresento cada uma das participantes do PARE, e ao passo que as irei expondo,
também vou mostrando como a distância corporal afeta o fazer antropológico e nos estimula
a construir uma rede de apoio, que seria semelhante ao que Turner (2013), na antropologia da
performance, ao estudar o processo ritual, coloca como communitas e antiestrutura, esta
sendo parte do movimento dialético da vida social em suas práticas rituais, compondo
maneiras diferenciadas de organização social, já que as estruturas presentes não são capazes
de satisfazerem as necessidades de certos grupos.

Naná, uma das artistas do PARE, tem em suas aparições performáticas individuais, a
temática da água como um de seus elementos principais no fazer artístico, em que pesquisa,
arte e vida se confundem, e faz parecer que sua vida é uma performance duracional em
potência ritual. Não é à toa que a artista passou 7 anos vestindo somente azul. A sua
preocupação ambiental, gerou inúmeras obras performáticas, instalações, intervenções,
vídeos, escritas etc, onde o corpo da artista e a natureza fossem o mesmo elemento e, dentro
desta perspectiva, em que arrisco a assemelhar a obra de Blue com certo perspectivismo
indígena, a artista assume o ponto de vista da água, que em correnteza ou parada, abraça sua
existência, no cuidado com a natureza sem separação, como pertencentes a mesma cultura,
compondo resistência como ação de fazer-se perceber enquanto própria água.11

11
Para melhor compreensão acerca do perspectivismo indígena e do multinaturalismo, ver VIVEIROS DE
CASTRO, E. Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena, 2004. E para saber mais em torno dessa
artista acessar https://www.instagram.com/nanablueartist/ ; https://www.instagram.com/naianablue/ ;
https://www.instagram.com/corpo.conexao/ ; https://nanablueartevida.wixsite.com/nanablue/home
Ao conversarmos, Naná me trouxe algumas inquietações acerca de suas dificuldades
nesse período pandêmico. Falou-me sobre o seu processo com o azul, e como estava sendo
difícil tratar a respeito desta experiência em um doutorado de 5 anos em Madri, num processo
de performance duracional que levou 7 anos de entrega. Também questionou acerca dos
editais nestes quase dois últimos anos em que atravessamos a pandemia, e de como a questão
ambiental parecia ser coisa de interesse secundário na atualidade dos editais artísticos.

A artista tem uma filha adolescente de 14 anos, que vem lhe ajudando tanto nas
tarefas domésticas quanto nas tecnológicas, pois a criança sabe de algumas nomenclaturas e
coisas que demandam esforços de compreensão no mundo das tecnologias, fato este que as
novas gerações sabem lidar melhor quando possuem acesso a internet e dispositivos
eletrônicos. Teve de mudar sua filha de escola durante a pandemia, por conta das mudanças
de residência que precisou fazer, e hoje se encontra mais satisfeita e de certa forma com
menos demandas do que no início da pandemia. Saiu de uma casa para um apartamento que é
bastante espaçoso, pertencente a uma amiga sua. Ao longo de nossas conversas, Blue
apresentou-me sua nova morada, suas plantas, jardim, enfim, quase todos os compartimentos
do apartamento.

Durante o surto de SARS-COV-2, a artista passou por duas mudanças de residência,


conseguiu se inscrever e passar em alguns editais, embora tenha tido muitos que não
conseguiu se inscrever e outros que havia se inscrito mas que não obteve aprovação, e sobre
isto ela fala acerca da falta de interesse sobre as questões ambientais em alguns editais, dentre
outros fatores que diminui o acesso a certas curadorias. Mas, ela tem olhado com certo
otimismo os dispositivos digitais no que diz respeito ao reconhecimento artístico, já que as
redes sociais tem ampliado os modos de uso das tecnologias, e trazido certos alcances que
talvez não conseguisse ter sem elas.

Naná criou quatro perfis no instagram, um deles, o @corpo.conexão, se trata de uma


obra que acontece como perfil nessa rede social, ele é um conjunto de ações que conecta
ambientes naturais para o espaço virtual, levando a energia da natureza para pessoas em
confinamento poder acessá-la de algum modo. Na época em que morou na Praia de
Sabiaguaba, lugar que fica há 15 km do centro de Fortaleza, no início da pandemia, ao lado
de dunas, mangues, mar e rio, a artista entrou no processo de transição com o azul, trazendo a
conexão terra e água, corpo e lama: “A pandemia me fez entrar numa introspecção pro lado
do equilíbrio.”
O seu perfil @nanablue_artevida é voltado para comercialização de jóias curativas. A
artista coloca que o instagram tem trazido inúmeras possibilidades para os mundos artísticos,
pois percebe nele um lugar de confluência nas artes, ao mesmo tempo que descentraliza e
desloca os movimentos de artes. Em um outro perfil @nanablueartist, ela traz suas diversas
experiências com o processo ritual do azul em seu corpo água, expondo diversas
fotoperformances. Também apresenta seu trabalho Oleada, que fala sobre o derramamento de
óleo que ocorreu na costa brasileira em 2019. Esta obra ganhou o edital de aquisição de obra
de arte da SECULT-CE, fazendo parte dos acervos do Estado.

O perfil @nanablueartist está voltado para trabalhos artísticos que vão se expandindo
e criando redes para interações com artistas de vários lugares. Nele, Blue conseguiu
estabelecer contatos pelo o mundo afora, com suas performances virtuais que denominou
liveperformances, onde desde o início de 2020, a artista vem fazendo performances virtuais,
compartilhamentos de ações em stories e curadorias online. Foi convidada para uma
exposição chamada “Somos Natureza”, na Argentina, através do Balcony Festival. Deste
modo ela vem investigando muitos espaços de arte e ampliando seu leque de ação.

Diante disso tem explorado recursos do instagram e conhecido várias pessoas e


artistas podendo divulgar melhor suas produções. Segundo Blue, em uma de nossas
conversas, diz: “Devemos tirar proveito dessa situação, é um futuro inevitável, e buscar
pensar a tecnologia de modo horizontal. Eu acredito, que por um lado, a pandemia vem
acelerando o processo de horizontalidade, embora haja ainda muitas limitações”.

Dentro das experiências vivenciadas pela artista, percebe-se que o mundo digital em
dadas redes sociais oferece até mesmo em sua pesquisa, um processo de escavação, que
através de uma plataforma ela compõe redes de resistência artística em que torna visível suas
preocupações e temáticas de pesquisa, como o que aconteceu quando a questão a respeito do
desequilíbrio ambiental situada por Blue em suas obras, trouxe contatos da Argentina para
compor uma exposição sobre o corpo natureza.

Miller (2013) coloca como cultura material aquilo que drena de algum modo nossa
humanidade (p.11) e que ao estudar as mulheres indianas, vê por meio do sári, que este ao
vestir a mulher faz dela o que ela é, sendo ou não indiana, mexe inclusive com a questão do
que é ser ou não mulher. Dentro desta análise, algo material conduz ao que podemos ser e
traz análises comparativas. A antropologia digital segue o fluxo entre a particularidade e o
universal através de aspectos materiais e também eventos. Miller (2013) coloca que,

Ser mulher é algo muito diferente se for alcançado pelo uso de um sári, e não de uma
saia ou de um vestido. As roupas estão entre os nossos pertences mais pessoais. Elas
constituem o principal intermediário en­tre nossa percepção de nossos corpos e nossa
percepção do mundo exterior (p.28)

Nesse sentido nos mostra que o modo como nos apresentamos externamente diz muito
sobre nossas relações com as coisas e que há uma profundidade em nós estabelecida pela a
pele, pela superfície, pelo o que está externo a nós. O fato de deslocar esta discussão neste
artigo, é porque quero trazer a reflexão de como uma ideia artística que se materializa
enquanto performance duracional através de ritual que se dá com o uso do azul, em que Naná
Blue passa de 2013 a 2020, usando somente roupas de cor azul e ampliando este uso para
todas as esferas de sua vida, sentindo o que esta cor promove naquilo que a artista
experimenta, atravessa um mundo de relações que, a priori, em sociedades binárias se faz
dicotômicas, como natureza e tecnologia, roupa e modo de ser, água e terra, etc.
Todo este conjunto de relações num estado de distanciamento social, trouxe a
tecnologia como processo que mediou rituais numa atmosfera doméstica, ao mesmo tempo
que atravessada a quilômetros de distância num alcance de inúmeras pessoas, talvez sem a
tecnologia este ritual não fosse possível e nem chegasse ao olhar de tantas pessoas. Trata-se
de experiências diferentes mas que podem contribuir para a construção de sujeitxs e relações
que trazem questões sobre os impactos de todo o processo pelo qual passamos com o surto da
COVID-19, e como podemos diminuir impactos negativos nas redes sociais ampliando nosso
olhar para os usos tecnológicos que fazem construir rituais com seus processos de
liminaridades, horizontalizando nossas relações, como expôs Naná Blue, através de um olhar
“otimista” a respeito da atualidade.
E sob construção de redes de apoio, exposições artísticas, “trecos, troços e coisas”,
espaço virtual, distanciamento social, rituais, entre outros “produtos” da realidade atual,
percebo o quanto Turner (2013) em seus estudos sobre performance se atualiza dentro de uma
perspectiva da antropologia digital, no que diz respeito ao seu olhar sobre o drama social em
Van Gennep (2011), passando pelas fases de ruptura, crise, intensificação da crise, momento
de reparação ou superação na sociedade, nos trazendo os conceitos de communitas e
antiestrutura, que nos coloca a refletir sobre o momento de liminaridade, onde no processo
ritual, quando a ruptura se dá de um modo extracotidiano, nos tornamos sujeitxs indefinidxs,
num entre-lugar, em morte social, sem posição social dada, que se configura em ritos de
passagem.
E pensando sobre as noções de liminaridade dadas pela pandemia, em que tal processo afeta a
todxs independente de classe social, mas que, obviamente, como não se trata de um ritual,
mas de uma quebra com o cotidiano para além disto, as desigualdades sociais faz com que
experimentamos a pandemia de formas bem diferentes.
Porém por um lado, dentro do que pude observar ao conversar com a coletiva PARE e
com outras mães artistas, quem pouco tem acesso às tecnologias, e que vem de classes
subalternas, bem como também as mães artistas em relação as/aos/axs demais artistas, dentre
outras inúmeras diferenças sejam elas de gênero, classe, raça e outras relacionadas às
vantagens sociais de cada indivíduxs, têm se organizado em grupos, movimentos, em redes
de apoio que tornam visíveis as lutas e necessidades de populações periféricas, tornando
viável a vida em meio às inúmeras dificuldades econômicas, sociais, culturais, que temos
enfrentado nestes últimos anos com o risco iminente da morte, ainda mais latente em
populações mais vulneráveis.
Estas redes deslocam a noção de communitas por trazerem uma solidariedade
mecânica e orgânica12 simultaneamente, que movimentam pessoas tanto para fortalecerem
laços comunitários como também buscando reparar a ausência do Estado, que tem aumentado
barreiras para xs mais desfavorecidxs. Nesse sentido as tecnologias têm ajudado a montar
coletivas, movimentos que facilitem as partilhas entre as pessoas, e reunido resistências na
busca de melhores condições para se viver.
Temos neste contexto que muitos universos particulares têm buscado aderir a outros
modos de vida e organizações por questões de sobrevivência e visibilidade. E, é neste
sentido que trago para a pesquisa noções de antropologia digital, tornando possível comparar
como diferentes mães têm feito uso de redes sociais para tornar viável suas produções e
diminuírem crises financeiras e emocionais, de tal maneira que as noções de ritual em
Turner (2013), podem ser deslocadas para a subdisciplina da antropologia digital, e que os
12
Ver Turner (2013)
eventos etnográficos extracotidianos se tornam cotidianos, com propósito coletivo para que o
“kula”13 não seja mera ferramenta analítica (PEIRANO, 2006), mas a própria materialidade
que conduz e transforma relações, sem que para isso precise ser objeto de estudo em
ambientes isolados e diferentes dos frequentados pela pesquisadora. Sendo assim, o processo
ritual de muitas mães artistas, possível em redes sociais, na construção de redes de apoio, é
um modo de movimentar e criar possibilidades em meio a tantas crises, como as que estamos
passando desde 2020.
Mães artistas fazem de suas produções, materiais de pesquisa e arte, instrumentos que
conduz relações e resistências, o virtual pandêmico materializa relações através de comunas e
movimentos de superação e reparação. Assim, podemos nos adentrar na experiência artística
de Diana Medina que atravessa o público e o privado, as experiências subjetivas e coletivas.
Diana é professora de artes no curso de Design digital na Universidade Federal do
Ceará (UFC), no Campus de Quixadá, Sertão Central, dá aula nas disciplinas de fotografia,
história das artes e processos de criação, é também artista e está fazendo doutorado em Artes
pela Universidade de Brasília (UnB), tem um filho de 24 anos que mora na França, próximo
ao pai, e uma moça de 18 anos que está estudando para o Enem.

A pesquisa desta integrante no curso de doutorado tem a ver com memória através de
fotografias, encontros e recordações. Ela vem buscando na deriva, uma metodologia: caminha
pelos interiores, em ambientes rurais que desconhece pelo Ceará, através do que sente, em
um processo quase intuitivo e também de observação, analisa os ambientes mais táteis dos
quais, segundo Medina “sinto vivenciar os elementos traçados por Flusser, tensionados pela
experiência, o jogo, a descontração, já que não damos conta de tudo”. Assim, ela bate na
porta de alguma casa e pede para x morador/x o retrato mais antigo da residência. Quando a
artista acessa a imagem, pede para fotografar numa máquina polaroide, x morador/x com sua
fotografia mais antiga, e desta forma compõe um recordatório com histórias de pessoas e
lugares, biografando ambientes.

A artista visitou 30 casas desde o início de sua pesquisa, mas só conseguiu coletar
dados de 8. Com a pandemia tem tido dificuldade de maiores perambulações, chegou a fazer
algumas visitas no período pandêmico e tem recebido muitos nãos que considera tão

13
Ver Mariza Peirano (2006)
importantes quanto os sim, como processo de documentação e aprendizagem neste se fazer à
deriva. Sua experiência acerca da tecnologia como mediadora das relações em tempos como
estes, nos fornece outros olhares diferentes e um pouco divergentes da vivência
experimentada por Blue.

Diana faz uma relação com o filme Janela da alma14 e o mito da caverna de Platão,
sente ausência de troca de energias, do corpo presente dx outrx, suas danças, suor,
mobilização do olhar... Afirma que “A respiração dx outrx está em nós”. No meio digital,
segundo a artista, predomina o olhar e o audiovisual. A virtualidade se mantém neste corte,
então torna-se necessário que precisemos

ficar off-line também, desinstalar o instagram. Eu passei 4 meses sem usar o


instagram no ano de 2020 e este ano fiquei 3 meses. É preciso um detox das redes
sociais. Fiz isso com a Lara, minha filha, porque isso mexe na autoestima ,
principalmente dos jovens. Quando era nos anos 80, a adolescente via aquelas
revistas de moda e se sentia um lixo, me parece a mesma coisa. (Diana em conversa
comigo pelo google meet).

A artista e sua filha desinstalaram juntas o instagram, sua filha ficou 15 dias este ano
e Medina ficou 3 meses. Ela falou que ter feito esta experiência com a Lara foi algo muito
positivo, pois conseguiram estudar mais, sua filha passou a praticar mais esportes e teve a
autoestima menos afetada, pois como coloca Diana e também é o que percebo por
experiência própria, é que a autoestima de crianças e adolescentes tem sido bastante afetada
com as redes sociais. A filha da artista voltou a jogar vôlei de quadra e a usar o kindle, leitor
de livros digitais.

A partir deste isolamento social e de algum detox das redes, Diana pôde ter alguns
insights na sua tese, fez bastante leituras e, segundo ela, "você muda com as leituras que
acrescenta”. Mesmo que xs filhxs já estejam grandes, as preocupações passam a ser outras,
mas nunca deixam de cessar. Estar longe dxs filhxs também mexe com a estabilidade
emocional de uma mãe, o que também não deixa de afetar suas produções, como coloca a
artista.

Há algumas semelhanças entre as artes de Diana Medina e de Naná Blue, que se trata
dos afetos produzidos pela imagem fotográfica, e nos convida a um outro tipo de memória em
meio a cidade que estamos e vivemos. Elas fazem cartão postal unindo suas experimentações
, as vivências dxs habitantes da cidade e a memória cultivada nos espaços que fotografam. No

14
Filme de João Jardim e Walter Carvalho lançado em 2001.
caso de Naná os ambientes fotografados são espaços turísticos e se trata de
fotoperformances15, e os de Diana são expressões de um povo, onde ela consegue quase que
intuitivamente acessar certas memórias.

Sobre tais experimentações e percepções distintas acerca do processo digital em meio


a pandemia, podemos ver que Diana faz conexões presenciais ao mesmo tempo que traz para
as pessoas em suas entrevistas o paradoxo da imagem, entre o novo e o antigo, o agora e o
passado, a intimidade e o desconhecido, o público e o privado, dentre outras aparentes
oposições. Tratar destas posições binárias que parecem rupturas entre um estado e outro, dá
materialidade à memória escavada dx moradorx, vivida de outro modo no espaço presente
entre conversas e outras imagens produzidas e mediadas por tecnologias não tão modernas,
como uma polaroid, mas que são acionadas por um tempo, e provoca alguns abismos
territoriais nos modos como são utilizadas essas esferas tecnológicas, em meio à pandemia.

Na deriva realizada com inúmeras limitações devido ao tempo presente, Diana


vivencia desde relações de desconfianças a um processo de entrega dx outrx, quando este
começa a confiar-lhe sua história numa fotografia. A imagem materializada num roteiro
criado com as relações de estranhamento entre o passado e o novo, torna-se o evento
(podendo mesmo ser o evento etnográfico, o “kula” da pesquisa à deriva da artista) que
compõe a relação pesquisadora e pesquisadxs.

Este tratado da imagem delimitado por Medina, num jogo para chegar à vida de uma
pessoa, coloca o que Peirano (2006, p.14) nos faz pensar acerca de rituais e performance em
Turner, pois que ambos “privilegiam o fazer e o agir, reforçam o contexto, admitem o
imponderável e a mudança, vêem a linguagem em ação, a sociedade em ato e prometem
alcançar cosmovisões (...).” Assim, a deriva da artista traz uma relação performática com x
outrx que orienta a pesquisa da mesma e até o modo desta se relacionar com a pesquisa,
atuando a performance, como uma quase teoria, objeto de estudo e antidisciplina (PEIRANO,
2006).

Agora irei adentrar-me nas conversas que pude obter com Tati Sousa e o modo como
ela tem vivenciado suas pesquisas e artes no contexto que estamos vivenciando. Tatiane está
no processo de escrita de seu TCC no curso de licenciatura em Teatro, o defenderá ainda este
ano, e a pandemia trouxe bastante sobrecargas para ela, pois como vivia do teatro, e
15
Para saber mais acerca desta linguagem artística que vem crescendo, acessar DELPEUX, Sophie. O
corpo-câmera: o performer e sua imagem. Revista Visuais, nº 6, v.4, p. 86-100, 2018.
apresentações em espaços artísticos, precisou se refazer e ver outros modos de ganhar
dinheiro para se manter. Mãe de dois filhos, um de 6 e outro de 13, possui um grupo junto ao
seu ex-companheiro, pai das crianças, de teatro de animação.

Teve que conciliar a escola dos pequenos e a atenção com elxs, juntamente com as
inscrições em editais, em leis Aldir Blanc, entre as atividades domésticas, as aulas de teatro
que ministrava, faculdade, e tantas outras demandas, pois não tinha um emprego estável e
precisava buscar todos os meios para poder manter a família. Diante deste processo acabou
sofrendo crises de pânico e buscou por terapia, uma terapia lacaniana, em que afirma ser uma
educação somática que a faz "empoderar do tempo e cuidar da educação das crianças”. Tem
também lançado mão de calmantes naturais, já que as demandas são inúmeras e precisa
conciliar tempos de trabalho, de estudo com seu filho mais novo que ainda exige bastante
atenção, ainda mais nos tempos de isolamento social em que sequer pode brincar com outras
crianças. Neste ano, quase dois anos de pandemia, Tatiane e seu companheiro se separaram,
após 17 anos de casamento, mas possuem uma guarda compartilhada e ainda podem contar
um com x outrx.

A artista falou que estes tempos tem mostrado para ela uma precarização da
existência, como se não tivesse mais o direito de cuidar de si. Em todo seu processo de
trabalho com teatro de animação, que envolve bonecos, objetos e teatro de sombras, o que
levaria por volta de duas ou três horas de trabalho em outros tempos, neste processo de
distanciamento social, chega a levar quatro dias de trabalho. Pois tudo precisa ser feito em
casa, não há uma equipe grande cedida pelos centros culturais, e ainda é necessário lidar com
as inúmeras tarefas que a casa e as crianças exigem. O que antes contava com a presença de
cinco pessoas ajudando, hoje tem apenas ela e o pai das crianças.

No início da pandemia, tanto Sousa quanto o pai das crianças estavam sem trabalho,
pois ambos se ocupavam apenas com arte, e ficaram dependendo de cestas básicas doadas por
outrxs artistas, que construíram redes de apoio para ajudar àquelxs trabalhaforxs de arte que
mais foram afetadxs neste tempo. Atualmente, Tati Sousa está em três projetos e dividindo os
cuidados com as crianças, tem feito ações formativas em oficinas virtuais que alcançam o
Brasil inteiro. A sensação que a artista sente desde que passou a depender do virtual para
aulas que sempre exigiram muito corpo, é algo que está entre o desconfortável e o intrigante,
pois a mistura entre o público e o privado é no mínimo inquietante, nas palavras da artista.
Para Tatiane o teatro no modo virtual é um espaço de movimento, de possibilidade, “é
o lugar do pode ser, de possibilidade de encontros através das plataformas virtuais” Ela
coloca que o “ modo virtual” parece fazer mais sentido que falar “ modo online”, pois que o
virtual não é contrário ao real e parece que quando se trata de online, já o remetemos a uma
dicotomia: o offline.16

A atriz tem aprendido a brincar com os possíveis que se apresentam nas plataformas
virtuais.Como também dá aula de teatro para crianças com faixa etária entre 8 a 13 anos de
idade, de bairros carentes, por meio da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará
(SECULT-CE), no Centro Cultural Bom Jardim (CCBJ), vai buscando experimentar coisas
que possam fazer sentido para xs pequenxs. Segundo Sousa, como seuas alunxs, em sua
maioria, contam apenas com um aparelho digital disponível em casa, ela acaba dando aula
para toda família.

A artista falou que seu trabalho é tanto artístico quanto sociológico, pois acessa as
casas das crianças, a forma como elas se relacionam com suas famílias, e também consegue
visualizar suas realidades através da tela, na comunidade em que vivem, vendo expressões,
ouvindo sons de dentro e de fora da casa, movimentos das ruas, ruídos, sustos, visitas, dentre
outros barulhos e sensações que mostram o ambiente que trafega nas aulas de teatro.

Boa parte de seuas alunxs são negrxs e pobres e através de suas percepções, ela
também compõe possibilidades de interações como brincadeiras de entrar e sair da tela, e
dentro das violências do bairro que a professora acessa pelo campo virtual, trabalha com o
imaginário fantástico das crianças e seus processos de criação e reinvenção da vida. Este
curso que Tati Sousa ministra é de gestão compartilhada entre o CCBJ e o Dragão do Mar,
num projeto de combate à pobreza, financiado pela SECULT-CE.

Tatiane Sousa nos mostra um outro tipo de interação com o espaço digital, que
abrange não somente um gênero de mãe, mas entra no recorte de classe e raça. Uma artista,
mãe de duas crianças, uma de 6 e outra de 13, e sem emprego estável, vivendo literalmente só
de arte, em um país onde a maioria dxs artistas são desvalorizadxs, principalmente com o
atual governo nesse período pandêmico17, a artista ainda está terminando um TCC, e sendo

16
Pierre Lévy (1996) nos traz esta discussão em O que é o virtual ?
17
Talvez nem seja necessário lembrar que o Ministério da Cultura foi extinto pelo presidente Bolsonaro em
2019, e que em 2020 passou pela representação da atriz Regina Duarte em um tempo mínimo, mas suficiente
para se falar diversos absurdos contra artistas e a cultura, e que hoje contamos com uma Secretaria Especial de
Cultura que é submetida ao Ministério de Turismo e que conta como liderança, o ator xinfrim Mário Frias.
professora de teatro de crianças pobres e maioria negras, e com quase a mesma faixa etária
de seus filhxs. No processo em que a artista vivencia tanto em casa quanto no olhar para
dentro da casa dx outrx, precisa saber lidar com o espaço físico, com a partilha de atenção,
com o processo de organização de uma apresentação e também de uma aula que como Sousa
coloca, toma um tempo muito maior dela neste período de distanciamento social, trazendo
uma enorme demanda que não existia antes da pandemia.

Percebe-se que como o uso da tecnologia é limitado nestas famílias, sendo geralmente
um dispositivo para mais de duas, três pessoas, a relação público e privado é ainda mais
estreita. Juliano Spyer (2018) traz a questão de classe, ao investigar como as camadas mais
populares, xs brasileirxs de periferia, de interiores e “analfabetxs” funcionais lidam com as
redes sociais, fazendo uma comparação do modo de uso das classes médias acadêmicas com
as pessoas de Balduíno que estão passando um processo de urbanização e gentrificação em
seus espaços rurais. Segundo o autor, as vantagens de estudar mídias sociais por um viés
antropológico, é ser capaz de enxergar vínculos sociais e o modo como eles são percebidos
(p.34).

Ele coloca que as noções de privacidade e intimidade para um/x pesquisadorx são
bem diferentes das dx sujeitx pesquisadx. Percebe isso nas fotografias publicadas nos perfis
de cada grupo, o que é íntimo para o cientista, é para x periféricx “ações culturalmente
estabelecidas com a intenção de mostrar os valores morais e as conquistas pessoais” (p;24).
Nos usos digitais as classes mais abastadas sentem a sensação de aldeia global e
encurtamento de distâncias, e as mais periféricas vivem proximidades excessivas em seus
ambientes físicos, com seus familiares e vizinhos, por exemplo.

Há nos ambientes da classe média certa distância em diálogos, pelo fato dos espaços
físicos serem mais reservados, casas maiores e “mais cadeados", além de inúmeros processos
que se centram na cultura, na educação escolar, dentre outros fatores. Nas periferias, a porta
dx vizinhx vê o movimento de uma sala, uma igreja expõe suas rezas para todo um
quarteirão, as pessoas se conhecem e se notam e se tornam ainda mais notáveis em suas redes
sociais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: ANTROPOLOGIA DIGITAL, COMMUNITAS E REDES


SOCIAIS - DESAFIOS ENTRE OLHAR, OUVIR E ESCREVER
A partir das análises abordadas no presente artigo, podemos perceber que apesar de
tratarmos de mães solos dentro de um mesmo coletivo de artes, encontramos alguns recortes
que envolvem não apenas gênero, mas classes e raças no uso que as artistas e acadêmicas
fazem das redes sociais, e os modos como elas percebem estas diferenças.

Uma das mães do coletivo neste período de surto pela COVID-19, quis sair do grupo
porque não via discussões mais aprofundadas acerca de homens e mulheres trans, e que para
ela o sagrado feminino de uma das participantes incomodava com certas binaridades. Na
pandemia, esta participante construiu um ateliê onde trabalha como marceneirx, além de
trabalhar com cinema, ser performer e mãe agênero. Em suas redes sociais divulga suas
produções e criou outro perfil apenas com seus trabalhos no ateliê 4418, coletivo de mulheres,
trans bináries, não-bináries, etc, que trabalha com madeira, artes e decorações.

Quanto às outras participantes pelas quais entrevistei, percebe-se que as experiências


do meio digital vivenciadas por Blue, Medina e Sousa, são bem diferentes. A primeira com
uma filha adolescente e um doutorado para terminar, consegue encontrar um melhor ambiente
para se concentrar, não trabalha por fora e pode contar com a ajuda de sua filha em algumas
atividades. Suas redes de apoio expandem seus trabalhos artísticos e ela promove melhor suas
produções através das redes sociais.

A segunda sente a falta de espaços corporificados, mesmo que se encontre com


disponibilidade de escrita em uma casa de praia, e de licença da faculdade em que ensina,
para terminar seu doutorado. Há estabilidade financeira para lidar com a pandemia, mas há
preocupações com um filho distante que intervém em suas artes e pesquisas. Seu trabalho à
deriva fica um pouco prejudicado por conta dos tempos epidêmicos, mas suas redes de apoio
ao que pude analisar estão exatamente ao adentrar em outras vidas não completamente
tomadas pela esfera digital, buscando equilíbrio em certos paradoxos, contando histórias
quase nunca ouvidas.

A terceira artista já se encontra com inúmeros empecilhos de produção, pela


instabilidade financeira, que requer mais trabalho para ela. Mesmo assim, busca se reinventar
e fazer terapia para dar conta das tantas demandas. Encontra suas redes de apoio entre xs
próprixs artistas e se adentra em outras famílias periféricas que faz com que ela enriqueça seu
trabalho e se entregue para x outrx com um mínimo de tempo na busca de arrancar sorrisos.
18
Para saber mais a respeito destu artiste ver https://www.instagram.com/44___atelie__/ e
https://www.instagram.com/mandacarufaaca/
A experiência de um formato etnográfico dentro de uma antropologia digital me fez
compreender outros usos da disciplina em seus métodos flexíveis. As chamadas de vídeo, os
usos de videoconferências pela ferramenta zoom e google meet, traz um pouco de intimidade,
elas me mostram suas casas e de algum modo seus mundos que se organizam entre o íntimo e
a vida profissional nesses tempos pandêmicos. Há uma certa dimensão narrativa da
intimidade dentro do ambiente doméstico, mas uma das integrantes sentia muito a
necessidade de nos falar algo que dentro da casa não podia, então precisou sair para a rua e
continuar o que gostaria de desabafar. Nesta situação, o ambiente público se tornou uma saída
para falar de sua vida íntima e não a vida íntima do espaço privado que delimitou sua
narrativa em nossas conversas.

Segundo Louise Scoz Pasteur de Faria (2020) as plataformas digitais têm suas
próprias dinâmicas sociais, operam com emoções, conteúdos, expressões e experiências
diferentes que situam inúmeros modos de ser e estar, e nós continuamos limitando nossas
compreensões e interpretações das práticas “como se estivéssemos interagindo face a face”
Para FARIA (2020);

Nós, enquanto pesquisadores, temos que nos acostumar cada vez mais a comunicar
os aspectos técnicos do nosso trabalho para todas as partes envolvidas em um projeto
de pesquisa. Essa habilidade pode determinar o sucesso ou o fracasso de um projeto.
Falhas de comunicação criam fricção desnecessária em um momento em que é
fundamental construir laços de confiança.
(https://www.ufrgs.br/ifch/index.php/br/etnografia-na-pandemia-algumas-experiencia
s-de-trabalho-de-campo-1)

Neste período de investigação busquei manter o ambiente leve, mas devido à própria
temática precisei lidar com ausências e interações extras com as agentes da pesquisa. A
ausência para com o mundo acadêmico e artístico é quase uma constante das mães solos
devido às inúmeras demandas pelas quais estas passam, como foi exposto aqui. Conversamos
sobre muitas coisas, e não estava à vontade para dar um tom de entrevista em nossas
conversas. Elas expressavam o que queriam e perguntas iam surgindo, tanto de mim quanto
delas mesmas para com cada integrante. Vontades de falar e desabafar também surgiam de
acordo com nossos diálogos.

Por mais que de algum modo interagimos com nossos lares, mostrando o ambiente da
casa, as crianças, plantas, artes, por mais que haja um espaço confessional dado pelo digital
que nos permite desabafar, ainda assim senti algum incômodo mediado pelas plataformas
digitais. Pois como minha relação com as artistas vão para além de telas, em encontros
fortuitos pessoais, de amizade e de trabalho, tais dispositivos ao mesmo tempo que trazia
certo incômodo pela limitação dos sentidos e a nostalgia por certos ambientes, era o que
mediava e nos deixava mais próximas mesmo que eu não pudesse estar na praia à noite com a
Diana, ou tomando um café ou chá com a Naná na sua casa azulada e confortável, ou dando
um abraço na Tati num encontro pelo Benfica, em que nossas crianças também interagiam
quando conversávamos num parque, numa praia ou em um jardim.

A antropologia digital traz inúmeros modos de se analisar o uso de tecnologias. Miller


(2013) percebeu que na Índia o sistema de casta tinha um modo diferente de usar a tecnologia
das pessoas da Turquia, eis que a antropologia traz certas questões que nos faz pensar ainda
sobre culturas e modos de vida na era digital, talvez mais usos e abusos antropológicos
(VALENTE, 1996), nos tão inúmeros contextos particulares e universais. Assim como posts
ingleses em redes sociais são bem diferentes dos posts trinidadianos (MILLER, 2020), Blue
tem quatro perfis bem profissionais com temáticas e tipos de obras diferenciadas, mas pouca
coisa pessoal. Diana já tem uma forma de acionar as redes que está mais ligada à olhares de
paisagens, natureza, desenhos, yoga, comidas e mescla estes horizontes pessoais com alguns
trabalhos artísticos. Tati já mostra coisas mais relacionadas ao seu trabalho, com muitas
divulgações de cursos, oficinas e apresentações que faz , suas artes, danças, sombras e
também imagens pessoais em meio à fotografias artísticas.

Portanto, como expõe Miller (2020) seu método é algo que você aprende, não algo
que já começa com você. Diante do exposto acerca de nossas conversas, vivências virtuais,
que não se restringiram a entrevistas, com perguntas prontas pela ausência da experiência
corporificada, percebi o quanto o fazer antropológico no seu caráter de adaptabilidade e
criatividade, se torna ainda mais necessário quando as limitações de uma pesquisa se faz
presente. Abordar a ausência e o fator confinante passa a fazer parte de um processo
metodológico que nos impulsiona ainda mais a estar atentx ao processo de pesquisa.

Talvez o trabalho antropológico de olhar, ouvir e escrever19 Exija maior profundidade


e percepção, já que os outros sentidos não tem tanto apelo nos meios digitais, quanto o
audiovisual, e isto de algum modo, nos dá maior conexão e apoio uma para com as outras,
nestes períodos epidêmicos. A interferência digital traz, mesmo que dentro de seus limites,
um grau de interação e mediação que amplia nossas sensações de presenças em tempos
difíceis.

19
Roberto Cardoso de Oliveira, Revista de Antropologia, Vol. 39, No. 1 (1996), pp. 13-37
As coisas acabam mudando muito e dá uma certa nostalgia do cheiro dos ambientes,
da superfície da pele em um abraço, da fumaça das ervas circulando os ares da cozinha,, mas
diante da saudade, o ver e ouvir, e perceber nossas limitações, mas sabendo que podemos
ainda nos acessar, traz um pouco de alívio. É o uso do treco tecnológico acessando nossos
sentidos de acordo com a forma como buscamos interagir, vendo possibilidades de apoio
mútuo, que suaviza e traz outras implicações das redes sociais, ao trocarmos uma ideia sobre
um trabalho artístico, estudando um artigo ou desenvolvendo um.

Há muitas possibilidades de encontros que podem inclusive trazer um modo


Communitas, numa antiestrutura em que nossos vínculos sociais, partilham condições
liminares, em rituais de mães que querem expor trabalhos conjuntos fortalecendo sensações,
trazendo paisagens diferentes para o mundo digital de uma outra mãe que pode acessar
olhando nos olhos de uma outra e atravessando a dança e as brincadeiras e conversas de
outras inúmeras mães e seuas filhxs. Resta só ver se isto nos basta ou se poderemos recriar
nossa presença.

BIBLIOGRAFIA

- DELPEUX, Sophie. O corpo-câmera: o performer e sua imagem. Revista Visuais, nº


6, v.4, p. 86-100, 2018.

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Vozes, 2011.

- HEATHER, H. ; MILLER, D. ANTOPOLOGIA DIGITALY. (Eds.). Londres, Reino


Unido / Novo York, EUA: Berg, 2012. 256

- LÉVY, Pierre. O que é o Virtual? Trad. NEVES, Paulo. Ed. 34, São Paulo - SP. 1996.

- MILLER, Daniel. Trecos, Troços e coisas: Estudos antropológicos sobre a cultura


material. Trad.: AGUIAR, Renato. Ed. Zahar. Rio de Janeiro, RJ. 2013.

- ________, Daniel. Como conduzir uma etnografia durante o isolamento social. Blog
do Sociofilo, 2020. [publicado em 23 de maio de 2020]. Disponível em:
https://blogdolabemus.com/2020/05/23/notas-sobre-a-pandemia-como-conduzir-uma-
etnografia-durante-o-isolamento-social-por-daniel-miller
- Oliveira, Roberto Cardoso de. Revista de Antropologia, Vol. 39, No. 1 (1996), pp.
13-37.

- PEIRANO, Mariza. Temas ou Teorias? O estatuto das noções de ritual e de


performances. Brasília: UNB, 2006.

- ________, Mariza. Etnografia não é um método. Horizontes Antropológicos. Porto


Alegre, RJ. 2014.

- SPYER, Juliano. Mídias sociais no Brasil emergente Como a internet afeta a


mobilidade social. UCL Press University College London. 2018.

- TURNER, Victor W. O Processo Ritual: estrutura e anti-estrutura. Petrópolis: Vozes,


2013.

- VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Perspectivismo e multinaturalismo na América


indígena. O que nos faz pensar, [S.l.], v. 14, n. 18, p. 225-254, sep. 2004. ISSN
0104-6675.

SITES

https://www.ufrgs.br/ifch/index.php/br/etnografia-na-pandemia-algumas-experiencias-de-trab
alho-de-campo-1
http://revistazcultural.pacc.ufrj.br/wp-content/uploads/2015/05/Daniel-Miller_-%E2%80%9C
A-Antropologia-Digital-%C3%A9-o-melhor-caminho-para-entender-a-sociedade-moderna%
E2%80%9D-_-Revista-Z-Cultural.pdf

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