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Autoria
Luma Louise Sousa Lopes - lumalouise@gmail.com
Resumo
No campo dos estudos organizacionais, a cidade enquanto espaço de produção e reprodução
do cotidiano vem sendo debatida a partir de diversas lentes. No entanto, algumas pesquisas
não consideram que a história tenha um papel fundamental que possa influenciar o organizar
urbano. Nesse contexto, o objetivo deste artigo é discutir as práticas de espaço do Mercado
de Ferro da cidade de Fortaleza à luz da perspectiva histórica. Para tanto, desenvolvemos
uma pesquisa qualitativa baseada em uma ontoepistemologia processual, cuja estratégia
metodológica foi a etnografia de arquivos. Os principais resultados evidenciaram uma rede
de práticas identificadas como de controle, estéticas e desviantes, que atuaram de forma
entrelaçada para a organização do espaço do Mercado de Ferro da cidade. Concluiu-se que o
organizar da cidade é resultado das práticas constantes de atores que vivem em um equilíbrio
dinâmico, onde espaços e lugares são entrelaçados.
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transformações que os usuários podem imprimir nele e alheio a qualquer tipo de topologia
racionalista (Certeau, 2008). As práticas, na qualidade de ações envolvidas em uma troca
complexa de símbolos, abrem as portas para a ideia de espaço de operações (Ward, 2001). Nesse
sentido, Certeau (2008) defende que o espaço é organizado por práticas, ao invés do primeiro
configurar como uma arena onde as práticas apenas acontecem.
A cidade enquanto espaço desponta como uma arena que revela “movimentos
contraditórios que se combinam fora do poder”, onde inúmeras maneiras de fazer são
constantemente engajadas pelos atores, deslocando o sentido do lugar (Certeau, 2008, pp. 174).
As práticas performam desvios relativos ao sentido denotativo do lugar, geralmente
determinando pelo sistema dominante (no caso da cidade, o sistema urbanístico). Com isso, são
capazes de (re)organizar os significantes do lugar, que são deslocados pelos usos que as pessoas
fazem dele, gerando desvios que (re)arranjam um espaço singular (Certeau, 2008; Benjamin,
2006).
Nesse mote, o organizar da cidade é fruto de um processo constante de praticar,
perpetrado por atores em um contexto de equilíbrio dinâmico, onde espaços e lugares são
entrelaçados (Certeau, 2008; Dosse, 2013). Aqui, as práticas de espaço assumem um papel
protagonista ao permitir aos praticantes fazer “outras coisas com a mesma coisa e ultrapassar
os limites que as determinações do objeto fixavam para o seu uso” (Certeau, 2008, p. 178), bem
como detém um poder organizacional crítico, exercido por meio de uma rede heterogênea que
é estabelecida pela interação entre os atores, materiais e recursos (Beyes & Steyaert, 2011;
Certeau, 2008; Dale & Burrell, 2008; Vaujany & Vaast, 2011).
A existência de uma mutualidade constitutiva entre as práticas e os espaços, o que, em
dados momentos pode colocar este último na posição de agente (Certeau, 2008; Dale & Burrel,
2008; Schatzki, 2001; 2005; 2006; Kornberger & Clegg, 2004; Vince, 2011), permite à prática
assumir um caráter flexível (Rasche & Chia, 2007), bem como dos diversos nexos totalizadores
que também participam desse processo organizativo. Essa concepção concorda com a ideia do
espaço enquanto um lócus de negociações, disputas e barganhas, intermediadas pelas práticas
que refletem dimensões corpóreas, políticas, materiais, sociais e imaginárias (Certeau, 2008;
Dale & Burrel, 2008).
Considerando que as práticas e os espaços são dimensões indissociáveis (Cooper, 1976),
algumas recentes discussões (e.g. Beyes & Steyaert, 2011; Petani & Mengis, 2016; Vaujany &
Vaast, 2013) evidenciam a relevância da contextualização histórica na compreensão das
práticas enquanto base para uma (re)organização espacial. Nesse sentido, a mobilização do
tempo passado, por meio da história, implica na alteração do espaço, seja ele físico, material,
cultural e/ou social, já que uma das características das temporalidades é de ser “deslocável,
móvel, sem lugar fixo” (Certeau, 2008, pp. 162).
Além disso, enfatizamos a possibilidade de os processos de deslocamentos históricos,
atuarem no organizar de novas práticas de espaços (Certeau, 2008; Petani & Mengis, 2016).
Esses deslocamentos estabelecem entre si uma relação conectiva que se reflete na forma como
o lugar é praticado (Certeau, 2008), sugerindo assim que a história de um espaço possa vir a
atuar no planejamento de hoje e de futuros novos espaços, evidenciando a relação espaço-tempo
no organizar (Certeau, 2008; Petani & Mengis, 2016; Vaujany & Vaast, 2013).
3. Metodologia
Em nossa pesquisa qualitativa, descritiva e baseada em uma ontoepistemologia
processual (Cooper, 1976), utilizamos o método da etnografia de arquivos (Decker, 2013; 2014;
Rowlinson et al., 2014; Lopes & Ipiranga, 2021) operacionalizada através da imersão no campo
do material arquivado a fim de compreender as presenças e as ausências, bem como desvelar
os percursos e os desvios do espaço delineados pelas práticas à luz da perspectiva histórica.
Aqui consideramos os arquivos como sujeitos no processo de produção de conhecimento
(Decker, 2013; 2014; Stoler, 2009)
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somente em 2 de abril 1814 são formalizados os empréstimo e doações para realização da obra
(Revista Trimestral do Instituto do Ceará, nº 9, p. 179, 1895) e em 19 de dezembro de 1814 foi
recebida a primeira planta da cidade que incluía o mercado vindouro e no ano de 1815 as obras
foram iniciadas (Revista Trimestral do Instituto do Ceará, nº 10, p. 403-404, 1896). O mercado
finalmente foi entregue à população de 12 de setembro de 1818, que poderia alugar os quartos
(espaços para estabelecimento dos comerciantes) mediante contrato com a câmara municipal
(Annaes da Assembleia Legislativa do Ceará, 12 de julho de 1887).
No ano de 1873 houve a demanda por um novo mercado público, fortemente motivada
pelas queixas recebidas pelas questões de higiene (A República, 17 de junho de 1892) e
organização das ruas do entorno do mercado (Libertador, 20 de abril de 1887). Depois de um
processo de tomada de crédito, o novo galpão para o mercado foi inaugurado em 18 de fevereiro
de 1894, com a presença dos então intendente municipal e presidente da província (A
República, 17 de fevereiro de 1894). O galpão foi denominado Nictheroy “[...] em honra á
valorosa cidade, a moderna Sparta, que há quase 6 mezes lucta com heroísmo indiscriptível
contra as bordas de piratas que infestam a formosa bahia do Guanabara.” (A República: Fusão
do Libertador e Estado do Ceará, 19 de fevereiro de 1894). O novo espaço foi considerado “[...]
muito elegante e planejado de acordo com as condições climatológicas da terra [...], de
construção leve, [...] porém de necessária solidez, lectados de elegantes telhas de zinco puro”
(A República, 17 de fevereiro de 1894).
Entretanto, a ideia de construir um mercado em ferro na cidade não havia morrido. Em
16 de agosto de 1894 o intendente Guilherme Rocha solicita a contratação de um empréstimo
à Câmara Municipal (A República, 20 de agosto de 1894) para a construção de um mercado em
ferro, sob os argumentos a) do aumento quantitativo da população, que implicava na
necessidade de um espaço maior para as trocas comerciais; b) as ênfases das práticas de higiene
e; c) a “[...] marcha paralela da civilização [...]” (A República, 20 de agosto de 1894). Assim,
era premente a necessidade de um novo espaço, “[...] feito com toda a arte que venha satisfazer
o grande interesse do município [...]” (A República, 17 de fevereiro de 1894), pois “[...] para se
promover o engrandecimento do Estado, é preciso garantir a vida da collectividade por meio de
todos os melhoramentos defensivos que tragam, de modo directo ou indirecto, a saúde pública
e o consequente bem estar geral – synthese da hygiene social. [...]” (A República, 20 de agosto
de 1894).
Em 18 de abril de 1987 foi então inaugurado o Mercado de Ferro da cidade. Com uma
estrutura importada da França, o objetivo do espaço era comercializar gêneros alimentícios,
como a carne, o peixe e a farinha (A República, 19 de abril de 1897). Em face do
enfraquecimento do Mercado de Ferro enquanto organização responsável pelo abastecimento
da cidade e dos planos institucionais de (re)organizar o Centro de Fortaleza, em 1937 foi
autorizado o desmonte e deslocamento da estrutura do Mercado de Ferro. Atualmente, parte da
estrutura foi restaurada estando instalada na Praça Visconde de Pelotas, no Centro de Fortaleza.
5. As práticas de espaço no e do Mercado de Ferro da cidade de Fortaleza
O Mercado de Ferro era um cenário bastante diverso em termos de atores praticantes. Os
arquivos dão conta de vários trabalhadores do Mercado, como vendedores de peixe, frutas e
verduras (estes por vezes ambulantes), magarefes, carreteiros, entre outros. Havia também a
presença de consumidores em geral, muitas senhoras, senhores, das mais diversas classes
sociais. Isso faz sentido se pensarmos que o Mercado, no período da sua inauguração, era uma
um centro de compras voltado para as classes mais abastadas de Fortaleza.
Atores institucionais relacionados com a então administração municipal da época, como
a guarda cívica, por vezes considerada sanguinária ou inexperiente; o fiscal que, conforme os
arquivos, representou o papel de grande vilão, inimigo dos comerciantes, também eram
encontrados praticando o espaço do Mercado. Também emergiram dos arquivos outros tantos
atores anônimos, porém reconhecidos por características que, em muitas das vezes, também se
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