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Primeiras palavras
Nesse texto, busco refletir sobre os modos como vimos produzindo
investigações sócio-históricas sobre diferentes disciplinas acadêmicas e escolares, em
variadas instituições e em diversos tempos históricos, em um campo teórico
particular: o campo do Currículo. Ele se insere em meio aos estudos que tenho
desenvolvido e orientado no Grupo de Estudos em História do Currículo, que compõe
o Núcleo de Estudos de Currículo da Faculdade de Educação da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (NEC/UFRJ), investigando a história de diferentes currículos e
disciplinas científicas3, acadêmicas4 e escolares5. Neles, por meio de uma
diversificação de nossas lentes teóricas, temos procurado compreender como, em
diferentes campos do conhecimento, têm sido travadas inúmeras disputas por validar
e hegemonizar determinados conhecimentos em detrimento de outros, produzindo
verdades sobre o ensino e a formação de professores e regulando a produção da
subjetividade de estudantes e docentes da universidade e da escola.
Mais recentemente, temos investido na construção de uma abordagem
discursiva para a História do Currículo e das Disciplinas (Ferreira, 2013a), colocando
em diálogo as produções de Ivor Goodson (1995, 1997, 1999, 2001, 2007) e Thomas
Popkewitz (1994, 1997, 2001, 2013) com historiadores do tempo presente e, em
especial, com elementos da fase arqueológica de Michel Foucault (2009, 2010).
Tal movimento tem sido visto por diversos autores como potencialmente
significativo nos modos de transformar a pesquisa na área da Educação. Fischer
(2012, p. 99), por exemplo, parafraseando Paul Veyne, destaca o quanto a obra de
Foucault tem sido revolucionária em termos de nos inspirar e nos instigar “para
pensar de outra forma os modos pelos quais temos feito as nossas escolhas temáticas,
teóricas e metodológicas”. Contribuindo com esse debate, Gore (1994, p. 18) enfatiza
que, a despeito das críticas que foram sendo formuladas à produção desse autor, em
especial àquelas que se referem ao aspecto político, sua “visão é que Foucault (1980)8
deixou as questões de táticas, estratégias, objetivos específicos àquelas pessoas
diretamente envolvidas na luta e na resistência”, instigando-nos a identificar as
verdades que ajudamos a produzir e que nos produzem socialmente. Nesse contexto,
as relações entre conhecimento e poder ganham outros contornos, assim como o nosso
papel como sujeitos da história, uma vez que passamos a entender o poder em escala
microfísica e a focar na “positividade dos discursos, operando sobre os ditos, a
superfície dos textos, descrevendo os enunciados a partir de seus acúmulos e suas
exterioridades, e não a partir de qualquer fundamento transcendental e/ou lógica
interna” (Ferreira, 2013a, p. 84, grifo da autora). Como já destacado em Jaehn &
Ferreira (2012, p. 262):
Esta postura metodológica não ignora nem a ação humana ou o
sujeito, nem deixa de reconhecer a realidade como uma construção
social e histórica. Analisa, contudo, como as realidades são
significadas e constituídas por meio da linguagem, analisando como
a formação do self, através do uso de tecnologias sociais, produz a
regulação social em um processo de autodisciplina e não mais a
partir de um poder soberano.
8 FOUCAULT, M. Truth and power. In: C. GORDON (Ed.). Power/Knowledge: selected interviews
and other writings 1972-1977. New York: Pantheon Books, p. 109-133, 1980.
Educação Física escolar vão regulando o ensino e a formação de professores, nos
informando socialmente sobre quem está mais bem qualificado e, portanto,
legitimado – assim como quem não se encontra qualificado e legitimado – para atuar
do modo como entendemos socialmente a competência profissional nessa área.
Igualmente interessada na formação inicial de professores que vem sendo
oferecida na Universidade Federal do Rio de Janeiro, Fonseca (2014a, 2014b) produz,
no âmbito do Grupo de Estudos em História do Currículo, uma análise arqueológica
voltada para a investigação histórica da disciplina acadêmica Didática Geral na
Faculdade Nacional de Filosofia (FNFi) da então Universidade do Brasil, no período
compreendido entre 1939 e 1968. Buscando entender a prática discursiva que tem
objetivado esse componente curricular como central e necessário na formação inicial
de professores, em nível superior, no país, a autora destaca a centralidade da
aprendizagem, a cientificidade da educação e a formação docente em nível
universitário como enunciados já presentes no discurso pedagógico dos anos de
1920/30 e que vieram produzindo uma tradição que coloca a Didática Geral,
historicamente, como o “espaço integrador dos estudos pedagógicos” (Fonseca,
2014a, p. 12). Percebendo a Didática Geral como uma formação discursiva que foi
produzida no diálogo com um novo modelo de escolarização, em meio a uma outra
organização politica e econômica, ela se viabiliza como um discurso verdadeiro em
meio a constituição de um par binário entre o ensinar e o aprender, articulando “o
discurso psicológico e biológico, que centralizava o indivíduo que aprende aos
enunciados da necessidade de formação e profissionalização da docência para o
ensino secundário, em nível universitário, e da cientificidade da educação” (Fonseca,
2014a, p. 161).
Em outro estudo que foca na formação inicial de professores que vem sendo
oferecida na Universidade Federal do Rio de Janeiro, Lucas (2014) investiga os
sentidos de conhecimento produzidos no curso de Licenciatura em Ciências
Biológicas em meio à reforma curricular ocorrida no final dos anos de 1960, quando
se transforma a estrutura organizacional e o curso abandona a antiga denominação
(História Natural) e passa a ser nomeado de acordo com as mudanças que vinham
ocorrendo na sua principal ciência de referência: as Ciências Biológicas. Na análise
do novo currículo, a autora evidencia uma mescla de práticas naturalistas com
conteúdos e temáticas característicos do discurso modernizante e unificador das
Ciências Biológicas, “assumindo tanto a separação entre conhecimento específico e
conhecimento pedagógico quanto a relação entre teoria e prática como enunciados
que permanecem regulando a formação de professores” (Lucas, 2014, p. 75). Nesse
contexto, o caráter prático dessa formação vai sido percebido como um modo de
combater tais dicotomias e formar um bom professor na área. Para Lucas (2014, p.
75), entretanto, “esse combate se dá, no período investigado, mais pelo aprendizado
de práticas científicas do que pelo estabelecimento de relações entre os
conhecimentos a serem ensinados e as finalidades da escolarização”.
Outras possibilidades do fazer pesquisa em meio aos deslocamentos impostos
pelas viradas cultural e linguística ocorrem em produções do Grupo de Pesquisa em
História do Currículo especialmente interessadas em entender as disciplinas e os
conhecimentos escolares como produções discursivas. Em Ferreira (2014a), por
exemplo, permanecendo interessada na história do ensino e da formação de
professores em Ciências e Biologia, investigo textos acadêmicos com vistas a
compreender as relações que viemos estabelecendo entre currículo e cultura na
elaboração dos conhecimentos escolares em ambas as áreas disciplinares. Para
realizar essa tarefa, recorro à história das disciplinas escolares Ciências e Biologia,
percebendo-as em suas especificidades, mas também “entrelaçadas por meio de
discursos produzidos no âmbito de uma mesma comunidade disciplinar, constituída
por sujeitos (pesquisadores e professores) e textos (materiais didáticos, p. ex.)”
(Ferreira, 2014a, p. 188). Compreendendo as relações entre currículo e cultura sendo
discursivamente produzidas em meio à construção de um par binário que vê a ciência
com e, simultaneamente, contra a cultura, evidenciamos a associação de enunciados
que se deslocam em direção a perspectivas que relativizam noções de ciência
dogmáticas e exclusivistas, mas não deixam de também investir em um certo valor de
universalidade desse mesmo conhecimento (Ferreira, 2014a). Nesse movimento, o
ensino experimental é entendido “como um discurso que, ao cientificizar e atribuir
maior importância social ao ensino das áreas científicas, contribuiu de modo
significativo para produzir um novo modelo escolar” (Ferreira, 2014a, p. 192, grifo da
autora).
Em movimento semelhante, Vilela (2013a, 2013b) investiga materiais
curriculares relacionados ao Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) – livros
didáticos e guia do professor – voltados para a disciplina escolar Geografia e
destinados ao ensino fundamental, buscando compreender a condição epistemológica
do conhecimento escolar na área em questão, no qual a abordagem regional vai sendo
percebida como parte da regularidade desse discurso. Focalizando as relações
interdiscursivas e as interdições, a autora destaca aspectos “sobre a relação entre as
verdades nos enunciados dos conhecimentos acadêmicos e pedagógicos que
constituem esse discurso” (Vilela, 2013a, p. 175, grifo da autora), entendendo as
tradições e as inovações curriculares em um jogo de relações discursivas que produz
as regras do conhecimento escolar em Geografia, ao mesmo tempo em que fixa,
discursivamente, os limites entre essa e as demais disciplinas escolares. Nesse
movimento, o bom ensino da Geografia vai sendo produzido por meio de enunciados
que, ao colocarem as abordagens regional e crítica em oposição, valorizam e,
simultaneamente, questionam o rigor da ciência que informa esse conhecimento
escolar. Para Vilela (2013a, p. 176, grifo da autora):
Isto ocorre ao passo em que certos territórios vão sendo fixados
como tradicionais em um complexo movimento que negocia
significados com a identidade do conhecimento escolar, na medida
em que desloca a mudança para áreas onde a disputa por
significados é contingencialmente latente. Nesses outros espaços de
luta, porém, diversas articulações discursivas se estabelecem de
forma que aquilo que é ultrapassado ganhe novos significados que o
coloquem na ordem do discurso.
14 BRASIL. Resolução CNE/CP 2/2002. Institui a duração e a carga horária dos cursos de Formação
de Professores da Educação Básica, em nível superior. Documento disponível na página eletrônica
http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/CP022002.pdf.
mundo são enunciados raros, uma vez que descontínuos e entremeados de espaços
vazios.
Em tal movimento, as relações entre teoria e prática deixam de ser significadas
de modo que uma se oponha a outra, em uma espécie de contradição na qual a área da
Educação tem investido ao reconhecer uma persistente dicotomia entre os termos.
Diferentemente, temos percebido o quanto teoria e prática constituem um binômio
inseparável, no qual a significação do primeiro termo alimenta o sentido do segundo e
vice-versa, produzindo um sistema de raciocínio que cria regras para a formação de
professores e, em especial, para essa formação no âmbito das Ciências Biológicas. Em
produção anterior (Ferreira, Santos & Terreri, 2014, p. 9, grifos dos autores) já
abordamos essa questão ao destacarmos o seguinte:
No diálogo com Popkewitz (2001), consideramos que essa distinção
entre teoria e prática é parte da estrutura que constrói os próprios
professores, em um processo no qual os inserimos em uma ordem
discursiva que, em meio à relações de poder, fixa papéis e produz
efeitos de verdade. Teoria e prática constituem, portanto, um par
binário ao qual se associam variados outros binômios que
significam os currículos da formação de professores – tais como
velhos ou novos, ultrapassados ou contemporâneos, distantes ou
próximos da realidade –, regulando a mesma e o próprio ofício
docente. É em meio a esse sistema que nos definimos como bons ou
maus professores de Ciências e Biologia, tomando decisões sobre o
quê e como ensinar em meio a discursos que nos constituem e nos
posicionam no mundo.
À guisa de conclusão
No presente trabalho, trouxe aspectos de pesquisas recentemente produzidas
no Grupo de Estudos em História do Currículo com vistas a alimentar os debates em
torno da construção de uma abordagem discursiva para a História do Currículo e das
Disciplinas, com especial interesse na formação que professores que vem sendo
produzida, no tempo presente, em uma área disciplinar específica: as Ciências
Biológicas. Ao explicitar as conversas que vimos tecendo entre a História do
Currículo e das Disciplinas com Michel Foucault (2009, 2010) e alguns de seus
interlocutores no campo do Currículo, interessa-me, especialmente, fomentar os
diálogos com outros discursos sobre o tema, entendendo que as verdades sobre esse
tipo de investigação estão sendo disputadas tanto internamente – isto é, no próprio
campo do Currículo – quanto com os diversos subgrupos que constituem a História da
Educação como um campo de pesquisa. É nesse contexto que percebo as relações
entre teoria e prática sendo discursivamente produzidas, em diferentes contextos da
prática, elaborando um sistema de raciocínio que regula a formação de professores.
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