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Neste último relatório, gostaria de tratar da exegese medieval (aula 10) a partir dos

conceitos de polifonia e do dialogismo bakhtinianos que, a meu ver, parecem presentes


nesses escritos. Posteriormente, falarei um pouco das tentativas da filosofia ocidental em
escapar da insegurança epistemológica herdada da tradição, assunto tratado na aula 11, que
aborda a metafísica de Descartes e, por fim, tecer um breve comentário sobre como a
concepção racionalista de mundo alcançou a contemporaneidade de uma forma, um tanto,
vulgar e problemática. Esses conteúdos, trazidos neste último bloco do curso, me pareceram
interessantes para refletir sobre como o conhecimento, no Ocidente, desenha uma trajetória
epistemológica que se centra no indivíduo - em seu sentido moderno - e se desenvolve a
partir dele cada vez mais, dedicando-se a uma ideia de precisão teórica questionável, ao meu
ver, e que me parece bastante alinhado com o desenvolvimento histórico do capitalismo
europeu e seus pressupostos fundantes.
O primeiro ponto que me interessa abordar, como mencionei, é acerca da exegese do
período medieval como prática social e gênero textual. Tal atividade, pretensamente
desenvolvida para trazer à luz a verdade original de textos antigos, me pareceu, devido à sua
complexidade linguística, alinhada às considerações sobre dialogismo, polifonia e gêneros
discursivos secundários, de Mikhail Bakhtin1, em seus estudos sobre o enunciado. Esses
gêneros, especificamente, são mais elaborados, segundo o autor, pois surgem em condições
de um convívio cultural mais complexo e relativamente desenvolvido e organizado, no qual a
escrita tem destaque, predicados possíveis de serem atribuídos à sociedade ocidental do
século VII, em questão. Ora, a ferramenta utilizada pelos neoplatônicos para reconstruir o
conhecimento do mundo antigo para o seu momento histórico foi a escrita, com a tradução
de fragmentos, do grego para o latim. Esse processo, longe de se tratar, exclusivamente, da
transcrição direta e literal de palavras de um idioma ao outro2, tem na escrita o epicentro da
sua complexidade. Digo isso porque, embora não se trate do romance literário sobre o qual
Bakhtin falava em grande parte das suas teorizações, a exegese me parece estilisticamente
evidente, dialógica e polifônica na sua constituição. Ela apresenta uma conexão linguística e
cultural entre dois momentos históricos - a Antiguidade e o Período Medieval; atravessa, na
sua elaboração, um mundo oralizado, no qual a escrita não ocupa um lugar central, e alcança
um universo em que a palavra já simboliza poder, enquanto, nessa marcha, elabora novos
conhecimentos, a partir do que se recebia do passado. Bakhtin falava sobre a relação
recíproca entre linguagem e visão de mundo, portanto, nesse processo aparentemente
tecnicista - “neutro”, como até hoje há quem acredite ser possível - de construção expressiva
das intencionalidades originais, as representações simbólicas e ideológicas do momento
grego certamente foram relidas e ressignificadas nesse robusto trabalho. E isso nada mais é
que a edificação de saberes em uma organização societal marcada por um percurso que se
revela cheio de movimento discursivo - algo que é, inclusive, contrário à ideia caricatural de
uma imobilidade intelectual na Idade Média, a “Idade das Trevas” -, com conversas e diálogos
entre interlocutores que jamais se conheceram - Platão, Aristóteles, os copistas, os
tradutores, os leitores - e a sua concomitante emersão de vozes do texto. Isso é literário,
dialógico e polifônico, e guarda uma beleza muito grande na humanidade do processo em
toda a sua singularidade, a qual viabiliza o estabelecimento do conhecimento no texto escrito.
Da explicação desse processo de sólido lastro histórico, me chamou a atenção o
comentário sobre a questão da autoridade na exegese. Nesse ponto, de onde se poderia
argumentar sobre uma problemática interferência dos comentadores no texto original, a

1
Essas teorizações de Mikhail Bakhtin podem ser encontradas no livro “Os gêneros do discurso”, da Editora 34.
2
A noção linguística que compreende a linguagem como uma instância predominantemente comunicativa
aceitaria essa concepção de tradução de uma palavra diretamente a outra, o que não é o caso no presente trabalho.
ambiguidade nas leituras - que, como o comentado em aula, era uma realidade - poderia
viabilizar um olhar para os textos medievais de maneira a se destacar uma certa “impureza
teórica”. Esse tipo de questionamento que, sobretudo hoje, relaciona-se com uma quase
obsessão pelo que é original, me parece estar ligado a uma noção individualista de produção
do saber, como se fosse possível cada indivíduo construir conhecimentos sem jamais sofrer a
interferência do outro. Noto essa mentalidade com muita força na universidade. Apesar da
produção universitária ser, atualmente, uma grande teia sistematizada de comentários sobre
os mais diversos trabalhos, que são metodologicamente reinseridos em contextos diferentes
de onde emergem novas teses e teorias (algo também pontuado em aula), ainda é ensinado
nas salas de aula de metodologia, por exemplo, o fetiche da autoridade. Soa estranha essa
insistência, pois ela é artificial e anistórica. Para além de representar um completo
desconhecimento acerca de como a influência de conhecimentos outros é inevitável em
processos de construção de saberes, tal qual é evidente no período medieval, creio que esse
fetiche ainda é proliferado pela supervalorização da figura do indivíduo, um fenômeno ligado
ao advento do modo de produção capitalista que se fortalece, além de ser confundido com
autoria. Autoria no sentido criativo de, na manipulação dos saberes, ser possível enxergar
sentidos no conhecimento que se elege para conseguir articulá-los a uma nova realidade e
criar da forma mais ótima possível. É lamentável que ainda se ensine, como ouvi neste
semestre, que “se deve elaborar perguntas de pesquisas que não foram feitas por ninguém”,
pois só assim seríamos, de fato, autênticos; é absurdo, não só porque esse tipo de crença
congela o pensamento, mas fala de um pensar que, na vida real, não existe. Além disso, esse
tipo de pressuposto carregado de contradição afasta o aluno que nunca teve contato com a
produção universitária, afinal, ele, certamente, pensará que é difícil demais fazer perguntas
dessa natureza. Isso nega o dialogismo trans-histórico e a polifonia dos enunciados que
compõem a construção do conhecimento tratada no parágrafo anterior. É uma concepção
que, na intenção de domesticar o pensamento, ou de, talvez, reproduzir e impor uma
radicalidade cartesiana no exercício da reflexão, ignora que, muitas vezes, as respostas que se
obtêm são mais interessantes e frutíferas que as perguntas, pois acabam, por vezes, nos
encaminhando a novos direcionamentos e perspectivas.
Partindo desse entendimento, do conhecimento como sendo motivado pelo
entrecruzamento de vozes e questionamentos que delas se desdobram, reflito, agora, sobre a
filosofia desenvolvida por Descartes, a sua metafísica. De início, percebo nesse autor que o
desejo de se desvincular do quadro trazido pela exegese medieval e partir para novas
epistemologias já me parece uma ânsia ligada à compreensão de autoridade, a qual tratei no
último parágrafo. É evidente que o conhecimento que uma sociedade produz responde às
suas demandas sincronicamente, e a sociedade de Descartes já não era a sociedade medieval.
Por isso, acredito que, como Descartes estava inserido em um novo contexto, de um
capitalismo mercantil, é possível afirmar que a sua metafísica, derivada de anseios a respeito
da falta de segurança do conhecimento, viesse desse momento histórico, em que ascendia a
noção de indivíduo sobre o coletivo e, por isso, talvez, um arcabouço teórico a tantas mãos
não fosse mais bem visto ou desejável. Dessa maneira, pode-se colocar em discussão que a
posição epistemológica de Descartes como uma resposta epistemológica a novos ventos, que
respondem à sua situacionalidade, é um fator o qual todos os sujeitos estão submetidos.
Dessa forma, a situacionalidade, portanto, determina - não no sentido rígido, como
um determinante inescapável de onde nascem produtos sempre iguais, mas no sentido de dar
as condições de produção - as formas possíveis de um tempo. Assim, um estranhamento que
inicialmente tive com o caminho reflexivo de Descartes - colocar a dúvida em dúvida,
apresentando uma dúvida hiperbólica, artificial em um exercício de introspecção - se desfaz
quando se analisa o contexto: responder a uma demanda de teor individualista do seu tempo.
Em contraste com a exegese medieval, período em que a ideia de indivíduo, em seu sentido
moderno, não existia, as inseguranças teóricas de Descartes são justificáveis e, inclusive,
encontram eco da sua pureza, hoje, em proposições como “fazer perguntas jamais feitas por
ninguém”.
Ademais, contrastando o seu percurso intelectual nas Meditações, com a constituição
também escrita da exegese e as considerações já feitas sobre gêneros discursivos, me
questiono se, da mesma forma que a filosofia medieval - edificada com os fragmentos que
viajaram no tempo e constituíram um gênero altamente complexo - as Meditações elaboradas
por Descartes também não podem ser compreendidas, ao menos, como inseridas em um
universo de gêneros do discurso científico ocidental. Dessa maneira, a despeito da pureza
epistemológica basilar do seu trabalho, que vê na Matemática a sua expressão mais autêntica,
penso que é possível pensá-la para além de sua lógica teórica e metodológica, como um
enunciado de onde também emergem vozes e, portanto, ela estaria, também, carregada de
dialogismo e polifonia, de certa maneira, como a exegese. Veja, não se trata de negar a lógica
cartesiana e o rigor teórico ao qual o autor se debruçou para tecer suas elaborações; porém,
Descartes trazia em si uma ampla formação na tradição Ocidental, estava inserido nela e
constituiu-se dela enquanto sujeito - como indivíduo moderno. O próprio Bakhtin afirma que
falantes são respondentes por si mesmos, em maior ou menor grau, e que não podem ser os
primeiros a violar o eterno silêncio do universo. Em Descartes, isso se comprova quando, na
própria aula, põe-se em discussão a necessidade de o autor justificar a existência de Deus, um
elemento de fora do eu, advindo da tradição judaico-cristã. Assim, o seu discurso acaba,
necessariamente, dialogando com essa tradição ao criar na escrita um eu observador
distanciado da alma. A tradição reverbera no estilo de um pensador que é europeu3 ao
desenvolver a sua escrita filosófica e, por isso, esse eu, o fundamento apriorístico da sua
filosofia, também o será.
Tendo em vista todas essas considerações, penso, por fim, nas formas como esse
último posicionamento epistemológico apresentado atravessou o tempo da História e nos
atingiu como uma herança controversa. Em nosso modo de pensar, em nossos
comportamentos, vejo que há uma disputa já bastante delineada acerca da presença de uma
racionalidade quase preponderante nos mais diversos âmbitos da vida, como forma de
legitimidade, porque científico, e resistentes ainda contrários a essa visão. Jargões como
“menos emoção e mais razão”4 vulgarizam o legado cartesiano em tentativas artificiais de
atribuir exclusividade à uma razão pura que, na prática, não existe, mas costuma soar
adequada ao atingir ouvidos leigos. É um processo lamentável de negação da constituição da
humanidade, sobretudo quando afeta fenômenos inscritos em contextos sociais, que, a meu
ver, não só é carregado de emotividade e subjetividade, como se organiza no nós, em vez do
eu, à semelhança de como os discursos humanos expressam-se em múltiplas vozes e
dialogam no tecer dinâmico da constituição do conhecimento. Uma constituição que não
precisa abrir mão da sua humanidade - que ultrapassa o cérebro, a humanidade também é
corpo - para ser válida.

3
Como afirma Bakhtin, o estilo do autor no enunciado é um epifenômeno manifesto no texto.
4
Uma influenciadora que ganhou notoriedade no YouTube ao utilizar essa frase como bordão de seu programa foi
Gabriela Prioli, que se utiliza da sua formação de advogada criminalista - como se o Direito não estivesse
localizado no âmbito das Ciências Humanas, mas fosse um saber científico e puramente técnico - para abordar
múltiplos assuntos dos quais ela reduz a uma análise tecnicista que, muitas vezes, mascara um moralismo de
senso comum nada técnico.

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