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AEstrutura do Argumento Contratualista: Thomas Hobbes

e a Gênese Ética da Reflexão Política Moderna

Luiz Eduardo Soares

Este ensaio é dedicado a Antonio Carlos Peixoto

CONTROVÉRSIAS SOBRE A LEITURA

ual poderia ser o sentido de voltar a ler os clássicos, ainda uma vez? Que
Q lugar a atividade hermenêutica deveria ter no i:ampo de estudos desig-
nado pela expressão otimista (ou pretensiosa) "Ciência Políticá'? O que signi-
fica, enfim, (re)ler as obras que constituem nossa tradição? Esta tradição se con-
fina ao domínio de nossa disciplina? Que relações haveria entre os dilemas atuais
postos pela prática da "Ciência Políticá' e as questões suscitadas pelos pensa-
dores que adotavam outras linguagens conceituais, outros procedimentos ar-
gumentativos e enfrentavam problemas freqüentemente distantes de nós, de
nossas preocupações e sensibilidade?

Quando me dispus a escrever uma tese de doutorado sobre a obra de Hobbes


(O Levíatã, mais especificamente), 1 envolvi-me simultaneamente em meu ob-
jeto e na rede de interrogações que determinam os limites de sua inteligibilida-
de contemporânea. 2 Decidir ler uma obra capital do passado correspondia a
definir uma relação particular com as condições de produção de conhecimen-
to vigentes em nossas instituições e expressivas da modalidade predominante
de identificação de nossas responsabilidades e aptidões profissionais.

Em linhas gerais, talvez não incidisse em excessivo reducionismo se sintetizas-


se a controvérsia usualmente despertada pelo desafio hermenêutico, sobretu-
do na área das "Ciências Sociais", fortemente caracterizada pelo compromisso

DADOS- Revista de Gêndas Sociais, Rio de Janeiro, Vol. 36, n? I, 1993, pp. 39 a 61.
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CQQt a investigação empírica como é o caso da "Ciência Política" restrin- cunscrições temáticas prévias, extrai sua plausibilidade do seguinte pressuposto
gindo-a a duas perspectivas opostas: a -primeira, aceita a volta ao passado, epistemológico: os objetos referidos e elaborados analiticamente são construí-
condicionando-a a um recorte temático, cuja atualidade reconheça; a segun- dos pelo sistema conceituai, em cuja malha semântica encontra condições muito
da, atribui às releituras um valor em si mesmo, em razão de seu suposto po- particulares de emergência inteligível. A contrapartida imediata é a restrição
tencial crítico dos limites de nossas próprias concepções contemporâneas. do campo da inteligibilidade: se a obra produz seus objetos, segundo recortes
interpretativos e processos intrínsecos de constituição di~cursiva dos estados
Cada posição guarda traços que concorrem para a formação de identidades so- de coisa ou do mundo empírico enquanto referências postas no domínio
ciais diferentes. É como se houvesse distintas subculturas, universos político- da linguagem-, da mesma forma, para realizar-se no espaço da intersubjeti-
morais próprios (afastados por diferenças mais ou menos sutis, implicando vidade e cumprir seu destino comunicativo, exige disposição receptiva apoia-
alianças preferenciais nada coincidentes) e formas contrastantes de autocons- da em estrutura de acolhida competente, isto é, apta a operar as decodifica-
tituição subjetiva, espécies de desdobramentos das respectivas linhas de argu- ções necessárias à captação dos significados postos em circulação pela obra.
mentos, prioridades, critérios de juízo, projetas, valores, nomes totêmicos, es-
tilos de vida, modos de exercer a jocosidade auto-afirmativa e a ironia mor- Todavia, é preciso introduzir uma dose de cetidsmo, neste ponto, e relativizar
daz, instituições internacionais e nacionais de referência etc. 3 o resultado da operação hermenêutica: o acesso às significações produzidas
pelo discurso de um emissor é sempre potencialmente parcial - sobretudo
A primeira posição acusa, mesmo sem se dar conta, seu ponto de partida epis- quando há o hiato do tempo histórico, com as variações culturais daí decor-
temológico, ao condicionar o retomo aos clássicos à focalização de temas, cuja rentes- e o grau de infidelidade a urna suposta unidade semântica (idêntica
relevância ainda reconheçamos, hoje, para as sociedades de nosso tempo. A a si em um momento de anterioridade ideal a todo processo comunicativo de
proposição subjacente ao condicionamento é simples: os temas correspondem atribuição interpretativa de sentido) oferecida ao interlocutor é tão indetermi-
a estados de coisa dados no mundo e trafegam por épocas distintas inde- nável, quanto é insustentável a pressuposição de metafísica imanência discur-
pendentemente de estruturas de acolhida semântica, que lhe atribuíssem sen- siva, independente das formas objetivas e históricas em que é reapropriada.
tidos determinados, de acordo com os contextos históricos, em que códigos
culturais os identificassem e qualificassem. Por isso, seria possível reconstituir Segundo esse ponto de vista, ler uma obra é muito mais do que descobrir quais
a evolução do conhecimento humano relativo a um objeto/tema qualquer da informações ela nos traz a respeito de temas-objetos, entre os quais aqueles
Ciência Política contemporânea, desde que encontrássemos referências rele- que definimos antecipadamente, porque, fazendo parte de nosso repertório cul-
vantes a respeito, em obras do passado, que anteciparam a disciplina, em cujo tural, imaginamos que são pedaços do mundo empírico, sobre os quais lança-
espaço nos inscrevemos. mos mais e mais luz, ao longo do tempo, até que se cumpra a tarefa esclarece-
dora do conhecimento científico. Engano: da perspectiva construtivista, quan-
Haveria, neste caso, uma dupla utilidade para a releitura: contar nossa histó- do um pensador renascentista refere-se ao ''homem: não está falando do ho-
ria intelectual, descrevendo os avanços e recuos que nos trouxeram até o pon- mem em que imediatamente nos ocorre pensar. As categorias são indissociá-
to em que nos situamos descobrir-se-ia, nesta modalidade, eventualmente, al- veis das redes de significação em que emergem, redes tecidas pela cultura, em
gum valor didático, pois, além da "cultura geral" que serve como instrumento certo momento particular da vida de uma sociedade determinada, e reinter-
de auto-afirmação profissional e social, o relato dessa evolução ajudaria a evi- pretadas crítica e criativamente pelos pensadores que as retomam e estendem
tar erros já cometidos e poderia estimular a cópia das atitudes reflexivas (teórico- em suas obras. As qualificações apostas ao homem renascentista europeu oci-
metodológicas) bem-sucedidas. Em segundo lugar, enriqueceríamos nosso acer- dental, na produção cultivada, constroem uma figura muito diferente do per-
vo de conhecimentos sobre os estados de coisa que nos importam, na medida sonagem que, hoje, identificamos com esse nome, seja no discurso ordinário,
em que estes seriam reportados pelas obras estudadas. Lendo-as, aprendería- seja nas linguagens elaboradas das mais diversas disciplinas.
mos algo sobre o mundo, segundo recortes cuja legitimidade heurística ainda
reconhecemos.
Amputar o tema das formas de governo, por exemplo, do contexto conceituai
mais amplo em que aparece, digamos, na obra de Platão, significa afastá-lo da
A posição que confere valor intelectual à atividade interpretativa de (re )leitura, temática da virtude, entre outras, mutilando as concepções políticas platóni-
entendida como tarefa significativa em si mesma e, por definição, alheia a cir- cas. O preço de pôr a serviço de nossas preocupações os pensadores do passa-
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do é torná-los cúmplices de nossos silêncios, pressupostos e formas próprias tros, nos duelos da academia, a nossa mui doméstica selva do sentido - ver-
de construção cognitiva e moral da realidade. Por outro lado, fazer saltar, na são mais sensível ao espírito hobbesiano (até pela alusão indireta à aspereza
medida do possível e com parcialidade inevitável, o conjunto articulado de con- irónica de Brecht) do que a célebre #floresta de símbolos': que Victor Turner
cepções pode nos levar a surpreender os limites de nossas próprias perspecti- tomou emprestada a Baudelaire.
vas, ou seja, pode nos fazer descobrir quantas questões e ângulos alternativos
abandonamos e quantos preconceitos contribuem para a formação do subsolo O calor do conflito das interpretações tem motivo claro: o pensamento de
de nossas próprias estruturas conceituais. Daí a idéia de que reler é uma tarefa Thomas Hobbes constitui o paradigma a partir do qual á modernidade abor-
crítica, mas sobretudo autocrítica. Seria ainda necessário justificar a importân- da o fenômeno político. Ir fundo nas redes significativas de sua obra-prima
cia estratégica da crítica, para o próprio desenvolvimento do conhecimento? pode implicar ferir o impensado que sustenta nossas convicções ético-políticas,
não apenas filosófico-científicas. Reiterar nossos pressupostos ou revolvê-los
Os construtivistas não precisam reificar as diferenças históricas, nem atribuir e questioná-los, eis dois movimentos extremos, com conseqüências óbvias
sistematicidade rigorosa e consistência interna a todas as obras, indiscrimina- e sempre graves. Não é pouco o que está em jogo, afinal, trata-se do pai
damente, para tornar defensáveis seus argumentos. Não é necessário ser um fundador. Seu legado formou nossa identidade. Sobretudo nos inquieta des-
autor tão obsessivamente sistemático e rigoroso quanto Kant para mergulhar confiar que não o conheçamos inteiramente. Isso corresponderia a reconhe-
as próprias categorias de pensamento em uma rede articulada de significações, cer que tampouco controlamos completamente as bases de nosso próprio
em cujos limites o sentido se produz. As articulações, além de lógicas, são sim- conhecimento. O custo de nos depararmos com nossa fragilidade seria o sa-
bólicas e a linguagem desliza, mesmo operando com conceitos razoavelmente crifício da naturalização da "realidadé', o sacrifício da reificação dos efeitos
estabilizados, do ponto de vista semântico. Mesmo sem aceitarmos a oposição de realidade produzidos pelos jogos de linguagem científica talvez predomi-
hobbesiana entre retórica e ciência, compreenderemos que as relações entre nantes entre nós.
significação ditada pela organização do campo discursivo e sentido conceituai
visado pelo projeto da obra são sempre problemáticas e desafiadoras, e são, HIPÓTESES, FINALIDADES E PERSPECTIVA HERMENÊUTICA
antes, função da natureza da leitura do que de características intrínsecas à lin-
guagem da obra, até porque incluem - ao se definirem - o nexo com o dis- A contribuição de minha releitura de O Leviatã pretenderia ser, em resumo,
curso que as restabelece interpretativamente. a demonstração das seguintes hipóteses: (a) o argumento contratualista importa
inevitável ordenação transcendental e requer a emergência de figura destina-
Voltar a Hobbes, portanto - como, de resto, a qualquer um dos pensamentos da a desempenhar funções centrais: o sujeito universal; (b) o discurso hobbe-
matriciais -, é possível e eventualmente emiquecedor, qualquer que seja o parti siano articula-se a partir de uma cadeia de tensões que não só impedem a in-
pris adotado: realista ou construtivista. Apesar de excludentes, no plano dos clinação definitiva rumo ao idealismo transcendental, como tampouco permi-
pressupostos epistemológicos, e freqüentemente opostos, ao nível das atitu- tem sua assimilação por uma leitura unilateralmente utilitarista, sociológico-
des e valores relativos às finalidades intelectuais e político-morais do trabalho, funcional ou com base na teoria dos jogos; (c) a permanente e intensa hesita-
falta um tertius judicativo, um ponto de Arquimedes ou um ponto de vista sub ção conceituai encontra síntese antropológica, que converte a necessidade ló-
specie aeternitatis, alheio à contenda e superior aos seus termos, capaz de ge- gica da unidade ideal da razão em compromisso natural do imaginário huma-
rar a metaposição salvadora ou de consagrar uma das partes. Por isso, descre- no com a dimensão utópica ou escatológica envolvida no simbólico.
vo esse quadro teórico-axiológico como agonística, aporético e insuperável. 4
O que me conduz ao pluralismo, na esfera do juízo, seja sobre as pretensões Caso se confirmassem essas hipóteses, de modo consistente, meu trabalho pres-
de validade antepostas, seja sobre os respectivos projetas de auto-afirmação taria uma colaboração ao esforço coletivo a que se tem dedicado parte da
acadêmica, sem prejuízo de identificar-me, no domínio da prática de meu ofí- comunidade acadêmica -de reinterpretação crítica da tradição do pensamen-
cio analítico, com a posição construtivista. to político e de problematização de alguns dos impasses contemporâneos da
teoria política. Nesse sentido, cumpriria; nos limites que lhe são próprios, sua
Se a releitura dos clássicos é controversa, o entendimento de O Leviatã talvez finalidade mais ambiciosa: introduziria novos argumentos (ou novas combi-
seja ainda mais polêmico. E, também aqui, trata-se de uma disputa radical, nações de conhecidos argumentos) no debate sobre os pressupostos de nossa
intensa e apaixonada, por mais cordiais que sejamos todos, uns com os ou- tradição moderna, a gênese de sua crise e as alternativas ainda abertas para

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voltar a pensar, criativamente, ainda uma vez, os dilemas cruciais de nossas mente, das reflexões sobre a razão, a ciência e a identidade. O tema da igual-
sociedades, dos quais são indissociáveis os modos como os concebemos. dade reaparece na abertura do capítulo em que Hobbes, afinal, introduz a pro-
blemática da agregação dos homens, arttes tratados separadamente, ainda que
A perspectiva hermenêutica adotada orientou-se para a redescrição plausível segundo o recorte que privilegiou sua dimensão uniforme, isto é, aquela di-
e comparativamente eficiente (quanto a seu rendimento explicativo) da proble- mensão em que os elementos destacados e suas respectivas estruturas definem-
mática de O Leviatã e consiste na exploração dos desdobramentos tácitos das se como generalizáveis para a espécie. Separação e uniformização sequer são
proposições teóricas e dos enunciados discursivas, sendo o ponto de consis- dissociáveis, sendo ambas abstrações trabalhadas como recursos analíticos.
tência máxima das redes conceituais a referência virtual - o que não exclui
a consideração de contradições, lapsos e tensões. A formulação do estado de natureza como hipótese dá partida a um exercício
imaginativo fascinante, contrapartida da criação conceituai. O experimento men-
Em outras palavras, não se trata de adivinhar as "reais" intenções do autor (ta- tal hobbesiano consiste na reunião de respostas a algumas perguntas, tais co-
refa que exigiria poderes mágicos ou psicográficos); tampouco de descobrir a mo: quais os efeitos da aproximação de seres humanos entregues inteiramente
significação "imanente" à obra, essa beatitude metafísica que supõe o congela- à sua própria natureza e, portanto, dispondo de liberdade irrestrita para usar
mento da mensagem, aquém da história e dos processos dialógicos, em cuja seus poderes individuais, segundo suas respectivas conveniências e de acordo
dinâmica se produz a atribuição projetiva/reativa - de sentido, por jogos com a necessidade de defender sua sobrevivência individual? O que ocorreria
de ensaio e erro, desempenhando, o texto original, a função de corretor - e aos seres humanos se subtraíssemos de seu convívio tudo o que resulta da pre-
interrogador crítico - das hipóteses interpretativas ensaiadas. São duas as con- sença organizada da sociedade e se extraíssemos deles todas as marcas dessa
seqüências (céticas e relativizadoras dos ideais hermenêuticos usualmente cul- presença, inclusive as mais minúsculas e desprezíveis?
tivados): é insuperável a parcialidade da interpretação e inevitável o anacro-
nismo a que se condenam as releituras. Matar-se-iam uns aos outros, sem piedade, moderação ou pudor. A desagre-
gação degeneraria em barbárie. Generalizar-se-ia a perspectiva da morte vio-
Nem por isso deve cessar nossa expectativa de que é possível comparar leitu- lenta em mãos alheias, supremo horror para os homens, segundo Hobbes. Os
ras contrastantes. Mais que isso, os postulados adotados consideram não ape- homens mergulhariam em uma era sombria na qual os riscos da inconstância
nas possível, mas necessário, o juízo pragmático a respeito do valor relativo semântica ou da polissemia prosperariam exponenciados, tornando a comu-
do par consistência/rendimento explicativo, correspondente a cada leitura; ren- nicação ardilosa e o convívio improvável, na medida em que os valores, carre-
dimento explicativo sendo entendido como a capacidade de incorporar à hipó- gados de idiossincrasias, tenderiam a substituir os nomes, contagiando a lin-
tese interpretativa proposta, do modo mais inclusivo possível, seja o enuncia- guagem com sua loucura. 6 A hipérbole da ambivalência, decorrente do domí-
do, seja o silenciado (porém estruturalmente inscrito), tanto o sistemático, quanto nio da linguagem pela paixão, provocaria o colapso de toda a base para o
o contraditório e lacunar. consenso.

O ESTADO DE NATUREZA EM SUA FORMULAÇÃO MÍNIMA O ser humano, no estado de natureza, agirá em função da expectativa da agres-
são preventiva alheia, a qual supostamente responderia, por antecipação, ao
''A natureza fez os homens tão iguais, quanto às faculdades do corpo e do es- movimento reativo do primeiro à hipótese plausível, mesmo que não prová-
píritd', 5 que as diferenças podem ser perfeitamente negligenciadas, dadas as vel, da iniciativa defensiva e antecipatória do outro, que, por sua vez, se adian-
diversas formas de compensação a que estão sujeitas. Com base nelas, não há, taria defensivamente ante a iminência do ataque preventivo. Não é preciso pros-
portanto, como pleitear superioridade ou reivindicar direitos ou benefícios ex- seguir. Vê-se imediatamente que a estrutura do cálculo prospectivo é a da re-
clusivos. Não por acaso Hobbes pôde legitimamente formular uma teoria so- gressão ao infinito. Essa cadeia labiríntica e barroca de suposições funestas ter-
bre o homem suas paixões, sua razão, sua forma de representar o mundo mina confirmando sua propriedade ao precipitar a ação hostil.
-, supondo-a válida para o conjunto da humanidade. À universalidade de seu
objeto correspondem a extensão do foco e a propriedade heurística de seu co- A verossimilhança das expectativas sombrias e a plausibilidade do prognósti-
nhecimento antropológico. A igualdade natural dos homens é tanto um pres- co convertem-se no acerto do diagnóstico. A previsão gera o real que antecipa
suposto axiomático, quanto um corolário da investigação, derivado, especial- e comprova sua justeza. A profecia se autocumpre. O resultado do cálculo

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traduz-se na iniciativa agressiva, que se impõe na medida em que apenas uma alheia e sinceramente interessados em cooperar. Desde que a primazia caiba
intervenção abrupta e violenta rompe o circuito ameaçador. A ciranda mórbi- à autoconservação aliada à razão, podem-se admitir, seja influência de valores
da faz o sujeito girar, transitando sucessivamente entre os pólos ativo e passi- que temperam o egoísmo, seja a participação de emoções que o moderam, sem
vo da caçada latente. A razão determina ação imediata e a única ação compatí- que se altere o resultado macabro dos encontros humanos.
vel com os desígnios de autoconservação, definidos pela paixão vital - em sua
modalidade consciente de si, isto é, o medo -, é a agressão capaz de cessar Enfim, por que é plausível a agressão alheia? Simplesment~ porque não há ga-
a ameaça de que provenha do outro iniciativa semelhante. Essa ameaça é plau- rantia alguma, no estado de natureza, de que conveniências utilitárias, da mais
sível em grau equivalente à probabilidade da ação de quem teme e avalia o fútil e mesquinha à mais nobre, não suplantem o interesse cooperativo e os
grau de probabilidade da antecipação alheia. O êxito momentâneo adia a der- valores que lhe correspondem. Em outras palavras, é perfeitamente razoável
rota provável (e, ao fim, inevitável), em outras mãos, de forma não menos vio- matar para obter vantagens e benefícios, quaisquer que sejam suas escalas. Se-
lenta. Todos os parceiros, interlocutores e vizinhos são inimigos potenciais; e, quer é necessário invocar a escassez de recursos e supor o engendramento de
no estado de natureza, toda potência se atualiza. Toda realidade se resume ao um jogo de soma zero, no qual cada ganho implica uma perda de proporção
cumprimento do destino trágico. O destino, previsto como hipótese plausível, equivalente. O cenário do mundo natural pode ser abundante, dotado de re-
concretiza-se como fortuna inexorável, ante a qual toda virtude é fundamen- cursos ilimitados. Ainda assim não se pode excluir a hipótese de que o agente,
talmente impotente, porque simplesmente reedita o círculo destrutivo. A vir- sem trair sua razão, prefira eliminar quem está próximo e desprevenido a ter
tualidade da guerra de todos contra todos, sendo o horizonte de risco, é, já, de caminhar um pouco mais para alcançar o bem, tão mais facilmente acessí-
imediatamente, sua realização. vel pelo método mais cruel.

Mas, afinal de contas, por que é plausível a agressão alheia? Esta é a pergunta Isso não significa de modo algum que os homens sejam ou tendam a ser cruéis,
decisiva, uma vez que tudo o mais decorre daí, pois, sabendo-se que os atores impiedosos, insensíveis ao sofrimento alheio; personagens frios para os quais
são intercambiáveis - dada sua igualdade natural básica, que inclui a cons- a violência sem riscos não importa custos subjetivos. Significa apenas que os
ciência desta igualdade -, a possibilidade do ataque do outro pode ser dedu- habitantes do estado de natureza têm de admitir que o caso limite dessa eco-
zida da sua suposição de que ele certamente supõe essa mesma possibilidade, nomia da crueldade seja, não só possível, como improvável a identificação dos
imputando-a ao parceiro, em razão do acesso especular ou universalista deste atores dispostos a exercê-la e das circunstâncias propiciadoras. É bastante a in-
último aos cálculos apaixonados de seu antagonista. A "especularidade" deri- certeza para que a cautela prudente, moderada, tempestiva e racional desen-
va da consciência ou expectativa de igualdade que os atores compartilham no cadeie o confronto generalizado.
estado de natureza. Se, portanto, a pergunta é decisiva, passemos à resposta,
observando, en passant, que nossa abordagem desloca o foco que tradicional- Não é preciso que ninguém se identifique como assassino frio; é suficiente que
mente tematiza as motivações autóctones e positivas da ação predatória no es- a razão se possa propor a hipótese, mesmo remota, da existência pervasiva des-
tado de natureza, o que em geral conduz a falsas imagens da antropologia hob- sas motivações perversas, concentradas em um ser humano ou dispersas e de-
besiana. Para que a hipótese representada pelo estado de natureza se sustente sigualmente distribuídas em muitos. Tampouco é necessário projetar sobre a
e cumpra seu papel lógico-argumentativo, não é necessário atribuir aos homens vítima potencial essas qualidades; basta supor que ela poderá agir como se es-
qualidades psicológicas ou (a)morais especialmente tendentes à solidão e con- tivesse diante de alguém potencialmente dotado dessas qualidades, ainda que
flitantes com disposições solidárias. Para que a máquina de guerra natural seja fazê-lo, isto é, tomar antecipada e defensivamente a iniciativa da agressão, lhe
ativada não é preciso que os homens sejam egoístas em extremo, perversos, custasse muito. Em certo sentido, a violência preventiva confirma sempre, do
covardes, corruptíveis, desleais, manipuladores, imoderadamente passionais, ponto de vista das conseqüências, a suspeita imputada à vítima e reforça a con-
puramente interesseiros ou atados a ambições desenfreadas. Basta que eles se- vicção da necessidade do próprio ato que produziu a vítima. Poder-se-ia pro-
jam basicamente iguais, conscientes dessa igualdade - vale dizer, do caráter por, ainda nos termos desse tempestuoso delírio da razão, subordinado aos
universal de sua razão natural -, racionais e inspirados pelo desejo de estritos limites da racionalidade, orientada naturalmente para a autoconserva-
autoconservar-se. Podem ser, sem prejuízo para o sistema - pelo contrário, ção, que sequer é necessário supor que a vítima potencial suspeite da confiabi-
fazendo-o economizar axiomas -, razoavelmente generosos, zelosos de seus lidade gratuita de seu virtual algoz; basta que este último considere plausível
compromissos e da honorabilidade de suas palavras, preocupados com a sorte que sua vítima iminente considere a possibilidade razoável de que ela própria

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desperte suspeitas, de mesmo tipo e intensidade, provocando intenções de- 5. sendo corrente neste mundo a circunstância descrita no item anterior, gene-
fensivas contra as quais tenderia a se proteger, atacando preventivamente. Ca- raliza-se a desconfiança;
beria ao algoz agir com presteza e determinação, antecipando-se à violência
provável. A espiral dramática não será mais detida. 5.1 "E contra essa desconfiança de uns em relação aos outros, nenhuma manei-
ra de se garantir é tão razoável como a antecipação [... J E isto não é mais do
que sua própria conservação exige, conforme é geralme~te admitido". 9
O LUGAR ESTRATÉGICO DA DESCONFIAJVÇA
Nas proposições 1 e 5.1 estão contempladas duas das três principais causas
São os seguintes os termos em que Hobbes expõe seus argumentos referentes
da discórdia, que, segundo Hobbes, se encontram na natureza do homem: a
às conseqüências das relações humanas em estado de natureza, isto é, antes
competição e a desconfiança. A terceira causa é a glória, a qual concorre para
que a constituição de um poder soberano e capaz de restringir pelo medo pro-
a intensificação das disputas, apesar de supor, para sua própria vigência, um
picie o desenvolvimento relativamente estável da sociedade:
consenso axiológico mínimo, além de uma estrutura hierárquica razoavelmen-
te consolidada, requisitos absolutamente incompatíveis com o estado de natu-
1. os seres humanos são iguais quanto à capacidade, porque, sendo natural-
reza- mas, justamente por isso, fomentadores da ampliação da taxa de confli-
mente dotados da faculdade da razão, têm idênticas condições de potencializá-
la pela indústria. Conseqüentemente, fazendo-a prosperar, credenciando-se a
to que o caracteriza.
compensar debilidades ou insuficiências comparativas, combinando as habili-
dades desenvolvidas e complementando-as pelo recurso a instrumentos adequa- A interpretação exposta confere, como se terá observado, um lugar estratégico
dos aos fins específicos projetados; às proposições 5 e 5.1, derivando delas a compreensão que minimiza a rele-
vância da escassez e das qualidades psicológicas e/ou protomorais dos seres
1.1 segue-se, como corolário, que os homens também são iguais quanto à espe- humanos. Há duas vantagens principais nessa opção hermenêutica: (a) reduz-se
rança de atingir seus fins; o estoque de axiomas necessários à edificação do sistema conceituai; (b) no
coração da obra, no centro do estado de natureza e da passagem humanizado-
2. há no mundo bens cobiçados pelos homens que não se dão à fruição simul- ra à sociedade, via construção da ordem política, reencontra-se o tema-chave:
tânea e múltipla - o que não implica necessariamente escassez, mas posição a idealidade do sujeito universal e a tensão conceituai resultante de seu con-
relativa diferencial; fronto com a multiplicidade diferenciada e individualizada, sob cujo fluxo flui
a vida.
2.1 esse mundo é passível de ser representado por sujeitos cobiçosos e côns-
cios de sua igualdade (o que legitima, desde logo, toda cobiça), como um cená-
O OUTRO, O SUJEI10 IMAGINÁRIO E A SOOEDADE POSSÍVEL
rio cuja característica é a escassez - insista-se no sentido construído e relativo
dessa escassez, o que nos permitiu deslocar-lhe o eixo e pensá-la sob a ótica
Um deslocamento conceituai cheio de conseqüências processou-se quando Hob-
inversa das paixões e dos cuidados preventivos que inspiram a razão;
bes propôs o engate entre as paixões e a razão, concebendo-a como responsá-
vel pela sondagem das alternativas pelas quais os fins pudessem ser alcança-
3. "Portanto, se dois homens desejam a mesma coisa, ao mesmo tempo, que
dos de modo mais pleno e com prejuízos laterais menores. Isso importava em
é impossível ela ser gozada por ambos, eles tomam-se inimigos";7
que os movimentos voluntários humanos, sempre que racionais, resultariam
4. dado o predomínio da paixão pela vida, traduzido no medo da morte, parti-
de considerações sobre as circunstâncias e o cenário mais abrangente em que
cularmente da morte violenta em mãos alheias, a inimizade implicará, para Hob-
se detonariam as ações, destinadas a alcançar determinadas finalidades ou a
bes, conflito aberto, seja por lon;a da intensidade da cobiça pelo bem disputa- produzir certos efeitos desejados. Um dos objetos centrais das avaliações ra-
do, que supera outras considerações e pressões afetivas (ou paixões), seja por cionais teriam de ser, por conseqüência, as ações e reações dos demais atores
prudente determinação racional, inspirada em motivos que conhecemos: os com- envolvidos, direta e/ou indiretamente, no curso do processo desencadeado pelo
petidores "no caminho para seu fim (que é principalmente sua própria conser- sujeito da deliberação. As avaliações prospectivas sobre deliberações e desem-
vação, e às vezes apenas seu deleite) esforçam-se por se destruir ou subjugar penhos alheios, por sua vez, supõem adesão a hipóteses referentes às disposi-
um ao outró'; 8 ções determinantes das respostas dos outros às circunstâncias promovidas pela

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alteração a que a ação do sujeito submete o cenário interacional. Tais disposi- mediado pelo outro (modelo antropológico acessível pela razão), pois é
ções são condicionadas pela natureza humana e por qualidades idiossincráti- tomando-se outro ou identificando-se com o ser humano universal ideali-
cas, desenvolvidas pela biografia individual e, grosso modo, inacessíveis a uma zado pela razão - que o sujeito pode ter acesso reflexivo a si próprio; o que,
formulação apriorística, que pretenda uma abrangência ampla. por sua vez, é condição do conhecimento do outro (empírico) ou da possibili-
dade da formulação de hipóteses plausíveis a respeito do outro (empírico} e
Prospecções são, neste caso, apriorísticas, isto é, não incluem informações par- de suas reações hipóteses sem as quais não há prospecções, nem ação
ticulares, apenas detectáveis por meio de observações empíricas específicas, as racional.
quais não têm lugar quando se trata da elaboração hipotética de um quadro co-
mo o estado de natureza, dedutivamente extraído do esforço racional e abstrato Fazendo girar sobre si essa proposição, obtém-se um enunciado ainda mais
de um sujeito universalizado. Restaria à razão, portanto, apoiar-se no estoque simples, claro e econômico: o acesso cognitivo a si próprio e ao outro (empíri-
de conhecimentos sobre as características invariáveis e permanentes da nature- co) constitui um único movimento da razão, cuja estrutura pode ser sumaria-
za humana, universalmente disponível e apenas verificável pela introspecção. mente descrita como sendo a identificação do sujeito com um modelo antro-
Somente as paixões cegam os homens, a ponto de obstar seu acesso cognitivo pológico ideal, concebido pela razão metodicamente aplicada. Em outras pala-
à sua própria natureza. A obra de Hobbes tencionava abrir-lhes os olhos e hberá- vras, ego e alter identificam-se via mediação de um tertius postulado pela ra-
los do cativeiro a que a cegueira os condenava. Lux in tenebrís, avant la lettre. zão. Ou seja, essa tripartição analítica e seu engendramento resultam da ativi-
dade ideativa da razão de um sujeito (como seu itinerário prospectivo) e cons-
O ser humano, personagem desindividualizado, delibera e age -quando o faz titui, seja a estrutura mesma do homem racional hobbesiano, seja a condição
sob o comando da razão-, construindo parceiros à sua imagem e semelhança, que suporta a possibilidade de sua universalidade, sem cuja suposição nau-
projetando-se sobre os demais protagonistas das interações de que participa e, fraga todo construdo.
desse modo, generalizando-se, conforme determina a própria universalidade
pressuposta (todo ser humano seria composto dos mesmos ingredientes, anali- As disposições previstas no modelo são predominantes nas avaliações dos atores
ticamente investigados ao longo dos capítulos de O Leviatã). Agregar um outro a respeito dos outros. O modelo instrui os atores e os capacita a antecipar ações
ao cálculo que antecede uma ação racional equivale, do ponto de vista do sujei- alheias. Mesmo que a antropologia hobbesiana não corresponda à composi-
to ideal da ação, a desdobrar-se e multiplicar o mesmo com o qual se identifica. ção empírica de cada ser humano concreto, por certo corresponde à suposição
comum e temerosa sobre o outro empírico, a qual define, no experimento ima-
Há, em síntese, dois movimentos básicos no cálculo prospectivo que governa ginário em pauta, as trilhas das ações. O modelo concebido por Hobbes, neste
racionalmente o movimento voluntário humano: a identificação do autor do sentido, é eficaz e termina por produzir o objeto que porventura falhe em des-
cálculo com um modelo determinado de homem e a projeção desse modelo crever, na medida em que efetivamente ordena as disposições do sujeito, suas
sobre o outro hipotético ou circunstancialmente :presente, no setting da intera- expressões e intervenções práticas. A figura do outro, do homem universal,
ção provável. Se a observação soa trivial, suas conseqüências não o serão. acaba por regular, de fato, o homem e formá-lo à sua imagem e semelhança.
Independentemente de descrevê-lo com mais ou menos acerto, termina por
Antes, portanto, de conceber o outro segundo a imagem de si acessível, o su- oferecer sua descrição mais exata, ao demonstrar seu caráter construído e
jeito racional concebe-se a si próprio, segundo a imagem de ser humano aces- estabelecer-se como o modelo necessário para essa construção: a sociologia idea-
sível, isto é, produzida pela Antropologia dedutível, com método, da razão. lista de Hobbes substitui-se à ontologia e a produz, credenciando-se a completar-
O ser humano idealizado pela razão e descrito por Hobbes constitui a referên- se em uma Antropologia, que lhe fornece o fundamento, derivando-se dela
cia modelar para a identidade do sujeito, cuja racionalidade deriva exatamente - e concluindo um circuito mais dedutivo transcendental do que tautológico.
de sua extensão projetiva, com a qual constrói o outro, realizando a universali- O tipo ideal passa de regulador a sujeito graças ao predomínio da descon-
dade da qual se deduz (transcendentalmente) a possibilidade do próprio su- fiança, da expectativa e da razão sobre a competição, o projeto e as paixões
jeito da razão. -, o que torna o modelo uma ontologia. O deslocamento do foco para o cálcu-
lo e a antecipação esvaziaram o ator de qualidades muito marcadamente psi-
Em outras palavras, o acesso ao outro é mediado pela alteração de si; o que cológicas ou morais, de propriedades substantivas axiomaticamente intro-
significa: o acesso do sujeito racional, pensado como agente, a si próprio, e duzidas.

50 51
A atividade humana tem caráter reativo: os seres humanos realizam a guerra de (a) e (b) para a efetivação da mudança; (d) consciência de que os enuncia-
generalizada que esperam. Sendo assim, a sociedade é sua expectativa. Realizá- dos (a), (b) e (c) são compartilhados por todos os parceiros de infortúnio, isto
la depende da inversão do padrão de expectativas, representado pela idéia do é, por todos os inimigos. O quinto enunciado, (e), estabelece a conveniência
estado de natureza. A suposição da ordem corresponde à sua vigência. A pro- de uma solução que responda à dupla função: (e.1) ofereça roteiro para imple-
fecia autocumpre-se, agora em sentido positivo, sem que isso implique a nega- mentação do fim consensualmente desejado; (e.2) faça-o sem ferir quaisquer
ção de mediações verificadas no modelo referente ao estado de natureza, dado interesses ou seja, realize-se em termos análogos aos da "vontade geral" rous-
que interagir em condições suficientes de estabilidade permite a emergência seauniana. Observe-se que a proposição (e.2) não decorre de considerações
da pluralidade das paixões humanas e de múltiplas estratégias racionais. O atinentes às vantagens práticas de uma eventual decisão coletiva unânime ou
medo e a autoconservação evidentemente continuam a ditar limites o que, à eficácia superior de uma ação concertada, do ponto de vista da obtenção dos
aliás, é decisivo para a própria concepção do pacto, em seus diversos momen- fins desejados (por ora, definidos negativamente). Deduz-se (e.2) de (d), ou
tos porém não mais absorvem todo o espectro da vontade. seja, (e.2) é um corolário da atribuição de universalidade ao sujeito do cálculo.
Exatamente como a auto-restrição da liberdade - idéia da razão e lei da vonta-
O que pode determinar alteração assim drástica das expectativas? O simples curso de autónoma dá-se, na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, de
natural do cálculo, acessível a todo indivíduo racional imerso na situação dra- Kant, 10 predicando-se-á ao ser racional, figura do sujeito universal no mundo
mática do estado de natureza, e, portanto, generalizável como perspectiva con- inteligível da moralidade. Livre, o ser racional apenas desejará a lei, quer di-
sensual, conduz ao reconhecimento da indesejabilidade do estado de natureza zer, o que for universalizável. Enquanto seu sujeito, o ser racional, atuará, "es-
e, conseqüentemente, da conveniência de abandoná-lo ou transformá-lo. Da von- pecularmente': como predicado da hberdade, qualificando-a e a limitando. Oaro,
tade de encontrar alternativas a condições tão intoleráveis surge a questão so- se qualquer um e todos, subsumidos pelo modelo de indivíduo universal hob-
bre os meios necessários e, sem dificuldades, a idéia, que é simples constata- besiano, desejam determinado fim, desejam igualmente o meio para realizá-
ção, de que a mera repulsa é insuficiente. Subjaz ao raciocínio descrito a supo- lo. Este meio, conseqüentemente, é desejado por todos e por qualquer um, ou
sição comum que o universaliza: é a suposição de que é comum a hipótese da tem de sê-lo para definir-se como o meio adequado à finalidade universal. Co-
universalidade que fundamenta a própria universalidade -sendo tal suposição mo se vê, esse itinerário passa ao largo da problemática empírica do consenso
correspondente à natureza mesma da razão, segundo a antropologia hobbesiana. entre individualidades diferenciadas; problemática à qual devemos a introdu-
ção dos desafios representados pelo free ríder.
Essa forma de produzir a universalidade, supondo-a, constitui a estrutura do
argumento que sustentou o privilégio do par expectativa/reação, em detrimen- Sobre (e.1), ter-se-ia que observar alguns aspectos. Do fim desejado pode-se
to de projeto/ação-positivamente-motivada. Sabemos que a paixão atraída po- dizer que não é o estado de natureza; mais ainda, pode-se chegar a considerá-
sitivamente é plural e racionalmente mediada, na deliberação. A paixão pela lo positivamente como a negação do estado de natureza, o que implicaria defini-
vida não reduz a multiplicidade objetiva com que se relaciona por manifesta- lo como a inversão das características estruturais que qualificam a situação re-
ções difusas (apenas fundindo-se negativamente com a razão, enquanto medo cusada. Resumindo-as à expectativa generalizada de hostilidade - derivada
da morte, liquida mediações, diferenças objetivas) ou significações (e se atuali- do fato de que o risco da morte, mesmo remoto, é suficiente para propulsionar
za como a negatividade que é seu princípio). o ataque preventivo, dada a inexistência de custo equivalente ou de risco supe-
rior, associados à defesa antecipada deduz-se que a fórmula mínima da in-
Sabemos, portanto, que construir o estado de natureza positivamente equiva- versão corresponde à imposição de custo à precipitação defensiva.
leria a substancializar a Antropologia e ontologizar a Sociologia, isto é, equiva-
leria a multiplicar axiomas e restringir a força do sistema hobbesiano, cujos con- O reconhecimento do acesso generalizado à consciência da desvantagem do
ceitos se nutrem da economia ideal-dedutiva, representada pela unidade do ataque preventivo pacifica os espíritos, antes açodados pela paranóia racional-
sistema, e não da acuidade à empiria e às suas distinções como será típico mente fundamentada. Não é preciso proceder ao cálculo enquanto agente, basta
da ciência experimentalista. conhecer a estrutura do cálculo na qual se enredaria qualquer agente - inclu-
sive ele próprio, que assim se torna, nessa medida, transparente -, para con-
O curso do cálculo incorpora, portanto, (a) indesejabilidade da situação natu- cluir que as suspeitas alheias quanto às expectativas não tendem a prosperar.
ral; (b) conveniência de sua modificação; (c) reconhecimento da insuficiência Da perspectiva da guerra de todos contra todos, transita-se para a generaliza-

52 53
políti ca- e a substi-
de efetiva estabiliza- _ que, por sua vez, implica a questã o da necessidade da
ção da expectativa de paz, o que equivale à possibilidade de definiç ão da legitimidade
ordem. Passa-se do tui pela problemática ético-política dos critérios
ção de relações sociais e, portanto, afinal, à viabilidade da
uais têm lugar, do poder institucionalizado e concentrado no Estado.
estado de natureza ao estado de sociedade, onde os fins individ
entes das compe tições produ -
em sua diversidade, sem que as tensões decorr ado pela obra deixa
zam a derrocada da ordem instituída. A pergu nta subjacente ao conjunto de proposições trabalh
a ser: "devo prestar obediência
de ser "como é possível a sociedade?" e passa
de vista neutro , objetivo e ex-
erta a respeito à autori dade política? Devo obedecer?" O ponto
A razão tem de extrair todas as conseqüências de sua descob o socioló gico em-
ição da ordem social temo, que dá lugar à primeira pergu nta (geradora de model
das vantagens da regulação política que promove a institu da pergun ta, pela
produ zir ordem é supô-la possí- pírico), é substituído pela perspectiva identificada, na segun
e lhe confere estabilidade. O único modo de e as condições de
o da liberda de natura l primeira pessoa do singular. Reencontramos a introspecção
vel e provável, recorrendo à idéia do sacrifício coletiv ntação de O Levia-
soberania e ampl~ sua projeção universalizante (introduzidas desde a aprese
mediante um grande pacto, pelo qual seria atribuída plena o, deixa de ser prio-
riam o papel de árbi- tã). A matéria de Hobbes, a partir desse viés hermenêutic
direito de representação a alguém ou a alguns, que ocupa de agrega ção. A longa
violên cia legítim a, com a finalid ade de reprimir ritariamente a engenharia institucional ou os mecanismos
tros e de monopolizadores da tricas, devolve-nos
(em outras palavr as, o pacto geraria viagem reflexiva, de decomposição e reconstrução geomé
a transgressão à ordem, então instituída , historicamente cir-
o Estado, não importando, aqui, suas caracte rísticas). a situação original a efetiva experiência da sociabilidade
Leviat ã é um longo percur so so-
cunscrita - ético-politicamente adjetivada. O
iante a respeito não
vigência da inversão lipsista do peque no homem atravessado pela dúvida angust
O único modo de (re)produzir a sociedade é reconhecer a obra é param étrica
a universalidade do que é ou foi, mas do que deve ser. A problemática da
das expectativas originárias do estado de natureza e supor eferida e conce rnente
depen de daquel a suposi ção e, mais que e a reflexão estratégica está a serviço da indagação auto-r
desse reconhecimento. Mas, como este
ição mais adequ ada se- à interrogação sobre a obediência.
isso, pode ser definido como dela dedutível, a propos
ecer a vigência da
ria: o único modo de (re)produzir a ordem social é reconh DA
reconhecimento. ~ A TESE CONTRATUAUSfA: POSSIBILIDADE DO SOOALi CONDIÇÕES
inversão de expectativas, supon do a universalidade desse A EMPÍRIC()..IDEAL
bilidade da nova IDENTIDADE E ASOLUÇÃO ANTROPOLóGICA PARA O DILEM
da universalidade da suposição que a razão deduz a plausi
e é alcanç ada genera lizand o-se o que
expectativa; no entanto, a universalidad br~ em si mesm o,
s a própri a conclu são, que Eis o problema hobbesiano: todo homem é capaz de desco
é possível graças à intercambialidade dos sujeito ída. Justificada,
espera r ordem, as boas razões que justificam a adesão à ordem política institu
confere verossirnilhança à expectativa de paz: se eu posso que um motivo legitimador
idêntic a expect ati- a adesão será estimu lada ou reforçada, uma vez
apoiando-me na possibilidade de que todos compartilhem às paixõe s essen-
e calculem confor- tem de ser racional e um motivo só será racional se for aliado
va, posso considerar razoável supor que todos de fato ajam
compartilhem a no- ciais (devotadas à autoconservação).
me meus próprios cálculos, isto é, que todos efetivamente
a idéia ou a mesm a conclusão
va expectativa, já que a todos ocorrerá a mesm ade) em partes (os
sendo a razão idêntica-a-si O desme mbram ento analítico-geométrico do todo (a socied
(pois os outros compartilharão a nova expectativa), repres entaçõ es, imaginação, me-
nte racion ais, isto indivíduos) e destes em subpartes (sensações,
e os sujeitos, no nível em que ora os postulo, exclusivame os aos impas ses implica-
es especí ficas, par- mória, razão e paixões), seguido dos cálculos relativ
é, apaixonados apena s pela vida e não situados (em relaçõ nature e a socieda-
za
s do Estado. dos na associação das unidad es individuais (o estado de
ticularizantes); meros agentes celebrantes do pacto, artífice e a quadr os empíri-
de), correspondem, como adiantáramos, não propri ament
investigação rigoro-
tar, no plano do cos (reais ou simulados), mas a etapas necessárias de uma
· Introduzir o dilema da agregação societária implicaria enfren de um indiví duo racion al qualquer, ins-
o que abriria o flanco sa e introspectiva, no limite solipsista,
modelo genealógico, a questão empírica do free rider, imento da sociedade, de-
as quais dificilmente truído pela metodologia analítica adequada. O conhec
da teoria hobbesiana a uma série de interrogações para ilidade , esclarece
ia funciona como rivado da indagação a respeito de suas condições de possib
poderi a oferecer resposta. A tensão entre idealidade e empir o corresponde seu empen ho em preservá-
o desafio posto, neste caso, pelo plano 0 (auto)investigador e ao esclareciment
um dispositivo ambíguo: serve para elidir a. A razão indi-
por isso, desloc a a problemática la dos riscos embut idos em todas as formas de rebelião polític
da empiria, mas, por outro lado, e justamente da trégua negoc iada que a im-
ia da ordem social vidual engen dra o cenário da guerra, da paz e
das condições de possibilidade da emergência e/ou vigênc
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54
plementa. Estado de natureza é apenas um momento do cálculo; um proble- própria identidade, da remissão à sua realização inevitavelmente precária, por-
ma sociológico formulado pela reflexão que opera com determinado estoque que invariavelmente comprometida com posições individualizadas, cujos sig-
de conceitos antropológicos. O pacto social não passa de um argumento poli- nificados dependem do modo como, tópica e circunstancialmente, as paixões
tológico, uma hipótese, uma proposta de solução concebida pela atividade ra- são sensibilizadas. Sendo este o problema que, a propósito de si mesma, pode
cional do (auto)investigador. formular-se a razão humana, constitui o contrato, simultaneamente, a super-
posição problemática dos dois planos e a proposta de solJ.lção para esse dile-
Sendo assim, perde interesse o esforco exegético ou especulativo que se con- ma metaconceitual (além de saída para o impasse sócio-político).
centra na correção lógica do argumento contratualista aplicado a condições em-
píricas simuladas de agregação humana. Não importa se é viável supor que O argumento contratualista não privilegia exclusivamente o plano ideal, mas
a convocação para o pacto é suficiente para realizá-lo em pleno estado de natu- tampouco prosperaria se buscasse apoio apenas no terreno movediço dos mo-
reza para alguns haveria aí um contra-senso, pois a celebração do pacto exi- delos de simulação empírica. li da natureza mesma do argumento supor que
giria, para consumar-se, condições de ordem e estabilidade de expectativas, cada protagonista da guerra generalizada configurada empiricamente pela
apenas realizáveis sob a vigência do estado de sociedade, o qual resultaria, por simulação, daí o tom descritivo de boa parte do discurso hobbesiano sobre o
sua vez, e paradoxalmente, do próprio pacto. O caráter transcendental do ar- tema - possa e tenda a ultrapassar imaginariamente a situação imediata em
gumento hobbesiano autoriza a passagem imediata da racionalidade do cálcu- que se encontra, por força da conjugação do medo (da morte violenta em mãos
lo para a universalidade de seu endosso; da razão individual para a suposição alheias) com o reconhecimento racional da conveniência da paz e dos meios
do caráter universal de sua validade. O sujeito individual universaliza-se capazes de produzi-la. A ultrapassagem imaginária da circunstância equivale
vale dizer, desindividualiza..se. Estabelece-se, reflexivamente, o domínio circuns- a um deslocamento de perspectiva, certamente determinado também pela pai-
crito por aquilo que Hobbes denomina "a razão certa em si'~ indiferente às dis- xão, até o ponto ideal em que a avaliação racional se liberte dos constrangi-
putas decorrentes de seu compromisso individualizante com as paixões. mentos sensíveis, isto é, até o ponto em que vigora apenas a determinação au-
toconservadora intrínseca à própria razão enquanto movimento.
O raciocínio é perfeitamente congruente com o fato de que a obra de Hobbes
não pretende divulgar ou promover a idéia de um pacto fundader ou de um Esse ponto é lugar do outro; topos abstrato, de fato irrealizável, mas concebí-
entendimento entre todos os cidadãos, mas demonstrar as vantagens da mo- vel e, de direito, visado (dadas as normas da razão e seu intrínseco apelo à
narquia absolutista e, mais que isso, a necessidade da obediência ao poder que universalidade, embutido na cláusula da perspicuidade com que Hobbes iden-
demonstrar, na prática, ser capaz de obter a paz e produzir estabilização de tifica a verdade). li de interesse da paixão renunciar idealmente à sua sobera-
expectativas, isto é, ordem. O pacto é, na verdade, o artifício da razão para nia, em benefício da elevação do indivíduo à posição ideal, determinada racio-
gerar a ordem política, não porque a institua, mas porque concorre - enquan- nalmente, a partir da qual lhe seja dado divisar o quadro da experiência, em
to idéia determinante de atitudes próprias a súditos reverentes - para sua pre- sua globalidade, para além dos limites da contingência e dos movimentos ime-
servação ou reprodução. diatos. Só assim pode nascer a miragem que dá lugar à intervenção voltada
para a celebração do pacto. É esse o movimento que funde o protagonista do
O contrato, portanto, além de idéia da razão - e, conseqüenmmente, elo na jogo social, o indivíduo, o leitor, ao autor,. enquanto fulcro do discurso que com-
cadeia do cálculo retrospectivo, legitimador da ordem -, apresenta um con- põe a obra; é esse o movimento que sobrepõe a produção diséursiva de O Le-
teúdo que o remete ao plano sensível: o contrato representa, exatamente, o mo- víatã à produção política do Leviatã; é esse o processo simbólico-conceituai que
mento em que a razão deixa o domínio da universalidade ideal, da comunhão converte a leitura em enunciação. Sendo o pacto condição de paz e, portanto,
estabelecida conceitualmente, da virtualidade do consenso, e ingmssa no campo de vida, dir-se-ia que a desindividualização do leitor e do protagonista é con-
do acordo real entre diferenças; acordo que constitui o espaço político da co- dição de afirmação da individualidade, supondo-se que esta apenas prospere
municação entre razões apaixonadas, entre individualidades que transigem, ou encontre condições de reprodução em contextos em que a identidade im-
recuam, resistem, suspeitam, temem, hesitam, confiam, IU'riscam, apostam. plique a incorporação da alteridade como mediação autoconstitutiva - ou se-
Em outras palavras, a própria razão postula a idéia reguladora de si, alheia ja, em que se suponham o deslocamento ao ponto de vista ideal universalista
às contingências que a refratam segundo perspectivas irredutivelmente parti- e suas conseqüências práticas, vale dizer, pacto, expectativas pacíficas e ordem
culares, mas não pode prescindir, para completar o sentido que atribui à sua social.

56 57
Parece correto deduzir que a identidade individual apenas encontra condições píria sai da metafísica para entrar na história; ou: retoma à Filosofia, ao tornar-
de autoconstituição em circunstâncias tais que qualquer individualidade as com- se Antropologia.
partilhe estas condições correspondem, guardadas as mediações, ao conví-
vio societário. Eis mais um motivo para compreender o argumento contratua- Ao se transformar a dicotomia em tensão vivida e estruturante da subjetivida-
lista como uma reflexão de quem se acha imerso no social, desenvolvida de de humana - isto é, em propriedade antropológica -, reintroduz-se a ideali-
uma perspectiva necessariamente posterior e superior ao estado de natureza. dade na empiria, mas isso não nos faz retornar ao ponto 9-o qual escapamos.
A sociedade está pressuposta no pacto, não por motivos táticos ou operacio- Em outras palavras, não é necessário voltar aos cálculos utilitários para checar
nais, mas porque indivíduos racionais, dotados de razão e, portanto, de iden- se a solução do contrato é formalmente adequada, ante a multiplicidade re-
tidades individualizadas, apenas são concebíveis em sociedades; e sabemos descoberta de individualidades concretas, passionais ou orientadas racional-
que o pacto somente pode surgir do cálculo racional. mente para seus interesses, mutuamente excludentes. Não é necessário voltar
à leitura utilitária ou ao paradigma do comportamento estratégico, justamente
A solução do dilema embutido na tese contratualista, em que se superpõem porque a empiria foi reencontrada de um modo que a fez incorporar a ideali-
esferas inconciliáveis, está em supor que os homens reais, empiricamente de- dade como um de seus momentos constitutivos: o ser humano empírico não
finidos, desenvolvem, eles próprios, reflexões visando ao plano de idealidade prescinde da orientação de uma idealidade intangível e, no percurso impossí-
do qual vislumbram o pacto, a paz e a sociedade, otganizada pela autoridade vel ou interminável assim inspirado, constrói seu destino e sua própria identi-
delegada do Estado. Desse modo, o pacto não deriva apenas da reconstrução dade precária, tensa e porosa.
genética da ordem ou de sua crítica, elaboradas pela subjetividade racional,
solipsisticamente. Produz-se também na reconstrução e na crítica, entendidas Retomar a empiria, nesse sentido, corresponde a ampliar a concepção do atar
como práticas comuns e interacionalmente referidas. O pacto que se produz social, distinguindo, no movimento de sua autoconstituição, um nível básico,
na reconstrução e na crítica produz-se intersubjetivamente, díalogicamente, por definição inapreensível à luz das concepções utilitárias: refiro-me ao cam-
na medida em que é produto de reconstrução crítica pública, a qual, enquan- po díalógico da linguagem, do simbolismo e do val~ tradução antropológica
to prática objetivada dos indivíduos, expõe impasses e alternativas a consi- do plano ideativo, tal como implicado - segundo esta leitura - nas formula-
derações recíprocas. Sabendo-se que as reconstruções e críticas individuais ções de Hobbes. Esta seria, creio, uma forma de fidelidade a um pensamento
representam o esforço de observar as determinações da razão, tão estritamen- revolucionário e inaugural, rigoroso e criativo, tensionado pelos dilemas fun-
te quanto possível, deduz-se que a universalidade ou perspicuidade discursi- damentais da sociabilidade e do poder, da linguagem, do conhecimento e das
. va formam o horizonte de referência, a partir do qual as reconstruções (ou paixões humanas. Seria também uma forma provocativa de traição ao legado
perguntas sobre as razões da ordem política) são estruturadas e suas chaves hobbesiano, tal como consagrado no ,espólio exegético dominante, de que se
hermenêuticas constituem-se. O resultado é que todos buscam alcançar as têm nutrido paradigmas individualistas da Sociologia e da Ciência Política. Há
mesmas qualidades discursivas básicas, ainda que não haja consenso quanto um tesouro sob as ruínas de nossa origem moderna: possibilidades descarta-
aos conteúdos nos quais, supostamente, tais qualidades emergiriam. Este é das pelo processo histórico da modernidade, que permanecem virtualmente
o fundamento do contrato, que não passa, na verdade, de um metaacordo: contemporâneas do futuro; possibilidades de entendimento da aventura hu-
reduz-se a extensão do conflito a escalas toleráveis, na medida em que haja mana e de reinvenção democrática da ordem social. O exercício hermenêutico
consenso quanto à divetgência; havendo comunicação - aquela em que a participa, nesse sentido, de um esforço plural comum, que encontra modos
paranóia encontra limites e o logro cede lugar ao apelo à universalidade -, muito diferentes de manifestação, na academia e fora dela. Eis as pontas reu-
há sociabilidade. nidas: a (re)leitura e a cidade; a (des)leitura e a política.

A solução está em considerar um atributo antropológico (e não uma simples (Recebido para publicação em fevereiro de 1993)
determinação da razão) orientar-se na díreção de um destino irrealizável, de-
terminado pela razão em um plano ideal. Thl consideração torna-se possível NOTAS:
quando a própria razão se define como um movimento voluntário e, portanto,
como paixão. O impossível pode motivar; é o que se deduz, desde que seja 1. As referências e citações terão como base: Thomas Hobbes, Leviathan, or Matter,
sinalizado pela razão ou na dinâmica do cálculo. Assim, o par idealidade/em- rorm, and lbwer o! Commonwealth Ecclesiastical and O vil, editado por C. B. Mac-

58 59
pherson, Londres, Penguin Books, 1968; ou a excelente tradução brasileira de João ABSTRACI'
Paulo Monteiro, l'homas Hobbes, Leviatã ou Matéria, R:Jrma e Poder de um Estado The Structure of the Contractualíst Algumen t: Thomas Hobbes and the
Eclesiástico e CiWJ, São Paulo, Ed. Abril, Col. Os Pensadores, 1979.
Ethical Genesís of Modem Politicai Reflection
2
· ~a tese de tioutorado, elaborada sob a orientação do Prof. Wanderley Guilherme
0
~ ~antos: foi defendida no Iuperj, em julho de 1991, com o titulo A Invenção do As its analytical method, the article projeets the arguments stated in Leviathan toward
;uJ: .l!ruversa.: Hobbes e a Política como Experiência Dramática do Sentido.
the virtual point of maximurn consistenc y (which includes rençlering contradictions
en ctet-me, llo processo de sua elaboração, do clima de generoso pluralismo inte-
1 explicit). It shows that the Hobbesian contractua l proposition presuppos es a tension
::octu~ prevalecente no Iuperj, onde as saudáveis divetgências não ultrapassam as
nteíras do respeito mútuo e do estimulo à liberdade de pesquisa. between two viewpoints : (1) that whose nuclear arguntent derives from the transcendental
,..,raça a eo·tsa Certa: O Rigor d a Ind.lSClp. lina", m. Helena Bomeny constructio n of a universaliz ed subjeet, which is the condition for the ontological being
3. Em meu . ensaio
.
e Patrícra B~, orgs., As Assun . Chamadas c·· . "'--: . . Reiu-
1enaas,.::JUWaJS, o d e JanetrO,
Ri of reason's idea of itself and (2) that which conceives a sociological-strategic model of
me Dumará-un nJ a1gu . - ··ê · d
mas mottvaçoes e consequ netas esses con- empirical simulation. The resolution overcomes the impasse but preserves the tension
, . "' , 1990, exp1oro .
trastes estetico.."" .
d
lí . ___ , . .
lf.fa :••Orats ou po tiCu-<:wturrus, que tmportam em vtas por vezes opos- of the aJnbivalence: the ideal-subjective construct is no longer a transcendental deduction
tas e se - shionfng, com seus inevitáveis comprometimentos psicológicos, assim but instead a moment o{ anthropolo gical self-constitution of the social actor. The issue
c~dmo X:bp~sentazn posturas e padrões de atuação diversos, no meio acadêmico e na shiffts: what is primarily in question in contract theory are not the social order's conditions
Vl a pu lica, -- ... I ger ai . .
of possibllity but rather the duty to politicai obedience, from a parainetric perspective
4. Apresento esse d' . _ .. .
b· N blin tagn6 stíco e exp1oro suas razoes e consequêncras em "Luz Baixa
a: Antropologia, Relativismo, Interpretação'', Dados, vol. 33, n'? 1, 1990,
50
e
PP· 5-29. RÉSUMÉ
5. Thomas Hobbe8, u::v1ata
, _., - ..- , . •
ou 1natena... , op. at., p. t<t.
'1A
La Structure de l:Argument Contractualíste: Thomas Hobbes et la
6. Incorporo, sinter d . _ 'cul Genese Ethíque de la Réflexíon Politique Moderne
. d lin Icamente, ao 1ongo a expostçao e, em parti ar, nesta passagem,
teorta a ~agem proposta em O L . - é 'ai dim d
a br ewata, que crua para o enten · ento a
0
a, mas que 1:\ão será discutida neste breve ensaio. Cet article adopte comme méthode d'analyse la projection des arguments énoncés dans
, --" _
7. Thomas Hobbes, .....:viata .,. s-< • • ,...
Le Léviathan (ce qui inclut fexplicitation de contradictions). D démontre par
là que la
ou 1v•au:::na..., op. at., p. '"'·
proposition contractual iste hobbesien ne suppose la tension entre deux points de vue:
8. Idem, pp. 74-5.
(1) celui qui dérive de son argument central sur la construction transcendantale d'un sujet
9. Idem, p. 75.
universalisé qui n'est rien d'autre que la condition de la permanenc e ontologique de l'idée
10. Immanuel Kant _ . . _
Ed Abril C ' Fundamentaçao da Metafisica dos Costumes, m Kant H, Sao Paulo, de soi de la raison: et, (2) celui qui conçoit un modele sociologique et stratégique de
· ' ol. Os Pensadores, 1980. simulation empirique. La s~lution dépasse fimpasse mais elle préserve la tension
de faJnbivalence: le constructo idéal-subjectif cesse de représente r une déduction
transcendantale pour se transiormer en un moment de fauto constitution anthropologique
de l'acteur social. La problématique se déplace: ce qu'on discute avant tout dans la théorie
du contrat ce ne sont pas les conditions de possibllité de l'ordre social mais le devoir
d'obédience politique pris sous un angle paramétriq ue. '

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