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Universidade Federal Fluminense

Antropologia para Historiadores I: Cultura


Professor Marcos Alvito
Nome: Rossana Agostinho Nunes

Marshall Sahlins: Ilhas de História

O problema agora pertinente é o de explodir o conceito de


história pela experiência antropológica da cultura. [...] Assim
multiplicamos nossos conceitos de história pelas diversidades de
estruturas e assim, de repente, há um mundo de coisas novas a
serem consideradas.
(SAHLINS, 1990: 94)

Tais palavras, por si só reflexivas e impactantes, refletem diretamente o pano de fundo


básico sobre o qual o autor alicerca os cinco capítulos que compõem o livro: o desejo de construção
de uma antropologia estrutural histórica. No cerne desta construção encontra-se uma proposta
dialética, a partir da qual história e antropologia travariam um diálogo mútuo, cujas implicações
seriam das mais profundas ao refutar várias dicotomias consagradas (passado e presente //sistema e
evento// estrutura e história) em busca de suas sínteses históricas.
O projeto é amplo, ambicioso e complexo, o que impõe inúmeras dificuldades à tentativa de
exposição crítica de algumas de suas idéias. Por mais instigante que se revela a leitura de sua obra,
a complexidade resultante dessas idéias não somente torna o trabalho de compreensão árduo, como
parece requerer um tempo maior de reflexão interna, a fim de que possam ser devidamente
assimiladas e, por que não, reavaliadas. Portanto, dentro da proposta desta resenha limitar-me-ei a
refletir sobre alguns dos conceitos propostos por Marshall Sahlins ao longo do livro Ilhas de
História, deixando propositalmente de lado as discussões em torno dos polinésios, do capitão Cook
e da mitopráxis.
Comecemos pela noção de estrutura. Buscando romper com posições dicotômicas que
avaliam a estrutura (sincrônica) em oposição à história (diacrônica), o autor afirma o caráter
histórico, logo temporal, e processual da estrutura. Para ele a estrutura não é um movimento
puramente sincrônico (Suassure), mas também comporta uma diacronia interna. Dimensão esta
fundamental, pois, a partir dela é possível compreender, ou talvez até resolver, as contradições e
ambiguidades que um entendimento meramente sincrônico de estrutura trás à tona. Isso porque a
partir do momento em que admite-se a existência de uma diacronia interna – o caráter variável das
relações entre as categorias gerais – compreende-se que a contradição nada mais é do que visões
parciais de uma ordem muito maior, fruto de uma posição motivada. De certa forma, esta conclusão
não é totalmente nova (embora o meio utilizado pelo autor para chegar a mesma, até certo ponto,
possa sê-lo) e encontra-se presente, por exemplo, em historiadores como Pocock (a diversidade de
linguagens políticas existentes em determinado contexto as quais possuem não somente um caráter
inovador quanto tradicional) e Chartier (as representações como determinadas pelos interesses dos
grupos que as forjam). Ou seja, no âmbito da produção historiográfica inúmeros são os trabalhos
que permitem discutir o problema da ambiguidade a partir de uma percepção do caráter plural,
dentro de um quadro mental disponível, das visões de mundo em contato. Mas não é isso que
importa discutir agora.
Se, por um lado, a estrutura é um movimento diacrônico, o que significa dizer que as
categorias culturais e suas relações possuem um desenvolvimento dinânico, por outro, cumpre
definir o que Sahlins chama de estrutura. Para ele estrutura é um sistema de relações entre
categorias culturais. Sendo assim, antes de mais nada cumpre falar sobre as categorias culturais.
Segundo Sahlins as categorias culturais são conceitos fundamentais representados nas
pessoas. No fundo o problema da cultura, entendida como ordem de significação, é representada
duplamente pelo autor: enquanto historicamente reproduzida na ação e como alterada
historicamente na ação. No primeiro caso, destaca-se como pano de fundo a noção de que as
pessoas organizam os seus projetos e dão sentido aos objetos que a cercam partindo de
compreensões préexistentes. Citando Boas ele destaca “”o olho que vê é o órgão da tradição.””
(SAHLINS, 1990: 181). Ou seja, é a percepção de que as pessoas nascem em uma circunstância que
já é dotada de significação. Contudo, e aqui insere-se a segunda dimensão apresentada acima, a
cultura também é historicamente alterada na ação, uma vez que os significados são colocados em
risco nesta: através da prática ocorre, ou pode ocorrer, a transformação dos significados
(significados estes que emergem como resultado de experiências sociais e dos interesses das
pessoas). Durante a ação, destaca Sahlins, os significados entram em contato com o mundo real e as
pessoas, um duplo risco visto que, subjetivamente, os signos podem ser revistos pelos sujeitos
ativos em seus projetos pessoais e, objetivamente, os significados, que supostamente descreveriam
o mundo, podem ser contradito pelo mesmo cosmos. Sendo assim, é estabelecido no sistema uma
interação dual entre reprodução e variação. Visto que os significados não somente são alterados,
mas também comportam a reprodução de elementos antigos, ainda que ressignificados, sem o que a
realidade tornaria-se incompreensível.
Imerso nessa discussão sobre o risco em que são postos os significados a partir da prática,
encontra-se a noção de reavaliação funcional das categorias. No fundo, tal conceito parece ser uma
visão complexificada da famosa frase de M. Bloch, o qual vale ressaltar é citado pelo autor: para
desespero dos historiadores os homens não tem o hábito de mudar as palavras sempre que os
costumes mudam (BLOCH, 2001). Se, por um lado, essas reavaliações aparecem sempre como
extensões dos conceitos tradicionais, por outro, tal processo de alteração de significados – que
ocorre através da prática, como já vimos acima – implica em uma transformação estrutural: “ a
transformação pragmática das categorias alterando as relações entre as mesmas” (SAHLINS,
1990: 179). Esta citação possibilita a introdução de mais dois elementos na discussão: os eventos e
a estrutura da conjuntura.
O evento, dentro da lógica proposta por Sahlins, é a relação entre acontecimento e
estrutura/estruturas e não simplesmente um acontecimento como é na definição de Weber. Ou seja,
o evento está além do acontecimento em si, na verdade, ele é um acontecimento interpretado (lido
pelas categorias culturais). Segundo o autor, o evento situa-se em dois planos: no âmbito da ação
individual e na esfera da representação coletiva. Para além das especificidades de uma ação
individual, o evento será lido pelas categorias culturais, o que poderá resultar em significações/
interpretações divergentes, as quais, por sua vez, implicam sobre a estrutura (relação entre
categorias culturais). Como destacou Sahlins “toda estrutura ou sistema é eventual em termos
fenomenológicos” (SAHLINS, 1990: 190). O problema do caráter crítico assumido por certos
eventos em determinadas estruturas relaciona-se diretamente à noçao de estrutura da conjuntura.
Segundo Sahlins a estrutura da conjuntura é uma síntese situacional do evento com a
estrutura: “um conjunto de relações históricas que, enquanto reproduzem as categorias culturais,
lhes dão novos valores retirados do contexto pragmático.” (SAHLINS, 1990: 160). A partir dessa
noção, portanto, realiza-se uma síntese crítica entre evento(s) e estrutura(s). Ou seja, as estruturas
enquanto relações entre categorias culturais, ou para ser mais específico, entre esquemas de
interpretação, são altamente variáveis (os riscos da prática), uma vez que eventos ocorrem a todo
momento. Se por um lado, os eventos são incorporados à estrutura, por outro, induzem ou podem
induzir inúmeras transformações a partir da prática. Eis, portanto, a estrutura da conjuntura, a qual
relaciona-se diretamente a idéia descrita anteriormente de reavaliação funcional das categorias. é a
partir do relacionamento complexo entre as premissas expressas por esses conceitos que vem a tona
a idéia de uma crise estrutural (a mudança dos significados, de tal modo que os acontecimentos
ficam fora de controle - o que, em certa medida, nos remete, a uma crise dos sistemas simbólicos
tradicionais, na ausência de um termo melhor, e sua substituição por outros esquemas de
significação): se os significados são alterados, muda-se as relações entre as categorias culturais,
sendo assim, a estrutura é transformada.
Não há como negar o caráter extremamente complexo dessas noções e conceitos. No fundo,
o livro de Sahlins para além do problema mais abrangente de uma antropologia estrutural histórica,
incide, particularmente, sobre a relação entre estrutura e evento (Como um evento particular atua
sobre determinadas estruturas? Quais as implicações práticas da existência de múltiplos e
divergentes esquemas de significação?), passado e presente, estrutura e história, material e ideal. De
todas as sínteses tentadas por Sahlins a última, entre material e ideal, seja talvez a mais controversa,
para isso vejamos a apreciação que Kuper faz da obra de Marshall Sahlins.
De acordo com Kuper, Sahlins passou de evolucionismo simpatizante do marxismo para um
tipo de determinismo cultural (KUPER, 2002: 213). Para o autor, portanto, assim como para alguns
outros, Sahlins era uma determinista cultural, cujo modelo de análise baseava-se em uma redução
dos processos sociais a processos culturais. Da mesma forma, enfatizava a defesa em Sahlins de
uma concepção idealista de cultura, a partir da qual as idéias – a apreciação cultural – atuavam
como força motriz de tudo. A crítica, ainda que pertinente, exagera em alguns pontos. Cito apenas
um exemplo. Ao discutir a concepção idealista de cultura de Sahlins o autor procura enfatizar que
nenhuma teoria pode excluir os interesses econômicos, as forças materiais, as relações sociais, a
organização do poder e a capacidade que possuem as pessoas com armas de impor novas formas de
agir e pensar. No fundo, essa discussão parece repousar menos no determinismo cultural de Sahlins
do que em uma incompreensão do que seja cultura para ele. Enfim, se paraSahlins cultura pode ser
uma ordem de significação – ainda que posta em risco pela prática (SAHLINS, 1990: 9), o conceito
passa a adquirir uma dimensão ampla e profunda. Por outro lado, para além dessa dimensão não me
parece que o conceito de cultura do autor exclua o material, embora sua aparição seja mais sutil e
menos explítica. Há uma dimensão prática, que partindo do concreto (das relações sociais), atua
diretamente sobre as estruturas. O mundo real, como disse Sahlins, ás vezes é capaz de contradizer
os sistemas simbólicos – o mundo intransigente. Deste modo, os conceitos de alguma forma passam
a ser determinados pela situação. Ou para utilizar as próprias palavras de Sahlins ao criticar a
distinção entre conceitos culturais e atividades práticas: “Toda práxis é teórica. Tem sempre início
nos conceitos dos atores e nos objetos de sua existência, nas segmentações culturais e nos valores
de um sistema a priori.” (SAHLINS, 1990: 192) O ideal e o material apresentam-se fundidos na
realidade, tal qual descrita por Sahlins, o que não significa desconsiderar que o autor, de fato,
consagra um papel fundamental aos esquemas de significação na construção de sua teoria.
A obra Ilhas de História de Marshall Sahlins apresenta, portanto, reflexões extremamente
enriquecedoras para a discussão histórica. Ao mostar caminhos em direção a superação de uma
dicotomia entre estrutura e história, o autor envereda por uma análise rica em conceitos
problematizadores, que serve não somente aos antropólogos (a necessidade de historicização das
culturas), como aos historiadores: a necessidade de repensar a excessiva fragmentação dos estudos
históricos, através, entre outros, do resgate da análise estrutural, como destacou Biersack. Cabe,
portanto, retornar à epígrafe deste trabalho: a explosão do conceito de história através da
experiência antropológica da cultura, a partir da qual os conceitos de história seriam multiplicados
pela diversidades de estruturas, abrindo um mundo de coisas a serem consideradas. De fato, a partir
da síntese dialética entre antropologia e história proposta por Sahlins abre-se um mundo de coisas
novas a serem consideradas e, sobretudo, reavaliadas. Fica, portanto, a reflexão em aberto.

Referência Bibliografica
BIERSACK, Aletta. Saber local, História local: Geertz e além. In: HUNT, Lynn (org.) A nova
história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício de Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2001.

CHARTIER, Roger. A História cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1998.

KUPER, Adam. Marsall Sahlins: história como cultura. In: Cultura: a visão dos antropólogos.
Bauru: Edusc. pp. 207-258.

SAHLINS, Marshall. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.

POCOCK, J.G.A. Linguagens do Ideário Político. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 2003.

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