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Ana Jannuzzi

Exterogestação

A
mãe, ainda grávida, e o bebê que mora dentro de sua bar-
riga são um só. Embora existam dois corações batendo,
dois cérebros, dois corpos, a conexão entre ambos é tão
única, assim como a dependência, que podemos considerar que
ambos são um. Sem o bebê, a mulher não é uma grávida. Sem a
mãe, o filho não existe.
A mais avançada tecnologia, a custo de muito esforço, con-
segue manter vivo um bebê que nasce por volta das 20 semanas.
Foram necessários muitos anos de estudo para conseguir simu-
lar o suporte que o corpo da mulher dá ao filho, e até hoje nada
muda tanto o corpo de uma mulher quanto uma criança sendo
gerada dentro de si.
Espero tê-la convencido de que você e seu bebê, ainda den-
tro da barriga, são um só. Você é absolutamente tudo que ele
conhece.
E aí, chega o tão esperado momento do nascimento. Embora
impactante para todos os envolvidos, a transformação segura-
mente é mais intensa para os adultos da relação.
A mulher passa a ter uma vida fora da barriga para cuidar,
totalmente nova e desconhecida. É dever da família alimentar,
vestir, limpar e dar colo para esse ser tão frágil e dependente.
O bebê, por sua vez, segue na absoluta dependência e não há
nada que nos garanta que ele sabe que nasceu (a não ser ter pas-
sado por um túnel apertado, ter sido retirado da barriga pelos
pés ou ter sido aspirado a contragosto por um médico apressa-

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do). Ele ainda está nessa transição. Se é muito óbvio que ele tem
seu próprio corpo, para ele, talvez, essa certeza ainda não tenha
chegado.
E aí, chegamos ao conceito de exterogestação. Essa teoria,
formulada por Ashley-Montagu (um antropólogo) e populari-
zada posteriormente por um pediatra, Harvey Karp, considera
que existe algo como um “quarto trimestre” da gestação, que
ocorre fora do útero. Um período em que o desenvolvimento
do bebê depende da manutenção de condições semelhantes ao
ambiente intrauterino (como pouca luminosidade, aconchego,
movimento suave, proximidade com a mãe).
Eu, enquanto médica e mãe, considero essa a mais bela das
teorias. E que também faz bastante sentido, dada a atenta ob-
servação do funcionamento dos bebês e de suas mães nesse co-
meço de vida.

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É possível propor que esse período seja ainda maior do que
três meses. Mas quero trazer aqui uma reflexão um pouco dife-
rente. Em vez de lermos a teoria e suas contribuições seguintes,
oriundas de tantos bons profissionais, gostaria que buscásse-
mos juntas a explicação para umas perguntas. Assim, não mais
precisamos engolir respostas vindas de outros, mas sim abri-
mos espaço para nosso cérebro explicar aquilo que se passa no
coração. E esse sim, acredito eu, é o verdadeiro aprendizado.
Por que o bebê chora tanto longe do colo da mãe? Por que
não aceita ficar no berço, montado com tanto carinho? Por que
acorda tanto? Por que mama durante tanto tempo? Em suma:
que motivos levam o bebê a parecer um pequeno tirano em re-
lação a sua mãe, que já está deveras cansada na sua função de
mãe-dona de casa-esposa-puérpera? A resposta, creio eu, não
pode ser nada diferente de: o bebê age assim para sobreviver.
Pode ser até que ele te ame exatamente como você o ama,
mas o que realmente ocorre é que ele depende de você de uma
forma muito, mas muito intensa. E como somos adultos, anda-
mos com as próprias pernas, cozinhamos nossa comida e nos
defendemos dos leões que aparecem (ou, pelo menos, conse-
guimos correr), nem passa pela nossa cabeça que alguém possa
depender tanto de alguém.
Já viu uma semente brotar? A potência irrefreável da vida
que está naquela pequena semente, que insiste em se desenvol-
ver apesar das dificuldades? Todos nós, plantas e pessoas, vive-
mos a vida em direção a um rumo único, bem básico: sobrevi-
vermos. Crescermos. Termos filhos ou sementes.
Os bebês, veja bem, apesar de não serem adultos, estão ge-
neticamente programados para se tornarem adultos. E para que
eles consigam atravessar o intenso jardim da infância e o som-
brio vale da adolescência (para alguns), eles precisam se manter
vivos. E, instintivamente, sabem disso.
Só que nossa caixa de habilidades de “manutenção de vida”
é bastante elaborada, certo? Nós aprendemos essas habilidades
ao longo dos anos com nossos pais e/ou cuidadores e quando
deixamos o ninho, somos capazes (alguns não muito, mas tudo
bem) de sobrevivermos e florescermos sem ajuda.

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Habilidades do adulto Habilidades do recém-nascido

Proteger-se, arranjar
comida, arranjar abrigo,
Pedir colo.
lidar com as próprias
eliminações, socializar.

Agora volta para o recém-nascido. Sabe o que acontece se você


deixar um recém-nascido no chão e sair de perto? Continuará no
chão. Mesmo que um leão passe ao seu lado, mesmo que a chuva
caia sobre ele, mesmo que todos os perigos mais óbvios estejam
presentes: ele não saberá se defender e perecerá, no chão onde
foi deixado.
É claro que ninguém deixa seu filho no chão e vai embora, mas
o parágrafo desconfortável acima foi para te mostrar que, na pers-
pectiva do bebê, ainda que ele tenha toda a vontade irrefreável
de uma semente, simplesmente não consegue. Ele não consegue
sem você. Ele não consegue liberar corretamente as vias aéreas
para respirar se algo cair em seu rosto e você não estiver perto.
Nem correr da ameaça, se essa chegar, tampouco encontrar comi-
da, quando a fome torce sua barriga. Ele não consegue se limpar,
ou avaliar se aquele barulho alto é algo perigoso (aliás, sequer en-
xerga direito).
Toda vez que penso nesse grau de dependência de um bebê
tão pequeno em relação a um adulto, tenho vontade de chorar.
É tão incrível ver a potência da vida diante dos meus olhos e tão
emocionante constatar a humildade por trás do choro insistente
da minha bebê: ela está me dizendo que não sabe ficar sozinha.
Que não sabe se defender sozinha. Que precisa de mim. Que sem
minha presença, ela não dá conta.
Eles pedem, pois precisam. Eles não têm vergonha de dizer (ou
chorar) em voz alta que são frágeis, indefesos e que precisam de
nós para passar por esse período. Que se alguém não estiver dis-
ponível para dar amor, carinho e proteção durante este tempo em

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que eles não têm a caixa de “habilidades” completa, talvez eles
não sobrevivam. E esse olhar de compaixão para com as necessi-
dades do bebê vem do fato de nascerem absolutamente imaturos,
não apenas em relação à sua história, como também em relação
aos outros mamíferos que conhecemos.
Veja um filhote de cachorro. Nos primeiros dias nasce bastan-
te dependente, ainda que consiga se arrastar para mamar em sua
mãe. Uma semana depois, você praticamente não o reconhece.
Um mês depois, e já tem um cachorro completo, só que menor e
mais fofinho.
Uma semana depois do recém-nascido nascer, ele continua
sendo um completo incapaz para suas necessidades de sobrevi-
vência. Um mês depois, segue igual. Com três meses ele aprende
a rolar e embora este marco de movimentação seja um passo em
direção à independência, se a ameaça chegar, ele só conseguirá
sair rolando. Em outras palavras: não tem a mínima chance.
Com cerca de seis meses, ele se senta. Com nove, pode engati-
nhar. Por volta de um ano, anda. Com 18 meses, está finalmente
correndo sem cair. Ele consegue se proteger e já tem mais faci-
lidade de alcançar a comida. E ainda assim, experimente deixar
um bebê com essa idade sozinho. Ele saberá correr, se necessário,
só não sabe para onde.
Bem, o que ocorre? Por que o bebê nasce tão imaturo quando
comparado aos outros mamíferos?
A explicação parece ser mais anatômica do que qualquer outra
coisa: a evolução dos humanos bípedes contou com uma redução
significativa no diâmetro da pelve (a tal bacia), fazendo com que
bebês nasçam — o trabalho de parto ocorra — em um momento
em que o tamanho da cabeça é o maior possível (ou seja, tendo
ficado o máximo de tempo recebendo nutrição e proteção ma-
ternas) mas que não cause significativos impactos no parto. Essa
inteligência do corpo faz com que bebês humanos nasçam mais
prematuros do que outros mamíferos, dependendo muito mais do
colo materno para sobreviver e prosperar, apesar das “ameaças”.
Ameaça, ameaça, ameaça. Falo tanto em “ameaça” que parece
que vivemos em um constante tiroteio. “Como pode isso ser verdade
se na minha casa há tranquilidade e paz o dia inteiro?”

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Veja bem, as reações ligadas ao instinto se relacionam com
aquilo que há de mais primordial dentro de cada um, inclusive
dos bebês. Seu filho é fruto de uma evolução da espécie em que
o mais bem protegido sobrevive, o mais forte sobrevive, aquele
que tem mais chances (de todo tipo) se dá melhor. E ele não sabe
que o leão não vai entrar na sua casa porque a porta está tranca-
da. Ele não sabe que o barulho da panela caindo no chão foi ape-
nas uma panela. Ele não classifica as coisas em “mais ou menos
perigosas. Ainda não consegue fazer isso (e talvez demore muito,
além dos três meses, para conseguir).
Minha filha mais velha, Clarice, atualmente tem dois anos e
seis meses. Só recentemente ela consegue entender que a casa
é segura, pois está trancada e foi feita de tijolos (e não de palha,
como a história do lobo mau e dos porquinhos).
O bebê tem mais chances de sobreviver no seu colo, e ele sabe
disso. Enquanto está aninhado em você, ele é defendido de toda
e qualquer situação complicada da qual ele não sairia sozinho.

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Além disso, estar no colo é garantir a alimentação. E todo ca-
rinho e conforto emocional que ele precisa, embora ninguém
fale disso.
Enquanto escrevo essa frase, Romana está no sling. Agarrada
em mim. Joguei a cadeira e o corpo para trás um pouco, para
ela ficar confortável enquanto digito. Não é exatamente a posi-
ção mais confortável do mundo, mas é a melhor que consigo
enquanto mãe de uma recém-nascida. Aliás, este é um ponto
importante.
Nós não vamos retomar a vida antiga. As roupas antigas tal-
vez não caibam mais, a organização que você conseguia ter com
sua agenda também muda, o rumo da sua vida muda comple-
tamente. Em relação ao que existia antes, tudo parece um caos.
Veja, sem um bebê pequeno no colo consigo sentar-me ereta
e mais confortável numa cadeira, mas essa não é minha reali-
dade agora. E preciso dar conta de fazer o melhor possível den-
tro da nova realidade, e não ficar nostálgica daquilo que era ou
poderia ter sido. Essa pequena mudança na mentalidade pode
nos ajudar a atravessar os dias cansativos da maternidade.
Voltando ao bebê, a teoria da exterogestação original fala
que as crianças apresentam essas características de dependên-
cia e necessidade de colo até aproximadamente três meses de
idade. Entendo que essa fase seja um pouco mais crítica, mas
não existe nenhuma garantia de que com 3 meses e 15 dias seu
bebê será completamente independente.
Aliás, minha primeira filha, hoje com dois anos e seis meses,
está andando no cavalo de pau constantemente pedindo minha
atenção e querendo que interaja com ela. Um pouco menos,
obviamente, já que ela já sabe brincar sozinha, mas ela ainda
é muito dependente. Querer colocar os bebês em tabelas e ficar
ansiosamente aguardando para o fim de uma fase ou início de
outra pode nos trazer angústia e apagar um pouco do brilho dos
lindos e cansativos dias da maternidade.
Um bebê pode precisar de colo e dormir no sling, por exem-
plo, até muito mais do que seis meses. Nossa função é oferecer
a ele as melhores condições de tranquilidade e segurança para
que ele desenvolva sozinho, e a seu tempo, a maturidade que

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ele tem capacidade de atingir. Mas, novamente, um bebê de três
ou quatro meses não se vira sozinho. Ele precisa de você para tudo
e isso se traduz na demanda de colo e peito por bastante tempo.
“Ah, mas meu filho nunca vai dormir sozinho?” Sim, vai. O que ob-
servamos na prática é que aos cinco ou seis meses os bebês já são
capazes de dormirem tranquilos e sozinhos nas sonecas e no sono
noturno. A maioria absoluta desses bebês precisam ser colocados
para dormir, mas parecem já se sentirem seguros o suficiente
para ficarem sozinhos uma vez adormecidos. Isso não é uma re-
gra e o sono dos bebês flutua de acordo com seu desenvolvimento,
mas é o que observamos de modo geral.
Bem, voltando à exterogestação, o que podemos observar?
Uma intensa dependência da mãe e uma dificuldade de lidar
com luz forte, ruídos intensos e muitos estímulos. Muitas vezes, o
bebê fica melhor em um ambiente mais quietinho, menos ilumi-
nado. A maioria absoluta se aconchega tranquilamente quando
colocado no sling junto com a mãe.
Os bebês também parecem precisar mamar o tempo todo, o
que é absolutamente comum, uma vez que nascem com diminu-
tos estômagos (algo do tamanho de uma noz) e precisam constan-
temente encher esse pequeno reservatório.
Ou seja, se o seu bebê mama a cada uma hora, saiba que isso é
normal e que vai passar! O estômago dessa criança vai aumentan-
do conforme ela cresce.
As principais recomendações para bebês nessa fase, entre o
nascimento e os três ou quatro meses, são as seguintes:

Sling
Existem mil tipos de carregadores de bebês (mochilas evolutivas,
cangurus), mas nessa fase nenhum parece superar o sling em ter-
mos de praticidade e ergonomia. As mochilas evolutivas só costu-
mam ser usadas após os três meses. Tenha um sling para chamar
de seu e não tenha medo de usá-lo. Ficar muito tempo no seu
colo não tornará seu bebê dependente de colo ou impossível de
se acalmar. Ele simplesmente terá suas necessidades atendidas no
momento em que mais precisa desse colo, e depois, ao crescer, vai
explorar o mundo normalmente.

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Aqui no livro, você encontra alguns vídeos para aprender a
amarrar o bebê no sling (o QR code para os videos está disponível na
página 138). Recomendo que assista e treine em casa com seu filho-
te. Nos primeiros momentos ele pode estranhar e também sentir
sua insegurança, mas não desista.
Coloque-o no sling e vá caminhar com o bebê, cantando uma
música suave e balançando. Na imensa maioria das vezes isso é su-
ficiente para a criança relaxar e se entregar a um excelente sono,
ao passo que você fica com as mãos livres para fazer o que precisa
ser feito ao longo do dia.

Sono
O bebê precisa dormir. Muito! Até os três meses eles dormem cerca
de 18 horas entre o dia e a noite. E para que eles consigam ter o
melhor sono possível, o ambiente precisa estar adequado às suas
necessidades. Não adianta querer que o bebê durma sozinho ou
longe, se ele simplesmente não aceita isso. Ele ficará acordado e
irritado e as coisas serão mais difíceis. Reduza os barulhos da casa
e a luz. Forneça a ele um ambiente tranquilo. Não acorde seu filho
se não houver recomendação expressa do pediatra (sabemos que
bebês sem patologias e que estão ganhando peso normalmente de-
vem ser deixados em paz para que possam dormir!).

Banho de balde
Ambiente quentinho, escurinho, em que o bebê fica algo apertado
e confortável… esse é o banho de balde. E pode ser em qualquer
balde, mas existem uns ofurôs específicos para bebês. Eles costu-
mam ter a base mais larga do que baldes comuns. Tenho um e foi
um bom investimento, uma vez que as duas filhas usaram bastante!
E a principal dica é: tenha paciência consigo mesma também. O
bebê está passando pela exterogestação e a mãe está passando pelo
puerpério. Ele, aprendendo a ser uma pessoa e você, aprendendo
a ser mãe. Todo o carinho que tem com ele, tenha consigo mesma
também. Ele aprendendo a ser uma pessoa e você aprendendo a
ser mãe.
Ele pede tanto pela sua presença porque depende de você. E
está descobrindo que te ama. Não se esqueça disso.

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