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perto a obra marxiana4.

Trata-se de um esforço fun-


damental, na medida em que nesta não se encontra
imediatamente a ideia de uma fase financeira ou de
financeirização, mas um quadro conceitual e analí-
tico indispensável.
A financeirização, tal como entendida pelo au-
tor, não significa somente o aumento da riqueza
circulando em canais financeiros, mas um longo
processo histórico de transformações do capita-
lismo, impulsionado fundamentalmente por uma
situação de sobreacumulação do capital em âmbito
mundial. Esta culminou na recessão mundial dos
anos de 1970, no fim do fordismo-keynesianismo
e na afirmação do neoliberalismo através de uma
mundialização5 do capital operada cada vez mais
pelos mercados e agentes financeiros. Ao escrever
La mondialisation du capital, Chesnais percebeu a
importância crescente das finanças, de modo que a
François Chesnais. Finance capital today: corporations edição brasileira (publicada dois anos depois) possui
and banks in the lasting global slump. Boston, Brill “acréscimos substanciais”6 (Chesnais, 1996, p. 13)
Academic Pub., 2016. 310 pp.1 nos dois capítulos que tratam da mundialização fi-
nanceira. O livro seguinte, uma obra coletiva tendo
Ilan Lapyda o objetivo de apresentar diferentes aspectos desse
Universidade de são PaUlo (UsP) – são PaUlo – novo fenômeno, já levou o título de La mondialisa-
São Paulo – Brasil. tion financière [A mundialização financeira].
Chesnais (1998b) reconstituiu, assim, as prin-
Com cinco livros publicados no Brasil2, além de arti- cipais etapas dessa história até a década de 1990,
gos, o economista François Chesnais tornou-se uma que envolveu principalmente: a abertura e desregu-
referência para os estudos críticos sobre a financei- lamentação financeiras; transformações do sistema
rização em todo o campo das ciências sociais, tendo monetário internacional; o surgimento/fortaleci-
sido um dos pioneiros no tratamento da questão mento de novos atores ligados ao capital portador
(praticamente ignorada pelo mainstream da eco- de juros e ao capital fictício (fundos de investimento
nomia até hoje). Por empregar os termos da Escola e de pensão e seguradoras); mudanças na ação do
da Regulação na primeira fase da sua obra (anos de Estado (política de juros, de câmbio, fiscal etc.) e
1990), devido à importância dessa corrente no deba- na organização das empresas (ampliação das ativi-
te francês3, foi por vezes considerado regulacionista. dades financeiras, adoção de parâmetros financeiros
Progressivamente, essa via de análise perdeu força de rentabilidade e as consequentes reestruturações
em seus textos, em benefício de um maior recurso produtivas); e reconfiguração da relação de forças
a Marx, e foi abandonada a partir de 2006. O autor entre capital e trabalho (vantajosa àquele) e entre
foi, assim, um dos poucos a teorizar a financeirização frações da classe capitalista (em prol das finanças e
de modo mais aprofundado, buscando retomar de do “capital-propriedade”).
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A primeira dessas etapas (1960-1979) iniciou-se ção teórica de Marx (também e sobretudo no capí-
quando os sistemas monetários e financeiros ainda tulo 3), para então apresentar o que se poderia con-
eram compartimentados e havia uma situação de fi- siderar uma quarta etapa da financeirização. Não se
nanças administradas e “internacionalização finan- trata propriamente de uma nova rodada de expansão
ceira ‘indireta’” (Chesnais, 1998b, p. 24). Nos anos da mundialização financeira, dado que ela já abarcava
de 1970, há o retorno de intensa especulação com praticamente todo o mundo capitalista e seus mer-
moedas, de modo que o mercado de câmbio foi o cados, mas de seu aprofundamento através de uma
primeiro a ingressar na mundialização financeira. maior conexão entre os grandes bancos internacio-
A segunda etapa (1980-1985) caracterizou-se pro- nais, de uma progressão na centralização e transna-
priamente pelo “golpe de Estado” (Chesnais, 2005b, cionalização do capital, da proliferação de produtos
p. 40) dos credores, com a desregulamentação e li- financeiros (novas formas do capital fictício) e do
beralização financeiras a partir da consolidação do atingimento de certos limites do capitalismo.
neoliberalismo, sobretudo nos Estados Unidos e no Por meio de uma linguagem relativamente aces-
Reino Unido. Nesse período, surgiram novos pro- sível aos não especialistas em finanças12, são consi-
dutos financeiros e houve a expansão dos mercados derados aspectos anteriormente não trabalhados a
de títulos da dívida pública e a sua interligação em fundo pelo autor, como as transformações do siste-
âmbito mundial. A partir do Big Bang da City7, ma bancário e do crédito, assim como o que estava,
ingressou-se na terceira etapa (1986-1995). Após a e está, em jogo na crise econômica e financeira mun-
inclusão dos mercados de câmbio e de títulos da dí- dial iniciada em 2007. Essa crise foi um marco, na
vida – que continuaram crescendo e abrigando cada medida em que pôs fim à “mais longa fase de acumu-
vez mais transações –, foi a vez dos mercados acioná- lação da história do capitalismo” (p. 25), e sua ocor-
rios serem abertos e desregulamentados em todo o rência revelou que havia novos processos em curso
mundo. Nessa etapa, os derivativos se multiplicaram, desde 2001. Infelizmente, algumas questões são tra-
a governança corporativa se consolidou como modo tadas de forma menos aprofundada, compreensível
de gestão, o shadow banking system8 encontrou novas na medida em que o intuito é abarcar diversos aspec-
oportunidades e ocorreu a incorporação de países tos relevantes do capitalismo atual. Não obstante, há
“emergentes”, com suas economias mais frágeis, à apêndices interessantes e várias referências a outros
mundialização financeira. trabalhos e relatórios para o leitor mais interessado.
Em Finance capital today, Chesnais tanto realiza O cuidado na apresentação de dados para susten-
uma síntese de seu trabalho das últimas duas décadas tar a argumentação também se revela no capítulo
quanto analisa a situação do capitalismo no século mais teórico, com boa referência a Marx e recurso à
xxi, resultando em uma valiosa contribuição para a obra de David Harvey como comentador profícuo
compreensão crítica do capitalismo. Norteando-se daquele13, bem como na exposição das divergências
pelas indicações de Marx nos Grundrisse, considera em relação a outros marxistas.
mais a sério a consolidação do “mercado mundial”9 Para as ciências sociais brasileiras, a importância
(p. 10), onde a totalidade do sistema capitalista se da obra é inegável, primeiramente, pela maior aten-
consumaria. Isso o conduz, por exemplo, a se debru- ção dada à situação dos países em desenvolvimento
çar mais sobre as economias “emergentes”10 de maior em relação a livros anteriores do autor. Além disso,
relevância, inclusive o Brasil11. o entendimento adequado do fenômeno da finan-
Nos capítulos 1 e 2, o autor retoma a reconstru- ceirização (cujos aspectos centrais estão resumidos
ção histórica realizada anteriormente e a contribui- na p. 16) e dos processos recentes que o capitalismo

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atravessou é fundamental para a compreensão das taxa de lucro nos países centrais têm aumentado. Por
transformações econômicas, sociais (sobretudo do um lado, aponta-se o movimento (descendente) da
mundo do trabalho) e políticas pelas quais o Brasil taxa de lucro das empresas não financeiras nos Esta-
tem passado. Alguns exemplos: a centralidade da dos Unidos14. Por outro, são apresentados os efeitos,
dívida pública e da taxa de juros nas decisões go- nas últimas décadas, das contratendências à queda da
vernamentais brasileiras; a política dos “campeões taxa de lucro levantadas por Marx n’O Capital. Ou
nacionais” de governos petistas e da atuação do seja, Chesnais busca justamente explicar ao longo da
bndes; a atual crise política e a série de reformas obra por quais expedientes a taxa de lucro pode se
(Trabalhista, da Terceirização, da Previdência, do manter estável ou até se elevar por algum tempo sem
Teto dos Gastos) que são seu ponto-chave. que haja necessariamente aumento da produtividade
Nas próximas seções, são comentados os pontos ou da taxa de acumulação do capital: intensificação
centrais do livro. da exploração do trabalho, aumento da superpopu-
lação relativa, atividades financeiras por parte das
Crise de financeirização ou queda da taxa de lucro? empresas, apropriação pelos oligopólios de parte da
mais-valia gerada por seus concorrentes ou por suas
Já na Introdução do livro, são adiantados aspectos subcontratadas etc.
primordiais do trabalho, entre os quais justamente De todo modo, a persistência do quadro de
a concepção sobre a crise mundial atual. Ela ocorre sobreacumulação (em decorrência da insuficiente
em um momento histórico caracterizado não só pela destruição de capacidade produtiva e da pouca eli-
financeirização, mas pela completude do mercado minação de capital fictício devido aos salvamentos
mundial (com a entrada da China e dos países so- financeiros) conduz ao diagnóstico de uma crise que
cialistas do Leste Europeu/União Soviética) e pelo teve seu curso interrompido e, consequentemente,
abalo da hegemonia dos Estados Unidos (que não da falta de perspectiva de sua superação. Os países
seria mais capaz de, sozinho, erguer a economia centrais ainda não teriam encontrado substituto
mundial). Contrariamente a Lapavitsas, para quem para o modelo de “crescimento impulsionado pela
se trataria de uma “crise de financeirização” (pois dívida” [debt-led growth] e os trabalhadores não te-
não haveria queda de lucratividade), Chesnais afir- riam conseguido evitar que os custos recaíssem sobre
ma estarmos diante de uma “crise do capitalismo os mais vulneráveis, devido às pressões decorrentes
tout court” (pp. 1-2). Ou seja, uma crise de sobrea- da ampliação do exército industrial de reserva global
cumulação e superprodução, agravada pela queda da pelo contingente chinês15.
taxa de lucro – adiada desde os anos de 1990 através
da criação massiva de crédito e da incorporação da Duas dimensões da financeirização: finance capital e
China à economia mundial. financial capital
A proposição da queda da taxa de lucro é um dos
elementos controversos do livro e ainda deverá ser Outro ponto fundamental da Introdução é concei-
muito debatida pelos economistas em sua “guerra” tual/terminológico. Dados os mais de vinte anos de
de dados. Lapavitsas e Mendieta-Muñoz (2016), por produção teórica do autor desde A mundialização do
exemplo, afirmam que a taxa de lucro caiu até os anos capital, os diferentes termos (próprios e citados) por
de 1980, tendo se estabilizado a partir de então. Uma vezes semelhantes entre si e as inevitáveis questões
resposta a isso se encontra no capítulo 1, ao se con- de tradução para o português16, algumas confusões
frontar também a tese de Husson (p. 29), de que a surgiram e, com elas, críticas nem sempre acertadas a

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Chesnais. Talvez a principal seja a concepção equivo- Como ressalta Chesnais, essa segunda dimensão
cada de que financeirização significaria uma mera “hi- da economia capitalista mundial colocou a classe
pertrofia” dos mercados financeiros ou uma progres- trabalhadora em uma situação na qual enfrentam
siva indistinção entre o capital produtivo e o capital o capital como trabalhadores nas fábricas e como
monetário que faria com que a valorização do capital devedores na vida cotidiana. O lucro financeiro
deixasse de se basear na produção de mercadorias. (produzido por empresas financeiras) subiu de 15-
Consciente disso, desde o início (p. 1) o autor 20% do lucro total nos anos de 1980, para 40% às
diferencia conceitos relativos a “duas dimensões vésperas da crise de 2007-2008 nos Estados Unidos.
interconectadas, ainda que distintas, da economia Houve elevação do ganho com taxas e comissões dos
capitalista mundial contemporânea” que se ligam à bancos devido às mudanças em sua atuação, assim
financeirização. Primeiramente, há o finance capital, como de novos “modos espoliativos de apropriação”
tradução em inglês do termo empregado por Hil- [exploitative modes of appropriation] (p. 75) dos sa-
ferding17. Na formulação de Chesnais, refere-se às lários dos trabalhadores19: juros e taxas sobre hipo-
“formas e consequências do entrelaçamento entre tecas, empréstimos estudantis, cartão de crédito etc.
bancos globais altamente concentrados e interna- (sobretudo nos Estados Unidos). Semelhanças com
cionalizados, grandes empresas transnacionais in- a situação brasileira são nítidas.
dustriais e de serviços e gigantes do comércio” (p. Desde os anos de 1980, a concentração e cen-
1). Sua configuração contemporânea é analisada ao tralização do capital industrial e do financial capital
longo do livro, mas uma diferença importante em tornaram-se, então, indissociáveis (embora não in-
relação à Hilferding é colocada desde logo: atual- distintas). Desse modo, a financeirização diz respeito
mente não haveria uma clara hegemonia dos bancos. tanto às finanças como à produção: liga-se, decerto,
Os executivos de uma General Motors, de um Wal ao aumento do capital de investimento financeiro
Mart e de um Goldman Sachs estariam em patama- em circulação, mas também a um processo de oligo-
res semelhantes18; e as grandes corporações indus- polização crescente do capital (em todas as suas for-
triais seriam forçadas a destinar parte da mais-valia mas) em escala mundial, sendo as atividades finan-
(variando segundo a correlação de forças, poderes de ceiras um de seus veículos e modos de reprodução
monopólio/monopsônio e posição na cadeia global fundamentais. Certamente para enfatizar isso é que
de valor) a essas outras modalidades de capital. o título do livro leva o termo “finance” (e não “finan-
Esses gigantes oligopolistas, por sua vez, têm cial”) e que, nos capítulos 4 a 6, Chesnais trata desses
cada vez mais se envolvido com o financial capital, oligopólios globais e de seu modo de operação.
o capital de investimento financeiro propriamente O capítulo 4 inicia-se com uma análise de quatro
dito (tradicionalmente gerido pelas instituições fi- casos, mostrando como historicamente o finance ca-
nanceiras), cuja compreensão parte do conceito mar- pital se configurou de modo distinto nos países (Ale-
xiano de capital portador de juros. Ou seja, trata-se manha, Estados Unidos, Grã-Bretanha e França),
da finance qua finance: “processos associados com e sobretudo no que se refere ao predomínio dos ban-
resultantes do crescimento espetacular, ao longo dos cos. Principalmente no caso dos Estados Unidos, o
últimos quarenta anos, de ativos (títulos, ações, deri- desenvolvimento da acumulação financeira, a emer-
vativos) possuídos por empresas financeiras (grandes gência dos fundos de pensão e o restabelecimento da
bancos e fundos), mas também pelos departamentos força dos mercados de ações, conferiu importância
financeiros das empresas transnacionais e dos merca- à questão da propriedade e do controle do capital.
dos específicos em que operam” (p. 1). Dessa forma, a interconexão dos conselhos de ad-

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ministração das empresas tornou-se um elemento disputa entre esses gigantes pela apropriação da mais-
importante de análise, embora, segundo Chesnais, -valia gerada na produção (p. 114). No final do capí-
a formação de uma “classe capitalista mundial” seja tulo, ainda é feita uma observação importante – que
de difícil efetivação, devido à grande concorrência poderia estar mais desenvolvida – sobre os oligopó-
entre as empresas oligopolistas20. De toda forma, lios no setor de recursos naturais e petróleo, no qual
a imposição dos interesses das finanças, através da ocorre fusão entre renda e lucro (tradicionalmente
governança corporativa e outros expedientes, pro- considerados como pertencentes a tipos de capita-
vocou uma série de transformações no país: lógica listas diferentes): a receita obtida pela propriedade
“curto-prazista” (da política de investimento e de da terra soma-se à exploração do trabalho na obten-
retorno), diminuição dos gastos em p&d, estraté- ção do produto. Desse modo, nesse tipo de ativida-
gia empresarial de downsize and distribute (enxuga- de obtém-se “um lucro extra [surplus profit] baseado
mento da empresa, sobretudo em termos de força simultaneamente na posse de recursos naturais e na
de trabalho, e distribuição de dividendos) e desin- eficiência e brutalidade da organização capitalista da
dustrialização (queda da participação da indústria e extração” (p. 122).
perda de competitividade).
Nesse sentido, o autor busca em Lazonick a me- Finance capital e imperialismo
lhor caracterização sobre o que ocorreu nos Estados
Unidos nas últimas décadas: uma transição da ên- No capítulo 5, a teoria clássica do imperialismo é
fase na criação de valor para a extração de valor (p. retomada com base em Hilferding (1985), de modo
104). Essa formulação vai ao encontro da questão a estabelecer as bases para o entendimento da confi-
da “expropriação financeira” de Lapavitsas (ver nota guração contemporânea da “internacionalização” do
19), e da “acumulação por espoliação” de Harvey capital produtivo, ou seja, do “processo pelo qual a
(2004). Um dos traços da financeirização, portanto, produção e apropriação de mais-valia são realizadas
é a dissolução da antiga divisão entre as operações por capitalistas no exterior, fora do seu país de base”
financeiras e não financeiras das grandes empresas, (pp. 133-134). Ressalta-se que Hilferding trouxe ele-
embora analiticamente elas devam ser distinguidas mentos de grande atualidade que explicam o espraia-
(p. 112). Tanto empresas de produção e de comércio mento das transnacionais para o “Terceiro Mundo”
de mercadorias (como General Motors e Wal Mart) nos anos de 1970 e 1980, tais como: o lucro empre-
ampliam suas atividades financeiras com o lucro não sarial no país de destino da exportação de capital ser
reinvestido, constituindo até bancos próprios, como maior devido à força de trabalho excepcionalmente
conglomerados financeiros passam a atuar nas ativi- barata; os custos de produção serem baixos também
dades de produção e comércio (como o Citigroup e porque a renda da terra é pequena ou puramente
o jp Morgan Chase). nominal; e os lucros serem elevados em razão de
Assim, se perante os trabalhadores o finance ca- privilégios especiais e monopólios.
pital se apresenta como um bloco, entre as empresas Chesnais explica, então, as transformações
oligopolistas há grande rivalidade, da qual resulta a ocorridas. Na primeira geração de empresas multi-
importância atual dos chamados “lucros da circula- nacionais/transnacionais (consideradas sinônimo
ção”, expressão à qual Chesnais busca dar um sentido no livro), isto é, no pós-guerra, a integração era ho-
marxista. Esses lucros (do ponto de vista individual) rizontal. As filiais realizavam operações semelhantes
provêm do jogo de soma zero das atividades espe- à da matriz e segundo as necessidades do mercado
culativas (o ganho de um é perda para o outro) e da doméstico ou das necessidades de exportação lo-

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cais. Até os anos de 1980, empresas estadunidenses te é que atualmente alguns deles, principalmente os
com esse modelo de “multiplantas” estavam, assim, Bric, entraram no jogo dos oligopólios mundiais, em
na dianteira da internacionalização do capital pro- grande parte por meio de empresas estatais ou esti-
dutivo. Com o início do processo de liberalização a muladas pelo Estado (com destaque para a atuação
partir do final dos anos de 1960 na Europa, abriu-se do bndes no Brasil). Os fundos soberanos22 tam-
a possibilidade de uma incipiente divisão do trabalho bém se desenvolveram intensamente nos últimos
no continente. A abertura e desregulamentação dos anos e, embora a maior parte se volte para países do
governos Thatcher e Reagan possibilitaram, então, de centro, uma fração é investida, via ied, em recursos
fato a integração vertical das transnacionais, ou seja, naturais de países em desenvolvimento. Por fim, há o
a produção em diferentes países segundo uma divi- crescimento do ied das transnacionais desses países
são do trabalho estabelecida pela sede, assim como através de fusões e aquisições em outros países do
o desenvolvimento do comércio intrafirmas – que, “Sul”. Em boa parte dos casos, isso se deve ao vácuo
vale ressaltar, corresponde atualmente a um terço do deixado por “desinvestimento” dos países desenvol-
comércio mundial (ver unctad, 2013). vidos, inclusive no setor financeiro.
A liberalização do comércio, dos investimentos O capítulo 6 concentra-se no modo de opera-
externos diretos e dos fluxos financeiros abriu ca- ção das empresas transnacionais nas últimas décadas,
minho para a aceleração da centralização de capital, cujo traço principal é a evolução da internaciona-
tendo o oligopólio global se tornado a única “forma lização para a mundialização. Com a liberalização
de estrutura de mercado do mercado mundial” (p. comercial e dos fluxos de ied, uma segunda onda
142)21. Fusões e aquisições se tornaram mecanismos de mundialização se inicia (a primeira tendo ocor-
fundamentais e foram operacionalizados, nos Esta- rido no final do século xix), culminando em cadeias
dos Unidos, principalmente por bancos de investi- globais de valor mais complexas a partir da metade
mentos (que lucraram muito com taxas e comissões), dos anos de 1990. A produção se divide entre mais
enquanto os Estados foram cruciais em outros paí- países, primeiramente com filiais, em seguida com a
ses, como no caso do Brasil. Para as transnacionais, as subcontratação de pequenas e médias empresas. O
fusões e aquisições (por vezes na forma de aquisição uso de tecnologia da informação e da comunicação
hostil) em outros países via Investimento Estrangei- permitiu o incremento da mais-valia, a redução dos
ro Direto (ied) se tornaram oportunidades estraté- custos de transporte e a apropriação de valor das
gicas. Com base na caracterização do “poder de mo- empresas subcontratadas (como uma das formas de
nopólio”, entendido como a “capacidade de moldar “lucros da circulação”).
a trajetória da vida social sob o capitalismo em seu Após uma breve avaliação crítica da “teoria da
modo mais essencial” (p. 144), Chesnais comenta os administração” sobre as cadeias globais de valor,
casos de oligopolização na indústria automobilísti- Chesnais prossegue explicando que a situação das
ca, farmacêutica e no agrobusiness. Observa-se que a cadeias de produção de mercadorias atualmente é
competição de preço só ocorre em última instância, de tipo “comandado pelo comprador” [buyer-led].
pois as empresas tentam superar umas às outras pela Os gigantes do varejo, por exemplo, conseguiram
inovação de produtos, escolhas estratégicas etc., o estabelecer formas predatórias de apropriação de
que tende a conservar a lucratividade em cada setor. valor dos produtores menores através de seus pri-
O final do capítulo é dedicado a considerações vilégios de monopsônio23. Além disso, nos anos
sobre os países em desenvolvimento (reservando-se 2000, o amplo recurso das transnacionais em geral
alguns parágrafos para o Brasil). Um dado relevan- à terceirização e à produção em outros países [off-

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shoring] tornou-se central e elevou drasticamente gentes sendo bem inferior. Porém, o mais relevante é
a exploração do trabalho. Uma interessante e im- o significado desse movimento. O autor explica que
portante constatação do autor é de que nas últimas o forte aumento dos indicadores de mundialização
quatro décadas observou-se, assim, uma progressiva financeira no período é resultado e causa da acumu-
“‘desintegração’ vertical” (p. 163): externaliza-se lação financeira. Quando a taxa de lucro começa a
uma série de etapas ou processos produtivos – sem cair, uma fração maior do capital assume a forma
perder de fato o controle sobre estes, mas livrando- de capital portador de juros em busca de rentabili-
-se de responsabilidades e dos riscos de flutuações dade. Assim, entrando em outro ponto polêmico,
de mercado; e apropria-se de valor produzido por afirma que o aparente “desvio de investimento” das
empresas terceirizadas ou parceiros comerciais mais empresas para mercados financeiros (visão pós-key-
frágeis, normalmente operando em países com níveis nesiana)24, assinalaria, na realidade, o declínio das
salariais menores. oportunidades lucrativas de investimento (estado de
A consequência de tamanha fragmentação e dis- sobreacumulação do capital).
persão das atividades produtivas é que atualmente Nesse contexto, os fluxos financeiros (para den-
cerca de 60% do comércio mundial se refere a bens tro e para fora) entre os Estados Unidos e o resto
e serviços intermediários (que compõem alguma do mundo se tornaram, a partir dos anos de 1990,
etapa do produto final) e que nos últimos 25 anos uma das características mais importantes das rela-
o comércio mundial cresceu mais rápido do que o ções macroeconômicas no âmbito mundial. Eles ti-
pib. Além disso, as cadeias globais de valor tornaram veram papel importante na crise mundial de 2007,
os países em desenvolvimento de perfil exportador na medida em que os fluxos para dentro dos Estados
muito vulneráveis à demanda mundial, já que esses Unidos se concentraram nos setores privado e liga-
chamados non-equity modes de produção internacio- dos a hipotecas, provindos da Europa na sua maioria.
nal são ainda mais voláteis que o ied. A expansão do Além disso, em grande medida devido aos fundos
comércio “Sul-Sul” ainda depende bastante do fun- de investimento e de pensão e às seguradoras, as
cionamento dessas cadeias, agravando-se pelo fato de transações nos mercados de câmbio e de derivativos
que, em muitos países, as exportações estão concen- se tornaram as mais difundidas, sendo muito mais
tradas em poucas empresas. No Brasil, por exemplo, volumosas (embora menos visíveis e reveladoras do
1% das empresas exportadoras concentram 56% das “humor” do mercado) que as dos mercados de títulos
exportações; e 10% das empresas, 98% das exporta- e ações. Mesmo após o início da crise, essas transa-
ções (p. 168). ções continuaram elevadas, entre outros fatores devi-
do à relativamente reduzida destruição de capital fic-
Capital fictício e o sistema financeiro mundial tício e elevada injeção de liquidez pelo fed, mas com
aumento do investimento em mercados emergentes
O capítulo 7 é dedicado à evolução da mundializa- (nos quais havia maiores possibilidades de ganho).
ção financeira e à expansão de novas formas de capi- Outro ponto importante do capítulo são as con-
tal fictício. De início, mostra-se o aumento expres- siderações sobre os derivativos. Estes se tornaram,
sivo de fluxos financeiros internacionais entre 1990 nos anos 2000, a principal forma de transação finan-
e 2007 e que os fluxos brutos de capital subiram de ceira internacional. Seu volume e importância é tal
10% do pib mundial em 1998 para 30% em 2007 que alguns autores, de forma fetichista, viram neles
(p. 174). Essa expansão foi resultante de operações a forma contemporânea do dinheiro mundial, o que
entre economias avançadas, a participação de emer- é criticado por Chesnais. Como o próprio nome

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diz, esses produtos são atrelados a um ativo de base do nível de endividamento das empresas financeiras
que, inicialmente, eram sobretudo moedas ou juros. perante o qual os governos foram permissivos.
Por serem uma “reivindicação sobre uma reivindi- Desde os anos de 1970, a atividade dos bancos
cação previamente estabelecida de futuras receitas” comerciais esteve ameaçada pela desintermediação
(citação de Ivanova na p. 182), os derivativos são dos empréstimos operada pelos novos atores finan-
uma forma peculiar de capital fictício, em relação ceiros (fundos de pensão e de investimento) e o
à qual a fronteira entre a necessidade de proteção fortalecimento do mercado de títulos em geral. Isso
[hedge] e especulação é impossível de estabelecer. obrigou os primeiros a uma diversificação de suas
Recentemente, outros tipos de ativos subjacentes atividades, possível graças ao processo de liberaliza-
foram sendo utilizados, sobretudo em derivativos ção e desregulamentação que se seguiu, reforçado
negociados em balcão (pouco regulados), sendo pelo processo de concentração do setor a partir dos
considerados uma forma de “‘capital fictício à ené- anos de 1990, tanto na Europa quanto nos Estados
sima potência’”. Um deles se tornou muito transa- Unidos. A virada para os anos de 1990 foi funda-
cionado, os credit default swaps (cdss), e foi um dos mental, quando a inovação técnica criou novos ins-
pivôs da crise pelo fato de seus riscos se tornarem trumentos para empréstimo interbancário, reduzin-
sistêmicos. do a necessidade de grandes reservas em dinheiro e
No final do capítulo, mais uma vez a atenção abrindo o caminho para a alavancagem. Os bancos
se volta aos países em desenvolvimento, inclusive comerciais então criaram fundos de investimento
o Brasil (pp. 190-192), que ganharam importância para seus clientes, passaram a oferecer serviços de
com a relativa desaceleração da mundialização finan- administração para fundos de pensão e até a investir
ceira decorrente da crise. Entre outros fatores, dada em hedge funds25. A fronteira entre as transações para
a melhora geral da dívida externa desses países e as os clientes e para si próprios [proprietary trading]
baixas taxas de juros praticadas no centro, os fluxos também se tornou difícil de estabelecer.
de capital para os primeiros retornaram: em 2012, os O único campo em que os bancos comerciais
países em desenvolvimento respondiam por 32% dos ainda ficavam atrás era o da emissão de securities26,
fluxos de capital mundiais, ao passo que eram 5% em um tipo de operação que viria a se tornar um dos
2000 (p. 189). Ainda nesses países, como resultado pivôs da crise mundial. A centralização do setor
da abertura dos anos de 1990, de modo geral houve bancário e a modificação de legislação, cujos passos
uma internalização da dívida pública (embora esta principais na Europa e nos Estados Unidos são resu-
esteja controlada por estrangeiros). midos ao longo do capítulo, abriram caminho para
A oligopolização e a transformação do sistema um novo modelo de atividades bancárias, sobretu-
bancário e do crédito são tratadas no capítulo 8 do a partir de meados dos anos 2000: o “criar para
como um passo da conexão entre a situação geral distribuir” [originate to distribute]. Utilizando-se do
do capitalismo contemporâneo – sua organização e processo de securitização, bancos passaram a transa-
forma de exploração do trabalho e de obtenção de cionar uma série de produtos que não apareciam em
lucro – e a análise mais detida da atual crise mundial seus balanços, pois eram, junto com os riscos, repas-
e de seu contexto mais imediato. Em suma, nos anos sados ao mercado. Desse modo, não contrariavam as
que antecederam a crise, o sistema de crédito sofreu limitações regulatórias de suas atividades.
um processo de degeneração baseado no excesso de Chesnais expõe o malabarismo técnico envolvi-
capital monetário em busca de lucros financeiros, do nessas operações (special purpose vehicles, fatia-
que se caracterizou por um crescimento espetacular mento e empacotamento de ativos etc.) e ressalta seu

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alcance sistêmico (p. 210). A multiplicação dessas bilidade atuais, porém as autoridades não possuíam
operações em relação a hipotecas de famílias nos uma teoria do risco e do contágio em um sistema que
Estados Unidos a partir de 2003 alimentou e foi lidasse com o capital fictício. Não houve, portanto,
alimentada por uma bolha imobiliária. A enorme capacidade para lidar com a alta centralização dos
quantidade de capital fictício criada circulava pelo fundos de investimento nem com as entradas e saí-
shadow banking system e estimulou seu desenvol- das volumosas e rápidas de investimento financeiro
vimento. O risco sistêmico ampliou-se sem muito propiciadas pelas tecnologias recentes.
controle, sobretudo pela interconexão dessas opera- Além disso, alguns dos mecanismos de contágio
ções com a de bancos e seguradoras, e porque hoje também mudaram. Comparando-se com a crise de
as atividades de shadow banking system se elevaram 1998, percebe-se que esta teve seu alastramento e,
também em outras partes do mundo (inclusive ten- portanto, seus impactos restritos em certa medida,
do crescido nos países emergentes). permitindo que um grupo de bancos pudesse lidar
com ela. Dado o alto grau de securitização e o shadow
A crise mundial banking system, que ampliara a interconexão entre o
sistema financeiro da Europa e dos Estados Unidos,
Os capítulos 9 e 10 tratam propriamente da primeira a crise de 2008 teve alto grau de transmissão e exigiu
grande crise de crédito “pós-securitização”, segundo maciça intervenção governamental. Aparentemente,
o autor. Diferentemente de 1929, quando ocorreu as medidas do governo estadunidense atingiram o
primeiramente um crash da bolsa, houve uma enor- objetivo de estabilizar a economia, ao preço do fed
me crise bancária imediata, marcada por uma retra- ter transferido para o seu balanço uma grande quan-
ção do crédito entre corporações financeiras27. Os tidade de junk bonds. Já a Europa, devido ao desenho
protagonistas foram os bancos de investimento e os político-institucional da União Europeia, sofreu uma
hedge funds, que são analisados por Chesnais. Eles segunda rodada de crise bancária em 2010, permane-
se tornaram muito alavancados nos anos imediata- ce com a perspectiva de novas crises e teve que lidar
mente anteriores à crise, para além da alavancagem com a questão da Espanha e da Grécia. Esta é, após a
“latente” [embedded leverage], existente devido ao análise da situação europeia, tomada como um caso
risco sistêmico mencionado anteriormente. Isso se- exemplar da primazia dos interesses financeiros: a
ria decorrência da diminuição dos fluxos de valor maior parte da dívida grega foi transferida do setor
devido à queda da taxa de acumulação, bem como da privado para o público e apenas 11% do financia-
resultante pressão colocada sobre os administrado- mento ao país foi usado para custear as operações do
res para conceberem formas de “investimento” que Estado grego (mais de 80% do montante dos auxílios
equivaliam a redistribuições de valor já criado. foi para salvar o setor financeiro). Assim, “a intensi-
As baixíssimas, senão negativas, taxas de ju- dade das transações financeiras, a diversidade de ati-
ros nos países centrais nos últimos anos criaram vos transacionados, os potenciais canais de contágio
problemas também para fundos que deveriam ser financeiro e as expressões da instabilidade financeira
mais conservadores (como os de pensão), que fo- mundial endêmica são impressionantes” (p. 255).
ram levados a assumir mais riscos. Por outro lado,
pelo mesmo motivo, o endividamento privado foi Estagnação mundial e limites absolutos do capitalismo
estimulado e aumentou desde 2003, tendo sido par-
ticularmente rápido nos países emergentes. Ambos A Conclusão inicia-se com uma necessária retomada
os fatores compuseram as causas da crise ou insta- dos objetivos do livro e de seus principais pontos,

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assim como das dificuldades de pesquisa e cami- da “sociedade civilizada” (p. 264). Assim, prevê-se
nhos de investigação a serem trilhados. A intenção que o fraco crescimento e a instabilidade financeira,
de abarcar aspectos históricos (de curto e de médio somados ao caos político decorrente, vão convergir
prazos), teóricos, institucionais/regulatórios, econô- com os impactos sociais e políticos das mudanças
micos e políticos do capitalismo contemporâneo e climáticas. O aquecimento global e o esgotamento
da crise atual, somada à complexidade do fenômeno ecológico constituem-se, segundo o autor, em “bar-
da financeirização, mostra que o caráter por vezes reiras imanentes” ao capital em sentido forte, que
fragmentado dos capítulos, com algumas desconti- não poderão ser superadas (tal qual indicado por
nuidades dos subitens, é uma quase-imposição do Marx no volume iii d’O Capital) pela desvalorização
objeto. As constantes referências a outras partes do periódica do capital existente, nem por meios que
texto mostram a consciência do autor dessa dificul- recriem essas barreiras em uma escala ainda maior.
dade e sua preocupação em orientar o leitor. A financeirização é, pois, um mecanismo que tem
Entre os principais pontos abordados na parte dado sobrevida ao capitalismo, mas acirrando suas
final figura o diagnóstico do momento atual: um contradições. A questão é até quando, e o que so-
regime de baixo crescimento sem final previsível, brevirá. Embora sejam mencionadas as lutas sociais
cujo fundamento seriam as oportunidades de inves- e ambientais em várias partes do mundo, a resposta
timento insuficientes devido ao estado da taxa de fica no ar e não parece muito animadora.
lucro e da dificuldade de realização da mais-valia.
O período de uma economia mundial impulsionada Notas
pela China, que não escapou da desaceleração eco-
nômica, é considerado como terminado. Somente as 1. Agradeço a Clarisse Coutinho Ribeiro pelos comentários ao
grandes transnacionais teriam conseguido restaurar texto, eximindo-a, contudo, da responsabilidade pelas imper-
sua lucratividade, mas seus poderes de oligopólio as feições deste texto.
dispensariam da urgência em investir. Além disso, 2. Levando em conta autoria e coautoria/organização: Chesnais
a massa de capital monetário com dificuldades de (1996, 1998a), Chesnais et al. (2003), Chesnais (2005a) e

se valorizar financeiramente seria responsável pela Chesnais et al. (2010).

instabilidade crônica dos mercados financeiros. 3. Mas também fora dele. Na mesma época, David Harvey
(1993) assumidamente realiza uma análise regulacionista do
Levantam-se alguns mecanismos possíveis, em-
capitalismo contemporâneo.
bora nem todos prováveis, para a saída dessa situa-
4. Ver, particularmente, o capítulo do autor em A finança capi-
ção. Se, diferentemente dos anos de 1930, as grandes
talista (Chesnais et al., 2010).
potências não estão se preparando para uma grande
5. Respeita-se neste texto a tradução consagrada em português
guerra que levaria a uma destruição de capital neces-
do termo mondialisation empregado pelo autor. Os termos
sária à retomada da acumulação, restam: a completa
em francês mondialisation e globalisation muitas vezes são em-
mercantilização dos serviços públicos e formas adi-
pregados como sinônimos. No campo crítico, no entanto, a
cionais de acumulação por espoliação; o crescimento preferência é pelo primeiro, de modo a se distanciar do caráter
das “classes médias” de grandes países emergentes; e vago e mesmo apologético que o termo anglófono globaliza-
novas revoluções tecnológicas. Para Chesnais, con- tion por vezes possui – de um mundo que se integra mais e
tudo, nenhuma dessas soluções parece ser suficiente de culturas que compartilham mais entre si, obscurecendo a
e há, ainda, o problema dos limites “absolutos” do ca- questão do capital.
pitalismo mundial (crise ecológica)28, que ameaçam 6. Por uma questão de clareza, neste texto serão usadas aspas
não só a continuidade do sistema capitalista, mas duplas para citações e aspas simples (fora das citações) para

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palavras com emprego não convencional, neologismos etc. que hoje ocupa por um movimento próprio” (p. 35). Para uma
7. Conjunto de medidas liberalizantes colocadas em prática breve consideração sobre os termos empregados por Marx e
num curto espaço de tempo na praça financeira londrina que por Chesnais, ver Lapyda (2011, Anexo ii).
pressionou os mercados de outros países a também realiza- 17. Em seu livro mais famoso, Das Finanzkapital (Capital finan-
rem mudanças nesse sentido. Uma das consequências foi a ceiro, na tradução brasileira, Hilferding, 1985).
concentração bancária que deu origem a grandes bancos de 18. Evidentemente, a configuração varia entre os países. Ches-
investimentos. nais afirma que na Alemanha ainda são perceptíveis traços
8. Setor paralelo aos bancos comerciais que combina o dinheiro da posição privilegiada dos bancos (pp. 94-95). Também
como capital centralizado por, basicamente, fundos de inves- nessa questão, o autor diverge de Lapavitsas (2009, p. 143
timento e de pensão. ss.), para quem a teoria do finance capital é incompatível com
9. As referências a Finance capital today serão indicadas apenas a situação atual.
com o número da página e as citações são de tradução nossa. 19. O termo é emprestado de Lapavitsas, que passou a empregar
10. O autor utiliza tanto o termo “emergente” quanto “em de- a expressão mais sucinta de “expropriação financeira” (Lapa-
senvolvimento” para designar países/economias não centrais. vitsas, 2009; Lapavistas e Mendieta-Muñoz, 2016).
Aqui eles serão empregados em cada ocasião conforme o uso 20. Na Europa, a existência da União Europeia imporia às grandes
no livro. empresas a necessidade econômica e política de buscar o apoio
11. Os livros anteriores se concentravam no sistema mundial e nos dos seus países-sede no jogo da concorrência, de modo que a
países centrais (Europa e Estados Unidos, praticamente). Pier- interconexão dos conselhos de administração seria mais difícil
re Salama, especialista em economias emergentes/periféricas, e a formação de uma “classe capitalista transnacional”, ainda
é que ficou a cargo do tratamento dessa questão em capítulos mais distante. Por outro lado, estudos recentes têm revelado um
de obras coletivas. aumento das interconexões, e o setor financeiro é justamente
12. Há um glossário de termos financeiros no final do livro. aquele em que há maior transnacionalização (pp. 106-108).
13. Em A finança capitalista, Chesnais já mobiliza mais a obra de 21. O mesmo relatório da unctad citado anteriormente mostra
Harvey na argumentação, porém o recurso a ela em Finance que 80% do comércio mundial ocorre nas cadeias globais de
Capital Today é sensivelmente maior. Os benefícios analíti- valor ligadas às transnacionais.
cos de explorar as relações entre a produção dos dois autores 22. Detidos por Estados, sobretudo aqueles com grandes exce-
levaram-me a tratar do assunto (ver Lapyda, 2011). dentes nas exportações, devido normalmente ao petróleo e
14. Husson (2017) volta a insistir em sua tese com base em dados outros recursos naturais.
sobre o aumento da taxa de lucro e a estabilidade, ou mesmo 23. É analisado o caso do Wal Mart, que se tornou modelo ao
queda, da taxa de acumulação. lograr um incrível rebaixamento de salários, além de impor
15. Este último ponto leva Chesnais a discutir, no final do capí- condições draconianas a seus fornecedores.
tulo 6, a questão da superexploração da força de trabalho e 24. Tal visão é agora criticada. Porém, o autor flertou com ela em
do subimperialismo. A posição do autor é de que a interna- textos mais antigos (ver Chesnais, 1998b, 2005b), na forma
cionalização do “grau médio de habilidade e intensidade do como empregou os termos “punção da finança” e “atonia da
trabalho” (produtividade do trabalhador), com a existência produção”, por exemplo.
de diferenças salariais em cada país, explica a desindustriali- 25. Tipo de fundo de investimentos menos regulado e, normal-
zação das economias centrais, assim como os lucros obtidos mente, de perfil mais agressivo.
na periferia. 26. A definição de securities é vaga e basicamente refere-se a títulos
16. Das obras publicadas no Brasil, talvez a Finança Mundiali- financeiros negociáveis. Sobretudo quando se trata de títulos
zada seja a que mais se prestou a mal-entendidos pela diver- de dívida, sua difusão pelo mercado, em tese, diminui os riscos
sidade de termos empregados, à qual o próprio autor atenta: de crédito.
“O capital portador de juros (também designado “capital fi- 27. Em outra ocasião, Chesnais (2010, p. xiii) afirma ainda que,
nanceiro” ou simplesmente “finança”) não foi levado ao lugar na década de 1920, “o chamado à realidade” da economia

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real em relação à bolha da bolsa foi rápido, ao passo que le-capital-financier-et-ses-limites-autour-du-livre-de-


“desta vez não é uma bolha financeira a mais que explode. É -francois-chesnais.html, consultado em 23/6/2017.
uma imensa construção fictícia que está caindo, um mundo- Lapavitsas, Costas. (2009), “Financialised capitalism:
-fetiche que se esvai”. crisis and financial expropriation”. Historical Materia-
28. Assunto que o autor já vem tratando há alguns anos em seus lism, 17 (2): 114-148.
artigos. Lapavitsas, Costas & Mendieta-Muñoz, Ivan.
(2016), “The profits of financialization”. Monthly
Review (on-line), 68 (3), jul. https://monthlyreview.
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