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sumário
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folha de rosto
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introdução
buziguim
doutor caneta
meu tio
o sapo
galo galo
saco de gatos
o sítio do alemão
sobre o autor
créditos
Buziguim quem era? Ora, minha senhora; que horror, meu senhor!
Buziguim era ele mesmo, senhor de truques e rebolados, vigarista do
interior. Uma espécie de Cassi Jones, aquele vagabundo familiar de que
falava Lima Barreto. Um delinquente caseiro. Este é o ponto: caseiro. Do
interior de São Paulo, talvez Bebedouro, Ribeirão Preto, Colina, acho
que Barretos. Era um vigarista tão cabal, tão reconhecidamente vigarista,
que acabou famoso. Buziguim era moço e tinha saúde. Vamos dizer que
tinha uns vinte e sete anos, por volta dos trinta. Era magrinho, esbelto,
tinha bigodinho e aparecia pouco. Era um espadachim notívago. Uma
espécie de três mosqueteiros. Tive o prazer de vê-lo ao vivo umas duas
ou três vezes. Era o contrário da lei. Transgredia. Adulterava. Pactuava.
Aprontava. O que ele mais fazia bem, além de tratar com mulheres, era
jogar sinuca. Um taco fulminante. Era campeão municipal, e parece que
ainda dedilhava um violão bem entoado, seresteiro. Uma simpatia.
Buziguim: qual era o seu nome? E sobrenome? O que sei a seu
respeito são nomes e sobrenomes. Por exemplo: Aldinha Arantes. Foi o
caso dele que mais me escandalizou, quando ele comeu essa Aldinha.
Dirá o leitor: ora, tanta gente come tanta gente, e não há mal nenhum
nisso… Direi: é, só que o caso que conto dele ocorreu no interior de São
Paulo, há mais de quarenta anos atrás. E com a Aldinha. Aldinha
Arantes. Essa Aldinha usava maiô de peça única, e nadava na piscina do
Grêmio Recreativo e Literário. Mostrava as coxas. Provocava à maneira
do caipirismo que viceja ali nas imediações de Uberaba e Barretos, nas
águas do Rio Grande, onde Minas e São Paulo se misturam. Caipirismo
tão sensual quanto proibido. Aldinha era loirinha, nem alta nem baixa,
pés bem-feitos, podia-se contar cinco dedos em cada um. O dedão do pé
não era orgulhoso, sem deixar de ser bonito, bem torneado, de boa
presença. Os demais dedos eram um complemento natural, iam
diminuindo aos poucos, sucessivos, singelos, mais que perfeitos. Os pés
da Aldinha alimentaram minha imaginação estética na infância.
Infância? Estética? Eu já devia ter uns onze anos, já batia punheta, e
Centro da cidade.
Magrinho; bebia muito chope.
Prestava os mais variados serviços por escrito: coisas burocráticas,
pragmáticas, e coisas sentimentais, mais ligadas à área dos sonhos. Que
sonhos? Os pequenos sonhos cotidianos.
Quem era o Dr. Caneta? Eu nunca consegui saber. O que eu
pressentia era que ele tinha vindo ao mundo como um órgão de
expressão de tudo que era mudo; dos que não conseguiam falar de suas
alegrias ou de seus sofrimentos.
“Órgão de expressão de tudo que era mudo” (Nilo de Oliveira) — o
Dr. Caneta como escritor — porta-voz, e, só com isso, prestando um
relevante serviço social: viabiliza as pequenas e grandes necessidades
dos indivíduos. Dos indivíduos, não dos cidadãos, porque no Brasil a
categoria liberal de cidadão nunca chegou a se firmar, a se consolidar,
portanto nunca chegou a formar tradição. Não há jurisprudência no
Brasil. Jurisprudência é tradição. Não temos rigor. Rigor também é
tradição. Nossas instituições são espúrias além do tolerável. É demais.
Nosso problema é o excesso. Nossa estética também é excesso. Nosso
artesanato é busca de equilíbrio. Nosso academicismo, beletrismo, nosso
oficialismo estético, é tentativa de expurgar o excesso. Esse excesso.
Nosso excesso. Há duas maneiras, em extremos, de resolver a questão do
excesso: uma, a parnasiana, em última instância formalista, é tentar
expulsar os excessos, negá-los, ignorá-los mesmo, através do
virtuosismo retórico, o virtuosismo de “artista”, de índole escolar,
inteiramente preso aos cânones escolares. Uma maneira que favorece
muito a mediocridade. Pensem bem: metrificação, rimas regulares,
metros definidos, enfim, uma contabilidade poética resolvida em regras,
em instruções de como deve ser e como não deve ser a poesia. Ora, está
como um prato feito para a mediocridade. O parnasianismo brasileiro,
quanto mais puro, quanto mais depurado, mais medíocre. Quanto mais
escolar, mais segundo os cânones, mais medíocre. A outra maneira de
(A)
Era um prestador de serviços públicos. Era útil. Vivia nas portas dos
cartórios, delegacias, motéis baratos, entre a Lapa antiga e moderna. Dr.
Caneta tinha fluência, seus requerimentos e petições públicas nunca eram
passados a limpo. Era de uma vez só. Daí sua fama, sua popularidade:
era direto, bem escrito, um pouquinho enfeitado, com retoques de estilo,
dando presença pessoal ao texto impessoal, público, útil, funcional… As
coisas iam por aí, até que o dono do botequim onde o Dr. Caneta fazia
ponto, um balcão banal de botequim, um ponto circunstancial, começou
a pedir para o Dr. Caneta que ele explicasse as notícias do rádio, aquilo
quente e urgente que o locutor dizia. E o Dr. Caneta começou a comentar
o noticiário, que podia ser futebol, crime, reforma monetária, previsão do
tempo, reforma agrária, ó erre tê ene etc. etc. O Dr. Caneta começou a
passar para a tradição oral, onde a notícia é meio descartável. Por aí não
deu. Dr. Caneta voltou à caneta, operário, batalhador, sempre correndo
atrás… correndo atrás… Dr. Caneta corre atrás.
Cadê o sapo? Estou com saudade dele. Logo agora que comecei a gostar,
ele se manda. O sapo será cururu? Será boi? Sapo-trem? Sei lá. Só sei
que hoje, sem ele, sinto sua falta. Um dia o sapo pintou por aqui. Sempre
tive medo de sapo. Sapo e cobra, pra mim, é tudo motivo de medo. São
répteis, bichos arrastados. Como o calango. Uns menos, outros mais. O
sapo, além do mais, é batráquio! Credo! Ele fica ali, todo quieto, como
se fosse vegetação. Meio cogumelo, meio parasita. Diz que sapo mija
uma água que se pegar nos olhos da gente, na boca, dá uma inchação
purulenta, chamada cobreiro. Um pus de origem animal, fétido e
aborrecido. O negócio é evitar o mijo do sapo. Cresci com uma ideia,
mais que isso, uma emoção: cuidado com o sapo! Até já ajudei a matar
alguns. Desses caprichos de meninos, que juntam em grupo para fazer
maldade. Já participei do linchamento de uns sapos, mortos a pedradas,
pauladas, chutes. Cobra também costuma morrer assim: justiçada. Esses
bichos assim, com esse grau de repugnância e rejeição, que inspiram um
justiçamento elementar, provindo do paraíso, da idade de ouro do bem e
do mal, esses bichos, como eu dizia… Pois é isso: o sapo despintou.
Tenho sentido falta. A verdade, a pura verdade, a inconfessável verdade,
é que o sapo, até ele, acompanha, faz companhia.
O alemão é meio troncho. Não manca de perna nenhuma, mas parece que
manca. O alemão não se manca. Soube dele por intermédio, de
passagem. Diziam que o alemão tinha ido à Alemanha, visitar a mãe
doente. Parece que a velha morreu. Na Alemanha os meninos pequenos,
desde pequenos, já falam alemão. Admiro. Eu, que sou brasileiro, fui
aprender o português nas escolas. Mas o alemão é isso: meio troncho.
Meio desclassificado. Se quisesse, poderia mancar, perfeitamente.
Enfim, o alemão, na minha vida, era secundário. Seu terreno ficava (e
fica) do lado direito do meu sítio, de quem olha da estrada para a
florestinha. Um belo dia foi que se deu. O alemão tinha voltado da
Alemanha. Estava por ali, ciscando feito galinha, olhando pro chão, sem
ter ideia do tamanho do galinheiro. Olhei e vi: lá estava ele, meio
alemão, meio serrano. Perguntei pro Ademir: “Como é o nome do
alemão?”. E o Ademir falou: “Não sei não, mas eu trato ele de Eduardo.
Eduardo Alemão”. E concluiu: “O nome dele é meio esquisito, meio
alemão”. Aí fui lá falar com ele. O Ademir, esse deixamos para daqui a
pouco. Vamos direto ao Alemão. Eduardo Alemão.
O alemão esteve aqui, com a mulher dele. Deu tudo certo, pra ele e pra
mim. Um bem-te-vi canta: “Bem-te-vi”. Eu respondo: “Bem-te-vi”. A
mulher do alemão, Lígia, aliás dona Lígia, é brasileira. Costureira. E é
gente muito mais fina, muito mais civilizada do que o alemão. A
impressão que me deu foi essa: o alemão veio de um país com regras,
horários, compromissos, afinal o alemão é europeu, e veio dar no Brasil,
terra da esculhambação. E gostou. Havia qualquer instinto mau no
alemão que estava só agendando a hora de se manifestar. Foi chegar no
Brasil e a fome encontrou com a vontade de comer. Vê-se que o alemão
poderia já ser grosso de origem, já trazer algum travo na alma; mas vê-se
também que alguma grossura foi criada e desenvolvida a partir do
contato com o Brasil. Essa é a impressão que me dá: o alemão esquecer o
melhor que tinha, se é que tinha, e adquirir novos e malévolos hábitos.
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em
vigor no Brasil em 2009.
Capa
Elisa von Randow
Revisão
Adriana Moreira Pedro
Versão digital
Marina Pastore
ISBN 978-65-5782-068-1