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2018,LiaVainerSchucman

Direitos dessa edição cedidos à Edufba. Feito o Depósito Lega


Grafia atualizada conforme o Acordo Ortográfico da
Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009

I' Reimpressão: 2018

Capa e Prometo Gráfico


Rodrigo Oyarzábal Schlabitz

Foto de Capa
Thomaz Farkas Telhas. série Recortes, 1945 arca
Imagem gentilmente cedida pela família Farkas

Revisão
Âdila Marcele Frestas

Normalização
iuliane Nunesdo Nascimento

Sistema de Bibliotecas - UFBA


Pelo bem viver de todas as famílias
Schucman. Lia Vainer.
Famílias enter raciais: tensões entre cor e amor / Lía Vaíner Schucman.
enter-raciaisbrasileiras.
Salvador: EDUFBA,2018
146 P.

ISBN:978-85-232-1762-4

1.Famílias Relações raciais. 2. Racismo. 3. Raças. 1.Título.

CDD - 306.846

Evandro Ramos dos Santos


CRB-5/1205

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Lia Vainer Schucman

A narrativa de Mariana aqui apresentadaem pequenosrecortes


nos mostra diferentes aspectosem que o racismo foi legitimado e atua-
lizado dentro de casa, revelando à ela, desde pequena, as hierarquias
raciais de nossa sociedade.A entrevistada elabora, de uma forma bas-
tante eloquente, como o racismo a impediu de ter uma relação de amor
eacolhimento com suamãe, pai, primos e avósmaternos. No entanto,
mesmo que o racismo tenha interditado as expectativas que a institui-
ção família tem para Mariana, ela sabe que existem outras formas de se DA DEMOCRACIA RACIAL À DESCOBERTA DO
construir como negro dentro de uma família que podem proporcionar MITO: O ENCONTROCOM O RACISMONA VIDA
aos seus membros acolhimento e proteção, pois sua última fala diz, DOOUTRO
justamente, sobre o desço de "fazer diferente'

Eugostaría muito de ser mãe. Eu acho que vai ser umajorma de eu exorcizar Cada um descobre o seu anjo tendo um caso com o
demónio. (COUTO, 2003)
abala da mãe qüe eü feltro. Um dia eu vou ter um./ôlho preto também! E voü
educa-Zopara que ele seame.
Nos capítulos anteriores foi possível identificar tanto a negaçãodo
racismo quanto sua legitimação por parte de mulheres brancas casa-
das com negros. Neste capítulo, investigo, através do estudo de caso de
uma família entrevistada,a história de brancos cujo convívio com um
familiar negro desencadeoua consciênciado racismo e das diferentes
formas de hierarquias raciais na estrutura social brasileira.
A família aqui analisadarepete a configuração mais encontrada
entre os casaisinter-raciais no Brasil: o de mulher branca e homem
negro. A família Albertini é composta pelo pai, Guilherme, 75 anos,
que se autoclassiííca como moreno; a mãe,Jussara,66 anos, que se au-
todeclara branca; os filhos Dulci, 37 anos, que se autodeclara negra,
Daniel, 35 anos, que também se autodeclara negro e José,28 anos, que
seautodeclara branco. Todos se entendem como pobres. Nenhum tem
curso superior. Jussara é dona de casa e Guilherme é marceneiro - mas
trabalhou em fábrica no ABC paulista. Dulci trabalhade secretária
Lia Vainer Schucman Famílias enter-raciais

em uma clínica médica, Daniel é motorista em uma empresa de ven- vem sendo chamado de "ideologia da democracia racial" que, segundo
das e Joséestavadesempregadona época da entrevista. Guilherme é Guimarães (2001), traduz-se na ideia de que
de Minas Gerais. Veio pequeno para São Paulo e começou a trabalhar
quando jovem. Ele nomeia seus pais como descendentesde negros e o Brasil é uma sociedadesem 'linha de cor', uma so-
portugueses. Jussaraé natural de SãoPaulo, sua mãe tem descendência ciedade sem barreiras legais e culturais que impedem
a ascensão social de pessoas 'de cor' a cargos oficiais
italiana e alemã, e seu pai descendentede português. Hqe em dia, os
ou a posições de riqueza ou prestígio e que produz re-
três filhos são casados com pessoas que se autodeclaram negras. As
lacionamentos interpessoaisigualitários entre bran-
entrevistas aconteceram na casada mãe em Santo André. Na primeira cos e negros.
entrevista, estavam presentes o casal e os filhos e na segunda, apenas a
mãe e os filhos.
Com basenesseimaginário, podemos dizer que tanto Guilherme
quanto Jussaraforam socializados com a ideia de democracia racial e
O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E O SOFRIMENTO que, portanto, foi esta mesma ideia que os aproximou um do outro
NAO DITO sem que a raça aparecesse como uma interdição:

Uma das primeiras perguntas que faço aos entrevistados é como


Guilherme: Eu rlunca tive problemas, acho que isto não existe no Brasíl,
e onde o casal se conheceu, e se a raça ou cor foi uma questão naque- antes de rlamorar alussara eu tive oüüas mulheresde tudo que é tipo, mo-
le momento. Aqui, tanto Guilherme quanto Jussaraaãrmaram que rena, branca e aíéjaponesa, porque aqui em São Paülo guarida eu chelguei
quando se conheceram a cor não foi algo que apareceucomo impediti- tinha muito baile né?E a gente casoueujú tinha passadodos 30 né?Então
va, ou até mesmo como preferência. Os dois tinham naquela época um riamoreí bastarlte, acho que cor nuncaloí uma questão nem para casare nem

discurso que na teoria racial é chamado de calor bZínd(cegueira racial), para nabaíhar. Eu nunca tiveprí$erêncta.Com a,Jussarao pai dela só queria
saberse eü ía dar conta desustentar ajamílía.
ou .seja,é a ideia de que para ser antirracista ou para não parecer pre-
conceituoso é preciso ignorar por completo a ideia de raça e a cor de al- Jussara: Agente se conheceunüm baile, eu achei o Guilherme um homem
guém já que a raça não diz nada moralmente, intelectualmente ou so- atraenteele dançavamulto bem,era um homemlorte,gmride, bonito, multo
cialmente sobre uma pessoa.Tratar alguém como igual e com respeito, educado. Naquela boca eu rtâo vía este negócio de coE não tinha d@rença
portanto e para essediscurso, implica em ignorar totalmente a raça,já pra mím. Nãopensava em racismo. E meüpa{ era daqueles talíarios bravos.
que ela não é significativa na proporção de seucaráter,na construção Então eZeloí muito duro com o Guilherme, mas não era racismo ttão, era
de suas habilidades e talentos bu na sua capacidade de fazer contribui- mais estengócio de conversade homem com homem.

ções sociais valiosas. (GLASS, 2012) Neste sentido, podemos pensar


Logo após esta fala, Guilherme saiu da sala para atender o interfo-
que a cegueira racial é um componente necessáriopara o que no Brasil
ne.Jussarae Dulci logo me disseram que não podiam falar na frente de
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Guilherme, mas que não era verdade que ele nunca tinha passado por mesma direção, podemos pensar que a autodeclaração de Guilherme
racismo e que elaspercebiam o racismo que ele sofria o tempo todo. Per- como moreno é uma forma de, como aponta Costa(2015), "amenizar
guntei por que não podiam falar na frente dele e Dulci me respondeu que os efeitos deletérios historicamente propagados pelo racismo, já que,
'é para não contrapor, e já que ele acredita nisto, nesta idade é melhor no Brasil, trata-se de uma palavra definidora de uma identidade ideo-
continuar acreditando para não sofrer". Naquelemomento percebi que logicamente aceitável, ou quase". Para a autora, do ponto de vista dos
o discurso de Jussaranão era realmente o de cegueira racial, mas que processos intersubjetivos, a ideologia opera psiquicamente por meio
ele servia para a manutenção da harmonia da família ou ao menos para de alianças psíquicas que molduram os sujátos e seus grupos. A autora B
a proteção de Guilherme. Depois disto, Guilherme voltou à sala e con- entende; como hipótese teórica, que no Brasil muitos que se autodecla-
tinuei a entrevista. A partir daquele momento, as respostas de Jussara ram morenos o fazem por meio de aliançasdefensivasinconscientes
e dos filhos adquiriram um tom tenso e pouco espontâneo.Guilherme contra o racismo para amenizar suas dores. Tais alianças são aponta- i.
continuou a responder às perguntas sempre com um discurso de que das como possibilidades dos sujeitos se organizarem inconsciente e
no Brasil havia igualdade de oportunidades, de mérito e que quem era positivamente quanto a conteúdos psíquicos toleráveis e, ao mesmo
trabalhador conseguia chegar onde queria, que brancos e negros se ca- tempo, organizarem-se deüensivamentea partir de renúncias do que é
savam e que, por fim, somos todos misturados. Quando eu perguntei se insuportável.(COSTA,2015)/
elejá haviasofrido racismo na vida elecontou uma história em que ele Outra hipótese possível para Guilherme não reconhecer o racis-
atribuiu o racismo a uma competição masculina: mo sofrido na frente dos filhos e da mulher -- vale aqui dizer que não
sabemos dizer se ele reconheceria as vivências racistas se tivéssemos
Uma vezeu.»i barrado para enfiar em um baile em uma cidade lcíde Minas apenasos dois -- é que silenciar as dores na frente dos 6llhos tem tam-
Gerais, o selgurançadisseque eu não podia enfiar porque eu era nelgro.Eu
bém a função de preservar os.ideaisde paternalidade e de masculini-
.Pz um escandalodisseque ía etttrar e depois um amigo meu branco passou
dade construída em nossa sociedade,já que dizer das dores pode sig-
e disseqüe eü estavacom ele, e logo enfiei. Quando estava lá dentro percebi
que o selgurartçaestava de olho rla moça que estava comigo na boca, então nificar falhas,rompendo entãocom Rimagem masculina de força e do
acho que não ern racismo né? Ele queria me verlora dajoEada. provedor que então não pode ser o responsávelpor transmitir proble-
mas para a família. Assim, "não dizer" seria a solução encontrada para
Na fala de Guilherme, é possível identificar um mecanismo de de- lidar com a ferida narcísica e a angústia que o racismo desencadeia. ?
fesa, que faz com que ele negue o racismo vivido, mas sem nega-lo por Guilherme fala dele, mas sua fala representa muito brasileiros de
completo, pois caso ele acreditassede fato que foi apenasuma "disputa sua geração, socializados com o ideal da democracia racial. Qualquer
masculina", esta resposta não seria dada exatamente diante de uma rompimento com estepacto poderia acarretarmais sofrimento do que
pergunta direta sobre racismo. Como foi apontado pela mulher e pela o tolerável, ainda mais em uma época em que falar de raça era inter-
filha, há neste não dito uma proteção contra a dor do racismo. Nesta pretado socialmente como um discurso racista, ou sqa, a ideologia da
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democracia racial evitou a constituição da raça como princípio para Daniel foi o primeiro a mencionar o pai em tom de proteção, mos-
articulação e produção de identidade coletiva e ação política, ou como trando que as lacunas do dizer racial do pai eram importantes para
aponta Hasenbalg (1979, p. 246): mantê-lo em um lugar de provedor de íamíli3, mantendo intactos os
ideais de masculinidade e paternidade necessáriospara sustentar a or-
A eficácia da ideologia racial dominante (democra- ganizaçãode uma estrutura familiar tradicional.
cia racial) manifesta-se na ausência de conflito racial
aberto e na desmobilização política dos negros, fa- Na adolescêrida a gente começou a ír nos bailes blachs aqui da cidade e tanto
zendo com que os componentes racistas do sistema
eu como meus irmãos começamos ouvir mp exalar de racismo, e eu lembro que
permaneçam incontestados,sem necessidadede re- um dia meLtpai chegou e contou que quando chegou em São Pauío de Minas
correr a um alto grau de coerção. Gerais os corihecídos pretos delejalarum que preto tinha que casar com preto e
que tinham que se unte e ele me disse que aquilo era bobagem, se ele tivesse oü-
A entrevista prosseguiu com o depoimento dos filhos, que falaram üdo aquilo nunca teria conselguido
um empregobom, casadocom minha mãe
pouco Enquanto Guilherme sustentava o ideal de um Brasil não ra- e não estaria bem inserido na sociedade,eü acho que eleviu que o povo preto é
cista, Jussaradiscordava em alguns momentos, com gestos corporais. o mais pobre e o que mais s(2Üee não quis se associar aquilo.

Fiquei curiosa para entrevistar Jussarae os filhos em outro momento


já que o discurso de Guilherme já era bem conhecido no imaginário A fala de Daniel aponta para várias direções. Ater-me-ei, no en-
social brasileiro. Pensei,também, sobre o porquê da discordância de tanto, na associaçãoque remete à.ideia de que a consciência racial-e a

Jussaranão se traduzir em palavras e se aquela proteção com relação mobilização política atravésda raça impediriam três aspectosfunda-

ao pai também estaria operando.como mecanismo de manutenção da mentais. da vida de seu paul o emprego, o casamento e a inserção social

família:Após dois dias da entrevista, liguei para Jussarae perguntei se em territórios em que a maioria é .brang. De fato, a constataçãode
Guilherme não é necessariamente falsa, já que sabemos que a denúncia'
ela e os filhos poderiam me dar outra entrevista,pois eu havia sentido
do racismo constante no cotidiano brasileiro nunca foi bem recebida
qbe havia conteúdos ali ainda represados. Ela, rapidamente, aceitou e
marcamos um horário em que Guilherme não estaria em casa. pela maioria dos brancos de nossa sociedade, uma vez que, ao se dar
conta do racismo, rompe-se com os ideais de meritocracia e igualdade
de oportunidades para todos. (SCHUCMAN, 2012) É interessante pen-
O SILÊNCIO E A MANUTENÇÃO DA FAMÍLIA
sar que o bom emprego:' foi condição necessáriapara o casamento,
Na segunda entrevista, a família parecia estar mais à vontade para como apontado na primeira entrevista nafala de Guilherme, sobre a
falar de raça. Sem a presença do pai e logo de início, tanto Jussara como
os íllhos teceram comentários referentes à entrevista anterior que, 20 Em um paísonde a maioria trabalhava informalmente e sem proteção, o trabalho em
fábricas garantia, naquela época,direitos trabalhistas como férias, décimo terceiro
além de mostrar um pouco da dinâmica racial familiar, ofereceu pistas entre outros.
para entender o porquê do silêncio deles na frente do pai.
Lia Vainer Schucman Famílias enter...raciais

exigência do sogro, o pai de Jussara,para o casamento. Tanto o casa- de ninguém que produz o sentimento do racismo, mas sim a domina-
mento quanto o emprego, no imaginário de Guilherme, foram con- ção racial.
dições para uma inserção social que seria impossível de se alcançar, Na estrutura social anual e prevalente no Brasil, a condição da mãe
naquelaépoca,não fossepelo silêncio epela negaçãodo racismo. é bem diferente dessaorganização tradicional, na qual a mulher apare-
Pode-sedizer que a negaçãodo racismo para Guilherme foi o ce como submissa a uma autoridade exercida pelo homem e pai. Sua
meio que ele encontrou de estar em alguns lugares sociais sem conflito, brancura, em um desenho racial mais moderno, digamos assim, seria
tal como (i "ideal de democracia racial'íêonforme postula (;uimarães significada como um lugar de statusevalor simbólico hierarquicamen-
(2001). No entanto, fica a pergunta: por que os filhos e a mulher pac- te"superior"ao do negro.
tuam com este silêncio dentro de casauma vez que sem a presença do O silêncio da mãe e dos filhos, portanto, exerce,nessecaso, di-
pai, elesse posicionam de forma oposta? ferentesfunções: a) mantém o pai como autoridadesuperior à mãe
O fato de estafamília representarum modelo bem próximo da- através das desigualdades de gênero advindas do machismo e man-
quele que Mandelbaum nomeia como "organizaçõesfamiliares tradi- tendo assim, por sua vez, a estrutura social vigente das famílias tradi-
cionais" (AS NOVAS.-, 201 3):: que, por sua vez, constitui-se por um cionais heteronormativas; b) protege o pai psiquicamente de ter que li-
casal heterossexual com funções sociais bem definidas e diferentes dar com as mazelas advindas do racismo; e c) a raça não aparece como
entresi - o homem como provedor económico da família, sendo o um divisor familiar, como aconteceu na entrevista de Mariana.
seu local de atividade principalmente a esferapública e a mulher como Mesmo com o discurso de democracia racial advindo do pai, no en-
responsável pelos afazeres domésticos, pela educação dos filhos, sen- tanto, é perceptível que todos os outros membros da família -- brancos e
do seu espaço principal de atividade e circulação a esferadoméstica -, negros -- escolhem não negar o racismo quando o pai não está presente.
permite que eu formule uma hipótesepara a singularidade destecaso: Isso demonstra que, de algum modo, elesadquiriram consciência do ra-
haveria, no silêncio, um pacto de manutenção desta organização fami- cismo na estrutura social. Cabe a pergunta: como é que cada um deles
li:lr, pois a enunciaçãodas diferençasraciais colocaria na família uma adquiriu tal consciência,sobretudo, os autodeclaradosbrancos?
quebra de hierarquias e um possível deslocamento das funções sociais,
já que o homem, responsávelnestemodelo pela proteção familiar. se- DA DEMOCRACIA RACIAL À DESCOBERTA DO MITO
ria, no imaginário do pai e dos filhos, o responsávelpelasvivências A ALTERIDADECOMO POSSIBILIDADEDE
doloridas geradas pelo racismo. É importante lembrar que não é a cor CONSCIÊNCIARACIAL

21 É importante ressaltar que esta organização familiar tradicional é histórica e social e Após a fala de Daniel, perguntei à Jussarapor que ela havia discor-
que. segundo Mandelbaum, sua origem remonta à ascensão da burguesia, a partindo
dado tanto da fala de Guilherme. Perguntei, ainda, como ela enxergava
século XVI,na Europa,quando este modelo se tornando dominante, primeiro entre
as classes mais abastadas, mas progressivamente se disseminando pela sociedade a raça e o racismo na família e como ela mesma se pensavaenquanto
em todos os seus extratos. (AS NOVAS...,2013)
Lia Voiner Schucman Famílias enter-raciais

mulher branca nas relações com o marido, os dois filhos negros e o porque tinha medo delesso#erem. Um día eu quis alisar o cabelo da DuZci
branco. para deixar ela mais arrtlmadinha e aí eu ví que era üm t@o de pr(gerência,
Jussara disse que se aproximou de Guilherme e se apaixonou por né?Meio racista né, eü mesma me perguntei porque só o !iso é arrumado?
ele sem acreditar que existia racismo no Brasil. Que, naquela época, Daí em diante, eu comeceia levar ela numa parente do Guilherme quejazia
trançasepenteadospara cabeloscrespos.
acreditavade fato que todos tinham chancesiguais, mas que, ao con-
viver com Guilherme, e depois com os alhos negros, foi percebendo
Como afirmado na introdução destelivro, minha hipótese era
muitas situações que desconhecia.Foi percebendo, então, sentimentos
de que o racismo presente em nossa sociedade poderia ser descons-
que, caso os filhos fossem apenas brancos, jamais teria experimentado.
truído por sujeitos brancos através de vivências e abetos diversos e de
Em alguns momentos, Jussaradiz que se percebeu racista, mesmo sem
forma particularmente intensa no interior de famílias enter-raciais..
querer. Nesse sentido, ao contrário das famílias anteriores, a convivên-
Contudo, isto só foi comprovado de fato no caso de Jussarae José,
cia com os sujeitos negros fez com que ficasse evidente para Jussaraas
pois como vimos anteriormente, os membros brancos das famílias
desigualdades simbólicas associadas aos negros em nossa sociedade:l
Alves e Gomes negaram a existência da negritude dos cônjuges como
Ao mesmo tempo em que isto foi acontecendo, Jussaraelaborou para
mecanismo de sustentação de um racismo velado. Já a mãe da Ma-
si formas opostasao que antesnomeamos como "cegueiraracial". Os
riana legitimou o racismo no seio da própria família, sendo estenão
fraghéntos abaixo mostram trechos da entrevista em que é possível
arrolado como objeto de análise. Fica,então, a pergunta: qual a dife-
observar que o convívio com os sujeitos negros foi o grande responsá-
rença com Jussara?Qual foi o componente que fez com que ela ad-
vel por sua percepção e mudança de posição.
quirisse essasensibilidade para a percepção do racismo e fizesse um
esforço para desconstruí-lo?
Logo que comeceia namorar eu achavaquegente era tudo igual, qüe tartfo
jazia o branco ou o preto, mas me dei conta que não era nada disso logo A fala de Jussarademonstra que a convivência e a preocupação
na primeira reürtíão dejamííia que teve em casa e que GuÍlhermeloi pedir que tinha com seusfilhos permitiram que elase deslocassede si.e se
permissãopara namorar comigo ao meu pai. Minhajamlaía era bem italia- projetasse no lugar outro, voltando, então, a olhar para si. Ela percebeu
na e tinha aquelesalmoços demorados que todosjalavam ao mesmo tempo- a diferença de tratamento dado a Guilherme, mas também percebeu
Lembro que.Pquei com medo do meu pai não aceitar ele pela coB e lembro de
que também fazia a mesma diferenciação quando achavaque o cabelo
uma tíajalar 'esseprecisaser bem melhor que qualquer um, elejá éprero' E
liso estaria mais arrumado, ou seja:ela de alguma forma adquiriu uma
meu paí nâogostou muito delenão, logo ali vi quenão eraigual a ser branco.
percepção não só do racismo do outro! mas daquele que ela mesma
Com meus.pZhos,eu tinha muito medo delesserem cot!@ndídoscom me- havia internalizado. Jussara também passou a perceber que ao se casar
ninos de rua. Eu semprearrumava muito elese não gostava de ver o nariz com Guilherme, suavida familiar mudou, e que ela,por consequência,
escorrendo ou algo que eles parecessem sãos, eu queria proteger eles de tudo acabou vivendo situações em que foi obrigada a tomar uma posição,
Lia vainer Schucman Famílias enter-raciais

já que não se tratava mais do racismo vivido pelo outro distante e, sim, DACONSCIÊNCIA DO MITOÀEDUCAÇÃO
por suaprópria família. ANTIRRACISTA

Eu lembro de uma vezqüe uma irmã da minha mãe que casoucom um ho- Na segunda imersão na casa dos Albertini, ficou evidente em di-
mem mais rico {a casar a.olha dela e que a sopa dela.Pcou muito preocupada versasfalas que a mãe teve um papel fundamental para que Dulci e
em nos convidar, ela não sabia como explicarpara a sociedadeo que os ne- Daniel tivessemconsciênciado racismo estrutural da nossasocieda-
gros estavamjazerldo lá. Quem me contou istoloi uma ouça sobrínlta, e eu de e constituíssem, assim, uma identidade negra positivada, além de
seí queno.Pm rlãolomos convidados. aprenderem, desde pequenos, a se proteger de diversas violências. José,
o filho branco, também demonstrou empatia racial com os irmãos, so-
Podemosdizer que foi nestecontato com o racismovivido pelo lidariedade às vítimas do racismo, consciência do valor simbólico da
outro, e sentido por ela mesma, que a ideia de democracia racial se
branquitude e uma crítica efetiva ao racismo. .
transformou para Jussaranaquilo que os estudos de relações raciais,
Nesta direção, podemos pensar que há na relação entre mãe
a partir do trabalho de Bastidee Fernandes(1955) nomearam como 8 e filhos uma construção conjunta -- da qual o pai não participa -- de
mito da democracia racial.
'desconstrução do racismo". Mais uma vez, os papéis de gênero das
A importância de pensarmos a função deste mito é que, conforme l
organizações familiares tradicionais parecem bem delimitados: cabe.à
observado, ele ainda engendra as relações entre brancos e negros na mulher a responsabilidade da educação dos filhos.
sociedade brasileira, tal como nos apresentou a fala de Guilherme e de
Dulci, ao contar de um dia que voltou da escolachorando por que
Jussarasobre o início daquela relação. É importante analisar o sentido
uma colegadisse que ela tinha nariz de batata, relatou que sua mãe,
do mito tal como propõe Chauí (2000,p. 5), em que a narrativa míti-
mesmo sem instrução escolar,foi à diretoria da escolareclamar e pedir
ca "é a solução imaginária para tensões, conflitos e contradições que que as professoras conversassem com a colega. Ao mesmo tempo, ela
não encontram caminhos para seremresolvidos no nível da realidade' + lembra que foi a mãe quem Ihe disse a primeira vez que ser negra era
A autora também descreveo mito em sua acepçãopsicanalítica, "como lindo.
impulso à repetição de algo imaginário, que cria um bloqueio à percep-
ção da realidade e impede lidar com ela". (CHAUÍ, 2000, p. 5) Eu lembro uma vezque chegueida escolachorando porque uma menina ti-
Assim, podemos dizer que o mito da democracia racial tem uma nha me dito que meu nariz era de batata. Minha mãe olhou para mím e
função de esconderas tensões,mas como qualquer mito, ele tam- dissevocêé linda, seunariz é lindo, seu cabeloé !indo! Nâo deixeque o outro
decidaquemvocêél
bém produz realidades. É a partir dele que Jussara se aproximou de
Guilherme e, paradoxalmente, é a própria aproximação que fez com
Dulci completou dizendo que estas intervenções da mãe na infân-
que ela tomasse a consciência de que a igualdade racial não passava
de um mito. ' cia, as tranças no cabelo, os elogios, foram muito importantes para o
Lia Vainer Schucman Famíl.ias intei-raciais

que ela chamou de autovalorização. Posteriormente, ela diz que entre autoclassificaram como pardo ou mestiço. Isto nos leva ao encontro
os irmãos, todos acabaram casando com negros. Ela achava que isto dos resultadosde Sansone.A pesquisadesteautor indica que há uma
tinha a ver com o fato de a mãe semprefalar que o pai eraum homem diferença de gerações na classificação racial devido às mudanças políti-
muito bonito e também elogiar esteticamentehomens e mulheres ne- case históricasjá apontadasno capítulo 2destetrabalho.Ainda assim,
gras que apareciam na televisão. Daniel completa, dizendo: é preciso novamente apontar que as classinlcaçõesraciais são situacio-
nais e relativas a diversos fatores (SANSONE, 1993) e que boa parte do
É verdade, em casa sempre que aparecia pessoas negas na televisão, a mãe
que Daniel, Dulci e José afirmam sobre as questões raciais foi construí-
cosülmavaa dizer quea pessoaera linda.
da nos bailes bZacks
e no h@-hoppaulistang, em que a escolha pelo par
binário branco/negro prevalece como sistema de classificação.
Nesta entrevista não conseguimos dados suficientes para saber
Ao mesmo tempo em que estaeducaçãofoi importante para Dulci
como se deu os casamentos dos filhos. É interessante pensar que a es-
e Daniel, José aponta que crescer neste ambiente deu a ele uma pos-
colha deles,inclusive do filho branco, por cônjuges negros foge do pa-
sibilidade de perceber as tensões raciais existentesem nosso país e se
drão da literatura sobre o tema - Salva,Berquó, Alves - que apontam a
solidarizar não só pelos irmãos, mas a todos os negros. Ele entendeu
teoria do embranquecimento como ideologia que perpassa as escolhas
que, apesar do pai negro, ele era branco, ao contrário dos irmãos que,
amorosas dos sqeitos. Dulci afirma que "sempre achou homens e mulheres
apesar da mãe branca, eram negros.
netos/as muito bonitos" e que "desdepequena riünca havia pensado em casar
José,ao contar sobre sua percepção sobre o racismo, afirma que
combrancos"...-/
6oi o "estar junto ao pai" e o "colocar-se no lugar dele" que Ihe fizeram
Assim como Dulci, Daniel lembra que certa vez estavacom sua
percebero valor simbólico da branquitude:
mãe e José.Alguém perguntou para a mãe se ele era adotado e a
mãe respondeu de forma muito enfática: "de ondesaiurosétambém O pai joga.»tebol desdejovem até hoje aqui no time da cidade,e./}eqüenta
saiu Daniel", o que remete a uma conscientização sobre a igualdade também o clube. Eu sempre vou com ele porque também jogo e jú ouvi vá-
entre os dois.. rias vezesquando ele erra alguma coisa os coZegaslazerempiadírthas do tipo
Dentro de uma família que teve uma educaçãoque, além de an- .preto quando ttão caga na ertüada caga na saída', Ele aceita aquilo, dá umas

tirracista, também proporcionou aos filhos uma consciênciaracial e risadas junto e depois estão todos amigos de rlovo. Eu sou branco e não vivo
isto lá e, talvez,se estivesse
no liXgardelettão alguerttariaem silêncio.
valorização das origens negras,Jussaraconta que sempre falou para
Dulci e Daniel: "é importante vocêssaberemque são netos, porque qtlartdo
Após esta fala, rosé complementa com o seguinte fato: ver o pai
as pessoasolham para vaca, nunca lembram que a mãe tem origem ítaliarta e
e o irmão passarem por situações de racismo e perceber ao mesmo
alemã, mas lembram que são netos". É interessante notar que nenhum
tempo, que, pelo fato de ser mais claro, isso não ocorria com ele, pos-
destesjovens, assim como todos os outros jovens desta pesquisa, se
sibilitou o surgimento de uma consciência e de uma certeza acerca da
Lio Voiner Schucman Famíl.ias enter:raciais

existência daquele racismo que o pai sempre negara.Josésentia "na alteridade nem como interior nem como superior ou mesmo com qual-
pele" as situações de preferência: .--,'"' quer conteúdo a priori. É percebê-la apenas como alteridade.
Estesaber olhar para o mundo e para si mesmo com a experiência
Tírtha um amigo lá da escolaquemorava num prédio declassemais alfa que
do outro já foi teorizado para sepensaracondição dosnegrosem diás-
a gente. Eu e o Daniel sempre íamos jogar bola lá e um día eü percebi que
pora por Du Bois. Ele se refere à consciência do negro na América do
quando eü estava com Daniel a polícia parava mais a gente no caminho, e
o porteiro também deÍxúva a gente do lado decora esperandoautorização.
Norte como clivada entre duas experiências:a identificação com sua
Quando eu estavasozinho eu subia direto. Depois de um tempo, quepercebi raça pela opressão comum e a identificação com valores construídos
queaquilo tíriha a ver com a cor. pelo opressorde origem européia,ou seja,pela branquitude. Estapo-
sição de sempre olhar para si atravésdos olhos dos outros foi chamada
Isto mostra como asmediaçõessociaispossibilitaram sua consti- por ele de dupla consciência. (DU BOIS, 2003, p. 9)
tuição como o branco que desconstrói o racismo. E suas falas e nas da Inspirados no conceito de Du Bois, Winant (1 997) e Twine (2006) l
mãe, foi possível perceber diversos íatores e vivências que contribuí- conferem esta dupla consciência também aos brancos que consegui-
ram para essadesconstrução. Uma delas, no entanto, pareceu-nos fun- ram se olhar como socialmenteracializadose adquiriram uma críti- Ü

damental: os dois tiveram relações de abetosnão hierarquizadas pela ca à branquitude. T:cine (2006) demonstra, em sua pesquisa,que esta
raça com não brancos e, ao mesmo tempo, sentiram-se em um lugar de consciência foi adquirida através dos relacionamentos de solidarieda-
duplo pertencimento, ora privilegiados pelo fato de serem brancos, ora de com sujeitos negros.Winant (1997)consideraque estafoi uma con-
B'
discriminados por estarem ao lado de negros. Ê importante perceber qiiista dos movimentos negros por direitos civis da década de 1960 nos
que a chave não está na convivência com os negros, nem na convivên- Estados Unidos. Para ele:

cia pacífica, mas sim na convivência não hierarquizada.


É exatamente a convivência não hierarquizada que permitiu Jussa- Não apenas os negros, mas também os brancos ago-
ra experimentam uma divisão em .suasidentidades
ra e José se deslocarem de si e se colocarem no lugar deste outro para,
raciais. Por um lado, os brancos herdam o legado da
depois, voltarem o olhar para si. Nas descrições de suas falas, os abetos
supremacia branca, a partir da qual continuam a se
negros são "emprestados" para um olhar reflexivo, incrementado, agora, bene6lciar,mas por outro lado, eles estão sujeitos à
com um saberoutro e do outro. Estaexperiênciade olhar para si com moral e, politicamente, aos desafioscolocados pelo
os olhos do outro só foi possível porque, para Jussara e José, este "outro" parcial êxito do movimento negro e movimentos afl-
era alguém conectado a6etivamente. Aqui, é importante frisar que o que liados.:: (WINANT, 1997, p. 4, tradução nossa) /
possibilita esta vivência não é a experiência positiva com o outro, mas
sim o deslocamento de si para outra posição subjetiva, a de perceber a 22 "Therefore, not only blacks, but also whites, now experience a division in theír ra-
cial identitíes. On the one hand, whites ínherit the legacy ofwhite supremacy, from
whichthey continue to benef;ít.But on the other hand,they are subjectto the mora
Lia Vainer Schucman Famílias enter-raciais

E impossível afirmar, no entanto, quais foram os momentos exa- é medrado por desigualdades de classe, hierarquias
tos e as mediações que Jussara e José tiveram para se diferenciarem dos de gênero e heteronormatividade.:' (TWINE, 2006,
brancos relatados nas famílias de Gomes, Alves e Mariana. Os depoi- p 344,tradução nossa)
mentos nos fazem pensar que não estão na cor da pessoaas condições
para uma postura antirracista, mas sim no reconhecimento dos privi- O que me parece mais importante nesta sensibilidade antirracis-
légios da branquitude, na empatia pelador do outro, na leitura cotidia- ta é que, para que ela exista, é preciso que cada um faça movimentos

na das práticas racializadas como, por exemplo, a percepção de José paradoxais, o que significa: ao mesmo tempo, acreditar na raça e de-

sobre a polícia e o porteiro. Neste sentido, podemos dizer que a mãe sacredita-la em seguida. Ou seja, é preciso levar em conta que a raça

e os filhos da família Albertini adquiriram o que a antropóloga afro- é componente fundamental para compreenderas desigualdadesentre
-norte-americana Twine (2004) e T:cine e Steinbugler (2006)cunharam brancos e negros, mas ao mesmo tempo, é preciso saber que raça é um

como racialliteral:' ou letramento racial. contorno no qual não há conteúdo intrínseco ou essencial:é preciso
enxergar a raça para tornar...secego a ela. Há algo fundamental no de- :
O letramento racial é caracterizadocomo um con- poimento de Jussarae José que os fazem diferir da cegueira racial que
junto de práticas que pode ser entendido como uma tem em sua base a ideia de que "somos todos iguais": eles reconhecem
pláticíL4e leituJla',uma forma 4e. percebere res- o outro, e identificam neste outro as vivências diferentes das suas em
ponder individualmente às tensões das hierarquias
função do racismo. Entendem que estasdiferenças não são imanente;,
raciais da estrutura social. Esseprocesso 'pedagógi-
mas resultado de uma condição de dominação.
co' inclui: 1) o reconhecimentodo valor simbólico
e material da branquitude; 2) a definição do racismo
como um problema social anual; 3) o entendimento
de que as identidades raciais são aprendidas como
um resultado de práticas sociais. E, ainda: 4) a posse
de uma gramática e um vocabulário racial que faci-
lita a discussão de raça, racismo e antirracismo; 5)
a capacidade de traduzir e interpretar os códigos e
24 'Racial literacy is a set of practices. It can best be characterized as a 'reading prac-
práticas racializadas de uma determinada socieda- tice' - a way of perceiving and responding to the racial climate and racial structures
de e; 6) uma análise das formas em que o racismo individuais encounter and include the following: [-.] ]) a recognition ofthe symbo]-
íc and material vagueof Whiteness;2) the definition of racismas a current social
problem rather than a historical legacy; 3) an understandíng that racial identities
are learned and an outcome ofsocial practíces; 4) the possessionof racial grammar
and polítícal challenges posed to that inheritance by the partiambut realsuccesses of
and a vocabulary that facílitates a discussion of Face,racísm, and antíracism; 5) the
the black movement (and affílíated movements)'.
ability to translate (interpret) racial bodes and racialized practices; and 6) an analysis
23 0s trabalhos de FranceWínddance Twine não foram tiaduzídos para o português. of the ways that racísm is mediated by class inequalities, gender híerarchíes,and
As traduções no presente trabalho são minhas. heteronormatívity'

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