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O amor e suas relações com a parentalidade


na atualidade

Lucas Bondezan Alvares


Universidade do Oeste Paulista - Unoeste

Gustavo Henrique Dionísio


Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho
- Unesp

'10.37885/220709390
RESUMO

Objetivo: Investigar experiências dos participantes sobre o exercício da parentalidade na


atualidade. Método: A pesquisa realizada foi qualitativa e buscou investigar por meio do
método psicanalítico a perspectiva acerca do exercício da parentalidade em contextos atuais.
Para a coleta de dados, foi utilizada a ferramenta Google Forms e a participação foi de 101
pessoas, sendo 73,3% de mães e 26,7% de pais. Resultados: A temática do amor esteve
presente com central na experiência da parentalidade e dois núcleos temáticos foram amplia-
dos para discussão dos resultados, sendo eles o amor, constituição do outro e modernidade
e amor e os imperativos para ser pai e mãe. Conclusão: foi possível observar o discurso
do amor romântico e cristão no exercício da parentalidade e seus desdobramentos como
fundamentais na visão dos pais e mães. A mulher na atualidade continua carregando muitos
imperativos conservadores. A pesquisa mostrou que parecem ser valorizadas socialmente
mulheres que conseguem acumular ao mesmo tempo todos esses ideais: serem mães,
profissionais competentes e autônomas gerando um cotidiano exaustivo com culpa frente à
constatação da impossibilidade de ser tudo isso que exige dela.

Palavras-chave: Parentalidade, Amor, Psicanálise, Modernidade; Discurso.


INTRODUÇÃO

O artigo apresentado, é resultado do desenvolvimento de uma tese de doutorado que


buscou compreender os olhares e perspectivas sobre o fenômeno do exercício da paternida-
de/maternidade, identificando a visão sobre o que é ser pai/mãe para os mesmos, assim como
seus entendimentos sobre os desafios contemporâneos que influenciam essa experiência.
O objetivo geral da pesquisa foi investigar experiências dos participantes sobre o exer-
cício da parentalidade na atualidade. Os objetivos específicos buscaram compreender a
implicação parental e disponibilidade psíquica no ato de tornar-se pai/mãe.
Diante as realidades apresentadas nos resultados, o artigo aqui apresentado é um
recorte do que foi desenvolvido na tese, buscando entendimento dos desafios e possibili-
dades nas práticas parentais para auxiliar na elaboração de futuras pesquisas, bem como
no desenvolvimento de intervenções clínicas e grupais para psicanalistas, instituições, co-
munidade científica e pais.

MÉTODOS

A pesquisa realizada foi qualitativa e buscou investigar por meio do método psicanalí-
tico a perspectiva acerca do exercício da parentalidade em contextos atuais. Tal método é
desafiador diante das ciências modernas que buscam pragmatismo e o empirismo racional
e “puro”. Herrmann (2004, p. 55) faz importantes reflexões sobre o desafio do psicanalista
para ganhar espaço no campo científico, para o autor “a conotação positivista provoca reação
de hipersensibilidade alérgica na pele epistemológica do psicanalista”.
Ao considerar as pesquisas na área de ciências humanas, a aproximação da literatura,
da estética, da linguística e da antropologia é relevante: “Os recursos da ciência positivista
quase nada renderam no esclarecimento da psique. Arranharam o problema sem o penetrar
e foi sempre como se quisessem tirar leite de pedra” (HERRMANN, 2004, p. 54).
A escolha do método ocorreu por meio da identificação do pesquisador com a teoria
psicanalítica e seu campo de atuação, e pelo crédito na importância desse método como
forma de resistência a partir da escrita. A psicanálise tem suas raízes na clínica, com o
modelo clássico de se fazer psicanálise, o divã, a sessão de 50 minutos, o setting, com
poucas considerações acerca da criatividade de Freud na construção teórica e prática de
seu método (HERRMANN, 2004).

Uma das coisas que sempre admirei em Freud foi seu talento para enxergaro
mundo cotidiano em forma de investigação. Sem rituais acadêmicos, uma con-
versa, uma piada, um ato falho seu ou do próximo, uma sugestão de passagem
eram o suficiente para desencadear psicanálise. Quisera ter sua simplicidade
no olhar e graça do relato. Quem não o desejaria? (HERRMANN, 2004, p. 72).

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O próprio Freud, durante a construção do método psicanalítico, foi um pesquisador,
mas não preso à racionalidade tradicional, e sim disponível para ouvir, pensar, analisar e
criar. Antes da existência do Freud clínico existiu um Freud pesquisador.

Em sua simplicidade de meios, entretanto, serve para mostrar o essencial: que


a investigação psicanalítica pode encontrar seu ponto de partida quase em
qualquer lugar, e que o critério que julga seu valor é a riqueza heurística, não
a forma circunstancial da coleta de dados (HERRMANN, 2004 p. 52).

Posto esse formato desafiador de pesquisa Tozoni-Reis (2004, p. 416) afirma que:

Escrever é trocar. É poder transitar entre o dentro e o fora ir e vir. Penetrar


a interioridade, buscar próprios pensamentos, trazer à tona e compartilhar.
Dirigir-se ao outro que, por sua vez, permite o diálogo consigo mesmo. É
uma experiência que mobiliza angústia e prazer e, espera-se, mais prazer
que angústia.

Para alcançar os objetivos, foi realizada revisão bibliográfica de literatura, que forneceu
o embasamento teórico sobre as relações intersubjetivas entre pais/mães e filhos e sobre
o lugar da criança nas famílias contemporâneas. Segundo Severino (1985) o levantamento
bibliográfico possibilita ao pesquisador encontrar materiais e teorias já trabalhadas, e favo-
rece a leitura analítica para a construção da linha de raciocínio do autor.
Para viabilizar a pesquisa o projeto foi submetido ao Comitê de Ética em pesquisa da
UNESP através da Plataforma Brasil e aprovado com CAAE 10785519.3.0000.5401. O mate-
rial coletado para a pesquisa foi realizado através de questionário on-line pelo Google Forms:
O questionário foi composto por 12 perguntas, sendo 5 perguntas de múltipla escolha e
7 perguntas escritas com respostas livres. Foi realizado com 101 participantes, constituídos
por pais e mães com idades a partir de 29 anos até 60 anos. Dentre as perguntas do ques-
tionário, buscou compreender as visões dos pais e mães a respeito da relação da parentali-
dade com vínculos, o que possibilitou núcleos temáticos que serão discutidos nesse artigo.

RESULTADOS

A partir das respostas coletadas dos participantes, o principal entendimento de vín-


culo se relaciona intrinsecamente com os conceitos de amor, carinho, confiança e cuidado
em perspectiva romantizada. O conceito de vínculo se baseia em primeiro lugar nos laços
familiares, e para que se concretize, deve ser mantido com base no ideal de construção
ao longo dos anos. Portanto observa-se a visão de vínculo relacionado ao amor, que será
aqui discutido.

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Segundo Santos, Miranda e Belo (2020) sabemos dos amplos sentimentos positivos
e momentos prazerosos existentes nos cuidados das crianças. Os autores nos alertam
sobre as teorias que tendem a retratar a experiência da maternidade e paternidade (grifo
meu) como baseada apenas em sentimentos positivos e ausência de conflitos podem estar
relacionadas em fantasias de amor incondicional e desejos infantis fantasiosos, que ficou
evidente nas respostas dos participantes como se segue:
“É a conexão entre mãe e filho, é o amor compartilhado, é o carinho, o cuidado cons-
tante, o respeito mútuo”. (sic)
“Confiança, respeito, amor”. (sic)
“É um vínculo inexplicável de muito amor”. (sic)
“É ter o maior cuidado para com eles”. (sic)
Diante dessas falas, destaca-se que:

[...] a construção de espaços em que o reconhecimento da dificuldade da ta-


refa e a discussão efetiva da (co)existência de sentimentos de amor e de ódio
pelos filhos sejam possíveis pode contribuir para o exercício de maternidades
menos normativas. Segundo a autora, não existe no campo das tarefas de
cuidado apenas uma maneira de ser boa mãe ou bom cuidador, cabendo aos
envolvidos conhecerem uns aos outros e construírem, a seu modo, a melhor
relação possível” (PARKER, 1997 apud SANTOS; MIRANDA; BELO, p. 12).

Nesse contexto, o vínculo entre pais e filhos se choca com a necessidade constante
de informações e objetividade presentes na sociedade da informação, pois pode ser des-
crito como um processo gradativo, em constante processo de evolução de acordo com a
realidade subjetiva de cada grupo familiar. O vínculo assume, portanto, um papel variável no
qual são consideradas as particularidades da família: aspectos históricos, culturais, sociais e
econômicos, responsáveis por influenciar a percepção subjetiva de como a ideia de vínculo
pode ser traduzida nas relações familiares. Diante os atravessamentos que os participantes
apresentaram em suas respostas, foi dividido em duas categorias para discussão da temática
“Amor”, que foram: Amor, constituição do outro e modernidade e amor e os imperativos para
ser pai e mãe que serão discutidos na sequência.

DISCUSSÃO

Amor e constituição do outro e modernidade

Vera Iaconelli produz importantes conteúdos em relação a parentalidade, psicanálise


e atualidade. Segundo a psicanalista, o ser humano diferente dos outros mamíferos precisa
do amor para se desenvolver, não é uma questão romântica, fantasiada e idealizada é uma
necessidade humana. Esse laço deve ser um laço investido narcisicamente, ou seja, quem

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cuida do bebê, quem cuida da criança precisa se ver naquele outro, precisa reconhecer como
meu filho, alguém que você tem que dedicar algo que é profundamente narcísica. Freud
vai dizer que o comovedor amor dos pais por seus filhos nada mais é que uma reedição do
narcisismo nesses adultos.
O amor é necessário para o desenvolvimento dos filhos, pois segundo Iaconelli (2021,
não paginado) “quem recebe o amor se sente representado, se sente amado, se identifica
com o objeto amoroso considerando parte de si”, devemos entender também que o amor
é contingente, ele pode acontecer ou não, não é inato de nossa espécie. Volta-se aqui a
repensar os discursos que buscam favorecer o imperativo idealizado do amor aos filhos,
gerando assim culpabilizações e sofrimentos diante as ambiguidades também presentes e
necessárias no exercício da parentalidade.

O dado biológico da gestação, do parto, do nascimento não garantem o amor


pois não temos prontidão instintual suficiente como há por exemplo outros
animais. Portanto viemos muito mais desamparados porém com muito mais
potencial e dependentes de um ambiente. Um sujeito ao gestar e parir não
tem que necessariamente amar quem sai do corpo dele e nem amar quem
carrega o DNA no casos dos homens, porém a biologia não garante o vínculo
sendo esse estabelecido ao longo dos cuidados, ao longo da identificação com
o bebê, com a criança no dia a dia. Uma vez que o amor é contingencial ele
se torna um problema que só pode ser solucionado caso a caso, ou seja na
medida em que as pessoas vão estabelecendo um convívio com as crianças
elas poderão amá-las sendo esse um fator muito importante pois muitas ve-
zes os pais adotivos se comparam com os pais biológicos que vivenciaram a
questão corporal sairiam em vantagem em relação ao “amor de fábrica” não
sendo essa uma verdade (IACONELLI, 2021)

A autora considera ser um convite os pais biológicos se beneficiarem com a gravidez e


o parto para a formação de vínculos criando oportunidade para o que é contingencial venha
acontecer, paralelamente haverá o reconhecimento social diante a suposição de que ali já
tem pai e mãe que retroalimenta o narcisismo deles. A preposição biológica pode estimular
a fantasia narcísica de algo de si que está presente.
Porém, esse olhar vem se modificando, como por exemplo o olhar sobre as adoções
que apesar das inseguranças dos pais em relação a construção do amor vem demonstrando
que todo amor com os filhos se constrói não na ilusão da fantasia, no amor de fábrica e sim
diante as contradições, ambiguidades e experiências.
A parentalidade é de fato um lugar subjetivo de condições dos que a exercem em sua
função. Essa passa pela possibilidade de serem reconhecidos nesse lugar, “então cada
cultura e cada período histórico vai ter a sua forma própria de lidar com quem pode e quem
não pode ser pai e mãe” (IACONELLI, 2021), produzindo assim laços filiais e parentais
instituídos a partir de uma convenção, a partir do simbólico e daquilo que nós nomeamos.

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Ao abordar a nossa cultura em nossa época, hoje as pessoas têm o direito tendo nas-
cido com útero ou não, se entender de um gênero masculino, feminino, não binária sendo
uma perspectiva de amor, solidariedade e de respeitos as diferenças e o entendimento de
cada um em seu lugar no mundo, o que pode ser pensado na pergunta “quem pode ser pai?
Quem pode ser mãe? ”, diante configurações tão possíveis e diversas. Sabemos o que uma
criança precisa estruturalmente para seu desenvolvimento ter o outro lado uma convenção
marcada com atravessamentos culturais de nossa época (IACONELLI, 2021).
O amor é então necessário, porém construído, algumas falas, destacada a seguir,
representam essa construção e se afastam das visões idealizadas:
“É um vínculo de muito amor, insegurança, medo, responsabilidade, pressão e de-
dicação. Relação de amor, respeito, cuidado e até mesmo exortação ou correção quando
necessário”. (sic)
“Um amor jamais experimentado por mim. Sempre cantei, conversei com minha bebê
ainda no meu ventre e percebia que ela respondia com chutinhos e mexidinhas. Fui enten-
dendo na prática que o vínculo é realmente construção, é estar junto é se fazer presente, é
cuidado. E falando de amor de mãe e filho, é instinto, intimidade, colo, abraço, cheiro”. (sic)
“A educação dos filhos não se compra, não se terceiriza. Se constrói, dá trabalho,
demora anos e não tem receita mágica”. (sic)
“É o sentimento criado, a relação, carinho, proteção, educação, respeito. É o filho
sentir que ele (a) tem alguém que está ali para amar, cuidar, educar a qualquer momento,
tentar suprir as faltas ou ensinar a conviver com elas”. (sic)
Qual exigência se tem sobre o amor na atualidade? O que estamos chamando de amor?
Que amor é esse que os pais relatam ter no desenvolvimento da parentalidade? A tese
aqui desenvolvida é atravessada em suas discussões pelas características do que cha-
mamos atualidade.
Segundo (RIOS, 2008 apud COSTA, 1983) “A cultura contemporânea, também cha-
mada de Cultura Narcísica, Somática ou do Espetáculo, reproduz conceitos e práticas que
não sustentam a alteridade, e constantemente devolvem o sujeito para o miolo de si mesmo
quando este procura referências fora de si, na experiência coletiva”.
“[...] a condição pós-moderna, ou hipermoderna, é fruto do desenvolvimento do capi-
talismo multinacional e dos fenômenos da globalização. Sua base material é a globalização
econômica, a lógica do mercado e o neoliberalismo que solaparam os ideais utópicos, po-
líticos, éticos e estéticos da Modernidade” (RIOS, 2008).
Os resultados evidenciaram falas que sempre demonstraram e reforçaram o exercício
da parentalidade enquanto lugar de uma experiência individual e nuclear na família contem-
porânea intensificada pela chegada da pandemia do COVID-19. A parentalidade é também

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um fenômeno social, porém observamos nas falas, nas pesquisas e nas observações a
culpabilização dos pais e mães dos males da sociedade. As redes de apoio estão agora
terceirizadas: escolas, babás e creches compõem a nova rede da família moderna, que
precisa ser pensada enquanto lugar, ou não, de fortalecimentos de vínculos entendendo os
desdobramentos na constituição de sujeitos.
Bauman (2017), quando escreve sobre o modelo de sociedade atual, afirma que os
laços da cultura moderna se tornaram frágeis e provisórios e podem levar à situação de
desamparo social, reforçado pela lógica liberal baseada na competitividade em detrimento
da colaboração. Essa visão fica evidente quando se observa as famílias atuais cada vez
mais desconhecendo seu território, buscando cada vez mais a sua individualidade e seus
muros, conhecendo menos seus vizinhos, entendendo o espaço público enquanto lugar de
risco. Outro reflexo de tal perspectiva é o número crescente de famílias reduzidas, distantes
da família de origem.
A comunidade, o território, a troca tão importantes para os laços sociais e o exercício da
parentalidade se enfraquecem diante o individualismo reforçado pelos discursos neoliberais
de sucesso e felicidade e culpabilização. Se acertou foi por você, se errou também foi por
você, ou seja, sujeitos empreendedores de si e de sua parentalidade.
Há grande crescimentos de “coachs” no contexto da experiência parental, como os de
amamentação e organização, que atribuem a “profissionais” de um suposto saber técnico a
função de ensinamento, distanciando pais e mães do contato íntimo com essa experiência,
portanto há sempre um saber que pode falar por você e te ensinar, pois tentativa e erro não
é mais uma opção, apenas o acerto idealizado.
Diante deste contexto do universo de promessas para o não sofrer que gera um mercado
de autoajuda, de “coachização da vida” emerge também uma parentalidade sempre orientada
e sendo atravessada por saberes, inclusive os “psis”. Quando é definida uma forma de ser
pai ou mãe, existe o risco de entender por meio da psicologização que os profissionais de
psicologia estão em lugar privilegiado para dizer, analisar e supor formas corretas que irão
corroborar o dispositivo da parentalidade como um objeto de estudo da ciência. É necessá-
rio pensar na atuação dos psicólogos fora desse dispositivo, e que a atuação nesse campo
possa servir como a possibilidade de um lugar de construção subjetiva e não do imperativo
moral e conceitual das boas práticas para o bem viver.
Toda essa cientifização e instrumentalização comportamental cria no imaginário dos
pais a ideia de uma parentalidade ideal e perfeita, capaz de ser treinada e manuseada com
o uso de guias do ato de ser pai e mãe. Importante refletir acerca do distanciamento que
pode emergir de forma única na relação dos pais com seus filhos. A partir do momento em
que existe um modelo ideal, a parentalidade se distancia da criatividade, do encontro, da

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dúvida, da imperfeição e da criação. Em suma, a parentalidade se distancia dos aspectos
subjetivos que a compõem.
“Se os valores da nossa cultura atual estão na base dessa contínua construção/ re-
construção de sujeitos superficiais e enfraquecidos, sem a verve necessária para esse
experimento humano essencial e profundo, como plantar em si “o amor, a alegria, o calor
e o prazer” e experimentar a arte de amar? Será que, diante do que temos, precisaremos
nos contentar com o final “enfim só”, depois do shopping, da pizza com coca-cola na frente
do computador ou do plasma da TV, e um comprimido de antidepressivo, duas vezes ao
dia?” (RIOS, 2008)
Porém, o amor idealizado e narcísico também esteve presente e será discutido no
próximo tópico.

Amor e os imperativos para ser pai e mãe

Ocorreram também falas que representaram olhares naturalizados relacionando às


funções relacionadas ao ser pai e mãe ainda valorizando a mulher enquanto afetiva, cuida-
dora e o homem enquanto provedor. Esses olhares são a reprodução da figura idealizada
da mães, esposa e educadora, despida de erotismo e agressividade, e sobretudo, confinada
no espaço privado (FERNANDES, 2021 p. 89).
Pode-se perceber essas percepções nas falas das entrevistadas:
“Função paterna: transmitir segurança, afetividade, responsabilidade, ser exemplo de
bom caráter. Pilar familiar. Função materna: transmitir segurança, afetividade, responsa-
bilidade, equilíbrio emocional, contribuir para a formação do caráter. Pilar familiar”. (sic).
“Pai, somente contribui com esperma. Mãe faz as duas funções sem reclamar e de
forma bem feita”. (sic).
“Paterna: trabalhar para ajudar a colocar o pão de cada dia na mesa e com isso dar
a melhor educação para os filhos. Materna: acolhedora dos filhos e casa e cuidando para
melhor educação dos filhos.” (sic).
“Função materna: ser uma mãe que dá o necessário para seu filho crescer e conseguir
ser independente nos aspectos psicológicos, passando pela dor de tornar-se adulto, enten-
dendo seu lado positivo dessa trajetória. A função paterna seria ser o suporte emocional
que mostra os caminhos a seus filhos pelo próprio exemplo”. (sic).
“Função paterna: trabalhar muito, amar mais ainda e proteger. Função materna: ca-
rinho amor, compreensão, cuidado e um colo pra chorar”. (sic)
“É meio complicado falar sobre isso. Pois eu e meu esposo quando casamos con-
versamos e decidimos de eu ficar em casa pra cuidar dos filhos, marido e da casa.” (sic).

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“Meus filhos ficavam mais com a mãe, que trabalhava em casa e assumia quase toda a
responsabilidade. A minha se limita a prover e decidir questões mais sérias. Mas atualmente
vejo uma relação complicada, quando nossos filhos ficam com terceiros e com acesso a
internet, informações que muitas vezes sem filtros, podem prejudicar a educação”. (sic).
Surge nas respostas o mito do “instinto materno” definido por Badinter (1980). A figura
materna ainda é muito associada com delicadeza, cuidados e acolhimento, enquanto a figura
paterna está compreendida dentro da proteção, segurança e racionalidade. Nas falas, foi
evidenciado que as mulheres se colocaram como arrependidas em não estarem em suas
casas com seus filhos ou filhas. Essa realidade corrobora a existência do imperativo da ma-
ternidade, colocando as mulheres dentro de ideais que são construídos desde o nascimento.
Falar dessa construção, é entender que a valorização da maternidade em nossa cultura
é um resultado político e social. Já foi aqui debatido a necessidade de romper com os dis-
cursos românticos e naturalizados sobre as questões parentais, porém torna-se necessário
retornar ao século XVIII para compreender que a maternidade sempre esteve atrevessa-
do por seu tempo.
Segundo (Badinter 1985 apud Fernandes 2021, p.89):

O amor materno é uma construção de meados do século XVIII e que nos


séculos anteriores havia uma desvalorização das atribuições da maternida-
de. Amamentar era visto como um empecilho para usufruir dos prazeres da
vida social e considerando como pouco digno. As mulheres que a exerciam
tinham de fazê-lo no interior de suas casas. As mulheres da nobreza francesa
e, a seguir, as burguesas contratavam amas de leite para residir junto com a
família e para elas entregavam a amamentação e o cuidado de seus filhos,
demonstrando por eles pouquíssimo interesse. As mulheres que não tinham
a mesma condição, que eram a maioria, enviavam seus filhos para o campo
para serem cuidados por amas de leite assoberbadas pelo cuidado a muitas
crianças, algumas até portadoras de doenças graves.

Badinter (1980) relata o caso de 31 crianças cuidadas por uma ama de leite, que ao
longo de 14 meses vieram a falecer (p. 87). Precisamos então fazer nosso recorte histórico.
Estamos na pós-modernidade capturados pelos discursos individualista e consumistas assim
como de perfeição. A mulher vem ganhando espaço no mercado de trabalho e considerando
a maternidade cada vez mais uma escolha, e não um imperativo. Porém, para aquelas que
são mães evidencia-se ainda a força do discurso da mulher/mãe e do lar, resultando assim
na cobrança contemporânea em dar conta de tudo e de forma perfeita e equilibrada.
Segundo Fernandes (2021) as mudanças em nosso tempo, com melhores e maiores
condições de inserção da mulher, não se converteu nas transformações de ideias, mas sim
no acúmulo deles. O corpo da mulher da mulher é exigido a exercer um truque contempo-
râneo que impõe ideais múltiplos.

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Podemos então pensar que o mito do amor materno se constituiu a partir de uma
perspectiva histórica, porém devemos entender que o conflito sempre esteve existente, e
o que se percebe na atualidade é a existência da ambiguidade porém a necessidade de
corresponder aos ideais, o que gera angústia pois se antes as crianças podiam ser aban-
donadas sem prejuízos hoje, felizmente, temos leis que protegem as crianças como o ECA,
mas o conflito entre o pai e a mãe que posso ser e o que devo ser fica evidenciado. Portanto,
culpa, frustração, sentimento de imperfeição de não completude marca a vivência maternal
observada nas seguintes falas:
“Na verdade me sinto um pouco triste por não poder estar dia-a-dia com eles”. (sic)
“Sempre trabalhei com filha por perto mesmo com babá (tinha que ficar das duas)...
Mas se pudesse teria só cuidado dela [...]” (sic)
“[...]quando eles eram crianças eu não gostava de trabalhar e ter que ficar distante
deles, ficava frustrado por não ter mais tempo disponível com eles”. (sic)
“Por ser médica tive muitas vezes que abrir mão de algumas coisas dos meus filhos
que hoje tenho consciência de que fizeram falta, como o primeiro passo, a primeira palavra,
algumas reuniões de pais”. (sic)
“[...]abre uma lacuna na vida dos nossos filhos porque acabamos que quase não tendo
um relacionamento com os mesmos”. (sic)
“Muitas vezes estava sem muita paciência em supervisionar as atividades, mas fazia,
mas deixava muito a desejar, já que muitas vezes me estressada e estressava meus filhos.
Hoje optaria por não trabalhar fora, não compensa”. (sic)
“[...] sempre uma relação muito ambígua dentro de mim, pois trabalho com a profissão
que eu amo, mas também amo ser mãe”. (sic)
“[...]Admiro as mães, que talvez por falta de opções, deixam suas crias ainda muito
bebês em creches ou com alguém para poderem trabalhar, eu não consegui. Tenho comigo
que essa culpa de não ter cuidado, de não ter participado, de não ter visto andar ou falar
as primeiras palavras, não vou carregar. Pelo menos essa”. (sic)
“[...] pois o que vejo hoje em dia são pais que dada à ausência deles devido ao trabalho
tentam compensar os filhos de forma inadequada dando uma educação mais permissiva
e menos instrutiva [...]” (sic)
Novamente os resultados evidenciam questões no exercício da parentalidade com base
nas faltas de garantias e incompletudes que geram sentimentos de culpa sobre os filhos
de que não está bom, gerando assim mal estar, ou seja, algo falta. Porém, não é possível
pensar a parentalidade enquanto falta de falta.
Nesse sentido Iaconelli contribui ao afirmar que:

Primeiríssima questão: não há, nunca houve e jamais haverá garantia. Qual-

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quer tratamento ou objeto que for usado para fomentar a falsa ideia de que
haveria o tão sonhado controle e prevenção no que tange a parentalidade im-
plica má-fé. A culpa catastrófica que os pais/mães têm carregado por tudo que
acontece com os filhos é, parodoxalmente, um dos grande males da criação
deles hoje em dia. (IACONELLI, 2021 p. 32).

A autora ainda nos apresenta a diferença entre responsabilizar os pais/mães pelos


cuidados às crianças e a fantasia de onipresença e onisciência que se apresenta. Essa
cobrança apresentada pelos pais na pesquisa, demonstra essa fantasia do dar conta de
tudo, da melhor forma possível, de uma balança e um equilíbrio possível como o pote de
ouro no fim do arco íris. Essa busca com base na fantasia de onipotência, “faz com que nos
comparemos com seres divinos que deveriam prever cada movimento e o resultado de cada
escolha” (IACONELLI, 2021 p.33).
Ponto importante que evidenciou-se nas repostas, é o que Iaconelli (2021 p. 33) destaca
no seguinte posicionamento: “Por vezes, os adultos assumem a ideia de “não sou perfeito”
mais no lugar de um pedido de desculpas do que do reconhecimento de que esse é um fato
estrutural incontornável”. Podemos observar nas seguintes falas:
“[...] gostaria de estar mais com eles.” (sic)
“Me preocupa o fato dos pais trabalharem tanto e não ter tempo para seus filhos,
compensando-os com a tecnologia dos tablets e celulares”. (sic)
“Acho que o ideal seria estar em casa para criar meu filho e estar com ele o maior
tempo possível”. (sic)
“[...] ao mesmo tempo em que dou importância ao trabalho e almejo o crescimento pro-
fissional, não queria me distanciar da minha filha ou de participar menos na sua criação”. (sic)
A escuta psicanalítica tem grande potencial na compreensão dessas demandas. É pos-
sível contribuir para a construção de um lugar de constituição subjetiva que possibilitará aos
pais/mães olharem para suas limitações, para as cobranças e pré-conceitos, essa busca
de satisfação e garantia exigida pela sociedade do qual fazemos laços com tais discursos
e possibilitar aos pais entendimentos de suas reais condições, mas não como um defeito.
Os relatos da pesquisa demonstram um fator importante, o contato frente a frente com
o abismo da liberdade recém adquirida que se envolve com ambiguidades, dificultando as
escolhas. “Mas o maior problema tem sido as escolhas no “piloto automático” que muitas
pessoas fazem sem levar em conta o que realmente estão em condições e desejando fazer”
(IACONELLI, 2021 p.17). A autora também apresenta falta de unanimidade quanto aos pa-
péis de homens e mulheres, as pessoas acabam comprando os discursos contemporâneos
e naturalizando comportamento e atitudes sem reflexão podendo ficar prisioneiras de filhos
ou carreiras que não desejavam assumir produzindo sentimentos diante a falta de opções
que leva ao reconhecimento da liberdade, mas ao mesmo tempo a sensação de fracasso.

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Algumas falas representam esse pensamento, articulando com a necessidade de deixar
claro que não há saídas:
“[...] uma necessidade que temos trabalhar, porém abre uma lacuna na vida dos nossos
filhos porque acabamos que quase não tendo um relacionamento com os mesmos.” (sic)
“Preciso sustentar meus filhos, então é necessária a saída de casa, porém me preo-
cupo, pois gostaria de estar mais com eles”. (sic)
“É difícil administrar o tempo e o cansaço, nem sempre é uma opção”. (sic)
Presente então os atravessamentos contemporâneos de satisfação, perfeição e garan-
tias entende-se que a parentalidade então, deve estar relacionada com busca de satisfações
diferentes das fantasiadas.
Segundo Iaconelli (2021 p. 25):

Queremos um bebê e vem um estranho a quem temos que no afeiçoar; que-


remos gratidão e reconhecimento, mas não há garantias de quando ou se o
teremos; queremos respostas sobre a existência, mas permanecemos na mais
absoluta ignorância. As satisfações possíveis passam pelo prazer de ver outro
ser humano emergir ao longo de anos de desenvolvimento, capacidade de
amar e ser amado, do prazer de cuidar de alguém, de lidar com diferenças e
desafios, do projeto de colocar alguém que valha a pena no mundo, da chance
de amadurecer lidando com uma experiência intensa e perene.

Contudo, esse estado celestial perfeito e completo provavelmente será interrompido


no sofrimento da criança, e essa dor não aumentará para o status de sujeito. De fato, desde
tenra idade, as crianças e seus pais enfrentam demandas ambientais e em especial nesse
estudo compreendido enquanto a falta da parentalidade. Gradualmente, a criança perceberá
que isso não é tudo para a mãe, ela tem outros interesses. Nas palavras de Poulichet (1992,
p. 51), esse entendimento de uma criança “[...] prejudica o principal narcisismo da criança.
Desde então, seu objetivo é tornar-se amado pelos outros e agradá-lo, para recuperar o
amor, isso só pode ser alcançado através de certos requisitos para auto-ideais”.
Portanto, é dessa maneira que a criança entra no segundo estágio do narcisismo, que
Freud chama de narcisismo auto-narcísico ou secundário, porque é através do processo de
identificação com a imagem dos pais ou de seu representante.
Importante ressaltar que há poucos espaços onde as pessoas possam falar de suas
ambivalências afetivas vivenciadas diante a parentalidade, para tal demanda o divã se mostra
um lugar possível para confrontar essa realidade, porém precisamos pensar também nos
desafios culturais para superar os imperativos. Segundo Fernandes (2021 p. 86), diante
os medos inconfessáveis as mulheres se encontram diante o medo silenciado, medo esse
excluído da trama da linguagem que não pode acolher o desejo das mulheres não serem
mães assim como suas ambivalências.

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Porém, falas que buscam romper com os discursos centralizados na figura de pai/
homem provedor e mãe/mulher cuidadora se apresentaram. Segundo os participantes, afir-
maram não reconhecer diferenças para além das biológicas nas funções materna e paterna
como representados nas seguintes falas:
“Função mais importante da vida entre os seres humanos, as duas tem de se com-
pletar e nunca se conflitar, as duas funções, paterna e materna, tem exatamente a mesma
importância com diferenças de ordem natural”. (sic)
“Não existe uma função definida por paternidade ou maternidade. Mas sim uma posição
de parentalidade que cabe ambos exercerem nos cuidados de sua prole”. (sic)
“Ambos têm que estar presente, participar da vida do filho, cuidar e se responsabilizar
por eles igualmente”. (sic)
Isso representa grande avanço em relação ao desprendimento do patriarcalismo, apesar
de alguns pais reconhecerem que existem muitas melhorias a serem feitas para desvincular
a parentalidade de conceitos pré-estabelecidos. Desafio esse que já vem sendo sinalizado
por psicanalistas atuais. Birman (1999, p. 20) por exemplo nos diz que Freud ao designar
como única saída para a feminilidade a maternidade, reproduz o estatuto das mulheres esta-
belecido no século XVIII que seriam elas mães por natureza e, por consequência, deveriam
funcionar no espaço familiar e não público. Fernandes (2021, p. 79) nos diz: “Ao restringir a
sexualidade ao casamento, a sociedade da época de Freud organizava-se para manter a mu-
lher ao espaço privado, longe da “tentação” do espaço público, fonte de saber e autonomia”.
Ainda para Fernandes (2021, p. 80):

Não devemos esquecer que as produções teóricas do pai da psicanálise fo-


ram construídas a partir de um imaginário social dominante naquela época, e,
mais ainda, que sua teoria, como qualquer outra, será sempre tributária das
marcas de seu tempo.

O intuito aqui não é desvalorizar a teoria psicanalítica que atravessa essa tese e sim
olhar para o imaginário social vigente que se difere do início do século XX.
Com a entrada no mercado de trabalho, a luta feminista por direitos, a pílula anticon-
cepcional e as mudanças dos contratos matrimoniais a mulher foi no século XX conquistando
seu espaço público antes reservado para o masculino, o que produziu mudanças no modo
de relação das mulheres com a maternidade (FERNANDES, 2021 p. 80). Na atualidade,
novas configurações se evidenciam proporcionado as mulheres escolhas em relação a serem
mães. Porém, os participantes da pesquisa eram necessariamente mães e pais por buscar
entender as questões relacionadas a parentalidade. As falas dos participantes deixam de-
marcadas essas mudanças atuais, como se apresenta:

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“Nos dias de hoje, onde a mulher procura sua independência, não vejo mais diferença
entre as funções”. (sic)
“Na minha visão, a função é a mesma, a de suprir as necessidades de nossos filhos,
amar, respeitar e proteger”. (sic)
“Para mim, deveria ser a mesma. Mas não se aplica na realidade”. (sic)
Porém, em relação a experiência de exercer os cuidados com os filhos, se apresentou
com mais dificuldades para as mulheres. Apesar do avanço relatado, ainda o peso sobre
a mulher se faz presente no discurso neoliberal do equilíbrio que de fato não se mostrou
evidente nas falas. Importante pensar nas dificuldades que o discurso maternalista pode
significar também aos pais, pois durante a história o homem foi colocado distante do lugar
de cuidado, podemos pensar em desdobramentos significativos de despotencialização, e
até exclusão, da figura do pai na parentalidade.
Belo, Guimarães e Fidelis (2015, p. 9) no artigo “pode um pai ser cuidadoso” nos faz
um importante convite:

O objetivo dessas pesquisas futuras é deflacionar a importância de termos


como materno e paterno, e apontar para conceitos que nos parecem clínica
e teoricamente mais relevantes de um ponto de vista psicanalítico: cuidado,
holding, preocupação. Para cumprir essa tarefa, é fundamental desarticular
termos como pai, dureza, lei, racionalidade e homem; e, por outro, desatrelar
termos como mãe, preocupação, afeto, mulher, cuidado. Entendemos que
intervenções clínicas baseadas nessa premissa irão permitir maior criatividade
e transicionalidade na relação que homens e mulheres podem estabelecer
com um bebê.

A clínica psicanalítica se estabelece enquanto esperança de que muito ainda há de ser


pensado, ainda há ser pesquisado, analisado e contribuído no sentido de que seja possível
a organização de um novo saber sobre as novas demandas. É isso que mantém a psicaná-
lise viva. É graças aos novos sintomas, sob os quais a linguagem se apresenta vazia, que
nos debruçamos na tentativa de, não criar uma nova teoria, mas ajustar o saber até aqui
em prol das subjetividades contemporâneas, principalmente quando abordado a relação da
parentalidade. Talvez seja essa, a nossa única ‘possível’ certeza até o momento.
Concluindo, é visível a relação ainda tão presente na atualidade das percepções de
santa mãe e todo poderoso pai atravessadas nas formas de amar, o que dita segundo
Sanches (2021 p. 19)

“Não nos enganemos! A imagem de parentalidade como dádiva não é sinônimo


de bondade, mas, principalmente, o carimbo da ilusão de onipotência, traço
próprio às divindades. A onipotência não é apenas um poder, mas também a
ilusão de que os limites não deveriam existir. No exercício parental, a ultrapas-
sagem dos limites é enunciada por um mal-estar no corpo. Um corpo-sintoma
que reclama, que falha, que se cansa e cogita desistir. O corpo que tem limites

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não é um mal a ser combatido, mas sim um sofrimento a ser escutado”.

CONCLUSÃO

A parentalidade é um tecido social, marcada atualmente pelas representações sociais


da perfeição, da felicidade e do individualismo juntamente com a responsabilidade da família
perfeita. Porém, toda a demanda atual não condiz com a visão psicanalítica do “ser pai” e
“ser mãe”, que na verdade é um contraponto à essa demanda.
Nesse processo, é preciso a implicação parental para o exercício da parentalidade
que é oferecer proteção, responsabilização, formação, cuidado e educação. Os bebês e as
crianças em seu desenvolvimento precisam ser nomeados em um certo lugar de sua cons-
tituição no seu momento histórico e em sua família, assim como devem receber cuidados
extensivos distantes de abusos violências e também com condições materiais para seu
desenvolvimento, sendo assim necessidades estruturais para o desenvolvimento.
Observa-se que a parentalidade está relacionada na atualidade com modelos ideali-
zados focados na satisfação, felicidade e simetrias das relações. Ocorrem falhas nas refe-
rências, com pais inseguros e com medo de frustrar, que gera uma assimetria invertida, e “a
majestade o bebê”, que deveria ser para o desenvolvimento do narcisismo primário necessá-
rio na criança, se sustenta pela falta de incorporação da lei, não perdendo sua onipotência.
Diversas instituições estão cada vez mais ocupando funções de suporte aos pais.
Essa realidade de apoio institucional pode gerar referências, porém também gera ligações
vinculares menos amparadas no afeto. Atualmente as instituições desenvolvem o papel de
intermediário, ocupando a função de mediadoras da simbolização.
Nesse sentido, é preciso entender como esse processo ocorre, pois, a criança em
seu desenvolvimento precisa de representações narcísicas que possibilitem dar suporte as
pulsões. Para tanto, deverá ocorrer o investimento narcísico e depois a separação, com o
intuito de simbolizar a ausência.
Esteve muito presente o discurso do amor idealizado e cristão em nome de um bem
maior. Porém, essa idealização demonstra os paradoxos evidentes na experiência parental:
busca de completude e medo da falta. Nessa busca do equilíbrio imaginário encontram-se os
pais e mães (principalmente) exaustos em nome do sacrifício contemporâneo do dar conta
de tudo. Os imperativos sobre ser pai e mãe ainda estão presentes e atravessados pelas
lógicas da santa mulher e do homem provedor e onipotentes.
É possível então concluir, que mesmo com os avanços e a luta da mulher diante no-
vos protagonismos e na busca do rompimento das visões naturalizadas, percebe-se ainda
a presença do discurso do amor materno e naturalizado. Badinter (1980 p. 145), corrobora
o que foi possível observar:

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“Não se ignora que este sentimento sempre existiu em todos os tempos, se não todo
tempo e em toda parte. Mas o que é novo, em relação aos dois séculos precedentes, é a
exaltação do amor materno como um valor ao mesmo tempo natural e social, favorável à
espécie e à sociedade. Alguns, mais cínicos verão nele, a longo prazo, um valor mercantil.
Igualmente nova é associação de duas palavras, “amor” e “materno”, que significa não só a
promoção do sentimento, como também a da mulher enquanto mãe. Deslocando-se insen-
sivelmente da autoridade para o amor, o foco ideológico ilumina cada vez mais a mãe, em
detrimento do pai, que entrará progressivamente na obscuridade.”
A mulher na atualidade continua carregando muitos imperativos conservadores. A pes-
quisa mostrou que parece ser valorizado socialmente são as mulheres que conseguem
acumular ao mesmo tempo todos esses ideais: serem mães, profissionais competentes e
autônomas” gerando um cotidiano exaustivo com culpa frente à constatação da impossibi-
lidade de ser tudo isso que exige dela.
Torna-se importante pensar nas necessidades e funções de cuidado que o bebê e a
criança demandam em seu desenvolvimento a partir de seus pais, porém manter o discurso
misógino ainda tão presente em nossa realidade além de sobrecarregar a mulher, contribui
também para o afastamento do homem desse lugar que pode ser tão importante para o
desenvolvimento não só da criança, mas também do próprio pai em sua subjetividade.
Importante destacar que o individualismo marca o contemporâneo e também ocupa a
vivência dos pais. A sociedade atual está fortemente marcada pela parentalidade em subs-
tituição a família como discutido anteriormente, isso significa que ocorreu um deslocamento
de uma perspectiva social para mais individualista.
Evidencia-se então o quanto a família ocupa o lugar centralizador dos males e sucessos
de nossa sociedade. É comum presenciar no cotidiano a existência de diálogos a respeito
da necessidade de “investir” na família, o que permite observar que são falas atravessadas
por perspectivas morais, religiosas e atualmente políticas. Observa-se como exemplo no
Brasil o discurso político moral que elegeu o atual presidente a partir da perspectiva de in-
vestimento na “família brasileira”.
Essa proposta moderna que coloca a família de forma responsável pelos males que
possam ocorrer aos seus filhos, pode ser considerada injusta a partir do momento em que
se compreende que nunca a parentalidade foi possível sem a conexão com as dimensões
culturais e sociais. Individualizar essa prática. É reforçar o discurso institucionalizador ca-
pitalista. As buscas pelas instituições e pessoas de apoio evidenciam a necessidade de
pensar a parentalidade como um fenômeno também coletivo, marcado evidentemente pelos
atravessamentos intersubjetivos.

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