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04/10/2023, 21:02 Bonecas Abayomi: o perigo de contar uma história hegemônica

CULTURA SOCIEDADE

Bonecas Abayomi: o perigo de contar uma história hegemônica


Rever a história das bonecas abayomi é uma forma de combater a dominação do colonialismo acondicionada em discursos únicos

Eduarda Ramos
Publicado em 30.08.2021

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Resumo

A narrativa sobre a criação das abayomis, fortemente presente no ideário popular, é uma história que deve ser colocada em debate por não
existir registro histórico que associe a origem das bonecas ao período colonial.

M uito se fala que as bonecas abayomi eram feitas por mães em navios negreiros, como forma de gerar segurança e transmitir
afeto para os filhos que as acompanhavam no trajeto. Frequentemente, é vendida como “símbolo de resistência” da cultura
negra em diáspora. A narrativa que sustenta as abayomis, apesar de fortemente presente no ideário popular, é uma história
romantizada que deve ser repensada e colocada em debate. Afinal, não existe registro histórico que associe a origem das bonecas ao
período colonial.

Esta versão recente da abayomi foi criada pela brasileira Waldilena “Lena” Serra Martins, artesã maranhense nascida em 1950. Em um
contexto no qual os Centros Integrados de Educação Pública (Ciep) estavam em plena expansão, na década de 1980, e o cargo de

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animador cultural era o principal mediador entre a cultura local e o contexto pedagógico. Foi no Rio de Janeiro, cidade onde Lena
cresceu, que a produção de abayomis tomou forma. Embora existam outras bonecas similares, a artesã desenvolveu a técnica para
criação das bonecas em 1987. Enquanto era coordenadora de animação cultural no Ciep Luiz Carlos Prestes, localizado na Cidade de
Deus, bairro da zona oeste do Rio de Janeiro.

A história romântica é mais fácil de ser digerida

Para Carlos Machado, historiador e autor do livro “Gênios da humanidade – ciência, tecnologia e inovação africana e
afrodescendente”, a disseminação da narrativa da boneca oriunda de navios negreiros “se insere nessa sociedade que prefere o conto
de fadas, que prefere o mito”. Em um país tão desigual, violento e cruel como o Brasil, onde ainda há pouca reparação histórica para
a população afrodescendente e indígena, o mito surge “para aplacar um pouco a culpa, a responsabilidade, do que foi feito com
essas populações”. Nesse sentido, a narrativa romantizada sobre as abayomis também é cruel. Por invisibilizar o trabalho de Lena
Martins, negando a autoria de um símbolo cultural à autora ainda viva.

Para a historiadora e pesquisadora de religiões afrodiaspóricas Luciane Adriano, “sendo trágica ou horrível, precisamos ter o
compromisso de contar a história da forma que ela é, para não ser repetida erroneamente.”

“O Brasil tem uma tradição de história hegemônica, contada pelo ponto de vista dos vencedores”

Versão sobre a história da abayomi

A versão distorcida da história da abayomi deve ser refutada, por idealizar uma visão romântica da diáspora africana com a intenção
de amenizar acontecimentos bárbaros. “Não temos nenhum registro documentado das mães levarem seus filhos [nos navios
negreiros]. Os traficantes de escravos geralmente não traziam crianças pequenas porque elas não tinham ‘valor’ nenhum”, explica a
historiadora.

“As mulheres eram separadas de suas famílias. E algumas das crianças menores que entravam nos navios eram
jogadas no mar, o que torna a diáspora africana ainda mais trágica”

Retalhos, saberes e memórias

Para Lena Martins, a versão popular das bonecas abayomi terem nascido em navios negreiros surge de um comportamento de
sempre “querer colocar o povo preto e descendente em ambientes péssimos, associando nossa vida e tudo o que se faz nela ao pior
lugar”. A criadora das bonecas conta que o processo foi muito orgânico. Antes de chegar às abayomis, a artesã confeccionava
bonecas de pano e de palha de milho. “Eu não tinha um projeto em mente, só estava vivendo o momento. A boneca não tinha nome,
quando eu comecei a fazer a abayomi, a ganhar um formato, um jeito, era só ‘boneca negra sem cola e sem costura’”, diz.

De acordo com Gomes, Bizarria, Collet e Sales, pesquisadores responsáveis pelo ensaio fotográfico “A boneca Abayomi: entre
retalhos, saberes e memórias”, o nome da boneca surgiu pela professora e militante Ana Gomes. Ela integrava um dos primeiros
grupos de produção de abayomis. Na época, ela estava grávida e dizia que, caso nascesse um menino, se chamaria “Abebe”. Se fosse
menina, “Abayomi”, nome cuja uma das interpretações possíveis é “meu presente”, em yorubá. Com o nascimento do menino Abebe –
de quem Lena é madrinha – o trabalho de múltiplas mulheres negras foi batizado de “Abayomi”. Um nome repleto de identidade e
força ancestral.

Ancestralidade por meio da arte

Além de coordenadora de animação cultural, Lena integrava o Movimento de Mulheres Negras. As abayomis foram criadas em 1987,
um ano antes do centenário da abolição da escravidão. Discussões sobre a redemocratização do país estavam em erupção, tornando
o envolvimento com as abayomis cada vez mais intenso. O resultado desse profundo contato com a boneca resultou no nascimento
da Coop Abayomi. Uma cooperativa de artesãs negras organizadas como “Artesãs Livres Associadas”, que virou um espaço referência
na época.

Feita de retalhos, sem uso de cola ou linha, e dando um novo destino para o que primordialmente seria tratado como lixo, Lena
Martins ressalta que as bonecas abayomi surgem da sequência de acontecimentos em que a busca por identidade é constante.
“Mistura o momento em que eu me envolvo com o movimento de mulheres negras e abro a minha consciência vendo palestras do
movimento negro. Então, eu acho que a inspiração vem daí”, diz.

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Resistência e autoestima

Luciane Adriano reforça que “a abayomi tem o seu valor como objeto de resistência por mostrar um ciclo da vida”. Além de “gerar
possibilidades por meio da criação de autoestima”. A boneca se tornou um instrumento capaz de fomentar elementos de matriz
africana na educação forma. Dessa forma, há o fortalecendo a autoestima do povo preto por meio da afetividade e reconstruindo
histórias de pessoas marginalizadas da periferia do Rio de Janeiro.

“A história não é uma ciência neutra. Talvez a narrativa da Lena Martins não vendesse. Quando a história já vem pronta,
principalmente quando ela é romantizada, é mais fácil de contá-la”, diz Luciane.

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