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E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE


CURSO
“O MITO: ENTRE A FICÇÃO
E A REALIDADE”
COM GUILHERME ALMEIDA E MARCUS BOEIRA

SINOPSE

Em todas as civilizações, de qualquer tempo ou lugar,

os mitos estiveram presentes. Essa permanência invariável,

dificilmente fortuita, nos leva a questionar: qual a importância do

Mito para a formação civilizacional? Quais elementos extraídos da


função mitológica podemos identificar nas culturais ocidentais?

Além de nos debruçarmos nessas questões, também

iremos explorar até que ponto conseguimos enxergar essa herança

arcaica, num termo freudiano, em nossos dias atuais. Será que a

função mítica se perdeu ou se adaptou aos tempos modernos e

contemporâneos? São essas e outras indagações que permearão

as aulas.

BONS ESTUDOS!
INTRODUÇÃO

LUCAS FERRUGEM: Sejam todos bem-vindos ao Núcleo de Formação

da Brasil Paralelo. Hoje nós vamos inaugurar um curso muito especial,

que há muito tempo perseguimos e que, finalmente, foi possível porque

conseguimos reunir os professores Marcus Boeira e Guilherme Vasconcelos.

O tema que vamos enfrentar — “O Mito: Entre a ficção e a realidade” — não é

qualquer tema. É um assunto longo, e por isso, é uma aula mais descontraída,

com uísque, charuto, plateia. Diferente do que nós costumamos fazer aqui

no Núcleo de Formação, esta aula será como um bate-papo. Chamamos

dois professores nos quais confiamos e temos o orgulho de ter conosco

nessa trajetória de busca pelo conhecimento para tratar desse tema.

MARCUS BOEIRA: É de fato um tema instigante, que nos abre um horizonte

de reflexões. Eu espero que possamos enfrentar com coragem, mas não

também sem atentar para as nuances e as especificidades do assunto que

nos é apresentado.

GUILHERME ALMEIDA: O tema aqui pensado foi debatido em restaurantes,

em rodas de charuto com o Marcus. Para ele, é um tema muito caro do

ponto de vista filosófico. Para mim, do ponto de vista histórico, é uma

busca incessante de entender as rupturas dentro das várias civilizações

humanas, logicamente com o eco central na nossa civilização ocidental.

Essa estrutura mitológica, que é um arquétipo tão presente, nós vemos em

todas as civilizações da humanidade com algumas nuances, diferenças e

semelhanças, das quais temos de ter um devido distanciamento, mas que

é um ponto em que a filosofia e a história se dão as mãos, e dessa união

nasce um filho. É um tema muito abrangente e fundamental para as nossas

realidades.

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PART E 1

O QUE SÃO OS MITOS E O

QUE CONTAM SOBRE A VIDA


No passado, estas histórias eram contadas diante de uma grande

fogueira, na volta da qual toda a tribo vinha se reunir. Hipnotizados

por aquelas narrativas, cada homem buscava nelas encontrar um

caminho para a transcendência, um modelo para se inspirar e

persistir. Ao retumbar no peito de todos, levando-os a sentir e entender

profundamente aquilo que não eram capazes de articular e expressar,

criavam uma aura invisível pela ação da qual aqueles ali reunidos

deixavam de ser meros co-habitantes de um mesmo espaço geográfico,

para estarem interligados, tornando-se companheiros das jornadas

uns dos outros.

Com o passar do tempo, as tribos alcançaram dimensões

inimagináveis e as fogueiras foram desaparecendo. Já é outro o cenário

que os homens compartilham. Nossa organização social ficou mais

complexa. Nossas casas, maiores. Ergueram-se muros, prédios, pontes.

Inventaram-se novas formas de comunicação. Mas tal como nossos

antepassados, não resistimos ao chamado de uma boa história. Quando

lemos um livro ou vamos ao cinema assistir a um filme, ansiosamente


almejamos a mesma sensação que tomava os corpos daqueles que nos

antecederam. Apesar de todas as diferenças, o essencial permanece

inalterado. Eis a forma com que todos, desde os tempos mais remotos,

perscrutam os mistérios primordiais.

Honremos o hábito daqueles que nos trouxeram até aqui,

acendendo mais uma vez uma fogueira simbólica, para conversarmos

justamente sobre essas histórias que têm nos engrandecido e reunido

há tanto tempo: os mitos.

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LUCAS FERRUGEM: Desde a criação da Brasil Paralelo, nosso slogan é

“Onde há vontade, há um caminho”. Ele vem do estudo dos mitos e do

estudo de Joseph Campbell1 a esse respeito. Como é que poderíamos

compreender, como nos encaixar nessa história. Para começar, eu queria

propor a seguinte reflexão: o que são os mitos e o que eles nos contam

sobre a vida?

MARCUS BOEIRA: Essa é uma pergunta absolutamente fundamental

para o entendimento de três perspectivas muito importantes para a vida

humana, seja na sociedade, seja na vida interior, seja na visão de mundo de

um ser humano a respeito de si e dos outros na história. Quando buscamos

uma resposta sobre o que é o mito, temos de levar em consideração, de

antemão, que os mitos desempenham uma função de alta monta na

civilização humana, porque eles buscam, em primeiro lugar, narrar

a origem da civilização e, dessa forma, mobilizar narrativamente os

modelos morais e humanos mais elevados que devem de alguma forma

pautar a história daquela civilização sem, no entanto, criar uma espécie

de fechamento metodológico.

Dentro dessa função do mito — a de tornar expressivo e visível um

conjunto de modelos humanos, um conjunto de padrões estéticos e


éticos que alcançam a excelência nas formas de vida humana —, os mitos

procuram fazê-lo desde um ponto de vista universal. Por isso, quando

falamos em mito, estamos tratando de algo que narra as experiências

humanas fundamentais, mas sempre articulando essas experiências com

a origem, com o princípio, com a ideia de começo.

Aqui me parece o ponto de encontro, no mito, entre a história e a

meta-história. E esse encontro da história com aquilo que transcende

a história é o que traz, para os âmbitos do filósofo e o do historiador, a

sede investigativa pelas origens e princípios da civilização, ora do ponto

de vista dos princípios em si mesmos, ora do ponto de vista dos modelos


1  Joseph Campbell (1904-1987), mitologista, escritor, conferencista e professor universitário norte-americano, fa-
moso por seus estudos de mitologia e religião comparada, autor da obra O Herói de Mil Faces, publicado em 1949.

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sociais herdeiros e derivados desses modelos iniciais. É isso que desde o

início trouxe ao Guilherme e a mim — e esse diálogo existe desde 2006

— essa ideia que sempre buscamos de encontrar razões, fundamentos e

justificativas para a questão dos mitos, através de uma maiêutica, porque

é um método individual, e também de uma dialética, porque é um modelo

conjunto nosso. Do ponto de vista histórico, acho que podemos tecer

excelentes análises muito mais próximas da ciência histórica.

GUILHERME ALMEIDA: O que é interessante da questão é que as formas

primitivas iniciais do mito estão presentes nas civilizações que o mundo

esqueceu, das quais atualmente vemos os ecos na nossa realidade. Os

gregos atuais obviamente têm uma certa herança geográfica, mas muito

se perde do status inicial da sua civilização. Contudo, esse arquétipo —

utilizando o termo de Jung2 — se faz presente naquilo que parece que é

a constituição do que é o ser humano. E a civilização é clara nisso: parece

que o arquétipo, o mito, a ideia mitológica está presente no ser humano.

Independente de nossa época histórica, os mitos são sempre retomados,

com novos valores e novos símbolos, mas são sempre retomados, porque

parece que são inerentes à condição humana. Se é de Papua-Nova Guiné,

da Austrália, da Tessália ou de Londres, há uma estrutura única desse tipo


de linguagem e entendimento da humanidade.

Arcaico e primitivo por quê? Por causa do desenvolvimento

civilizacional, econômico e político da localidade. Quando analisamos

uma tribo aborígene, em contato com todo aquele universo que, para o

indivíduo, é deificado, teísta — ele chama a montanha, o rio ou o animal de

“irmão” porque participa, é coautor desse mundo das maravilhas da criação

—, ele dá sentido a uma pergunta que é latente (parece que isso também

está dentro da nossa ideia de modelo): o que eu sou, de onde vim e para

onde vou. Essas são questões batidas, mas continuam pululando, e é

2  Carl Gustav Jung (1875-1961), psiquiatra e psicoterapeuta suíço fundador da psicologia analítica. Seu trabalho
tem sido influente na psiquiatria, psicologia, ciência da religião, literatura e áreas afins.

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justamente nessa linguagem arquetípica dos mitos que o cercam que

ele vai se sentir seguro para tentar entender.

Aí que o mundo moderno infelizmente começa a esquecer de uma

meta-história, de um algo para além da história cotidiana. O maravilhoso

provérbio aborígene, “Somos todos visitantes deste tempo, deste lugar.

Estamos só de passagem. Nosso objetivo é observar, aprender, crescer

e amar, e depois voltar para casa”, arrepia porque faz eco; e faz porque é

da condição humana. E se existe um laço que a história consegue ver

(pelo menos a minha leitura da história) que nos coloca lado a lado com

civilizações arcaicas de qualquer lugar do mundo em suas várias épocas

históricas, é esse modelo do qual vamos em busca para tentar entender

o nosso lugar no mundo. E aí que eu acho que há um ponto da filosofia

para dar sustentação a esse entendimento, porque virão as linguagens

simbólicas. Toda aquela maravilha de chaves simbólicas que aparece tanto

na Poética quanto na Retórica, quanto nos modelos literários ou não, são

os meios de acesso para dar entendimento. Contudo, a pergunta inicial é a

mesma, quer você esteja dormindo ao relento no deserto australiano, quer

esteja em uma cobertura em Manhattan.

MARCUS BOEIRA: Quando observamos a narração de um mito, percebemos


claramente um vivo desejo investigativo por aquilo que é inefável, por

aquilo que não pode ser explicado pelo aspecto puramente racional ou

pela parte operativa da inteligência. É necessário algo adicional que possa

ofertar respostas para os dilemas humanos, para os contrastes presentes

no interior da psique humana. E isso é uma questão muito presente no

mito porque, ao invés de o mito tentar responder a esses dilemas de uma

forma exaustiva, ele faz justamente o caminho inverso: procura suscitar

aspectos misteriosos no interior dessa narração para que o leitor possa, no

contato com essa narrativa, absorver uma plêiade de sentidos que vai de

alguma forma preenchendo-o.

Tomemos por exemplo para ver isso o caso de Zeus e Cronos. Zeus tira

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seu pai Cronos do poder e liberta os seus seis irmãos nascidos antes dele.

Cronos engolia todos os filhos, e sua mãe, em profunda aflição de entregar

o próprio filho a Cronos, escondeu Zeus e deu uma pedra no lugar, e Cronos

a engole. Passa o tempo, Zeus, formado e cuidado pelas ninfas, volta com

uma força descomunal, destrona Cronos e assume o trono do Olimpo. Numa

concepção moral ou ética, Cronos era um deus “mau”, mas depois de um

certo tempo ele assume uma nova divindade: torna-se o deus Saturno nos

povos de Roma, o deus da agricultura. Isto é, o deus da vida, aquele que

projeta a vida por meio da natureza. Então de um mal ele alcança uma

estatura de beatitude.

Quando encarado do ponto de vista do observador humano, como

esse tipo de narração se apresenta no interior do homem e dentro dessa

plêiade de sentidos humanos? O leitor imparcial a lerá na chave de que ele

pode assumir certos caracteres de Zeus e de Cronos na sua própria vida. Em

outras palavras, o bem e o mal estão nele, e o modo como deliberará nas

circunstâncias da própria vida e pautará a sua própria existência segundo

determinados modelos de ação é o que justamente responderá à sua

própria condição e, portanto, preencherá o horizonte interior dele com

sentidos e significados.
Nesse caso, por exemplo, percebemos de maneira cristalina que,

do ponto de vista do vínculo da história com a meta-história, o mito

desempenha pelo menos três funções importantes. A primeira delas é

aquela que convida o intelecto ao encontro com a consciência. O intelecto

chega ao estágio final das suas operações racionais e percebe, por um ato

simplíssimo da inteligência, que perante a consciência ele não é capaz de

alcançar todas as concepções a respeito da verdade. Ou seja, o intelecto

conclui que não é capaz de tudo. Aristóteles3 tem uma frase muito famosa

no De Anima: “O intelecto é todas as coisas”, mas ele diz isso desde um ponto

de vista potencial e não atual. Ou seja, o intelecto é potencialmente capaz


3  Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.), filósofo grego durante o período clássico na Grécia antiga, fundador da escola
peripatética e do Liceu, discípulo de Platão e professor de Alexandre, o Grande.

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de conhecer todas as coisas, mas, no espaço da vida humana, ele é incapaz

de conhecer a totalidade. E um modo de tornar o intelecto consciente e

autorreflexivo a respeito da sua própria incapacidade é justamente esse

contraste que se dá no interior humano entre a inteligência e a consciência,

porque a consciência precisa de uma narração que apresente sentidos

para essa limitação. A consciência apropria-se de formas de narrativas que

elucidam isso de uma maneira mais clara para o horizonte humano. E, para

tanto, nada melhor do que o próprio mito.

Existem outras duas que são importantes e adjacentes a esta. A

segunda função é que o mito apresenta um conjunto de respostas acerca

de mundos possíveis que transcendem ao horizonte histórico. Ou seja,

o mito não está determinando as condições do que é eterno e inefável,

muito antes pelo contrário: ele está apresentando uma chave possível, uma

janela representativa de um mundo que só faz sentido se tomado numa

perspectiva em que a história da própria vida e a da humanidade estejam

ancoradas na meta-história. É como se o mito desempenhasse uma

segunda função, que é — usando uma expressão de Paul Ricœur4 — a de

solicitude: ele solicita a autotranscedência do ser humano. O ser humano

se vê em um estado de coisas em que se enxerga como alguém incapaz de


fazer esse processo; então ele precisa de uma narrativa, e essa narrativa é

fornecida pelo mito.

Experimentem contar um mito a uma criança, e perceberão que

muitas vezes é mais fácil para ela entendê-lo do que um adulto, porque

a criança não tem os padrões cognitivos bem definidos, não tem ainda

os graus do juízo bem constituídos. Lembremos que o juízo é um ato

operacional da razão, ele é o que nos leva à dúvida, à incerteza, ao âmbito da

não credibilidade a respeito das proposições. Como a criança não tem ainda

o juízo bem formado — porque lhe falta o aspecto operativo do intelecto,

que é a razão —, então a absorção do mito para uma criança é muito mais
4  Paul Ricœur (1913-2005), um dos grandes filósofos e pensadores franceses do período que se seguiu à Segunda
Guerra Mundial.

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fácil.

E por que isso acontece? Aí entra a terceira função. O mito oferece

uma espécie de padronização objetiva dos atos humanos. Qual destino

deve ter um ato humano? Qual aspecto reflexivo deve ter uma ação ou

uma abstenção humana desde um ponto objetivo? Se o que eu fiz foi

adequado ou não, foi bom ou não, onde vamos buscar esses padrões? Nós

buscaremos esses padrões em modelos que me são apresentados desde

um âmbito mimético no primeiro momento — porque aqui é como se

estivéssemos num nível meramente estético —, mas à medida que vamos

aprofundando não só na leitura do mito, mas na reflexão a respeito da

nossa vida no mito e vice-versa, vamos penetrando o mundo dessa terceira

função, que é o mundo da significação moral dos atos humanos. Veja a

riqueza extraordinária que o mito tem para a condição humana, como dizia

o Guilherme.

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PA RT E 2

OS MITOS AINDA TÊM UMA

FUNÇÃO HOJE?
Toda vida humana contém em si um mistério. Inacabados por

natureza, somos confrontados com a possibilidade de perseguir o nosso

eu ideal ao longo de nossa trajetória. O bom sucesso dessa empreitada

depende de um passo primordial: estarmos cientes do que significa

a condição humana. É a partir dessa consciência que nos tornamos

capazes de dar início a um processo de autotransformação.

Os mitos, narrativas presentes em qualquer lugar ou tempo

em que se erigiu uma civilização são o recurso perene para que os

indivíduos encontrem a si e ao sentido de sua existência nessa busca

por transcender a sua situação.

Hoje, essas histórias assumiram uma forma diversa, impedindo-nos

de facilmente identificar o uso que delas é feito no nosso cotidiano. Por

seu caráter imprescindível, é nosso dever explorar o que nossa sociedade

faz dos mitos hoje e para que essa ferramenta é e pode ser empregada

no contexto atual.

LUCAS FERRUGEM: Eu queria fazer uma pergunta em cima disso. Foram

colocadas uma série de características extremamente importantes dos


mitos, uma importância que eles têm na vida. O primeiro contato que um

estudante acaba tendo com isso são as primeiras histórias — mitologia

nórdica, grega e tal — que são encontradas em qualquer livraria. A minha

pergunta é: as histórias perderam a função ou estão camufladas e não

percebemos? Elas só tiveram função em tempos passados?

GUILHERME ALMEIDA: Aproveitando o que o Marcus disse sobre a facilidade

de uma criança entender um mito, Chesterton5, no início do século XX,

aponta que as crianças perderam as grandes amas que sentavam-nas

no colo e lhes contavam histórias. E ele também diz que criança é tão

magnífica que, quando lhe é narrado que “Então ele foi e abriu a porta”, [a
5  Gilbert Keith Chesterton, (1874-1936), mais conhecido como G. K. Chesterton, foi um escritor, poeta, filósofo, dra-
maturgo, jornalista, palestrante, teólogo, biógrafo, literário e crítico de arte inglês.

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criança realmente se impressiona]; ao passo que, para o adulto, é apenas a

porta foi aberta. O mundo está tão maravilhosamente simbólico na cabeça

da criança que ela imagina possibilidades mil. Com relação a isso, Bruno

Bettelheim6 e Marie-Louise von Franz,7 por exemplo, analisam o poder do

conto de fadas para as crianças, a importância desse tipo de narrativa, de

histórias primeiras, e mostram que ela é fundamental e sempre tem de ter

um final feliz. No fim, a personagem não pode morrer, ela tem de estar

viva porque passa todos os perrengues para, no fim, receber o prêmio. É

a esperança dada. Eu acho que isso está camuflado em alguns casos.

No século pós-iluminismo começa a haver uma alteração. O arquétipo

continua, contudo o enredo é deturpado ou é outro.

Mas antes de prosseguir nesse aspecto, eu queria abordar a menção

do Marcus à cosmogonia grega tão bem contada por Hesíodo na narrativa

de Cronos e Zeus. Aí estamos numa apreensão de uma história narrada, e

os gregos entendiam aqueles modelos. Na civilização primitiva dos povos

de Papua-Nova Guiné, o deus central é o crocodilo, e o próprio símbolo

iniciático do guerreiro-menino virando adulto é ter em si as marcas do

próprio deus, e isto é algo que não vemos no desenvolvimento civilizacional

de gregos, romanos e até egípcios. O próprio corpo recebe a marca do


deus. Esses rituais são realmente dolorosos, mas isso é o de menos porque

o fundamento é que o deus o pegou, comeu e regurgitou em um novo. As

marcas das cicatrizes nas costas, nádegas e pernas sinalizam que aqueles

guerreiros foram escolhidos pelo deus, que os engoliu e os expeliu com

sua marca. O que é interessante é que nas civilizações gregas, egípcias e

mesopotâmicas não existe a marcação do deus em si, mas o entendimento

intelectual dele. Aí há uns saltos quantitativos das civilizações, da ideia

primitiva de um deus está aqui e da ideia civilizacional de um deus abstrato.

Christopher Dawson8 diz que as civilizações são marcadas por


6  Bruno Bettelheim (1903-1990) foi um psicólogo judeu norte-americano, nascido na Áustria.
7  Marie-Louise von Franz (1915-1998), psicoterapeuta analítica, pesquisadora e escritora da Alemanha, mas ativa
na Suíça, importante continuadora do trabalho de Carl Jung.
8  Christopher Henry Dawson (1889- 1970), estudioso independente britânico, que escreveu inúmeros livros sobre
história cultural e cristandade. Dawson foi chamado de “o maior historiador católico de língua inglesa do século XX”.

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quatro aspectos centrais (o que é refutado por muitas historiografias da

new left ou da Escola de Annales): geográfico, econômico, psicológico

e o que de certa forma será a sua organização cultural. Em qualquer

estrutura humana esses quatro aspectos — geografia, economia, cultura

e psicologia — estão sempre presentes. Não adianta jogar na lata do lixo

a ideia mitológica porque ela é parte inerente da formação civilizacional.

Você pode ser ateu, do movimento Hare Krishna ou o que quiser, mas a

ideia central está ali: há um modelo. Porém, o problema é o que constituirá

o modelo para ele se tornar aquilo que organiza a sociedade..

Weber dizia que há formas de dominação legal, hereditária ou

carismática. As formas legal e hereditária, encontramos na Mesopotâmia.

E a carismática? Parece que é a chave atual de uma liderança. Quando

você vê um líder, ele prefigura um modelo a ser seguido. Se ele roubou,

se fala besteira, não interessa, aquele é o modelo elegido para ser imitado.

E isso é um problema porque todas as rupturas históricas são causadas

por agentes estrangeiros, ou por invasões, ou por uma cultura que entra

silenciosa no seu status quo e altera biologicamente o ser humano. A

civilização é conservadora. Ela conserva a economia, a prole, e isso é mudado

por intervenções externas para criar um novo padrão. Dessa forma, há a


quebra de um paradigma, de um lado, e o início de uma nova perspectiva,

um novo modelo, de outro.

No caso dos contos de fada, o que os Irmãos Grimm9 fizeram? Quando

lemos “Chapeuzinho Vermelho”, notamos que não é o que a nossa avó leu

para nós. Parece um conto tipo erótico daquelas coleções de romance

Sabrina e Bianca em que há sempre o galã. O conto de Chapeuzinho

Vermelho é extremamente violento, ao contrário da narração dos Irmãos

Grimm, que deram um tapa no século XVIII nas histórias. A história é a

mesma, mas a lição é outra. É uma menina que estava saindo da condição

9  Irmãos Grimm, Jacob (1785-1863) e Wilhelm (1786-1859), ambos acadêmicos, linguistas, poetas e escritores
alemães, dedicaram-se ao registro de várias fábulas infantis.

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de criança e entrando na de adulta; e o lobo tem um papel fundamental

porque ele é o próprio falo. Nos Irmãos Grimm é tudo muito maquiado.

E é assim, não porque eles foram sacanas, mas porque talvez a estrutura

anterior não dizia mais às pessoas que escutavam aquela narrativa ao

redor das fogueiras. Do meu ponto de vista, há, sim, uma desfiguração

daquilo que foi, para o bem e para o mal. Mas lá trás ainda existe esse

modelo. O problema é com o que você recheia essa fôrma.

MARCUS BOEIRA: A princípio estou inteiramente de acordo com a maior

parte do que o Guilherme expôs e diria também o seguinte: quando

sondamos o mito, nós o fazemos buscando alguma resposta acerca de um

mistério que é compartilhado por nós, seres humanos, e o é justamente por

nós enquanto seres em alteridade. É um mistério que está em nós e para o

qual ainda não conseguimos respostas satisfatórias. Não é que o mito dará

essas respostas; ele não o faz, ele não traz respostas definitivas. O que ele de

fato faz é apresentar algumas chaves interpretativas que nos permitem

interpretar a nós mesmos e a nossa posição na história, buscando um

esclarecimento acerca não do que o mistério é, mas sobre sua estatura,

ou seja, a constatação de que ele está ali. Essa constatação é fundamental

para que o ser humano possa transcender a sua visão meramente


esteticista da realidade, a sua visão a respeito da própria sociabilidade,

a dependência com os outros, o modo como se comporta em público, a

imagem que tem de si, a imagem que constrói para ser reconhecido como

tal. E esse ser humano que o faz, passa a ter como direção mais forte do seu

mundo intencional interior essa busca profunda por dilucidar o mistério:

primeiro por entendê-lo e depois por perscrutar o próprio coração.

O mito é uma ferramenta excelente para esse processo, e quando

o constatamos — e aí os contos de fadas são excelentes para mostrá-lo—,

isso nos traz uma série de desafios, porque nos apresenta um mundo

interior no qual a responsabilidade vai se tornando mais pesada do que a

imagem pública; a ética vai se tornando mais forte em nós do que o mero

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esteticismo; o aspecto substantivo do nosso eu interior vai se tornando

cada vez mais latente; e a nossa dimensão social, a nossa condição de

sociabilidade natural, embora não perca força, vai deixando de ter aquele

protagonismo inicial. E, quando isso acontece, percebemos algo no ser

humano que é ínsito ao ato de ser pessoa: a condição de alteridade. Nós

somos seres de relação. São Tomás10, na sua Suma Teológica, diz “O ser

humano é um ser de relação”. Isto é o que define pessoa: um ser de relação.

E a relação que nós temos é com os outros e também conosco — esse é

um fato muito importante. É o idem e o ipse, como diz Paul Ricœur , é o

pronome pessoal e o pronome demonstrativo.

Esse pronome demonstrativo é este que sou eu, que é o eu ideal

que projeto de mim mesmo, o eu que quero ser; não o eu que estou sendo

agora, e sim é o eu que almejo ser. E esse modelo humano que projeto é

um modelo que me impõe a uma alteridade, uma autotransformação.

Essa autotransformação, que é acompanhada por uma literatura mito-

poética, uma literatura que vai a todo momento me impor problemas —

ou seja, dizer que eu não sou capaz de conhecer todas as coisas — e ao

mesmo tempo vai me solicitar um ato muito responsável, que é o de ter

o dever de transformar a mim mesmo e, por conseguinte, transformar os


outros à minha volta. É como se o mito tivesse uma missão antropológica

altamente significativa para a civilização e, ao cumpri-la, ele também tem

uma dimensão histórico-social. É nessa chave que ele tem a dimensão

histórico-social. Se não fosse assim, nós teríamos a tendência de interpretar

o mito apenas na chave do que Durkheim chamava de “solidariedade

mecânica”; ou seja, o mito impõe uma sociedade fechada com uma liturgia

social, e aqueles que saem são os bodes expiatórios.

E quando nós interpretamos o mito, não na chave meramente

sociológica — que é essa da solidariedade mecânica, na qual o mito

10  São Tomás de Aquino (1225-1274), frade católico italiano da Ordem dos Pregadores (dominicano) cujas obras
tiveram enorme influência na teologia e na filosofia, principalmente na tradição conhecida como Escolástica. Con-
hecido como Doctor Angelicus, Doctor Communis e Doctor Universalis.

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desempenha uma função de penalizar aqueles que saem da liturgia social

bem constituída —, mas na chave antropológica — que é aquela que nos

convida a verificar a condição humana desde um ponto de vista privilegiado,

mas não menos profundo ––, percebemos que o mito vai desempenhar uma

função mais significativa na vida do ser humano, que tem uma relação direta

com o sentido da existência. Essa relação direta com o sentido da existência

se impõe a nós no instante mesmo em que a nossa consciência absorve

esses estados e modelos humanos, que de alguma forma involucram um

estado psicológico que se harmoniza com o estado intelectual, um modelo

psíquico autocentrado de um ser humano forte e ciente de si, mas que

está aberto à ordem das coisas e à realidade. O mito, portanto, nos traz a

consciência da nossa própria alteridade. Somos seres em alteridade (alter

significa o outro).

Há uma sentença de Plauto11 da qual eu gosto muito: “Fortiter

malum qui patitur, idem post patitur bonum” (“não se alcança o bem sem

sacrifício”). E o modo como os mitos estabelecem instituições e processos

litúrgicos e sociais nas sociedades chamadas “arcaicas”, apresenta-nos

duas perspectivas de respostas: uma apoiada na tese da solidariedade

mecânica de Durkheim12, em que o mito é apenas uma projeção de


opressão sobre uma sociedade de servos e que não tem liberdade (é uma

chave de leitura estruturante); outra segundo a qual a liturgia desponta

no mundo antigo como uma via de acesso à cosmogonia e cosmologia,

ou seja, não é apenas o acesso à vida do espírito, mas é o esgotamento da

razão a respeito dos processos institucionais que conduzem a essa vida do

espírito. E isso tem uma importância crucial na história das civilizações. Por

que as civilizações da Antiguidade — os povos da Suméria, os da Babilônia,

os da bacia da Mesopotâmia —, duraram tantos séculos e milênios? Porque

11  Tito Mácio Plauto (230 a.C. - 180 a.C.), dramaturgo romano, que viveu durante o período republicano. As 21 peças
suas que se preservaram até os dias atuais datam do período entre os anos de 205 a.C. e 184 a.C. Seus trabalhos
inspiraram muitos escritores, tais como Shakespeare, Molière e outros.
12  David Émile Durkheim (1858-1917), sociólogo, antropólogo, cientista político, psicólogo social e filósofo francês.
Formalmente, tornou a sociologia uma ciência e é comumente citado como o principal arquiteto da ciência social
moderna e pai da sociologia.

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a liturgia social não desempenhava apenas uma função estruturante,

ela desempenhava uma função absolutamente fundamental para a

autoconsciência daqueles seres humanos.

Eric Voegelin13 faz uma divisão muito interessante entre as civilizações

cosmológicas e a civilização radicada em uma experiência carnal da

Revelação, que é a civilização cristã. Há nas civilizações antigas uma espécie

de contraste entre o mytho e o logos, entre a vida da consciência e a vida da

razão. Esse contraste, do meu ponto de vista, é muito mais uma classificação

da filosofia moderna do que propriamente uma explicitação do que de fato

aconteceu no mundo antigo. O que Eric Voegelin mostra, do meu ponto

de vista, e é muito elucidativo para essa questão, é que nas civilizações

cosmológicas existe uma estrutura segundo a qual a razão está a todo

momento desconfiando de si mesma, ela está a todo momento querendo

decifrar esse mistério, ainda que não o toque. Se lermos um diálogo como

Timeu de Platão14, vamos ver esse esforço o tempo todo. Platão está tentando

decifrar aquelas leis permanentes do universo: ou ele vai pela geometria,

ou pela metafísica; ou toma o caminho da natureza humana para tentar

decifrar certos mistérios lá dentro, ou opta pela tese mítica do demiurgo,

que aparece como uma espécie de verbo, de logos divino, ainda que não seja
o deus que dispõe ordenadamente todas as coisas. Ou seja, na perspectiva

platônica, nós observamos sempre essa alternativa de dar o salto para além

da própria condição histórica; ao passo que, na perspectiva da civilização

cristã, há a Revelação, isto é, a aproximação do que é atemporal na história.

E essa manifestação atua — usando uma expressão do Hans Urs von

Balthasar15 — “como norma irrepetida e absoluta da história”, justamente

porque é algo que se manifesta com todo o sentido e a significação numa

pessoa real.

13  Eric Voegelin (1901-1985), filósofo e professor de filosofia política germano-americano.


14  Platão (428/427-348/347 a.C.), foi um filósofo e matemático do período clássico da Grécia Antiga, autor de diver-
sos diálogos filosóficos e fundador da Academia em Atenas, a primeira instituição de educação superior do mundo
ocidental.
15  Hans Urs von Balthasar (1905-1988), sacerdote, teólogo e escritor suíço. É considerado um dos mais importantes
teólogos do século XX.

19
E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
PA RT E 3

O SÍMBOLO E A UNIDADE
Na história, não são poucos os povos que, partilhando o mesmo

território, não se reconhecem como pertencentes a uma mesma

comunidade. A proximidade física, justificativa plausível para união,

encontra nesses casos uma reverberação contrária, fazendo-os nutrir

uma intensa rivalidade. Separando-os nem sempre há muros ou

barreiras; no seu lugar, impõe-se um elemento invisível, a cultura, que

determina que são os membros aceitos naquela sociedade.

E se não é a localidade geográfica em que repousa o senso de

unidade, precisamos nos indagar a respeito da origem das civilizações

e como os símbolos míticos contribuem para a formação do vínculo das

comunidades.

LUCAS FERRUGEM: Os símbolos parecem ter uma certa unidade que não

abandonamos; eles continuam bem presentes na nossa vida, sejam os mais

antigos ou até alguns que aparecem por aí. E o Marcus colocou muitas vezes o

papel da relação social versus a carga ética, versus a consciência de si mesmo

— talvez não contra, mas coexistindo junto com esse amadurecimento. E aí

eu lembro de alguns mitos que usaram essa relação social com símbolos

muito fortes (no século XX há inúmeros), e talvez encontremos hoje mitos


através das marcas — há autores que trabalham nessa linha —, como o da

Nike ou da Apple. A logomarca é um símbolo da nossa era de um mito

em que acreditamos. No século XX também tivemos o mito do Terceiro

Reich: usando uma suástica, todos se acham unidos como seres humanos

de relação. De onde sai historicamente essa força do símbolo que une para

todos os sentidos? Não é necessariamente mau ou ruim, mas ele tem esse

poder de unificação social.

GUILHERME ALMEIDA: Eric Voegelin tem um livro pequenininho chamado

As Religiões Políticas, e a primeira análise que ele faz é de Akhenaton. Isso

tem a ver com sua pergunta anterior, e eu queria costurar esses dois com

as questões do Marcus.

21
E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
Quanto à questão de alteridade nas civilizações antigas, na

cosmogonia, vemos os deuses criando e sendo partícipes de toda formação

da sociedade — ou seja, da cosmogonia se passa para a cosmologia —,

então é a própria ideia arquetípica dos deuses que são os modelos para

a cosmogonia. Nós utilizamos “n” padrões dos mitos para exemplificar

e acalentar as indagações do humano. O interessante é que se passam

os séculos e começa-se a mudar o padrão arquétipo da cosmogonia para

somente a cosmologia. Se há deuses mandando nos reis, então eles são

como se fossem continuidade daquela ideia da vontade divinizada. A partir

de um certo momento, esses próprios reis são reis-deuses. E em dinastias

da civilização do Egito Antigo, isso é claro. Então é o faraó quem vai começar

a se tornar o próprio arquétipo a ser seguido. Se cortarmos a história da

humanidade como se fosse uma célula, veremos que sai o padrão dos

deuses e entra o padrão dos deuses com o homem. Esse homem de carne

e osso é o próprio deus, não é mais a vontade de um deus. Essa alteridade

ainda continua sendo com resquícios da ideia meta. Quais são os padrões

de alteridade hoje? É o outro homem mesmo. Não existe mais o padrão

cosmogônico, e sim um padrão humano.

E os símbolos são fundamentais porque são as linguagens próprias


do mito. A linguagem mitológica é simbólica do começo ao fim. Se você tira o

logotipo da logomarca Nike e deixa apenas o símbolo visual, a asa estilizada,

continua sendo Nike. Basta ver a maçã mordida para saber que é Apple.

Esses símbolos visuais encerram todos os conceitos atrelados ali àqueles

produtos. O maravilhoso Dicionário de Símbolos, de Jean Chevalier16 e

Alain Gheerbrant17, é fundamental para vermos como esses símbolos estão

presentes na estrutura civilizacional. Tanto o símbolo escrito (uma palavra)

como o símbolo apenas gráfico dizem a cada um de nós, eles tocam em

16  Jean Chevalier (1906–1993), escritor, filósofo e teólogo francês, mais conhecido pela sua co-autoria do Di-
cionário de Símbolos, uma obra enciclopédica de antropologia cultural, co-escrita com o poeta francês e explo-
rador amazônico Alain Gheerbrant, dedicada ao simbolismo dos mitos, sonhos, hábitos, gestos, formas, figuras,
cores e números encontrados na mitologia e no folclore.
17  Alain Gheerbrant (1920-2013) foi um escritor, editor, poeta e explorador francês, conhecido pela sua expedição
dentro das bacias dos rios da Amazônia.

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E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
cada eu que, somados, formam uma determinada civilização. É muito

interessante esse ponto.

Como assinalado pelo Marcus, Zeus em Roma vira Saturno. O deus

é o mesmo, mas ganha uma nova significação dentro daquela civilização.

Quando começamos a ver mito e deuses, há um panteão, é o politeísmo

fervendo. Cada deus é um arquétipo de uma coisa. Hoje em dia, se quer

casar, coloca a imagem de Santo Antônio de cabeça para baixo na água;

se perdeu alguma coisa, recorre a São Longuinho. E se você está no Egito

Antigo vai rezar para a deusa tal para a sua esposa ter um parto bom, para

a criança vir saudável. São manifestações de uma identidade cosmogônica

em várias situações.

Quando vemos essa ideia de mito permeando toda a ideia religiosa, aí

as figuras humanas de sacerdote e de reis-deuses começam a se apropriar

dessa dimensão. Vemos isso nos povos mesopotâmicos do Crescente Fértil,

do Tigre e do Eufrates à beira do Nilo, o povo da região de Taklamakan na

China e na Índia, independentemente. Há uma transformação dos deuses

para deuses encarnados e, ao longo da história da humanidade, esses

deuses são esquecidos, ninguém mais os invoca, eles estão colocados de

lado. O Lucas mencionou o mito nórdico. O mito de Ragnarok é maravilhoso.


Há a profecia de que aquela civilização acabaria. E por quê? Por causa do

advento do Cristianismo, que entra e diz: tudo isso acabou.

O homem-Cristo — não estou aqui falando sobre o monofisismo,

atrelando apenas à ideia divina de Cristo, nem sobre o arianismo ancestral

que é apenas a ideia de um Cristo humano — parece prefigurar em si todos

esses antigos arquétipos. Há uma divisão fundamental de Cristo, o antes e

o depois para tudo que vem na civilização cristã ocidental. Há no próprio

ser de Cristo todos esses arquétipos: arquétipo da salvação. Ele é a palavra,

é o Verbo que se faz em ação, que se faz carne. Essa é a ideia interessante,

porque a figura histórica traz em si todos aqueles panteões de definições,

de modelos ancestrais. Essa alteridade foi resgatada, ela agora é no “Verbo

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E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
que se fez”, é numa das três pessoas do próprio Deus, que é o homem-

Cristo. Não temos mais uma ideia abstrata dos deuses, como colocada

muitas vezes pelo judaísmo; agora o Deus é uma figura que andou pela

Terra.

Do meu ponto de vista, isso é impressionante porque é nessa figura

que vem e se funda aquilo que Chesterton diz em A Esfera e a Cruz: “Eu

sou o que está em cima, o que está embaixo e em todos os lados”. Pode ser

pueril em uma análise dessas porque a nossa ideia é fazer uma introdução,

mas, por inúmeras razões, há um desgaste da figura metafísica nessas

estruturas que estavam conservadas ao longo dos séculos, com a entrada

de estrangeiros que chegam e mudam isso. E o estrangeiro pode vir de

dentro da própria organização com novas ideias, com novas formas. A razão,

por exemplo, tão amada e desenvolvida por Sócrates18, Platão e Aristóteles

— a trindade da alegria —, quando eles inauguram todo esse padrão novo

de estrutura mental, também ajudam a desvanecer toda essa tradição que

era cosmológica para uma cosmogônica.

MARCUS BOEIRA: Esse aspecto da trindade (três) está presente em

todas as civilizações, e em particular no Ocidente. E o mais curioso é que

existem muitas formas de abordar esse assunto. Jerusalém, Atenas e Roma,


do ponto de vista político; Sócrates, Platão e Aristóteles, do ponto de vista

da filosofia; Melquisedeque, Moisés e Davi, do ponto de vista da história de

Israel. E, em Cristo, essas coisas que já apareciam de cheio de alguma

forma se encargam de sentido absoluto. Parece que somos convidados a

ver essa dimensão do trinitário na história, tomando por base aquilo que

é o atributo adequado do próprio Cristo. Ele é chamado de Verbo divino, a

Inteligência, o Logos, como diz João, no início do seu Evangelho.

Quando observamos isso, percebemos que existem pelo menos

três modelos de racionalidade que são próprios do intelecto: existe uma

razão produtiva (inteligência produtiva), uma razão prática (inteligência

18  Sócrates (c. 469 a.C.-399 a.C.), filósofo ateniense do período clássico da Grécia Antiga.

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E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
ativa) e uma razão teórica, ou apodítica (inteligência contemplativa); e

cada uma delas desempenha uma função decisiva no horizonte de uma

civilização. Ou seja, quais eram para os gregos as três grandes dimensões

da existência humana? O labor, a ação e a contemplação. O labor é a

produção das formas de vida e de subsistência. Temos por exemplo o Rio

Nilo. Ele foi base das civilizações que o circundaram e que, através de certas

técnicas econômicas, produziram formas de sobrevivência da espécie

humana naquele contexto social. Uma das dimensões-chave para estudar

a origem das civilizações é a econômica. Oiko nomos quer dizer regra da

subsistência, regra da casa (oikos em grego significa casa). A dimensão

do labor, uma primeira dimensão humana fundamental, é a de produção

material humana, ou seja, como o ser humano, em contato com a natureza,

manipula e cria formas de subsistência artificiais. Quando observamos

a origem das civilizações humanas, vemos que uma das suas origens

é econômica (origem material): a relação do homem com a natureza, a

relação do artifício com aquilo que foi dado ao ser humano.

Uma segunda dimensão é a da ação: como nós agimos na sociedade.

É o mundo da pólis, é o mundo da política propriamente dita. E, quando

observamos a terceira dimensão, que é a via contemplativa, estamos


na dimensão que nos conduz à busca por sentido. E aqui desponta a

relevância dos mitos para as civilizações. Eles são também origens de

civilizações, como é a pólis e também a economia. Quando contrastamos

isso com os modelos civilizatórios anteriores, percebemos que essas três

modalidades de racionalidade estão fortemente presentes.

Voltemos ao caso do mito de Cronos. O que Cronos fez? Ele era

o deus transcendente do Olimpo na civilização grega, ele era o deus da

agricultura na civilização latina (uma civilização que tem o aspecto material

e institucional muito mais presente). Na medida em que tomamos o vínculo

do transcendente com o imanente, do Olimpo com Roma, do mundo

espiritual com o mundo histórico, é sempre necessário verificar aquilo que

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E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
estabelece a intermediação entre esses dois mundos, que é exatamente o

mundo da ação, o mundo político (da pólis). Se observamos, em Jerusalém,

Atenas e Roma, há sempre um aspecto salientado nessas três civilizações

que apresenta uma espécie de tônica em cada um: a tônica do aspecto

mítico nas histórias de Jerusalém, Atenas e Roma é algo fundamental, a

tônica do aspecto político e institucional é presente também nessas três

civilizações e o aspecto econômico, a dimensão da produção (tekné), da

arte (ars), é igualmente presente nessas três civilizações.

Essa visão trinitária a respeito da origem das civilizações aparece

na figura do Verbo Encarnado, na tradição da revelação e nas estruturas

míticas nas civilizações cosmológicas e cosmogônicas de uma forma

absolutamente indispensável para o fechamento do sentido dessas duas

modalidades de civilizações. Cristo encarna em si o sentido da história

porque ele é a Palavra, o intelecto de Deus, o Logos, e ao mesmo tempo

desempenha a função de produzir as condições através das quais o encontro

do tempo com a eternidade se torna possível por meio de sinais visíveis, e

demonstra também aspectos espirituais por meio de certas linguagens

(parábolas, alegorias e analogias), para explicitar aquilo que não poderia

ser dito, em uma linguagem humana de maneira completa e absoluta, a


respeito daquilo que transcende algo histórico.

Veja como essas coisas se encaixam e vão fornecendo cada vez

mais uma riqueza semântica para as narrativas míticas. Essa questão é

muito importante porque nos traz imensos desafios. Um deles é o de

perquirir a respeito de quais são os modelos linguísticos com os quais a

linguagem mito-poética trabalha para explicitar aquilo que é inefável, ou

seja, como podemos dizer coisas a respeito daquilo que não podemos

ver, nem sentir, nem tocar. Isso foi fundamental para as civilizações.

O mero aspecto produtivo e econômico não seria suficientemente

capaz de institucionalizar um espaço comum, um compartilhamento

de certas formas de bem e de vida humana que passam a moldar a

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E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
civilização e criar no âmbito da vida social deveres, responsabilidades,

estimas, exigências devidas em razão desse vínculo comum. Esse não é

um vínculo meramente econômico em razão da subsistência da espécie,

da prole, do labor, do trabalho eventualmente. São vínculos que exigem

esse aspecto de transcendência, de algo que não está reduzido ao âmbito

material, mas está profundamente articulado e involucrado no mundo da

ação e contemplação, que é o que define em uma última análise a natureza

humana. Esse encontro da antropologia com a história e os mitos me parece

algo decisivo.

GUILHERME ALMEIDA: Complementando o que você falou da linguagem e

da complexidade das civilizações, da profundidade da dimensão econômica,

da pólis, das relações de poder, das relações interpessoais. Uma grande

chave para a questão da contemplação e da linguagem encontra-se no

Código dos Códigos de Northrop Frye19, em que ele analisa as linguagens

dos livros da Bíblia, mostrando que elas estão em consonância com cada

forma de apreensão da realidade (novela, ficção etc.). Contudo, isso só é

possível quando temos uma complexidade social — complexidade, não no

sentido de “intrincada”, e sim das amplas relações.

Parece que o homem nessa amplitude existencial precisou de novas


interpretações para dar conta da interrogação que vive em sua cabeça,

e as linguagens poéticas, as narrativas, são fundamentais do ponto de

vista civilizacional porque, além de toda a ideia de símbolo estar presente

na civilização, apenas uma narrativa contada fazia jus, ou seja, o homem

conseguia inteligir, mesmo que ele sempre estivesse querendo meter a

cabeça no céu para tentar explicar. Ou como dizia Chesterton: “A loucura

do século XX não é querer meter a cabeça no céu, é querer meter o céu na

cabeça”. Você fica louco, [chega à] exaustão da razão.

E essas chaves da linguagem, e muitos estão presentes na Bíblia, são

fundamentais porque, nessa amplidão civilizacional, você encontra algo que

19  Herman Northrop Frye (1912-1991), crítico literário canadense, um dos mais célebres do século XX.

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E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
lhe cala, que faz eco internamente. Muito tempo atrás eu sonhei com uma

voz que me dizia para ler o Livro de Rute. Eu li e não entendi nada do que

aquela história queria me dizer. Até hoje estou investigando. Algumas coisas

que o livro está querendo me dizer eu já sei. Não é uma questão espiritual,

mas há um espelho nessas formas de linguagem que lhe desvela o mundo.

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E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
PA RTE 4

OS MITOS, A ORDEM E O CAOS


É assombro o que toma conta do homem quando se depara com o

desconhecido. E o caótico dessa circunstância, na qual padece de uma

ausência de sentido, impulsiona-o a explorar, por meio da linguagem,

aquilo que ignora.

Nessa busca, há sempre um aspecto que permanece indecifrável,

inatingível para a nossa inteligência. Escritores gregos e latinos tentaram

desvendá-lo, mas, com isso, terminaram por explicitar as possibilidades

e impossibilidades da vida humana.

LUCAS FERRUGEM: Eu já encontrei em pelo menos três autores a mesma

ideia de que o mito serve para dar ordem à sociedade, e a qualidade dessa

ordem depende da qualidade desse mito. Através do mito, estaremos

organizados e conseguiremos olhar um para o outro e perceber que

estamos juntos, vivemos a mesma vida porque, no fim das contas, são

muitas possíveis. O que lhe parece essa ideia de ordenar o caos?

MARCUS BOEIRA: É uma pergunta de um milhão de dólares. Hesíodo20,

em a Teogonia e Os Trabalhos e os Dias diz: “No princípio era o caos”. Isso

nos indica que o princípio é o desconhecido, e o desconhecido nos leva à

ausência de sentido; e a ausência de sentido é justamente o que, perante o


nosso intelecto, aparece como que nos mostrando pelo menos duas coisas:

por um lado, um assombro, um espanto perante aquilo que eu desconheço,

aquilo que para mim é um mistério, é um algo que eu não consigo alcançar;

por outro, me traz o dever de me valer daquilo que a razão pode me fornecer

— a saber, a linguagem —, para tentar diminuir essa distância entre o

desconhecido e o meu intelecto. A diminuição dessa distância é algo que

me impõe muitas responsabilidades, a começar pela necessidade de fazer

uso de uma linguagem que seja simultaneamente universal, porque é

compartilhada por todos que acessam essa linguagem — ou seja, é uma

linguagem que não tem mero caráter privado, ela é pública no sentido

20  Hesíodo, poeta oral grego da Antiguidade.

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E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
de que é compartilhada por todos os seres humanos —, e que ao mesmo

desempenhe a função de convidar o ser humano a sair da sua real e atual

situação. Tem de ser uma linguagem que traga ao ser humano uma série

de questionamentos, de instabilidades, de dilemas psíquicos.

Eu me lembro a primeira vez que li Os Trabalhos e os Dias de Hesíodo

e o quão aquilo me trouxe instabilidades profundas, não pela narrativa em si,

não pela genealogia mítica, não pela ordenação de todas as coisas como um

processo contínuo que não é artificial. Numa chave hobbesiana moderna,

a ordem vem depois do caos porque os seres humanos criam a ordem

artificialmente. Não é o caso em Hesíodo: são os próprios deuses que vão

estabelecendo a ordem, é a própria atemporalidade que vai estruturando

as coisas para que, daí, o tempo possa aparecer, soerguer-se.

Essa relação da ordem como algo posterior ao caos e que ao mesmo

tempo tem uma origem divina e uma origem eterna, é algo que inquietou

praticamente todos os grandes escritores gregos e latinos — gregos até

Platão e Aristóteles. Tomemos por exemplo os poetas trágicos, todas as

tragédias gregas. Se lemos Medeia de Eurípedes21, começamos a verificar

as relações dela com Jasão e a sentir que aquilo tem muito a ver com nossa

vida, nosso casamento, nossa relação com as pessoas da família, com as


pessoas mais próximas e principalmente com a pessoa que nos é mais

íntima. O resultado é absolutamente trágico para os nossos padrões, porque

Eurípedes não está expondo algo que será sedutor apenas para o teatro

ou chamará a atenção das pessoas porque é algo inesperado ou afrontoso

a natureza humana; ele está tratando de algo que está involucrado na

natureza humana, porque todo ser humano é capaz de matar o próprio

cônjuge. E se todo ser humano é capaz de fazer isso, também é capaz de

fazer coisas inesperadas. E realizar ações inesperadas, assim como pensar

coisas inesperadas, é algo que faz parte do próprio mito. O mito é como um

enigma: à medida que você tenta se aproximar dele e faz um esforço para
21  Eurípides (ca. 480 a.C.-406 a.C.), poeta trágico grego, do século V a.C., o mais jovem dos três grandes expoentes
da tragédia grega clássica.

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E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
decifrá-lo, ele o devora e apresenta um novo mistério ainda mais distante

de você.

Essa trajetória entre o atemporal e o temporal e a condição humana

é algo que, no mito, sempre vai adquirir uma via de perene busca de

sentido, algo que nunca vamos decifrar de cheio, de pronto. Essa tarefa de

buscar decifrar absolutamente o mito e dizer porque Platão quis dizer aquilo

no Mênon, no Cármides, no Íon, no Primeiro Alcibíades ou em qualquer

outro diálogo, toda essa tentativa de entrar na cabeça de Platão, no fundo,

apresenta mais enigmas do que propriamente respostas, porque Platão está

valendo-se da linguagem mito-poética anterior a ele para transfigurá-la em

uma linguagem profundamente dialética e marcada por duas vias que se

contrastam para perseguir o bem, a verdade e a beleza.

De todos os transcendentais — isso é muito importante — a beleza

é aquela que articula o intelecto com a vontade, a verdade com a beleza, a

verdade com o bem, porque apresenta a verdade e o bem não somente

como transcendentais — aqui unidos no ser ––, mas o faz mostrando certos

limites e continentes epistemológicos que ainda mantém aquela nuvem

misteriosa acima da episteme, impedindo-a de chegar profundamente no

mito, como se chega profundamente nas coisas universais ou contingentes,


que é o próprio da sabedoria e da ciência. Então o mito também nos traz isto:

nos convida ao reconhecimento da docta ignorantia, do reconhecimento

da incapacidade de compreender coisas que são inefáveis em seu sentido

absoluto.

Parece-me que essa forma simbólica de apresentação, manifestada

na tragédia grega e também na literatura latina, é algo que demonstra

para nós um esforço profundo de decifrar o indecifrável, e o faz usando as

categorias que são imanentes próprias do agir e pensar humano naquela

circunstância. Se lermos, por exemplo, As Metamorfoses de Ovídio22, vamos

22  Públio Ovídio Naso (43 a.C.-18 d.C.), poeta romano mais conhecido como o autor de Heroides, Amores, e Ars
Amatoria, três grandes coleções de poesia erótica, Metamorfoses, um poema hexâmetro mitológico, Fastos, sobre
o calendário romano, e Tristia e Epistulae ex Ponto, duas coletâneas de poemas escritos no exílio, no mar Negro.

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E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
perceber claramente um esforço por mostrar coisas inefáveis mediante

os objetos da natureza, e estes que vão desempenhar uma função quase

mito-poética. A transformação, a permanência, a alteridade e a constância

e o modo como vamos articular essas coisas todas, dependem de uma

forma de vida que vamos assumir; e essa forma de vida é um contraste

entre o eu ideal e o eu real, que é onde está a virtude. Por isso os deuses e

heróis são modelos de virtude, e o são de modos diversos. Quando Homero,

Hesíodo e todos os outros escritores gregos expõem essas diferenças de

modelos entre os deuses e os heróis, eles estão fazendo isso justamente

para mostrar que existem ações que são impossíveis para os seres

humanos e outras que são possíveis; e aquelas que são possíveis exigem

um empreendimento, um esforço interior tão extraordinário, tão profundo,

que muitas vezes não depende do próprio ser humano. Aquiles não teria

feito o que fez se não tivesse sido mergulhado no rio, dando-lhe a graça de

ser forte. Porém, isso é demonstração fidedigna de que ali está a natureza

humana, porque o calcanhar ficou de fora; e o calcanhar é o que o define

como um herói. Um herói não é perfeito, ele busca ser virtuoso, embora por

vezes não consiga ser.

Uma das leituras mais importantes do mito é nessa chave mito-


poética, pois é o que traz os modelos de virtudes humanas, coisas que são

acessíveis aos seres humanos e coisas que não são possíveis. Aliás, essa

é uma das distinções importantes entre o gnosticismo e a gnoseologia.

Gnoseologia é o conhecimento das coisas que são captáveis pelo intelecto,

gnosticismo é aquela militância em “acreditar” que se conhece algo do

qual no fundo não se conhece essencialmente. Essa diferença entre o

cognoscível e o incognoscível é algo decisivo, é como se existisse uma nuvem

epistemológica que separa o mundo para além de nós e o mundo onde

estamos encerrados, e não há nada melhor do que uma exposição dialética

altamente sofisticada e com estilo exuberante, como são os diálogos

platônicos, para nos convidar a verificar essa nossa limitação ontológica, a

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E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
nossa incapacidade de ir além das nossas próprias capacidades e da nossa

própria condição.

GUILHERME ALMEIDA: Ortega Y Gasset23 diz que viver é denso. A densidade

nos faz humanos, a gravidade nos coloca no chão. Isso é uma maravilha,

mas também é uma dor porque, por um lado, não estamos flutuando, e, por

outro, não estamos a bel prazer do vento. Viver é denso, e essa linguagem

nos mostra isso. Por mais que aprofundemos o entendimento do ser,

não chegamos ao total entendimento. Dentro das escalas históricas, isso

é muito latente em Atenas, uma ponta da humanidade. O que me chama

atenção é que são sempre em pequenas localidades que começa. Nelas

está o germe, e a semente plantada vai vingar e gerar frutos em anos,

séculos ou milênios posteriores. Foi assim com a civilização romana e com

a ideia grega da análise. E isso desvela vários desdobramentos dentro da

própria estrutura da sociedade. É esta a investigação histórica: aonde estão

as pequenas nuances de nossa atualidade que germinarão novas outras

daqui para frente? Que estamos plantando?

Aí é a ancoragem dessa linguagem mitológica, dessa ideia de

modelo. Por quê? Segundo Santo Agostinho24, Deus é mais íntimo do que

nós a nós mesmos, então não temos como conhecer o mais íntimo de nós
mesmos, aquele “eu” lá dentro, como diz Ortega Y Gasset, mas é o caminho

investigativo — que é a virtude também — o que se aprende na caminhada.

Eu acho que isso é uma das lições mais lindas. Não é o objetivo final apenas

tentar o acalanto; ele nunca virá.

Os budistas dizem que viver é sofrimento, que a vida é sofrimento,

mas eles utilizam o termo “sofrimento” no sentido de nunca estar saciado,

pleno. Talvez a pergunta seja outra. Será que a plenitude não está justamente

nessa angústia que vemos em todos os momentos históricos? Em todos os

padrões civilizacionais está claro isso? Essa tensão no ar, esse eu vou ler
23  José Ortega y Gasset (1883-1955) foi um ensaísta, jornalista e ativista político. Destacou-se por fundar a Escola
de Madrid.
24  Aurélio Agostinho de Hipona (354-430), um dos mais importantes teólogos e filósofos nos primeiros séculos do
cristianismo,[3] cujas obras influenciaram o desenvolvimento do cristianismo e filosofia ocidental. Suas obras-pri-
mas são A Cidade de Deus e Confissões.

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E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
mais, vou estudar mais, vou debater mais ou vou me interiorizar mais, isso

nunca tem resposta; então não é pleno, delicioso, tipo “agora, sim, agora

eu vou acender o meu charuto”. É esse caminhar que eu acho maravilhoso

quando analisamos todas as estruturas históricas. Essa explicação da

gênese feita pelos gregos, por meio dos diálogos e dos livros de Aristóteles,

é tão maravilhosa que faz com que a razão, a nossa inteligência, pense. Se

você pega pessoas que não estão nem aí ou nunca ouviram falar, pessoas

de outras eras ou mais simples, aquela coisa pululante, aquele algo não

explicado, está presente quando as sociedades ficam mais complexas.

Não posso responder por sociedades mais arcaicas, pelo fato de termos

pouquíssimas fontes, mas esses são padrões que muitas vezes se repetem.

Essa ideia, por exemplo, do símbolo da suástica para juntar todo

mundo que está incerto, que está abandonado por “n” razões depois da

I Guerra Mundial (Tratado de Versalhes, queda econômica etc.). O povo

está abandonado, e você dá uma boia de salvação — por mais que no

fim seja mais uma âncora do que uma boia — que mostre para ele um

certo acalanto. O que eu vejo, em uma comparação histórica, é que essas

pessoas que estão mais em contato com esses tipos de mito, estão mais

pululando na sua realidade mesma, como os gregos, como os romanos ou


como os próprios medievais na civilização cristã; ao passo que nós estamos

perdidos na ideia de que a caminhada é interessante. Talvez o ser humano

hoje tenha perdido isso porque tudo é hedônico. Na atualidade tem de

ser o prazer puro, esta é busca: é o meu carro melhor etc. Perdeu-se essa

pujança de que você nunca estará pronto e completo, ou seja, de que você

pode ser Aquiles, mas o seu calcanhar está lá: se alguém atirar uma flecha,

tchau para você.

Toda essa biografia e as análises que fizemos até aqui mostram a

importância latente de entender essa linguagem mitológica que se perde; e

por que cargas d’água se perde eu não sei. Temos acesso a essa linguagem

e não a utilizamos. Dentro desse ponto, os novos “mitos” sociais — as novas

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E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
organizações do homem sendo o lobo do próprio homem, esse “caos” de

Hobbes que precisa de um poder centralizado forte, absoluto, para dar

acalanto a esse caos social — são uma alteração total. Mas é uma alteração

dentro do padrão que já existe desse arquétipo. Que é colocado dentro das

civilizações com o passar da modernidade para fazer com que o homem se

enxergue? “O homem é a medida de todas as coisas”. Ora, se o homem é a

medida de todas as coisas –– como diz Protágoras25 ––, qual é o homem que

faz essa medida de todas as coisas?

25  Protágoras (c. 490 a.C. - c. 415 a.C.), sofista da Grécia Antiga, célebre por cunhar a frase:
“O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são, das coisas que não são, enquanto não
são.”

36
E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
PA RTE 5

A LINGUAGEM E

O CARÁTER DOS HOMENS


Há uma condição particular que marca as sociedades humanas.

Diferentemente dos demais animais gregários, nós somos seres de

linguagem. Por meio dela, somos capazes de articular as palavras com

os objetos representados, aos quais passamos a atribuir significados.

Por isso, para nós, raça e geografia ocupam uma posição menor

quando se trata de compor uma unidade. O fundamento da política, da

nossa vida em comunidade, são precisamente os bens compartilhados.

LUCAS FERRUGEM: Uma vez comecei assistir a um curso de Jordan

Peterson26 sobre a Bíblia, em que ele diz, logo no início, uma frase que nunca

mais me abandonou: “Não é óbvio que uma história sobreviva milênios,

não é óbvio que continuemos falando das mesmas histórias, passados

milênios ainda contemos, em redor de fogueiras, de maneira cada vez mais

sofisticada as mesmas coisas, os mesmos problemas e com os mesmos

padrões”. Marcus, pelo prisma da linguagem, o que é essa necessidade

imensa de compartilharmos uma mesma história?

MARCUS BOEIRA: Essa é outra pergunta que vale um milhão de dólares,

porque é o fundamento mesmo da política, da pólis. Por que existe uma


pólis, uma cidade, uma comunidade política e humana? Porque nós

compartilhamos certos bens. Por que compartilhamos certos bens? Porque

queremos coisas que são comuns, conhecemos coisas que são comuns,

desejamos e temos uma inclinação para várias dessas coisas; e, o que é

mais decisivo, porque, ao constatar todas essas questões, nós o fazemos

empregando sons, termos e significados compartilhados, pois isso nos

leva a sondar algo mais profundo. O que nos define como seres humanos?

O que nos distingue dos demais seres existentes? Os animais também

produzem sons, mas o que diferencia a produção de sons dos animais da

26  Jordan Bernt Peterson (1962), um psicólogo clínico canadense e professor de psicologia da Universidade de
Toronto. Autor de Mapas do Significado: A Arquitetura da Crença, e 12 Regras para a Vida: Um antídoto para o
caos.

38
E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
nossa? O que diferencia é que o ser humano em comparação com os

animais irracionais é o ser capaz de, além do som produzido, empregar,

por meio da imaginação e depois do intelecto, uma representação de

significado desses mesmos sons que produzem e designam certos

objetos.

Quando digo a palavra mito, todos nós temos uma ideia do que é.

Embora a ideia possa variar, existe algo que é compartilhado, que começa

na expressão mito e termina naqueles significados que vêm logo a seguir,

que são acessados ulteriormente ao momento de escutar, de ler ou de

pensar na palavra mito. E quando pensamos nos termos da linguagem, nós

o fazemos de uma forma binária, porque pensamos as palavras e as coisas

que são significadas por essas palavras.

Vocês poderiam dizer que isso vai depender, segundo [Ludwig]

Wittgenstein27, dos “jogos de linguagem”, do modo como estabelecemos

usos e regras de linguagem na comunidade humana. De fato. Mas, ainda

que os usos e regras de linguagem compartilhados na sociedade definam

o modo como articular os termos e as palavras com as coisas ou objetos

representados, o fato objetivo é que todo o intelecto humano, por definição,

é capaz de fazer isto. E é aqui que está o ponto. Assim como a linguagem
é a expressão do logos — e até sob alguns aspectos linguagem é uma

tradução possível da palavra logos, embora não seja a melhor —, isso nos

traz uma resposta mais profunda: somente nós humanos somos capazes de

produzir sons empregando todas as faculdades imagéticas e cognoscitivas

para articular o som, o termo e o significado. E quando nós lidamos com

os mitos, a relação dos sons e dos termos com o significado se torna uma

tarefa muito difícil, porque essa articulação dos termos e das expressões,

das sentenças assertivas –– usando uma expressão da Filosofia Analítica ––

com o significado vai exigir uma pedagogia que começa numa educação

do imaginário e termina numa educação da vida intelectual. E sem essa


27  Ludwig Joseph Johann Wittgenstein (1889-1951), filósofo austríaco, naturalizado britânico. Foi um dos princi-
pais autores da virada linguística na filosofia do século XX.

39
E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
correspondência, perscrutar os significados por trás das narrativas míticas

se tornará uma tarefa muito mais difícil e até precária.

Vocês também poderiam dizer que uma criança que constata o

mito pela primeira vez não tem nenhum processo formativo anterior.

Pois é justamente por ter esse processo pedagógico na sua tenra idade,

que ela tem condições de amplificar o seu horizonte imaginativo, sem o

crivo do juízo estabelecido pela razão ao apreender, e transformar o objeto

apreendido em conceito; porque a criança não tem esse crivo, o acesso da

imagem ao conceito é muito mais fácil. Vejam como esse acesso também

é fundamental. A ampliação do continente imaginativo das crianças, as

imagens que são apreendidas desde o início e a transformação dessas

imagens em conceitos em termos da linguagem, em descrições definidas,

nomes próprios de personagens etc., tudo isso vai ampliando também o

repertório conceitual em articulação com o repertório imaginativo. As

pessoas que têm vida literária desde o início têm uma propensão maior

para articular de forma muito mais direta e ao mesmo tempo suscitar de

forma mais criteriosa o sentido profundo por trás do significado, do que

aquelas que não têm vida literária. Uma pessoa que não têm o costume da

vida literária tem mais dificuldade de fazer essa transposição do símbolo


linguístico com uma significação, o mundo sintático com o mundo

semântico. No caso dos mitos, a vantagem da linguagem mito-poética em

relação a outras modalidades de linguagem, é que a mito-poética sempre

mantém o mistério e, por isso, suscita naquele que está aprendendo uma

curiositas (curiosidade) de ir além da própria impressão que a primeira

imagem do termo suscita.

Por exemplo, esses dias eu estava lendo para meu filho uma passagem

mítica importante em que Ares foi enviado por Zeus para perseguir os

gigantes que queriam matá-lo, e Ares é preso por esses gigantes. Então

Zeus manda seu outro filho, Hermes, o deus dos pés alados, para buscar

o irmão. Veja que toda essa trajetória é quase uma saga: um herói dotado

40
E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
de muito poder (que é Ares, deus da guerra) perde para os dois gigantes

que queriam assassinar seu pai. Vejam a quantidade de problemas dentro

desse mito: o problema hereditário, o da ascendência, o da força e o da

autoridade paterna — que é quase uma autoridade divina —, o contraste

entre a figura mítica de Ares, deus da guerra, todo-poderoso e imortal, e

a derrota para dois gigantes que não têm natureza divina. O meu filho de

cinco anos obviamente não fez essas perguntas, ele absorveu tudo sem o

crivo do juízo. Por que eu estou contando isso? Obviamente como pai, por

amar meu filho, quero que ele alargue o seu horizonte de imaginação ao

máximo, mas eu não posso suscitar todas essas questões porque o crivo do

juízo ainda não existe, é a passagem direta da constatação do termo e do

símbolo para a significação. O dado muito importante do que chamamos

normalmente de educação do imaginário é esta passagem sem o crivo. O

crivo é um processo ulterior, não é um processo anterior.

O problema de boa parte das escolas críticas quando lidam com a

literatura mito-poética é que elas já partem da crítica relativamente ao

âmbito do mistério do mito, sem reconhecer que o mistério é, de todas

as coisas, o que mais desempenha uma função importante no início da

caminhada. A linguagem, do meu ponto de vista, é algo que não é apenas


condicional e constitutivo para todo o resto; eu diria que é quase o algo

de tudo, porque sem a linguagem não há vida humana. O que nos define

como seres humanos é o fato de sermos seres políticos. Aristóteles diz

que o ser humano é o zoon politikom, o animal político. Por que nós somos

animais políticos? Porque vivemos na pólis. E viver na pólis é viver em

uma comunidade muito específica, uma comunidade cuja diferença

específica em comparação com outras comunidades gregárias é o fato

de ela funcionar na base da linguagem, na base do compartilhamento

de certos bens e formas de vida que são intercomunicáveis. E por isso a

intercomunicabilidade dessas formas de vida vai depender de uma série de

outras coisas, a começar pelas inclinações mais primitivas e profundas do

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E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
ser humano: o instinto de territorialidade, a dimensão geográfica dos

atos humanos, a dimensão hierárquica, ou seja, o instinto hierárquico

que vai definir os padrões e o modo de mando e obediência nessa

sociedade, o modelo objetivo de autoridade e fundamentalmente a

inclinação mimética — o aspecto do que o Aristóteles chama de mímesis:

o ato desde sempre voltado para a imitação de certos modelos. Em

uma comunidade de intercomunicação, o imitar modelos é o acesso

primário para o objeto externo que serve de convite para a alteridade,

para que eu saia de mim, e é isso o que de alguma forma define o que

significa a palavra “cultura”. Ex ducare (educação) quer dizer “sair de

si”. Isto é o que significa cultura: sair da sua dimensão do salos, da vida

vegetal e vegetativa.

Dante Alighieri28 tem um escrito muito importante, mas não muito

conhecido, que é uma espécie de breviário da vida italiana, chamado

De Vulgari Eloquentia (A Eloquência Vulgar). É uma obra que expõe a

cientificidade da língua italiana pela primeira vez na história. Esse livro

é escrito em latim para os doutores da época entenderem que a língua

italiana era uma língua dotada de regras de ortografia e gramática —

isto é uma língua científica. Dante nos diz que as maiores poesias da
história humana até aquele momento (o momento dele) — e por isso

para ele Virgílio29 e Homero30 foram os maiores —, expõem aquilo que

é mais rico e complexo na condição humana. E, para isso, ele define o

ser humano como um ser que tem três dimensões: salos, de onde vem

saúde, a dimensão vegetativa; venus, a dimensão sensitiva, a dimensão

do coração, aquela que nos leva à sanguinidade, ao sair de nós mesmos

(a concupiscência e a ira); e o virtus, a dimensão intelectual, a dimensão

da razão, que governa a concupiscência e a ira. Melhor é a poética que

explicita o ser humano na sua inteireza e completude, por meio de


28  Dante Alighieri (1265 d.C. -1321 d.C.), escritor, poeta e político florentino, é considerado o primeiro e maior
poeta da língua italiana, definido como o sumo poeta.
29  Públio Virgílio Maro (70 a.C.-19 a.C.), poeta romano clássico, autor de três grandes obras da literatura
latina, as Éclogas (ou Bucólicas), as Geórgicas e a Eneida.
30  Homero, poeta épico da Grécia Antiga, autor dos poemas épicos Ilíada e Odisseia.

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E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
uma linguagem universal suficientemente capaz de mostrar que essas

três dimensões involucradas em nós determinam as nossas possibilidades

reais na história e na sociedade.

Esse é o modo como eu vejo a importância da linguagem para a

vida humana como um todo. E creio que, do ponto de vista histórico, isso é

decisivo porque uma história analisada a partir das suas estruturas, das suas

instituições, que não reconhece esse pano de fundo, esse background por

trás dessas instituições e dessas estruturas, é uma intenção que se reduz à

história política, e não uma história da cultura e da civilização humana.

GUILHERME ALMEIDA: Tanto na unificação da Itália, quanto na da

Alemanha a partir dos anos de 1860-1871, uma das funções centrais dessa

unicidade nacionalista era a língua. A língua escolhida para dar unidade aos

germânicos, com exceção dos austríacos, formando a Alemanha, no fim do

século XIX, foi a língua da região de Munique; e dos italianos, formando a

Itália, no fim do século XX, foi a língua da Toscana.

Antes de falar da história, eu queria tratar da sala de aula e da

importância dessa linguagem na educação da imaginação para o

desenvolvimento intelectual, na qual a utilização do mito é fundamental.

Eu lembro de uma historinha muito bacana do neto de quatro anos


da diretora da escola. Ele perguntou: “Vovó, o que é Idade Média?”, e ela

respondeu: “Idade Média é uma coisa que aconteceu muito tempo atrás”.

O menino olhou para a avó e disse: “A senhora nasceu na Idade Média?”.

Ou seja, vai direito ao ponto. É uma forma de analogia fenomenal. E como

vamos educando isso daí? C. S. Lewis31, nas Crônicas de Nárnia, coloca a

seguinte questão: “O que estão ensinando a nossas crianças nas escolas?

Quais linguagens temos para educar esse imaginário?”. Para o Dudu ou

para o Enrico entender a Idade Média cronológica, decorar é uma coisa;

mas entender e absorver todos os padrões da prisão de Ares pelos gigantes,

é outra. Por onde você inicia? Qual é a imagética? Chesterton diz que
31  Clive Staples Lewis, (1898-1963), professor universitário, escritor, romancista, poeta, crítico literário, ensaísta e
teólogo irlandês.

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E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
“Literatura é luxo, ficção é urgência”, ou seja, você sai do centro da análise do

dia a dia. Nos seus romances policiais, ele cria um padre como um grande

detetive, porque esse padre se coloca na condição também de assassino,

pois ele é humano, ele faz parte do mesmo gênero. Alguém disse que nós

participamos das salvações e dos pecados do tempo em que vivemos. A

sala de aula é um grande lugar da construção da linguagem, por isso ela

tem de ser extremamente cuidada. Não é a língua portuguesa normativa

— ditongo, tritongo e paroxítona —, é a linguagem.

Sempre que tratamos desse assunto, vem à mente o texto de René

Girard sobre o decálogo, texto que li no período da minha vida em que

mais dei aula para o Fundamental II e Ensino Médio. Nesse texto, ele faz a

análise do pecado contra a castidade. Esse “não pecar contra castidade” é

não romper a ingenuidade com coisas maléficas. Quando a ingenuidade

é rompida, termina a castidade. Mas o que você apresenta depois disso? A

linguagem são flechas, a palavra vai e não volta. Então como você educa?

Como comentado antes, quando narramos um conto para a criança, ela

imagina todo cenário. Essa linguagem inicial é a base para se ir construindo

esse aprofundamento do humano ao lidar com essas estruturas do ser e

do meio: o zoon politikom, o homem é um ser político, ou, como diz Freud
32
no livro Moisés e o Monoteísmo, “Moisés só se sentiu judeu na presença de

um egípcio”; isto é, ele precisa de um outro para saber quem é. A história

é recheada disso. Você precisa do ser que está na sua frente para se

entender, o que é muito diferente de uma obscuridade de Sartre33, que

dizia que o inferno era o outro. Ele pode ser o inferno, mas ele pode ser sua

salvação também. Inferno por quê? Sartre é tão ruim que todo mundo é o

inferno para ele.

Essa ideia da linguagem que o outro também lhe mostra para você

formar a sua é extremamente palpável na sala de aula, principalmente para

32  Sigmund Schlomo Freud (1856-1939) foi um médico neurologista e psiquiatra criador da Psicanálise.
33  Jean-Paul Charles Aymard Sartre (1905-1980), filósofo, escritor e crítico francês, conhecido como representante
do Existencialismo.

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E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
os ensinos iniciais (Fundamental I e II até o dito nono ano), porque você quer

adentrar em uma estrutura de linguagem histórica com os alunos, falando

sobre Revolução Francesa, e eles não dominam nem a ideia do significado

de burguesia. Como você vai falar a esses alunos numa linguagem formal se

o bê-á-bá não tem? Não foi ensinado aos poucos ao Dudu a ideia de tempo,

não foi ensinado que o nome Cronos dá origem à palavra “cronologia”

porque ele devora tudo, como o tempo; ou que a deusa negra dos indianos,

Kali Yuga, que também representa o tempo, a tudo devora. Se você tem

uma ideia de linguagem temporal, significa que o ser humano está em

uma dessas réguas. Não quero transformar a história aqui em uma linha

do tempo, um algo aritmético, mas vou utilizar novamente: o homem se

posiciona, e ali ele sabe a sua biografia, o seu contexto histórico. “Eu sou

eu e as minhas circunstâncias”, diz Ortega Y Gasset. Quais sãos as suas

circunstâncias? Quais são as linguagens que você consegue absorver

para entender as suas circunstâncias?

As chaves interpretativas, simbólicas, do mito que estão presentes

nessas narrativas são tão fenomenais, que deveriam ser a resposta à

pergunta de C. S. Lewis: “O que estão ensinando a nossas crianças nas

escolas?”. Primeiro estão ensinando os mitos, estão ensinando essa ideia de


por que é Cronos, de por que ele devora tudo, de porque o tempo devora

tudo, ele vai devorá-lo também. E é aquilo dito pelo Marcus anteriormente

sobre essa dualidade do homem de entender que a vida não está pronta

e de que, nos termos de Ortega Y Gasset, a vida lhe foi dada, mas não foi

dada pronta, é você que coloca elementos à sua escolha. Essa ideia de

ensimesmar-se, de entrar em contato com o seu eu tem, nessa linguagem

mito-poética — literal ou ficcional, seja qual for o lado para onde a gente

corra — uma grande ferramenta. É muito palpável, porque é nesses

modelos que o homem se encontra como um ser fazedor da sua própria

biografia histórica. Se você não conhece o seu momento histórico, a sua

circunstância, como você vai lidar com essas angústias? Você vai ser um

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E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
mero ator nos palcos da ilusão da vida.

O que lhe traz essas linguagens? Não precisa sair correndo e ler O

Herói de Mil Faces e O Poder do Mito, de Joseph Campbell, ou O Sagrado

e o Profano, de Mircea Eliade34, ou O Bode Expiatório, de René Girard35,

ou apenas os Diálogos, de Platão. Nós estamos discutindo de um ponto

de vista histórico, que é mais palatável, e de um ponto filosófico, que é

extremamente amplo. O contato das duas realidades é justamente o nosso

problema, ou seja, a identidade do mito na história, como ele ajuda, e

como ele faz parte de um cabedal de ferramentas presente no nosso

ser para essa análise das estruturas. Sem a linguagem não se faz essa

análise. E essa linguagem é a da mais simples possível, como quando

você vai pegar mais bala do que deve no baleiro da sua avó, e ela balança

a cabeça negativamente, até a mais complexa. Isso que é a maravilha do

poder do discernimento dos padrões de linguagem, e o mito é uma grande

ferramenta para isso. Insisto dizendo que é uma ferramenta porque ela está

à disposição para entendermos cada vez um pouco mais dessas jornadas.

Por exemplo, quando você lê um período histórico depois de Carlos

Magno, depois dos anos 800 d.C., e os grandes temas das cavalarias, como

El Cid. Nas feiras medievais, as pessoas estão ávidas para escutar aqueles
trovadores, ouvir os feitos heroicos, porque a pessoa se vê naquilo lá. Outra

linguagem medieval de arrepiar é a luz de Deus presente nos vitrais das

igrejas góticas. A igreja de Saint-Denis, a Igreja de Chartres e a própria

Sainte-Chapelle são maravilhosos livros coloridos abertos para todas as

inteligências analisarem as passagens bíblicas e as passagens do dia a dia.

O maravilhoso livro As Riquíssimas Horas36, de Duque de Berry, no qual

ele mostra todo ano a colheita, o plantio, o inverno, a primavera. Que cada

filigrana daquelas indicações, cada lâmina do Mutus Liber, de um livro mudo,


34  Mircea Eliade (1907-1986), professor, cientista das religiões, mitólogo, filósofo e romancista romeno.
35  René Noël Théophile Girard (1923-2015), historiador, crítico literário, antropólogo, filósofo, teólogo, sociólogo e
filólogo francês.
36  Les très riches heures du duc de Berry ou simplesmente Les très riches heures é um livro de horas ricamente
ilustrado. Contém orações a serem ditas a cada hora canônica do dia. Foi encomendado por João, duque de Ber-
ry, em 1410. Provavelmente é o mais importante livro de horas do século XV, conhecido como o rei dos manuscri-
tos iluminados.

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E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
aflora? Essa linguagem apenas formal é maravilhosa. Você lê Dostoiévski

e se vê em Crime e Castigo em quase todas as páginas; Madame Bovary,

você reconhece várias que moram no seu prédio. Isso é maravilhoso. Você

consegue ultrapassar aquelas páginas, aquele momento histórico.

Eu não quero que o meu aluno entenda a Revolução Francesa para

saber quem eram os jacobinos e girondinos. Isso ele encontra no Google.

Mas qual é a experiência através daquela linguagem, até mesmo utilizando

apenas um quadro de Jacques-Louis David, Marat morto, que, por meio

de uma linguagem simbólica no quadro, tornando Marat o próprio Cristo,

numa Pietà. A própria forma como Marat caído, pendente, é a própria Pietà.

Ele é o que? Foi o messias? Não, ele foi um herói, um arauto da revolução.

São esses pontos que, dentro da história da humanidade, é fundamental

analisar.

Para chegar nessa profundidade de pensamento do Marcus, eu

acho que o entendimento histórico, mesmo do que é uma pólis, mesmo

do que é retórica, é importante. O que é retórica? O que é poética? Isso é

algo ao qual às vezes nós, como educadores dentro de sala de aula, não nos

atentamos. Veja o mundo que pode ser desdobrado do ponto de vista de

umas explicações básicas de uma linguagem. E quem não gosta de uma


história bem contada? Quem não gosta de uma história de mito? O próprio

O Herói de Mil Faces de Campbell está presente em Hollywood de ponta

a ponta. Até em Bollywood está presente, mesmo com aquelas danças

ridículas no fim do filme. O storytelling está presente. Há a apresentação de

um problema que o herói vai ter de solucionar com ferramentas (a espada,

o arco e flecha, a lança) ou dadas por uma autoridade deificada, um deus,

ou por um rei. Ele é mirrado, mas é imbuído de coragem.

O grande mito moderno é O Senhor dos Anéis, sem dúvida. Um

hobbit é um serzinho. Ele tem um problema grave de identidade porque

não é nem homem, nem anão, ele é uma meia porção; e nele é colocada a

ideia da esperança de salvação, que, em uma outra linguagem, é a própria

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E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
ideia da graça cristã. A graça é graça, bate onde tem de bater. E isso se

perde dentro das estruturas educacionais. E eu não sei nem se estou errado

em dizer “se perde” porque eu não sei nem se um dia existiu, mas essa ideia

da linguagem é muito clara. Quando houve a unificação da Itália e a da

Alemanha, a linguagem era o centro. Hoje em dia a linguagem é orgânica,

é vida, é viva. E o que ela vira nas interrelações?

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E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
PA RTE 6

O HOMEM-MASSSA,

O HOMEM SEM VOZ


LUCAS FERRUGEM: Sejam bem vindos ao segundo momento da nossa série

“Mito: Entre a ficção e a realidade”. Para aqueles que ainda não assistiram ao

primeiro momento, recomendo que assistam, pois ele é muito importante;

nós estamos fazendo um especial fechado sobre esse assunto caro a todos

nós com dois professores de confiança da Brasil Paralelo, os queridos Marcus

Boeira e Guilherme Almeida.

Dentre suas tantas funções, a linguagem assinala a nossa

posição na sociedade, permitindo-nos reconhecer os modelos que

devem ser seguidos e aqueles que devem ser rejeitados. Por precisar

a nossa localização e o nosso acesso ao mundo, essa tecnologia,

quando dominada, pode ser usada como ferramenta para nos privar do

desenvolvimento de nossa singularidade.

Os fenômenos do século XX são testemunhas desse processo. Sem

voz, o homem converteu-se em massa. Foi decretada a morte da sua

identidade.

LUCAS FERRUGEM: Na aula anterior fechamos tratando de linguagem; há

um teórico de Linguagem que ficou famoso nas universidades brasileiras,


Bakhtin37, que fala de um conceito de polifonia discursiva e de que a nossa

identidade é construída, em grande medida, através da linguagem; se eu

chegar aqui e disser: “Olá! Boa noite! Sou médico”, o Marcus vai dizer: “Não,

não é médico”, então direi: “Ah é, isso eu não posso dizer”. Isso me faz pensar

que a linguagem — entre as muitas funções — tem a função de espelho

social de nós mesmos. Quais são as consequências de diferentes linguagens

que acabam virando diferentes espelhos na sociedade?

GUILHERME ALMEIDA: Utilizarei um exemplo de ruptura histórica: na

passagem da Idade Média para a Idade Moderna, à medida que a sociedade

vai se complexificando, as lideranças históricas que sempre estiveram ligadas


37  Mikhail Mikhailovich Bakhtin (1895-1975) foi um filósofo e pensador russo, destacou-se como pesquisador da
linguagem humana em diferentes tradições: marxismo, semiótica, estruturalismo e crítica religiosa.

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E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
a um grupo, uma elite, uma minoria, tinham a sua linguagem e códigos

próprios, que com o passar do tempo se desgastam e são adicionados

novos elementos; mas, dessa linguagem abandonada, a camada restante

da sociedade absorve.

Fazendo uma comparação bem en passant, primeiro os grandes

nomes da alta costura produzem as suas obras, mas, com o passar do

tempo, elas são abandonadas pela elite e acabam aparecendo em lojas de

departamento. Com a linguagem e a sociedade acontece a mesma coisa:

há uma absorção dessa linguagem simbólica e estética pela maior parte

da população; inicialmente, a linguagem da camada dirigente permanece

fechada até que o restante da população comece a utilizar essa linguagem.

Um exemplo claro do que estamos tratando são as regras de etiqueta:

nós acreditamos que elas têm origem na época de Carlos Magno38 — que foi

o grande fundador da ideia nobiliárquica de duques, condes, etc. — mas um

nobre medieval era um homem tão bruto quanto um camponês. As regras

de etiqueta tem seu início tão somente com o Leonardo da Vinci39, foi ele

quem criou um padrão de etiqueta num tratado maravilhoso sobre como

deveria se portar à mesa do seu amo Sforza40 de Milão; esse conjunto de

códigos à mesa foi absorvida por essa elite como um padrão de afastamento
da linguagem do povo — que até certo ponto era a mesma. A conformação

do cidadão comum à classe dirigente já indica uma ideia de mimetizar, de

tentar copiar. Antes da invenção das regras de etiqueta não há esse padrão

de conformação, porque todas as classes são muito semelhantes em seu

padrão de conduta.

Quando Bakhtin traz essa ideia de “nós copiamos e somos imbuídos

dessas várias análises da história”, eu não faria uso dessa ideia para

compreender a Idade Moderna em seu início, nem a Idade Medieval: há um


38  Carlos Magno (742-814) foi rei dos lombardos a partir de 774 e rei dos francos em 768. Destacou-se não só no
campo militar como também nas artes, o seu reinado está associado com a chamada Renascença Carolíngia.
39  Leonardo di Ser Piero da Vinci, ou Leonardo da Vinci (1452-1519) foi um polímata que se destacou como cientis-
ta, matemático, engenheiro, inventor, anatomista, pintor, escultor, arquiteto, botânico, poeta e músico.
40  Ludovico Sforza (1452-1508), também conhecido como Ludovico, o Mouro, foi um mecenas e protetor de Leon-
ardo da Vinci e também o responsável por lhe encomendar A Última Ceia, entre outras obras.

51
E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
erro em utilizar alguns pensadores e colocá-los como um grande modelo

de explicação para toda a estrutura social. Ele é um homem do fim do

século XIX, um período muito complexo. Não é à toa que a Antropologia

e a Sociologia são criadas nesse contexto, pois a História e a Filosofia não

dão mais conta de explicar o homem desse período e, logo no início do

século XX, surge a Psicanálise de Freud41 para sondar um aspecto a que nós

nunca fomos muito atentos: a análise do interior do homem. Essas várias

formas de linguagem que o homem absorve está em consonância com o

momento histórico, que é esse século XIX extremamente conturbado.

Utilizando-nos ainda do exemplo da etiqueta, vemos como a

população pobre francesa ou de Milão poderia utilizar esse código da elite,

afinal, quem vai usar guardanapo, se a própria elite antes desse manual do

Leonardo da Vinci utilizava as mangas de suas vestes como guardanapo?

Podia-se, até mesmo, urinar ao lado da mesa, vomitar e pegar em um dos

pedaços, roubar a carne do prato do vizinho, e Leonardo da Vinci faz tão

somente um contraponto que, por sua vez, para nós é apenas normal.

Etiqueta tem esse nome porque é um diminutivo da palavra ética, ou seja,

é o bem se portar à mesa, uma forma de linguagem distante, e o povo não

enxerga essa linguagem.


No século XVII, isso vai chegar à exaustão na Corte de Luís XIV42, o Rei

Sol; Versalhes está distante de Paris cerca de 20 km, os nobres querem estar

longe daquele cheiro das peixarias e curtumes da região do Rive Gauche

— hoje vive a nobreza, mas antes não. Em Paris, a população pobre estava

em Marais (lê-se Marré), que originou aquela canção: “eu sou pobre, pobre,

pobre, de marré, marré, marré”.

Há uma grande mudança na linguagem e a bolha está condicionada

à Versalhes com todas as suas regras de etiqueta muito bem apresentadas

41  Sigmund Schlomo Freud (1856-1939) foi um médico neurologista e psiquiatra criador da Psicanálise.
42  Luís XIV nasceu em 5 de setembro de 1638 e morreu em 1º de setembro de 1715. Foi rei da França e Navarra e
promoveu uma grande centralização dos poderes sobre si, tanto que ficou conhecido como “o Grande” e também
como “Rei Sol”.

52
E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
nos livros A Sociedade de Corte e O Processo Civilizador de Norbert Elias43;

neles, nós observamos a influência da Revolução Industrial, onde a partir

de 1760 as pessoas são tiradas do campo e jogadas nas cidades, onde

havia trabalho. Bakhtin está nesse momento do XIX, aquilo que o Richard

Sennett44 fala de “entre o público e o privado”, está uma mescla, as pessoas

estão largadas justamente no lugar onde há uma proximidade maior entre

todos, então esse homem europeu volta a estar muito mais próximo da elite

e, assim, consegue copiar muito melhor e mais rápido aquilo que ela fazia.

Nesse contexto, podemos aproveitar Lacan45 que utiliza a ideia de

linguagem: “o homem é a linguagem”; também Marshall McLuhan46 afirma:

“o meio é a mensagem” para fazermos algumas questões: Será que eu estou

pensando isso mesmo ou estou pensando porque o livro que eu li está

fazendo um eco? Quem está fazendo o quê? É o Guilherme ou o Dalson, o

Ortega, o Mircea? Será que isso não faz parte da própria concepção do eu?

É isso o que os autores citados começarão a debater: esse meu eu

falando, quem diz? O século XIX é o grande boom, faz com que se perca um

pouco da essência desse homem, leiam “A Psicologia das Massas” de Freud

e também a grande obra de Ortega y Gasset47 “A Rebelião das Massas”, em

que ele fala desse homem feito às pressas, carente de um eu, se ele é
carente de um eu, é carente de um eu dele, mas algum eu ele terá, que é

o eu do outro, provavelmente, o eu dos valores da nação, como foi muito

bem desenvolvido politicamente no nacionalismo do século XIX.

Certa vez, vi uma palestra de Luc Ferry48, que foi o Ministro da

Educação francês, em que ele colocava a coisa em uma linha de pensamento

interessante: “Os homens na Antiguidade morriam pelos deuses ou por

Deus, os homens hoje morrem pelas nações”. Depois da Segunda Guerra

43  Norbert Elias (1897-1990) foi um sociólogo alemão de origem judaica, tanto que teve de fugir da Alemanha
nazista exilando-se na França e posteriormente na Inglaterra.
44  Richard Sennett (1943) é um sociólogo, professor, romancista, músico e historiador norte-americano.
45  Jacques-Marie Émile Lacan (1901-1981) foi um psicanalista francês.
46  Herbert Marshall McLuhan (1911-1980) foi um educador, intelectual, filósofo e teórico da comunicação
canadense, conhecido por vislumbrar a internet quase trinta anos antes de ser inventada.
47  José Ortega y Gasset (1883-1955) foi um ensaísta, jornalista e ativista político. Destacou-se por fundar a Escola
de Madrid.
48  Luc Ferry, nasceu em 1951, e é um filósofo francês, professor de filosofia e político.

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E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
Mundial, morrem pela família, e o hoje, o homem morrerá pelo quê? Qual é

a causa que movimenta esse homem? Há — parece — um obscurantismo

desse homem feito às pressas de Ortega, nessas propostas nacionalistas e

imperialistas, o homem é apenas mais um número da produção industrial,

apenas mais um proletário, se ele morrer, há uma fila de pessoas para

tomar o seu lugar: esse homem não conhece a sua voz, então a voz dele

vai ser a voz feita pelas nações.

Os valores nacionais ensinados nas escolas serviam para formatar

cidadãos, e a língua — como na Itália e Alemanha — foi fundamental para

formar italianos e alemães. Mas, formar o quê? Formar cidadãos obedientes

aos valores da nação — bandeira, hino, valores culturais —, ao passo que

externamente as potências europeias estão em uma violência absurda

dentro da África e Ásia; internamente, essas vozes desses homens-massa

é a voz do Estado, além do Estado, é a voz da Nação e dos valores criados e

exaltados por isso.

Alguns autores como Barbara Tuchman49 tratam desse tema: numa

obra magnífica dela sobre a Primeira Guerra Mundial chamada A Torre do

Orgulho, onde ela coloca que mais da metade dos soldados no início da

Primeira Guerra Mundial era de voluntários e, se isso acontece, é porque


eles acreditam na causa. Qual é a causa? Um projeto civilizador muito bem

feito carregado de valores nacionais.

Há um filme chamado Joyeux Noel (Feliz Natal, em português);

em plena Primeira Guerra Mundial durante o natal de 1914, houve uma

trégua entre franceses, escoceses e alemães, durante uma noite de natal

, eles trocaram presentes, no outro dia jogaram futebol e, por causa da

noite de natal, uma linguagem única estava acima das nacionalidades:

se o homem é protestante, anglicano ou católico, não interessa, quando

um tenor nas trincheiras alemãs começa a entoar um cântico natalino, um

padre escocês começa a acompanhar com a gaita de fole — é de arrepiar.


49  Barbara Wertheim Tuchman (1912-1989) foi uma escritora e historiadora autodidata norte-americana. Ficou
conhecida por produzir uma história do prelúdio no primeiro mês da Primeira Guerra Mundial.

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E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
Todos aqueles valores nacionais são diminuídos porque está presente

um valor superior, desse modo, se você fala a língua inglesa, francesa ou

germânica, não interessa, existe uma coisa só, o espírito natalino do qual

todos participam.

São dois momentos de análise: um muito descolado como aconteceu

na sociedade de Corte, e um muito colado como o barulhento século XIX,

do qual Schorske50 na obra Viena fin-de-siècle (Viena em Fim de Século, em

português) cunha o termo fin-de-siècle que acaba bastante utilizado para

mostrar a agressividade da transformação do século XIX para o século XX,

tanto as crises entre as potências europeias, quanto as alianças.

Existem dois casos que eu sempre adoro citar nesse ponto: um mata

Deus, que é Nietzsche51 e um vira uma barata, que é Kafka52; Deus morreu

para Nietzsche, dentro de toda essa agonia que ele viu acabou Deus, é

o super-homem que vai ter de superar tudo isso, e o outro, depois de

sonos intranquilos, Gregor Samsa se vê metamorfoseado em uma grande

barata — eu sou a barata, eu vivo essa pressão social.

Se você examinar a história desse período como quem observa

uma célula na placa de Petri — o fim do Império Napoleônico53, Revolução

de 183054, Primavera dos Povos de 184855, tentativa socialista na Comuna


de Paris em 187156, unificação da Itália e Alemanha, revanchismo entre

Alemanha e França — notaremos um cenário que não há como não dar

em guerra. Somado a tudo isso, ainda há um gigante despótico-feudal, a

Rússia dos Romanov57, tentando adquirir algum novo poder, semelhante à

50  Carl Emil Schorske (1915-2015) foi um historiador da cultura americana e professor emérito da Universidade de
Princeton.
51  Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) foi um filósofo, filólogo, crítico cultural, poeta e compositor prussiano.
52  Franz Kafka (1883-1924) foi autor de romances e contos, considerado pelos críticos como um dos escritores
mais influentes do século XX.
53  O Império Napoleônico findou e novembro de 1815, após a derrota do exército francês na Batalha de Waterloo.
54  Revolução de 1830 é o nome dado na historiografia europeia ao conjunto de movimentos revolucionários que
abalaram o continente europeu no início da década de 1830. Na França este movimento depôs o Rei Carlos X e pôs
no lugar Luís Philippe de Orléans.
55  Dá-se o nome de Revoluções de 1848 ou Primavera dos Povos à série de revoluções que aconteceram na
Europa nesse período. Na França, o Rei Luís Philippe de Orléans foi deposto em 1848, para logo em dezembro do
mesmo ano Napoleão III ser eleito presidente da Segunda República.
56  Foi o primeiro governo operário da história que durou aproximadamente 70 dias por ocasião da resistência
popular ante a invasão da Prússia.
57  Nicolau II (1868-1918), nascido Nicolái Alieksándrovich Románov, foi o último Imperador da Rússia, Rei da
Polônia e Grão-Duque da Finlândia até que foi deposto na Revolução Russa em 1918.

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E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
Inglaterra e Alemanha. O sangue do povo russo, não apenas derramado

no Domingo Sangrento, não apenas derramado pelo Japão na guerra

pela Manchúria, mas por inúmeras razões; Romanov tinha uma frase que

sintetiza a prioridade de seu governo: “Podemos morrer de fome, mas

exportaremos o trigo necessário para obtenção de lucro, e esse lucro irá

introjetar nas fábricas novas”.

Quem morre? O povo. E que voz tem esse povo? Nenhuma.

De um ponto de vista poético, apesar do materialismo histórico de

Marx58 e Engels59 e do socialismo utópico de Fourier60, Saint-Simon61 e Owen62,

esse povo massacrado não estava nem aí para esses escritos políticos, o livro

de cabeceira desses homens era muito mais Os Miseráveis de Victor Hugo63,

ou Dostoiévski64 do que de O Capital, pois havia algo dissonante dentro de


toda aquela patacoada.

Àqueles que buscarem pelos livros deste período, destaco um

parágrafo do livro A Torre do Orgulho de Barbara Tuchman, em que ela

detalha como é a vida de um casal londrino nesse final de século XIX: eles

trabalham 17 horas por dia, ganham treze centavos por hora para manter

eles mesmos, dois filhos e, provavelmente, um ou outro avô.

O filme chamado Germinal baseado na obra de Zola65, é muito


interessante: no início do filme, a agressividade desse homem que é

massa é mostrada, por isso que Freud e Ortega tratam disso, porque é

58  Karl Marx (1818-1883) foi um filósofo, historiador, economista, jornalista e revolucionário socialista. Dentre a sua
produção, destacam-se O Manifesto Comunista e O Capital, que tiveram grande influência no desenvolvimento
do movimento comunista e seus desdobramentos posteriores como a Revolução Russa (1917) e a Revolução Co-
munista Chinesa (1949).
59  Friederich Engels (1820-1895) foi um empresário industrial e teórico revolucionário que, junto de Marx, fundou
o socialismo científico. Contribuiu para O Manifesto Comunista como coautor e ajudou na publicação dos dois
últimos volumes de O Capital.
60  François Marie Charles Fourier (1772-1837) foi um filósofo e um pensador pioneiro, um dos fundadores do so-
cialismo utópico.
61  Claude-Henri de Rouvroy, Conde de Saint-Simon, (1760-1825) foi um filósofo e economista francês, um dos
fundadores do socialismo utópico. Diferentemente das concepções usuais de seus colegas, Saint-Simon dizia que
todas as pessoas envolvidas no trabalho produtivo, gerente, cientistas, banqueiros, para além dos trabalhadores
manuais, faziam parte da classe trabalhadora.
62  Robert Owen (1771-1858) foi um reformista social galês e é considerado como um dos fundadores do cooper-
ativismo e do socialismo.
63  Victor-Marie Hugo (1802-1885) foi um romancista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista.
64  Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski (1821-1881) foi um escritor, filósofo e jornalista, autor de romances de grande
importância para a literatura mundial.
65  Émile Zola (1840-1902), escritor francês bastante conhecido. Para escrever o romance Germinal, passou dois
meses vivendo como mineiro para sentir na carne aquilo que buscava retratar.

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E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
um fenômeno novo. Hegel66 tem a acrescentar uma frase maravilhosa: “As

massas avançam”.

66  Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) foi um filósofo germânico, destacou-se pela sua obra chamada
Fenomenologia do Espírito.

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E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
PA RT E 7

O HOMEM E

AS ESTRUTURAS SIMBÓLICAS
“Adolf Eichmann, filho de Karl Adolf Eichmann, aquele homem

dentro da cabine de vidro construída para sua proteção: altura mediana,

magro, meia-idade, quase calvo, dentes tortos e olhos míopes […]”.

“Aqueles que hoje diziam que Eichmann poderia ter agido de outro

modo simplesmente não sabiam, ou haviam esquecido, como eram as

coisas. Ele não queria ser um daqueles que agora fingiam que ‘tinham

sempre sido contra’, quando na verdade estavam muito dispostos a

fazer o que lhes ordenavam. Porém, o tempo muda, e ele […] chegara a

conclusões diferentes67’.”.

No mito, habita um caminho para nossa autotranscendência.

Mas essas mesmas narrativas assumem um caráter oposto quando

transfiguradas para atender a um objetivo de dominação. Passam

a cercear nosso amadurecimento e a restringir a nossa consciência

histórica. Mergulhado em uma estrutura simbólica pervertida,

encontra-se o homem enclausurado. E a sua potencial liberdade vê-se

substituída por uma externa pré-determinação.

Neste cenário, tão atual, cabe-nos investigar como podemos

reapreender o sentido de nossa existência.

LUCAS FERRUGEM: E esse esvaziamento, e eu vou tomar licença aqui

de dizer, da própria meta-história, aos poucos, tem um significado mais

profundo. Bauman68 tem uma provocação da qual fala que nossa era é

uma fina camada de gelo prestes a romper, porque o homem não tem

significado mais. Como você vê, Marcus, o mito e a linguagem dando esse

fundamento para toda a vida através das histórias? Dostoiévski, Victor Hugo

e tudo mais, qual é a sua experiência com a Literatura nessa direção?

MARCUS BOEIRA: Essa é uma pergunta importante porque nós lidamos

com três ordens de problemas:


67  HANNAH, Arendt. Eichmann em Jerusalém.
68  Zygmunt Bauman (1925-2017) foi um sociólogo e filósofo polonês.

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E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
O primeiro deles é a constatação descritiva e analítica do modo como

as estruturas sociais produzem mecanismos artificiais de objetivação do

ser humano — esse é o primeiro ponto que eu observo; deste ponto, salto

para uma inferência que o Guilherme traz sobre o homem-massa, que é o

homem que é outro, ou seja, o homem-massa não é o outro, é a partir do

outro, e como tal, ele se vê dentro de certas estruturas em que a consciência

histórica dele não é capaz de transcender e levantar perguntas acerca

dessa própria estrutura.

Quando nós pegamos um texto, como por exemplo, o Eichmann em

Jerusalém de Hannah Arendt69, nós percebemos claramente esse tipo de

experiência onde um burocrata, no exercício das funções dentro do Partido

Nazista, desempenhando a função burocrática de levar não só a julgamento,

mas à morte muitos judeus, quando indagado no tribunal a respeito do

motivo pelo qual ele fazia isso, não soube responder, porque a resposta era

apenas descritivo-analítica, ou seja, “Eu fazia isso porque estava na lei, e eu

como funcionário público...”, público, nesse caso, do Partido e do Estado,

porque em um regime totalitário essas duas concepções se confundem;

ele não via outra saída a não ser aquela da letra da lei, ela impunha a

necessidade de objetivar a sua existência dentro da estrutura de mundo


que o Partido defendia.

Isso nos leva à segunda questão que também é importante: a

pergunta pelo modo como essa estrutura produz símbolos artificiais.

A literatura do século XX é uma forma de leitura nos seus variados

gêneros literários que procurou investigar a fundo essa questão. Nós

percebemos, por exemplo, uma obra muito importante de Pierre Bordieu70,

A Economia das Trocas Simbólicas, onde o ele nos traz uma série de

indagações e uma delas é esta: que tipo de estrutura nos permite uma

abertura, uma fresta na “janela”, que nos dê condição de ver fora? Como

olhar para além desse mundo de relações artificiais onde nós estamos não
69  Hannah Arendt (1906-1975) nascida Johanna Arendt, foi uma filósofa política alemã de origem judaica.
70  Pierre Félix Bordieu (1930-2002) foi um sociólogo francês.

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E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
só presos, mas pior, tornamos esse mundo no mundo no qual nos tornamos

seres segundo o outro, ou seja, é como se eu respeitasse certos padrões e

absorvesse esses padrões na minha forma de vida e não fosse mais capaz

de refletir conscientemente sobre o estado factual, a situação concreta

na qual eu estou. Marx, por exemplo, no Capital, nos traz uma chave para

interpretar isso, que é a diferença entre o animal laborans, que é o ser

humano em seu estado natural e em contato com a natureza, para o homo

faber, aquele que é alienado de si e da sua própria condição, a ponto

de que não é mais capaz de refletir sobre a própria forma de existência

genuína e a despeito das estruturas que o condicionam.

Essa estrutura simbólica que vai absorvendo as formas de vida e, o

que é mais grave, a questão da Nação, o modo como a Nação vai ou não

reconhecendo as formas de vida que são autênticas ou não autênticas,

legítimas ou ilegítimas, dentro desse escopo social; por exemplo, para um

casal de trabalhadores na Inglaterra, no final do século XIX, a expectativa de

vida fora daquela condição seria impensável.

Então chegamos ao terceiro ponto: Qual é o mecanismo de

transcendência possível para uma forma de vida que está presa dentro

dessas estruturas simbólicas? Como isso é possível? Como é possível


transcender ao mero horizonte da economia e política? Partindo dessa

forma reduzida de contato com a natureza e com uma produção artificial,

como é possível o ser humano produzir uma forma de vida mais excelente,

que responda às exigências maiores e mais profundas do que aquelas

que as meras relações econômicas, simbólicas, os meros mecanismos de

sobrevivência, ou em um regime totalitário, em um estado-nação, impérios,

monarquias é capaz de dar?

Quando nós observamos isso historicamente, vamos perceber que a

posição privilegiada que o símbolo ocupa na estrutura social; sem a figura

do símbolo como um modo especial de linguagem que confere aos seres

humanos que aí estão uma chave que lhes permita transcender a sua

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E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
própria vida, é impossível pensar algo fora das estruturas naturalmente

condicionadas da História: ou a economia-política ou a própria natureza e

os processos criativos e artificiais dependentes da natureza.

Isso me parece muito importante e, considerando essa constatação,

nós verificamos que a partir do símbolo nós somos convidados a analisar

pelo menos quatro grandes matrizes:

A primeira matriz é o símbolo em si mesmo considerado, o símbolo

é uma matriz de inteligibilidades; do símbolo nós migramos para um

mundo mais profundo, no qual a incognoscibilidade, o não-conhecimento

e a impossibilidade do conhecimento se revelam de pronto; eu não sou

capaz de esgotar a totalidade de um símbolo, porque a própria existência

consumativa do símbolo é em si mesma incapaz de fornecer de si para mim

todo repertório possível de significação que pode ser extraído dele mesmo.

Esse é um primeiro ponto importante, o ponto de vista da Linguagem.

Voltando para a análise das estruturas simbólicas, eu não posso

perquirir um sentido profundo para a minha forma de vida, se encerrado

nessa perspectiva simbólica diminuta eu tentar perfurar os símbolos

que me são revelados ou manifestos, e, a partir deles, encontrar algum

sentido. Vamos pegar um exemplo para ver isso claramente; por exemplo,
alguém que está encerrado em uma indústria 17 horas por dia, e que vai

tentar entender o sentido da sua vida a partir dos objetos que são produzidos

naquele rito industrial. É claro que nós podemos contar com um monte de

dificuldades contemporâneas, a sociedade de consumo, o modo como a

sociedade da qual Bauman nos fala, a sociedade líquida que pauta todo

o horizonte dos seus sentidos nesses objetos industrializados, que torna

o consumidor incapaz de transcender aquele ambiente imediato da sua

experiência e que é aquele que satisfaz as suas necessidades imediatas. Isso

me parece um exemplo cristalino desse tipo de insuficiência que o símbolo,

dentro das suas estruturas simbólicas, é incapaz de fornecer. Eu noto que

esse é uma primeira matriz que o símbolo nos traz, o da insuficiência

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E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
perante o enigma.

Há uma segunda matriz que é muito importante: a da relação existente

entre o símbolo e o simbolizado, ou seja, como nós simbolizamos aquilo

que nós queremos dizer, tendo, no entanto, todo um encarceramento

cognitivo dentro dessas estruturas. Aqui podemos pegar muitos exemplos

clássicos e contemporâneos, dentre os quais eu vejo um bom exemplo no

politicamente correto; você lida com códigos simbólicos que são imperiosos

e que se justificam desde um ponto de vista psíquico a sua adesão ou

repulsa, justamente do modo como esses códigos foram formados no

interior do ser humano; a relação do símbolo que está para o simbolizado,

que é a de um indivíduo que está imerso na imagem de sociedade que

esses códigos produzem, é alguém que se vê preso a esses códigos, seja

por razões imaginativas, imagéticas, estimativas, motivos que são afetivos

ou emotivos, que o impedem de transcender esse horizonte dos afetos e

das emoções para analisar a questão da estrutura simbólica que lhe impõe

esses comportamentos.

Há uma terceira matriz importante: todo símbolo é, sob certo

aspecto, uma norma, uma lei, ele nos traz a perspectiva da coerção, nós

não somos capazes de transcender essa estrutura, porque ao fazê-lo nós


estamos entrando em uma zona de risco; o casal de camponeses que

estava preso na indústria em Londres no final do século XIX, caso trabalhasse

apenas 8 ou 9 horas por dia, certamente seria substituído do processo. Por

quê? Porque o homo faber, essa condição reducionista do ser humano, é

alguém que pelo seu trabalho se objetiva nas coisas. Marx diz no Capital

que o homo faber se objetiva na produção; as coisas são carregadas de

sentido na medida em que o trabalho está autodeterminado na coisa em

si, e essa autodeterminação do trabalho na coisa produz nesta algo que a

transcende, que não se reduz apenas a ela mesma, mas se articula nessa

estrutura de trocas simbólicas.

Quando nós observamos isso desse ponto de vista, notamos uma

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E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
forma muito sutil, mas muito importante de se verificar: nessa relação

da coisa com o ser pensante que há um certo elemento coercitivo que

traz uma série de normas e códigos sociais subjacentes que não são

manifestos de pronto, mas na tensão entre a palavra e o silêncio, entre

o medo e a expressão. Essa tensão é algo que vai ao mesmo tempo

produzindo elementos cada vez mais coercitivos na sociedade, impedindo

as pessoas de pensar e agir, justamente para contrapor certas medidas

histriônicas nessa sociedade e, ao mesmo tempo, o aumento progressivo

dessa estrutura simbólica. E, na medida em que a Economia e a Política

se unem nesse aspecto, é como se o poder e a economia fabricassem uma

miríade de objetos que são colocadas em circulação não apenas como

produtos econômicos, mas modelos e formas de vida, formas estéticas de

vida que coincidem com essas estruturas simbólicas, fazendo com que elas

aumentem significativamente os seus poderes.

Eu falava no carro vindo para cá com alguns de vocês acerca dos

poderes e instituições tradicionais da sociedade: as igrejas, os templos

religiosos, os poderes políticos — Judiciário, Executivo, Legislativo, Chefe de

Estado, os parlamentos, os tribunais constitucionais, os tribunais de cassação,

os poderes tradicionais dos Estados modernos e do Estado-nação — vão,


paulatinamente, sendo destruídos como que por poderes maiores e mais

convergentes com essas novas estruturas simbólicas, que fazem com

que esses novos poderes maximizem as estruturas simbólicas de uma

forma sutil; alguns exemplos desses poderes são a imprensa, a tecnologia,

as corporações metacapitalistas, e outras instituições que vão se somando

a esse novo cenário, onde nós vamos percebendo que o aumento dessas

estruturas simbólicas vai representando uma espécie de encontro entre

a história e a meta-história.

Carl Schmitt71 diz que no Estado moderno a ideia do soberano na

atual circunstância dos Estados de Direito e de exceção, representa a

71  Carl Schmitt (1888-1985) foi um jurista, filósofo, político e professor universitário alemão.

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E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
secularização completa das categorias espirituais no tempo na história, é

como se nós imanentizássemos na história as categorias que formaram os

códigos simbólicos da civilização de todos os tempos que agora ganham

uma roupagem secular nas instituições que, obviamente, produzem o

aumento de poder dessas estruturas.

Podemos nos indagar se o Poder Judiciário, o Legislativo e o Executivo

ainda têm o poder que tinham. E aqui nós temos uma pergunta um tanto

quanto retórica — para não usar técnicas de eloquência verbal: se, de

repente, os poderes como o da mídia, das corporações, ou mesmo o poder

da tecnologia não apenas tenham substituído esses poderes tradicionais

como, mais do que isso, tenham se valido desses poderes tradicionais para

expressar um grau de normalidade que, no fundo, não existe, ou seja, um

grau de normalidade que expressa uma, digamos, dimensão consciente,

e sob certo aspecto até sedutora, porque cria uma estabilidade artificial,

mas que fundo produz uma maximização do horizonte de poder para

além dessas estruturas.

Parece-me muito claro que, a partir do momento em que nós

transitamos da ficção para a realidade, do mytho ao logos, ou do

reconhecimento do mistério para o de uma outra dimensão que vale-se


do mistério para criar um mecanismo psicológico de obstrução dessas

estruturas por trás do mistério, é como se desde um mundo real e concreto

nós transitássemos para um mundo novo, mas que no fundo esse admirável

mundo novo nada mais é do que uma manifestação dentro de nós mesmos,

na medida em que nós passamos a avaliar o quanto esses elementos

coercitivos dirigem as nossas condutas e expectativas na sociedade em que

nós vivemos.

Então, chegamos ao nosso último ponto: essas estruturas simbólicas

não podem prescindir dos mitos; faço-me entender: elas não podem

abdicar de uma linguagem suficientemente enigmática para promover

certos estados de coisas; as trocas simbólicas, as relações de consumo, as

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E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
relações humanas da sociedade, os dilemas psicológicos que são elevados

a um grau de normalidade cada vez maior, sem que no fundo não exista

uma camada superficial que distancie a expressão da designação, que faça

um distanciamento progressivo do símbolo em relação ao simbolizado,

que mascare as relações de tal modo que os seres humanos vão se

autodeterminando como formas individuais de vida que dependem desses

objetos que são colocados em circulação. Quantas pessoas vocês conhecem

que são viciadas em consumo, por exemplo? Certamente vocês conhecem

muitas pessoas que não conseguem ficar sem ir ao shopping dia sim e dia

não; isso é apenas um exemplo, mas acontece porque a pessoa, na sua forma

de vida, criou uma camada superficial que expressa um grau patológico de

dependências de certos objetos.

Isso é um fenômeno do nosso tempo ou isso sempre existiu? E

a resposta é: isso sempre existiu, não é um fenômeno do nosso tempo,

sempre existiu na história humana, com outras palavras, outros jogos

linguísticos, outras trocas de estruturas simbólicas, mas, no fundo, essa

tensão permanente entre estruturas de dominação e estruturas que

através de um processo de alienação buscam libertação cognitiva. Isso

sempre existiu na História.

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E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
PA RTE 8

A LITERATURA

E O REFLEXO DO HOMEM
Há um limite para a transcendência que um homem pode alcançar.

Se o Outro é um convite para nossa autotransformação, podemos tomar

dele emprestado, enquanto modelo, valores e percepções, sem jamais

assumir, contudo, seu mesmo ponto de observação.

Mas é precisamente este o movimento que a história nos exige: que

adotemos as lentes daquela sociedade ou objeto que estudamos, para

compreendê-los em sua completude. Trata-se de procurar as alternativas

que nos restam para, com nossos próprios entraves, conseguirmos fazer

esse deslocamento no tempo e no espaço.

LUCAS FERRUGEM: Na minha interpretação, tudo isso que o Marcus

nos fala serve como uma marreta na nossa consciência para a busca da

formação da nossa personalidade. Se estamos, de certa forma, sempre

buscando essa fresta de enxergar fora do nosso mundinho produzido e

artificialmente criado colocado em diferentes tempos, do ponto de vista

histórico, conseguiremos olhar para os outros tempos com os olhos deles e

não com os nossos, quando falamos dos mitos, das políticas, das histórias e

de tudo mais? Porque o homem de determinado tempo sempre vai poder

dizer que para ele naquele tempo tudo era tudo normal.
GUILHERME ALMEIDA: Não vou ser taxativo, mas é quase impossível no

meu ponto de vista. A História tem um termo chamado anacronismo; é

muito complicado com as nossas visões, valores e apreensões da nossa

realidade analisarmos os gregos antigos; peguemos um exemplo claro: o

homossexualismo dentro da Grécia Antiga. Como todos nós que imbuídos

dos nossos entendimentos, pré-conceitos, previsões, vamos analisar aquele

contexto histórico? Você tem de analisar com amplitude para tentar entender

aquilo sem julgamento de valor — o que é muito difícil — na Academia

tentamos fazer a isenção da visão apaixonada das fontes históricas, mas me

diga: como? Porque desde a hora que você elege o objeto a ser estudado,

você já está colocando o seu ponto de vista sobre a escolha, imaginemos,

68
E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
então, no caso de uma análise de tempos passados. Eu acho extremamente

complicado.

Há aquele homem trabalhando 17 horas por dia — sem tempo nem

para ir para a igreja, porque a vida dele é aquele objeto mesmo do trabalho

que o aliena — e o mundo, depois da Segunda Guerra Mundial, tem as

famosas 8 horas de lazer, o homem preenche isso com o que? O primeiro

não se analisa, e, o que é interessante, depois do Congresso de Viena de

1815, vamos legitimar novamente o Estado absolutista francês.

Acabou o Estado absoluto francês quando Luís XVI foi guilhotinado;

aquela estrutura, mesmo capenga, ainda existia e existia uma figura

representativa do rei absoluto, nos termos de Jean Bodin72, do direito divino

desse governante, esse rei que vai tomar o controle da França depois que o

Napoleão Bonaparte é exilado na Ilha de Santa Helena; Luís XVIII, irmão do

Luís XVI e depois o seu outro irmão Carlos X, mas eles jamais conseguirão

ter as estruturas simbólicas dos anteriores; danou-se a estrutura, o leite

derramou, não há mais linguagem, e então, a ideia da nação abstrata entra

no lugar do coordenador da nação que é o monarca, o símbolo são outros;

Tentarão manter aquele poder, mas não conseguirão.

Há duas — devem haver muitas outras — tentativas que parecem ser


premonitórias acerca da população em falar não a essa mortificação, não

ao avanço das massas de Hegel:

O primeiro é o caso do Grande Massacre de Gatos, comentado no livro

de mesmo nome de Robert Darnton73, onde ele fala sobre a mentalidade

francesa pré-revolução, ou seja, ele está tratando da metade do século

XVIII: em algumas tipografias francesas os donos davam a comida primeiro

para os gatos, e o que sobrava ia para os trabalhadores, até que chega o

momento em que eles acabarão com isso, e qual é o símbolo que eles

elegem? Os gatos. Não é o patrão, eles buscam os gatos das grandes

72  Jean Bodin nasceu em 1530 e morreu em 1596. Foi um teórico político, jurista francês, membro do Parlamento
de Paris e professor de Direito em Toulouse.
73  Robert Darnton (1939) é um historiador cultural e bibliotecário estadunidense.

69
E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
famílias ricas, principalmente uma gata odiada que era a Madame Mimi,

fazem um grande carnaval dos gatos, colocando-lhes em cestos, tacam

fogo e dançam ao redor.

O segundo momento é feito por Ned Ludd74, um proletário das

fábricas, que olhará a máquina como o seu grande algoz e promoverá um

movimento de quebra-quebra das máquinas, conhecido como Ludismo.

Quem está com o poder, divino ou institucional das nações, vai

conseguir moldar a sociedade; o que nós temos hoje em dia é a glória

de toda a propaganda midiática de consumo, as oito horas de ócio — de

Russell, não de Domenico de Masi — estão sendo empregadas em quê?

Alienar mais ainda: consumo e redes sociais.

Considero isso um evento muito fresco para fazermos uma análise

histórica, mas para uma análise filosófica isso é um prato cheio: se você

trabalhava dezessete horas por dia, mas depois apenas oito horas,

descontado o descanso, sobram-lhe ainda oito horas para o lazer, e o que

você faz nas oito horas de lazer?

E depois, estudando o que é a Primeira Guerra Mundial, notamos

que há um sentimento de incerteza tão absurdo na estrutura da civilização

europeia, que Duchamp75 pode colocar um mictório no meio da sala e dizer:


“Isso é arte!”; muitos criticam, mas a ideia dele é genial, o termo dadaísmo

vem de “dadá”: a criança que não sabe o que fala, não sabe o que é a arte.

A Arte é a representação do belo do Scruton76? Pode até ser, mas naquele

momento tinha de ser? Qual é a outra instalação que Duchamp faz? Uma

pá de neve.

Uma vez eu estava discutindo com o Fábio Faisal, grande entendedor

de Arte Moderna, e nós começamos a discutir os livros sobre Velázquez77

de Ortega, e fomos parar na pá de Duchamp, eu falei: “Mas será que essa

74  Ned Luddé uma pessoa cujo nome foi utilizado pelo movimento ludista que atuou principalmente na Inglat-
erra por volta de 1810.
75  Marcel Duchamp (1887-1968) foi um pintor, escultor, poeta e precursor do movimento Dadaísta.
76  Roger Vernon Scruton (1944-2020) foi um filósofo e escritor inglês.
77  Diego Rodriguez de Sailva y Velázquez (1599-1660) foi um pintor espanhol, principal artista da corte do Rei
Filipe IV.

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E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
pá não tem que ver com um instrumento do início da Primeira Guerra

Mundial?”, há uma frase de um general francês que diz: “Eu nunca vi uma

guerra em que uma pá tem mais poder do que uma espingarda” (por causa

das trincheiras). Isso plantado, o século XIX muito sentido por Nietzsche e

Kafka, resulta na Primeira Guerra Mundial, acaba aquele mínimo de certezas,

mesmo políticas, e a geração dos poetas amaldiçoados dos loucos anos 20

estão em Paris. A vida é única, é o carpe diem mesmo.

Essa ideia que hoje em dia sentimos nos movimentos, por exemplo,

midiáticos, como as fake news, é sentido em momentos de incerteza; o

próprio Bauman trata disso, segundo ele, a incerteza leva ao surgimento

de novos movimentos. A pergunta que fica é: será que Hitler78, Mussolini79,

Franco80 e Salazar81 teriam ambiente propício para surgir antes da Primeira

Guerra Mundial? Historicamente foi criada essa plateia, pois o Tratado

de Versalhes destruiu a Alemanha e transformou o território alemão em

um lugar fértil para essa loucura que veio a ser o Nazismo; a mesma coisa

aconteceu com a Itália arrebentada com Mussolini, Franco na Espanha,

Salazar, em uma outra condição, em Portugal.

A Arte, ou não-arte, nesse período é uma grande linguagem para

entender isso; já que o ser humano é uma massa, ela será moldada
conforme o império de alguém, não com símbolos que a sociedade não

enxerga, mas com aqueles que alguém enxerga. Por exemplo, Salvador

Dalí82 produz muitas obras entre 1928 e 1931, os quadros desse período

têm símbolos fálicos que estão sempre em tipoias ou muletas, porque a

sociedade em que ele vive é morta, impotente, frouxa. Um exemplo disso,

no contexto da Crise de 29, consta em uma obra chamada de O Grande

78  Adolf Hitler (1889-1945) foi um político alemão líder do Partido Nazista (Nationalsozialistische Deustsche
Arbeiterpartei, em português, Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães) responsável pela Segunda
Guerra Mundial.
79  Benito Amilcare Andrea Mussolini (1883-1945) foi quem liderou o Partido Nacional Fascista e a Itália durante a
Segunda Guerra Mundial.
80  Francisco Franco Bahamonde (1892-1975) foi um militar e chefe de estado espanhol.
81  António de Oliveira Salazar (1889-1970) foi um estadista nacionalista português e governou Portugal desde 5 de
julho 1932 até 27 de setembro de 1968.
82  Salvador Dalí i Domènech de Púbol, 1º Marquês de Dalí Púbol, (1904-1989) foi um importante pintor espanhol
da escola Surrealista. Seu posicionamento político comentado mais à frente conta com o período da juventude
em que abraçou o anarquismo e o comunismo, e o período maduro, no qual declara ser anarquista e monarquista.

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E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
Masturbador, não só o mundo, mas ele mesmo estava impotente, porque o

mundo se desvaneceu quando o grande símbolo que estava nos segurando

ainda, o Liberalismo, caiu. O Impressionismo ainda estava em voga, mas sem

aquela força do que era com Monet, Manet, Degas, e agora novas estruturas

artísticas surgem. Perdeu-se a referência, a incerteza dominou, e a única

que tinha — que era a econômica — pifou em 1929.

O que vai acontecer? Qual é a boia de salvação? Símbolos que dão

aconchego e que fazem com que você não pense no seu eu distorcido,

arrebentado e arruinado; como esse homem-massa está perdido, líderes

carismáticos são abraçados: o duce, o fuhrer, um homem se autointitula

como “o guia” chega no trabalhador alemão e diz: “Vem cá querido, me dê

a sua mão, vou tirá-lo da lama econômica”. Nada é pensado.

E aí eu pergunto: se estivéssemos lá, pensaríamos? Notem como é

complicado fazer o julgamento de uma população inteira arrebentada, não

só pelas outras nacionalidades, mas por méritos próprios também. Faço-lhes

uma recomendação muito bacana do filme chamado A Fita Branca, filme

de 2009 em preto e branco, no qual é mostrada uma família germânica,

nele é possível entender sutilmente como aquela organização rígida do

Segundo Reich, de Otto von Bismarck83, do Kaiser Guilherme84, resultará


mais para frente na mudança do sentido e dos valores da sociedade. Victor

Klemperer85, na sua obra LTI: A Linguagem do Terceiro Reich, é muito claro

quando analisa os discursos que estão colocando novos valores.

Quando Locke86 cria a base daquilo que virá a ser o Iluminismo, a

negação de todas as estruturas anteriores em detrimento da razão, ou

quando surge aquela famosa frase “o homem só será livre quando o último

rei for enforcado nas tripas do último padre” (de autoria duvidosa, pode ser

Diderot ou d’Alambert), surge a ideia de que o homem é livre, política, social

83  Otto Eduard Leopold von Bismarck-Schönhausen (1815-1898) foi um nobre, diplomata e político prussiano.
84  Guilherme II (1859-1941) foi o últio imperador alemão e Rei da Prússia de 1888 até a sua abdicação em 1918, no
final da Primeira Guerra Mundial.
85  Victor Klemperer (1881-1960) foi um professor universitário de filologia românica perseguido pelo regime na-
zista.
86  John Locke (1632-1704) foi um filósofo inglês conhecido como o pai do liberalismo.

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E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
e religiosamente livre, mas quem controla essa liberdade?

A Revolução Inglesa é um exemplo interessante disso, durante 48

anos bateram na tecla do fim do absolutismo dos Stuart, colocam Oliver

Crowell87 no poder, no entanto, ele é mais ditador (sendo anacrônico, porque

a palavra não existia na época) mais totalitário e mais déspota do que o

rei. O que a própria estrutura vigente faz? Retoma a monarquia, porém,

com um poder limitado por um símbolo que foi criado em 1215 com a Carta

Magna, coisa que a França não aprendeu.

MARCUS BOEIRA: Quando lemos, por exemplo, “O Antigo Regime e a

Revolução” de Tocqueville88, percebemos claramente que os rudimentos da

destruição da ideia de autoridade, uma autoridade secular que assume em

si o direito divino, o poder total, já estava sendo gestada nas modificações

sociais, nas modificações dos padrões estéticos, na migração em massa

da nobreza para as grandes cidades e na fuga da monarquia para fora da

cidade. Essa transitoriedade das classes sociais no território foi gestando a

revolução, mas, se observarmos, essa crise também merece uma análise

no campo reflexivo, porque aí nós percebemos que essa transitoriedade

no território respeita códigos estéticos, simbólicos e artificiais cada vez

mais presentes na sociedade europeia — particularmente na França —,


talvez seja a época em que o esteticismo substituiu de maneira definitiva

os padrões sociais porque anteriormente a estética e a ética davam-se as

mãos. A estética tinha um código ordenador, produzido e fornecido pelos

aspectos morais que regiam os atos e ações humanas.

Hannah Arendt fala em três aspectos, eu vou adicionar mais um

e chamar junto disso - valendo-me dela - dos chamados “coveiros da

modernidade”. O que é isso? Aqueles autores que levaram às últimas

consequências o projeto moderno a partir do fracasso liberal (no sentido

clássico do século XVII), que respeitava as formas, os valores morais e que,


87  Oliver Cromwell (1599-1658) foi militar e líder político, signatário da sentença de morte do rei Carlos I (1649), co-
mandante da Campanha Inglesa na Irlanda (1649 e 1650) e responsável pela dissolução do Rump Parliament (1653),
para o qual foi convidado a liderar como Lorde Protetor da Inglaterra, País de Gales, Escócia e Irlanda.
88  Alexis-Charles-Henri Clérel, mais conhecido como Alexis de Tocqueville (1805-1859) foi um pensador político,
historiador e escritor francês.

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E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
no fundo, eram manifestações do “amor pela Humanidade e ódio pelo

vizinho”, como dizia Dostoiévski nesse sentido mais concreto; o fracasso

desse projeto foi acompanhado por quatro autores que o levaram às últimas

consequências, juntamente com a Hannah Arendt eu os chamo de coveiros

da modernidade, justamente porque, levando às últimas consequências,

mostraram as fragilidades dessa época, que são respectivamente: Marx,

Nietzsche, Kierkegaard89 e Freud.

Em Marx, a revolução, que seculariza toda a vida do espírito, resulta

em um ideal inatingível que justifica o tribunal da História que, por sua

vez, é a revolução; permanece esse senso de auto justificação em razão

de um futuro que há de vir e que representa essa relação entre o meta-

histórico e o histórico.

Já Nietzsche está na lista porque expôs de maneira cristalina o

fracasso do super-homem no contato consigo mesmo, talvez nenhum

pensador tenha exposto isso de maneira tão cristalina e poética, até mesmo

com simbolismos profundos, essa é a insuficiência do projeto moderno

em fazer com que o ser humano se torne um indivíduo, para então surgir

um sujeito.

Kierkegaard, é um grande pensador lamentavelmente pouco


conhecido, leva às últimas consequências a incapacidade de o homem

moderno ter mais do que a mera ciência, ter consciência da própria fé

em si e no outro que é Deus, esse diálogo profundo da consciência com a

voz que vem de fora, é algo que vai paulatinamente desaparecendo, e aí

a ideia do silêncio também vai desaparecendo para dar lugar ao falatório,

à sociedade do espetáculo, onde os códigos estéticos substituem os

códigos cognitivos, e eu passo a ter uma vida que não é minha, mas do

outro, do modelo mimético que não é meu, mas serve para ser imitado.

Freud, em último lugar, porque nele todo o simbolismo presente nas

narrativas míticas da Antiguidade se mostra de maneiras também cristalinas,


89  Soren Aabye Kierkegaard (1813-1855) foi um filósofo, teólogo, poeta e crítico social, considerado como o pri-
meiro filósofo existencialista.

74
E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
como aspectos correspondentes aos problemas da subconsciência e

da inconsciência, e com a visão trinitária da psique humana, o ego e o

superego respeitam relações que dependem dessas narrativas para sua

explicitação mais profunda, mostrando que as patologias cognitivas são

decisivas para o modo como os seres humanos nas sociedades modernas

vão adotar certas medidas, mergulhar em certas formas de vida que no

fundo são códigos artificiais.

Chegando no século XX, outros autores manifestam três condições

humanas muito presentes no nosso tempo: a náusea, o reconhecimento

e a morte. A náusea é de Sartre90; o reconhecimento de Axel Honneth91, um

dos grandes pensadores da Escola de Frankfurt, e a morte passa a ter uma

acepção muito mais próxima do aspecto descartável que se torna a vida

humana, que agora passa a ser tomada como um objeto de produção e

troca simbólica mais do que tudo, em contraste com a visão da imortalidade

da alma que era presente na cultura clássica e latina.

A náusea é a explicitação dos estados profundos das emoções e dos

afetos humanos, que substituem a idealização real da caritas.

O reconhecimento, que substitui a livre participação na pólis grega,

como mecanismo que torna o ser humano presente na pólis, e, portanto, na


ordem na qual eles interagem e existem.

A morte, que era tomada como uma condição de passagem para uma

vida posterior e ulterior, agora passa a ser tomada como um fim definitivo,

que acalenta não só a ideia de um reconhecimento artificial dentro das

estruturas simbólicas, mas também retroalimenta o aspecto nauseante

inicial que marca a condição humana.

A Filosofia da existência e da consciência desloca o eixo de atenção

do mito e de seus aspectos enigmáticos que ali estão presentes em maior

ou menor medida, para aquela outra dimensão da existência humana, na

90  Jean-Paul Charles Aymard Sartre (1905-1980) foi um filósofo, escritor e crítico francês.
91  Axel Honneth (1949) é um filósofo, sociólogo e diretor do Instituto para Pesquisa Social da Universidade de
Frankfurt, de onde surgiu a Escola de Frankfurt.

75
E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
qual o ser humano bruto, em contato profundo com a sua natureza, passa a

ser o requisito fundamental para a definição do que é a natureza humana; é

como se a grande atenção da Filosofia da existência fosse dirigida agora

para uma visão reducionista da natureza humana, que ignora esse aspecto

enigmático que pertence ao âmbito da consciência do ser humano.

Essa visão de modernidade vem em total complemento àquilo já

falado aqui, porque ela vai escancarar, em última análise, o que está no

senso profundo do homem-massa, do homo faber (que é uma expressão

do Marx), o qual, para sua própria determinação, depende de um outro ato

ainda mais fundamental e decisivo, que é o ato de morrer para si mesmo

para determinar-se nas coisas que cria e produz, o morrer para si mesmo

é entregar-se de corpo e alma para essas estruturas simbólicas que vão

usar essa personalidade muito mais no sentido do que é descartável do

que aquilo que tem um valor em si.

Parece-me que essa maneira de encarar o problema, nos leva também

a constatar que assim como a simbólica e a mitologia foram de alguma

forma sendo transfiguradas nesse processo contínuo de transformação

na era moderna, também os gêneros literários dependentes dessas

narrativas míticas foram sofrendo esses processos de alteração e


transformação. Apenas a título de exemplo, no âmbito da Lógica, aquilo

que era tomado como falácia e sofisma passa a ser empregado na vida

pública como um discurso legítimo e compartilhado, sem que as massas

— no sentido sociológico, não pejorativo — possam, nesse sentido, serem

capazes de verificar que por trás desse discurso falacioso, há sempre uma

estrutura simbólica que alimenta esse discurso, retroalimentando-o para

legitimar essas instituições.

A conexão com a história, que me parece também extremamente

importante nesse sentido, é que nos movimentos sociais e nos movimentos

históricos existe uma perspectiva horizontal de expansão, quer dizer, as

relações de verticalidade entre a história e a meta-história vão cedendo,

76
E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
para colocar a meta-história dentro da própria história, e esse processo

é fruto de um processo de secularização que vai criando dilemas

cognitivos profundos, onde os códigos estimativos dos seres humanos

vão se tornando dogmas religiosos dentro da vida civil e secular. Para

transfigurar uma ficção em uma realidade, ou um mito em uma fake news

ou vice-versa, é um passo muito possível, enquanto que na Antiguidade

nós vamos confiar no espaço que existe atrás dessa narrativa. Agora nós

confiamos na nuvem que existe na internet para sustentar e articular os

nossos dados sem que nós tenhamos nenhum poder decisório sobre essa

mesma articulação, o que aponta para a técnica a serviço das estruturas

simbólicas.

A minha grande questão passa a ser esta: no encontro entre a Filosofia

e a História, como os gêneros literários vão produzir novas expressões dessas

formas de vida? Um autor que me espanta nesse sentido, porque parece

muito concreto e realista do ponto de vista da existência, é o Houellebecq92;

por exemplo, ele escreveu esse grande clássico chamado Soumission, mas

há também outras obras importantes dele como Seratonin, onde ele mostra

a produção de uma vida humana extremamente nauseante, os reflexos e

as consequências do uso de drogas pesadas e, também, as relações sociais


para mitigar esses processos nauseantes que passam no interior cognitivo

de um ser humano que padece dessa condição.

Como a literatura será capaz de expressar esses estados que,

embora presentes na literatura clássica, tornam-se mais do que meras

constatações intencionais dos seres humanos, para serem tomados

como padrões cognitivos e padrões de vida humana? Como a literatura

contemporânea será capaz de expressas esses estados e formas de vida

humana?

Nós olhamos e observamos autores como o próprio Dostoievski,

por exemplo, e percebemos uma riqueza profunda de análise de um ser

92  Michel Houellebecq, nascido Michel Thomas (1958) é um escritor francês, ficcionista, poeta e ensaísta.

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E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
humano que saindo de si, desse processo totalizando de imersão em uma

estrutura simbólica altamente opressora, é capaz de encontrar um refúgio,

não só nos mitos e nas narrativas literárias, mas mais do que isso, é capaz

de encontrar um refúgio dentro de si mesmo, e nós nos perguntamos:

qual é o lugar da liberdade? É o lugar da responsabilidade externa ou a

interioridade humana de um eu consciente? Essa é a grande questão.

GUILHERME ALMEIDA: Na mitologia indiana, quando analisamos o livro

do Paramahansa93 chamado Autobiografia de um Iogue, notamos que ele

passa meses estudando os véus de Maia, as camadas de ilusões colocadas

para dentro. Você, Marcus, colocou muito bem a questão do consumo de

redes sociais e crenças em determinadas coisas, por exemplo, as quais esse

eu que você falou que é um lugar que deveria ser de plenitude e liberdade;

por mais que você não aprofunde esse eu, você não vai lá dentro do labirinto

para matar o Minotauro, qualquer uma das camadas é o seu eu.

O que é interessante notar dessa visão de ilusões, é que muitos

acreditam no reflexo do objeto e não nele próprio, e quantas camadas há

no século XX? O século XXI está indo pelo mesmo caminho, mas quantas

camadas dessas ilusões são colocadas para dentro? Qual é o esforço para

chegar nesse eu? A Literatura é um dos caminhos, você vai aprendendo


outras visões, questões, para tentar ver — mesmo em que em um lampejo

pequeno — o seu reflexo.

Eu brincava com algumas alunas minhas dizendo: “Vamos interiorizar

o estudo de religiosidade que nós fazíamos”, então uma perguntou: “Mas, e

quando você não gosta daquilo que você é?”, só que é impossível não gostar

daquilo que você é, porque aquilo é você, mas, claro, pode não gostar da

ilusão que você está vendo. Quase como aquela velha frase: “Jesus te ama,

porque não vive com você”. O que vive comigo? A ilusão ou você mesmo? O

desenvolvimento da linguagem literária, nas suas várias vertentes, pode ser

uma chave para esse encontro ou reencontro.


93  Paramahansa Yogananda (1893-1952) foi um iogue e guru indiano, considerado por muitos um dos maiores
emissários da antiga filosofia da Índia para o Ocidente.

78
E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
No entanto, o século XX é demasiado barulhento, cheio de grandes

manifestações políticas, quebras de paradigmas, a queda da União Soviética,

etc. Agora pode tudo, mas tudo o quê? É complicado para esses novos

escritores de Literatura desvendar isso.

79
E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
PA RTE 9

O MITO E A VERDADE
A verdade, ainda que não mencionada, sempre se faz presente.

Ancora-se nela cada ação tomada, cada escolha feita, cada

comportamento adotado. Aquilo que chamamos de verdade é a base

sobre a qual repousa a nossa existência.

Saber onde a encontrar é o enigma que se impõe. Para desvendá-la,

precisamos questionar: “O que é a verdade? Como podemos diferenciá-la

daquilo que, tomando emprestado suas vestes, é precisamente seu

oposto?”.

Dessa reflexão depende nossa trajetória. Na sua ausência,

resta-nos pautar a nossa vida pelas falsas histórias.

LUCAS FERRUGEM: Eu queria colocar uma questão considerando

um aspecto da Arte que funciona como um documento histórico da

Humanidade em diferentes períodos; há um filme de Eisenstein94, na Rússia,

chamado O Encouraçado Potemkin, o filme mostra que agora não há mais

protagonista, o protagonista será a massa, a câmera não vai mais para um

personagem, ela vai pegar o povo. A grande pergunta é: isso é o ideal do

artista de como deve ser a realidade ou isso é um retrato de uma realidade


nova que ele estava percebendo?

E, mais uma questão — talvez essa seja a melhor das questões, essa

sim talvez a pergunta de um milhão de dólares — para nos direcionarmos

para o final: o papel da verdade na produção artística, dos mitos, da Literatura,

das poesias, de todas essas formas em que a já tentamos manifestar isso ao

longo da história, nós criamos histórias ou só as descobrimos?

MARCUS BOEIRA: Essa é uma questão de um milhão de dólares como

você disse. Em primeiro lugar, o conceito de verdade é um conceito que

desafia a semântica autorreferencial. O que eu quero dizer com isso? A

palavra verdade, por si só já impõe uma indagação a respeito da sua própria

94  Serguei Mikhailovitch Eisenstein (1898-1948) foi um dos mais importantes cineastas soviéticos.

81
E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
colocação, por exemplo, existe a verdade dos laboratórios, dos tribunais, da

ciência e pseudociência, do jornalismo, jornais, revistas, Matemática, Física,

Ciências da Natureza, Humanas (ou não), Teologia e diferentes tradições

religiosas.

O que é a verdade? A resposta exigiria uma variedade de

perspectivas de análise, a começar pelo aspecto propriamente semântico

da expressão verdade, e a terminar pelas suas diferentes considerações

uniformes dentro dessa variedade de campos da qual eu falava; por

exemplo, existe a verdade da Lógica, a proposicional; existe a verdade da

Matemática e Ciências Naturais que é uma verdade falseável, porque está

sujeita à dimensão hipotética, e existe a verdade que também depende da

descoberta, ou seja, um contexto de descoberta no qual o insight humano é

capaz de captar algum aspecto ou criar certos procedimentos para chegar

lá.

Alan Turing95 descobriu uma máquina que foi essencial para o

desfecho da Segunda Guerra Mundial, mas como ele descobriu essa

máquina? Ele teve um insight, e essa máquina é verdadeira segundo

as funções porque ele fez isso; só que existe um outro conceito muito

importante dentro disso, que é o contexto de justificação. Quando nós


partimos daquela verdade que é alcançada pelo contexto da descoberta e

migramos para um outro campo que é o da causa final, o que nós queremos

com isso? Qual é o nosso objetivo, finalidade, a partir dessa verdade que foi

descoberta?

Quando indagamos essas coisas todas, temos também de refletir

sobre uma questão muito importante: existe um chaveamento muito

importante, que é o desempenho que a concepção de verdade tem

relativamente à sua insuficiência em si e na sua descoberta; nós vemos isso

claramente nos vícios humanos: a soberba, o orgulho, a vaidade, a arrogância,

a inveja, a ira, são vícios humanos que, de alguma forma, apresentam


95  Alan Mathison Turing (1912-1954) foi um matemático, cientista da computação, lógico, criptoanalista, filósofo e
biólogo teórico inglês.

82
E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
limitações no ser humano para que eles alcancem alguma coisa.

O que é essa coisa? Qual é o contrário de pulsão e vício que se

estabelece de uma forma relativamente estável dentro do ser humano?

Há um contraponto, e ele pode ser dito, mas tudo o que se siga a respeito

deste será insuficiente para expressar aquilo que, de fato, um objeto requer

para ser significado; é como se nós estivéssemos perante uma dimensão

intangível, da verdade no sentido absoluto; e, se as coisas são realmente

assim, talvez a única chave na qual nós possámos nos colocar, para daí

verificar essa questão, é a de partir de uma distinção entre verdade e

aparência, uma dimensão que no mundo clássico era conhecida pela

diferença entre episteme e doxa, ou conhecimento científico e opinião,

respectivamente.

Notem que essa distinção muitas vezes apresenta mais problemas

do que soluções, porque no mundo das opiniões, nós lidamos com muitas

coisas que tendo até aquele momento uma descoberta científica, logo a

seguir mostra-se que aquela suposta descoberta científica era no fundo

uma cortina de fumaça; e, então, nós nos dirigimos a um outro campo

ainda mais denso de significado, que é o modo como essa episteme, ou

esse suposto conhecimento científico poderá produzir coisas que sejam


decisivas para nossa forma de vida, como por exemplo, vacinas relativas

ao Coronavírus; uma sociedade de pessoas — cientistas — são capazes de

produzir algo que torne o ser humano imune. Mas imune ao quê?

Quando nós nos perguntamos isso, somos convidados a ir a um nível,

digamos assim, que coincide com esse, mas que não se reduz a esse, pois

está no nível das estruturas simbólicas, que é o que nós podemos chamar

hoje em dia de fabricação de mitos. Que fique claro que eu não estou com

isso dizendo que o vírus não existe, ele existe mesmo e exige certos cuidados,

no entanto, há um uso político que parte dessa constatação para, nessas

estruturas simbólicas, criar um novo mecanismo de relações sociais

humanas, nos quais os novos códigos de conduta passam a pautar quem

83
E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
está dentro e fora da lei; novamente está presente o elemento coercitivo:

esses códigos simbólicos vão entrando dentro dos comportamentos

humanos, atuando como se verdade fossem, sem, no entanto, utilizar

essa palavra para dizer o que querem dizer.

A pergunta que não quer calar, portanto, passa a ser esta: se a

verdade no âmbito da política, no caso específico do qual eu estou falando,

implica no mesmo conceito de verdade que nós vamos utilizar nas Ciências

Naturais, experimentais, laboratórios, tribunais, grande mídia etc.?

Se nós não temos sequer condições de distinguir as concepções de

verdade que são empregadas nesses diferentes campos históricos de que

nós já falamos aqui, nós não somos capazes de analisar adequadamente as

relações, as conexões entre esses mesmos campos porque, embora algum

deles não possa responder de maneira absoluta — o que é verdade — eles

podem responder acerca de qual é, de fato, o objeto da ciência na qual

esses agentes estão encerrados. E se a pergunta pelo objeto da ciência

coincide com a noção de verdade que naquela ciência é a noção mais alta,

então há sim uma concepção de verdade contingente que fundamenta

e embasa isso, e que permite distinguir a mera opinião do conhecimento

científico. A questão toda é: como nós vamos saltar disso para o âmbito
dos mitos? Como as narrativas míticas podem nos ajudar a verificar essas

distinções conceituais entre as verdades dos diferentes campos e as

verdades relativas aos objetos científicos, que se propõem a modelar a

sociedade humana desde uma perspectiva simbólica e artificial?

É como se nós pudéssemos, a partir disso, usar algo, por exemplo,

fake news, como um novo mito, que apresenta um mistério do qual nós não

podemos entrar, porque, afinal, as estruturas simbólicas definem o limite e

o distanciamento do limite entre o mistério e a cognoscibilidade dos seres

humanos. Até onde eu posso conhecer e até onde eu posso ir?

84
E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
PA RTE 9

A ARTE E A VERDADE
Porta-voz de uma verdade ou expressão do estado de uma era, a

arte nos convida a exercermos nossa alteridade. Nos traços simbólicos,

cujos sentidos ultrapassam o que se vê, é a sua própria essência que o

homem percebe refletida.

Ao contemplar o quadro, adentra um novo mundo, em que o

contato com o indescritível provoca um movimento interior. É seu eu

ideal que o chama, instando-o a transformar a potência em realidade.

LUCAS FERRUGEM: Uma pessoa que estuda História é obrigada a

frequentar diferentes períodos e verificar que aquela concepção que

determinada população fazia de verdade e até como ela manifestava isso

na sua arte, histórias, tende a diferenciar em algumas coisas e se assemelhar

em outras. No âmbito da História, como você enxergou isso?

GUILHERME ALMEIDA: Acredito que a História é um pouco mais pé no

chão no advento das verdades do que a Filosofia nesse ponto. A Revolução

Russa, a Revolução Inglesa, as Grandes Navegações são fatos verídicos? São.

Logo, estamos acordados com esta questão: fatos históricos existiram.

O que se apresenta de incógnita é: o que levou a tal coisa? A

verdade de um historiador marxista está totalmente contrária à verdade do


historiador que segue uma linha política de René Rémond96, por exemplo,

ou a Micro-história de Carlo Ginzburg97, que vai pegar um fato verídico, como

a Inquisição e fazer uma análise do Moleiro de Friuli, no norte da Itália, a

respeito daquele fato. Então não é o olhar do vencedor, é o olhar do vencido,

da micro-história, da História em migalhas, da história que foi jogada na

lata do lixo quando a estrutura marxista e a Escola dos Annales98 pegaram e

criaram as suas próprias interpretações; René Rémond retorna e fala: cadê o

lugar da História Política? E por outro lado, por que só uma História Política?

Qual dentre eles será eleito como uma verdade para contar

96  René Rémond (1918-2007) foi um historiador e cientista político francês.


97  Carlo Ginzburg (1939) é um historiador italiano conhecido por ser um dos pioneiros no estudo da micro-história.
98  Escola dos Annales é um movimento historiográfico que se destacou por incorporar métodos das Ciências
Sociais à História.

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E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
determinado fato? Geralmente a minha tendência é cultura, com as ideias

de mito e a política, e eu coloco por livre e espontânea vontade a verdade

econômica no segundo ponto; de certa forma, eu estou fazendo algo errado

nesse ponto. Essa ideia de verdade dentro da História é uma complicação

absurda disso, só que ela não é complicada do ponto de vista dos fatos em

si.

Quando a primeira pergunta foi feita dirigida ao Marcus, que tem

o elemento da Arte, também depende do momento histórico, porque

temos obras de arte refletindo um certo grau daquilo que está pujante

na sociedade.

No momento em que analisamos os grandes quadros dos mestres

do Renascimento, por exemplo, as chaves simbólicas estão presentes

lá dentro, os mitos — que a maioria conhecia —, também sabemos que

havia uma obrigatoriedade de retratar verdades da Igreja Católica, porque

ela é uma grande mecenas e quer ser retratada naquela grande obra,

e, ao longo do tempo vemos a arte sendo um grande visor pelo qual

conseguimos entender algumas verdades daquela sociedade e daquela

micro organização.

Lucas, você acha que — não vou fazer juízo de valor, é só uma pergunta
—, Romero Britto99 estaria pendurado na casa do Benjamin Franklin100?

LUCAS FERRUGEM: Não!

GUILHERME ALMEIDA: Mas está pendurada! Penduraram na casa do Bill

Clinton. Basquiat101 teria sua voz em meio ao Grand Palais impressionista

de Paris de Degas, Renoir e Littré? O que eles estão retratando? Qual é a

verdade? Romero Britto é a expressão da infantilização da sociedade

brasileira, uma sociedade mergulhada no que define Daniel Urban Kiley,

no seu livro maravilhoso chamado A Síndrome do Peter Pan, cujas pessoas

têm um caderno com um ursinho e cores alegres para mostrar o quê? Que

99  Romero Britto (1963) é um pintor, escultor e serígrafo brasileiro.


100  Benjamin Franklin (1706-1790) foi um polímata estadunidense e um dos líderes da Revolução Americana.
101  Jean-Michel Basquiat (1960-1988) foi um artista estadunidense considerado por muitos como um neo-expres-
sionista.

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E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
forma? Qual a chave simbólica de interpretação? O quadro, simbolicamente,

no caso, essa arte plástica não me diz nada, mas me diz do grupo que

utiliza aquilo como forma de vida.

A Arte, na maior parte das suas diferentes vertentes — da literária

até essa que nós utilizamos — é justamente isso, o que ela diz da nossa

realidade? O que os escritores falarão a respeito dessa modernidade líquida

mais profundamente do que Bauman? Bauman é maravilhoso nessa

ideia da liquidez, mas e a profundidade? É o líquido que vai matar alguém

afogado ou vai expeli-lo? Não sabemos.

Esse é o aspecto funcional da Arte, eu entendi isso quando Fábio

Faisal me mostrou a explicação sobre uma obra, na hora que eu olhei a obra

de arte, falei: “Você está de brincadeira”, eu entendi a verdade sobre aquilo,

desvela-se um outro mundo, e ultrapassa a questão apenas da beleza do

Scruton. Tudo bem, se a beleza importa nos termos dele, quem está hoje

manifestando a beleza para o ser humano? É uma pergunta que eu faço

para mim mesmo.

MARCUS BOEIRA: É como a gente pegasse um quadro e notasse que

ele tem disposições geométricas, mas também apresenta um elemento

longitudinal que, no fundo, é um espaço para a ação humana, para o


movimento, transição, alteridade, transformação.

GUILHERME ALMEIDA: Em uma análise que estávamos fazendo na hora do

almoço sobre um livro magistral de Ortega sobre Velásquez; viemos a saber

que permaneceu obscurecido durante alguns séculos e, no século XIX, é

resgatado pelos pintores que vão considerá-lo um grande mestre, alguns vão

dizer que ele foi um dos maiores pintores de todos os tempos e, dentro dos

maiores pintores, o maior retratista de todos; alguns — ditos — entendidos

falam: “Mas, como ele é o maior retratista se ele pinta as formas humanas

sem a exatidão da perfeição?” para o que Ortega responde: “É justamente

aí que está a genialidade dele, porque o homem não é um ser acabado, é

um ser imperfeito” e, na hora que ele analisa a estética humana nessas

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E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
pinceladas, ele está analisando o seu dentro, essa imperfeição, essa coisa

que está no fazer humano, a hora em que conseguimos compreender

isso em uma obra, um novo mundo se abre.

Essa linguagem simbólica da obra de Arte, independentemente

do mundo que estamos, diz sobre a civilização, o momento e o homem.

Se pegarmos, por exemplo, a África, notaremos que as várias etnias que

coalham o continente africano, independente das considerações sobre

civilizações, todas têm manifestação artística, na qual a tela é o seu corpo.

MARCUS BOEIRA: A busca por sentido se coloca sempre nessa fusão entre

a tela e o ser humano, e essa fusão nos traz uma resposta muito premente,

que é o fato de que o quadro não mostra a totalidade do símbolo que

está ali presente, mostra antes a passagem para algo inefável; é como se

o quadro não conseguisse esgotar tudo o que se propõe a expressar, então

ele expressa algo que está em transformação, é como se o quadro fosse

uma foto, um contato de algo que está em movimento, e esse algo, o grau

de consciência, digamos assim, da origem e do fim daquele movimento

que está ali retratado, é algo que vai depender desse encontro entre o

subjetivo do humano que interpreta e o objetivo e que é expresso na

dimensão simbólica do quadro, como se o observador e o quadro tivessem


uma relação intersubjetiva, e essa relação vai ampliando a consciência do

sujeito que é mergulhado no quadro, não porque ele tem a necessidade de

compreender o quadro na sua inteireza apenas — ainda que não o consiga

—, mas porque a própria estética profunda manifesta no quadro permite

essa absorção do humano que se entrega para o outro que está nele, e é

esse eu no quadro.

Eu sou nesse mundo e, ao me colocar nessa condição, somente nela

eu serei capaz de ver a origem e o fim de uma maneira mais clara, essa é a

perspectiva dos autores do Renascimento e do Barroco, e essa é também a

marca que, de alguma forma, define o Impressionismo e o Expressionismo,

é sempre uma visão que de um lado privilegia a Geometria e do outro lado

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E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
privilegia a impressão imagética da forma, ou, em outro caso, a perspectiva

é sempre a mesma, que é a de entrar em um outro mundo onde eu sou

mais eu do que eu sou agora.

GUILHERME ALMEIDA: Servindo também de lenitivo, de novo no século

XIX, em um momento em que o Impressionismo só quer te mostrar a luz,

a Catedral de Rouen em vários momentos do dia, os nenúfares, os jardins,

a luz, porque, se o homem está também tão mergulhado em trevas na sua

vida, ele não consegue ter outra perspectiva.

Só para finalizar o meu papo, eu fico impressionado, por exemplo,

e tentando imaginar o homem medieval dentro de uma catedral gótica,

na qual a explosão de luz ele não tinha acesso no seu dia a dia, aquele

livro aberto de vitrais eleva o homem — quem já foi para Sainte-Chapelle

ou alguma dessas que eu falei, sabe —, quando vemos a luz do Sol entrar

estamos em uma outra dimensão, ela joga a pessoa para outro lugar porque

é o sensível puro, e, no mundo pálido onde você não tem cor, porque você

produzir alguma coisa vermelha é caríssimo, o carmim é caro, assim como

o amarelo, o azul (que é um pouco mais barato), onde a vida é parda — hoje

há um bombardeamento de cores — mas imagina naquele momento você

estar presente naquilo; é o espaço do ermida, é a maravilha do espaço do


sagrado, que a hora em que você entra em contato, você se eleva, e isso

pode ser uma catedral, uma capela, uma mesquita ou em sociedades

primitivas o próprio tronco, que todos seguravam para ter o sagrado

perto, em si.

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E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
PARTE 10

A GUERRA ENTRE OS MITOS


É a derrota que impera quando os mitos são devastados. Força

das civilizações, quando debilitados, restringem a capacidade de

conjecturar o futuro. E pelo desvanecimento do que há de vir, entrega-se

o homem ao agora, à sobrevivência imediata. Da guerra entre os

símbolos, intangíveis, não conseguimos escapar ilesos.

LUCAS FERRUGEM: Eu quero propor um último ponto: e quando essas

culturas, visões e ideais se chocam? Uma coisa que me arrepiou, como

estudante, e não sei se vou parar de pensar nisso ainda, é que se você pega

a biografia do Hitler e Stálin, eles mais ou menos no mesmo tempo, com

alguma escassez de documento para lá ou para cá, aparece — no caso dos

dois —, no Stálin na biografia de Volkogonov e o Hitler de Ian Kershaw, uma

poesia que eles fizeram sobre a nação deles, Stálin falando alguma coisa

do tipo: “Voa, Mãe Rússia, como você tem de ser...” e na de Hitler falando:

“Sangue alemão”. É incrível fazer um paralelo com os Estados Unidos, por

exemplo, ou pegar outras culturas; mas só para pegar esse exemplo, é

incrível que aquela bagagem cultural estava sendo formada lá trás: Stálin

dentro de uma espécie de Escola-mosteiro em que ele estava pegando

livros proibidos e tudo mais, e Hitler em situação análoga na Áustria quando


ele se vê machucado. Quando isso choca essas diferentes culturas, o que os

mitos nos contam? Quem é, por exemplo, na realidade, o Odisseu nesse

sentido?

GUILHERME ALMEIDA: Essa é outra pergunta que vale alguns milhões de

dólares.

MARCUS BOEIRA: Parece-me que existe uma perspectiva de resposta que

é bastante sedutora, apresentada por um autor muito importante que é

Karl Krauss102; ele faz um diagnóstico dos tipos e símbolos da linguagem

que produziram o imaginário do volkgeist, do espírito do povo alemão, na

etapa que precedeu a ascensão do Nazismo; poderíamos também pegar a


102  Karl Krauss (1874-1936) foi um dramaturgo, jornalista, ensaísta, aforista e poeta austríaco. Destacou-se por ter
sido indicado ao Nobel de Literatura duas vezes.

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E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
União Soviética, onde essa situação também ocorre, nós podemos perceber

no cinema, em ampla medida, ou seja, essa substituição dos símbolos e

da cultura por símbolos artificiais, ela vai introjetando novos mitos que

vão, por sua vez, justificando certas medidas; por exemplo, temos o ideal

da perfeição do homem alemão na perspectiva nazista, esse símbolo

fabricado ficou latente nas Olímpiadas onde o Hitler usou a sua máquina

de engenharia política para disso extrair benefícios que convergiriam para

essa visão simbólica do mito criado da superioridade de um povo sobre

os demais, tudo isso está nos rudimentos da cultura, e eles vão como que

produzindo essa absorção cada vez mais latente do mito.

O mito artificial vai ampliando o seu hall de simplificação e,

mesmo aqueles que dentro daquela sociedade vivem, se veem em uma

perspectiva contrastante com o próprio mito, em menor ou maior medida,

eles se veem absorvidos, ou pela adesão cognitiva inconsciente ou pela

coerção e pelo medo; é uma coisa curiosa como medo e a desconfiança

na história da civilização — o medo em particular, mas a desconfiança

também — desempenharam ambos uma função altamente relevante para

de alguma forma preparar os modos de resistência a esse estado de coisas.

Notem que o medo impele sempre à obediência, mas nesse ato


mesmo cria uma série de entraves interiores que atuam na consciência

e na psicologia do indivíduo por códigos estimativos anteriores, que

dependem de mitos passados, narrativas simbólicas que foram formando a

imaginação desse indivíduo, desse ser humano. Por isso mesmo, e apenas

em razão desses códigos imagéticos anteriores que os seres humanos

são capazes de avaliar a autenticidade ou a artificialidade desses mitos

novos, que vão sendo produzidos de modo artificial para sustentar uma

estrutura simbólica e um projeto de poder.

Como que, dentro disso, os mitos entram em contraste? Assim como

nos conflitos de visões que nós temos a respeito das nossas expectativas

do futuro, nós sopesamos essas expectativas — algumas otimistas, outras

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E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
mais pessimistas — com medidas artificiais que nós mesmos criamos, para

tentar mitigar o risco, fornecendo a nós mesmos um certo controle sobre

essas expectativas; quando os mitos entram em conflito, nós percebemos

que eles produzem nas suas respectivas sociedades e contextos sociais

uma perda de horizonte de futuro cada vez maior e uma imanentização

do tempo presente; é como se as pessoas fossem sendo convidadas a

reduzir o horizonte das próprias vidas no tempo presente, e essa redução

do horizonte de vida no tempo presente, desempenha no interior desses

seres humanos uma antecipação da morte, que foi se tornando cada vez

mais latente no interior dos seres humanos.

Parece-me que os conflitos míticos vão justamente produzindo

conflitos na ordem política e social, conflitos globais, muitas vezes, mas

que do ponto de vista antropológico, da condição humana também, isso

vai criando uma espécie de atmosfera da derrota para o seres humanos

— que não tem uma vantagem, porque, apesar das imensas vantagens do

pessimismo, como já dizia o próprio Roger Scruton — por outro lado, cria

uma espécie de empecilho na articulação entre o meu eu presente e o

meu eu futuro, onde a gestão de riscos e o levantamento de hipóteses

tornam-se medidas imprescindíveis para dar lugar ao aqui e agora e à


sobrevivência imediata, e muito disso é causado justamente por esse

temor permanente que subsiste dentro de nós, porque não esqueçamos:

somos animais racionais, mas antes de termos a diferença específica que é

a racionalidade, nós temos o ato de pertencer ao gênero animal, e é assim

que eu vejo essa questão cultural.

GUILHERME ALMEIDA: Bom, você colocou dois gigantes frente a frente;

eu nunca me esqueço de uma Superinteressante cuja capa dela é metade

do rosto de Hitler e metade do rosto de Stálin costurados; são, na verdade,

muito mais gêmeos do que antagônicos, e gêmeos que se adoram do ponto

de vista ideológico e de controle.

Há sempre um mito fundador que depois vai ser sobreposto por

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E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
outro mito fundador e assim por diante; por exemplo, os Estados Unidos

subjugam a Alemanha, fica um mundo polarizado; também podemos pegar

o exemplo da Magna Grécia que é fundada quando? A formação do povo

grego — depois da grande batalha de Troia, com as figuras de Odisseu ou

de Aquiles por exemplo — há essa localidade que é ameaçada por um outro

mito de um grupo chamado Medo-Persas, que tem uma imensa amplitude

territorial — Antioquia, tudo aquilo que é o Oriente Médio atual, crescente

fértil, Turquia — e quer sobrepujar a Grécia, nisso acontecem as Guerras

Médicas; quatro guerras de elevação desse mito em detrimento do Persa, o

que acontece com este? É absorvido, por isso o nome Magna Grécia; porém

internamente duas lideranças aparecem, Atenas e Esparta, por inúmeras

razões políticas se deflagram na grande Guerra do Peloponeso e a Magna

Grécia se esfacela. E, então, quem vem? Macedônia, que se apropria da Grécia

e divulga seus símbolos de poder para todo o leste do mundo, fazendo uma

fusão — também silenciosa — com os povos dominados, criando assim o

Helenismo, a mistura dos helenos com os povos dominados.

Isso se desvanece e começa um pequeno vilarejo chamado Roma;

acontece o rapto das sabinas, cresce uma ideia de uma grande civilização

que se amplia e que por problemas internos se deflagra, bate de frente com
outras pequenas localidades — normalmente germânicas, os bárbaros —

que colocam em xeque esse mito central da supremacia, de civilização, que

resulta na Europa feudal.

O Feudalismo é uma organização que é a fusão dos gregos e

romanos com as organizações bárbaras, surge disso não a Idade Média,

mas a Europa feudal; o Império Romano do Oriente continua por causa da

sua geografia, economia e seus próprios mitos; este império, por sua vez,

começa a sofrer ataques de um novo mito que é a formação da religião

muçulmana em 622 d.C., em 632 d.C. é o grande boom, e em 700 d.C. eles

já estão dominando a Península Ibérica, tentando chegar nos francos, os

quais Carlos Martel na Batalha de Poitiers consegue proteger, impedindo

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E-BOOK BP O MITO: ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE
que esse mito destrua o mito da cristandade. Posteriormente, surge o maior

império na História da humanidade, que é o Império Mongol, ou seja, são

vários exemplos.

Um século depois haverá as lutas dinásticas na Guerra dos Cem Anos

entre a Inglaterra e França. E não estou falando que o mito está coadunado

com as ideias expansionistas e de guerra, mas como são duas forças

semelhantes, elas estão presentes na estrutura humana. Se foi e se é, talvez

será.

Hume fala que: “Não é porque o Sol nasce todo dia que ele vai nascer

amanhã”, mas se os arquétipos são sempre repetidos, fazendo uma

analogia com uma empadinha, só muda o recheio dela, mas a massa é

a mesma; disso o que veremos? A China com seu poder global e um outro

império que estremeceu, os Estados Unidos, que não sabemos se ele vai

se perpetuar no poder por inúmeras razões (considerando a vitória de

Biden) mas provavelmente vá. Até dentro das estruturas dos povos pré-

colombianos (Astecas e Incas), há expansão em detrimento de valores e de

ideias simbólicas em relação ao outro. Parece que sim, a história se repete?

Não é isso, mas as estruturas parecem se repetir.

LUCAS FERRUGEM: Muito obrigado a todos que nos acompanharam até


aqui, quero agradecer especialmente ao professor Marcus e ao professor

Guilherme, que se dispuseram, e, acredito eu, de coração aberto à bateria

de perguntas, ao diálogo e ao enfrentamento de um tema bastante difícil;

o nosso comprometimento em fazer esse especial e gravar esses cursos no

Núcleo de Formação, é o que sempre afirmamos e sempre continuaremos

afirmando: produzir conhecimento com uma dedicação honesta, realmente

queremos, através desses temas, poder enfrentar a nossa própria vida, a

sociedade, a família e as relações humanas.

Sentado aqui eu tive a honra, e tenho certeza que quem deixou ser

absorvido pela onda dessa jornada também, de me deparar com vários

enfretamentos: Quem eu sou? Quais são as histórias que eu acredito? Em

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que espécie de civilização eu estou? Qual é o momento da minha história?

Há algum macete para enxergar através da fresta e ver algum macete que

hoje eu não enxergue e que condiciona a minha vida?

Todos esses enfrentamentos — eu dei alguns exemplos por aqui

— são indispensáveis para todos nós; como estudante me fez muita falta,

ao longo da minha trajetória, esse tipo de conversa, ambiente, proposta

e sempre foi um sonho da Brasil Paralelo não deixar os alunos limitados

aos professores do seu território, que depende quase de um aspecto

randômico para se ter um bom professor, uma pessoa que ampare o aluno

no conhecimento, e também, ter amigos para compartilhar essas ideias,

conversar, viver as perguntas que são realmente necessárias Às vezes,

passamos o dia inteiro trabalhando, estudando, fazendo o que tem de ser

feito, e ,quando colocamos a cabeça no travesseiro, nos perguntamos: “Será

que eu acredito no meu Deus? Será que eu faço o que tenho de fazer? Eu

levo uma vida boa? A minha vida a pena?”.

Essas perguntas são o verdadeiro alvo da educação, e essas são

as perguntas que buscamos incessantemente aqui na Brasil Paralelo e

honra-me levar uma conversa desse nível para vocês — dezena de milhares,

talvez — no curto prazo, além de esculpir o tempo através do filme, como


falava Tarkovsky, para preservarmos isso daqui em diante é uma alegria

tremenda.

Eu queria colocar que estou muito feliz hoje ao lado de vocês, e

fico muito feliz de empreendermos juntos essa trajetória. Eu gostaria de

agradecer especialmente aos membros da Brasil Paralelo que acreditam

nessa iniciativa e que resolveram voluntariamente financiar a marca,

participar da empresa, usando as “oito horas de ociosidade” para enfrentar

o problema que é realmente importante e as perguntas que realmente são

importantes.

Muito obrigado a todos vocês e até breve!

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