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Neste artigo será apresentada uma análise do filme "Que horas ela volta",

com o objetivo de estabelecer uma relação do mesmo com a desigualdade e


democracia no Brasil. Usa-se a forma sútil com a qual o filme aborda a hierarquia,
escravidão e antidemocracia da sociedade atual para compreender o funcionamento
da democracia no país. Escolhemos as principais cenas do filme e traçamos alguns
paralelos com a escravidão, pois o filme expõe antagonismos ancestrais e uma
cultura visceral de racismo, sexismo e autoritarismo. Faremos uma relação do tema
do filme com as ideias defendidas pelo autor Rancière, usando de diferentes
referências para promover ideias para uma sociedade mais igualitária.

Começamos conceituando duas ideias importantes para o entendimento do trabalho:

Democracia: Regime político caracterizado pelo poder que emana do povo, para o
povo. Assim, todos os cidadãos participam de forma efetiva e igual nas decisões
políticas.

Desigualdade: falta de equilíbrio, estado de coisas ou pessoas que não são iguais
entre si.

Fazendo a análise dos dois conceitos, entende-se que a democracia pode ser vista
como o caminho para a disseminação das desigualdades. Por outro lado, a
democracia plena não existe num país desigual, já que existe uma parcela da
sociedade que se aproveita das brechas criadas pela desigualdade para manipular o
capital econômico em influência política, o que distorce o conceito de democracia, já
que impede a participação igualitária dos cidadãos na política. 

O filme “Que horas ela volta?”, lançado em 2015 pelas mãos da diretora paulistana
Anna Muylaert, é responsável por chamar atenção para o debate sobre as relações
de trabalho das empregadas domésticas e de seus patrões no Brasil. Dessa forma,
o filme acompanha Val, que trabalha no Morumbi como doméstica há cerca de 10
anos, época em que saiu do Nordeste (região com maior índice de desigualdade

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social no Brasil, como demonstra o gráfico), deixando sua filha Jéssica para trás, e
foi para São Paulo com objetivo de melhorar a qualidade de vida de ambas.

Figura 1: Gráfico da desigualdade


social no Brasil. Fonte: IBGE

Uma vez em São Paulo, Val começa a trabalhar para uma família e
imediatamente surge um paralelo entre a forma como ela cuida de Fabinho, filho da
patroa, enquanto teve que se distanciar de sua filha para que conseguisse manter
alguma estabilidade financeira. Essa relação entre Fabinho e Val pode ser
comparada às "amas de leite”, aquelas mulheres que amamentavam as crianças
alheias quando suas mães não podiam estar presentes. Papel esse que sempre foi
da mulher negra e escrava, e se adaptou com as transformações sociais até que se
consolidasse em mulheres como Val, que mesmo não amamentando, fez o papel de
mãe e criou uma relação afetiva com Fabinho.

No filme, existem duas cenas importantes que mostram essa situação. A


primeira é quando Jéssica chega e demonstra ciúmes de Fabinho, já que ele teve
atenção de sua mãe por todos esses anos e a relação que eles possuem, no
primeiro momento, é muito melhor do que a de Jéssica e sua mãe. A segunda
ocorre quando Fabinho pergunta para Val “que horas ela volta?” se referindo a sua
mãe, que estava trabalhando sem hora marcada para voltar. Esse conjunto traz o
questionamento sobre a integridade da redemocratização brasileira, onde aspectos
tão opostos a ela são tão comuns na nossa sociedade. Aspectos esses que estão
tão enraizados no nosso cotidiano e na realidade do filme que fazem com que a
própria Val se veja como indivíduo inferior, algo que ela acaba tentando “impor” na
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sua filha, mas não consegue, porque Jéssica vem como alguém consciente da sua
não inferioridade (como ela mesma diz para a mãe) e que durante o filme não faz
questão nenhuma de se tratar como tal, mesmo com os apelos de sua mãe, já que
não está submetida a mesma lógica que ela.

Ainda sobre a personagem Jéssica, é necessário falar sobre como ela se


apresenta no contexto da produção. A jovem vem do Nordeste, que já é uma região
considerada pobre intelectualmente pela elite brasileira, filha de mãe empregada
doméstica e com o sonho de cursar arquitetura na mesma faculdade federal em que
Fabinho quer estudar. Quando ela expõe seus objetivos aos patrões de sua mãe, é
visível, ainda que de forma sutil, que eles não acreditam na capacidade dela de
conseguir conquistar esse sonho. Isso vem por meio das constantes remarcações
sobre como a prova é difícil e concorrida. A única pessoa da família que tem reação
“positiva” aos estudos de Jéssica é Carlos, pai de Fabinho. Entretanto, com o passar
do tempo, ele demonstra a expectativa de uma retribuição por esse tratamento,
retribuição essa de cunho sexual que mais uma vez prova a superioridade que os
patrões, nesse caso Carlos, acreditam possuir sobre Val e sua filha. A objetificação
da menina por parte de Carlos é mais um resquício da escravidão retratado pelo
filme.

No filme, há diversos retratos de regras coloniais que seguimos e que se


parecem normais na visão de muitos. Jacques Rancière problematiza o que seria
essa democracia sobre a qual tanto falamos, não raro perdida em meio a tantas
confusões. Mas ele também fala sobre seus adversários: eles não são apenas as
manifestações de intolerância pontuais ou os projetos neoautoritários, mas de um
ponto quase sempre ignorado pelo pensamento político, que é o que há de
autoritário no nosso próprio sistema político “normal”.

Em um momento, a Val repreende sua filha e lhe pergunta: “Por que você se
acha superior aos outros? “. A resposta de Jéssica é um ponto de destaque para o
caos principal do filme, a desigualdade social. “Eu não me acho melhor não, Val. Eu
só não me acho pior.” Na visão de Ranciére, o ódio a democracia é um fenômeno
que se inscreve na longa duração, haja vista que as pessoas de setores
privilegiados da sociedade nunca aceitaram 100% a implicação do regime
democrático no cotidiano e as conquistas das classes mais baixas, como é visto no
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filme, a filha da empregada doméstica consegue passar na primeira fase da prova,
enquanto o filho da patroa não, e isso é algo que incomoda a patroa, já que ela não
entende como Jéssica consegue realizar tal feito.

Além disso, a sutileza na qual as coisas acontecem no filme retrata a


realidade da antidemocracia no Brasil, que também vem de forma implícita,
especialmente para aqueles que não sofrem com ela, que são na verdade os
responsáveis por sua permanência na sociedade brasileira. No filme, um exemplo
disso acontece quando Bárbara, a patroa, manda trocar a água da piscina depois
que Jéssica, empurrada por Fabinho, entra nela. Ela usa da justificativa da suposta
entrada de um rato na piscina para esconder o fato de que mesmo com o discurso
“Val faz parte da família” ela nunca vai enxergar a mulher e sua filha como iguais, o
que é um fator fundamental da democracia.

Ao decorrer do filme, é nítido como a família possui uma relação de afeto com
a Val, mas sem nunca desapegar da ideia da empregada submissa que nunca vai
ter uma relação de igual com eles, nem mesmo uma verdadeira relação familiar. Val,
mesmo morando na casa dos patrões, não possuía sequer um quarto, dormia num
pequeno cômodo separado da casa, que também pode ser visto como uma ideia
herdada da escravidão, ela também não consumia os mesmos alimentos que a
família, não se sentava à mesa com eles e raramente saía de casa. Fica claro que a
relação “família” construída com a mulher é usada como um instrumento para
impedir que ela construa qualquer vínculo não relacionado com o trabalho,
mantendo-a sempre trabalhando, mas sem deixar isso claro. Logo, ela nunca
recebia hora extra, não possuía horários para trabalhar e ainda estava privada da
consciência de que estava sendo explorada, sem limites entre seu trabalho e
pequenos favores a família.

Cabe mencionar aqui, o documentário “Domésticas” do diretor Gabriel


Mascaro, que trouxe uma nova perspectiva para essas relações de trabalho tão
comuns no nosso país. Para isso, ele coloca alguns jovens para documentarem a
vida de suas empregadas. O ponto estratégico é que esses jovens possuem essa
relação de afeto pelas mulheres (já que conviveram com elas a vida toda) mas
também cresceram com certa “superioridade” trazida pelos seus pais, e esse meio
termo permite mostrar a realidade das empregadas, já que os patrões nunca
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admitiriam seus erros e elas nunca arriscariam perder seus empregos, preferindo
defender as famílias (até porque muitas não percebem a dimensão da situação e a
exploração pela qual passam, como acontece com Val. Durante esse documentário,
fica claro que os jovens não conhecem suas empregadas, mesmo com elas
passando o dia todo em suas casas há anos, nunca houve interesse nelas enquanto
pessoas com personalidades, gostos, desgostos, famílias e histórias, o que também
é algo muito forte na relação entre Val e Fabinho.

Portanto, conclui-se que, para atingir o estado de democracia plena descrito


por Ranciére, é necessário o desenvolvimento de medidas drásticas, que serão
responsáveis por desestruturar os pilares antidemocráticos da sociedade brasileira.
Assim, uma das propostas desenvolvidas com base no desenvolvimento do artigo
seria o abandono do capitalismo como sistema socioeconômico instalado no país,
que é responsável por promover diversos aspectos antidemocráticos descritos no
texto e apresentados no filme, como por exemplo a normalização da jornada de
trabalho exaustiva de 8 horas ou mais com pagamento de um salário mínimo
desproporcional, a ausência de acesso a educação de qualidade para pessoas de
baixa renda e a manipulação das massas para que não tenham consciência dos
seus direitos, permitindo que a elite os coloque numa posição de inferioridade.

Outro fator importante é que o capitalismo é descrito como um sistema que


visa o lucro e a acumulação do capital, baseando-se na propriedade privada dos
meios de produção, o que faz com que os indivíduos de baixa renda se submetam a
empregos escravistas como meio de sobrevivência. Logo, quando esse capital (que
é de domínio de uma classe específica) é usado para influência política, não é
possível exercer democracia plena. Especialmente quando as desigualdades sociais
vividas são frutos diretos do capitalismo. Por isso, a sugestão final seria o implante
do socialismo democrático, que é um sistema baseado na criação de uma
econômica democrática com propriedade pública dos meios de produção. Por fim,
também cabe destacar que no final do filme “Que horas ela volta?” a personagem
Val pede demissão do emprego como doméstica, e mesmo que de forma humilde,
ela inicia a criação de uma vida com Jéssica, onde claramente está muito mais feliz.
Podemos ver seu emprego como um exemplo do emprego do capitalismo no mundo
e Jéssica como o esclarecimento, aquela que traz a tona a necessidade de

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transformação, consequência de seus estudos, também ressaltando a educação
como fonte de mudanças e de constante procura por métodos para desenvolver a
sociedade.

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