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Mestrado em Sociologia, PPGS/UFMG

Jordanna Fonseca Silva, jordannasilvaf@gmail.com,


Tempo gasto na redação do texto (em minutos): 75’

Reação crítica – Filme: Que horas ela volta? (2015), Anna Muylaert

É impossível passar por este filme sem pensar na desigualdade social em seus múltiplos aspectos:
seja nas condições materiais de existência (renda, riquezas, propriedades, moradia etc), seja nos aspectos
simbólicos (profissões e status, modos de vida, expectativas etc.). A protagonista interpreta uma
personagem recorrente nas histórias de famílias abastadas: a babá e empregada doméstica “quase da
família”. Isso é evidenciado no filme, pois, apesar de ser “da família”, cuidar da casa e do filho dos
patrões, Val não compartilha os compartimentos da casa como os demais, possuindo para si espaços
segregados e piores. Além disso, no aniversário da patroa, alguém da família iria como convidado e não
como serviçal, e isso não acontece. Essa caracterização, utilizada pela patroa em uma das cenas, remete-
nos à ideia de brasilidade construída por autores clássicos na sociologia brasileira: Freyre, Buarque de
Holanda. Ao contrário dos EUA, a escravidão, no Brasil, teria inaugurado um jeito próprio de lidar com o
racismo e a segregação racial, ao expressá-la de modo cortês, familiar, próximo, ao mesmo tempo em que
define sem aberturas suas distâncias e muros. Se a história dos EUA encontra lugares e espaços sociais
literalmente segregados para negros e brancos, no Brasil, essa segregação acontece sutil e asperamente:
nas senzalas e cortiços, favelas e periferias; na pouco significativa representatividade democrática; na
discriminação e estigmas cotidianos; nos piores empregos e rendimentos ou no desemprego etc. Regina
Casé não é negra e talvez por isso essa reflexão não faça sentido. No entanto, segundo dados do IBGE, a
maioria da população brasileira (apesar de ser negra) identifica-se como parda, categoria que poderia
enquadrar a atriz global. Nesse sentido, a escravidão veio à mente devido ao predomínio de mulheres
negras nesse tipo de trabalho ainda hoje e sua possível relação histórica com a herança colonial brasileira.
O jogo de xícaras preto e branco surge como um símbolo dessa miscigenação ou “democracia racial”.
Feita essa ressalva, embora o filme se passe na moderna metrópole global paulista do século XXI,
com o trabalho assalariado como central na legislação do Estado capitalista, a empregada doméstica, Val,
se encontra impossibilitada – por motivos não completamente identificados por ela – de voltar à sua
cidade natal, onde mora sua filha. Esse processo migratório, de uma região para outra dentro do país,
aparece como outra característica da sociedade brasileira. Até o final do século passado, SP surgia como o
principal (mas não o único) destino escolhido, tendo em vista novas e melhores oportunidades de vida. As
estatísticas nacionais mostram que, por muito tempo, SP recebia mais pessoas da região nordeste. Isso é
ilustrado pelo filme, já que Val é pernambucana, com sotaque carregado (embora já viva em SP há 10
anos e não tenha mais contato com sua cidade de origem). O filme não parece trabalhar, todavia, certa
inferiorização que acomete nordestinos e nortistas, como regiões atrasadas, inferiores, de pessoas
preguiçosas e lentas, presentes desde piadas cotidianas a textos de intelectuais do século XX. Contudo, a
nordestina assume o papel de protagonista numa personagem cujo emprego configura-se como de menor
status na narrativa; cuja moradia restringe-se à um DCE minúsculo nos fundos da casa dos patrões e,
posteriormente, a uma casa popular. Sem mencionar aspectos simbólicos importantes nas hierarquias
sociais imediatas como vestimentas (o que contrasta com a patroa, que trabalha com moda), maneiras etc.
A desigualdade social presente no filme, portanto, se relaciona com discriminações sociais, ou seja,
a classificações que tendem a inferiorizar ou elevar indivíduos de acordo com características pessoais ou
sociais: sexo, idade, profissão, renda, cor/raça, origem social etc. Apesar de sua filha, Jéssica, ter sido
tratada (em alguns momentos) como hóspede, é preciso indagar até que ponto isso somente aconteceu por
ser ela uma garota e ter despertado o interesse do patrão de Val, Zé Carlos, ou o afeto de Fabinho. Outra
personagem interessante é a mulher burguesa histérica e mesquinha, Barbara, que não vê no filho uma
plena realização de si mesma, mas que se mostra carente de sua atenção e com ciúmes de Val.
Por fim, o filme apresenta o alcance educacional como prelúdio para uma redução das
desigualdades, uma vez que toda a narrativa acontece apenas porque a filha da empregada doméstica
resolve prestar vestibular na universidade mais concorrida e elitizada do país. Sua aprovação aparece
como mérito individual, assim como a reprovação do rapaz rico surge como resultado de pouco estudo.
Nesse sentido, a moral do filme tende à meritocrática ideia de que mais vale o esforço individual do que
as condições e oportunidades sociais concretas, argumento que, obviamente, possui muitos deslizes.

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