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Resumo: O presente artigo traz uma análise do filme Que horas dela volta?, de Anna
Muylaert a partir do conceito de cordialidade, proposto pelo historiador Sérgio Buarque
de Holanda em seu livro Raízes do Brasil. A partir da análise do filme, temos como
objetivo mostrar que o conceito de cordialidade defendido por Holanda, marcante no
caráter nacional brasileiro, e que, apesar de aparentemente ser positivo, serve para
ocultar uma série de violências, pode ser evidenciado no filme. Desta maneira, a partir
da análise conjunta das obras, pretendemos mostrar que a obra de Sérgio Buarque de
Holanda ainda se mostra como muito relevante para entendermos os problemas sociais
da atualidade.
Palavras-chave: Historiografia brasileira; Cinema Brasileiro; Sociedade Brasileira.
Resumen
En este artículo se presenta un análisis de la película Que Horas Elas Volta?, de Anna
Muylaert, a partir del concepto de cordialidad propuesto por el historiador Sergio
Buarque de Holanda en su libro Raízes do Brasil. A partir del análisis de la película,
nuestro objetivo es mostrar que el concepto de “cordialidade” adoptado por Holanda,
marcante el carácter nacional de Brasil, y que, a pesar de ser aparentemente positivo,
sirve para ocultar una gran cantidad de violencia, se puede evidenciar en la película.
Así, desde el análisis conjunto de las obras, pretendemos mostrar que la obra de Sérgio
Buarque de Holanda sigue cómo muy importante para comprender los problemas
sociales de los dias actuales.
Palabras clave: Historiografía Brasileña; Cine Brasileño; Sociedad Brasileña.
*
Instituto Federal do Triângulo Mineiro
1. Introdução
Lançado no Brasil em 2015, o longa Que horas ela volta?, dirigido
por Anna Muylaert, tem como personagem principal Val, uma empregada
doméstica nordestina, interpretada por Regina Casé, que em busca de uma
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vida melhor, deixa sua filha em Perbambuco e vai morar em São Paulo. O
filme expõe uma tensão latente entre uma classe alta, no caso os patrões,
e uma classe mais baixa, que é a empregada doméstica, tudo isso
permeado por uma pretensa cordialidade que deixa essa tensa relação
ainda mais interessante, pois, mesmo a empregada sendo tratada como
“da família”, isso não altera a realidade em que ela é inferiorizada,
evidente em diversos momentos do filme.
O longa nos traz reflexões interessantes sobre a maneira como a
desigualdade social está permeada, e muitas vezes, naturalizada, na
sociedade brasileira. No entanto, o que mais nos chama a atenção ao
analisarmos o filme, é a maneira como as violências que Val sofre o tempo
todo estão ocultas pela cordialidade. Como já adiantamos, Val era “quase
da família”, mesmo tendo que viver em um quanto insalubre, comer um
sorvete diferente daqueles dos patrões ou servir, devidamente
uniformizada de empregada, os convidados dos patrões nos dias de festa,
entre outras violências constantes que muitas vezes passavam
despercebidas devido justamente a essa “cordialidade” existente nessa
relação patrões-empregada.
Desta maneira, essa cordialidade existente entre as classes sociais,
que oculta e neutraliza violências, além de mascarar opressões tão
presentes na história do Brasil, nos abre espaço para analisarmos o filme
de Muylaert em uma relação com o conceito de cordialidade presente na
obra de Sérgio Buarque de Holanda, que trata justamente desse aspecto
tão presente e importante para a formação do caráter nacional brasileiro
(BARBATO, 2010). 3
1956).
Nesse sentido, como nos trouxe Teresa Sales:
Sergio Buarque de Holanda apresenta a mediação de
classes sob uma outra óptica, embora as raízes de
ambos, Sergio e Gilberto, estejam apontando para
elementos que encobrem as desigualdades sociais por
uma espécie de fetiche. A óptica do autor de Raízes do
Brasil é á do "homem cordial", aquele cuja
característica é o horror às distâncias, que tem suas
raízes na esfera do íntimo, do familiar e do privado,
cujas origens, por sua vez, estão relacionadas antes
com a especificidade de nossa casa-grande que com
traços patrimoniais herdados da cultura portuguesa
(SALES, 1994).
cordialidade.
que seu filho não passou, mas Jéssica sim. Cordialidade essa revestida de
inveja e de ciúme pelo filho com sua empregada.
Logo, como na política temos as pessoas cordiais escolhendo seus
representantes, incluindo aquelas que não possuem chance de estudar
e/ou ingressar em uma universidade, acabamos voltando à familiaridade e
ao sentimento, por nossas sensações com relação a certo político, carente
de razão e imerso nesse universo paternalista e ineficiente.
Essa crise de representação dos interesses do povo também faz
parte do momento político atual, na qual os partidos não mostram a
opinião de seus eleitores. Estes certamente buscam novas soluções e
grupos políticos com relações mais estreitas com o povo e que saibam
identificar seus problemas e causas.
4. Conclusão
Em suma, é perceptível as semelhanças entre aspectos do longa Que
horas ela volta? com o conceito central de “O Homem Cordial” do livro
Raízes do Brasil. Quando Sérgio Buarque de Holanda busca explicar
motivos que torna o brasileiro cordial, vemos que o nosso passado
histórico foi determinante para nossas condições atuais. O fato de o
brasileiro ser menos objetivo e buscar sempre estabelecer relações
intimistas implica na sua pouca racionalidade, e acaba por tornar nossas
relações políticas menos eficientes, além de esconder uma série de
mazelas sociais, opressões e inferioridades, sempre ocultas pela aparente
cordialidade marcante do brasileiro. Essa ineficiência leva a diversas crises
sociais e políticas, e o cenário retratado no filme é a uma dessas crises, a 11
de desigualdade social.
Mas mais que isso, esse “homem cordial” de Holanda, além de
trazer a ineficiência administrativa, uma vez que não há razão na
governança e no trato com a coisa pública, em prol do benefício familiar,
essa cordialidade mascara relações de opressão e de violência, e é
justamente isso o que podemos notar no filme de Muylaert, no qual tal
opressão é deveras latente e muito visível até, mas se atenua pela
aparente intimidade existente entre opressor e oprimido.
Desta maneira, podemos concluir que o filme de Anna Muylaert é
uma interessante representação dessa sociedade descrita por Sérgio
Buarque de Holanda: personalista, egoísta e paternalista, herdada desde
tempos longínquos do Brasil colonial e que pode ser entendida como uma
das responsáveis pelas mazelas sociais que assolam o país, mas que, no
entanto, permanece dissimulada em traços cordiais, aparentemente
sensíveis, mas que, hipocritamente, servem para perpetuar essas relações
de violência, ao mesmo tempo tão visíveis e tão escondidas na sociedade
brasileira.
Val, Bárbara, Jéssica e todos os demais personagens de Que horas
ela volta? encarnam, portanto, esse universo descrito por Sérgio Buarque
de Holanda, no qual a violência e a desigualdade existem, mas por estarem
acomodadas sob uma capa expressa em trejeitos e palavras cordiais,
acabam por parecerem diminutas, ou de menor importância, quando na
verdade não o são.
Assim, podemos concluir que a obra de Sérgio Buarque de Holanda,
mesmo já passadas muitas décadas, ainda se mostra bastante atual para 12
4. Referências bibliográficas
DECCA, Edgar Salvadori de. “Tal pai, qual filho? Narrativas histórico-
literárias da identidade nacional”. In. Projeto História: Revista do Programa
de Estudos Pós-graduados em História e do Departamento de História da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, n° 24, 2002.
QUE horas ela volta? Direção: Anna Muylaert. Produção: Fabiano Gullane,
Caio Gullane, Débora Ivanov, Anna Muylaert. Globo Filmes e África Filmes,
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2015. 144 min.