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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO (UFRJ)

PAULO VITOR VASCONCELLOS O. MAGALHÃES

SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA E O CONCEITO DE “HOMEM


CORDIAL” EM “RAÍZES DO BRASIL”

Resenha para a disciplina de Fundamentos da


Cultura Literária Brasileira (Fundbras), lecionada
pelo professor Luis Alberto Nogueira Alves, como
parte do curso de graduação de Letras-Espanhol
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ)

RIO DE JANEIRO
2021
1. INTRODUÇÃO

O início do século passado, entre as décadas de 20 e 30, marcou um momento


artístico e intelectual importante para o Brasil. Tanto na literatura, quanto na arte
moderna e também na história, muitas foram as formas de expressão que surgiram.
Com elas, inúmeras interpretações identitárias da sociedade brasileira, cada uma com
seu estilo e modo de pensar próprio. O livro “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de
Holanda, foi uma delas.
Considerado como um dos clássicos nacionais mais importantes da
historiografia e da sociologia brasileira, trouxe ao mundo o conceito de “homem
cordial”. Tomando por base esse pensamento, o objetivo deste trabalho é investigar e
dissertar sobre os méritos da concepção do autor e os limites de sua obra de uma
perspectiva atual e contemporânea, com a finalidade de examinar se o conceito em
questão segue válido como um instrumento de análise.

2. O “HOMEM CORDIAL” E A SOLIDÃO DA INDIVIDUALIDADE


EXISTENCIAL

“Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda, teve sua primeira edição


publicada em meados da década de 30 com o objetivo de realizar uma investigação
profunda sobre a história do Brasil e tudo aquilo que a fundamenta, como suas
instituições, seu povo, seus costumes e o que foi herdado durante o período em que o
país foi Colônia de Portugal. Logo, a obra propõe ao leitor pensar sobre a formação do
Brasil e interpretar a identidade do povo brasileiro e como ela foi desenvolvida diante
de outras civilizações do mundo. Entre todas as ideias e conceitos trabalhados pelo
autor no livro, um deles se destaca dos demais como fundamental: o conceito de
“homem cordial”, tratado no capítulo cinco e que requer uma análise mais minuciosa
e detalhada para extrair todo seu potencial.
Isso porque é neste capítulo onde Sérgio Buarque trabalha mais suas intuições
e intenções, que nem sempre ficam claras à primeira vista e necessitam de uma reflexão
maior para absorver sua amplitude. O conceito de “homem cordial” em si foi extraído
de uma carta de Ribeiro Couto, um escritor paulista. Carta essa que estava endereçada
a um outro escritor, o mexicano Alfonso Reyes. Diferente do que se imagina em uma
primeira impressão, a expressão “cordial” não é empregada no significado mais comum
e habitual da palavra, indicando gentileza ou aquele que tem boas maneiras e sabe se
portar diante dos outros. Não. O “cordial”, aqui, provém do latim “cordalis”, de
coração, e se refere ao sentimentalismo do homem.
Essa explicação etimológica é destacada dentro da tese do autor do livro, que
ressalta o caráter dúbio da expressão, adequando-a também ao caráter ou temperamento
do homem brasileiro em toda a sua pluralidade. Ao contrário do povo japonês, por
exemplo – conhecido por ser polido, de ótima criação e educação para com os
semelhantes, algo que está intrínseco na sociedade do país oriental – no Brasil, essa
cordialidade – agora, de fato, no sentido mais usual da palavra – é bem mais superficial
do que na Terra do sol nascente. É o que Sérgio Buarque de Holanda explica no trecho
retirado a seguir:

“Nenhum povo está mais distante dessa noção ritualista da vida do que
o brasileiro. Nossa forma ordinária de convívio social é, no fundo,
justamente o contrário da polidez. Ela pode iludir na aparência — e isso
se explica pelo fato de a atitude polida consistir precisamente em uma
espécie de mímica deliberada de manifestações que são espontâneas no
“homem cordial”: é a forma natural e viva que se converteu em fórmula.
Além disso a polidez é, de algum modo, organização de defesa ante a
sociedade. Detém-se na parte exterior, epidérmica do indivíduo,
podendo mesmo servir, quando necessário, de peça de resistência.
Equivale a um disfarce que permitirá a cada qual preservar intatas sua
sensibilidade e suas emoções”. (HOLANDA, p. 147, 1995).

Sendo assim, de acordo com o autor, o homem cordial sente uma vontade de se
expandir em sua vida social, agindo mais fortemente dentro do âmbito coletivo, por não
suportar viver somente em sua própria individualidade. Essa necessidade de “apropriar-
se dos outros” a um nível de afeto é indicada por Sérgio Buarque em diversas passagens
da obra, especialmente quando utiliza expressões com o sufixo diminutivo “-inho” para
passar a impressão de tentativa de proximidade e intimidade com o outro, e também
quando enfatiza o termo “viver nos outros”, que nada mais é do que essa busca por uma
expansão social que o complete e o faça sentir mais como parte da sociedade.

“No “homem cordial”, a vida em sociedade é, de certo modo, uma


verdadeira libertação do pavor que ele sente em viver consigo mesmo,
em apoiar-se sobre si próprio em todas as circunstâncias da existência.
Sua maneira de expansão para com os outros reduz o indivíduo, cada
vez mais, à parcela social, periférica, que no brasileiro — como bom
americano — tende a ser a que mais importa. Ela é antes um viver nos
outros. Foi a esse tipo humano que se dirigiu Nietzsche, quando disse:
“Vosso mau amor de vós mesmos vos faz do isolamento um cativeiro”
(HOLANDA, p. 147, 1995).

Portanto, para Sérgio Buarque, o conceito em questão nada mais é do que uma
armadilha psicológica e comportamental que está entalhada na formação do povo
brasileiro. É o famoso agir mais conforme a emoção do que com a razão, ou mesmo uma
forma de fugir de si mesmo e buscar refúgio no outro, nas relações humanas. Uma
reflexão que mostra, em toda sua ebulição de ideias, por qual motivo “Raízes do Brasil”
tornou-se um marco literário em sua época ao trazer o conceito do “homem cordial”.
Como salienta o autor: “Já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira
para a civilização será de cordialidade — daremos ao mundo o “homem cordial”
(HOLANDA, p. 146, 1995).

3. IDEALIZAÇÃO E COMPLEXO DE VIRA-LATA: O HOMEM


CORDIAL “COLONIZADO ATÉ O OSSO”

De encontro a maneira com que Sergio Buarque de Holanda trabalha o conceito


de “Homem Cordial” em “Raízes do Brasil”, o sociólogo Jessé Souza, em sua obra
intitulada “Tolice da inteligência brasileira” (2015), dedica um capítulo inteiro para
discutir, polemizar e fazer uma crítica ao autor, por meio de posições teóricas mais
atuais. No capítulo 3, “Cordial e colonizado até o osso”, Jessé faz uma análise do
conceito de “homem cordial” e utiliza como instrumento as ciências sociais, já que a
ciência, segundo as palavras do próprio autor, “só nasce e se torna possível se
construída “contra” as ilusões e cegueiras da sociologia espontânea comum”.
(SOUZA, p. 40, 2015).

“Uma das cegueiras principais de nossa percepção espontânea do


mundo social é a não percepção da dimensão “institucional”. Afinal,
excetuando-se situações extraordinárias, como revoluções conduzidas
por líderes carismáticos, as quais são tão intensas quanto,
necessariamente, passageiras, toda a nossa ação cotidiana é comandada
por imperativos institucionais que internalizamos, de maneira a torná-
los “naturais”. A vida cotidiana, ainda que não percebamos por já
estarmos “desde sempre” dentro de certo horizonte institucional que
naturalizamos – como o da disciplina escolar, da autoridade familiar,
dos limites da ação individual pela Lei, e pela polícia, das regras de
trânsito etc – é comandada por instituições. São as expectativas e os
estímulos e castigos institucionais que moldam nosso comportamento e
nossas escolhas ainda que, como as “naturalizamos”, como o nascer do
Sol ou o fato de termos dois braços e duas pernas, não tenhamos
consciência disso” (SOUZA, p. 40, 2015).
Para reforçar seu pensamento, Souza ainda destaca Gilberto Freyre (2006),
considerado um dos sociólogos mais importantes do século XX, e discorre sobre a
“singularidade cultural” brasileira, que nada mais é do que uma herança ibérica vinda de
Portugal. Dessa forma, em um senso comum, brasileiros e portugueses falam a mesma
língua, gostam de bacalhau, de sardinha e também usam alecrim no tempero. Apesar
disso, essas semelhanças não fazem dos brasileiros portugueses. Até porque, Portugal não
experienciou uma das práticas sociais mais importantes do período colonial do Brasil: a
escravidão (SOUZA, p. 40, 2015).
O mito de igualdade e o objetivo de produzir uma espécie de solidariedade
nacional é o que, na visão de Jessé, joga contra o raciocínio de Buarque. O “homem
cordial”, portanto, seria uma tradição sustentada em uma má sociologia, que não leva em
consideração contextos históricos, institucionais ou mesmo ações sociais, debruçando-se
sobre uma falsa permissão – até com um certo tom de prepotência – para poder explicar
o mundo de uma maneira simples e comprobatória, como se assim fosse. É como se o
ideal do homem cordial buarquiano representasse a classe brasileira como emotiva,
aprisionada na própria paixão e que por essa razão fosse inferior ou indigna de confiança.
Ou seja, uma representação carregada de idealização, de um ideológico antipopular e que,
segundo o autor, é o equivalente ao “racismo de classe” (SOUZA, p. 45, 2015).

Se o conto de fadas da oposição “protestante” versus “cordialidade” não


resiste a uma análise fria, seu efeito de aparente explicação se mantém
inalterado. Primeiro, como todo racismo, ele “explica”, de modo
aparentemente evidente, um mundo complexo de difícil apreensão.
Possibilita atender as exigentes demandas de entendimento e explicação
do mundo sem grande esforço da inteligência. Depois, no caso
brasileiro, ajudará a indicar o caminho político do liberalismo que é, na
verdade, a real causa de seu sucesso. Afinal, as ideias só adquirem
“força prática” na realidade se estiverem ligadas a certos “interesses”
especialmente econômicos e políticos. E é isso que explica o caso de
extraordinário sucesso do “racismo culturalista” como fundamento da
ideologia liberal brasileira. (SOUZA, p. 45, 2015)

No fim das contas, a idealização exacerbada é o que marca a construção do


“homem cordial” por Sergio Buarque de Holanda. Sua tentativa de idealizar os Estados
Unidos como o mito de “paraíso na terra” – onde há justiça social e oportunidades iguais
para todos – e de perceber São Paulo como uma “Massachusetts tropical” é o fim condutor
da obra e de todo o trabalho autoral de Buarque além de “Raízes do Brasil” (SOUZA, p.
47, 2015). O país norte-americano serve como contraponto para a crítica, transformando
a “inferioridade” da sociedade brasileira em virtude, ou seja, a fraqueza em força. De
certo modo, bebe um pouco da fonte do “complexo de vira-lata”, criado por Nelson
Rodrigues.
O dramaturgo cunhou a expressão baseada no conceito de narciso às avessas, onde
o brasileiro não valoriza e inferioriza sua própria cultura em comparação com o restante
do mundo, “cuspindo” na própria imagem. No conceito de “homem cordial”, essa
“inferioridade” é destacada, porém transvertida, sendo uma das questões de maior peso
na crítica de Jessé Souza à expressão concebida por Sergio Buarque de Holanda.

4. CONCLUSÃO

Á luz do que foi trabalhado, surge a questão: de uma perspectiva


contemporânea, o conceito de “homem cordial” continua válido como instrumento de
análise? Em “Raízes do Brasil”, Sérgio Buarque faz uma análise do Brasil de sua
época, com uma sociedade majoritariamente rural e oligárquica. Hoje, apesar de ainda
haver desigualdade e de ter caído algumas posições no ranking em virtude da pandemia
da Covid-19, o país possui uma das maiores economias do mundo, um setor agrário
forte de exportações primárias, maioria da população votante e teve avanços notáveis
ao longo das últimas décadas. O Brasil mudou e sua sociedade mudou com ele. Apesar
disso, a obra de Holanda e seus conceitos ainda podem, sim, ajudar a entender questões
do mundo contemporâneo.
Ideais como a democracia e a nacionalidade – tão amplamente discutidos
atualmente – se fazem presentes no livro e são trabalhados no capítulo “homem
cordial”. São conceitos que vão além da questão de tempo e espaço, que não
envelhecem, portanto, não ficam ultrapassados. Até mesmo o debate sobre a
colonização portuguesa, outro ponto abordado pelo autor, oferece uma imagem do
período escravocrata, da hierarquização de poder da elite e se faz importante para
compreender questões históricas e atuais. Ainda mais em se tratando de Brasil, um país
cíclico que, historicamente, repete erros do passado. Basta ver que a submissão
política, o extremismo e os discursos racistas e românticos nacionalistas permanecem
vigentes em 2021.
Fato é que o “homem cordial” fundou escolas dentro dos estudos sociológicos,
antropológicos e psicológicos brasileiros. Estudos esses que trabalham desde a
identidade nacional até aos obstáculos institucionais impostos que dificultam a
consolidação dos direitos dos cidadãos. Isso não pode ser ignorado. Oitenta e cinco
anos depois de sua publicação original – levando em conta o contexto histórico e que
é uma clara resposta à política de seu tempo – “Raízes do Brasil” e as concepções de
Sergio Buarque de Holanda, especialmente do “homem cordial”, são aquelas que mais
se aproximam do Brasil atual, moderno e urbano, e tem validade como instrumento de
análise.

5. REFERÊNCIAS

LIVROS:

FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala (51ª edição) – São Paulo: Global Editora,
2006.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil (26ª edição) – São Paulo: Companhia
das Letras, 1995.

SOUZA, Jessé. A Tolice da Inteligência Brasileira (1ª edição) – São Paulo: LeYa, 2015.

ARTIGOS:

COSTA, Sérgio. O Brasil de Sérgio Buarque de Holanda – Artigo publicado


originalmente como posfácio da nova edição alemã de Raízes do Brasil: Sérgio Buarque
de Holanda. Die Wurzeln Brasiliens. Berlin: Suhrkamp, 2013, p. 235-269. Tradução,
autorizada pelo editor alemão, realizada por Iasmin Goes.

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