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UNIVERSIDADE FEDERAL DA FRONTEIRA SUL – CAMPUS CERRO LARGO

DISCIPLINA: LITERATURAS CATARINENSE, PARANAENSE E SUL-RIOGRANDENSE


PROFESSOR: PABLO LEMES BERNED
ALUNO: ALEXANDRE ZAGONEL

A DESCONSTRUÇÃO DA IMAGEM ESTERIOTIPADA DO GAÚCHO NA OBRA


“O CASO DO MARTELO” E O SENTIMENTO COMUNITÁRIO DO COLONO

Um homicídio violento em uma cidadezinha do interior foi o necessário para


movimentar toda uma comunidade rural e um investigador da cidade e criar uma teia de
mentiras e mistérios, levando a um final complexo e carregado de mágoas e certo nível de
vingança. Essa é a premissa da obra “O Caso do Martelo” de José Clemente Pozenato nos traz
um crime violento no contexto de uma comunidade rural de tradição Italiana, muito pacata,
marcada pela simplicidade do ser de alguns personagens e pelo contexto ser rural e ao mesmo
tempo, traz os interesses pessoais e nem tão pacatos dos mesmos personagens. O presente
ensaio buscará analisar qual é a imagem (não estereotipada) que nos é mostrada do gaúcho-
colono/ colono-gaúcho dentro da obra e como ele nos é apresentada dentro desse contexto.

1. A COMUNIDADE E SUA ESTRUTURA

Em uma primeira análise da obra, pode-se notar algo que ainda se faz atual quando se
olha e se conhece comunidades rurais. Percebemos que existe uma estrutura de solidariedade
orgânica na superfície que acaba mascarando uma sociedade que se embasa e se desenvolve
de forma mecânica. Além dessa mescla de modelos de sociedade, podemos diagnosticar uma
ligação cultural aos costumes de cidades/comunidades rurais: Desde as ditas fofocas que vão
de boca-em-boca até a difamação “por debaixo dos panos” que é feita por todos e todas sobre
uma pessoa que se torna alvo depois de morta, mas acaba-se não discutindo essa difamação
ou fofoca porque se torna mais fácil manter isso dessa forma e “marcar” a pessoa assim, sem
buscar explicações ou a verossimilidade sobre o que se é dito.

Segundo Durkheim (1977), uma solidariedade orgânica é aquela onde os interesses


individuais são relevantes e distintos entre os indivíduos que compõem aquela comunidade e
esse modelo se aplica às sociedades modernas e capitalistas, enquanto a solidariedade
mecânica é aquela que predomina nas sociedades mais arcaicas, ou seja, as que mantêm
costumes, tradições e uma organização social baseada em poder religioso/moral religiosa.
O contexto de Santa Juliana, no interior de Caxias, engloba esses dois modelos (por
mais que normalmente um predomine sobre os outros), mas podemos notar que a vila é
economicamente baseada e dividida pela cooperativa de vinhos e ao mesmo tempo é guiada
pela moral religiosa e pelos interesses próprios de cada um dos moradores da mesma. O lado
orgânico se mostra no primeiro aspecto pela cooperativa ser o orgulho de todos os que ali
vivem (e que direta ou indiretamente contribuem com a cooperativa), enquanto o lado
mecânico se dá na seara pessoal1 dos personagens que colocam seu bem estar e sua imagem
em primeira instância, mesmo que isso ultrapasse limites que seriam moralmente duvidosos.

2. A “IDENTIDADE DO GAÚCHO” QUE SE DIFERE DO CONVENCIONAL

Se tentarmos enquadrar a obra dentro dos moldes sugeridos por Fischer (2004),
podemos encontrar uma pequena problemática que é a qual buscamos analisar e explicar
dentro do presente trabalho: a obra pode ser enquadrada como literatura gaúcha por se passar
geograficamente no Rio Grande do Sul e por ser publicada no estado, porém, ela não
“representa” o gaúcho como conhecemos e “pintamos” socialmente, carregado de trejeitos,
maneirismos, vestimentas típicas e simbólicas e virtudes inquestionáveis que o constituem.
Porém, nessa obra, o gaúcho que é retratado vai de contraponto a essa figura conhecida e
idolatrada.

O gaúcho retratado na narrativa possui outras marcas, ele se difere do gaúcho do


estereótipo e se aproxima totalmente do colono italiano. Essa divergência pode nos por em
duvida a “legitimidade” da obra como gaúcha em um primeiro momento por ela afastar tanto
os indivíduos retratados daqueles com os quais estamos acostumados.

Segundo Hall (1992), nem sempre essas culturas ou identidades nacionais que são
disseminadas, são a cultura “original” ou “real”. Hall (1992) destaca em seu texto a análise
sobre as culturas nacionais serem unificadas ou não e como resultado disso, nos mostra que
nem sempre uma cultura que “representa” um estado ou uma população (comunidade) é a
única e real. O gaúcho ao qual estamos acostumados se firmou como um elemento e
personagem literário por possuir uma tradição mais marcada e disseminada que as demais, e

1
O termo “pessoal” é utilizado no texto para expressar a opinião e a posição ideológica/de julgamento dos
indivíduos desse extrato, mas é necessário ressaltar que essa posição ideológica da comunidade pode ser
traçada até um único fator comum que é o da moral católica religiosa que guia a comunidade e exerce grande
poder (mesmo que não aparente) sobre os indivíduos. E essa moral religiosa é posta em questão com suas
ações, mas não é relevada por eles por acharem que estão agindo de forma correta e pelo bem.
muitas vezes ,esses traços marcantes se mesclam com outras culturas (como no caso de Santa
Juliana que é uma comunidade de cultura e orgulho italiano, mas situado dentro do Rio
Grande do Sul e gaúcha por isso) e por esse extrato de uma cultura estrangeira (seja pela
imigração ou colonização) estar geograficamente situado em um ponto x, ela assume os traços
daquela cultura predominante.

Segundo Hobsbawm (1997) existem três tipos de tradições inventadas que podemos
identificar, e esse fato de analisarmos e visualizarmos esse gaúcho estereotipado que se difere
tanto dos personagens marcantes da obra, é porque estamos vendo-o através do véu de uma
tradição que ele delimita como sendo uma tradição que se fixa com o propósito de
socialização e inoculação de ideias, sistemas de valores e padrões de comportamento. É por
isso que estranhamos o contato e a descrição do gaúcho-colono-italiano apresentado.

Esse estranhamento, se pensarmos não muito a fundo, chega a beirar um certo tipo de
“hipocrisia” se analisarmos o ambiente e o contexto no qual vivemos e no qual lemos essa
obra: geograficamente estamos no Rio Grande do Sul e somos gaúchos, porém, nossas
tradições da região das Missões e arredores, se diferem em vários pontos dessa imagem do
gaúcho literário/estereotipado porque possuímos uma influencia extremamente forte dos
nossos colonizadores (Alemães, Italianos, Poloneses, etc.) e fora momentos de comemoração
(feriados voltados para o orgulho ou eventos dos Centros de Tradição) os costumes familiares,
traços de fala/linguísticos (dentro da variação e fonética) se assemelham muito mais aos
traços dos colonizadores da região ou das famílias dos indivíduos. Ou seja, muitas vezes
defendemos uma imagem que não nos representa totalmente, uma que é “universal” a nossa
região por uma tradição se assim ser (HOBSBAWM – 1997) mas que somente “nos
representa” por ser mais geral e por buscar uma unificação de cultura e identidade (HALL,
1992).2

Segundo Bhabha (1998) essa necessidade de autoafirmação que possuímos e que


buscamos quando lemos uma obra dita gaúcha ou gauchesca se dá por sentirmos que nos falta
uma representatividade (mesmo que seja uma representatividade generalizada). O gaúcho foi
submisso, foi dominado e colonizado. A imagem do homem bruto e virtuoso do gaúcho foi

2
Nesse parágrafo a escolha pela escrita pessoal foi feita para expressar de forma mais crua (mesmo que
norteada pela leitura teórica) e para mostrar um ponto de vista adquirido através do conhecimento pós-leitura
dos textos.
necessária na literatura para reafirmar uma identidade que acabou por se fixar e para tentar
impor força ao colonizado/dominado.

A EXCLUSÃO DO “ESTRANGEIRO”

Ao chegar em Santa Juliana, Pasúbio assume que ele também é “cria do interior” e
consegue diagnosticar muito claramente essa forma de viver e essa barreira de defesa que as
comunidades interioranas criam em seu entorno: todos são amigáveis, tratam bem, mas
dependendo do contexto e de quem chega a sua comunidade, são arredios, evasivos e excluem
de toda e qualquer maneira possível o “estrangeiro” e no caso do Comissário fora ainda pior
por ele estar lá apontando dedos e investigando as pessoas que ali residiam. Fica muito claro
em alguns trechos da narrativa que as pessoas que ali vivem ficam na defensiva e se protegem
apesar das circunstâncias, como fica evidenciado no seguinte trecho “Olharam uns para os
outros, como se decidissem se deviam ou não responder. Estavam protegendo alguém? Ou
simplesmente se protegendo a todos, solidários, contra o estranho? (POZENATO, 2010, p.
27)”.

No viés de Pasúbio ser visto como um “estrangeiro” dentro da comunidade (mesmo


que ele tenha assumido em seus pensamentos e para algumas pessoas da comunidade que ele
foi criado no interior) onde ele mesmo se identifica apesar de estar afastado, podemos nos
vincular mais uma vez a Bhabha (1998) quando ele diz que o “dominado” precisa se reafirmar
e ser representado quando em contato com quem representa o estranho para ele. O processo
de unificação dentro de uma nação se dá através de conquistas longas e violentas, o colono,
muitas vezes pode ver o homem da cidade como um ser que está lá de forma violenta dentro
de seu ambiente e Pasúbio mais do que qualquer um, chega em Santa Juliana para
desestabilizar o suposto equilíbrio e harmonia que existe no campo.

Além de ser um “estrangeiro” que está lá para apontar falhas, erros e/ou perturbar o
ambiente, Pasúbio ainda seria o responsável pela prisão e pela incriminação de Dona Giulieta,
amante fiel de Mansueto, além de ser uma figura de muito respeito e admiração da
comunidade de Santa Juliana. Essa devoção e respeito para com a duplamente viúva (se
contarmos a morte de seu ex-marido e a morte recente de Mansueto) fica explícito quando a
comunidade descobre que fora ela quem – supostamente – matara Mansueto, e isso se torna
uma justificativa para que os demais moradores evitassem ao máximo falar com Pasúbio ou
passar informações sobre o crime ou sobre as pessoas. A comunidade se uniu mesmo que de
forma quase inconsciente para proteger Dona Giulieta das acusações e da punição de uma
forma extremamente sincera e terna.

Esses aspectos demonstram um sentimento comunitário extremamente forte que é


muito visível não só no livro como também em pequenos extratos sociais (como na colônia,
por exemplo), tanto pela quantidade de indivíduos que se concentram nessa construção de
sociedade como pelas doutrinas que se disseminam de forma mais rápida entre estes e
principalmente pelas tradições que se fixaram dentro dessa comunidade 3(HOBSBAWM,
1997).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A obra analisada é extremamente rica e para demonstrar esses fatos sociais que foram
abordados até aqui e que poderiam se estender para discussões e/ou análises mais profundas e
maiores. “O Caso do Martelo” nos traz uma visão muito diferente daquela que temos quanto
esse personagem gaúcho com o qual estamos acostumados (aquele com traços/características
muito mais fortes em relação à aparência e à moral, muito mais ligado ao campo, sendo quase
como uma extensão do mesmo) e nos traz um personagem tipicamente mais próximo ao que
vemos com mais frequência e até no dia a dia em nossa região (ou seja, mais contextualizado
e representativo, se levarmos em conta o contexto do/dos leitor/es e da produção deste texto).

O livro nos permite m mergulho nas pequenas e simples tradições do colono italiano
em seu ambiente de conforto de forma sútil e representativa com marcas da tradição italiana,
marcas da vida na colônia e dos seus moradores. Além dessa rica exposição cultural, o
romance é bem construído e todas as pequenas tramas são amarradas e chegam a um ponto
final e conclusivo claro e surpreendente, contextualiza uma situação pouco comum na
“colônia”, trazendo a tona a influência das tradições e da moral comum de um povoado
pequeno de forma fiel e muito extremamente bem elaborada.

3
Ou “dessas comunidades”: esse fenômeno não é restrito à obra ou a uma única comunidade rural. Essa
“uniformização cultural” pode ser vista se não em todas, em uma grande maioria dessas construções sociais
comunitárias (algumas com diferenças sutis ou um pouco mais acentuadas, dependendo da origem/influência
étnica do local) mas quase sempre com muitos pontos comuns.
REFERÊNCIAS

BHABHA, Homi K. O Local da Cultura. Editora UFMG, 1998. P 19 – 42.

DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho social. São Paulo: Martins Fontes, 1977.

FISCHER, Luís Augusto. Literatura Gaúcha. Porto Alegre: Leitura XXI, 2004.

HALL, Stuart. As Culturas Nacionais como Comunidades Imaginadas. DP&A Editora. 11ª
Edição. 2006. P 47 – 102.

HOBSBAWM, Eric. A Invenção das Tradições. Paz e Terra. 6ª edição, 2008. P 9 – 25.

POZENATO, José Clemente. O Caso do Martelo. Editora Maneco, 2ª edição, 2010.

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