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VIOLÊNCIA CORDIAL — PACIFICIDADE E PASSIONALIDADE NO BRASIL

Naine da Silva
Ferreira1

RESUMO: O presente artigo visa apresentar a contradição existente entre o cenário


de violência no Brasil e o processo de negligência e minimização da mesma por parte
dos brasileiros, bem como fazer uma relação entre essa sonegação e um erro de
interpretação a respeito da definição do conceito de cordialidade, trabalhada por
Sérgio Buarque de Holanda na construção de uma identidade brasileira. Para alcançar
o resultado, utilizou-se do método comparativo, abordando as incoerências entre
situação violentas passadas no Brasil e a forma como essas foram abordadas e
justificadas pelos seus executores e concordantes.
PALAVRAS-CHAVE: Cordial; pacificidade; passionalidade; violência.

INTRODUÇÃO

“O Brasil é um país tranquilo”, “Não há preconceito ou violência nessas


terras”, essas respostas são recorrentes na interrogação dos brasileiros a
respeito da sua própria nação. Os relatos sempre são sobre um país
aconchegante, de um povo caloroso, incapaz de atender ao estado de natureza
hobbesiano. Mesmo quando são interrogados sobre as partes difíceis de ser
brasileiro, as respostas carregam um tom cômico. As desgraças existentes no
Brasil movem plateias inteiras nos shows de stand up comedy. Entretanto, esse
humor e calmaria perde o brilho gradativamente quando confrontado com
processos históricos que envolveram e envolvem esse país. “Esse quadro não
resiste ao teste da história”. (KARNAL, 2017, p. 19)
A ideia de que no Brasil não há violência ou ódio, sustentada pelo fato
da nação não ter sido marcada por grandes revoluções internas, como na
Rússia ou na França, ou de não ser considerado um país racista respaldado
pelo patamar de comparação com regimes separatistas constitucionalizados,
como o Apartheid, não se solidifica à luz dos documentos, se perde nos
primeiros capítulos de qualquer livro não tendencioso que fale historicamente
sobre o Brasil.
A violência sempre esteve presente, seja de forma direta ou velada. O
que há aqui com menor intensidade em relação aos outros países é a
admissão dessa violência (KARNAL, 2017). No Brasil há uma negação ou
atenuação desse fator, “uma vez que conflitos e contradições negam a imagem
mítica da boa sociedade indivisa, pacífica, ordeira e não violenta” (CHAUÍ,
2017, p.41). Essa omissão é pautada em primeiro lugar pela tentativa de
justificar os atos de violência, depois pela negligência e ocultamento da versão
dos violentados, geralmente minorias sociais. No que diz respeito à
primeira

1 Graduanda em licenciatura plena em história – UEPB. E-mail:


naine.ferreira@aluno.uepb.edu.br
afirmação, é muito comum que se utilizem de termos e estereótipos no intuito
de proporcionar um efeito curativo nas violências empreendidas contra os não
protagonistas da História Oficial. Uma dessas bandagens é o conceito de
cordialidade, introduzido por Sérgio Buarque de Holanda em seu, Raízes do
Brasil (1936).
Nesse sentido, trataremos aqui, não a causa dessa violência, ainda que
seja um tema de grande relevância, já abordado por grandes nomes, mas o
processo de sonegação ao qual ela está relacionada na nação brasileira. Para
esse processo, primeiramente faremos um levantamento de controvérsias
envolvendo a caracterização de cordialidade, muito utilizado para definir o
brasileiro como um ser de bondade. Ademais, partiremos para um movimento
dialético que envolve violência, pacificidade e cordialidade, apontando as
relações de continuidade entre esses fatores. Por fim, é proposto uma análise
histórica de eventos que espelhem nitidamente esse caráter ambíguo e
relacional do ser brasileiro, cordial, pacífico e violento.

1. CORDIALIDADE E SENSO COMUM

Usualmente, é levantada a pauta, desde o senso comum ao meio


acadêmico, sobre o quão cordial é o brasileiro, seja na perspectiva de definir
sua bondade e acolhimento perante as outras nações, ou ainda para justificar
sua esperteza nas incontáveis situações
— em alguns casos, ainda inéditas em outras nações — especialmente,
quando se trata da esfera política.
A exaltação do bom brasileiro, cidadão de bem, está majoritariamente
acompanhado da palavra cordial, especialmente naqueles discursos mais
conservadores. Na defesa ao porte de armas, por exemplo, são estampadas
frases sinônimas ou iguais a seguinte: “o brasileiro é cordial, paga seus
impostos, portanto, tem o direito de andar armado para proteger sua
propriedade”. Soa não só contraditório, como também paradoxal a junção de
posse de arma e o real significado de cordialidade que será detalhado nas
próximas páginas.
Outra faceta do brasileiro que está sempre pautada pelo uso do termo
cordialidade é a prática do “jeitinho”, método pelo qual o brasileiro consegue
contornar situações quase irremediáveis com grande maestria. Esse traço está
bem explícito nos heróis nacionais, reais e fictícios, o Pedro Malasartes da
vida, sempre ligados a ascensão social, não pela superação do modelo
hierárquico de classes, mas pelo desvio desses obstáculos, chegando ao topo
da pirâmide com pouca honestidade e muita malandragem. Segundo o
antropólogo, Roberto Damatta, em seu Carnavais, Malandros e Heróis, em
Malasartes,
“Estamos diante de Um ‘herói sem nenhum caráter’, ou melhor, de um
personagem cuja marca é saber converter todas as desvantagens em
vantagens, sinal de todo bom malandro e de toda e qualquer boa
malandragem”. (DAMATTA, 1997, p. 274)
Essas estratégias se condensam com maior assiduidade no Brasil pelo
seguinte fato: além da desigualdade existente entre as classes econômicas,
representada nas narrativas protagonizadas por Pedro, a própria maneira como
ele quebra ou contorna as normas é fruto direto da discrepância existente entre
as regras jurídicas e a realidade cotidiana do brasileiro. A forma como as leis
foram elaboradas para o Brasil não correspondem aos valores dos brasileiros,
não havendo, portanto, compromisso ético entre a vida pessoal do brasileiro e
as regras públicas e jurídicas. Para Damatta (1986, p. 65), o que falta aqui e
que há em excesso em países como França, Inglaterra e Estados Unidos é a
concordância entre essas esferas:

Diante dessa enorme coerência entre a regra jurídica e as práticas da


vida diária, o inglês, o francês e o norte-americano param diante de
uma placa de trânsito que ordena parar, o que — para nós — parece
um absurdo lógico e social, pelas razões já indicadas. Ficamos, pois,
sempre confundidos e, ao mesmo tempo, fascinados com a chamada
disciplina existente nesses países. Aliás, é curioso que a nossa
percepção dessa obediência às leis universais seja traduzida em
termos de civilização e disciplina, educação e ordem, quando na
realidade ela é decorrente de uma simples e direta adequação entre a
prática social e o mundo constitucional e jurídico.

Dessa forma, o cenário brasileiro é propenso para a criação das figuras


malandras, portadoras dos jeitinhos, que estão sempre sendo salientados e
adoçadas com um toque de orgulho e humor pela gente dessa nação. O tempo
difícil e as risadas que o acompanham estão presentes em toda a estrutura
brasileira, pois se contado com uma dose extra de humor, a aceitação se torna
mais fácil e imperceptível. As figuras engraçadas, ainda que sejam absurdas,
carregam mais espaço na memória dos brasileiros do que seus tiranos mais
sérios. Na era do MEME, cada gafe cometida se torna a dose de serotonina em
carência na vida dos brasileiros.

2. O HOMEM CORDIAL: DE SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA E RIBEIRO


COUTO

A questão é: quanta dualidade carrega o termo cordial para que esse


possa justificar, ou omitir maus atos e elogiar boas ações em um só tópico,
como exposto acima? Esse estudo ganhou primeiramente amplo
reconhecimento na figura de Sérgio Buarque de Holanda (1902–1982), grande
nome da sociologia, conhecido como um dos maiores interpretes do Brasil, que
retomou o termo já utilizado por Ribeiro Couto (1898–1963).
Cordialidade foi introduzida em Raízes do Brasil (1936), no capítulo 5, intitulado
“Homem Cordial”, na pretensão de explicar a essência de ser brasileiro, muito
explorada na época de lançamento da obra.
Ele se utiliza do termo para validar sua tese de análise sobre a
permanência dos traços coloniais e do patriarcalismo em oposição a
modernidade e a burocratização. Nesse sentido, graças a herança colonial e
familiar, o brasileiro sempre iria ser atravessado pela esfera do afeto em
detrimento a qualquer coisa, mantendo seus interesses pessoais sobre as
obrigações públicas. Cordial é aquele que age com o coração, que caminha em
uma ponte que pode ir da passionalidade a pacificidade, dependendo da
situação e do contexto em que esteja inserido. (KARNAL, 2017).
Entretanto, já nas primeiras versões houve interpretações duvidosas
acerca do uso do termo. O fato de concordar com as ideias de Ribeiro Couto
no sentido de afirmar que a cordialidade é a maior contribuição do brasileiro e o
seu traço definidor fez com que muitos intérpretes entendesse que o autor
tratava essa herança como algo positivo. No entanto, “cordialidade é vista
negativamente a partir de sua etimologia, a qual parte de relações fundadas no
coração, laços íntimos e familiares, de sorte que na guerra ou na paz é
possível ser cordial.” (RAMIREZ, 2007, p.182). Ao longo de suas demais
versões a obra passa por inúmeras revisões, dentre elas, foi salientada a real
significação do termo em análise. “Logo, o brasileiro seria aquele que prioriza
os laços emotivos frente à razão. Inclusive, a cordialidade por certas vezes
pode significar agir de maneira violenta”. (MILARÉ, 2020)
Esse Homem Cordial não deixa de ser afetuoso e acolhedor, como
prega os estereótipos, mas não se resume apenas a isso, se necessário,
também irá conforme os maus sentimentos que regem o coração, podendo
cometer atos violentos. Nas palavras do próprio Holanda:
A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtude tão
gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito,
um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que
permanece ativa e fecunda a influência ancestral de padrões de
convívio humano, informados no meio rural e patriarcal. Seria engano
supor que essas virtudes possam significar ‘boas maneiras’,
civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de um fundo
emotivo rico e transbordante (HOLANDA, 1995, p. 146-147)
Lilia Schwarcz e Heloisa Murgel Starling também apresentam em seu
livro, Brasil: uma biografia, a controvérsia a qual se envolveu o termo cordial ao
longo do tempo e a insatisfação do próprio Holanda com esse uso.

Holanda foi reprovado pela ideologia do senso comum. Sua noção de


“cordial”, na visão popular, tem sido castigada pelo juízo invertido.
Foi
reafirmada como um libelo das nossas relações cordiais, sim, mas cordiais no sentido de
harmoniosas, sempre receptivas, e contrárias à violência, em vez de ser entendida a partir de
seu sentido crítico — a nossa dificuldade de acionar as instâncias públicas. (SCHWARCZ;
STARLING, 2015, p.13)
O ponto principal e solidificador de todo estudo do homem cordial em
Sergio Buarque está na dialética existente entre as esferas públicas e privadas.
Em paralelo ao desenvolvimento da modernização, a sociedade brasileira não
traçou limites entre essas duas esferas, resultando em mais um traço
diferenciador da cultura brasileira, não saber diferenciar o público do privado,
envolvendo as duas questões em um só trajeto que englobe seus objetivos
pessoais e suas habilidades sociais. Chauí (2017, p. 42) descrevesse essa
dinâmica da seguinte forma:

Relações sociais fundadas no espaço privado, na intimidade (como


transparece no uso imediato do nome de batismo em lugar do
sobrenome, no emprego de diminutivos que exprimem proximidade,
na recusa dos rituais próprios do espaço público, isto é, não apenas
das formas de polidez e civilidade, mas também o recurso ao
jeitinho).
Exemplo que elucida bem a dissolução dessas duas esferas em uma
única síntese pode ser observada nas relações desenvolvidas entre patrões e
empregados. Em concordância com a teoria geral de Holanda, as relações de
trabalho brasileiras também seriam heranças do passado colonial, mais
especificamente da escravidão, já que durante esse regime, o senhor era dono
não só da força de trabalho, mas um tipo de responsável moral e simbólico do
escravizado, sustentando laços tão complexos quanto os que envolviam os
escravos do lar e os filhos de escravizados apadrinhados por senhores. Fica
claro nesse exemplo a ultrapassagem do vínculo burocrático.
Em analogia a atualidade, nota-se, seguindo essa perspectiva, que os
contratos empregatícios no Brasil ainda permeiam as duas esferas em
transições constantes que quebram limites em muitos sentidos. Isso pode ser
ilustrado pelo funcionário que chama o chefe para uma cervejinha no final de
semana em troca da resolução de uma pequena burocracia, ou pela
empregada doméstica que faz hora extra sem acréscimo no salário pela
justificativa de que considera a patroa uma amiga ou irmã.
Em uma relação entre sua ideia de essência do brasileiro e as teses de
Max weber a respeito da diferença entre os tipos ideais “funcionário patrimonial”
e “puro burocrata”, Holanda (1995, p. 146) afirma que:

Para o funcionário “patrimonial”, a própria gestão apresenta-se como


assunto de seu interesse particular; as funções, os empregos e os
benefícios que deles aufere relacionam-se a direitos pessoais do
funcionário e não a interesses objetivos, como sucede no verdadeiro
estado burocrático, em que prevalecem a especialização das funções
e o esforço para se assegurarem garantias jurídicas aos cidadãos.
“Enquanto o ‘funcionário patrimonial’ busca atender os seus próprios interesses
ou do grupo que representa, o ‘puro burocrata’ age através do princípio da
impessoalidade e procura satisfazer os interesses coletivos.” (RAMIREZ, 2007
p. 180) No Brasil, esse sentido de burocrata estaria em falta, escasso em meio
a uma maioria patrimonial.

Schwarcz e Starling (2015, p. 12) analisando as próprias palavras de


Holanda acerca do tópico, comentam:

Conforme propôs Sérgio Buarque de Holanda, o país foi sempre


marcado pela precedência dos afetos e do imediatismo emocional
sobre a rigorosa impessoalidade dos princípios, que organizam
usualmente a vida dos cidadãos nas mais diversas nações.
Os pontos esclarecidos aqui são provas cabais das incoerências
existentes entre as ideias de Sergio Buarque de Holanda acerca de nossas
heranças e a forma distorcida pela qual essa temática é abordada na
sociedade. Uma vez que, os próprios termos usados em defesa da não
violência do país são equívocos de interpretação, as faces desse problema se
tornam mais aparentes.

3. VIOLÊNCIA E CORDIALIDADE: UMA QUESTÃO RELACIONAL

As tentativas de interpretações de uma sociedade, constantemente, são


imbuídas por jogos de oposições. As identidades sempre vêm dos pares que
se contradizem, o público e o privado, o sagrado e o profano, o bem e o mal, o
certo e o errado. Com o Brasil não diferiria, dividido entre os Gilberto Freyre
que defendem a herança colonial como positiva e os Florestan Fernandes que
repudiam essa, assim se configura a binaridade brasileira. No caso da temática
aqui abordada, analisamos a oposição entre os relatos de violência e a defesa
da não existência dessa.
O cenário brasileiro é lotado de situações nas quais se utilizou de
violência para conseguir matéria-prima, prestação de serviços, obediência e
consenso. Entretanto, não há um orgulho em citar esses acontecimentos, ao
contrário, como já foi exposto, é preferível utilizar-se de estereótipos e termos
que mostrem o oposto. É preferível recorrer a justificativas que amenizem os
eventos sangrentos. É mais brando afirmar que torturou alguém até a morte em
via pública para educar os outros perante as consequências de seus erros, a
assumir que tem sede e prazer por violência contra seus odiados.
Essa camuflagem da violência parte de um ponto que em si já é falho,
pois nesse empenho só é selecionada para a ocultação a violência física,
deixando escancarada aquela que talvez seja a mais devastadora, a violência
simbólica e velada. Para explicar esse movimento, Marilena Chauí define o que
seria violência e a relação existente entre
o poder atual e as heranças coloniais. Para ela, a violência é tudo aquilo que
coisifica o ser, que priva o indivíduo de seus direitos. Qualquer pensamento ou
ato que fira a dignidade seria, portanto, violência, não estando restrita apenas a
criminalidade.
A autora vai mais fundo, propondo a raiz desse problema. Concordando
com a tese Buarqueana, Chauí (2017), também atribui esse traço ao reflexo do
colonialismo e das relações de poder autoritárias, que resultaram em uma
sociedade hierárquica e verticalizada. Das discrepâncias entre o excesso de
poder e a miséria que nega direitos básicos a uma maioria de brasileiros
durante a após 500 anos nasce a violência.
Essa mesma desigualdade é palco para a contradição entre a existência
dessa violência e a defesa do mito da não violência. Quem detém o poder e o
controle sobre a criação da memória social usa de todos os meios para inibir os
relatos violentos, exaltando os pontos positivos e atribuindo essa violência a
um grupo específico, ligado a criminalidade, e geralmente, a pobreza e
negritude. Por outro lado, os violentados, indignados pela omissão de sua fala,
focam em denunciar suas condições, na tentativa de desmascarar a sombra
por trás da persona brasileira dos estereótipos positivos.
No meio desse conflito de extremos se negligencia o que para Damatta é
a raiz do problema, que estaria justamente na relação entre os dois pontos,
cabendo questionar até que ponto o brasileiro é acolhedor e brando? Ele é
naturalmente inclinado a violência? E
o mais importante, em que medida essas duas características se diluem na
cordialidade?
Para ele, a resposta para a terceira questão é a chave de interpretação
correta para a identidade brasileira. Chave essa, que segundo autor, é dupla.
Seria necessário entender
o Brasil como “algo que tem dois lados. E mais: como uma realidade que nos
tem iludido, precisamente porque nunca lhe propusemos esta questão
relacional e reveladora”. (DAMATTA, 1986, p. 14)
Entender o Brasil seria um trabalho muito mais dialético, onde os dois
lados se interlaçam e se correspondem. A cordialidade seria justamente esse
caráter dúbio, que pratica boas e más ações, mas que, sobretudo, pratica elas
com base em seus interesses. Sendo notada nas relações de poder como uma
hipocrisia, na qual os grupos sustentam a fachada da pacificidade e do
acolhimento através do discurso, disfarçando os conflitos e violência
empregadas contra as ameaças a esse poder. Para Chauí (2017, p. 48)
“Graças ao mito da não violência, deixamos na sombra o fato brutal de que
vivemos numa sociedade oligárquica, verticalizada, hierarquizada, autoritária e
por isso mesmo violenta.”
4. ANÁLISE HISTÓRICA: JUSTIFICATIVA CONTRA FATOS

Há uma grande linha que divide a forma como a violência acontece e


como é relatada no Brasil. É mesmo paradoxal a comparação entre os
movimentos que defendem que o período entre 1964 e 1985 não foi tão
violento, e os relatos de que outras nações vinham até aqui para aprender
técnicas de tortura, dada a criatividade do brasileiro em punir aqueles tidos
como ameaças ao autoritarismo. Observaremos a seguir essa contraposição
entre justificativa e realidade em dois recortes, sendo o primeiro na relação
invasor-nativo, situada nos primeiros contatos e o segundo na punição dos
revoltosos de alguns momentos de resistência da história brasileira.

4.1 CHEGADA DOS PORTUGUESES: INVASORES TRAZEM SALVAÇÃO?

A presença de violência e sua negação no Brasil, começa antes mesmo


desse ser reconhecido como tal, e antes ainda que a mistura étnica
acontecesse por essas terras. Com a chegada dos portugueses e outras
nações à Ilha de Vera Cruz, já se iniciam os processos de estranhamentos
perante o outro (indígena). “Nada se sabia sobre os habitantes dessa terra
ensolarada. Seria gente como eles ou criaturas estranhas, bizarras,
desnaturadas?” (PRIORE, 2016, p. 16).
Com crescimento de interesses nessa terra e um contato maior com o
povo aqui já fixado, surge a necessidade de moldar os nativos aos padrões
econômicos e culturais europeus, impostos como paradigma base para as
demais nações ocidentais. Aí que começa o processo de violência contra os
indígenas, seja essa violência declarada, contra os corpos, ou velada, contra a
cultura, religião e personalidade. Talvez, a segunda forma tenha provocada
ainda mais perdas.
No entanto, seja do primeiro ou segundo modo, não se atribuiu essa
violência a intolerância e etnocentrismo dos europeus, e sim a ideia recorrente
na época de que com o lugar de berço de civilização, as nações europeias
precisavam salvar aquele povo da brutalidade, lascívia e ociosidade, iniciando-
os ao cristianismo e as formas comerciais europeias. E assim foi feito, porém,
ao mesmo tempo, em que se aproveitavam do escambo, que empurravam os
indígenas para áreas menos férteis e abusavam dos corpos das nativas.

Para a Igreja Católica e os jesuítas que logo vieram para o Brasil, o


importante era destacar sua “humanidade” e seu pendor para a
cristianização. Entusiasmado com a perspectiva de convertê-los ao
catolicismo, padre Nóbrega, em 1563, gravou que, como “papel
branco”, neles se poderia escrever à vontade. (PRIORE, 2016, p.21)
Por uma via ou por outra, seria necessário introduzi-los à “civilização”.
Para os indígenas menos resistentes o resultado foi a perda gradativa de sua
liberdade e cultura em meio às aculturações dos brancos, para os mais
resistentes foi o extermínio, a escravização e o seu apagamento da história
oficial.
Padres e capitães afirmavam estar salvando certos grupos linguísticos
os vestindo em roupas, os ensinando as orações católicas e os forçando a
trabalhar em um ritmo diferente. Quando, na verdade, estavam destruindo suas
identidades coletivas e individuais, além de os impedir de passar sua real
história a frente, uma vez que sobreviveram ao tempo através dos relatos
distorcidos das crônicas de seus invasores, podendo ser melhor entendidos
apenas pelos relatos arqueológicos e etnológicos que revogam muitas
definições pejorativas encontradas nos relatos europeus.
O que encabeçou a invasão do Brasil e exploração de suas terras foi um
contexto de maior desenvolvimento náutico, envolvendo a localização
privilegiada dos estados ibéricos, a necessidade econômica de expandir terras,
encontrar novos recursos naturais e minerais, e por último, a carência cristã de
novos fiéis, dada as mudanças começadas pela Reforma Protestante. Não
sendo válidas, portanto, as justificativas que se baseiam em salvação ou
entrega de civilização aos gentios. Esses são apenas mais traços da
necessidade de camuflagem para os interesses geradores das violências
existentes no Brasil. Quem acreditaria que Cabral se arriscou em uma viagem
de mais de 40 dias para ensinar os indígenas brasileiros a não mostrar suas
“vergonhas” e a rezar as orações católicas?

4.2 PUNIÇÃO E SUPLÍCIO NAS REVOLTAS DO BRASIL

A punição às revoltas ocorridas entre o fim do período colonial,


desenrolar do Império e da república também são provas cabais do
investimento das gestões nessa violência tão negada. Todas, com exceção de
Farrapos, por envolver um cunho elitista, tiveram fins sangrentos e podem ser
apontadas como testemunhas da sede de violências derramada sobre os
revoltosos. Felipe dos Santos, líder da Revolta de Vila Rica, foi arrastado por
um cavalo e depois morto na forca em praça pública. Como defender que esse
não foi um ato onde se tinha desejo e prazer na violência? Se assim não fosse,
por que arrastá-lo se esse já estava condenado a morte? O homem brasileiro é
mesmo cordial em todos os períodos.
É inegável perante os documentos. Porém, a dificuldade de desmentir
gera a necessidade de justificativa. Uma delas é a educação a base do
pânico, traço recorrente
não só no Brasil, mas já herança da colonização dos países europeus,
especialmente advindo da Idade Média. Acerca da ideia de suplício e sua
ampla aceitação, disserta Santarosa apud Foucault (2000, p. 31):

Michel Foucault caracteriza o suplício a partir da existência de


sofrimento, era um rito que consistia em marcar a vítima e deixar a
imagem bem gravada para quem o presenciava e, fazer espetáculo
do poder de quem punia. Podia purgar o crime perante a sociedade
ao mesmo tempo que dava o exemplo a ser lembrado.
Essa foi a alegação utilizada no desfecho da Balaiada, em que Cosme Bento
das Chagas (1802 – 1842), líder do maior quilombo do maranhão e um dos
mais influentes líderes do movimento dos balaios, foi enforcado em praça
pública. Para Luz (2016, p. 17):

No que diz respeito à Balaiada pode-se afirmar que de todos os


líderes apenas o Negro Cosme foi enforcado e que seu enforcamento
foi uma tentativa de dar exemplo aos negros que pensassem em se
rebelar, entretanto, as resistências à escravidão não pararam por ali.
A punição em público, provocando confissão e arrependimento foi
largamente aceita no Brasil (pelo menos pelos dominantes deste). Muitos
nomes foram associados a vilões e a esses foi direcionado o ódio. Tiradentes,
Zumbi, Lampião, Dom Hélder Câmara, todos estão nessa lista. Quando, na
verdade, a maioria só apresentava ameaça para os dominantes, que eram
minoria. Entretanto, há a necessidade de pintar a figura do vilão, visto que uma
vez associado a essa figura, não há problema em ser conivente com a
violência. As justificativas não param.

5. ATUALIDADE: A MÍDIA E A VIOLÊNCIA NICHADA

O processo de sonegação trabalhado até aqui, distorce, camufla e


embeleza muitos trechos da história do Brasil. Com a adaptação as tecnologias
de comunicação e informação em massa, essa relação existente entre a
violência e sua negação se torna ainda mais complexa. Na atualidade, apesar
de uma maior liberdade individual de expressão, a mídia nacional, se torna um
aliado do poder, moldando a memória aos padrões necessários para o
mantimento dessa sociedade hierarquizada que Chauí descreveu. A hipocrisia
existente entre a fachada pacífica e a violência se torna muito mais assídua
com o controle desses meios.
A incoerência desses extremos se materializa na programação da TV
nacional, em um horário são transmitidas matérias sobre as belezas naturais do
Brasil ou especiais em homenagem a suas tradições culturais, em outro um
pouco mais a frente, programas jornalísticos apresentam altos índices de
violência contra a mulher e a comunidade LGBTQIAP+, acidentes no trânsito,
confronto nas torcidas, guerra entre tráfico e polícia,
perseguição de cidadãos negros e outros indicativos de atos violentos. O
Jornalismo policial, conhecido também, como Datenismo, dada a grande
repercussão do programa Brasil Urgente, apresentado por José Luiz Datena,
na Rede Bandeirante, é o maior divulgador desse tipo de notícia.
Nesse ponto, após a apresentação do desejo de esconder essas
violências, tema aqui tratado, surge o questionamento: como defender que não
há violência na estrutura brasileira em meio ao noticiário policialesco? Pode
parecer realmente contraditório, mas é válido salientar como a violência é
tratada no Brasil, como defende Chauí, além dos pontos até aqui expostos.
Aquila que não se pode negar, é justificada. E é aí que entra a função desse
jornalismo. Eles não relatam a violência em si, aquela estrutural, mas uma
violência nichada, de grupos que o poder realmente quer que sejam vistos
como perigosos. A esse respeito, Almeida (2017, p. 87) afirma:

São assuntos que são vistos todos os dias enquanto outros jamais,
ou quase nunca, serão tratados pela mídia. Grupos sociais que são
enfatizados em determinadas matérias enquanto outros são evitados
por conveniência da grande mídia jornalística, aquela que é mais
poderosa, o meio de comunicação que possui maior audiência ou
tiragem, os que veiculam mais publicidade.
Não se questiona o sistema penal, a elaboração da legislação, o sistema
carcerário, o desrespeito a presunção de inocência, as condições propensas
para a criação desse tipo de crime, mas busca-se justificar essa existência
como algo externo, uma praga alheia que atrapalha o funcionamento do
sistema e impede o desenvolvimento dessa nação tão ordeira.
A estereotipagem do criminoso é um dos maiores agentes desses
policialescos, somando para a discriminação por parte dos civis e perseguição
por parte policial, pois os casos isolados que são apresentados de maneira
massiva se referem a um determinado tipo de aparência que se difunde na
criação de um estereótipo com cara, estilo e cor de bandido. Os próprios títulos
de notícias utilizadas por esse jornalismo revelam a segregação social e étnica
no que diz respeito ao envolvimento com o crime. condomínios de luxo, que
armazenam abundância de drogas, é “Laboratório de drogas sintéticas” 2, a
mesma situação em favelas é reportada como biqueira ou boca de fumo. Baile
Funk em condomínio é uma festa como qualquer outra, contudo se localizado
em seu lugar de origem é tido como âmbito de perdição.

2
Laboratório de drogas sintéticas é encontrado dentro de casa de condomínio de luxo.
Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sorocaba-jundiai/noticia/2019/08/29/laboratorio-de-
drogas-sinteticas-e- encontrado-dentro-de-casa-em-condominio-de-luxo.ghtml.
Dessa forma, o jornalismo policial age como ferramenta de coerção para
o mantimento do domínio das classes que habitam o topo da pirâmide social,
política e econômica. Batista (2003, p. 5-6) acerca da parte da mídia
representada por esse jornalismo afirma:

Quando o jornalismo deixa de ser uma narrativa com pretensão de


fidedignidade sobre a investigação de um crime ou sobre um
processo em curso, e assume uma função investigatória ou promove
uma reconstrução dramatizada do caso – de alcance e repercussão
fantasticamente superiores à reconstrução processual -, passou a
atuar politicamente.

Quanto maior o crime ilustrado pela mídia, maior o medo do público


daquele perfil de criminoso, e consequentemente, maior a vontade pública de
punição severa contra aquele tido como culpado, para que esse não volte as
ruas e não se prolifere. Sobre o mesmo ponto se aplica a ideia de Gramsci
(2012, p.112)

Uma multidão de pessoas, dominadas por interesses imediatos ou


presas da paixão suscitada pelas impressões do momento,
transmitidas acriticamente de boca em boca, se unifica na decisão
coletiva pior, que corresponde aos mais baixos instintos bestiais.

É um discurso de extermínio, mas consentido e justificado pelas duras


cenas transmitidas pela mídia, concentrada, principalmente na figura do
jornalismo policial, ou ainda nas redes sociais dos próprios militares,
glorificados por essa camada. Julgado pela massa, guiada pela opinião dos
apresentadores (os Datenas) dos jornalismos penais populares, o criminoso
não depende mais de processo judicial, sua segregação já aconteceu, como os
leprosos e os loucos de História da Loucura (1961) de Michel Foucault (1926-
984).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os pontos até aqui abordados fazem clara relação a contradição


existente entre a cordialidade do brasileiro no sentido de estar voltado ao
coração, como quis deixar Sérgio Buarque de Holanda em seu, Raízes do
Brasil, e como essa é defendida pelos integrantes dessa nação, como uma
bondade, regida pela repulsa à violência. As contraposições entre realidade e
discurso, analisados no Brasil colônia, na punição aos rebeldes e na
programação da mídia mostram a imprecisão presente na construção da ideia
de um ser brasileiro.
Se analisado com clareza, percebe-se que toda formação brasileira foi
permeada pela violência: a invasão, a colonização, a escravização, a
repreensão dos revoltosos, os golpes da república, o regime de 64, as missões
policiais executadas nas atuais periferias,
todos são testemunhos concretos da força da violência no Brasil. Diante dessa
incoerência entre justificativas, falácias e fatos, a raiz do problema se
apresenta de forma mais nítida e sua ocultação se torna intolerável perante as
circunstâncias.
Outrossim, já é amplamente divulgado no campo da psicologia e até
ressoa no senso comum a noção de que é necessário reconhecer um erro para
poder corrigi-lo, é preciso primeiro entender profundamente um problema em
sua genealogia para poder saná-lo. Com o Brasil não é diferente, mostra-se
necessário a tomada de consciência a respeito desse caráter sanguinário e sua
inclinação a violência, para que se possa apostar em meios que promovam a
resolução desses atos e os pensamentos que os sustentam.
Uma vez que, se nega o racismo, a xenofobia, a intolerância contra a
bandeira LGBTQIP+, a misoginia e qualquer outro tipo de ato ou pensamento
que fira a dignidade humana, não se terá um progresso na detenção desses
fatores, uma vez que esse contramovimento age no ocultamento de vozes e
seres, deixando a situação a mesma, problemática e negligenciada perante o
culto aos estereótipos positivos de um povo que não compreende sua própria
história, mas a concebe de maneira passiva, renunciando a problematização de
uma identidade que parece pré-determinada por outros muito distantes.
Segundo Adichie (2009, p.18) Só “Quando rejeitamos a história única, quando
percebemos que nunca há apenas uma história sobre nenhum lugar, nós
reconquistamos um tipo de paraíso.”

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADICHIE. C. N. O Perigo da história única. São Paulo. SP: Companhia das


Letras, 2009.

ALMEIDA, Luanny Galvão. O descompasso entre a realidade midiática e a


realidade processual e suas implicações para o julgamento criminal justo.
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BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. Revista Brasileira


de Ciências Criminais, "Revista Especial", 8º Seminário Internacional, nº 42.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, cit., p. 05-06. 2017.

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DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: Para uma sociologia do


dilema brasileiro. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.
GRAMSCI, Antonio. Poder, Política e Partido. 2ª Ed. São Paulo: Expressão
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São Paulo: Companhia das letras, 1995.

KARNAL, Leandro. Todos contra todos: o ódio nosso de cada dia, Rio de
Janeiro: LeYa.

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de curso. Curso Ciências Humanas, Universidade Federal do Maranhão,
Pinheiro-MA, p. 01-21. 2016.

MILARÉ, Gabriel. O conceito de “Homem Cordial” na sociologia brasileira. QG


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PAULO NICCOLI, RAMIREZ. Dialética da Cordialidade: Afinidades eletivas


benjaminianas no pensamento político e social de Sérgio Buarque de Holanda.
Orientador: Profa. Dra. Ana Amélia da Silva. 2007. Dissertação (Mestrado,
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na América Colonial Portuguesa. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA,
28., 2015, Florianópolis. Anais [...]. Florianópolis: ANPUH, [2015?]. p. 218.
Disponível em:
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SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia.


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