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Matérias do Brasil Urgente que demonstram a criminalização da pobreza e a seletividade punitiva

da criminologia midiática no Brasil. As matérias foram selecionadas em um recorte de 5 anos, entre


2017 e 2021, nas redes sociais do programa disponibilizadas no YouTube (canais: Brasil Urgente e
Canal do Datena) e Facebook (Páginas: Brasil Urgente e Datena) a partir de palavras geradoras, que
direcionaram para episódios do programa capazes de comprovar a relação existente entre a
atuação do populismo penal midiático condensado na atuação do Brasil urgente e os traços
mencionados acima.
TRANSCRIÇÃO ANÁLISE INTERNA ANÁLISE EXTERNA
1° CASO
Para alguns imbecis que Datena comenta sobre reportagem acerca de um Título: Tragédia em
acham que eu sou contra assaltante morto: Itanhaém: Viúva de pedreiro
morto em assalto pede
Direitos Humanos, eu não Ao afirmar que é apenas a favor dos Direitos socorro
sou contra Direitos
Humanos. [...] Eu não Humanos vítimas, o apresentador deixa claro que Data que foi ao ar: 30 de
set. 2021.
sou contra Direitos sua concepção de Direitos Humanos é seletiva. Plataforma
Humanos, eu só sou a de
favor dos Direitos Ainda que a Declaração Universal dos Direitos conservação: YouTube
Data de acesso: 20 out.
Humanos vítimas. [...] Humanos – DUDH de 1948 garanta que todos os 2023.
Agora veja o canalha, Referência: DATENA se
veja o que o canalha seres humanos têm direito à vida e à segurança revolta: bandido só tem
falou quando perguntam benesses! | Brasil Urgente.
(art. 3º da DUDH), segundo sua colocação, os [S.l.], 2021. Vídeo: 07min28s.
se ele atirou. Veja aqui o Publicado pelo canal do
psicopata falando e se únicos inseridos nos limites deste artigo são Datena. 30 de set. 2021.
esse psicopata deveria aqueles tidos como livres. Disponível em:
estar na rua. (grifos https://youtu.be/6wd1FG3jk1
próprios) Y. Acesso em 20 out. 2023.
Em seguida, no decorrer da matéria, ele
desfere xingamentos ao criminoso envolvido,
quebrando qualquer princípio de um jornalístico
sério. Em sua fala chega até mesmo a diagnosticar
a figura como psicopata, sem nenhum amparo das
ciências psicológicas, no entanto, utilizando a
palavra apenas como um adjetivo ruim, sinônimo às
palavras que utilizou anteriormente para enfatizar o
quão desprezível era o homem apresentado na
matéria. Gomes (2014) aponta que o populismo
penal midiático atua no processo de incriminação e
julgamento pelo viés de uma justiça alternativa, que
acontece de forma paralela ao real processo legal.
O trecho da reportagem acima se enquadra
em um dos marcantes traços que caracteriza essa
justiça paralela, a humilhação midiática, que mesmo
não estando assegurada por lei e contrariando a
Ética jornalística, exerce um poder para além da
condenação do culpado por quesitos legais, o
submetendo ao jugo do deboche, da vexação, do
preconceito, humilhação e desprezo advindo do
espetáculo da justiça midiática. (Gomes, 2014).

2º CASO
Título: Coronavírus na
O bairro da Brasilândia, Em reportagem acerca do aumento de casos periferia: Bairros de São
na Zona Norte de São
de coronavírus em regiões periféricas de São Paulo, Paulo tem 156 morte pela
Paulo, é um dos mais COVID-19
populosos da capital. a jornalista, Sandra Redivo, explica que cerca de Data que foi ao ar:
21/05/2023
Com mais de 260 mil
30% das residências da região estavam em áreas Plataforma de
moradores. Os números conservação: Youtube
também são altos no que de favela e em consequência disso, as medidas Data de acesso: 09/12/23
se refere ao coronavírus.
preventivas contra a COVID-19 se tornavam mais Referência: CORONAVÍRUS
[...] Cerca de 30% das NA PERIFERIA. [S.l], 2020.
residências aqui na difíceis de serem executadas. Ao utilizar a palavra Vídeo: 02min30s. Publicado
região da Brasilândia pelo canal Brasil Urgente. 21
“por isso” que serve na frase como locução mai. 2020. Disponível em:
estão em áreas de
favelas, por isso, um adverbial de causa, a fala colabora com a https://youtu.be/h6lOvl6LYsc
grande desafio acaba ?si=sYdi-7EJAQHwAU6s.
interpretação da periferia como um espaço de Acesso em: 09 dez 2023
sendo o isolamento
social, o outro, é o uso pessoas sem as intenções necessárias para o
de máscaras. (grifos
próprios)
cumprimento das regras de combate à pandemia
vigente no ano de 2020. Esse sentido é exposto
sem, no entanto, oferecer a contextualização
necessária para que se pudesse compreender o
que leva a dificuldade de cumprimento das medidas
de combate à COVID-19 nessas áreas, deixando
para o público apenas essa resumida noção de
relação direta entre favela e não cumprimento das
medidas.

Na matéria, não é mencionado, por exemplo,


que as medidas de enfrentamento difundidas pelas
autoridades sanitárias se dirigiram às camadas mais
ricas da população, enquanto as populações das
favelas enfrentam o descaso dos governantes,
evidenciado pela adoção de uma linha política
equivocada, centrada no hospital, em detrimento do
acionamento da rede de atenção primária e dos
centros de referência da assistência social. (Fleury;
Menezes, 2020)

Jardim e Buckeridge (2020) demonstram em


sua pesquisa que variados fatores podem interferir
na velocidade de contágio de um vírus como o
SARS-cov-2. Os pesquisadores concluíram com
base em dados sociodemográficos que em São
Paulo, nas áreas com maiores aglomerados
subnormais e maior densidade demográfica, o
controle da doença se dificulta devido às limitações
materiais geradas pelas baixas condições que se
configuram naquele espaço.

Fatores como nível educacional, nível de


renda, tempo e número de viagens para
chegar ao trabalho, fornecimento de água,
densidade populacional, entre outros,
foram variáveis concorrentes que, em
diferentes níveis, determinaram de forma
conjunta os padrões de avanço da
pandemia na metrópole paulistana (Jardim;
Buckeridge, 2020, p. 159)
Quando um jornalista do populismo penal
midiático não menciona a contextualização acerca
de uma matéria que fala sobre uma condição
negativa das periferias, ele contribui para a
manutenção da criminalização da pobreza e da
negritude. Foucault (1996) a esse respeito, assinala
que quando desarticulados, os discursos se
mostram como práticas individuais, mas ainda
atravessadas e produtores de certos padrões que
fazem a manutenção dos interesses do poder
emergente.

3º CASO

Em Parelheiros, extremo sul O mesmo se sustenta em uma reportagem que Título: Coronavírus na
de São Paulo, o periferia: Mais mortes em
vai ao ar 3 dias após a anteriormente analisada. bairro sem isolamento
isolamento social está
longe de ser cumprido à Intitulada com a mesma definição (Coronavírus na Data que foi ao ar: 23 maio
risca. Por aqui as ruas 2020
periferia) a matéria da vez reporta a situação de mais um
estão cheias, a vida segue Plataforma de
normal. [...] Pontos de bairro de São Paulo, Parelheiros. Dessa vez, a repórter conservação: youtube
ônibus estão cheios, muita Data de acesso: 10/12/2023
Carla Ramil, indica em sua fala que a vida segue Referência: CORONAVÍRUS
gente à espera da
NA PERIFERIA. [S.l],
condução. [...] Quer dizer normalmente e que os moradores da região periférica
2020.Vídeo: 02min54s.
que o número de mortes Publicado pelo canal Brasil
seguem como de costume, sem salientar, no entanto,
cresce por conta do Urgente. 23 mai. 2020.
comportamento da que as pessoas que lotaram o ponto de ônibus em meio Disponível em:
população. (grifos próprios) https://youtu.be/gh9nMhi0N
ao cenário pandêmico, eram, sobretudo, trabalhadores
Wg?si=ffif76p3qjZi47f9.
que não tiveram a oportunidade de trabalhar Acesso em: 10 dez 2023.
remotamente, bem como não tinham transporte próprio
para se preservarem dos espaços públicos. A esse
respeito, Fleury e Menezes (2020, p. 268) afirmam:

Não foram tomadas medidas de políticas


públicas para mitigar o impacto econômico
devastador na economia das favelas –
onde grande parte da população atua na
informalidade ou em serviços domésticos –
nem para obrigar as concessionárias a
prestarem regulamente os serviços de
abastecimento de água e coleta de lixo,
tampouco foram tomadas providências
para prover acesso gratuito à internet,
condição necessária tanto para o trabalho
dos agentes comunitários de saúde quanto
para a preservação dos moradores em
condições de isolamento.
No final da reportagem, ao entrevistar uma
moradora que falava sobre o descumprimento das
regras pela população, ela fala em tom de
interrogação (buscando uma afirmação por parte da
moradora) que o aumento do número de mortes é
resultado do mau comportamento da população,
sem mais uma vez demonstrar interesse em tecer
uma teoria sobre a realidade de vida daquelas
pessoas, ou ainda relatar as ações internas das
comunidades na tentativa de equiparação dessa
situação. “Se fossem esperar apenas pela ajuda do
governo, muitos moradores de favelas e periferias
do Brasil teriam morrido de fome. Para evitar que
isso ocorresse, diversas associações de moradores,
coletivos e grupos já existentes e estruturados
nesses territórios começaram a se mobilizar para
conseguir doações e ajudar os mais necessitados.”
(Fleury; Menezes, 2020, p. 270)

Diferentemente do apresentado na
reportagem, não faltava apenas intenção por parte
da população, faltava, antes de tudo, condições
práticas para que a população pudesse cumprir as
regras de isolamento, higiene e controle.

Os enunciados configurados nos atos


locutórios das repórteres responsáveis por essas
matérias relacionadas ao desenvolvimento da
pandemia nas periferias da cidade São Paulo, se
aliam propositalmente ou não, a uma rede de
discurso que representa as zonas periféricas como
incivilizadas e coloca quaisquer problemas referente
a esses espaços como um fato iniciado e acabado
em si mesmo, uma característica intrínseca. O
perigo desse ato discursivo está no fato de não
deixar espaço (principalmente na mídia, visto seu
caráter acelerado e direto) para a genealogia dos
processos históricos constitutivos das zonas
periféricas e sua manutenção, fundamentais para
que se entenda as atuais dificuldades de acesso a
recursos básicos, bem como as ações praticadas
por seus moradores, que apesar de inapropriadas
segundo o julgo das opiniões elitizadas (como os
anunciados nas reportagens), são necessárias para
a sobrevivência nesses recortes espaciais.

4º CASO

Agora muito tempo que a Em seu comentário acerca dessa notícia, o Título: Baile Funk: 9
gente vem falando já desse mortos. Vítimas tinham
negócio de baile funk, é apresentador José Luiz Datena, sustenta uma entre 14 e 23 anos
uma tragédia anunciada relação de causa e consequência entre a temática Data que foi ao ar:
[...] A maioria desses bailes 02/12/2019
é patrocinada por crime Baile Funk e a palavra tragédia. Fato que implica a Plataforma de
organizado, é para escoar a conservação: Youtube
droga “pra” caramba. Tinha generalização que todo baile funk enquanto Data de acesso: 09/12/2023
cinco mil pessoas no lugar expressão é um caminho direto para Referência: ESSES BAILES
que não é adequado para não deveriam existir mais”
isso. [...] Nada contra o acontecimentos trágicos e negativos. A ênfase diz Datena. [S.l.], 2019.
ritmo do funk, mas não Vídeo: 06min40s. Publicado
num lugar como esse aí.
nesse sentido vem logo a seguir, quando aponta pelo canal Brasil Urgente, 02
(grifos próprios) que esses eventos são meios para escoação de dez. 2019. Disponível em:
https://youtu.be/_KZzMsHKX
drogas e patrocinados pelo crime organizado, o zs. Acesso em: 09 set. 2023
que, segundo seu posicionamento, não poderia dar
em outra coisa que não, tragédia.

Minutos depois justifica que não tem nada


contra o funk, mas não concorda com o lugar em
que ele está sendo ouvido. Fato contraditório, pois o
funk nasceu das periferias dos Estados Unidos e
quando importado para o Brasil, também se
consolidou nas áreas dominadas pela negritude e
pela pobreza, como o boom do funk carioca nas
favelas do Rio de Janeiro. E ainda acontece em céu
aberto atualmente, especialmente, porque desde o
princípio não reservaram espaço para sua
presença, visto repercutir onde o Estado não leva
manutenção, não havendo ainda hoje espaço
adequado para as manifestações culturais da
periferia. Mesmo quando foi apropriado pelas
classes mais altas, foi limitado aos imóveis
inacessíveis da classe média brasileira. Logo, o
ritmo só é bem-vindo desde que seja exportado de
seu lugar natural? Se integrado à cultura branca,
ouvido em salões de caros alugueis, o ritmo musical
passaria a ser mais bem aceito?

Quando relacionamos esse enunciado


isolado, característico desse tipo de jornalismo, aos
rituais discursivos que o produzem e por ele são
produzidos, encaramos as estratégias de
manutenção da criminalização dos espaços
marcados pela pobreza. Desde os primeiros
enfoques da mídia sobre o funk no Brasil, foi
conduzido um processo de estigmatização, como as
reportagens que relacionavam os arrastões nas
praias brasileiras dos anos 90 com o movimento
funk. “Palavras como ‘pânico’, ‘desesperança’,
‘terror’ foram utilizadas abundantemente em
manchetes de jornal” (Muniz, p.462, 2016).

Atualmente, é um gênero em destaque que


colabora com a identidade brasileira vendida para
os estrangeiros, sendo produzido em altas
demandas, recebendo patrocínio e gerando lucros
para grandes marcas. A título de Exemplo podemos
citar o sucesso de Anitta, reconhecida
internacionalmente e do selo musical KondZilla,
bem representado por seu canal com mais de 66
milhões de inscritos, no qual são lançados
videoclipes de Funk. Entretanto, apesar do grande
espaço atribuído ao funk no Brasil, a mídia e
especificamente o populismo penal midiático, ainda
contribui massivamente para a estigmatização e
criminalização do gênero, quando produzido e
celebrado dentro de seu lugar de origem. Relações
como as apresentadas na matéria analisada
demonstram o caráter negativo atribuído ao funk
das periferias. Segundo Muniz (2016, p. 462) “a
instrumentalidade parece estar negativamente
associada à possibilidade de reconhecimento de um
capital existencial associado ao funk [...] Quanto
mais conveniente o funk se apresenta, mais
reforça-se a noção de que ele precisa ser útil.”

Dessa forma, o funk contemplado nos bailes


funk, (aquele que atua como válvula de escape para
o divertimento das populações amontoadas nas
regiões com poucos recursos) é visto como um funk
mal, negativo, pois fora dos padrões de
produtividade que atendem ao poder. Em
contrapartida, em entrevistas realizadas em uma
pesquisa de doutorado acerca das comunidades
cariocas e suas relações políticas e culturais com o
Funk, Muniz (2016, p.453) afirma que “o funk era
constantemente citado como uma prática capaz de
gerar renda, afastar as crianças e adolescentes do
crime e das drogas e até ajudar no processo de
alfabetização.”

5º CASO

Se a polícia quiser evitar o Aqui Datena corresponde a uma


das Título: Agora: Baile Funk.
baile funk [...] vai começar características mais marcantes do populismo penal Polícia cerca Pancadão na
às sete da manhã, chega às Zona Norte
6. [...] Eu acho bom chegar midiático: suspeitar da qualidade do trabalho da Data que foi ao ar:
antes e “num” deixar armar
polícia e dar dicas baseadas em sua opinião 25/12/2019
todo aquele circo que faz Plataforma de
parte do baile funk. [...] Eu pessoal para o melhoramento da segurança conservação: Facebook
já dei uma dica aqui, Data de acesso: 05/12/2023
chega antes do baile e nacional. Mesmo sem o amparo das ciências Referência: BRASIL
impede que a estrutura seja necessárias para isso, ele sugere soluções rápidas URGENTE. Polícia faz
montada, não sei, é uma operação em baile
coisa tão simples. (grifos da maneira mais direta, coloquial e sucinta possível, funk. [S.l.], 25 dez.
próprios) 2019. Facebook: Brasil
pois nesse jornalismo não impera a impessoalidade, Urgente. Disponível
em: https://fb.watch/oW650r
Q3C-/. Acesso em: 5 dez.
2023.
jargões jurídicos, explicações ou elucubrações
(Gomes, 2013).
Segundo Zaffaroni (2013, p. 203), nesse tipo
de jornalismo, “a causalidade mágica estimula as
reformas legais mais absurdas, porque a imagem
transformada em lei também é uma questão
mágica”. Nesse sentido, as soluções imediatas e
rasas são vendidas pelo âncora da criminologia
midiática e consumida pelo telespectador como
soluções plausíveis para a sensação de
insegurança fornecida pelo jornalismo aqui em foco.
“Os simplismos mais grosseiros e as hipóteses mais
estapafúrdias se retroalimentam entre a televisão, a
mesa do bar e as decisões políticas.” (Zaffaroni,
2013, p. 218)
Nessa perspectiva, o jornalista reforça a ideia
de que precisa haver mais polícia e mais punição
para os crimes, mesmo que o Brasil já seja um dos
países com a maior comunidade carcerária do
mundo. “Ocorre que tudo isso não passa, na
maioria dos casos, de respostas fáceis (e falsas)
para a solução de problemas extremamente
complexos” (Gomes, 2014, p. 29).
A ideia de viabilizar um maior controle sobre
áreas (suspeitos e restante da população) que já
são altamente inspecionadas pela força policial,
como as zonas periféricas, corresponde ao que,
segundo Zaffaroni, obedece a uma estratégia do
poder vigente que busca enfatizar a necessidade de
proteção para assim justificar o controle sobre todos
(suspeitos, culpados e livres). “Ao criar a
necessidade de proteger-nos deles, justifica todos
os controles estatais, primitivos e sofisticados, para
prover segurança” (Zaffaroni, 2013, p. 206)

6º CASO
Em uma reportagem sobre caso de comerciante Título: Comerciante leva 6
Vai atirar na polícia, leva um
tiro, oh polícia matou o que sofreu seis tiros, Datena busca enfatizar uma tiros: Bandido atiraram para
cara, mas ele pode matar, matar
comparação entre a comoção que se gera quando um
o motorista. (grifos Data que foi ao ar:
próprios) bandido é morto pela polícia em relação à quando um 02/09/2019
Plataforma de
comerciante, pai, (como foi apresentada a vítima em conservação: YouTube
questão) é assassinado por criminosos. Data de acesso: 06/12/2023

Sua fala indica uma comparação entre os valores DATENA COMENTA


CIRCUITO DE UM ROUBO
das vidas dos indivíduos envolvidos na matéria, a vítima, EM MAUÁ/SP. [S.l.], 2019.
Vídeo: 01min53s. Publicado
que sofreu os 6 tiros e o assaltante que os disparou. pelo canal Brasil Urgente. 02
Para enfatizar o ponto, ainda cria uma suposição set. 2019. Disponível em:
https://youtu.be/338wmV9Zz
que sustenta que se a polícia estivesse em ação na co?si=VjTwcbqrk1A4MLDe.
Acesso em: 06 dez. 2023.
cena, mesmo que não haja parâmetro legal que sustente
a pena de morte no Brasil, ela detinha o direito, em
último caso, de atirar no assaltante, já que seria em prol
de uma vida que, segundo ele, vale a pena, a do
comerciante e pai.
A fala em questão aponta novamente um desejo
de seletividade na aplicação de direitos e punições,
corroborando com a descrição de Zaffaroni (2013)
acerca de uma realidade criada pela criminologia
midiática que sustenta a separação entre um mundo de
cidadãos de bem ameaçados por uma massa de
criminosos igualmente malignos e que, portanto,
precisam ser severamente punidos (legal ou
ilegalmente). “As garantias penais e processuais são
para nós, mas não para eles, pois eles não respeitam os
direitos de ninguém” (Zaffaroni, 2013, p. 203).

7º CASO
Em reportagem sobre corpo de jovem Título: Morreu depois do
GC: Morreu depois de Baile
Funk encontrado, o GC da reportagem enfatiza na tela, não a Baile Funk: Vítima estava
sem roupas e com o rosto
causa da morte, o local onde o corpo foi encontrado, ou queimado
os possíveis suspeitos, mas que ela havia morrido após Data que foi ao ar:
28/11/2017
ir a um baile funk. Fato que implica uma relação indireta Plataforma de
conservação: Facebook
de causa e consequência, indicando que morreu porque Data de acesso: 06/12/2023
foi ao baile funk, ou que ir a baile funk pode causar Referência:
morte. BRASIL
URGENTE. Camily. [S.l.], 28
A tela com a foto da jovem e o GC resumindo o nov. 2017. Facebook: Brasil
caso é o que primeiro é apreendido pelo olhar do Urgente. Disponível
em: https://fb.watch/oW4XJP
telespectador, antes mesmo que esse possa ouvir a fala 0Wa7/. Acesso em: 6 dez.
2023.
da jornalista responsável pela matéria, ele lê o título em
destaque e internaliza que o corpo encontrado é
consequência da ida a bailes funk. Esse processo é
resultado da aceleração de nosso tempo somada às
estratégias da criminologia midiática para satisfazer a
necessidade de informações rápidas, resumidas.
Segundo Hartog (2013, p. 148) Se o tempo é, há muito,
uma mercadoria, o consumo atual valoriza o efêmero. A
mídia, cujo extraordinário desenvolvimento acompanhou
esse movimento que é, em sentido próprio, sua razão de
ser, faz a mesma coisa.”
Zaffaroni (2013) sustenta essa máxima do
imediatismo contemporâneo quando situa essa
característica na criminologia midiática, afirmando que “o
gancho da comunicação por imagens está no fato de ela
impactar a esfera emocional. Por isso não se pode
estranhar que os serviços de notícias pareçam antes
síntese de catástrofes, que impressionam, mas não dão
lugar à reflexão” (Zaffaroni, 2013, p. 196)
Essa absorção que intensifica a relação entre
Baile Funk e criminalidade faz a manutenção do
preconceito e estigmatização das áreas periféricas e
suas expressões. Segundo Zaffaroni (2013), ao
concordar com a abordagem de René Girard acerca da
temática, a criminologia midiática cria uma construção da
realidade baseada em preconceitos e crenças, que
utiliza uma etiologia criminal simplista para canalizar a
vingança contra determinados grupos humanos,
convertendo-os em bodes expiatórios.
Segundo Zaffaroni (2013, p.194):
Por isso, a criminologia midiática sempre
existiu e sempre apela a uma criação da
realidade através de informação,
subinformação e desinformação em
convergência com preconceitos e crenças,
baseada em uma etiologia criminal
simplista, assentada na causalidade
mágica.

8º CASO

Um bando de drogados na Datena inicia o comentário acerca da reportagem Título:


maioria desses batidões aí,
fazendo acusações aos frequentadores de Baile Funk Data que foi ao ar:
um bando de desocupado. 26/01/2017
Cara fazendo sexo no meio que traçam uma relação direta entre essas festas e Plataforma de
da rua, trancando a porta da conservação: Facebook
categorias de práticas ilegais (uso de drogas, sexo em
casa dos outros, para não Data de acesso: 06/12/2023
poder entrar nem sair. [...] público, porte ilegal de armas e tiroteios contra as
caras armados que metem
residências dos moradores). Ao tecer essa relação Referência:
bala para dentro da casa
DATENA. Datena comenta
dos outros. [...] (casualmente levantada nos discursos que criminalizam confusão em baile funk |
E de repente parar a os bailes funk e que estereotipam as formas de Brasil Urgente. [S.i.], 26 jan.
viatura do corpo dos 2017. Facebook: Datena.
expressão periféricas), o âncora do Brasil Urgente revela Disponível
Bombeiros para atender
em: https://fb.watch/oW3CJG
uma bêbada, drogada que seu posicionamento, característica marcante do
tjTc/. Acesso em: 6 dez.
estava no meio da festa 2023.
jornalismo da criminologia midiática que não se limita a
aí. Isso é o fim do mundo,
eu jogava ela dentro do narração e divulgação dos casos, mas atua como
Rio Tietê. [...] E o Haddad
advogado, juiz, sobretudo, empresário moral do
achava que isso aí era
manifestação cultural, isso punitivismo (Gomes, 2014)
é “um” manifestação
criminal, que tem que ser O clímax de sua opinião aparece minutos depois,
combatida. (grifos próprios)
quando ele abomina em sua fala o fato de participantes
do Baile terem parado forçadamente a viatura dos
bombeiros no intuito de exigir socorro para uma mulher,
participante do evento, que estava passando mal no
local. Em sua fala, ele se refere à mulher como uma
bêbada, drogada, e que, portanto, não merecia ser
atendida em detrimento a vítima inicial para a qual os
bombeiros estavam se dirigindo antes de serem
parados. Para enfatizar seu desprezo por essa mulher,
ele inclui que se fosse um dos bombeiros em ação no
momento a jogaria no Rio Tietê.
A frase no pretérito perfeito “eu jogava elo dentro
do Rio Tietê”, revela alguns pontos passíveis de análise.
Primeiramente, implica mais uma vez o caráter
extremamente pessoal de sua fala, onde ele sugere até
como procederia na situação, ato que contraria qualquer
ética jornalista e traz a ótica das soluções mágicas e
imediatistas.
Em segunda instância, é perceptível mais um
episódio do juízo de valor feito pelo apresentador acerca
da relevância das vidas dos envolvidos. A inovação, no
entanto, está no fato de que diferentemente das outras
matérias supracitadas, ele não estava travando uma
comparação entre a vida de uma vítima e um criminoso,
mas de duas pessoas necessitando dos socorros do
corpo de bombeiros. A isso, acrescentasse que ele não
somente expôs que daria preferência à vida da vítima
inicial, para a qual os bombeiros tinham sido solicitados,
mas que além de não prestar socorro a frequentadora de
baile funk, facilitaria sua morte, a jogando no Rio Tietê,
pois bêbada e drogada.
O comentário da matéria em destaque pode ser
interpretado à luz do panorama travado por Foucault
acerca do conceito de biopolítica e sua atuação através
do Estado. Seguindo a argumentação de Nascimento e
Colombo (2020, p. 481- 482):
De acordo com Foucault, o biopoder pode
ser compreendido como o conjunto de
mecanismos por intermédio dos quais
aquilo que, na espécie humana, constitui os
seus traços biológicos fundamentais, vai
poder entrar no interior da política. [...]
Foucault assinala, a partir desse conceito,
a inauguração de uma chave de
interpretação distinta para compreender as
relações de sujeição na modernidade que
foram aglutinadas a partir do assente entre
a acumulação de novos conhecimentos, o
desenvolvimento de novas tecnologias e a
origem do crescimento da produtividade
econômica.
Diante desses pressupostos, a teoria foucaultiana
expõe que mediante um longo processo que se inicia a
partir da transição para a modernidade e passa pela
consolidação do capitalismo, representado atualmente
na figura do neoliberalismo, o Estado atua como uma
ferramenta de manutenção da produtividade dos corpos
biológicos coletivizados por meio de normas, prestando
serviços que visam prevenir e oferecer paliativos para
situações que ameace esses corpos e
consequentemente sua produtividade.
Entretanto, atrelado a esse processo conhecido
como “fazer viver”, também atua o "deixar morrer” que
age a partir da negligência dos corpos que não são
relevantes à manutenção da produtividade que mantém
o sistema. “Pode-se dizer que, para determinados
corpos e coletividades, o abandono faz-se parte
planejada também de uma estratégia de aniquilamento e
de seleção entre os que receberão ou não a intervenção
do Estado” (Nascimento; Colombo, 2020, p.483).
Guardando suas devidas proporções, o fato é que
a biopolítica instaurada na modernidade se alastrou para
os dias atuais se adaptando às suas demandas, mas
mostrando ainda algum tipo de seleção entre os
indivíduos caros a ela.
Foucault nos dirá que as sociedades
liberais e neoliberais continuam sendo
imbuídas da lógica da biopolítica, mas
destacará que no lugar da dualidade
normal-patológico, estas sociedades
apoiam-se agora sobre uma espécie de
economia dos riscos, apoiada sobre o
medo como forma de gestão das relações
sociais e políticas. Segundo o autor, é
como se as sociedades liberais e
neoliberais estivessem menos interessadas
em promover o melhoramento genético da
sua população e mais empenhadas em
delegar essa missão aos próprios
indivíduos, levando-os que persigam aquilo
que lhes garantirá mais vida (Nascimento e
Colombo 2020, p. 486).
Em um caso como o da reportagem aqui presente
vemos o desejo do apresentador em fazer uma seleção
entre as vítimas a serem socorridas, tal qual seria feito
naturalmente se a viatura dos bombeiros não houvesse
sido parada forçadamente pelos frequentadores do Baile
Funk. Tal reação reflete o tratado por Foucault, ilustrando
a naturalidade (evidente na fala do apresentador que
não é um agente isolado, mas parte de uma prática
discursiva que molda e é moldada pelo biopoder) com
que se internaliza a negligência em relação aos corpos
não caros ao sistema e como esses podem ser
facilmente privados da manutenção da vida, mesmo que
a ação de manutenção seja trabalho de uma política do
fazer viver, como os bombeiros.
Agamben (2010) confirma as ações paradoxais
da Biopolítica quando afirma que as práticas do Estado
de Exceção, na qual os cidadãos são privados de
qualquer direito individual básico, também está diluída
nas formas de atuação da democracia moderna. Dessa
forma, os mecanismos de privação de direitos vão atuar
a partir de um princípio de seletividade que atua
ativamente para potencializar os corpos úteis, enquanto
age com passividade perante outros.
Os corpos periféricos, em sua maioria pretos e
pobres, são primeiramente tornados em ameaça para os
corpos úteis, para depois serem negligenciados ou
ativamente exterminados (como no caso de diversas
operações policiais nas áreas de favelas do Brasil) sob a
justificativa de que tudo ocorreu em prol da segurança e
saúde do restante da população, que é responsabilidade
do Estado enquanto assegurador da vida.
A este respeito cabe fazer a relação entre o dito e os
apontamentos de Zaffaroni, Segundo o autor em A
questão Criminal:
A violência difusa e a angústia social se retroalimentam
até que a última se torne insuportável, mas enquanto
se conseguir imputar a um bode expiatório a fonte da
insegurança existencial (instala-se o mundo paranoide
com um inimigo identificado), o nível de angústia cai
porque esta se converte em temor (medo) da ameaça
da emergência desencadeada pelo inimigo. (Zaffaroni,
2013, p. 194)

Mbembe (2018) ainda acrescenta a essa questão


que os corpos considerados matáveis, na atualidade,
vem de uma temporalidade ainda mais distante da
traçada por Foucault quando se refere a mudança de
paradigma que ocorre do poder soberano para o
disciplinar. Para o filósofo camaronês, o processo que
regula a morte de pessoas pretas e a busca pelo fim de
suas práticas começa já na escravidão dentro e fora da
colonização, aprofundando a relação apontada por
Foucault entre o racismo e biopoder.
No final da reportagem, ele ainda contraria o
antigo prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, quando
se referiu aos bailes como manifestação cultural.
Segundo ele, a pauta deveria ser descrita como
manifestação criminosa. A fala que infere mais uma vez
a relação entre manifestação periférica a criminalidade a
partir da ideia implicitamente sustentada de que só festa
nesses lugares e para esses moradores são criminais,
salienta a tese da violência nichada e detida a
criminalidade a qual se refere Chauí (2019) quando trata
do mito da não violência.

9º CASO

GC: Baile na rua inferniza Nessa reportagem acerca do incômodo que os Título: Funk ao lado de
moradores (grifos próprios) hospital: Baile na rua
bailes funk causam na cidade de SP, o GC da matéria
inferniza moradores
enfatiza o inoportuno em seu subtítulo a partir do uso do Data que foi ao ar:
verbo transitivo direto “inferniza”, que enseja definir a 08/12/2019
Plataforma de
ação penalizadora que os bailes funk exercem sobre os conservação: Facebook
Data de acesso:
moradores.
05//12/2023
A palavra inferniza carrega em sua etimologia um Referência: BRASIL
URGENTE. Funk ao lado de
teor religioso, visto que significa penalizar algo ou hospital: baile na rua
alguém com o inferno, ou seja, ser, parecer, representar, 'inferniza'
moradores. [S.l.], 8 dez.
levar o inferno. Em um país como o Brasil, que apesar 2019. Facebook: Brasil
Urgente. Disponível
de ser constitucionalmente laico, abriga uma em: https://fb.watch/oW6zS9
religiosidade muito representativa (especialmente Ra7F/. Acesso em: 5 dez.
2023.
quando se fala do cristianismo e suas subdivisões), a
utilização de uma palavra como essa pode viabilizar uma
interpretação maniqueísta por parte do telespectador,
que frequentemente presencia pautas públicas (e laicas)
sendo sancionadas e vetadas com base em princípios
religiosos dos representantes das classes dominantes do
Brasil.

O Brasil importou seus princípios de laicidade a


partir do modelo Francês republicano sem adequar, no
entanto, esse padrão de secularização a suas
particularidades que compreende um universo de
presenças muito maior e diverso do que o francês.

Enquanto a França, por seu compromisso


com a laicidade, corresponderia à
realização mais próxima do modelo da
separação entre Estado e Igrejas, o Brasil
ficaria na posição de um aprendiz pouco
aplicado, uma vez que tendo abraçado o
mesmo modelo jamais deixará de ser um
país religioso [ênfase no original].
(Giumbelli, 2002, p.54)
É sabido que apesar dessa importação, o Brasil
nunca deixou de ser atravessado pela esfera da religião,
especificamente da cristã, por estar aliada aos
interesses dominantes. Esse atravessamento se
configura como um dos instrumentos utilizados para a
estigmatização daqueles outros que não se quer por
perto, seja por não se relacionar com a identidade
cultivada, como sustenta Chauí (2019) (2019), ou por
não ser considerado corpo produtivo, como sustenta
Foucault.

A secularização da cultura é um processo


bem menos linear do que a laicização do
Estado, já que, para a permanência do
último fenômeno, há a necessidade de
mudanças legais e institucionais. Por outro
lado, para que a secularização da cultura
aconteça, é preciso que símbolos
anteriormente incorporados numa espécie
de “socialização primária” da nação deixem
de ter sentido (Valente, 2018, p. 113)
Baseada em sua visão bipartida que divide o
mundo, o homem e o tempo entre bem e mal, os
posicionamentos que fazem uso dos princípios religiosos
(muitas vezes disfarçados de laicos) atuam a partir de
enunciados cotidianos e naturalizados, que demarcando
certos grupos, credos e manifestações como maus, pois
em desarmonia com os fundamentos de seu livro
sagrado. Esse é o caso das ressonâncias da cultura
preta, que desde a colonização foi demonizada em sua
essência. Ainda que muito dessas práticas tenham sido
incorporadas/apropriadas pela identidade branca, o que
se manteve mais próximo do original e que resistiu a
aculturação está sob o julgo de uma identidade nacional
representada pela doutrina cristã.

Isso é demonstrado pela descrição da matéria


aqui em foco. A da palavra “inferniza” na matéria
demonstra o julgamento maniqueísta que se faz dos
bailes, majoritariamente mencionados como o lado mau
do binário, já que não cristão.

Acrescentando os apontamentos de Zaffaroni a


essas redes discursivas que reproduzem
constantemente algum tipo de culpabilização para
indivíduos selecionados, é válido salientar que nas
tramas da criminologia midiática, “para instalar o mundo
paranoide também é indispensável um bode expiatório
adequado para imputar-lhe os crimes que se projetam
como fonte de insegurança existencial.” (Zaffaroni, 2013,
p. 302)

Dessa maneira, esses grupos foram selecionados


a partir de certos momentos históricos, de forma que os
grupos periféricos atuais são resultados de diversos
elementos, entre eles, a não inserção dos negros nas
sociedades de classe no pós-escravidão e as estratégias
de urbanização que não cederam espaço para os grupos
marginalizados do Brasil.

A estigmatização que se tem atualmente, é a


continuidade de um processo de segregação entre
corpos que se iniciou na própria construção do Brasil
enquanto nação. O que chega ao presente é um
conjunto de presenças tributárias de um processo
traumático que não cessou com a transição histórica.
Afinal, como afirma Júnior (2021, p.14) “se as
compreensões de ‘passado’, ‘presente’ e ‘futuro’
dependem das gerações vivas do momento, tais
temporalidades são, por definição, cambiantes. Logo,
tais conceitos de ‘passado’, ‘presente’ e ‘futuro’
expressam a relação que se estabelece entre uma série
de mudanças e as experiências que uma pessoa tem
dela.”

A história mostra a enorme


heterogeneidade dos inimigos em
diferentes mundos paranoides: bruxas,
hereges, judeus, viciados em drogas,
traficantes de drogas, comunistas,
subversivos, sifilíticos, deficientes físicos,
prostitutas, africanos, índios, imigrantes,
anarquistas, gays, minorias sexuais,
terroristas, alcoólatras, pedófilos,
anarquistas, socialistas, delinquentes
comuns, ciganos, burgueses, ateus,
religiosos etc. (Zaffaroni, 2013, p.302).
Foucault (1996) já alertava para o perigo do
discurso e sua proliferação, pois segundo ele, quem
o domina, domina todos os mecanismos de poder,
incluindo o controle sobre todos os corpos.
Suponho que em toda sociedade a
produção do discurso é ao mesmo tempo,
controlada, selecionada, organizada e
redistribuída por certo número de
procedimentos que têm por função conjurar
seus poderes e perigos, dominar seu
acontecimento aleatório, esquivar sua
pesada e temível materialidade. (Foucault,
1996, p.9)

10º CASO

Em poucos instantes a Em reportagem sobre o incômodo que os Título: Funk ao lado de


rua do Jardim Elisa hospital: Baile na rua
bailes funk ocasionam na Zona Norte de São Paulo, inferniza moradores
Maria, região da
Brasilândia, na zona a repórter, Déborah Lopes, evidencia que as letras Data que foi ao ar:
07/07/201
norte de São Paulo, são
do Funk tocado nesse Baile tem um conteúdo Plataforma de
tomadas por uma conservação: YouTube
multidão de jovens e altamente pornográfico. Data de acesso:
adolescentes. Carros de 06//12/2023
som espalhados em Referência: SP:
vários pontos. Nos altos PANCADÃO DA BADERNA
falantes, no último Desde sua repercussão inicial o movimento NA ZONA NORTE DA
volume, letras de funks CAPITAL. [S.l], 2018. Vídeo:
Funk sempre foi alvo de muitas críticas no que diz 03min06s. Publicado pelo
com conteúdo canal Brasil Urgente. 07 jul.
altamente pornográfico. respeito a suas letras, sendo muitas vezes acusado 2018. Disponível em:
bebidas alcoólicas e
de apologia ao crime ou ao sexo, ou de incitar a https://youtu.be/HCio09sBTQ
drogas à vontade mesmo 8?si=EaMtYm_ikYojD32k.
para quem é menor de pedofilia. O fato é que realmente existem músicas Acesso em: 06 de dez. 2023
idade. (grifos próprios)
específicas do gênero Funk que correspondem a
apologia, assim como existem músicas de variados
gêneros que também estão passíveis de serem
acusadas de apologia.

O ponto a ser enfatizado está no fato de que


a apologia não define o movimento Funk todo,
assim como não define os demais gêneros que
tiveram composições sob sua marca acusadas de
apologia. O que fica claro é que há uma menor
passibilidades para as letras do Funk, gerando uma
perseguição por parte daqueles que usualmente já
criminalizam as práticas culturais periféricas.

Segundo Muniz (2016, p.458) O fato de


apenas as letras de Funk serem problematizadas e
sentenciadas como apologia ao sexo, pornografia,
ou pedofilia “acontece apenas porque o funk pode
ser ignorado como arte, tendo suas letras
consideradas como confissões em forma de
melodia e não como uma narrativa fictícia.”

Não se vê cotidianamente, por exemplo,


reportagem sobre conteúdos explícitos de músicas
sertanejas ou do pop brasileiro. No entanto, o funk,
já problematizado desde sua origem, ganha mais
essa faceta, que se une às demais estigmatização
sofridas pelas populações das regiões periféricas.

O Funk, por vir de uma origem periférica, tem


que constantemente passar por problematizações
de suas letras, devido à permanência de uma
segregação histórica. Diferentemente dos outros
gêneros, suas letras são entendidas como provas
para a incriminação de seus artistas. “Neste
contexto, dificilmente podemos tomar como verdade
absoluta que jovens moradores de favela precisem
mais da cultura para não se tornarem criminosos do
que jovens em outros locais da cidade” (Muniz,
2016, p. 458).

Além disso, se aparecem mais referências à


violência ou sexualidade nas letras de funk, é
sobretudo, porque elas representam muito do vivido
nas comunidades, lugares marcados pela ausência
não só da ordem vigente do Estado, mas antes
disso, de todo um aparato de sobrevivência que
nunca foi enviado. Mediante ao fato de não terem
sido integrados ao projeto nacional, essas áreas se
fortaleceram de maneira paralela em prol de sua
subsistência.

Ainda de acordo com Muniz (2016, p. 458):


Considerando no Brasil as desigualdades
relacionadas a área geográfica, cor da
pele, origem social, acesso e conhecimento
do sistema judiciário, não é surpreendente
que certos indivíduos sejam mais
facilmente criminalizados por determinadas
condutas.
Entretanto, apesar dessas controvérsias
acerca das manifestações culturais periféricas
serem explicadas a partir da contextualização
histórica, os discursos veiculados massivamente no
dia a dia são os da criminologia midiática. Um dos
processos externos de articulação do discurso é o
de rejeição, que seleciona os que terão o direito
privilegiado de falar, sendo, portanto, considerados
lógicos. A criminologia midiática detém no Brasil
uma fonte de amplo acesso, se configurando assim
como umas das maiores ferramentas de
proliferação dos discursos sobre a criminologia do
país. Logo, mesmo à luz da explicação histórica, a
opinião dos âncoras do populismo penal midiático é
o que vai ser mais facilmente internalizado e
considerado verdadeiro.

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Editora UFMG, 2010.

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