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Catástrofe e luto, trauma e arte:

imagens da pandemia
GUSTAVO HENRIQUE DIONISIO*

Resumo: Em perspectiva freudiana, o ensaio pretende discutir a impossibilidade


de “concluir” normalmente o luto durante a pandemia do Coronavírus neste ano
de 2020, uma vez que os rituais funerários foram bastante limitados em razão
das possíveis contaminações deles decorrentes. A discussão fora despertada por
imagens de “covas abertas às pressas” divulgadas sobretudo pelas mídias
digitais, imagens que neste sentido produziriam efeitos traumáticos a partir desta
nossa situação local, certamente catastrófica em termos políticos e subjetivos.
Por fim, acreditamos na possibilidade de que a arte e os processos criativos
auxiliariam nos modos de lidar com a problemática.
Palavras-chave: Trauma; Catástrofe; Luto; Covid-19.
Catastrophe and mourning, trauma and art: pandemic images
Abstract: From a Freudian perspective, the essay intends to discuss the
impossibility of “normally concluding” the mourning during the Coronavirus
pandemic in this year of 2020, since the funerary rituals were quite limited due
to the possible contamination resulting from them. The discussion had been
sparked by images of “pits hurriedly opened” disseminated mainly by digital
media, images that in this sense would produce traumatic effects from our local
situation, certainly catastrophic in political and subjective terms. Finally, we
believe in the possibility that art and creative processes would assist in the ways
of dealing with the problem.
Key words: Trauma; Catastrophe; Mourning; Covid-19.

*
GUSTAVO HENRIQUE DIONISIO é Mestre e Doutor pelo IP-USP, é docente nos cursos
de graduação e pós-graduação em Psicologia da FCL-UNESP Assis. É autor de O antídoto do mal: crítica
de arte e loucura na modernidade brasileira (Ed. Fiocruz), Pede-se abrir os olhos. Psicanálise e reflexão
estética hoje (Ed. Annablume/Fapesp), e organizador de Políticas públicas e clínica crítica (Cultura
Acadêmica UNESP).

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Em live recente destinada aos membros salto: cresceu quase 40% em
do GT "Psicanálise, subjetividade e relação ao mesmo mês de 2019,
cultura contemporânea", pertencente à segundo dados do Ministério da
ANPEPP, o psicanalista Joel Birman Mulher, da Família e dos Direitos
tentou expor uma espécie de cartografia Humanos” (VIOLÊNCIA...,
do sofrimento psíquico que estaria 2020). É notório também o
assolando boa parte dos consultórios aumento no número de divórcios
“psi” desde o início da pandemia de durante esse ano (MELO, 2020);
SARS-COV-2 neste ano 2020; são, com 5) parece também haver, neste
efeito, indicadores que muito nos momento, relatos cada vez mais
interessam na medida em que incitam à recorrentes de depressão (e de
construção de estratégias de intervenção
uma consequente
(psicanalítica, sobretudo) numa melancolização, em diversos
realidade que talvez não represente casos), com destaque aos idosos
apenas a situação brasileira. Seriam oito, que, por comporem o grupo de
segundo ele, as principais características
risco, viram sua mobilidade
a serem destacadas, a propósito tornar-se extremamente limitada,
motorizadas pela episódica “reativação além de pouco receberem visitas
do desamparo originário” do momento: de parentes e amigos. É preciso
1) dada a iminência de uma levar em conta o componente do
angústia real, reações genuínas desemprego que também cresceu
de pânico tomaram conta de boa assustadoramente, e que talvez
parte das pessoas, fazendo com também influencie nestes
que muitos apelassem para uma números. Como reporta esta
escuta a fim de lidar com a super reportagem do G1, já são mais de 14
intensidade desse afeto; milhões de brasileiros em situação
de desemprego neste ano de 2020
2) certos traços de hipocondria se (SILVEIRA, 2020);
tornaram evidentes em virtude da
condição de invisibilidade do 6) ainda de acordo com Birman,
vírus, estimulando assim uma outra decorrência imediata do
conduta de hipervigilância isolamento fora um aumento na
quanto aos cuidados em saúde, compulsividade para com os
levando inclusive a uma meios digitais, tais como o
consumo desenfreado de
3) ritualização obsessiva cada telefones celulares, videogames,
vez maior acerca dos televisão e consumo das próprias
comportamentos de limpeza; lives;
4) Birman também refere um 7) acompanhado disso surge
incremento de violência conjugal ainda o uso crescente de álcool e
e parental neste contexto: outras drogas e, quando não, da
“quando o isolamento social compulsão por comida, que se
imposto pela pandemia já durava torna igualmente relevante;
mais de um mês”, lê-se em
reportagem feita pela Revista Isto 8) por fim, uma das queixas mais
É, “a quantidade de denúncias de sensíveis do momento seria a
violência contra a mulher “impossibilidade do luto” que se
recebidas no canal 180 deu um impôs, uma vez que os rituais
funerários estão proibidos ou

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protocolarmente limitados em partilhado e a divisão de partes
virtude de possível exclusivas (p. 7).
contaminação. Em diálogo como Ora, no ambiente da pandemia de
o psicanalista, pretendo Coronavírus surgida neste fatídico 2020,
justamente apresentar uma o aparecimento recorrente destas
reflexão sobre este último imagens de enterros, assustadoramente
aspecto, tendo em vista que ele realizados em massa e às pressas,
traz à tona uma questão que pesa começou a ficar bastante evidente com a
fortemente em nossa maior ou situação descontrolada na Itália –
menor capacidade de primeira grande onda de contaminação
simbolização de uma dada vista no Ocidente –, situação onde
realidade. agentes funerários acabavam sendo
E, paralelamente a isso, em um texto que vistos como “amigos” ou substitutos da
hoje completa já seus 20 anos de idade, família no momento do último adeus. Lá,
o filósofo Jacques Rancière parecia uma vez diagnosticadas com o vírus, as
prever a proliferação pulverizada de pessoas passaram a ser enterradas com as
imagens que, em nossa cultura atual, roupas que os familiares,
viria a se tornar uma commoditie das impossibilitados de vê-las
mais importantes: se por um lado A presencialmente e, portanto, sem opção,
partilha do sensível (2000/2005) nos apenas remetiam aos cuidados daqueles
lembra em que medida o – o que se transformaria na última
compartilhamento se refere à co- lembrança na mente dos vivos.
existência da junção de partes e sua Em reportagem feita pela BBC logo no
separação intrínseca no interior de um início da contaminação italiana podemos
todo, por outro carrega a premissa de que encontrar depoimentos marcantes:
essa partilha de atos estéticos opera “Enviamos aos entes queridos uma foto
justamente a partir de certas do caixão que será usado, depois
configurações de experiência que pegamos o cadáver no hospital e o
“ensejam novos modos de sentir e enterramos ou cremamos. Eles não têm
induzem novas formas da subjetividade escolha a não ser confiar em nós”.
política” (Rancière, 2000/2005, p. 11), Cerato, um agente funerário que exerce a
ou seja: as imagens acabam sendo profissão há 30 anos, foi capaz de
inelutavelmente subjetivantes na exata perceber, no calor da hora, o quanto
medida em que condicionam esses pequenos gestos acabam sendo
determinadas políticas, tanto quanto importantes para os enlutados; ele diz:
determinam certos modos do ver e do "Acariciar sua bochecha pela última vez,
viver em nossa sociedade. Neste sentido, segurar sua mão e vê-lo parecer digno.
acrescentaria Rancière, devemos Não ser capaz de fazer isso é muito
entender que partilha traumático". Os familiares ainda
(...) significa duas coisas: a tentavam enviar bilhetes ou outros
participação em um conjunto objetos de valor sentimental, tais como
comum e, inversamente, a desenhos e poemas, na esperança de que
separação, a distribuição em fossem lacrados junto aos entes
quinhões. Uma partilha do sensível queridos, embora nada pudesse ser
é, portanto, um modo como se colocado junto aos caixões: “Uma ou
determina no sensível a relação duas pessoas podem estar lá durante o
entre um conjunto comum
enterro, mas isso é tudo”. Cerato conclui

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com uma imagem avassaladora: algumas palavras; resta apenas o
“Ninguém se sente capaz de dizer silêncio” (BETTIZA, 2020).

Figura 1: Imagem aérea de cemitério em Manaus. Fonte: O Globo

Figura 2: imagem aérea do cemitério de Vila Formosa-SP. Fonte: Revista Veja

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Nesta perspectiva, outra cena digna de enterra seus mortos de forma ritualizada;
destaque refere-se a um Memorial que a contudo, muito embora já estejamos
ONG Rio da Paz promoveu na praia de bastante acostumados a respeitar essa
Copacabana e que fora vandalizado por tradição, não me parece absurdo dizer
um apoiador do atual presidente do país. que a visada político-ideológica que o
Sequer é preciso ter grande empatia para fenômeno do enterro em massa ganhou,
perceber o quanto esse tipo de violência neste momento e particularmente no
representa uma das maiores crueldades nosso país, seja talvez sem precedentes
humanas: a impossibilidade, ou em casos (BOLSONARISTAS..., 2020). A meu
mais infames, a proibição de enterrar os ver, o nível de alienação política que leva
mortos com sua justa dignidade. Quanto um indivíduo a chutar um objeto que
a isso, trata-se de um dado antropológico simboliza a perda de brasileiros
essencial, etológico até: somos, há mais decorrente da negligência do estado não
de 130 mil anos, a única espécie que serve nem para efeitos casuísticos.

Figura 3: Memorial aos mortos pela Covid-19, Ong Rio de Paz

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Figura 4: Memorial aos mortos pela Covid-19, Ong Rio de Paz

Figura 5: homem vandalizando Memorial realizado pela Ong Rio da Paz

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Sobre o luto1 e suas impossibilidades prolongada. Uma a uma, as
lembranças e expectativas pelas
Como indica Freud (1917/2011), não se quais a libido se ligava ao objeto são
deve negligenciar o fato de que o luto é focalizadas e superinvestidas e nelas
um mistério em si mesmo, haja vista que se realiza o desligamento da libido.
ele permite verificar uma incapacidade Por que essa operação de
específica com a qual padecemos a cada compromisso que consiste em
perda: ainda que no luto a libido se veja executar uma por uma a ordem da
“obrigada” a se libertar do objeto (uma realidade é tão extraordinariamente
vez perdido), isso não quer dizer que o dolorosa, é algo que não fica
sujeito se sentirá necessariamente livre facilmente indicado em uma
fundamentação econômica. E o
para fazer essa obturação, seja com
notável é que esse doloroso
maior ou menor habilidade, apoiando-se desprazer nos parece natural. Mas de
num outro objeto que lhe possa ser fato, uma vez concluído o trabalho
substituto. Nesse sentido, o mistério é, de luto, o ego fica novamente livre e
justamente, o por quê de um sujeito não desinibido (1917/2011, p. 49-51).
conseguir realizar a substituição
requerida. A lógica freudiana do luto pode parecer
um tanto óbvia à primeira vista, mas,
Freud concebe o luto neste seu texto efetivamente, como isto se dá? A
seminal da seguinte forma: resposta dada pelo psicanalista chega a
Então, em que consiste o trabalho ser surpreendente: “o luto leva o eu a
realizado pelo luto? Creio que não é renunciar ao objeto, declarando-o morto
forçado descrevê-lo da seguinte e oferecendo-lhe como prêmio
maneira: a prova de realidade permanecer vivo” (p. 38). Assim, a
mostrou que o objeto amado já não possibilidade de viver já seria uma
existe mais e agora exige que toda a espécie de benefício secundário. A
libido seja retirada de suas ligações situação de pandemia pelo mundo, e em
com esse objeto. Contra isso se especial a nossa, parece não obstante
levanta uma compreensível
produzir um abalo egoico colossal
oposição; em geral se observa que o
homem não abandona de bom grado quando se trata de lidar com o luto, ou
uma posição da libido, nem mesmo seja: se no luto “normal” espera-se haver
quando um substituto já se lhe uma elaboração da perda do objeto, a
acena. Essa oposição pode ser tão atual banalização estatística junto de
intensa que ocorre um afastamento uma subsequente normalização de
da realidade e uma adesão ao objeto mortes parecem obrigar o eu a produzir
por meio de uma psicose uma forte dissociação, erigida assim
alucinatória de desejo. O normal é como defesa para que o sujeito não
que vença o respeito à realidade. desmorone de vez. O noticiário, que não
Mas sua incumbência não pode ser cansa de acumular o número de mortes e
imediatamente atendida. Ela será
contaminações, talvez já não assuste seu
cumprida pouco a pouco com
grande dispêndio de tempo e de espectador cada vez mais indiferente.
energia de investimento, e enquanto Não seria uma situação fortemente
isso a existência do objeto de análoga ao desaparecimento de corpos
investimento é psiquicamente

1
Este certamente não é o único luto em jogo poderiam ser discutidos aqui por conta do recorte
neste momento de isolamento: existem vários que desejei empregar em minha reflexão.
outros igualmente importantes, mas que não

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tal como vivido em nossa ditadura Cruzando todos os dados, penso que
militar? Paulo Endo (2016), psicanalista fomos condenados a uma dupla violação
que conduziu uma extensa pesquisa da experiência do luto: por um lado, tem-
sobre o assunto, afirma a esse respeito: se a violência própria da pandemia que
(...) alienar-se da possibilidade da encerra nossos corpos, e, junto a ela, a
morte, como fazemos em nossa vida morte que espreita à distância de um
cotidiana, torna-se muito difícil e espirro; por outro, a impossibilidade de
raro após experiências traumáticas as famílias velarem seus mortos revela a
duradouras que exigem atenção profanação de um traço simbólico muito
diuturna. Esses traços permanentes caro à nossa cultura, como vimos: assim
de percepção de uma situação de como no desaparecimento de corpos
perigo, e o medo que os acompanha, feito pela ditadura, a impossibilidade de
podem ser compreendidos a partir enterrar dignamente aqueles que se
da experiência do tempo que escoa foram deixa hoje os brasileiros em
rapidamente diante da tarefa e da
situação análoga a essa herança maldita
urgência de preservar a vida. A vida
em risco e o tempo que resta, vivido do período militar, tática que condena os
como insuficiente para manter-se vivos a um luto impossível e à decorrente
vivo, podem perdurar como uma subjugação melancólica que, neste caso,
luta pessoal contra a passagem do é forçada pelo vírus e imposta
tempo (p. 9). oficialmente pelo poder central com sua
altíssima cota de negligência e de
Desse modo, o que “funda o traumático,
denegação intencional da realidade do
não raro, é a urgência da tarefa de
vírus.
manter-se vivo diante de forças que
impõem (e desejam) o aniquilamento do Dadas as condições, estaríamos
sujeito”. A meu ver, sua análise se igualmente condenados a funcionar
aplicaria como uma luva à situação em como sismógrafos ambulantes, de modo
que nos vemos assujeitados agora: “A a lidar não com um “estresse pós-
perenidade da tristeza que se exige social traumático”, por assim dizer, mas com
e psiquicamente”, acrescenta o autor, uma espécie de ameaça pré-traumática:
“faz par com a negligência política de “chegamos ao pico?”; “houve
Estados incapazes de ultrapassar a achatamento?”; “quando poderemos
herança dos mecanismos de terror e finalmente sair de casa?”; “será que
morte, e o desprezo pelo futuro dos que nesta ida ao supermercado acabei
perderam e perderão seus entes de modo contraindo o vírus?”, e, at last but not
violento e arbitrário e tem de conviver least, “produziram finalmente uma
com isso como uma condenação vacina?” – são as perguntas mais ouvidas
perpétua” (ENDO, 2016, p. 9-14). do dia a dia. Em outras palavras, e
diferentemente de um desastre ou de
uma catástrofe2, nos quais a situação se

2
Há aqui espaço para uma grande discussão tais como Silvia Nogueira em live no Instituto
terminológica ou, ainda, conceitual. Alguns Sedes Sapientiae. De minha parte, mantenho a
defenderiam a uma interpretação do momento posição em termos de continuar apostando a
pela via da catástrofe e não do trauma, tal como dimensão traumática da Covid-19, uma vez que,
se pode conferir no texto de Verztman e Romão- freudianamente falando, isso inclui a condição de
Dias (2020) publicado neste ano, assim como acontecimento ao problema. Em suma, o
outros psicanalistas sustentam seu “potencial
traumático”, embora rigorosamente catastrófico,

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coloca de pronto, o enfrentamento da cortante para o aqui-agora: a guerra,
Covid-19 deixa o trauma declara,
circunstanciado à indefinição, em (...) destroçou nosso orgulho pelas
suspenso, isto é, ele “chega e não chega” realizações de nossa civilização,
ao mesmo tempo – gerando assim um nossa admiração por numerosos
impasse de significativa complexidade, filósofos e artistas, e nossas
uma vez que esse estado iminente ou esperanças quanto a um triunfo final
potencial para que o traumático advenha sobre as divergências entre as
já é, por si mesmo, traumático. Quanto a nações e as raças. Maculou a
isso, as imagens de Manaus e do elevada imparcialidade da nossa
cemitério de Vila Formosa são altamente ciência, revelou nossos instintos em
representativas da conjuntura: covas toda a sua nudez e soltou de dentro
de nós os maus espíritos que
(rasas?) abertas às pressas à espera dos
julgávamos terem sido domados
mortos. Eis, enfim, assim compreendo, o para sempre, por séculos de
estado de exceção em que vivemos en ininterrupta educação pelas mais
souffrance, como diria Lacan. nobres mentes. Amesquinhou mais
Em paralelo, não se observa também, uma vez nosso país e tornou o resto
do mundo bastante remoto. Roubou-
nesta situação de grande incerteza, uma
nos do muito que amáramos e
espécie de “neurose de confinamento” a mostrou-nos quão efêmeras eram
transmitir-se junto com o SARS-COV- inúmeras coisas que
2? Mistura de fobia (com a devida considerávamos imutáveis
contrapartida de ansiedade e de medo (FREUD, 1916/1976, p. 347).
diante do contágio) e neurose obsessiva
(uma angústia somada à “fritação” Resta mais o quê?
acerca do porvir, ou melhor, do que será Nesse clima de intenso desolamento, não
feito com o “novo normal”, para não vejo alternativa senão engajarmo-nos em
deixar de usar esse clichê), é comum algum manejo criativo frente às
escutar que uma tal “nosografia” não dificuldades de metabolização psíquica
deixa de ser atravessada por sintomas (AULAGNIER, 1979) engendradas pela
mortificantes de depressão cada vez suspensão das demandas subjetivas,
mais comuns no isolamento (tal como situação que se aproximaria, por assim
também sugeriu Birman em sua live, dizer, de uma experiência-limite
aludida no início deste texto). Nesta (ZALTZMAN, 1993), ou melhor, de
perspectiva, a reflexão de Freud indesejada familiaridade com uma
(1916/1976) sobre a transitoriedade condição de “pura” sobrevivência e, por
nunca foi tão atual ao nos mostrar em conseguinte, de relativa abolição da
que medida a escassez do tempo nos é grandeza desejante da vida – estado esse
cara. que não é novo na história, diga-se de
Como se sabe, nestes anos de 1915-6, em passagem, embora ele esteja sendo
que justamente estoura o conflito, Freud vivido em 2020 nesta escala
andava bastante preocupado com a inequivocamente microscópica.
situação europeia, embora suas linhas Mas com isso também nos restaria
possam servir como um diagnóstico constatar, apesar de tudo, que numa
sociedade pandêmica nada é mais

traumático seria aqui justamente o trabalho o acontecimento (esta última sugestão é de


psíquico que é preciso empregar para se enfrentar Mirian Debieux Rosa, em comunicação pessoal).

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essencial do que a arte: “A limitação da riquezas da civilização nada perdeu
possibilidade de uma fruição eleva o com a descoberta de sua fragilidade.
valor dessa fruição”, alegou Freud Reconstruiremos tudo o que a guerra
(1916/1976), neste texto sobre a destruiu, e talvez em terreno mais
firme e de forma mais duradoura do
transitoriedade, a ponto de contra-
que antes (FREUD, 1916/1976, p.
argumentar seu próprio pessimismo
349).
inicial para concluir com um
surpreendente sopro de esperança: Não deixa de ser curiosa a constatação de
que essa mesma humanidade que apoia a
Creio que aqueles que [...] parecem
prontos a aceitar uma renúncia
guerra também sempre reagiu
permanente porque o que era esteticamente frente a situações
precioso revelou não ser duradouro, extremas (tais como a própria guerra), tal
encontram-se simplesmente num como se dera no momento
estado de luto pelo que se perdeu. O imediatamente posterior às sociedades
luto, como sabemos, por mais concentracionárias, por exemplo.
doloroso que possa ser, chega a um Profunda, em certa medida, essa arte
fim espontâneo3 parece nascer justamente em razão do
E quando “renunciou a tudo que foi desamparo ou como resistência direta
perdido”, ele completa, contra a morte. Pelo momento, isto é, em
função de uma segunda onda que a esta
Então consumiu-se a si próprio, e altura vem assaltando o continente
nossa libido fica mais uma vez livre
europeu, creio que a nós caberia
[...] para substituir os objetos
perdidos por novos, igualmente ou perguntar se podemos ter esse mesmo
ainda mais preciosos. É de esperar otimismo “freudiano” de um século
que isso também seja verdade em atrás.
relação às perdas causadas pela Veremos.
presente guerra. Quando o luto tiver
terminado, verificar-se-á que o alto
conceito em que tínhamos as

3
Note-se: é importantíssimo indicar que o ensaio
sobre a transitoriedade é anterior à Luto e
melancolia.

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Figura 6: Banksy, 2020. Fonte: Instagram

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18,7% nos divórcios durante a pandemia. Publicado em 2021-02-01

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