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sopa de wuhan

sopa de wuhan

Giorgio Agamben
Slavoj Zizek
Jean Luc Nancy
Franco “Bifo” Berardi
Santiago López Petit
Judith Butler
Alain Badiou
David Harvey
Byung-Chul Han
Raúl Zibechi
María Galindo
Markus Gabriel
Gustavo Yáñez González
Patricia Manrique
Paul B. Preciado
Título original: Sopa de Wuhan
Autores: Giorgio Agamben, Slavoj Zizek, Jean Luc Nancy,
Franco “Bifo” Berardi, Santiago López Petit, Judith Butler,
Alain Badiou, David Harvey, Byung-Chul Han, Raúl Zibechi,
María Galindo, Markus Gabriel, Gustavo Yañez González,
Patricia Manrique y Paul B. Preciado

188 páginas | 13 x 19 cm

1.a edição: março 2020, La Plata, Buenos Aires, Argentina


Edição original: ASPO (Aislamiento Social Preventivo y Obligatorio)
Ideia, direção de arte, design e edição: Pablo Amadeo

pabloamadeo.editor@gmail.com
@pabloamadeo.editor
pablo.amadeo.editor

2.a edição: abril 2020, Rio de Janeiro, Brasil


Edição portuguesa: Editorial Siesta
Coordenação editorial: Caro Pierro
Revisão: Mauro Sá Rego Costa
Arte da capa: Caro Pierro

editorialsiesta@gmail.com
@editorialsiesta
a Li Wenliang
ÍNDICE

A invenção de uma epidemia


Giorgio Agamben (26 de fevereiro) 19

Coronavírus é um golpe estilo “Kill Bill”...


Slavoj ŽiŽek (27 de fevereiro) 23

Exceção viral
Jean Luc Nancy (28 de fevereiro) 31

Contágio
Giorgio Agamben (11 de março) 33

Crônica da psicodeflação
Franco “Bifo” Berardi (16 de março) 37

O coronavirus como declaração de guerra


Santiago López Petit (19 de março) 57

O capitalismo tem seus limites


Judith Butler (19 de março) 61

Sobre a situação epidêmica


Alain Badiou (21 de março) 69
Políticas anticapitalistas em tempos de COVID-19
David Harvey (22 de março) 81

A emergência viral e o mundo de amanhã


Byung-Chul Han (22 de março) 99

Nas portas de uma nova ordem mundial


Raúl Zibechi (25 de março) 115

Desobediência, por sua culpa vou sobreviver


María Galindo (26 de março) 121

O vírus, o sistema letal e algumas pistas...


Markus Gabriel (27 de março) 131

Reflexões sobre a peste


Giorgio Agamben (27 de março) 137

Fragilidade e tiranía humana em tempos de pandemia


Gustavo Yáñez González (27 de março) 141

Hospitalidade e imunidade virtuosa


Patricia Manrique (27 de março) 147

Aprendendo com o vírus


Paul B. Preciado (28 de março) 163
Sopa de Wuhan é um compilado de pensamento contem-
porâneo a respeito do COVID 19 e as perspectivas que
surgiram mundo afora. Reúne a produção filosófica - em
formato ensaístico, jornalístico, literário, etc.- publicada
durante um mês: do 26 de Fevereiro até o 28 de Março do
2020. A antologia apresenta pensadores e pensadoras da
Alemanha, Itália, França, Espanha, Estados Unidos, Co-
reia do Sul, Eslovênia, Bolívia, Uruguai e Chile. Sopa junta
num volume material que já é público e está ao alcance
de um clic mas propõe uma “ordem” de leitura, oferece
alguns dados biográficos sobre os(as) autores(as) e tenta
pôr numa linha de tempo uma série de debates. Procura
mostrar as polêmicas recentes ao redor dos novos ce-
nários que surgem com a pandemia do Coronavirus, os
olhares sobre o presente e as hipóteses sobre o futuro.
ASPO, Aislamiento Social Preventivo y Obligatorio, ou
Isolamento Social Preventivo e Obrigatório é uma inicia-
tiva que pretende perdurar enquanto vivamos em qua-
rentena. É um ponto de fuga criativo ante a infodemia, a
paranóia e a distância lasciva auto imposta como política
de resguardo ante um perigo invisível.

13 | Nota editorial
Sobre a edição brasileira

Em tempos de controle institucional extremo responde-


mos com cooperação civil desinteressada;
Em tempos de hipercomunicação descartável responde-
mos com palavras claras, textos pensados, profundidades
consistentes e contundentes;
Em tempos de perda de liberdade respondemos liberando
conteúdo;
Em tempos de especulação financeira trabalhamos grátis;
Em tempos de imediatez respondemos fazendo uma pausa;
Em tempos de isolamento nos abrimos, compartimos,
pensamos e agimos juntos.
Que este compilado de textos nos encontre com a máscara
na boca e não nos olhos.
Sigamos…

Editorial Siesta

15 | Sobre a edição brasileira


sopa de wuhan
A invenção de uma epidemia

Por Giorgio Agamben*

Publicado em Quodlibet.it
26 de fevereiro, 2020
Tradução: Sara Wagner Pimenta Gonçalves Junior para Medium

O temor a se contagiar dos outros,


como outra forma de restringir liberdades

Perante as medidas de emergência frenéticas, irracionais e


completamente injustificadas para uma suposta epidemia
devido ao coronavírus, é necessário partir das declarações
do CNR -Consiglio Nazionale delle Ricerche, Conselho Na-
cional de Pesquisas-, segundo as quais não só “não há epi-
demia de SRA-CoV2 na Itália”, mas em todo caso “a infecção,
segundo os dados epidemiológicos hoje disponíveis sobre

[*] Giorgio Agamben (Roma, 1942) é um filósofo italiano de renome


internacional. Na sua obra, como na de outros autores, se misturam estudos
literários, linguísticos, estéticos e políticos, seguindo a determinação filosófica
de pesquisar a atual situação metafísica no Ocidente e sua saída possível, nas
atuais circunstâncias da história e da cultura mundiais.

19 | A invenção de uma epidemia


dezenas de milhares de casos, causa sintomas ligeiros/mo-
derados (uma espécie de gripe) em 80–90% dos casos. Em
10–15% dos casos a pneumonia pode desenvolver-se, mas
na maioria dos casos o curso da doença é benigno. Estima-
se que apenas 4% dos pacientes necessitam de internação
em terapia intensiva”.
Se esta é a situação real, por que a mídia e as autoridades
estão tentando espalhar um clima de pânico, causando um
verdadeiro estado de emergência, com severas restrições à
circulação e uma suspensão do funcionamento normal das
condições de vida e de trabalho em regiões inteiras?
Dois fatores podem ajudar a explicar este comportamen-
to desproporcional. Em primeiro lugar, há uma tendência
crescente para usar o estado de exceção como um paradig-
ma normal de governo. O decreto-lei imediatamente aprova-
do pelo governo “por razões de saúde pública e segurança”
leva a uma verdadeira militarização “dos municípios e áreas
onde a fonte de transmissão de pelo menos uma pessoa seja
desconhecida ou onde exista um caso não aplicável a uma
pessoa de uma área já infectada pelo vírus”. Uma fórmula
tão vaga e indeterminada, possibilitará a rápida extensão
do estado de emergência em todas as regiões, já que é qua-
se impossível que outros casos não surjam em outro lugar.
Consideremos as severas restrições à liberdade previstas no
decreto: a) proibição de expulsão do município ou zona em
questão por parte de todos os indivíduos presentes, seja qual
for o caso, município ou zona; b) proibição de acessos ao mu-

Giogio Agamben | 20
nicípio ou zona em questão; c) suspensão de eventos ou ini-
ciativas de qualquer tipo, atos e todas as formas de reunião
em local público ou privado, incluindo os de natureza cultural,
recreativa, esportiva e religiosa, mesmo que sejam realiza-
dos em locais fechados ou/e abertos; d) suspensão dos ser-
viços educativos para crianças e escolas de todos os níveis
e graus, bem como da frequência de atividades escolares e
do ensino superior, exceto para atividades de ensino à dis-
tância; e) suspensão dos serviços de abertura ao público de
museus e outras instituições culturais e locais referidos no
artigo 101º do Código do Património Cultural e da Paisagem,
conforme previsto no Decreto Legislativo nº 22 de Janeiro de
2004 42, bem como a eficácia das disposições regulamenta-
res sobre o acesso livre e sem restrições a estas instituições
e locais; f) suspensão de todas as viagens educativas, tanto
na Itália como no estrangeiro; g) suspensão dos processos de
falência e das atividades dos serviços públicos, sem prejuízo
da prestação dos serviços essenciais e dos serviços públicos;
h) aplicação da medida de quarentena com vigilância ativa
entre as pessoas que tenham estado em estreito contato com
casos confirmados de doenças infecciosas generalizadas.
A desproporção em relação ao que o NRC considera ser a
gripe normal, não muito diferente das que se repetem todos
os anos, é impressionante. Parece que, tendo esgotado o ter-
rorismo como causa das medidas excepcionais, a invenção
de uma epidemia pode oferecer o pretexto ideal para a sua
extensão para além de todos os limites.

21 | A invenção de uma epidemia


O outro fator, não menos preocupante, é o estado de medo
que evidentemente se espalhou nos últimos anos na consci-
ência dos indivíduos, e que se traduz em uma real necessida-
de de estados de pânico coletivo, para os quais a epidemia,
mais uma vez, oferece o pretexto ideal. Assim, num círculo
vicioso perverso, a limitação da liberdade imposta pelos go-
vernos é aceita, em nome de um desejo de segurança, que
tem sido induzido pelos mesmos governos que agora inter-
vêm para a satisfazê-la.
Coronavírus é um golpe estilo “Kill Bill”
para o capitalismo e pode levar
à reinvenção do comunismo

Por Slavoj Žižek*

Publicado em Russia Today


27 de fevereiro, 2020
Tradução: Simone Paz para Outras palavras

A disseminação contínua da epidemia do coronavírus aca-


bou desencadeando, também, certas epidemias de vírus
ideológicos que estavam adormecidos em nossas socie-
dades: fake news, teorias da conspiração paranoicas e ex-
plosões de racismo.
A quarentena, devidamente fundamentada em evidên-
cias médicas, encontrou um eco na pressão ideológica por

[*] Slavoj Zizek (Eslovenia, 1949) é filósofo, sociólogo, psicoanalista e


crítico cultural. É pesquisador sênior no Instituto de Sociologia e Filosofia
da Universidade de Ljubljana, professor distinguido global de alemão na
Universidade de Nova Iorque, e diretor internacional do Instituto Birkbeck
para as Humanidades da Universidade de Londres.

23 | Coronavírus é um golpe estilo “Kill Bill”


estabelecer fronteiras estritas e isolar os inimigos que re-
presentam uma ameaça à nossa identidade.
Mas, talvez, outro vírus muito mais benéfico também
se espalhe e, se tivermos sorte, irá nos infectar: o vírus
do pensar em uma sociedade alternativa, uma sociedade
para além dos Estados-nação, uma sociedade que se atua-
liza nas formas de solidariedade e cooperação global.
Especula-se que o coronavírus pode levar à queda do
regime comunista chinês, do mesmo jeito que a catástrofe
de Chernobyl foi a gota d’água que levou ao fim o comu-
nismo soviético (como o próprio Gorbachev admitiu). Mas
existe um paradoxo nesta situação: o coronavírus também
nos levará a reinventar o comunismo, com base na con-
fiança nas pessoas e na ciência.
Na cena final de Kill Bill 2, do diretor Quentin Ta-
rantino, Beatrix derruba o vilão Bill, destruindo-o com
a “Técnica dos Cinco Pontos para Explodir o Coração”
— o golpe mais fatal das artes marciais. O movimento
consiste numa combinação de cinco golpes com as pon-
tas dos dedos em cinco pontos de pressão diferentes no
corpo do alvo. Assim que a vítima se afasta e dá cinco
passos, seu coração explode dentro do seu corpo, e ele
desmorona no chão.
Este ataque faz parte da mitologia das artes marciais
e não é factível nos combates da vida real. Porém, voltan-
do ao filme, depois que Beatrix ataca Bill, ele faz as pazes
com ela, calmamente, anda cinco passos e morre…

Slavoj Žižek | 24
O que torna esse ataque tão fascinante é o tempo exis-
tente entre o golpe e o momento da morte: posso manter
uma agradável conversa enquanto eu permanecer sen-
tado e sossegado, mas durante todo esse tempo estarei
ciente de que no momento em que eu começar a andar,
meu coração irá explodir e eu cairei morto.
Não se parece com a ideia daqueles que especulam
sobre como o coronavírus levaria o sistema comunista da
China à sua queda? Numa espécie de “Técnica dos Cinco
Pontos para Explodir o Coração” social, no regime comu-
nista do país, as autoridades podem sentar-se, observar e
atravessar os movimentos da quarentena, mas qualquer
mudança real na ordem social (como confiar nas pessoas)
resultará em sua queda.
Minha modesta opinião é muito mais radical: a epide-
mia do coronavírus é uma espécie de “Técnica dos Cinco
Pontos para Explodir o Coração” de ataque ao sistema
capitalista internacional — um sinal de que não podemos
seguir pelo mesmo caminho que viemos até agora, de que
precisamos uma mudança radical.

Fato triste: será preciso uma catástrofe

Há alguns anos, Fredric Jameson chamou a atenção


para o potencial utópico dos filmes sobre catástrofes cós-
micas (um asteroide que ameaça a vida na Terra ou um ví-
rus que mata a humanidade, por exemplo). Tal ameaça glo-

25 | Coronavírus é um golpe estilo “Kill Bill”


bal dá origem à solidariedade global, nossas pequenas dife-
renças se tornam insignificantes, todos trabalhamos juntos
para encontrar uma solução — e aqui estamos hoje, na vida
real. O ponto não é sobre curtir sadicamente o sofrimento
generalizado, porque ele ajudaria nossa causa: pelo contrá-
rio, o ponto é refletir sobre o triste fato de que precisemos
de uma catástrofe para nos permitirmos repensar as carac-
terísticas básicas da sociedade na qual vivemos.
O primeiro esboço de modelo de uma coordenação glo-
bal do tipo é da Organização Mundial da Saúde, da qual
não estamos recebendo a tagarelice burocrática usual,
mas avisos precisos, anunciados sem pânico. Tais organi-
zações devem receber mais poder executivo.
Os céticos zombam de Bernie Sanders por sua defesa
de uma saúde universal nos EUA — e não é que a lição da
epidemia de coronavírus não apenas demonstra como ela
é muito necessária, mas também que devemos começar a
criar algum tipo de rede global de saúde?
Um dia após o vice-ministro da Saúde do Irã, Iraj Harir-
chi, aparecer em uma coletiva de imprensa para minimizar
a disseminação do coronavírus e afirmar que as quarente-
nas em massa não seriam necessárias, teve de fazer uma
breve declaração admitindo que contraiu o coronavírus e se
isolou (inclusive, na sua primeira aparição na TV, ele já apre-
sentava sinais de febre e fraqueza). Harirchi acrescentou:
“Este é um vírus democrático, que não faz diferença entre
pobres ou ricos, ou entre políticos e cidadãos comuns”.

Slavoj Žižek | 26
Nesse ponto, ele estava correto — estamos todos no
mesmo barco. É difícil não reparar na enorme ironia do fato:
aquilo que nos uniu e nos levou à solidariedade global se
expressa, no nível da vida cotidiana, em orientações seve-
ras para evitar o contato com os outros, e até de se isolar.
Além do mais, não estamos lidando apenas com amea-
ças virais — outras catástrofes já estão surgindo no horizon-
te ou mesmo acontecendo: secas, ondas de calor, tempesta-
des fora de controle, etc. Para todos esses casos, a resposta
não é o pânico, mas o trabalho árduo e urgente para estabe-
lecer algum tipo de coordenação global eficiente.

Só estaremos a salvo na realidade virtual?

A primeira ilusão a ser dissipada é aquela formulada


pelo presidente dos EUA, Donald Trump, durante sua re-
cente visita à Índia, onde ele disse que a epidemia recuaria
rapidamente e que só precisamos esperar pelo seu pico,
que a vida voltará ao normal.
Contra essas esperanças fáceis, a primeira coisa que
precisamos aceitar é que a ameaça veio para ficar. Mesmo
se a onda passar, ela reaparecerá em novas formas — qui-
çá bem mais perigosas.
Por esse motivo, podemos esperar que as epidemias
virais afetem nossas interações mais elementares com
outras pessoas e objetos ao nosso redor, incluindo nosso
próprio corpo — evitar tocar em coisas que possam estar

27 | Coronavírus é um golpe estilo “Kill Bill”


(invisivelmente) contaminadas, não sentar em assentos
sanitários ou bancos públicos, evitar abraçar pessoas ou
apertar as mãos. Podemos até passar a ter mais cuidado
com gestos espontâneos: não encostar no nariz nem es-
fregar os olhos.
Portanto, não serão apenas o Estado e outras insti-
tuições nos controlando, devemos também aprender a
nos autocontrolar e disciplinar. Talvez apenas a reali-
dade virtual seja considerada segura e a movimentação
livre em espaços abertos fique restrita às ilhas perten-
centes aos ultrarricos.
Mas mesmo no nível da realidade virtual e da internet,
devemos lembrar que, nas últimas décadas, os termos “ví-
rus” e “viral” foram usados principalmente para designar
vírus digitais que infectavam nossos espaços na web e dos
quais não tínhamos consciência, pelo menos até que seu
poder destrutivo fosse liberado (por exemplo, a destruição
de nossos dados ou de discos rígidos). O que vemos agora
é um forte retorno ao significado literal original do termo:
as infecções virais trabalham de mãos dadas em ambas as
dimensões, real e virtual.

O Retorno do Animismo Capitalista

Outro fenômeno bizarro que podemos observar é o


retorno triunfante do animismo capitalista, de tratar fe-
nômenos sociais como mercados ou o capital financeiro

Slavoj Žižek | 28
como uma entidade viva. Lendo a mídia empresarial, fica-
mos com a impressão de que, na verdade, não deveríamos
nos preocupar com os milhares que morreram (nem com
os outros milhares que ainda vão morrer), mas com os
“mercados que estão ficando apreensivos”. O coronavírus
perturba cada vez mais o bom funcionamento do merca-
do mundial e, segundo o que ouvimos, o crescimento pode
cair dois ou três por cento.
Tudo isso não indica claramente a necessidade urgente
de uma reorganização da economia global, que não esteja
mais à mercê dos mecanismos de mercado? É óbvio que
não estamos falando de comunismo às antigas, mas de al-
guma forma de organização mundial que consiga contro-
lar e regular a economia — bem como limitar a soberania
dos estados-nação quando necessário. Os países já con-
seguiram fazer isso no contexto da guerra no passado, e
agora todos nós estamos, efetivamente, nos aproximando
de uma guerra clínica.
Além do mais, não devemos ter medo de reparar em al-
guns efeitos colaterais positivos da epidemia. Um de seus
símbolos são os passageiros aprisionados (em quarente-
na) em grandes cruzeiros — boa maneira de se libertar
da obscenidade desses navios, devo dizer. (Só precisamos
tomar cuidado para que as viagens a ilhas isoladas ou a
outros resorts exclusivos não se torne, novamente, o privi-
légio de uns poucos ricos, como aconteceu décadas atrás
com voos de avião). A produção de automóveis também se

29 | Coronavírus é um golpe estilo “Kill Bill”


vê seriamente afetada pelo coronavírus — o que não é de
todo ruim, já que isso pode nos levar a pensar em alterna-
tivas à nossa obsessão pelos veículos individuais. E a lista
não para por aí.
Num discurso recente, o primeiro-ministro húngaro, Vi-
ktor Orban, declarou: “Não existe essa coisa de liberal. Um
liberal nada mais é do que um comunista com um diploma”.
E se o contrário estiver certo? Se designarmos como
“liberais” todos aqueles que se preocupam com a nossa
liberdade; e, como “comunistas”, aqueles que sabem que
só poderemos salvá-la por meio de mudanças radicais —
já que o capitalismo global está cada vez mais próximo
de uma crise? Então, deveríamos dizer que, atualmente,
aqueles que ainda se reconhecem comunistas são libe-
rais com diplomas — liberais que estudaram seriamente o
porquê de nossos valores liberais estarem sob ameaça, e
que tomaram consciência de que só uma mudança radical
poderá salvá-los.

Slavoj Žižek | 30
Exceção viral

Por Jean-Luc Nancy*

Publicado em antinomie.it
28 de fevereiro, 2020
Tradução: rond@paranoici.org - Medium

(Resposta de Jean-Luc Nancy ao texto de Agamben publicada


no blog Antinomie no dia 27 de fevereiro de 2020; resposta de
Roberto Esposito ao texto)

Giorgio Agamben, um velho amigo, afirma que o coronavírus


é pouco diferente de uma simples gripe. Ele esquece que para
a gripe “normal” temos uma vacina com eficácia comprova-
da. Ainda assim é preciso todo ano reajustá-la às mutações
virais. Apesar disso, a gripe “normal” ainda mata algumas
pessoas, e o coronavírus, contra o qual não há vacina algu-
ma, é obviamente capaz de uma mortalidade evidentemente
maior. A diferença (de acordo com fontes do mesmo tipo que
[*] Jean-Luc Nancy (Burdeos, 1940), ffilósofo francês considerado um dos
pensadores mais influentes da França contemporânea, professor emérito
de filosofia na Universidade Marc Bloch de Strasbourg e colaborador nas
Universidades de Berkeley e Berlim.

31 | Exceção viral
as de Agamben) é de cerca de 1 para 30: não me parece uma
diferença pequena.
Giorgio alega que os governos se utilizam de pretextos
para estabelecer estados contínuos de exceção. Mas ele não
percebe que a exceção efetivamente se torna a regra em um
mundo onde as interligações técnicas de todo tipo (desloca-
mentos, transferências de todo tipo, exposição ou difusão de
substâncias, etc.) alcançam uma intensidade até então des-
conhecida e que cresce junto com a população. A multiplica-
ção desta última também inclui, nos países ricos, o prolonga-
mento da vida e o crescimento no número de idosos, e, em
geral, o de pessoas em risco.
Não devemos confundir o alvo: uma civilização intei-
ra está envolvida, não há dúvida. Há um tipo de exceção
viral —biológica, informática, cultural— que nos pande-
miza. Os governos nada mais são que tristes executores,
e atacá-los parece mais uma manobra de distração que
uma reflexão política.
Lembrei que Giorgio é um velho amigo. Lamento trazer à
tona uma memória pessoal, mas não me afasto, afinal de um
registro de reflexão geral. Quase trinta anos atrás os médicos
julgaram que eu deveria fazer um transplante de coração.
Giorgio foi uma das poucas pessoas que me aconselhou a
não os escutar. Se tivesse seguido seu conselho eu provavel-
mente teria morrido em pouco tempo. Podemos errar. Giorgio
continua sendo um espírito de uma delicadeza e gentileza a
que se pode chamar —e sem a menor ironia— excepcional.

Jean-Luc Nancy | 32
Contágio

Por Giorgio Agamben

Publicado em Quodlibet.it
11 de março, 2020
Tradução: Ricardo Moura para Medium

“Olha o infestador! Pega! Pega! Pega o infestador!”


Alessandro Manzoni, Os noivos

Uma das consequências mais desumanas do pânico que


se busca espalhar por todos os meios na Itália durante
a chamada epidemia de coronavírus é a própria ideia de
contágio, que está na base das medidas excepcionais de
emergência adotadas pelo governo. A ideia, estranha à
medicina hipocrática, teve seu primeiro precursor incons-
ciente durante as pragas que assolaram algumas cidades
italianas entre 1500 e 1600. É a figura do untore, o infecta-
dor, imortalizada por Manzoni em seu romance e no ensaio
sobre a “História da Coluna Infame”. Um “anúncio público

33 | Contágio
[grida]” milanês sobre a praga de 1576 os descreve assim,
convidando os cidadãos a denunciá-los:

Tendo chegado a notícia ao governador de que algu-


mas pessoas com zelo fraco pela caridade estão a
espalhar terror e espanto na cidade de Milão e em
seus habitantes disseminando infestações que di-
zem ser pestíferas e contagiosas às portas e fecha-
duras das casas e dos cantões dos distritos daquela
cidade e de outras partes do Estado para excitá-los
a algum tumulto, com o pretexto de levar a praga ao
privado e ao público, dos quais resultam muitos in-
convenientes, causando não pouca alteração entre
as pessoas, ainda mais para aqueles que são facil-
mente persuadidos a acreditar nessas coisas, fazen-
do com que cada pessoa seja levada a querer a qua-
lidade, status, grau e condição desejadas. No prazo
de quarenta dias, ficarão claros a pessoa ou pessoas
que favoreceram, ajudaram ou souberam de tal inso-
lência, se lhes tiverem dado quinhentos escudos …

Dadas as diferenças, as disposições recentes (adota-


das pelo governo com decretos que gostaríamos de espe-
rar — mas é uma ilusão — não terem sido ratificadas pelo
parlamento em leis nos termos previstos) transformam de
fato cada indivíduo em um potencial infestador, da mesma
maneira que aqueles que lidam com o terrorismo consi-

Giogio Agamben | 34
deram de fato e de direito cada cidadão como um poten-
cial terrorista. A analogia é tão clara que o interlocutor em
potencial que não cumprir as prescrições é punido com
prisão. Particularmente invisível é a figura do portador
saudável ou precoce, que infecta uma multiplicidade de
indivíduos sem ser capaz de se defender contra ela. Como
alguém poderia se defender contra a infestação.
Ainda mais triste do que as limitações das liberdades im-
plícitas nas disposições é, na minha opinião, a degeneração
das relações entre os homens que elas podem produzir. O
outro homem, quem quer que seja, mesmo um ente querido,
não deve se aproximar ou tocar um ao outro e devemos co-
locar entre os dois uma distância que, segundo alguns, é de
um metro, mas, de acordo com as sugestões mais recentes
dos chamados especialistas, deve ser de 4,5 metros (esses
cinquenta centímetros são interessantes!). Nosso próximo
foi abolido. É possível, dada a inconsistência ética de nossos
governantes, que essas disposições sejam ditadas pelo mes-
mo temor que pretendem provocar, mas é difícil não pensar
que a situação criada é exatamente a que aqueles que nos
governam tentaram realizar repetidamente: que universida-
des e escolas sejam fechadas de uma vez por todas e que as
lições sejam dadas apenas de forma online, que paremos de
nos encontrar e conversar por razões políticas ou culturais
e apenas troquemos mensagens digitais. E que, tanto quan-
to for possível, as máquinas substituam todo contato — todo
contágio — entre os seres humanos.

35 | Contágio
Crônica da psicodeflação

Por Franco “Bifo” Berardi*

Publicado em Nero editions


19 de março, 2020
Tradução: Caro Pierro

You are the crown of creation


And you’ve got no place to go
[Você é a coroa da criação, e voce nao tem pra onde ir.]
Jefferson Airplane, 1968

A palavra é um vírus. Talvez o vírus da gripe foi uma vez uma


célula saudável. Agora é um organismo parasita que invade e
danifica o sistema nervoso central. O homem moderno já não

[*] Franco Berardi (Bifo) (Italia, 1948) é un filósofo contemporáneo italiano


ye actualmente trabalha como docente em Bolonia. Se graduó em Estética
na Facultad de Filosofía e Letras da Universidade de Bolonia. Como
estudante participou no movimento estudantil italiano do 68. Colabora na
revista Loop e Alfabeta2. Foi fundador e colaborador da Radio Alice. Em
1978 chega em Nova Iorque fugindo do triunfo do neoliberalismo na Itália
e no 2000 publica A fábrica da infelicidade. Em 2002 cria “TV Orfeo”, a
primeira emissora comunitária italiana.

37 | Crônica da psicodeflação
conhece o silêncio. Tente deter o discurso subvocal. Experi-
mente dez segundos de silêncio interior. Você se encontrará
com um organismo resistente que te impõe falar. Esse orga-
nismo é a palavra.
William Burroughs, O ticket que explodiu

21 de fevereiro
Retornando de Lisboa, uma cena inesperada no aeroporto
de Bolonha. Na entrada há dois humanos completamente
cobertos com uma roupa branca, capacete luminescente e
um aparelho estranho nas mãos. O aparelho é uma pistola
termômetro de altíssima precisão que emite luzes violetas
para todos os lados.
Aproximam-se de cada passageiro, detém-no, apon-
tam a luz violeta na sua frente, controlam a temperatura e
logo o deixam ir.
Um pressentimento: estamos atravessando um novo
portal no processo de mutação tecnopsicótica?

28 de fevereiro
Desde que voltei de Lisboa não posso fazer outra coi-
sa: comprei umas vinte telas de pequenas proporções
e as pinto com tinta colorida, fragmentos fotográficos,
lápis, carvão. não sou pintor mas quando fico nervoso,
quando sinto que está acontecendo algo que gera vibra-
ções dolorosas no meu corpo, começo a rabiscar para
me relaxar.

Franco “Bifo” Berardi | 38


A cidade está em silêncio como se num feriado abso-
luto. As escolas fechadas, os cinemas fechados. Nao tem
estudantes circulando, não tem turistas. As agências de
viagens cancelaram regiões inteiras do mapa. As recentes
convulsões no corpo planetário talvez estejam provocando
um colapso que obrigue o organismo a se deter, a ralen-
tar seus movimentos, a abandonar os lugares lotados e as
frenéticas negociações cotidianas. E se esta for a porta de
saída que não conseguimos encontrar, e que agora se nos
apresenta no formato de epidemia psíquica, de um vírus
linguístico gerado por um biovirus?
A Terra atingiu um grau de irritação extremo, e o corpo co-
letivo da sociedade padece há algum tempo de um estado de
estresse intolerável: a doença se manifesta neste ponto, mo-
destamente letal, mas devastador no plano social e psíquico,
como uma reação de autodefesa da Terra e do corpo planetá-
rio. Para as pessoas mais jovens, e só uma gripe chata.
O que gera pânico é que o vírus foge do nosso saber: a
medicina não o conhece, o sistema imunitário não o conhe-
ce. E o desconhecido detém a máquina de repente. O vírus
semiótico na psicosfera bloqueia o funcionamento abstrato
da economia, porque subtrai dela os corpos. Querem ver?

2 de março
Um vírus semiótico na psicosfera bloqueia o funcionamen-
to abstrato da máquina, porque os corpos abrandam seus
movimentos, finalmente renunciam a ação, interrompem a

39 | Crônica da psicodeflação
pretensão do governo sobre o mundo e deixam que o tem-
po retome o fluxo no qual nadamos passivamente, segun-
do a técnica de natação conhecida como “fingir que estou
morto”. A nadada engole uma coisa depois da outra, mas
enquanto isso a ansiedade de manter unido o mundo que
mantinha o mundo unido vai se dissolvendo.
Não tem pânico, não tem medo, só silêncio. Revelar-se
revelou-se inútil, então detenhamo-nos.
Quanto tempo vai durar o efeito desta fixação psicótica
que chamamos de coronavirus? Dizem que a primavera ma-
tará o vírus, mas pelo contrário poderia exaltá-lo. Não sabe-
mos nada a respeito, como podemos saber qual temperatura
prefere? Pouco importa o quão letal seja a doença: parece
sê-lo modestamente, e esperamos que se dissolva logo.
Mas o efeito do vírus não é tanto o número de pessoas
que ele debilita e o pequeno número de pessoas que mata.
O efeito do vírus está na paralisia racional que ele propa-
ga. A economia mundial fechou sua parábola expansiva já
faz um tempo, mas não conseguimos aceitar a ideia do es-
tancamento como um novo regime a longo prazo. Agora o
vírus semiótico está nos ajudando nesta transição para a
imobilidade. Querem vê-lo?

3 de março
Como reage o organismo coletivo, o corpo planetário, a
mente hiperconectada submetida durante três décadas a
tensão ininterrupta da competência e da hiperestimula-

Franco “Bifo” Berardi | 40


ção nervosa, a guerra pela sobrevivência, a solidão me-
tropolitana e a tristeza, incapaz de se libertar da ressaca
que rouba a vida e a transforma em estresse permanente,
como um viciado em drogas que nunca consegue alcançar
a heroína que nao entanto dança na sua frente, submetido
à humilhação da desigualdade e da impotência?
Na segunda metade de 2019, o corpo planetário con-
vulsionou. De Santiago a Barcelona, de Paris a Hong Kong,
de Quito a Beirut, multidões de jovens foram para a rua,
milhares deles, raivosamente. A revolta não tinha um obje-
tivo específico, aliás tinha objetivos contraditórios. O corpo
planetário estava preso aos espasmos que a mente não
sabia guiar. a febre cresceu até o final do ano de 2019.
Então Trump assassina a Soleimani, na celebração do
seu povo. Milhares de iranianos desesperados vão para as
ruas, choram, prometem uma vingança cruel. Nada acon-
tece, bombardeiam um pátio. Em pleno pânico derrubam
um avião civil. E assim Trump ganha tudo, sua populari-
dade aumenta: os norteamericanos se excitam quando
veem sangue, os assassinos sempre tem sido seus favo-
ritos. Enquanto isso, os democratas começam as eleições
primárias num tal estado de divisão que só um milagre
poderia levar a nomeação do bom e velho Sanders, única
esperança de uma vitória improvável.
Então, nazismo trumpista e miséria para todos e su-
per-estimulação do sistema nervoso planetário. É essa a
moral da fábula?

41 | Crônica da psicodeflação
Mas tem uma surpresa, um giro, um imprevisto que
frustra qualquer discurso sobre o inevitável. O imprevisto
que estivemos aguardando: a implosão. O organismo su-
perexcitado do gênero humano, depois de décadas de ace-
leração e frenesí, depois de alguns meses de convulsões
sem perspetivas, fechado num túnel cheio de raiva, de gri-
tos, de fumaça, finalmente se vê afetado pelo colapso: se
difunde uma gerontomaquia que mata principalmente oc-
togenários, mas bloqueia, peça por peça, a máquina global
de excitação, de frenesí, de crescimento da economia...
O capitalismo é uma axiomática, ou seja, funciona
baseado numa premissa não comprovada (a necessida-
de do crescimento ilimitado que faz possivel a acumu-
laçao do capital). Todas as concatenações lógicas e eco-
nômicas são coerentes com esse axioma, e nada pode
ser concebido ou tentado fora desse axioma. Não existe
uma saída política da axiomática do Capital, não existe
uma linguagem capaz de enunciar o exterior da lingua-
gem, não há possibilidade de destruir o sistema, porque
o processo linguístico todo acontece dentro dessa axio-
mática que não permite a possibilidade de enunciados
eficazes extra sistêmicos. A única saída é a morte, como
aprendemos com Baudrillard.
Só depois da morte poderemos começar a viver. De-
pois da morte do sistema, os organismos extra sistêmicos
poderão começar a viver. Sempre que sobrevivam, claro, e
não têm certeza disso.

Franco “Bifo” Berardi | 42


A recessão econômica que está sendo preparada
poderá nos matar, poderá provocar conflitos violentos,
poderá desencadear epidemias de racismo e guerra. É
bom sabê-lo. Não estamos culturalmente preparados
para pensar no estancamento como condição de longo
prazo, não estamos preparados para pensar na frugali-
dade, no compartir. Não estamos preparados para dis-
sociar o prazer do consumo.

4 de Março
É esta nossa última chance? Não sabíamos como nos des-
fazer do polvo, não sabíamos como sair do cadáver do Ca-
pital; viver sem esse cadáver que apodrece a existência de
todos, mas agora o choque é o prelúdio da deflação psí-
quica definitiva. No cadáver do Capital éramos obrigados a
superestimulação, a aceleração constante, a competência
generalizada e a superexploração com salários decres-
centes. Agora o vírus esvazia a bolha da aceleração.
Faz tempo que o capitalismo se encontra num estado
de estancamento irremediável. Mas continuar exigindo
aos animais de carga que somos, para nos obrigar a conti-
nuar correndo, ainda quando o crescimento se tornou num
espelhismo triste e impossível.
Não dava para pensar numa revolução porque a subje-
tividade está confusa, deprimida, convulsiva, e o cérebro
político já não tem controle nenhum sobre a realidade. E
é aqui então uma revolução sem subjetividade, puramen-

43 | Crônica da psicodeflação
te implosiva, um revolta da passividade, da resignação.
Resignemo-nos. De repente, esta parece ser uma consig-
na ultra subversiva. Chega da agitação inútil que deveria
melhorar e no entanto só produz uma piora na qualidade
da vida. Literalmente: não há mais nada a fazer. Então não
façamos nada.
É difícil que o organismo coletivo se recupere desse
choque psicótico-viral e que a economia capitalista, agora
reduzida a um estagnação irremediável, retome seu ca-
minho glorioso. Podemos nos afundar no inferno de uma
detenção tecno-militar de que só a Amazon e o Pentágono
tem as chaves. Ou bem podemos esquecer a dívida, o cré-
dito, o dinheiro e a acumulaçao.
O que a vontade política não tem conseguido fazer po-
deria ser feito pela potência mutante do vírus. Mas essa
fuga deve ser preparada imaginando o possível, agora que
o imprevisível tem rasgado a tela do inevitável.

5 de Março
Manifestam-se os primeiros sinais do desmoronamento
do sistema das Bolsas e da economia, os especialistas em
temas econômicos observam que dessa vez, a diferença
de 2008, as intervenções dos bancos centrais e outros or-
ganismos financeiros não serão de muita utilidade.
Pela primeira vez, a crise não surge de fatores finan-
ceiros nem sequer de fatores estritamente econômicos, do
jogo da oferta e demanda. A crise provém do corpo.

Franco “Bifo” Berardi | 44


É o corpo que decidiu diminuir o ritmo. A desmobili-
zação geral do conoravirus é um sintoma da estagnação,
inclusive antes de ser a causa da mesma.
Quando falo do corpo faço referência à função biológica
como um todo, me refiro ao corpo físico que fica doente,
ainda seja de um modo bastante leve - mas também e so-
bretudo me refiro à mente, que por motivos que não tem
nada a ver com o raciocínio, com a crítica, com a vontade,
com a decisão política, tem ingressado numa fase de pas-
sividade profunda.
Cansada de processar sinais complexos demais, depri-
mida depois da excessiva superexcitação, humilhada pela
impotência das suas decisões frente a onipotência do au-
tômato tecnofinanceiro, a mente tem diminuído a tensão.
Não é que a mente tem decidido alguma coisa: é a queda
repentina da tensão que decide por todos. Psicodeflação.

6 de Março
Naturalmente, pode se argumentar exatamente o contrário
do que eu disse: o neoliberalismo, no seu matrimônio com o
etnonacionalismo, deve dar um pulo no processo de abstra-
ção total da vida. Eis, então, o vírus que obriga todos a ficar
em casa, mas não bloqueia a circulação das mercadorias.
Estamos no limiar de uma forma tecnototalitaria na qual os
corpos serão distribuidos, controlados, distanciados.
No Internazionale se publica uma matéria de Srecko
Horvat (tradução de New Statesman).

45 | Crônica da psicodeflação
Segundo Horvat, “o coronavirus não é uma ameaça
para a economia neoliberal, mas, ao contrário, cria o con-
texto perfeito para essa ideologia. Mas, do ponto de vista
político o vírus é um perigo, porque uma crise sanitária po-
deria favorecer ao objetivo etnonacionalista de reforçar as
fronteiras e desafiar a exclusividade racial, de interromper
a livre circulação das pessoas (especialmente se elas vêm
de países em desenvolvimento) sem deixar de garantir
uma circulação de bens e capitais sem controle.
“O medo de uma pandemia é mais perigoso do que o
próprio vírus. As imagens apocalípticas nas mídias ocul-
tam um vínculo profundo entre a extrema direita e a eco-
nomia capitalista. Como um vírus que precisa de uma cé-
lula viva para se reproduzir, o capitalismo também vai se
adaptar à nova biopolítica do século XXI”.
“O novo coronavirus já tem impactado a economia glo-
bal, mas não impedirá a circulação e a acumulaçao do ca-
pital. Se for o caso, logo nascerá uma forma mais perigosa
de capitalismo, que contará com um maior controle e uma
maior purificação das populações”.
Naturalmente, a hipótese formulada por Horvat é realista.
Mais eu acho que essa hipóteses mais realista não se-
ria realista, porque subestima a dimensão subjetiva do co-
lapso e os efeitos a longo prazo da deflação psíquica sobre
a estagnação econômica.
O capitalismo conseguiu sobreviver ao colapso finan-
ceiro de 2008 porque as condições do colapso foram todas

Franco “Bifo” Berardi | 46


internas à dimensão abstrata da relação entre linguagem,
finanças e economia. Não poderá sobreviver ao colapso da
epidemia porque aqui há um fator extrasistêmico.

7 de Março
Meu amigo matemático, Alex, me escreve: “Todos os recur-
sos superinformaticos estão comprometidos para achar o
antídoto ao corona. Esta noite sonhei com a batalha final
entre o biovirus e os vírus simulados. Em todo caso, o hu-
mano já está fora, eu acho”.
A rede mundial informática está procurando a fórmula
capaz de enfrentar o infovírus contra o biovirus. É preciso
decodificar, simular matematicamente, construir tecnica-
mente o corona-killer, para difundi-lo depois.
Enquanto isso, a energia se retira do corpo social, e a
política mostra sua importância constitutiva. A política
cada vez mais é o lugar do poder, porque a vontade não
tem controle sobre o infovirus. O biovirus prolifera no
corpo estressado da humanidade global. Parece que os
pulmões são o ponto mais fraco. As doenças respirató-
rias tem se propagado durante anos proporcionalmente
à propagação de substâncias irrespiráveis na atmosfe-
ra. Mais o colapso acontece quando, ao se encontrar com
o sistema midiático, entrelaçar-se com a rede semióti-
ca, o biovirus tem transferida sua potência debilitante
ao sistema nervoso, ao cérebro coletivo, obrigando-o a
abrandar seus ritmos.

47 | Crônica da psicodeflação
8 de Março
Durante a noite, o Primeiro Ministro Conte comunica a de-
cisão de pôr em quarentena um quarto da população ita-
liana. Piacenza, Parma, Reggio e Modena estão em qua-
rentena. Bolonha não. Por enquanto.
Nos últimos dias falei com Fabio, falei com Lucía, e tí-
nhamos decidido nos reunir esta noite para jantar. Faze-
mos isso de vez em quando, nos encontramos em algum
restaurante ou na casa do Fabio. São jantares um pouco
tristes ainda se não o expressamos, porque os três sabe-
mos que é o resíduo artificial do que antes acontecia de
um jeito completamente natural várias vezes na semana,
quando nos reuniamos com nossa mãe.
Esse hábito da nossa mãe de nos encontrar para almo-
çar (ou, mais raramente, para jantar) tinha permanecido,
apesar de todos os eventos, os movimentos, as mudanças,
depois da morte do pai: nos encontrávamos para almoçar
com mamãe toda vez que que fosse possível.
Quando minha mãe se viu incapaz de preparar o almo-
ço, esse hábito terminou. E pouco a pouco, a relação entre
nós três tem mudado. Até então, apesar de ter sessen-
ta anos, tínhamos continuado nos vendo quase todos os
dias de um modo natural, tínhamos continuado a ocupar
o mesmo lugar na mesa que ocupavamos quando tínha-
mos dez anos. Ao redor da mesa aconteciam os mesmos
rituais. Mamãe sentava junto ao aquecedor porque isto lhe
permitia continuar tomando conta da cozinha enquanto

Franco “Bifo” Berardi | 48


comia. Lucía e eu falávamos de política, mais ou menos
como há cinquenta anos atrás, quando ela era maoísta e
eu obreirista.
Esse hábito acabou quando minha mãe entrou numa
agonia longa.
Desde então temos que nos organizar para jantar. Às
vezes vamos num restaurante asiático embaixo da serra,
perto do teleférico no caminho que leva a Casalecchio, às
vezes vamos para o apartamento do Fabio, no sétimo an-
dar de um prédio popular atravessando uma ponte longa,
entre Casteldebole e Borgo Panigale. Desde a janela pode-
mos ver os prados que contornam o rio, e lá longe se vê o
cerrado São Luca e na esquerda se vê a cidade.
Então, nos últimos dias tínhamos decidido nos ver essa
noite para jantar. Eu tinha que levar o queijo e o sorvete,
Cristina, a mulher do Fabio, tinha cozinhado lasagna.
Tudo mudou hoje de manhã, e pela primeira vez - agora
percebo - o coronavirus entrou na nossa vida, não como
um objeto de reflexão filosófica, política, médica e psica-
nalítica, senão como um perigo pessoal.
Primeiro foi uma ligação da Tania, a filha da Lucía, que
faz um tempo mora em Sasso Marconi com Rita.
Tania me ligou para falar: ouvi dizer que você, mamãe
e Fabio querem jantar juntos, nao faz isso. Estou em qua-
rentena porque uma das minhas alunas (Tania da aulas
de yoga) é médica em Sant’Orsola e alguns dias atrás o
exame lhe deu positivo. Tenho um pouco de bronquite, mo-

49 | Crônica da psicodeflação
tivo pelo qual decidiram me fazer uma análise também,
e enquanto aguardo nao posso sair de casa. Eu respondi
de um jeito cético, mas ela foi implacável e me falou algo
bastante impressionante, que eu ainda nao tinha pensado.
Me falou que a taxa de transmissão de uma gripe
normal é de zero ponto vinte um, enquanto a taxa de
transmissão do coronavirus é de zero ponto oitenta.
Para ser claros: no caso de uma gripe normal, tem que
se encontrar com quinhentas pessoas para pegar o ví-
rus, mas no caso do corona basta que se encontre com
cento e vinte. Interessante.
Logo, ela, que parece estar informadíssima porque foi
fazer o exame e portanto falou com os que estão na linha
da frente do contágio, me disse que a média de idade dos
mortos é de oitenta e um anos.
Bom, eu já suspeitava disso, mas agora eu sei. O coro-
navirus mata velhos, em particular mata velhos asmáticos
(que nem eu).
Na sua última comunicação, Giuseppe Conte, que eu
acho que é uma boa pessoa, um presidente quase por ca-
sualidade que nunca deixou de parecer alguém que pouco
tem a ver com a política, falou: “pensemos na saúde dos
nossos avós”. Comovedor, já que me encontro no incômodo
papel do avô a ser protegido.
Tendo abandonado o ceticismo, agradeci a Tania e falei
que seguiria suas recomendações. Liguei para Lucía, fala-
mos um pouco e decidimos postergar o jantar.

Franco “Bifo” Berardi | 50


Percebi que estou num clássico impasse batesoniano.
Se nao ligo para cancelar o jantar, me boto na posição de
ser um hóspede físico, de poder ser um portador de um ví-
rus que poderia matar meu irmão. Se, pelo contrário, ligo,
como estou fazendo, para cancelar o jantar, me coloco na
posição de ser um hóspede psíquico, ou seja, de propagar
o vírus do medo, o vírus do isolamento.
E essa história, vai durar muito tempo?

9 de Março
O problema mais grave é a sobrecarga a que está subme-
tido o sistema de saúde: as unidades de terapia intensiva
estão à beira do colapso. Existe o perigo de não poder curar
a todos os que precisam de uma intervenção urgente, fala-
se da possibilidade de escolher entre pacientes que podem
ser curados e pacientes que não podem ser curados.
Nos últimos dez anos, cortaram 37 bilhões do sistema
de saúde pública, reduziram-se as unidades de cuidados
intensivos e o número de médicos gerais diminuiu dras-
ticamente. Segundo o site quotidianosanità.it, “em 2007
o Serviço Sanitário Nacional Público tinha 334 Departa-
mentos de emergência-urgência (Dea) e 530 de pronto
socorro. Eis que, dez anos mais tarde a dieta tem sido
drástica: 49 Dea foram fechados (-14%) e 166 pronto so-
corro já não existem (-22%). Mas o recorte mais evidente
é nas ambulâncias, tanto para as do Tipo A (emergência)
quanto as do Tipo B (transporte sanitário). Em 2017, as

51 | Crônica da psicodeflação
do Tipo A foram reduzidas em 4% comparando com dez
anos atrás, enquanto as do Tipo B foram reduzidas pela
metade (-52%). Devemos considerar também como tem
diminuído drasticamente as ambulâncias com médicos a
bordo: em 2007, o médico estava presente em 22% dos
veículos, enquanto em 2017 só em 14,7%. As unidades
móveis de reanimação também foram reduzidas em 37%
(eram 329 em 2007, e 205 em 2017). O ajuste tem afeta-
do também as residências privadas para idosos, que de
qualquer jeito tem bem menos estrutura e ambulâncias
que os hospitais públicos.
“A partir dos dados pode se perceber como tem ha-
vido uma contração progressiva no número de leitos em
escala nacional, muito mais evidente e relevante no nú-
mero de leitos públicos comparado com a proporção de
leitos administrados pela iniciativa privada: o recorte do
total de 32.717 leitos remete principalmente ao servi-
ço público, com 28.832 leitos a menos do que em 2010
(-16%) comparado com 4.335 leitos a menos no serviço
privado (-6,3%)”.

10 de Março
“Somos ondas do mesmo mar, folhas da mesma árvore,
flores do mesmo jardim”.
Isto vem escrito nas dezenas de caixas de máscaras
que chegam da China. As mesmas máscaras que a Europa
tem nos rejeitado.

Franco “Bifo” Berardi | 52


11 de Março
Nao fui na via Mascarella, como geralmente faço o 11 de
março de cada ano. Nos reencontramos frente a lápide que
comemora a morte do Francesco Larusso, alguém pronun-
cia um discurso breve, deposita-se a coroa de flores ou uma
bandeira de Lotta Continua que alguém tiver guardado no
porão, e nos abraçamos, nos beijamos e abraçamos forte.
Dessa vez não tinha vontade de ir, porque não gostaria
de dizer para nenhum de meus velhos companheiros que
não podemos nos abraçar.
Chegam fotos de pessoas celebrando em Wuhan, todos
estritamente com a máscara verde. O último paciente com
coronavírus que teve alta nos hospitais rapidamente cons-
truídos para conter a doença.
No hospital de Huoshenshan, a primeira parada da sua vi-
sita, Xi elogiou médicos e enfermeiras chamando-os de “os
anjos mais belos” e “os mensageiros da luz e da esperança”.
Os trabalhadores da saúde na primeira linha tem assumido as
missões mais duras, disse Xi, chamando-os “as pessoas mais
admiráveis da nova era, merecedores dos maiores elogios”.
Ingressamos oficialmente na era biopolítica, onde os
presidentes não podem fazer nada, e só os médicos po-
dem fazer algo, mas não tudo.

12 de Março
Itália. O país todo entra em quarentena. O vírus corre mais
rápido do que as medidas de contenção.

53 | Crônica da psicodeflação
Billi e eu botamos a máscara, pegamos a bicicleta e va-
mos às compras. Só as farmácias e os mercados de alimen-
tos podem permanecer abertos. E também as bancas, com-
pramos os jornais. E as tabaqueiras. Compro papel de seda,
mas o haxixe na sua caixa de madeira está escasso. Logo
ficarei sem drogas, e na Piazza Verdi ja nao tem nenhum
dos garotos africanos que vendem para os estudantes.
Trump usou a expressão “foreign virus” (vírus
estrangeiro).
All viruses are foreign by definition, but the President
has not read William Burroughs (Todos os vírus são por
definição estrangeiros, mas o Presidente não leu William
Burroughs).

13 de Março
No Facebook tem um cara engenhoso que publicou no meu
perfil a frase: “Ola Bifo, aboliram o trabalho”.
Na realidade, o trabalho é abolido só para uns poucos.
Os operários das indústrias estão no pé de guerra porque
tem que ir para a fábrica como sempre, sem máscara ou
outras proteções, a meio metro de distância um do outro.
O colapso, logo as férias longas. Ninguém pode dizer
como sairemos desta.
Poderíamos sair, como alguém predisse, sob as condi-
ções de um estado tecno-totalitário perfeito. No livro Black
Earth, Timothy Snyder explica que não há melhor condição
para a formação de regimes totalitários do que situações

Franco “Bifo” Berardi | 54


de emergência extrema, onde a sobrevivência de todos
está em risco.
O SIDA criou a condição para uma diminuição do con-
tato físico e para o lançamento de plataformas de comuni-
cação sem contato: a Internet foi preparada pela mutação
psíquica denominada SIDA.
Agora poderíamos simplesmente passar para uma con-
dição de isolamento permanente dos indivíduos, e a nova
geração poderia internalizar o terror pelo corpo dos outros.
Porque o terror?
O terror é uma condição onde o imaginário domina
completamente a imaginação. O imaginário é a energia
fóssil da mente coletiva, imagens que a experiência tem
depositado nela, a limitação do imaginável. A imaginação
é a energia renovável e sem juízo. Não é utopia, senão re-
combinação dos possíveis.
Existe uma divergência no tempo que está por vir: po-
deríamos sair desta situação imaginando uma possibilida-
de que anteontem era impensável: redistribuição da ren-
da, redução do tempo de trabalho. Igualdade, frugalidade,
abandono do paradigma de crescimento, investimento de
energias sociais em pesquisa, em educação, em saúde.
Não podemos saber como sairemos da pandemia
quando suas condições foram criadas pelo neoliberalis-
mo, pelos cortes na saúde pública, pela superexploração
nervosa. Poderíamos sair dela definitivamente sozinhos,
agressivos, competitivos.

55 | Crônica da psicodeflação
Mas, ao contrário, poderíamos sair dela com um grande
desejo de abraçar: solidariedade social, contato, igualdade.
O vírus é a condição de um pulo mental que nenhum
discurso político teria como produzir. A igualdade tem
voltado ao centro da cena. Imaginemo-la como o ponto de
partida para o tempo que virá.

Franco “Bifo” Berardi | 56


O coronavirus como declaração de guerra

Por Santiago López Petit*

Publicado em elcritic.cat
18 de março, 2020
Tradução: Caro Pierro

Pela manhã lavo as mãos com consciência. Assim con-


sigo esquecer os olhos arrancados pela polícia do Chile,
França e Iraque. Antes de almoçar, volto a lavar minhas
mãos com um desinfetante bom para esquecer os mi-
grantes amontoados em Lesbos. E, à noite, lavo as mãos
novamente para esquecer que, em Yemen, a cada dez

[*] Santiago López Petit (Barcelona, 1950) é um químico e filósofo espanhol.


Licenciado em química, durante os anos 1960 trabalhou numa empresa
de vidro, recuperada pelos mesmo trabalhadores, ao mesmo tempo que
militava em setores do movimento autônomo. Depois do fracasso do
movimento dedicou-se à filosofia crítica, sendo influenciado tanto pelos
pós-estruturalistas franceses quanto pelos marxistas italianos. Trabalhou
como professor de filosofia contemporânea na Universidade de Barcelona e
tem apoiado iniciativas como Espai en blanc (Espaço em branco) ou dinheiro
grátis e o arquivo digital da autonomia obrera. De 1975 até 1977 participou
do Coletivo de Estudos pela Autonomia Obrera. Nas suas obras filosóficas
faz uma crítica radical ao presente, e tem apoiado o movimento 15 de Maio.

57 | O coronavirus como declaração de guerra


minutos morre uma criança por causa dos bombardeios
e da fome. Assim consigo dormir. O que acontece é que
não lembro porque lavo minhas mãos com tanta frequ-
ência nem quando comecei a fazê-lo. O rádio e a televi-
são insistem em que é uma medida de autoproteção. Me
protegendo, protejo os outros. Pela janela entra o silên-
cio da rua deserta. Tudo aquilo que parecia impossível e
inimaginável de acontecer nestes momentos. Escolas fe-
chadas, proibição de sair de casa sem motivo justificado,
países inteiros isolados. A vida cotidiana tem explodido
pelo ar e agora só temos o tempo da espera. Foi bonito
ouvir, ontem à noite, os aplausos que as pessoas dedica-
vam desde suas varandas ao pessoal da saúde.
Permanecemos encerrados no interior de uma grande
ficção com o objetivo de salvar nossas vidas. Chama-se de
“mobilização total” mas, paradoxalmente, tem o formato
de um confinamento extremo. A maior contribuição que
podemos fazer é esta: não se reúnam, não criem caos,
afirmou um dirigente importante do Partido Comunista
chinês. E um moço que ontem vigiava Igualada (Barcelona),
falou: lembra que, se entrar na cidade, já não poderá voltar
a sair, enquanto comentava para um companheiro: o medo
consegue o que ninguém mais consegue. Mas as pessoas
morrem, certo? Sim, claro. Acontece que a naturalização
atual da morte anula o pensamento crítico. Alguns ingênu-
os até acreditam nesse “nós” invocado pelo mesmo poder
que declara o estado de alarma: juntos combatemos o ví-

Santiago López Petit | 58


rus. Mas só vão trabalhar e se expõem no metrô aqueles
que precisam do dinheiro com urgência.
Cada sociedade tem suas próprias doenças, e estas do-
enças falam muito sobre cada sociedade. Conhece-se muito
bem a ligação entre a agroindústria capitalista e a etiolo-
gia das epidemias recentes: o capitalismo fora de contro-
le produz o vírus que mais tarde ele mesmo reutiliza para
nos controlar. Os efeitos colaterais (despolitização, rees-
truturação, demissões, mortes, etc.) são essenciais para
impor um estado de excepção normalizado. O capitalismo
é assassino, e esta afirmação não é consequência de ne-
nhuma afirmação conspiratória. É simplesmente sua lógica
de funcionamento. Drones e controles policiais nas ruas. A
linguagem militarizada lembra a dos manuais da contrain-
surgência: na guerra moderna é difícil definir o inimigo. O
limite entre amigos e inimigos fica no interior da própria
nação, numa mesma cidade, e às vezes dentro da mesma
família (Biblioteca do Exército de Colombia, Bogotá, 1963).
Lembrem: a melhor vacina é um mesmo. Esta coincidência
não é estranha porque a mobilização total é sobretudo uma
guerra, e a melhor guerra é aquela em nome da vida, por-
que permanece invisível. Eis aqui o engano.
Se a mobilização se desdobra como uma guerra contra
a população é porque seu único objetivo consiste em sal-
var o algoritmo da vida, o que, damos por conta, nada tem
a ver com nossas vidas pessoais e irredutíveis, que pouco
importam. A mão invisível do mercado colocava cada coisa

59 | O coronavirus como declaração de guerra


no seu lugar: estabeleceu recursos, determinava preços e
benefícios. Humilhava. Assim é a Vida, mas a Vida enten-
dida como um algoritmo formado por sequências ordena-
das de passos lógicos, a que se encarrega de organizar
a sociedade. As habilidades necessárias para trabalhar,
aprender e ser um bom cidadão tem se unificado. Este é
o autêntico confinamento onde estamos reclusos. Somos
terminais do algoritmo da Vida que organiza o mundo. Este
confinamento permite o Grande Confinamento das popu-
lações, que já acontece na China, Itália, etc. e que, pouco
a pouco, se converterá numa prática habitual como causa
de uma natureza incontrolável. O Governo se reestatiza e
a decisão política volta a ocupar o primeiro plano. O neo-
liberalismo veste descaradamente o vestido do Estado de
guerra. O capital tem medo. A incerteza e a insegurança
impugnam a necessidade do mesmo Estado. A vida escura
e paroxística, aquilo incalculável na sua ambivalência, es-
capa ao algoritmo.

Santiago López Petit | 60


O capitalismo tem seus limites

Por Judith Butler*

Publicado em versobooks.com
19 de março, 2020
Tradução: Artur Renzo para o Blog Boitempo

O imperativo de isolamento coincide com um novo reconhe-


cimento de nossa interdependência global no novo tempo e
espaço da pandemia. Por um lado, somos solicitados a nos
recolhermos em unidades familiares, espaços compartilha-
dos de moradia, ou domicílios individuais, privados de con-
tato social e relegados a esferas de relativo isolamento. Por
outro lado, estamos diante de um vírus que transpõe tran-

[*] Judith Butler (EEUU, 1956) Judith Butler (EEUU, 1956) é uma filósofa
pós-estruturalista norteamericana, que tem feito importantes aportes
na cena feminista, a teoria queer, a filosofia política e a ética. Autora
de Problemas de gênero. Feminismo e subversão da identidade (1990)
e Corpos que importam. O limite discursivo do sexo (1993), e traduzida
em 20 idiomas, ambos livros descrevem o que hoje conhecemos como a
teoria queer. Outros trabalhos de Butler abordam problemas relevantes
para disciplinas acadêmicas como filosofia, direito, sociologia, ciências
políticas, cinema e literatura.

61 | O capitalismo tem seus limites


quilamente as fronteiras, completamente alheio à própria
ideia de território nacional.
Quais são as consequências dessa pandemia no que
diz respeito à reflexão sobre igualdade, interdependência
global e nossas obrigações uns com os outros? O vírus
não discrimina. Poderíamos dizer que ele nos trata com
igualdade, nos colocando igualmente diante do risco de
adoecer, perder alguém próximo e de viver em um mundo
marcado por uma ameaça iminente. Por conta da forma
pela qual ele se move e ataca, o vírus demonstra que a
comunidade humana é igualmente precária. Ao mesmo
tempo, contudo, o fracasso por parte de certos Estados ou
regiões em se prepararem adequadamente de antemão
(os EUA talvez sejam agora o membro mais notório desse
clube), o fortalecimento de políticas nacionais e o fecha-
mento de fronteiras (atitude muitas vezes acompanhada
de xenofobia panicada), e a chegada de empreendedores
ávidos para capitalizar em cima do sofrimento global, tudo
isso atesta a velocidade com a qual a desigualdade radical
– o que inclui nacionalismo, supremacia branca, violência
contra as mulheres e contra as populações queer e trans –
e a exploração capitalista encontram formas de reproduzir
e fortalecer seus poderes no interior das zonas de pande-
mia. Isso não deve ser surpresa nenhuma.
A política do atendimento de saúde nos EUA traz isso
à tona de maneira particular. Um cenário que já podemos
imaginar é a produção e comercialização de uma vacina

Judith Butler | 62
eficaz contra a COVID-19. Claramente ávido para marcar
pontos políticos que poderão garantir sua reeleição, Trump
já tentou comprar (com dinheiro) direitos exclusivos para
os EUA de uma vacina de uma empresa alemã, a CureVac,
financiada pelo governo alemão. O Ministro Alemão de
Saúde, que certamente não deve ter ficado nada conten-
te, confirmou à imprensa alemã que a oferta foi de fato
feita. Um político alemão, Karl Lauterbach, comentou: “A
venda exclusiva aos EUA de uma possível vacina precisa
ser evitada a todo custo. Capitalismo tem limites.” Supo-
nho que ele estava questionando o “uso exclusivo” e não
ficaria nem um pouco mais satisfeito com a mesma pro-
visão caso ela se aplicasse exclusivamente aos alemães.
Assim esperemos, porque podemos imaginar um mundo
no qual vidas europeias são valorizadas acima de todas
as outras – vemos esse tipo de valoração se desenrolando
violentamente nas fronteiras da União Europeia.
Não faz sentido recolocar a questão, o que Trump estava
pensando? A questão foi levantada tantas vezes em um es-
tado de completa exasperação que não podemos nem ficar
surpresos. Isso não significa que nossa raiva diminui com
cada nova instância de auto-engrandecimento antiético ou
criminoso. Se ele tivesse êxito no seu esforço de comprar
uma potencial vacina e restringir seu uso apenas aos cida-
dãos estadunidenses, será que ele acredita que esses ci-
dadãos aplaudiriam seus esforços, extasiados com a ideia
de estarem livres de uma ameaça mortífera quando outros

63 | O capitalismo tem seus limites


povos não estão? Será que eles realmente adorariam esse
grau de desigualdade social radical, de excepcionalismo
americano, e validariam sua forma “brilhante” (a palavra é
dele) de fechar um negócio? Será que ele imagina que boa
parte das pessoas pensa que é o mercado que deve decidir
como a vacina será desenvolvida e distribuída? Seria se-
quer concebível no interior do mundo dele insistir em uma
preocupação mundial de saúde que deveria transcender a
racionalidade do mercado numa hora destas? Ele está certo
em supor que nós também vivemos no interior dos parâme-
tros de um mundo imaginado desses?
Mesmo se tais restrições com base em cidadania nacio-
nal não se aplicarem, nós certamente veremos os ricos e
os plenamente assegurados correrem para garantir acesso
a qualquer vacina dessas quando ela se tornar disponível,
mesmo que o modo de distribuição só garanta que apenas
alguns terão esse acesso e outros serão abandonados a
uma precariedade continuada e intensificada. A desigualda-
de social e econômica garantirá a discriminação do vírus. O
vírus por si só não discrimina, mas nós humanos certamen-
te o fazemos, moldados e movidos como somos pelos pode-
res casados do nacionalismo, do racismo, da xenofobia e do
capitalismo. Parece provável que passaremos a ver no pró-
ximo ano um cenário doloroso no qual algumas criaturas
humanas afirmam seu direito de viver ao custo de outras,
reinscrevendo a distinção espúria entre vidas passíveis e
não passíveis de luto, isto é, entre aqueles que devem ser

Judith Butler | 64
protegidos contra a morte a qualquer custo e aqueles cujas
vidas são consideradas não valerem o bastante para serem
salvaguardadas contra a doença e a morte.
Tudo isso ocorre sob o pano de fundo da disputa presi-
dencial estadunidense na qual as chances de Bernie San-
ders emplacar a nomeação do Partido Democrata parecem
agora ser muito remotas, embora não sejam estatistica-
mente impossíveis. As novas projeções que colocam Joe
Biden claramente como o candidato favorito são devasta-
doras nestes tempos precisamente porque tanto Sanders
quanto Elizabeth Warren defendiam a pauta do “Medicare
for All”, um programa abrangente de saúde pública que ga-
rantiria atendimento básico de saúde para todas as pessoas
no país. Tal programa acabaria com as empresas de plano
de saúde organizadas em função do mercado que regular-
mente abandonam pessoas doentes, exigem delas despe-
sas médicas adicionais literalmente impagáveis, e perpetu-
am uma hierarquia brutal entre as pessoas asseguradas, as
não-asseguradas e as inasseguráveis.
A abordagem socialista de Sanders diante da saúde pú-
blica pode ser descrita mais apropriadamente como uma
perspectiva social democrata, não substancialmente dife-
rente daquela que Elizabeth Warren apresentou nas fases
iniciais de sua campanha. No entender dele, a cobertura mé-
dica constitui um “direito humano”, e com isso ele quer di-
zer que todo ser humano tem direito ao tipo de atendimento
de saúde que ele precisar. Mas por que não compreendê-la

65 | O capitalismo tem seus limites


como uma obrigação social, que decorre de viver em socie-
dade com os outros? Para mobilizar o consenso popular em
torno de uma noção dessas, tanto Sanders quanto Warren
teriam que convencer o povo americano de que queremos
viver em um mundo no qual nenhum de nós recusa atendi-
mento de saúde a nenhum dos outros. Em outras palavras,
teríamos que estar de acordo quanto a um mundo social e
econômico no qual é radicalmente inaceitável que alguns
tenham acesso a uma vacina que pode salvar suas vidas
enquanto a outros é negado esse acesso com base no fato
de não terem condições de pagar ou de garantir o plano de
saúde capaz de bancar isso.
Um dos motivos pelos quais votei em Sanders na pri-
mária de Califórnia, junto com a maioria dos Democratas
lá registrados é que ele, junto com Warren, abriram uma
forma de reimaginar nosso mundo como se ele fosse or-
ganizado por um desejo coletivo por igualdade radical,
um mundo no qual nós nos unimos a fim de insistir que
os materiais exigidos para a vida, incluindo o cuidado mé-
dico, seriam igualmente disponíveis independentemente
de quem somos ou se dispomos dos meios financeiros
para tanto. Essa política teria estabelecido solidariedade
com outros países comprometidos com a saúde pública
universal, e teria assim estabelecido uma política trans-
nacional de atendimento médico comprometida com a
realização dos ideais da igualdade. As novas pesquisas
eleitorais que agora restringem a escolha nacional en-

Judith Butler | 66
tre Trump e Biden surgem precisamente no momento em
que a pandemia paralisa a vida cotidiana, intensificando
a precariedade dos sem-teto, dos não-assegurados e dos
pobres. A ideia de que talvez pudéssemos nos tornar um
povo que deseja ver um mundo no qual a política de saú-
de seja igualmente comprometida com todas as vidas,
com o desmantelamento do domínio do mercado sobre o
atendimento médico, que distingue entre quem é digno e
quem pode ser facilmente abandonado à doença e à mor-
te – por um breve momento essa ideia esteve viva. Pas-
samos a entender a nós mesmos de maneira diferente à
medida que Sanders e Warren apresentavam essa outra
possibilidade. Compreendemos que talvez fosse possível
começarmos a pensar e atribuir valor para além dos ter-
mos que o capitalismo nos apresenta.
Mesmo que Warren não seja mais candidata, e que San-
ders dificilmente recupere seu embalo eleitoral, devemos
ainda nos perguntar, especialmente agora, por que nós
como um povo ainda nos opomos à ideia de tratar todas as
vidas como se elas tivessem o mesmo valor? Por que alguns
ainda se entusiasmam com a ideia de que Trump buscaria
garantir uma vacina que protegeria as vidas americanas
(como ele as define) antes de todas as demais? A proposta
de uma saúde pública e universal revigorou um imaginá-
rio socialista nos EUA – um imaginário que agora precisa
esperar para poder se realizar como uma política social e
como compromisso público neste país. Infelizmente, na era

67 | O capitalismo tem seus limites


da pandemia, nenhum de nós pode esperar. É preciso agora
que se mantenha vivo esse ideal nos movimentos sociais
ancorados menos na campanha presidencial do que na luta
de longo prazo que temos pela frente. Essas visões corajo-
sas e apaixonadas, ridicularizadas e rejeitadas por “realis-
tas” capitalistas, já tiveram destaque suficiente na mídia, já
mobilizaram atenção o bastante, para deixar cada vez mais
pessoas – algumas pela primeira vez – desejando um mun-
do transformado.
Com sorte, conseguiremos manter vivo esse desejo.

Judith Butler | 68
Sobre a situação epidêmica

Por Alain Badiou*

Publicado originalmente em francês no Quartier Général


21 de março, 2020
A tradução, feita a partir da versão em inglês publicada
no Blog da Verso, é de Daniel Alves Teixeira, para o
Lavra Palavra

Desde o início, pensei que a situação atual, caracteriza-


da por uma pandemia viral, não era particularmente ex-
cepcional. Desde a pandemia (viral) da AIDS e passando
pela gripe aviária, o vírus Ebola e o vírus SARS 1 – sem
mencionar várias gripes, o aparecimento de cepas de
tuberculose que os antibióticos não podem mais curar,
[*] Alain Badiou (Rabat, protetorado francês de Marrocos, 1937) é um
filósofo, dramaturgo e romancista francês. Estudou filosofia na École
Normale Supérieure de Paris de 1956 até 961. Ensinou na Universidade
de Paris VIII e no ENS de 1969 até 1999, quando foi nomeado diretor do
departamento de filosofia. Badiou também ministra cursos no Collège
international de philosophie. Foi discípulo de Louis Althusser, influenciado
por seus primeiros trabalhos epistemológicos. Ele é considerado, junto
com seu contemporâneo Jacques Rancière, um dos filósofos franceses
mais importantes da atualidade.

69 | Sobre a situação epidêmica


ou mesmo o retorno do sarampo – nós sabemos que o
mercado mundial, combinado com a existência de vas-
tas zonas submedicadas e a falta de disciplina global em
relação às vacinas necessárias, produz inevitavelmente
epidemias graves e devastadoras (no caso da AIDS, vá-
rios milhões de mortes). Além do fato de que a atual si-
tuação de pandemia está tendo um enorme impacto no
antes confortável mundo ocidental – um fato em si mes-
mo desprovido de qualquer significado novo, provocan-
do antes lamentos duvidosos e revoltas idiotas – não vi
porque, além das medidas de proteção óbvias e do tempo
que o vírus levaria para desaparecer na ausência de no-
vos alvos, era necessário subir no cavalo alto.
Além disso, o verdadeiro nome da epidemia em anda-
mento deve sugerir que, em certo sentido, estamos lidan-
do com um “nada de novo sob o sol contemporâneo”. Esse
nome verdadeiro é SARS 2, que é ‘Síndrome Respiratória
Aguda Grave 2’, um nome que sinaliza a “segunda vez”
dessa identificação, após a epidemia de SARS 1, que se es-
palhou pelo mundo na primavera de 2003. Na época, ela foi
chamada “a primeira doença desconhecida do século XXI”.
É claro então que a epidemia atual não é de forma alguma
o surgimento de algo radicalmente novo ou sem preceden-
tes. É a segunda deste tipo neste século e pode ser situada
como a primeira descendente. Tanto é assim que a única
crítica séria que hoje pode ser dirigida às autoridades em
questão de previsão é não ter financiado, após a SARS 1, a

Alain Badiu | 70
pesquisa que teria disponibilizado ao mundo da medicina
instrumentos genuínos de ação contra a SARS 2.
Portanto, não achei que houvesse algo a ser feito além
de tentar, como todo mundo, me isolar em casa, e nada a ser
dito além de incentivar todos os demais a fazer o mesmo. A
adesão a uma disciplina rigorosa nesse ponto é ainda mais
necessária pois fornece suporte e proteção fundamental para
todos aqueles que estão mais expostos: toda a equipe médica,
é claro, que está diretamente na frente e que deve poder con-
fiar em uma disciplina firme, inclusive por parte dos infecta-
dos; mas também todos os mais frágeis, como os idosos, es-
pecialmente aqueles em casas de repouso; assim como todos
aqueles que precisam trabalhar e correr o risco de contágio. A
disciplina daqueles que podem obedecer ao imperativo “ficar
em casa” também deve encontrar e propor meios para aque-
les que quase não têm ‘casa’ ou mesmo coisa alguma, para
que possam encontrar um abrigo seguro. Pode-se imaginar,
neste caso, uma requisição geral dos hotéis.
É verdade que esses deveres são cada vez mais urgen-
tes, mas, pelo menos no exame inicial, eles não exigem
grandes esforços analíticos ou a constituição de uma nova
maneira de pensar.
Mas estou lendo e ouvindo tantas coisas, inclusive em
meus círculos imediatos, que me desconcertam tanto pela
confusão que elas manifestam como por sua total inade-
quação à situação – em última análise, simples – em que
nos encontramos.

71 | Sobre a situação epidêmica


Essas declarações peremptórias, apelos patéticos e
acusações enfáticas assumem formas diferentes, mas
todos compartilham um curioso desprezo pela formi-
dável simplicidade e ausência de novidade da atual
situação epidêmica. Alguns são desnecessariamente
servis diante dos poderes existentes, que na verdade
estão simplesmente fazendo o que são obrigados pela
natureza do fenômeno. Outros invocam o planeta e sua
mística, o que não ajuda em nada. Alguns colocam toda
a culpa no infeliz Macron, que simplesmente está fazen-
do, e não pior do que outro, seu trabalho como chefe de
Estado em tempos de guerra ou epidemia. Outros fazem
tom e choram por um evento fundador de uma revolu-
ção sem precedentes, cuja relação com o extermínio de
um vírus permanece opaca – algo pelo qual nossos ‘re-
volucionários’ não estão propondo nenhum novo meio.
Alguns afundam no pessimismo apocalíptico. Outros
estão frustrados porque o “eu primeiro”, a regra de ouro
da ideologia contemporânea, neste caso é desprovida
de interesse, não fornece socorro e pode até parecer
cúmplice de um prolongamento indefinido do mal.
Parece que o desafio da epidemia está em toda
parte dissipando a atividade intrínseca da Razão,
obrigando os sujeitos a voltar a esses tristes efeitos
– misticismo, fabulação, oração, profecia e maldição
– que eram comuns na Idade Média quando a praga
varria a terra.

Alain Badiu | 72
Como resultado, me sinto um pouco compelido a reu-
nir algumas ideias simples. Eu as chamaria alegremen-
te de cartesianas.
Comecemos então definindo o problema, que em ou-
tros lugares foi tão mal definido e portanto tão mal tratado.
Uma epidemia é complexa pelo fato de ser sempre um
ponto de articulação entre determinações naturais e so-
ciais. Sua análise completa é transversal: é preciso apre-
ender os pontos nos quais as duas determinações se cru-
zam e extrair as consequências.
Por exemplo, é provável que o ponto de apoio inicial da
atual epidemia seja encontrado nos mercados da província
de Wuhan. Os mercados chineses são conhecidos por sua
sujeira perigosa e por seu gosto irreprimível pela venda ao
ar livre de todos os tipos de animais vivos, empilhados uns
sobre os outros. Daí o fato de que, em determinado momen-
to, o vírus se encontrou presente, em uma forma animal em
si mesma herdada dos morcegos, em um ambiente popular
muito denso e em condições de higiene rudimentar.
A trajetória natural do vírus de uma espécie para outra
transita então para a espécie humana. Como exatamen-
te? Ainda não sabemos, e apenas estudos científicos nos
dirão. Vamos, de passagem, criticar todos aqueles que cir-
culam fábulas tipicamente racistas on-line, respaldadas
por imagens falsificadas, segundo as quais tudo decorre
do fato de os chineses comerem morcegos quando ainda
estão quase vivos …

73 | Sobre a situação epidêmica


Esse trânsito local entre espécies animais que final-
mente chega aos seres humanos é o ponto de origem de
toda a questão. Depois disso, simplesmente opera um dado
fundamental do mundo contemporâneo: a ascensão do
Capitalismo de Estado Chinês à posição imperial, ou seja,
uma presença intensa e universal no mercado mundial. De
onde inúmeras redes de difusão, evidentemente antes que
o governo chinês fosse capaz de isolar completamente o
ponto de origem, qual seja, uma província inteira com 40
milhões de habitantes – algo que finalmente conseguiu
fazer, mas tarde demais para impedir a epidemia de se
espalhar – e os aviões e os navios – da existência global.
Considere um detalhe revelador do que chamo de dupla
articulação de uma epidemia: hoje, a SARS 2 foi sufocada
em Wuhan, mas há muitos casos em Xangai, principalmente
devido a pessoas, geralmente chinesas, procedentes do ex-
terior. A China é, portanto, um local no qual se pode obser-
var o elo – primeiro por uma razão arcaica, depois moderna
– entre uma interseção sociedade-natureza em mercados
mal conservados que seguiram costumes mais antigos, por
um lado, e uma difusão planetária deste ponto de origem
sustentado pelo mercado mundial capitalista e sua depen-
dência de mobilidade rápida e incessante, por outro.
Depois disso, entramos no estágio em que os estados
tentam localmente reprimir essa difusão. Observemos de
passagem que essa determinação permanece fundamen-
talmente local, enquanto a epidemia é antes transversal.

Alain Badiu | 74
Apesar da existência de algumas autoridades transnacio-
nais, é claro que são os estados burgueses locais que es-
tão na linha de frente.
Tocamos aqui em uma grande contradição do mun-
do contemporâneo. A economia, incluindo o processo de
produção em massa de objetos manufaturados, está sob
a égide do mercado mundial – sabemos que a simples
montagem de um telefone celular mobiliza trabalho e re-
cursos, inclusive minerais, em pelo menos sete estados
diferentes. E, no entanto, os poderes políticos permane-
cem essencialmente de tipo nacional. E a rivalidade entre
imperialismos, antigos (Europa e EUA) e novos (China, Ja-
pão…), exclui qualquer processo que conduza a um estado
mundial capitalista. A epidemia também é um momento
em que a contradição entre economia e política se torna
flagrante. Mesmo os países europeus não estão conse-
guindo prontamente ajustar suas políticas diante do vírus.
Preso a essa contradição, os estados nacionais tentam
enfrentar a situação epidêmica, respeitando o máximo
possível os mecanismos do Capital, embora a natureza do
risco os obrigue a modificar o estilo e as ações do poder.
Sabemos há muito tempo que, no caso de uma guerra
entre países, o Estado deve impor, não apenas às massas
populares, como é de se esperar, mas à própria burguesia,
restrições consideráveis, tudo para salvar o capitalismo
local. Algumas indústrias são quase nacionalizadas em
prol de uma produção desenfreada de armamentos que

75 | Sobre a situação epidêmica


não gera imediatamente nenhuma mais-valia monetária.
Muitos burgueses são mobilizados como oficiais e expos-
tos à morte. Os cientistas trabalham noite e dia para in-
ventar novas armas. Inúmeros intelectuais e artistas são
compelidos a fornecer propaganda nacional, etc.
Diante de uma epidemia, esse tipo de reflexo estatista é
inevitável. É por isso que, ao contrário do que alguns dizem,
as declarações de Macron ou do primeiro-ministro Edouard
Philippe sobre o retorno do estado de “bem-estar”, de gas-
tos para apoiar as pessoas fora do trabalho ou para ajudar
os trabalhadores independentes cujas lojas foram fechadas,
exigindo 100 ou 200 bilhões dos cofres do estado e até o
anúncio de ‘nacionalizações’ – nada disso é surpreendente ou
paradoxal. Segue-se que a metáfora de Macron, ‘estamos em
guerra’, é correta: em guerra ou epidemia, o estado é compe-
lido, às vezes ultrapassando o curso natural de sua natureza
de classe, a adotar práticas mais autoritárias e mais geral-
mente direcionadas, para evitar uma catástrofe estratégica.
Essa é uma consequência inteiramente lógica da situ-
ação, cujo objetivo é sufocar a epidemia – para vencer a
guerra, emprestando mais uma vez a metáfora de Macron
– com a maior certeza possível, mantendo-se dentro da or-
dem social estabelecida. Isso não é motivo de riso, é uma
necessidade imposta pela difusão de um processo letal que
cruza a natureza (daí o papel preeminente dos cientistas no
assunto) e a ordem social (de onde a intervenção autoritá-
ria, e não poderia ser de outra forma, do Estado).

Alain Badiu | 76
É inevitável que algumas lacunas maciças apareçam
no meio desse esforço. Considere a falta de máscaras
protetoras ou o despreparo em termos da duração do iso-
lamento hospitalar. Mas quem pode realmente se gabar
de ter “previsto” esse tipo de coisa? Sob certos aspectos,
o estado não impediu a situação atual, é verdade. Pode-
mos até dizer que, ao enfraquecer, década após década,
o sistema nacional de saúde, junto com todos os setores
do estado que atendem ao interesse geral, agiu como se
nada parecido com uma pandemia devastadora pudesse
afetar nosso país. Nesta medida, o estado é muito culpado,
não apenas na sua versão Macron, mas na de todos os que
vieram antes dele pelo menos nos últimos trinta anos.
No entanto, é correto observar aqui que ninguém havia
previsto, ou mesmo imaginado, o surgimento de uma pan-
demia desse tipo na França, exceto talvez por alguns cientis-
tas isolados. Muitos provavelmente pensaram que esse tipo
de coisa era para a África negra ou para a China totalitária,
mas não para a Europa democrática. E certamente não são
os esquerdistas – ou gilets jaunes ou mesmo os sindicalis-
tas – que gozam de um direito particular de defender esse
ponto e de continuar a fazer barulho sobre Macron, seu alvo
irrisório nos últimos tempos. Eles também não tinham ab-
solutamente previsto isso. Pelo contrário, com a epidemia já
a caminho vindo da China, eles multiplicaram, até muito re-
centemente, assembleias descontroladas e manifestações
barulhentas, o que deveria desqualificá-los hoje, quem quer

77 | Sobre a situação epidêmica


que sejam, de condenar em voz alta os atrasos dos poderes
existentes em tomar todas as medidas necessárias contra
o que está acontecendo. Verdade seja dita, nenhuma força
política na França realmente tomou essa medida antes do
estado macroniano.
Do lado desse Estado, a situação é do tipo em que o Es-
tado burguês deve explicitamente, publicamente, fazer pre-
valecer interesses que, em certo sentido, são mais gerais do
que os da burguesia, enquanto preserva estrategicamente,
no futuro, a primazia dos interesses de classe dos quais
esse estado representa a forma geral. Em outras palavras,
a conjuntura obriga o Estado a administrar a situação, in-
tegrando o interesse da classe cujo autorização represen-
tativa ele possui com os interesses mais gerais, devido à
existência interna de um ‘inimigo’ que é ele próprio geral –
em tempos de guerra este pode ser um invasor estrangeiro,
enquanto na situação atual é o vírus SARS.
Esse tipo de situação (guerra mundial ou epidemia mun-
dial) é especialmente “neutra” no nível político. As guerras
do passado apenas desencadearam revoluções em dois ca-
sos, que podem ser denominados “outliers” em relação às
potências imperiais da época: Rússia e China. No caso rus-
so, isso ocorreu porque o poder czarista era, em todos os
sentidos, e foi por muito tempo, retrógrado, inclusive como
um poder potencialmente adaptado ao nascimento de um
capitalismo genuíno naquele imenso país. E contra ele exis-
tia, na forma dos bolcheviques, uma vanguarda política mo-

Alain Badiu | 78
derna, fortemente estruturada por líderes notáveis. No caso
chinês, a guerra revolucionária interna precedeu a guerra
mundial, e o Partido Comunista Chinês já estava, em 1940,
à frente de um exército popular que havia sido experimen-
tado e testado. Por outro lado, em nenhum poder ocidental
a guerra desencadeou uma revolução vitoriosa. Mesmo no
país derrotado em 1918, na Alemanha, a insurreição espar-
taquista foi rapidamente esmagada.
A lição a ser tirada disso é clara: a epidemia em anda-
mento não terá, como epidemia, nenhuma consequência
política digna de nota em um país como a França. Mesmo
supondo que nossa burguesia – à luz dos slogans incômo-
dos, frágeis e difusos – acredite que chegou o momento
de livrar-se de Macron, isso de modo algum representará
qualquer mudança digna de nota. Os candidatos “politica-
mente corretos” já estão esperando nos bastidores, assim
como os defensores da forma mais mofada de um “nacio-
nalismo” tão obsoleto quanto repugnante.
Quanto aos que desejam uma mudança real nas
condições políticas deste país, devemos tirar proveito
desse interlúdio epidêmico e até do isolamento – intei-
ramente necessário – para trabalhar em novas figuras
da política, no projeto de novos locais da política, e no
progresso transnacional de um terceiro estágio do co-
munismo após o brilhante momento de sua invenção e
o (interessante, mas no limite derrotado) estágio de sua
experimentação estatista.

79 | Sobre a situação epidêmica


Também precisaremos passar por uma crítica rigoro-
sa de todas as perspectivas segundo as quais fenômenos
como epidemias podem funcionar sozinhos na direção de
algo politicamente inovador. Além da transmissão geral
de dados científicos sobre a epidemia, uma carga políti-
ca só será carregada por novas afirmações e convicções
relativas a hospitais e saúde pública, escolas e educa-
ção igualitária, atendimento a idosos e outras questões
desse tipo. Somente estes podem talvez ser articulados
com um balanço das perigosas fraquezas sobre as quais
a situação atual lançou luz.
De passagem, é preciso mostrar publicamente e sem
medo que as chamadas ‘mídias sociais’ demonstraram
mais uma vez que são acima de tudo – além de seu papel
em engordar os bolsos dos bilionários – um lugar para a
propagação da paralisia mental dos fanfarrões, rumores
descontrolados, a descoberta de ‘novidades’ antediluvia-
nas, ou mesmo obscurantismo fascista.
Não vamos dar credibilidade, mesmo e especialmen-
te em nosso isolamento, exceto às verdades controláveis
pela ciência e às perspectivas fundamentadas de uma
nova política, de suas experiências localizadas e de seus
objetivos estratégicos.

Alain Badiu | 80
Políticas anticapitalistas em tempos de COVID-19

PorDavid Harvey*

Publicado em jacobinmag.com
20 de março, 2020
Tradução de Gabriel Soares

Ao tentar interpretar, entender e analisar o fluxo diário de


notícias, tenho a tendência de localizar o que está acon-
tecendo no pano de fundo de dois modelos distintos, mas
que se cruzam, de como o capitalismo funciona. O primei-
ro nível é um mapeamento das contradições internas da
circulação e acumulação de capital, à medida que o valor
monetário flui em busca de lucro através dos diferentes
“momentos” (como Marx os chama) de produção, realiza-
ção (consumo), distribuição e reinvestimento. Este é um
modelo da economia capitalista como uma espiral de ex-

[*] David Harvey (Inglaterra, 1935) é professor de Antropologia e Geografia no


Centro de Pós-Graduação da Universidade da Cidade de Nova Iorque (CUNY),
diretor do Centro de Lugares, Cultura e Política e autor de inúmeros livros,
dos quais o mais recente fez sete anos. Contradições e o fim do capitalismo
(Profile Press, Londres e Oxford University Press, Nova Iorque, 2014).

81 | Políticas anticapitalistas em tempos de COVID-19


pansão e crescimento sem fim. Fica bastante complicado
à medida que é elaborado através das lentes, por exemplo,
das rivalidades geopolíticas, desenvolvimentos geográfi-
cos desiguais, instituições financeiras, políticas estatais,
reconfigurações tecnológicas e a rede em constante mu-
dança de divisões do trabalho e das relações sociais.
Eu imagino esse modelo incorporado, no entanto, em
um contexto mais amplo de reprodução social (em lares e
comunidades), em uma relação metabólica contínua e em
constante evolução com a natureza (incluindo a “segunda
natureza” da urbanização e do ambiente construído) e todas
as maneiras de formações culturais, científicas (baseadas
no conhecimento), religiosas e de contingentes sociais que
as populações humanas normalmente criam no espaço e
no tempo. Esses últimos “momentos” incorporam a expres-
são ativa das vontades, necessidades e desejos humanos, o
desejo de conhecimento e sentido e a busca por realização,
evoluindo em um cenário de mudanças nos arranjos insti-
tucionais, contestações políticas, confrontações ideológicas,
perdas, derrotas, frustrações e alienações, todas desenro-
ladas em um mundo de marcante diversidade geográfica,
cultural, social e política. Esse segundo modelo constitui,
por assim dizer, minha compreensão prática do capitalismo
global como uma formação social distinta, enquanto o pri-
meiro é sobre as contradições dentro do mecanismo econô-
mico que alimenta essa formação social ao longo de certos
caminhos de sua evolução histórica e geográfica.

David Harvey | 82
Espiralando

Quando, em 26 de janeiro de 2020, li pela primeira vez


que um tal de coronavírus estava ganhando terreno na
China, pensei imediatamente nas repercussões para a
dinâmica global da acumulação de capital. Eu sabia dos
meus estudos sobre o modelo econômico que bloqueios
e interrupções na continuidade do fluxo de capital resul-
tariam em desvalorizações e que, se as desvalorizações
se tornassem generalizadas e profundas, isso sinalizaria
o início de crises. Eu também estava ciente de que a China
é a segunda maior economia do mundo e que efetivamen-
te resgatou o capitalismo global no período pós-2007–8,
portanto, qualquer impacto na economia da China prova-
velmente teria sérias consequências para uma economia
global que, de qualquer modo, já estava em péssima con-
dição. Pareceu-me que o modelo existente de acumulação
de capital já estava com muitos problemas. Movimentos
de protesto estavam ocorrendo em quase todos os lugares
(de Santiago a Beirute), muitos dos quais focados no fato
de que o modelo econômico dominante não estava fun-
cionando bem para a massa da população. Esse modelo
neoliberal repousa cada vez mais no capital fictício e em
uma vasta expansão na oferta de moeda e na criação de
dívida. Já está enfrentando o problema da demanda efe-
tiva insuficiente para realizar os valores que o capital é
capaz de produzir. Então, como o modelo econômico domi-

83 | Políticas anticapitalistas em tempos de COVID-19


nante, com sua legitimidade comprometida e saúde frágil,
pode absorver e sobreviver aos impactos inevitáveis do
que pode se tornar uma pandemia? A resposta depende
fortemente de quanto tempo a interrupção pode durar e se
espalhar, pois, como Marx apontou, a desvalorização não
ocorre porque as mercadorias não podem ser vendidas,
mas porque não podem ser vendidas a tempo.
Há muito que recusei a ideia de “natureza” como algo
fora e separado da cultura, da economia e da vida cotidia-
na. Adoto uma visão mais dialética e relacional da relação
metabólica com a natureza. O capital modifica as condi-
ções ambientais de sua própria reprodução, mas o faz em
um contexto de consequências não intencionais (como as
mudanças climáticas) e no contexto de forças evolutivas
autônomas e independentes e que estão remodelando
perpetuamente as condições ambientais. Deste ponto de
vista, não existe um desastre verdadeiramente natural.
Certamente, vírus sofrem mutação o tempo todo. Mas as
circunstâncias em que uma mutação se torna uma amea-
ça à vida dependem das ações humanas.
Existem dois aspectos relevantes para isso. Primeiro,
condições ambientais favoráveis aumentam a probabili-
dade de mutações vigorosas. Por exemplo, é plausível es-
perar que sistemas intensivos ou irregulares de oferta de
alimentos nos subtrópicos úmidos possam contribuir para
isso. Tais sistemas existem em muitos lugares, incluindo
a China, ao sul do Yangtsé, e o Sudeste Asiático. Em se-

David Harvey | 84
gundo lugar, as condições que favorecem a transmissão
rápida entre os organismos hospedeiros variam muito. Po-
pulações humanas de alta densidade são, ao que parece,
alvos fáceis para a recepção de patógenos. É sabido que
as epidemias de sarampo, por exemplo, apenas florescem
em grandes centros populacionais urbanos, mas desapa-
recem rapidamente em regiões pouco populosas. Como
os seres humanos interagem uns com os outros, se mo-
vimentam, se disciplinam ou esquecem de lavar as mãos
afeta o modo como as doenças são transmitidas. Nos últi-
mos tempos, a SARS, a gripe aviária e suína parecem ter
saído da China ou do Sudeste Asiático. A China também so-
freu muito com a peste suína no ano passado, ocasionando
o abate em massa de porcos e o aumento dos preços da
carne suína. Não digo tudo isso para culpabilizar a China.
Existem muitos outros lugares onde os riscos ambientais
para mutação e difusão viral são altos. A gripe espanhola
de 1918 pode ter saído do Kansas e a África pode ter incu-
bado o HIV/AIDS, e certamente iniciou o Nilo Ocidental e o
Ebola, enquanto a dengue parece florescer na América La-
tina. Mas os impactos econômicos e demográficos da pro-
pagação do vírus dependem de fraturas e vulnerabilidades
preexistentes no modelo econômico hegemônico.
Não fiquei indevidamente surpreso que o COVID-19
tenha sido encontrado inicialmente em Wuhan (embora
não seja conhecido se ele se originou lá). Claramente, os
efeitos locais seriam substanciais e, dado que este era um

85 | Políticas anticapitalistas em tempos de COVID-19


centro de produção importante, era provável que houvesse
repercussões econômicas globais (embora eu não tivesse
ideia da magnitude). A grande questão era como o contá-
gio e a difusão poderiam ocorrer e quanto tempo durariam
(até que uma vacina pudesse ser encontrada). Experiên-
cias anteriores haviam mostrado que uma das desvanta-
gens do aumento da globalização é a impossibilidade de
impedir uma rápida difusão internacional de novas doen-
ças. Vivemos em um mundo altamente conectado, onde
quase todo mundo viaja. As redes humanas para potencial
difusão são vastas e abertas. O perigo (econômico e de-
mográfico) era que a interrupção durasse um ano ou mais.
Embora tenha havido uma queda imediata das bol-
sas de valores quando as primeiras notícias apareceram,
seguiram-se um ou mais meses em que, surpreendente-
mente, o mercado atingiu novas altas, As notícias pare-
ciam indicar que os negócios continuavam normalmente
em todo lugar exceto a China. Aparentemente, a crença
era que teríamos um retorno da SARS, que foi rapidamen-
te contida e teve poucos impactos globais embora tivesse
uma alta taxa de mortalidade e tenha criado um pânico
desnecessário (em retrospecto) nos mercados financeiros.
Quando a COVID-19 surgiu, a reação dominante foi repre-
sentá-la como uma repetição da SARS, tornando o pâni-
co redundante. O fato é que a epidemia devastou a China,
que rápida e despudoradamente se moveu para conter
seus impactos, também levou o resto do mundo a tratar

David Harvey | 86
erroneamente o problema como algo acontecendo “lá” e,
portanto, que não merecia maiores preocupações (com al-
guns sinais preocupantes de xenofobia anti-chinesa vindo
a tona em certas partes do mundo). A interrupção que o
vírus causou no que, em tudo o mais, seria uma triunfante
história de crescimento da China foi até recebida com sa-
tisfação em alguns círculos da administração Trump.
No entanto, histórias de interrupções nas cadeias produ-
tivas globais que passam por Wuhan começaram a circular.
Tais histórias foram amplamente ignoradas ou tratadas como
problemas para determinadas linhas de produtos ou corpora-
ções (como a Apple). As desvalorizações foram locais e par-
ticulares, e não sistêmicas. Os sinais de queda na demanda
dos consumidores também foram minimizados, ainda que
empresas como McDonald’s e Starbucks, que têm grandes
operações no mercado interno chinês, tivessem de fechar
suas portas por um tempo. A concomitância do Ano Novo Chi-
nês com o surto do vírus mascarou os impactos ao longo de
janeiro. A complacência dessa resposta não caiu bem.
As notícias iniciais da disseminação internacional do
vírus foram ocasionais e episódicas, com um surto grave
na Coréia do Sul e em alguns outros hotspots como o Irã.
Foi o surto italiano que desencadeou a primeira reação
violenta. O colapso do mercado de ações, que começou em
meados de fevereiro, oscilou um pouco, mas, em meados
de março, levou a uma desvalorização líquida de quase
30% nas bolsas de valores do mundo todo.

87 | Políticas anticapitalistas em tempos de COVID-19


A escalada exponencial das infecções provocou uma
série de respostas muitas vezes incoerentes e, algumas
vezes, de pânico. O presidente Trump fez uma imitação do
rei Canute diante de uma potencial maré crescente de do-
entes e mortos. Algumas das respostas não estão sendo
bem recebidas. Ver o Federal Reserve baixar taxas de ju-
ros diante de um vírus parecia estranho, mesmo quando
se reconheceu que a medida pretendia aliviar os impactos
do mercado em vez de impedir o progresso do vírus.
As autoridades públicas e os sistemas de saúde foram
em quase todos os lugares pegos despreparados. Quaren-
ta anos de neoliberalismo na América do Norte e do Sul
e na Europa deixaram o sistema público totalmente ex-
posto e mal equipado para enfrentar uma crise de saúde
pública desse tipo, apesar dos “sustos” de SARS e Ebo-
la anteriores terem fornecido avisos abundantes e lições
convincentes sobre o que precisaria ser feito. Em muitas
partes do suposto mundo “civilizado”, os governos locais e
as autoridades regionais/estaduais, que invariavelmente
formam a linha de frente da defesa em emergências de
saúde e segurança pública desse tipo, tinham sido priva-
dos de financiamento graças à uma política de austeridade
projetada para financiar cortes de impostos e subsídios às
empresas e aos ricos.
A indústria farmacêutica [Big Pharma] tem pouco ou
nenhum interesse em pesquisas pouco recompensadoras
sobre doenças infecciosas (como toda a classe de corona-

David Harvey | 88
vírus que são bem conhecidas desde a década de 1960).
A Big Pharma raramente investe em prevenção; tem pou-
co interesse em investir na preparação para uma crise de
saúde pública. Adora achar curas. Quanto mais doentes es-
tamos, mais eles ganham. A prevenção não contribui para
os dividendos do acionista. O modelo de negócios aplicado
à provisão de saúde pública eliminou as capacidades de
enfrentamento excedentes que seriam necessárias em
uma emergência. A prevenção não era nem um campo de
trabalho suficientemente atraente nem para justificar par-
cerias público-privadas. O presidente Trump cortou o or-
çamento do Centro de Controle de Doenças (CDC, sigla em
ingês) e dissolveu o grupo de trabalho sobre pandemias do
Conselho de Segurança Nacional no mesmo espírito que
cortou todo o financiamento de pesquisas, inclusive sobre
as mudanças climáticas. Se eu quisesse ser antropomór-
fico e metafórico sobre isso, concluiria que o COVID-19 é a
vingança da natureza por mais de quarenta anos de maus-
tratos brutos nas mãos de um violento e não regulamenta-
do extrativismo neoliberal.
Talvez seja sintomático que os países menos neolibe-
rais, China e Coréia do Sul, Taiwan e Cingapura, tenham
passado pela pandemia até agora em melhor forma que a
Itália, embora o Irã não nos permita adotar esse argumen-
to como um princípio universal. Embora houvesse muitas
evidências de que a China lidava mal com a SARS com
muita dissimulação e negação inicial, desta vez o presi-

89 | Políticas anticapitalistas em tempos de COVID-19


dente Xi rapidamente passou a exigir transparência tanto
nos relatórios quanto nos testes, assim como a Coréia do
Sul. Mesmo assim, na China, perdeu-se um tempo valioso
(apenas alguns dias fazem toda a diferença). O que foi no-
tável na China, no entanto, foi o confinamento da epidemia
à província de Hubei, com Wuhan no centro. A epidemia
não se espalhou para Pequim, nem para o oeste nem para
o sul. As medidas tomadas para confinar geograficamente
o vírus foram draconianas. Seria quase impossível replicá-
las em outros lugares por razões políticas, econômicas e
culturais. Os relatórios que saem da China sugerem que
os tratamentos e as políticas não foram nada cuidadosos.
Além disso, a China e Cingapura empregaram seus pode-
res de vigilância pessoal em níveis invasivos e autoritá-
rios. Mas eles parecem ter sido extremamente eficazes
em conjunto, apesar de que, se as contramedidas tivessem
sido acionadas alguns dias antes, os modelos sugerem
que muitas mortes poderiam ter sido evitadas. Esta é uma
informação importante: em qualquer processo de cresci-
mento exponencial, existe um ponto de inflexão além do
qual a massa crescente fica totalmente fora de controle
(observe aqui, mais uma vez, o significado da massa em
relação à taxa). O fato de Trump ter demorado por tantas
semanas ainda pode ser oneroso à vida humana.
Agora, os efeitos econômicos estão espiralando para fora
de controle [spiraling out of control], tanto na China quanto
fora dela. As interrupções do trabalho através das cadeias de

David Harvey | 90
valor das empresas e em certos setores se mostraram mais
sistêmicas e substanciais do que se pensava inicialmente. O
efeito a longo prazo pode ser o de encurtar ou diversificar as
cadeias de suprimentos, enquanto se muda para formas de
produção menos intensivas em mão-de-obra (com enormes
implicações para o emprego) e maior dependência de siste-
mas de produção dotados de inteligência artificial. A ruptura
das cadeias produtivas implica demitir ou dispensar traba-
lhadores, o que diminui a demanda final, enquanto a deman-
da por matérias-primas diminui o consumo produtivo. Por si
só, esses impactos no lado da demanda poderiam produzir,
no mínimo, uma leve recessão.
Mas as maiores vulnerabilidades estão em outros luga-
res. Os modos de consumo que explodiram após 2007–8
quebraram com consequências devastadoras. Esses mo-
dos foram baseados na redução do tempo de rotação do
consumo o mais próximo possível de zero. A enxurrada
de investimentos em tais formas de consumo teve tudo
a ver com a absorção máxima de volumes de capital ex-
ponencialmente crescentes em formas de consumo que
tivessem o menor tempo possível de rotação. O turismo
internacional foi emblemático. As viagens internacionais
aumentaram de 800 milhões para 1,4 bilhão entre 2010 e
2018. Essa forma de consumo instantâneo exigiu investi-
mentos maciços em infraestrutura em aeroportos e com-
panhias aéreas, hotéis e restaurantes, parques temáticos
e eventos culturais, etc. Este local de acumulação de capi-

91 | Políticas anticapitalistas em tempos de COVID-19


tal agora jaz morto na água: as companhias aéreas estão
perto da falência, os hotéis estão vazios e o desemprego
em massa nas indústrias ligadas ao ramo é iminente. Co-
mer fora não é uma boa ideia e restaurantes e bares fo-
ram fechados em muitos lugares. Até a comida “pra via-
gem” parece arriscada. O vasto exército de trabalhadores
na economia do entretenimento ou em outras formas de
trabalho precário está sendo demitido sem meios visíveis
de apoio. Eventos como festivais culturais, torneios de fu-
tebol e basquete, shows, convenções profissionais e de
negócios e até reuniões políticas em torno das eleições
são cancelados. Essas formas de consumo experiencial
“baseadas em eventos” foram encerradas. As receitas dos
governos locais foram afetadas. Universidades e escolas
estão fechando.
Grande parte do modelo de ponta do consumo capita-
lista contemporâneo é inoperável nas condições atuais. O
esforço em direção ao que André Gorz descreve como “con-
sumo compensatório” (por meio do qual os trabalhadores
alienados deveriam recuperar o ânimo através de um paco-
te de férias em uma praia tropical) perdeu sua força.
Mas as economias capitalistas contemporâneas são
70% ou até 80% motivadas pelo consumo. Nos últimos
quarenta anos, a confiança e o sentimento do consumi-
dor tornaram-se a chave para a mobilização da deman-
da efetiva e o capital tornou-se cada vez mais orientado
pela demanda e pelas necessidades. Essa fonte de energia

David Harvey | 92
econômica não esteve sujeita a flutuações violentas (com
algumas exceções, como a erupção vulcânica da Islândia
que bloqueou os voos transatlânticos por algumas sema-
nas). Mas o COVID-19 está causando não uma flutuação
violenta, mas um colapso onipotente no coração da forma
de consumo que domina nos países mais ricos. A forma
espiral da acumulação infinita de capital está entrando em
colapso interior, de um lado do mundo ao outro. A única
coisa que pode salvá-lo é um consumo em massa financia-
do e inspirado pelo governo, evocado do nada. Isso exigirá
socializar toda a economia dos Estados Unidos sem, por
exemplo, chamar isso de socialismo.

As linhas de frente

Existe um mito conveniente de que doenças infecciosas


não reconhecem classe ou outras barreiras e limites so-
ciais. Como muitos ditados, há uma certa verdade nisso.
Nas epidemias de cólera do século XIX, a transcendên-
cia das barreiras de classe foi suficientemente dramáti-
ca para gerar o nascimento de um movimento público de
saneamento e saúde (que se profissionalizou) e perdurou
até os dias de hoje. Se esse movimento foi projetado para
proteger todos ou apenas as classes altas nem sempre foi
claro. Hoje, porém, as diferentes classes e os efeitos e im-
pactos sociais contam uma história diferente. Os impactos
econômicos e sociais são filtrados através de discrimina-

93 | Políticas anticapitalistas em tempos de COVID-19


ções “costumeiras” que estão em toda parte em evidên-
cia. Para começar, a força de trabalho que deve cuidar do
número crescente de doentes é tipicamente feminizada,
racializada e étnica na maior parte do mundo. Ela reflete
as composições sociais encontradas, por exemplo, em ae-
roportos e outros setores logísticos.
Essa “nova classe trabalhadora” está na vanguarda e
carrega o fardo de ser a força de trabalho mais em risco
de contrair o vírus por meio de seus empregos ou de ser
demitida e ficar sem renda por causa da contenção eco-
nômica imposta pelo vírus. Há, por exemplo, a questão
de quem pode trabalhar em casa e quem não pode. Isso
aumenta a divisão social, assim como a questão de quem
pode se dar ao luxo de se isolar ou colocar em quarentena
(com ou sem pagamento) em caso de contato ou infecção.
Da mesma maneira que aprendi a chamar os terremotos
na Nicarágua (1973) e na Cidade do México (1995) de “ter-
remotos de classe”, o progresso do COVID-19 exibe todas
as características de uma pandemia de classe, de gênero
e de raça. Embora os esforços de mitigação estejam con-
venientemente ocultos na retórica de que “estamos todos
juntos nisso”, as práticas, principalmente por parte dos
governos nacionais, sugerem motivações mais sinistras.
A classe trabalhadora contemporânea nos Estados Uni-
dos (composta predominantemente por afro-americanos,
latino-americanos e mulheres assalariadas) enfrenta a
dura escolha de correr o risco da contaminação em nome

David Harvey | 94
de cuidar e manter os principais centros de fornecimen-
to (como supermercados) abertos ou ficar desemprega-
da sem benefícios (como cuidados de saúde adequados).
Funcionários assalariados (como eu) trabalham em casa
e recebem seus salários como antes, enquanto os CEOs
voam em jatos particulares e helicópteros.
As forças de trabalho em muitas partes do mundo são
socializadas há muito tempo para se comportarem como
bons sujeitos neoliberais (o que significa culpar a si mes-
mas ou a Deus se algo der errado, mas nunca ousar sugerir
que o capitalismo pode ser o problema). Mas mesmo bons
indivíduos neoliberais podem ver que há algo errado com
a maneira como esta pandemia está sendo respondida.
A grande questão é: quanto tempo isso vai durar? Pode
demorar mais de um ano e, quanto mais demorar, maior a
desvalorização, inclusive da força de trabalho. Os níveis de
desemprego quase certamente subirão para níveis compa-
ráveis aos da década de 1930 na ausência de intervenções
estatais maciças que terão que ir contra o receituário neoli-
beral. As consequências imediatas para a economia e para
o cotidiano social são múltiplas. Mas não são todas ruins. Na
medida em que o consumo contemporâneo estava se tor-
nando excessivo, estava se aproximando do que Marx des-
creveu como “consumo excessivo e consumo insano, sig-
nificando, por sua vez, o monstruoso e o bizarro, a queda”
de todo o sistema. A imprudência desse consumo excessivo
tem desempenhado um papel importante na degradação

95 | Políticas anticapitalistas em tempos de COVID-19


ambiental. O cancelamento de voos de companhias aéreas
e a restrição radical de transporte e movimentação tiveram
consequências positivas em relação às emissões de gases
de efeito estufa. A qualidade do ar em Wuhan está muito
melhor, como também ocorre em muitas cidades dos EUA.
Os locais de ecoturismo terão tempo para se recuperar de
pisadas. Os cisnes retornaram aos canais de Veneza. Na me-
dida em que o gosto pelo excesso de consumo imprudente
e insensato for reduzido, poderá haver alguns benefícios
a longo prazo. Menos mortes no Monte Everest podem ser
uma coisa boa. E, embora ninguém diga isso em voz alta, o
viés demográfico do vírus pode acabar afetando as pirâmi-
des etárias, com efeitos a longo prazo sobre os encargos da
Previdência Social e o futuro da “indústria de cuidados”. A
vida cotidiana irá desacelerar e, para algumas pessoas, isso
será uma bênção. As regras sugeridas de distanciamento
social podem, se a situação persistir por tempo suficiente,
levar a mudanças culturais. A única forma de consumo que
quase certamente se beneficiará é o que eu chamo de eco-
nomia “Netflix”, que já tem seu público “maratonista de sé-
rie” garantido de qualquer maneira.
Na frente econômica, as respostas foram condiciona-
das pelas formas de absorção da crise de 2007–8. Isso
implicou uma política monetária ultra-flexível, associada
ao resgate dos bancos, complementada por um aumento
dramático no consumo produtivo por uma expansão ma-
ciça do investimento em infra-estrutura na China. Este se-

David Harvey | 96
gundo aspecto não poderá ser repetido na escala neces-
sária. Os pacotes de resgate criados em 2008 focavam nos
bancos, mas também envolviam a nacionalização de facto
da General Motors. Talvez seja significativo que, diante do
descontentamento dos trabalhadores e do colapso da de-
manda de mercado, as três grandes montadoras de Detroit
estejam fechando, pelo menos temporariamente.
Se a China não pode repetir seu papel de 2007–8, então
o ônus de sair da atual crise econômica muda, agora, para
os Estados Unidos, e aqui está a ironia suprema: as únicas
políticas que funcionarão, tanto econômica quanto politi-
camente, são muito mais socialistas do que qualquer coi-
sa que Bernie Sanders possa propor, e esses programas
de resgate terão que ser iniciados sob a égide de Donald
Trump, presumivelmente sob a máscara de “Making Ame-
rica Great Again”.
Todos os republicanos que se opuseram visceralmente
ao resgate de 2008 terão que se curvar ou desafiar Donald
Trump. Este último, se for sábio, cancelará as eleições em
caráter emergencial e declarará a origem de uma presi-
dência imperial para salvar o capital e o mundo dos “tu-
multos e revoluções”.

97 | Políticas anticapitalistas em tempos de COVID-19


A emergência viral e o mundo de amanhã

Por Byung-Chul Han*

Publicado en El País
22 de marzo, 2020
Traduçao: Editora Vozes

Os países asiáticos estão gerindo melhor esta crise do que


o Ocidente. Enquanto ali se trabalha com dados e máscaras,
aqui se chega tarde e se levantam fronteiras.
O coronavírus está colocando nosso sistema à prova. Pare-
ce que a Ásia tem maior controle da pandemia do que a Eu-
ropa. Em Hong Kong, Taiwan e Singapura há muito poucos
infectados. Em Taiwan foram registrados 108 casos e em
Hong Kong 193. Na Alemanha, ao contrário, após um perío-
do de tempo muito mais breve já há 15.320 casos confirma-
dos e na Espanha 19.980 (dados de 20 de março). Na Coreia
do Sul, a pior fase já foi superada, assim como no Japão.

[*] Byung-Chul Han (Corea del Sur, 1959) é um filósofo e ensaísta que
ensina na Universidade de Artes de Berlim. Autor, entre outros trabalhos,
de The Society of Fatigue, publicado há um ano Loa a la tierra.

99 | A emergência viral e o mundo de amanhã


Inclusive na China, o país de origem da pandemia, ela já se
encontra bastante controlada. Porém, nem em Taiwan, nem
na Coreia se decretou a proibição de sair de casa nem se fe-
charam as lojas e os restaurantes. Entretanto, começou um
êxodo de asiáticos que saem da Europa. Chineses e corea-
nos querem regressar a seus países, porque ali se sentem
mais seguros. Os preços dos voos se multiplicaram. Já mal
se conseguem bilhetes de avião para China ou Coreia.
A Europa está fracassando. Os números de infectados
aumentam exponencialmente. Parece que a Europa não
é capaz controlar a pandemia. Na Itália, morrem diaria-
mente centenas de pessoas. Retiram os respiradores dos
pacientes idosos para socorrer os jovens. Porém, também
se podem observar ações inúteis. O fechamento de fron-
teiras é evidentemente uma expressão desesperada de
soberania. Nos sentimos de volta à época da Monarquia.
O soberano é quem decide sobre o estado de exceção. É
soberano aquele que fecha fronteiras. Mas isso é uma exi-
bição vazia de soberania que não serve para nada. Seria
muito mais útil cooperar intensamente dentro da zona do
Euro do que fechar fronteiras a esmo. Entretanto, também
a Europa decretou a proibição de entrada a estrangeiros:
um ato totalmente absurdo diante do fato de que a Euro-
pa é precisamente aonde ninguém quer vir. Quando muito,
seria mais sensato decretar a proibição de saída de euro-
peus, para proteger o mundo da Europa. Afinal, a Europa
neste momento é o epicentro da pandemia.

Byung-Chul Han | 100


As vantagens da Ásia

Em comparação com a Europa, que vantagens oferece o


sistema da Ásia que resultem eficientes para combater a
pandemia? Estados asiáticos como Japão, Coreia, China,
Hong Kong, Taiwan ou Singapura têm uma mentalidade
autoritária, que vem de sua tradição cultural (confucionis-
mo). As pessoas são menos relutantes e mais obedientes
do que na Europa. Também confiam mais no Estado. E não
só na China, mas também na Coreia ou no Japão a vida
cotidiana está organizada muito mais estritamente do que
na Europa. Sobretudo, para enfrentar o vírus os asiáticos
apostam fortemente na vigilância digital. Acreditam que no
big data poderia encontrar-se um potencial enorme para
defender-se da pandemia. Poderíamos dizer que na Ásia
as epidemias não são combatidas apenas pelos virólogos
e epidemiólogos, mas sobretudo também pelos informáti-
cos e os especialistas em macrodados. Uma mudança de
paradigma da qual a Europa ainda não se deu conta. Os
apologetas da vigilância digital proclamariam que o big
data salva vidas humanas.
A consciência crítica em relação à vigilância digital na
Ásia é praticamente inexistente. Quase não se fala de pro-
teção de dados, inclusive em Estados liberais como Japão e
Coreia. Ninguém se incomoda com o frenesi das autorida-
des por recompilar dados. Entretanto, a China introduziu um

101 | A emergência viral e o mundo de amanhã


sistema de crédito social inimaginável para os europeus,
que permite uma avaliação ou uma análise exaustiva dos
cidadãos. Cada cidadão deve ser avaliado de acordo com
sua conduta social. Na China não há nenhum momento da
vida cotidiana que não esteja submetido a observação. Se
controla cada clique, cada compra, cada contato, cada ativi-
dade nas redes sociais. De quem avança com o semáforo no
vermelho, de quem interage com críticos do regime ou de
quem posta comentários críticos nas redes sociais: são tira-
dos pontos. Então, a vida pode chegar a ser muito perigosa.
Ao contrário, a quem compra pela internet alimentos sau-
dáveis ou lê jornais afins com o regime, são dados pontos.
Quem tem pontos suficientes obtém um visto de viagem ou
créditos baratos. Ao contrário, quem cai abaixo de um de-
terminado número de pontos poderia perder seu trabalho.
Na China é possível esta vigilância social porque se produz
um irrestrito intercâmbio de dados entre os provedores de
Internet e de telefonia móvel e as autoridades. Praticamen-
te não existe proteção de dados. No vocabulário dos chine-
ses não aparece o termo “esfera privada”.
Na China há 200 milhões de câmeras de vigilância,
muitas delas providas de uma técnica muito eficiente de
reconhecimento facial. Captam inclusive as pintas no ros-
to. Não é possível escapar da câmera de vigilância. Estas
câmeras dotadas de inteligência artificial podem observar
e avaliar qualquer cidadão nos espaços públicos, nas lojas,
nas ruas, nas estações e nos aeroportos.

Byung-Chul Han | 102


Toda a infraestrutura para a vigilância digital resul-
tou agora ser sumamente eficaz para conter a epidemia.
Quando alguém sai da estação de Pequim é captado au-
tomaticamente por uma câmera que mede sua tempera-
tura corporal. Se a temperatura é preocupante, todas as
pessoas que estavam sentadas no mesmo vagão recebem
uma notificação em seus telefones celulares. Não à toa, o
sistema sabe quem estava sentado onde no trem. As redes
sociais contam que inclusive estão se usando drones para
controlar as quarentenas. Se alguém rompe clandestina-
mente a quarentena, um drone se dirige voando a ele e
lhe ordena regressar a sua casa. Talvez ainda lhe imprima
uma multa e a deixe cair voando, quem sabe. Uma situa-
ção que para os europeus seria distópica, mas à qual, pelo
visto, não se oferece resistência na China.
Os Estados asiáticos têm uma mentalidade autoritária,
e os cidadãos são mais obedientes
Nem na China, nem em outros Estados asiáticos como
Coreia do Sul, Hong Kong, Singapura, Taiwan ou Japão,
existe uma consciência crítica ante a vigilância digital ou
o big data. A digitalização diretamente os embriaga. Isso
obedece também a um motivo cultural. Na Ásia impera o
coletivismo. Não existe um individualismo acentuado. Indi-
vidualismo não é o mesmo que egoísmo que, obviamente,
também está muito propagado na Ásia.
O big data parece mostrar-se mais eficaz para comba-
ter o vírus do que os absurdos fechamentos de fronteiras

103 | A emergência viral e o mundo de amanhã


que neste momento estão sendo efetuados na Europa. Sem
dúvida, por causa da proteção de dados não é possível na
Europa um combate digital do vírus comparável ao asiáti-
co. Os provedores chineses de telefonia móvel e de Internet
compartem os dados sensíveis de seus clientes com os ser-
viços de segurança e com os ministérios de saúde. O Estado
sabe, portanto, onde estou, com quem me encontro, o que
faço, o que busco, em que penso, o que como, o que compro,
aonde me dirijo. É possível que, no futuro, o Estado controle
tambem a temperatura corporal, o peso, o nível de açúcar
no sangue, etc. Uma biopolítica digital que acompanha a psi-
copolítica digital que controla ativamente as pessoas.
Em Wuhan, formaram-se milhares de equipes de inves-
tigação digital que buscam possíveis infectados baseando-
se apenas em dados técnicos, baseando-se unicamente em
análise de macrodados, averiguam quem são os potenciais
infectados, quem tem que continuar sendo observado e
eventualmente ser isolado em quarentena. Também, no que
diz respeito à pandemia, o futuro está na digitalização. Em
vista da epidemia quem sabe devêssemos redefinir inclusi-
ve a soberania. É soberano quem dispõe de dados. Quando
Europa proclama estado de alerta ou fecha fronteiras conti-
nua presa a velhos modelos de soberania.
A lição da epidemia deveria devolver a fabricação de
certos produtos médicos e farmacêuticos a Europa
Não apenas na China, mas também em outros países
asiáticos a vigilância digital é empregada a fundo para

Byung-Chul Han | 104


conter a epidemia. Em Taiwan, o Estado envia simulta-
neamente a todos os cidadãos um SMS para localizar as
pessoas que tiveram contato com infectados ou para in-
formar acerca dos lugares e edifícios onde houve pessoas
contagiadas. Já em uma fase muito inicial, Taiwan utilizou
uma conexão de diversos dados para localizar possíveis
infectados em função das viagens que tivessem feito. Na
Coreia, quem se aproxima de um edifício no qual alguém
tenha sido infectado recebe através do “Corona-app” um
sinal de alerta. Todos os lugares onde tenha havido infec-
tados estão registrados no aplicativo. Não se leva muito
em conta a proteção de dados nem a esfera privada. Em
todos os edifícios da Coreia há câmeras de vigilância ins-
taladas em cada piso, em cada escritório ou em cada loja.
É praticamente impossível mover-se em espaços públicos
sem ser filmado por uma câmera de vídeo. Com os dados
do celular e do material filmado por vídeo se pode criar o
perfil de movimento completo de um infectado. Se publi-
cam os movimentos de todos os infectados. Pode aconte-
cer que se destapem amores secretos. Nos escritórios do
ministério de saúde coreano existem pessoas chamadas
“tracker” que dia e noite não fazem outra coisa além de
olhar o material filmado por vídeo para completar o perfil
do movimento dos infectados e localizar as pessoas que
tiveram contato com eles.
Começou um êxodo de asiáticos na Europa. Querem re-
gressar a seus países porque ali se sentem mais seguros

105 | A emergência viral e o mundo de amanhã


Uma diferença chamativa entre a Ásia e a Europa são
sobretudo as máscaras protetoras. Na Coreia não há pra-
ticamente ninguém que ande por aí sem máscaras respi-
ratórias especiais capazes de filtrar o ar de vírus. Não são
as habituas máscaras cirúrgicas, mas sim máscaras prote-
toras especiais com filtros, também usadas pelos médicos
que tratam os infectados. Durante as últimas semanas, o
tema prioritário na Coreia era a distribuição de máscaras
para a população. Diante das farmácias se formavam filas
enormes. Os políticos eram avaliados em função da rapidez
com que as distribuíam a toda a população. Se construíram
com toda pressa novas máquinas para sua fabricação. No
momento, parece que a distribuição funciona bem. Há in-
clusive um aplicativo que informa em que farmácia próxima
se podem conseguir mais máscaras. Creio que as máscaras
protetoras, das que se distribuíram na Ásia a toda la popula-
ção, contribuíram de forma decisiva para conter a epidemia.
Os coreanos usam máscaras protetoras antivírus inclu-
sive nos locais de trabalho. Até os políticos fazem suas apa-
rições públicas apenas com máscaras protetoras. Também
o presidente coreano a usa para dar exemplo, inclusive nas
conferências de imprensa. Na Coreia são criticados aqueles
que não usam máscara. Ao contrário, na Europa se chega a
dizer que não servem muito, o que é um disparate. Por que
usariam, então, os médicos as máscaras protetoras? Po-
rém, é preciso trocar de máscara com suficiente frequência,
porque quando se umedecem perdem sua função filtrante.

Byung-Chul Han | 106


No entanto, os coreanos já desenvolveram uma “máscara
para o coronavírus” feita de nano-filtros que inclusive pode
ser lavada. Diz-se que pode proteger as pessoas do vírus
durante um mês. Na realidade, é muito boa solução enquan-
to não houve vacina nem medicamentos. Na Europa, pelo
contrário, inclusive os médicos têm que viajar à Russia para
consegui-las. Macron mandou confiscar máscaras para dis-
tribui-las entre os agentes sanitários. Mas o que receberam
imediatamente foram máscaras normais sem filtro com a
indicação de que bastariam para proteger do coronavírus,
o que é uma mentira. A Europa está fracassando. De que
serve fechar lojas e restaurantes se as pessoas continuam
se aglomerando no metrô ou no ônibus durante as horas de
pico? Como guardar aí a distância necessária? Até nos su-
permercados é quase impossível. Numa situação assim, as
máscaras protetoras salvariam realmente vidas humanas.
Está surgindo uma sociedade de duas classes. Quem tem
carro próprio se expõe a menos riscos. Inclusive as más-
caras normais serviriam muito se os infectados as utilizas-
sem, porque então não espalhariam os vírus ao seu redor.
Em época de ‘fake news’, surge uma apatia em re-
lação à realidade. Aqui, um vírus real, não informático,
causa comoção.
Nos países europeus quase ninguém usa máscara. Há
alguns que as usam, porém são asiáticos. Meus conterrâ-
neos residentes na Europa se queixam de que os olham
com estranheza quando as usam. Por trás disto há uma di-

107 | A emergência viral e o mundo de amanhã


ferença cultural. Na Europa impera um individualismo que
traz consigo o costume de andar de cara descoberta. Os
únicos que andam mascarados são os criminosos. Porém,
agora, vendo imagens da Coreia, me acostumei tanto a ver
pessoas mascaradas que a face descoberta de meus con-
cidadãos europeus me parece quase obscena. Também eu
queria muito usar máscaras de proteção, mas aqui já não
é possível encontrá-las.
No passado, a fabricação de máscaras, assim como a
de tantos outros produtos, foi transferida para a China. Por
isso agora na Europa não se conseguem máscaras. Os Es-
tados asiáticos estão tratando de prover toda a população
de máscaras protetoras. Na China, quando também lá co-
meçaram a ser escassas, inclusive reequiparam fábricas
para produzir máscaras. Na Europa, nem sequer o pessoal
sanitário as consegue. Enquanto as pessoas continuarem
se aglomerando em ônibus ou em metrôs para ir ao traba-
lho sem máscaras protetoras, a proibição de sair de casa
logicamente não servirá de muita coisa. Como se pode
guardar a distância necessária nos ônibus ou no metrô nas
horas de pico? E um ensinamento que deveríamos tirar da
pandemia deveria ser a conveniência de trazer de volta à
Europa a produção de determinados produtos, como más-
caras protetoras ou produtos medicinais e farmacêuticos.
Apesar de todo o risco, que não deve ser minimizado, o
pânico que a pandemia de coronavírus desatou é despro-
porcional. Nem sequer a “gripe espanhola”, que foi muito

Byung-Chul Han | 108


mais letal, teve efeitos tão devastadores sobre a economia.
A que se deve isso, na realidade? Por que o mundo reage
com um pânico tão desmedido a um vírus? Emmanuel Ma-
cron fala inclusive de guerra e de um inimigo invisível que
temos que derrotar. Nos encontramos novamente diante
de um inimigo? A “gripe espanhola” desencadeou-se em
plena Primeira Guerra Mundial. Naquele momento, todo o
mundo estava rodeado de inimigos. Ninguém teria asso-
ciado a epidemia com uma guerra ou com um inimigo. Po-
rém, hoje vivemos em uma sociedade totalmente distinta.
Na realidade estivemos vivendo durante muito tempo
sem inimigos. A guerra fria terminou há muito tempo. Ul-
timamente, mesmo o terrorismo islâmico parecia ter-se
deslocado a zonas distantes. Faz exatamente dez anos
que eu defendi em meu ensaio A sociedade do cansaço a
tese de que vivemos em uma época em que perdeu sua
vigência o paradigma imunológico, que se fundamenta na
negatividade do inimigo. Como nos tempos da guerra fria,
a sociedade organizada imunologicamente se caracteriza
por viver rodeada de fronteiras e de valas, que impedem
a circulação acelerada de mercadorias e de capital. A glo-
balização suprime todos esse umbrais imunitários para
dar passe livre ao capital. Inclusive a promiscuidade e a
permissividade generalizadas, que hoje se propagam por
todos os âmbitos vitais, eliminam a negatividade do des-
conhecido ou do inimigo. Os perigos não espreitam hoje
a partir da negatividade do inimigo, mas sim a partir do

109 | A emergência viral e o mundo de amanhã


excesso de positividade, que se expressa como excesso de
rendimento, excesso de produção e excesso de comunica-
ção. A negatividade do inimigo não cabe em nossa socie-
dade ilimitadamente permissiva. A repressão exercida por
outros dá passagem à depressão, a exploração por outros
abre passagem à autoexploração voluntária e à autootimi-
zação. Na sociedade do rendimento o indivíduo faz guerra
sobretudo contra si mesmo.

Umbrais imunológicos e fechamento de fronteiras.

Pois bem, em meio a esta sociedade tão debilitada imuno-


logicamente por causa do capitalismo global irrompe de
repente o vírus. Cheios de pânico, voltamos a erigir um-
brais imunológicos e a fechar fronteiras. O inimigo voltou.
Já não guerreamos contra nós mesmos, mas contra o ini-
migo invisível que vem de fora. O pânico desmedido em
vista do vírus é uma reação imunitária social, e inclusive
global, ao novo inimigo. A reação imunitária é tão violenta
porque vivemos durante muito tempo em uma sociedade
sem inimigos, em uma sociedade da positividade, e agora
se percebe o vírus como um terror permanente.
Porém, há outro motivo para o tremendo pânico. De
novo tem a ver com a digitalização. A digitalização eli-
mina a realidade. A realidade se experimenta graças à
resistência que oferece, e que também pode mostrar-se
dolorosa. A digitalização, toda a cultura do “me agrada”,

Byung-Chul Han | 110


suprime a negatividade da resistência. E na época pos-
fática das fake news e os deepfakes surge uma apatia
para com a realidade. Assim pois, aqui está um vírus
real, e não um vírus de computador, o que causa uma
comoção. A realidade, a resistência, volta a fazer-se no-
tar na forma de um vírus inimigo. A violenta e exagerada
reação de pânico ao vírus se explica em função desta
comoção pela realidade.
A reação de pânico dos mercados financeiros à epide-
mia é ademais a expressão daquele pânico que já é ineren-
te a eles. As convulsões extremas na economia mundial
fazem com que esta seja muito vulnerável. Apesar da cur-
va constantemente crescente dos índices da bolsa, a arris-
cada política monetária dos bancos emissores gerou nos
últimos anos um pânico reprimido que estaba aguardando
o estopim. É provável que o vírus seja apenas a pequena
gota que extravazou o copo. O que se reflete no pânico do
mercado financeiro não é tanto o medo do vírus quanto o
medo de si mesmo. O crash poderia ter-se produzido tam-
bém sem o vírus. Quem sabe o vírus seja apenas o prelú-
dio de um crash muito maior.
Žižek afirma que o vírus desfere um golpe mortal no
capitalismo, e evoca um obscuro comunismo. Se equivoca.
Žižek afirma que o vírus desferiu no capitalismo um gol-
pe mortal, e evoca um obscuro comunismo. Crê inclusive
que o vírus poderia fazer cair o regime chinês. Žižek se equi-
voca. Nada disso acontecerá. A China poderá vender agora

111 | A emergência viral e o mundo de amanhã


seu Estado policial digital como um modelo de êxito contra
a pandemia. A China exibirá a superioridade de seu sistema
ainda com mais orgulho. E após a pandemia, o capitalismo
continuará com mais pujança ainda. E os turistas continu-
arão pisoteando o planeta. O vírus não pode substituir a
razão. É possível que, além disso, inclusive nos chegue ao
Ocidente o Estado policial digital ao estilo chinês. Como já
disse Naomi Klein, a comoção é um momento propício que
permite estabelecer um novo sistema de governo. Também
a instauração do neoliberalismo foi precedida muitas vezes
de crises que causaram comoções. Foi o que aconteceu na
Coreia ou na Grécia. Oxalá que depois da comoção causada
por este vírus não chegue à Europa um regime policial di-
gital como o chinês. Se isso chegar a acontecer, como teme
Giorgio Agamben, o estado de exceção passaria a ser a si-
tuação normal. Então, o vírus teria conseguido o que nem
mesmo o terrorismo islâmico conseguiu totalmente.
O vírus não vencerá o capitalismo. A revolução viral
não chegará a produzir-se. Nenhum vírus é capaz de
fazer a revolução. O vírus nos isola e individualiza. Não
gera nenhum sentimento coletivo forte. De algum modo,
cada um se preocupa apenas com sua própria sobrevi-
vência. A solidariedade que consiste em guardar distân-
cias mútuas não é uma solidaridade que permita sonhar
com uma sociedade diferente, mais pacífica, mais justa.
Não podemos deixar a revolução nas mãos do vírus. Con-
fiemos que atrás do vírus venha uma revolução humana.

Byung-Chul Han | 112


Somos NÓS, PESSOAS dotadas de RAZÃO, que temos que
repensar e restringir radicalmente o capitalismo destru-
tivo, e também nossa ilimitada e destrutiva mobilidade,
para salvar-nos a nós mesmos, para salvar o clima e
nosso belo planeta.

113 | A emergência viral e o mundo de amanhã


Nas portas de uma nova ordem mundial

Por Raúl. Zibechi*

Publicado em elsaltodiario.com
25 de março, 2020
Traduçao: Caro Pierro

O fato das “democracias” europeias terem copiado o mo-


delo chinês para abordar a epidemia do coronavirus prova
que o dragão já é referência e exemplo de controle social
da população.
A pandemia supõe o aprofundamento da decadência
e crise do sistema que, num curto prazo, teria começado
em 2008, e no logo se estende desde a revolução mun-
dial do 1968. Entramos num período de caos do sistema-
mundo, que é a condição prévia para a formação de uma
nova ordem global.
Com efeito, as principais tendências em curso -mili-
tarização, declínio hegemônico dos Estados Unidos e su-

[*] Raúl Zibechi (Uruguay, 1952) é um escritor e pensador-ativista


dedicado ao trabalho com movimentos sociais na América Latina.

115 | Nas portas de uma nova ordem mundial


bida da Ásia Pacífico, fim da globalização neoliberal, re-
forço dos Estados e auge das ultradireitas- são processos
longos que se aceleram nesta conjuntura. Com um olhar
geopolítico, China mostrou capacidade para continuar, so-
brepor-se às dificuldades e perpetuar sua ascensão como
potência global que em poucas décadas será hegemônica.
A coesão da população e um Governo eficiente são dois
aspetos centrais que exemplificam em grande medida a
resiliência e resistência chinesa.
A dura experiência vivida pelo seu povo nos últimos
dois séculos - desde as guerras do ópio até a invasão japo-
nesa - ajuda a explicar sua capacidade para superar tra-
gédias. A revolução socialista de 1949, além da naciona-
lista de 1911, e a notável melhoria na qualidade de vida da
população como conjunto, explicam a coesão em torno do
Partido Comunista e do Estado, que vão além das opiniões
que tenham sobre estas instituições.
Pelo contrário, a divisão interna que vive a população
norteamericana - em evidência nas últimas eleições e na epi-
demia de opiáceos que tem disminuido a expectativa de vida
- se conjuga com um Governo errático, imperialista e machis-
ta, de quem desconfiam até seus aliados mais próximos.
A União Europeia está ainda pior que os Estados Unidos.
Desde a crise de 2008 perdeu sua bússola estratégica, não
soube se descolar da política de Washington e o Pentágono,
e evitou tomar decisões que inclusive a beneficiam, como
a finalização do gasoduto Nord Stream 2, paralizado por

Raul Zibechi | 116


pressão do Trump. O euro não é uma moeda confiável e a
saída nunca concretizada do Reino Unido da União Europeia
comprova a debilidade das instituições comuns.
A financeirização da economia, dependente da grande
banca corrupta e ineficiente, tem convertido a eurozona
numa “economia de risco”, sem rumo nem orientação de
longa duração. A impressão é que Europa está destinada
a acompanhar o declínio estadunidense, já que tem sido
incapaz de cortar o cordão umbilical amarrado desde o
Plano Marshall.
Tanto os Estados Unidos quanto a União Europeia, nem
falar dos países latinoamericanos, sofrerão os efeitos eco-
nômicos da pandemia com maior intensidade do que os
asiáticos. Estes têm mostrado, desde Japão e China até
Singapura e Coreia do Sul, uma capacidade notável para
superar a adversidade.
Uma pesquisa recente do Foreign Policy entre doze des-
tacados intelectuais conclui que Estados Unidos perdeu sua
capacidade de liderança global e o eixo do poder mundial se
translada para a Ásia. A pandemia é a sepultura da globali-
zação neoliberal, enquanto a do futuro será uma globaliza-
ção mais “amável”, centrada na China e Ásia Pacífico.

Hegemonia tecnológica

A China encabeça as principais e decisivas tecnologias.


Se mantém na frente da construção de redes 5G, na inteli-

117 | Nas portas de uma nova ordem mundial


gência artificial, computação quântica e supercomputado-
res. O economista Oscar Ugarteche, do Observatório Eco-
nômico da América Latina (Obela), afirma que “China é a
fonte de cinco ramos da economia mundial: farmoquimica,
automotriz, aeronáutica, eletrônica e telecomunicações”.
Assim, o fechamento das fábricas freia a produção des-
tes cinco ramos no mundo. Em 2017, a China já produzia
30% da energia solar do mundo, por cima da UE e o dobro
dos Estados Unidos. A lista Top 500 dos maiores supercom-
putadores do mundo revela que China possui 227 de 500
(ou 45%), frente aos só 118 dos Estados Unidos, seu mínimo
histórico. Dez anos atrás, em 2009, a China tinha só 21 su-
percomputadores frente a 227 da então superpotência.
O triunfo chinês na carreira tecnológica não quer dizer
que sua sociedade seja desejável desde um ponto de vista
de quem deseja uma sociedade pós capitalista, democráti-
ca e não patriarcal. O controle social na China é asfixiante:
desde as milhões de câmeras que vigiam as pessoas até o
diabólico sistema de “crédito social” que otorga e tira pon-
tos segundo o comportamento correto dos cidadãos, assim
como a estigmatização e discriminação das pessoas LGBTI.
No resto do mundo as coisas não estão melhor. O fato
das “democracias” europeias terem copiado o modelo chi-
nês para abordar a epidemia do coronavirus prova que
o dragão já é referência e exemplo de controle social da
população. “O mundo tem aprendido do país asiático”, des-
taca o jornal empresarial O Economista.

Raul Zibechi | 118


O auge do fascismo na Europa e América Latina - não
só nos partidos, senão esse fascismo social difuso mas
contundente, focado contra dissidentes e emigrantes por-
que tem comportamentos diferentes e outra cor de pele
- vem junto com o esvaziamento das democracias. Estas
vão ficando apenas como exercícios eleitorais que não ga-
rantem a menor mudança, nem a menor influência da po-
pulação nas políticas estatais.
A experiência do Governo de Syriza na Grécia, assim
como a do Partido dos Trabalhadores no Brasil, deveria
ser motivo de reflexão para as esquerdas do mundo so-
bre as dificuldades de mexer com a agulha da economia e
da política. Ainda considerando que aconteceram com as
melhores intenções, o saldo das gestões não é só pobre,
senão regressivo nos aspectos macroeconômicos e com
respeito ao empoderamento das sociedades.
O panorama para os movimentos é mais complexo,
mas não é uniforme. Os que têm feito das manifesta-
ções e outras ações públicas seu eixo central tem sido
os mais afetados. Porém, os de base territorial tem uma
situação potencialmente melhor. A todos nos afeta, sem
dúvida, a militarização.
Os povos originários e negros na América Latina, com
destaque no zapatismo, os Nasa e Misak na Colômbia e
os Mapuches, tem melhores condições. Algo similar pode
acontecer com os projetos autogestionados, as hortas ou
espaços coletivos com possibilidade de cultivar alimentos.

119 | Nas portas de uma nova ordem mundial


Em todo caso, o militarismo, o fascismo e as tecnolo-
gias de controle da população são inimigos poderosos que,
juntos, podem fazer-nos um dano imenso, ao ponto de re-
verter o desenvolvimento que os movimentos têm conse-
guido desde as crises anteriores.

Raul Zibechi | 120


Desobediência, por sua culpa vou sobreviver

Por María Galindo*

Publicado originalmente na Radio Deseo e cedido


por María Galindo para #Apocaelipsis
26 de março de 2020
Tradução: Caro Pierro

Tenho coronavirus, porque ainda que a doença não tenha en-


trado no meu corpo, pessoas amadas a tem; porque o corona-
virus está atravessando cidades pelas quais eu tenho passa-
do nas últimas semanas; porque o coronavirus tem mudado
com o estalar dos dedos como se tratasse de um milagre, uma
catástrofe, uma tragédia sem remédio, absolutamente tudo.
Está onde você pisar, onde chegar já chegou e hoje nada pode

[*] María Galindo Neder (Bolivia, 1964) é uma ativista boliviana, militante
do feminismo radical, psicóloga e comunicadora, cofundadora do colectivo
Mujeres Creando em 1992, que continua liderando. Atualmente co dirige:
Radio Deseo, emissora radiofônica com alcance nas cidades de La Paz e
Alto. Por suas ações controversas, catalogadas como “arte performática” ou
happenings, tem sido detida pela polícia boliviana em várias oportunidades.
Trabalha com temáticas como a despatriarcalização no contexto do
processo constituinte boliviano e o feminicídio como crime de Estado.

121 | Desobediência, por sua culpa vou sobreviver


ser pensado, feito, sem o coronavirus no meio. Parece que não
só tenho o coronavirus, mas que todos, todas e todes o temos;
todas as instituições, todos os países, todos os bairros e todas
as atividades. O que ficou claro é que o coronavirus, mais do
que uma doença, parece ser uma forma de ditadura mundial
multigovernamental, policial e militar.
O coronavírus é um medo ao contágio.
O coronavírus é uma ordem de confinamento, ainda que
seja muito absurda.
O coronavírus é uma ordem de distanciamento, ainda
que seja impossível.
O coronavírus é uma permissão de supressão de todas
as liberdades que em nome da proteção se estende sem
direito a réplica, nem questionamento.
O coronavírus é um código de qualificação das chama-
das atividades imprescindíveis, onde o único que está per-
mitido é ir trabalhar ou que trabalhemos online como signo
de que estamos viv@s.
O coronavírus é um instrumento que parece efetivo
para apagar, minimizar, ocultar e pôr entre parênteses ou-
tros problemas sociais e políticos que vínhamos conceptu-
alizando. De repente e por arte mágica somem debaixo do
tapete ou por trás do gigante.
O coronavírus é a eliminação do espaço social mais vi-
tal, mais democrático e mais importante para nossas vidas:
a rua, esse fora que virtualmente não devemos atravessar
e que em muitos casos era o único espaço que sobrava.

María Galindo | 122


O coronavírus é o domínio da vida virtual, tem que ficar gru-
dada a uma rede para comunicar-se e saber-se em sociedade.
O coronavírus é a militarização da vida social. É o mais
parecido a uma ditadura onde não há informação senão em
porções calculadas para causar medo.
O coronavírus é uma arma de destruição e proibição,
aparentemente legítima, do protesto social, onde nos di-
zem que o mais perigoso é juntar-nos e reunir-nos.
O coronavírus é a restituição do conceito de fronteira
no formato mais absurdo; nos dizem que fechar fronteiras
é uma medida de segurança, quando o coronavírus está
dentro e tal fechamento não evita a entrada de um vírus
microscópico e invisível, senão que evita e classifica os
corpos que poderão entrar e sair das fronteiras.
O espaço Schengen, que é onde tem se propagado o coro-
navírus nesta parte do mundo, onde habito, fecha sua frontei-
ra à circulação de corpos por fora desse espaço e finalmente
atinge o sonho fascista de que @s outr@s são o perigo.
O coronavírus poderia ser o Holocausto do século XXI
para gerar um extermínio massivo de pessoas que vão
morrer e estão morrendo, porque seus corpos não resis-
tem a doença e os sistemas de saúde as, es, os tem clas-
sificado segundo a lógica darwiniana como quem não tem
utilidade e por isso deve morrer.
Aparecem os milhões de euros para salvar suas econo-
mias coloniais e pagar aluguéis, boletos de serviços, salá-
rios, quando toda essa massa proletarizada estava tendo

123 | Desobediência, por sua culpa vou sobreviver


seu céu recortado, enquanto falavam que não tinham como
pagar a dívida social. Agora que os tem mortos de medo,
obedientes e reclusos, os premiam com a doce consolação
de que pagarão suas contas, depois de terem pago as que
importam, que são as das corporações e dos Estados.
“Socialistas” como os que governam Espanha, falam
de uma guerra que vamos vencer todos juntos. Gostam da
palavra, acreditam que serve para criar um corpo e fazer
da doença o suposto inimigo ideal que nos una. Nada mais
fascista que declarar a guerra contra a sociedade e contra
a democracia aproveitando o medo à doença. Nada mais
fascista que fazer das casas das pessoas suas próprias
prisões de confinamento. Nada mais neoliberal que procla-
mar o salve-se quem puder como solução supervisionada.
O que acontece quando o coronavírus atravessa a fron-
teira e chega em países como a Bolívia?
Vamos começar dizendo que o coronavírus estava sen-
do aguardado na porta pelo Dengue, que vem matando no
trópico - mas sem destaques nos jornais - as pessoas mal
nutridas, as crianças, as que moram nas áreas rurais e su-
burbanas insalubres. O dengue e o coronavírus se cumpri-
mentaram, de lado estavam a tuberculose e o câncer que
nesta parte do mundo são sentenças de morte.
Os hospitais construídos maioritariamente no início do
século XX no auge do estanho e posteriormente moderni-
zados, nos anos setenta do século passado, com o auge do
desenvolvimento, são gigantes que colapsaram faz tempo

María Galindo | 124


e onde o mau costume de curar as pessoas foi sempre re-
gido por quanto dinheiro você tem para pagar os medica-
mentos, todos importados e impagáveis.
Entra o coronavírus e chega em aviões, não de turis-
tas, senão dos nossos exilados do neoliberalismo que tem
construído pontes de afeto que fazem eles virem visitar
estranhos que chamam de filhos, irmãos ou pais.
Chegam com presentes e corpos infectados, mas a doen-
ça não só chega nos seus corpos, chega também na primeira
classe, chega porque tem que chegar, assim simplesmente.
Parece incrível que tenhamos que usar o senso comum e te-
nhamos que falar-lhes que as fronteiras não podem ser fe-
chadas, igualzinho que não pode se por um teto ao sol, nem
muro as montanhas, nem portas na floresta.
Chegou por milhares de lugares, mas foi o corpo de
uma das nossas excluídas do neoliberalismo o estigma-
tizado e maltratado como “a portadora”, ainda ela e não
outros tenham sido e sejam quem mantém este país. Os
parentes dos doentes se organizam para não deixar que
sejam hospitalizados pelo pânico, porque antes de chegar
o coronavírus ao corpo, tinha chegado em forma de medo,
de psicose coletiva, de instrutivo de classificação, de ins-
trutivo de afastamento.
A ordem colonial do mundo tem nos convertido em idio-
tas que só conseguimos repetir e copiar.
Privadas e privados de pensar, no caso boliviano a pre-
sidenta decidiu copiar partes do discurso e medidas toma-

125 | Desobediência, por sua culpa vou sobreviver


das pelo presidente da Espanha e lendo no teleprompter
anunciou um pacote de medidas como se estivesse sentada
em Madrid e nao em La Paz. Fala de guerra, de que temos
que ganhar juntos e dos empresarios com quem negociará
e anuncia um toque de recolher e proibições em coleções.
O único diferente no seu discurso é o recurso à coope-
ração internacional, a conhecida mendicidade na qual nos
revolvemos para que nos doem desde máscaras até ideias,
se é que lhes tem sobrado.
O único diferente no seu discurso é que aqui não tem ex-
cedentes, nem milhares, nem milhões de euros com os quais
pagar nenhuma conta. Aqui a sentença de morte estava es-
crita bem antes do coronavirus chegar no avião de turismo.
Enquanto aguardo uma epifania que nos esclareça
o que temos que fazer e que tenho certeza entrará pelo
corpo débil e febril e se nos revelará; enquanto me dedico
com minhas irmãs a desobedecer a proibição de fabricar
gel caseiro, e o fazemos para vender, porque também te-
mos que sobreviver; enquanto procuro meus livros de me-
dicinas ancestrais para produzir um ungüento respiratório
antiviral, como os que fazíamos quando Mujeres Creando
era uma farmacia popular numa zona periférica da cidade,
penso no absurdo.
Já que está tendo toque de recolher, ficam proibid@s de
substituir tod@s que vivem de trabalhar à noite?
A sociedade boliviana é uma sociedade proletarizada,
sem salário, sem vagas de emprego, sem indústria, onde a

María Galindo | 126


grande massa sobrevive na rua num tecido social gigante e
desobediente. Nem uma só das medidas copiadas se ajus-
ta às nossas condições de vida reais, não só pelas dívidas,
mas pela vida mesma. Todas e cada uma dessas medidas
copiadas de economias que nada tem a ver com a nossa,
não nos protegem do contágio, senão que nos pretendem
privar de formas de subsistência que são a vida mesma.
Nossa única alternativa real é repensar o contágio.
Cultivar o contágio, nos expor ao contágio e desobede-
cer para sobreviver.
Não se trata de um ato suicida, se trata de bom senso.
Mas talvez nesse bom senso fique o sentido mais po-
tente e absoluto que podemos desenvolver.
Que acontece se decidimos preparar nossos corpos
para o contágio?
Que acontece se assumimos que certamente vamos
nos contagiar e a partir dessa certeza processamos nos-
sos medos?
Que acontece se frente à absurda, autoritária e idiota
resposta estatal ao coronavírus pensamos a autogestão
social da doença, da debilidade, da dor, do pensamento e
da esperança?
Que acontece se nos mofamos do fechamento das
fronteiras?
Que acontece se nos organizamos socialmente?
Que acontece se nos preparamos para beijar os mortos
e para cuidar as vivas e vivos por fora das proibições, que

127 | Desobediência, por sua culpa vou sobreviver


o único que estão gerando é o controle do nosso espaço e
nossas vidas?
Que acontece se pensarmos no abastecimento individu-
al de uma grande panela comum contagiosa e festiva como
tantas vezes temos feito?
Mais uma vez dirão que estou louca, e que o melhor é
obedecer ao isolamento, ao confinamento, ao não contato
e à não contestação às medidas quando o mais provável é
que você, seu amante, sua amiga, sua vizinha, ou sua mãe
se contagiem.
Mais uma vez dirão que estou louca quando sabemos
que nesta sociedade nunca tivemos os leitos que precisa-
mos nos hospitais e que se formos as portas morreremos
ali mesmo implorando.
Sabemos que a gestão da doença será maioritariamen-
te domiciliar, nos preparemos socialmente para isso. Que
acontece se decidirmos desobedecer para sobreviver?
Precisamos nos alimentar para aguardar a doença e
mudar a nossa dieta para resistir.
Precisamos procurar aos nossos kolliris (especialistas
em medicina tradicional) e fabricar com elas e eles reme-
dios não farmacêuticos, testar com, nossos corpos e explo-
rar o que nos faz bem.
Precisamos coca para resistir a fome e farinhas de
cañahua, de amaranto, sopa de quinoa. Tudo o que nos en-
sinaram a desprezar.

María Galindo | 128


Que a morte não nos surpreenda enroladas de medo e
obedecendo ordens idiotas, que nos encontre beijando, que
nos surpreenda fazendo o amor e não a guerra.
Que nos surpreenda cantando e nos abraçando, porque
o contágio é iminente.
Porque o contágio é como respirar.
Não poder respirar é o que nos condena o coronavírus, mais
pela reclusão, a proibição e a obediência do que pela doença.
Me vem na mente Nosferatu que numa cena inolvidá-
vel, quando a morte é já iminente e a peste encarnada em
ratos invadiu o povoado todo, sentam-se tod@s na praça
numa mesa grande a compartir um banquete coletivo de
resistência. Que assim nos encontre o coronavírus, prontas
para o contágio.

129 | Desobediência, por sua culpa vou sobreviver


O vírus, o sistema letal e algumas pistas...

Por Gabriel Markus*

Publicado em El País
27 de marzo, 2020
Traduçao: Caro Pierro

A ordem mundial está alterada. Pela escala do universo,


invisível ao olho humano, se propaga um vírus com mag-
nitude real desconhecida. Ninguém sabe quantas pessoas
estão doentes de coronavírus, quantas ainda vão morrer,
quando a vacina vai ser desenvolvida, entre outras incer-
tezas. Também, ninguém sabe os efeitos que terá na eco-
nomia e na democracia as medidas radicais de um estado
de exceção que afeta a Europa toda.

[*] Markus Gabriel (Alemania, 1980) é un filósofo alemão e professor


universitario de Filosofía desde os 29 anos de idade, o mais jovem da
Alemanha. Autor de um dos livros mais vendidos na Alemanha Por que o
mundo não existe, escrito com o filósofo italiano Maurizio Ferraris, pai da
nova corrente filosófica denominada novo realismo. Llidera na Alemanha
este movimento. Em sua obra Eu não sou meu cérebro, Filosofía da mente
para o século XXI (2016) realiza uma crítica contra o neurocentrismo atual.

131 | O vírus, o sistema letal e algumas pistas...


O coronavírus não é uma doença infecciosa qualquer.
É uma pandemia viral. A palavra pandemia vem do grego
antigo, e significa “o povo todo”. De fato, o povo todo, to-
dos os seres humanos, estamos afetados por igual. Mas
precisamente isso é o que não temos entendido se acha-
mos que confinar as pessoas dentro de umas fronteiras
faz algum sentido. Porque deveria importar ao vírus que a
fronteira entre Alemanha e França esteja fechada? O que
faz pensar que Espanha seja uma unidade e que tem que
ser separada dos outros países para conter o patógeno?
A resposta a essas perguntas vai ser que os sistemas de
saúde são nacionais e o Estado deve ocupar-se dos doen-
tes dentro das suas fronteiras.
Certo, mais precisamente aí reside o problema. E é que
a pandemia nos afeta a todos; é a demonstração de que
todos estamos unidos por uma corda invisível, nossa con-
dição de seres humanos. Ante o vírus todos somos, efeti-
vamente, iguais; ante o vírus os seres humanos não somos
mais do que isso, seres humanos, quer dizer, animais de
uma determinada espécie que oferece um hóspede a uma
reprodução mortal para muitos.
Os vírus geralmente apresentam um problema meta-
físico não resolvido. Ninguém sabe se são seres vivos. O
motivo é que não há uma única definição de vida. Na ver-
dade, ninguém sabe onde começa. Para ter vida bastam o
ADN ou ARN, ou requer-se a existência de células que se
multipliquem por si mesmas? Não sabemos, como tam-

Gabriel Markus | 132


bém não sabemos se as plantas, os insetos e inclusive o
nosso fígado tem consciência. É possível que o ecossiste-
ma da Terra seja um gigantesco ser vivo? É o coronavírus
uma resposta imune do planeta pela insolência do ser hu-
mano, que destrói infinitos seres vivos por ganância?
O coronavírus expõe as debilidades sistêmicas da ideo-
logia dominante do século XXI. Uma delas é a crença errada
de que o progresso científico e tecnológico por si só pode
impulsionar o progresso humano e moral. Esta crença nas
leva a confiar em que especialistas científicos podem so-
lucionar os problemas comuns sociais. O coronavírus de-
veria ser uma demonstração disso frente a todos. Porém, o
que ficará claro é que esta ideia é um erro perigoso. É ver-
dade que temos que consultar os virólogos; só eles podem
nos ajudar a entender o vírus e contê-lo para assim salvar
vidas humanas. Mas, quem os ouve quando nos dizem que
a cada ano morrem mais de 200.000 crianças por diarreia
viral por não ter água potável? Porque ninguém se interes-
sa por essas crianças?
Por desgraça, a resposta é clara: porque não estão na
Alemanha, Espanha, França ou Itália. Porém, isto também
não é verdade, já que se encontram em acampamentos de
refugiados no território europeu, aos quais têm chegado
fugindo da situação injusta provocada por nós e nosso sis-
tema consumista. Sem progresso moral não há verdadeiro
progresso. A pandemia nos mostra isto com os prejuízos
racistas que se expressam por todos lados. Trump tenta

133 | O vírus, o sistema letal e algumas pistas...


com todos os meios possíveis classificar o vírus como um
problema chinês; Boris Johnson acha que os britânicos
conseguem solucionar a situação pela via do Darwinismo
social e provocar uma imunidade coletiva eugenica. Muitos
Alemães acreditam que nosso sistema sanitário é supe-
rior ao italiano e que, então, podemos dar uma resposta
melhor. Estereótipos perigosos, preconceitos estúpidos.
Todos estamos no mesmo barco. Isto, porém, não é nada
novo. O próprio século XXI é uma pandemia, o resultado da
globalização. A única coisa que o vírus faz é visibilizar algo
que vem de longe: necessitamos conceber uma ilustração
global totalmente nova. Aqui cabe utilizar a expressão do
Peter Sloterdijk com uma nova interpretação, e afirmar que
não precisamos um comunismo mas um coinmunismo. Para
isto temos que tomar a vacina contra o veneno mental que
nos divide em culturas nacionais, raças, grupos por idades
e classes sociais em mútua competição. É um ato de solida-
riedade antes insuspeitado na Europa, estamos protegendo
os nossos doentes e nossos idosos. Por isso mantemos as
crianças dentro de casa, fechamos as escolas e declaramos
o estado de exceção sanitária. Por isso investem-se milhões
de euros para reativar a economia.
Mas se, uma vez superado o vírus, continuamos agindo
como antes, virão crises muito mais graves: vírus piores,
cuja aparição não poderemos impedir; a continuação da
guerra econômica entre os Estados Unidos e a União Eu-
ropeia; a proliferação do racismo e o nacionalismo contra

Gabriel Markus | 134


os migrantes que fogem até nossos países porque nós
temos proporcionado aos seus assassinos armamentos
e conhecimentos para fabricar armas químicas. E, não po-
demos esquecer, a crise climática, muito pior do que qual-
quer vírus porque é resultado do auto extermínio do ser
humano a ritmo lento. O coronavírus não fará mais do que
freia-la brevemente.
A ordem mundial prévia à pandemia não era normal,
mas letal. Porque não podemos investir milhares e mi-
lhões em melhorar nossa mobilidade? Porque não utili-
zar a digitalização para ter na internet aquelas reuniões
absurdas às quais os chefes da economia vão de avião
privado? Quando vamos finalmente entender que com-
parada a nossa superstição de que os problemas contem-
porâneos podem ser resolvidos com ciência e tecnologia
o perigosíssimo coronavírus é inofensivo? Necesitamos
uma nova ilustração, todo mundo deve receber uma edu-
cação ética para que possamos reconhecer o enorme pe-
rigo que supõe seguir às cegas a ciência e a técnica. Claro
que estamos fazendo o correto ao combater o vírus com
todos os meios possíveis. De repente há solidariedade, é
uma onda de moralidade. Está bem que seja assim, mas
ao mesmo tempo não podemos esquecer que em poucas
semanas passamos do desdém populista pelos especia-
listas científicos a um estado de excepção que um amigo
de Nova Iorque tem qualificado com sucesso de “Coreia
do Norte cientificista”.

135 | O vírus, o sistema letal e algumas pistas...


Temos que reconhecer que a cadeia infecciosa do ca-
pitalismo global destrói nossa natureza e aliena os cida-
dãos dos Estados nacionais para que nos convertamos
em turistas profissionais e em consumidores de bens
cuja produção causará a longo prazo mais mortes que to-
dos os vírus juntos. Porque a solidariedade acorda com o
conhecimento médico e virológico, mas não com a cons-
ciência filosófica de que a única saída da globalização
suicida é uma ordem mundial que supere a acumulação
dos estados nacionais rivalizados obedecendo a uma es-
túpida lógica econômica quantitativa? Quando passar a
pandemia viral precisaremos de uma pandemia metafísi-
ca, uma união de todos os povos sob o teto comum do céu
do qual nunca poderemos nos evadir. Vivemos e continu-
aremos vivendo na terra; somos e continuaremos sendo
mortais e frágeis. Convertamos-nos, então, em cidadãos
do mundo, em cosmopolitas de uma pandemia metafí-
sica. Qualquer outra atitude nos exterminará e nenhum
virólogo poderá nos salvar.

Gabriel Markus | 136


Reflexões sobre a peste

Por Giorgio Agamben

Publicado em Quodlibet.it
27 de março, 2020
Traduçao: Medium

As reflexões que seguem não são sobre a epidemia, mas


sobre o que podemos entender a partir das reações das
pessoas a ela. Isto é, trata-se de refletir sobre a facilidade
com que toda uma sociedade aceitou se sentir atormen-
tada, isolar-se em casa e suspender as suas condições
normais de vida, suas relações de trabalho, de amizade,
de amor e até mesmo suas convicções religiosas e polí-
ticas. Por que não houve protestos e oposições, o que é
possível imaginar e normalmente acontece nestes casos?
A hipótese que eu gostaria de sugerir é que de alguma for-
ma, embora inconscientemente, a peste já estava lá, que,
evidentemente, as condições de vida das pessoas tinham
se tornado tais que bastou um sinal repentino para que
elas aparecessem como o que eram — isto é, intolerável,

137 | Reflexões sobre a peste


precisamente como uma praga. E este, de certa forma, é o
único fato positivo que se pode extrair da situação atual: é
possível que, mais tarde, as pessoas comecem a se per-
guntar se a maneira como viveram foi justa.
E precisamos pensar sobre a necessidade de religião
que a situação faz aparecer. Uma pista é, no discurso in-
sistente da mídia, a terminologia emprestada do vocabu-
lário escatológico para descrever o fenômeno, recorrendo
obsessivamente, sobretudo na imprensa americana, à pa-
lavra “apocalipse”, e muitas vezes evoca-se explicitamente
o fim do mundo. É como se a necessidade religiosa, que
a Igreja já não é capaz de satisfazer, estivesse tateando
à procura de um outro lugar para estar e o encontrando
no que se tornou a religião do nosso tempo: a ciência.
Ela, como qualquer religião, pode produzir superstição e
medo, ou, em qualquer caso, ser usada para espalhá-los.
Nunca antes assistimos ao espetáculo, típico das religiões
em tempos de crise, de opiniões e prescrições diferentes
e contraditórias, da posição minoritária herética (mesmo
representada por cientistas de prestígio) daqueles que ne-
gam a seriedade do fenômeno ao discurso ortodoxo do-
minante que o afirma e, no entanto, muitas vezes diverge
radicalmente quanto à forma de lidar com ele. E, como
sempre nestes casos, alguns especialistas, ou supostos
especialistas, conseguem assentir ao monarca, que, como
nos tempos das disputas religiosas que dividiam o cristia-

Giorgio Agamben | 138


nismo, escolhe, de acordo com seus próprios interesses,
uma corrente ou outra e impõe suas medidas.
Outra coisa a se pensar é o colapso evidente de toda
convicção e fé comuns. Parece que as pessoas não acre-
ditam mais em nada —exceto na existência biológica nua
que deve ser salva a qualquer custo. Mas sobre o medo de
perder a vida só uma tirania pode ser erguida, só o mons-
truoso Leviatã com a sua espada desembainhada.
É por isso que —uma vez que a emergência, a peste, for
declarada terminada, se o for— não acredito que, pelo me-
nos para aqueles que conservaram um mínimo de lucidez,
será possível voltar a viver como antes. E isto é talvez a coisa
mais desesperadora hoje — mesmo que, como já foi dito, “só
àqueles que não têm mais esperança, a esperança foi dada”.

139 | Reflexões sobre a peste


Fragilidade e tiranía humana
em tempos de pandemia

Por Gustavo Yañez González*

Publicado em ficciondelarazon.files.wordpress.com
26 de março, 2020
Traduçao: Caro Pierro

Se tentamos o sempre complexo e limitado exercício de


fazer memória, é possível encontrar outro acontecimento
contemporâneo que possa ser comparável com a espeta-
cularidade do COVID-19? Atentado a Wall Street, tsunami
no sudeste asiático, gripe aviária, vacas loucas, etc. Nada

[*] Gustavo Yañez González (Chile, 1976) é professor de Filosofía e


Licenciado em Educação (UMCE). Diplomado em Filosofía Política (CAIP).
Tem trabalhado em diversos presídios realizando oficinas de leitura-
escrita (DIBAM). Ao lado de Herman Carvajal, no marco da Escuela Popular
de Cine, realizou a curta-metragem “Mataperro” (2016). Ocasionalmente
tem sido colunista no jornal El Desconcierto e El Ciudadano, e também
tem publicado ensaios em diversas revistas de Filosofía. Publicoou
sua monografia de graduação como livro: “La ontología es una policía.
Devaluar y someter al animal” na Editorial Latinoamericana Especializada
em Estudos Críticos Animais com apoio do Instituto Latinoamericano de
Estudios Críticos Animales.

141 | Fragilidade e tiranía humana em tempos de pandemia


tem ponto de comparação. Hiperconectividade, globali-
zação hiperbólica… claro que sim. Mas, no fundo da su-
perfície do assunto, o enigma do espetáculo talvez esteja
no fato de que o vírus nos faz relembrar, sem querer, dois
traços comuns a todos os seres humanos, nossa animali-
dade constituinte e nossa fragilidade imunológica frente
ao desconhecido. O vírus não discrimina, aponta Butler.
Invade organismos mais ou menos precarizados, mais ou
menos oprimidos, infectando os abusadores, trabalhado-
res de escritório, educadoras, assassinos, ladrões, ativis-
tas, médicos, ministros do governo, advogadas, etc., o que
quer dizer, vidas (biológicas) humanas. A pandemia impõe
o exercício de uma hospitalidade sem restrição para um
hóspede que não desejamos, ao mesmo tempo que nos
lembra um parentesco comum que, cuidado, não se traduz
necessariamente numa comunidade dada, porque pode-
mos adoecer com uma intensidade similar, mas não curar-
se nem morrer. Ainda mais no Chile, com um sistema de
saúde neoliberal e fraco, e um acesso desigual ao sistema
privado; ainda mais no Chile onde os primeiros a portar,
disseminar o micróbio e desrespeitar as medidas de qua-
rentena têm sido as pessoas mais ricas e indolentes-.
A fragilidade atualiza também uma outra na ordem on-
tológica. Quantos começos e projetos suspendidos, viagens
canceladas, futuros sacrificados. O vírus sabota o imaginá-
rio do cálculo e controle de si-mesmo. A soberania sobre
o tempo tem sido impedida. Não somos sujeitos sobre um

Gustavo Yañez González | 142


predicado maleável, senão puro devir-frágil num mundo
que não controlamos. Quebrado ficou também o imaginário
do ser para a morte (Heidegger) enquanto uma molécula
microscópica poderia nos matar numa sala de cuidados
intensivos longe de uma despedida íntima, longe de como
gostaríamos de morrer.
O anterior explica porque a fragilidade (imunológica/
ontológica) é a condição e causa dos conteúdos dos nos-
sos afetos atuais: medo, tédio, solidão, incredulidade, etc.
Temos sido invadidos na nossa cotidianidade, porque de-
vemos - os que temos aquele privilégio dos países com es-
tados subsidiários - ficar em casa. Uma degeneração das
relações entre os seres humanos, diria Agamben, já que
o estado de exceção biopolítico instala uma restrição de
liberdades, e ainda pior, produz apatia e medo ao outro/a,
porque qualquer um é um potencial portador do vírus. Um
dano irreparável no pior dos casos, à nossa capacidade
afetiva pelos outros.
Possivelmente, seguindo Agamben, tendo como desculpa
o resguardo da vida, arriscamos que os dispositivos policiais
implementados na quarentena sejam sedimentados e as
relações sociais se vejam afetadas por um importante des-
afeto. No caso particular do Chile, dada a catastrófica gestão
do governo sobre a pandemia, a revolta popular iniciada em
18 de outubro de 2019 aguarda ser revitalizada na direção
de uma nova constituição política para um novo jeito de viver.

143 | Fragilidade e tiranía humana em tempos de pandemia


Necessário, então, prever, medir, evitar e preparar-nos
a sortear os efeitos negativos do biopoder em tempos de
crises sanitária. Porém, outra fragilidade, dessa vez do
olhar, fica inscrita na impossibilidade afetiva de ver outras
vítimas do poder sobre o biológico além dos nossos sem-
blantes coordenados, provisoriamente, ao confinamento e
à suspensão do encontro e fricção com outras intensidades,
quando são milhares, milhões, bilhões, os outros animais
confinados por dia em gaiolas e galpões, aquáticos e ter-
restres, separados, alienados, de uma vez e para sempre,
de seus membros, fluidos e crias, e com a finalidade de nos
apropriar de seus corpos/vidas e assim satisfazer algum
desejo, alguma voracidade do mercado capitalista global.
Portanto, a pesquisa biopolítica, ainda demasiado hu-
mana, deve ser amplificada 1) além dos limites da sempre
perigosa animalização dos seres humanos, da nudez dos
corpos humanos, da usurpação da sua vida política, porque
a denominada agroindústria - outorguemos-lhe um nome
mais fenomenológico, exploração animal -, converte insta-
lações como fazendas, zoológicos, biotérios, criadouros e
matadouros nos campos de concentração contemporâneos
por antonomásia, onde tudo é possível, no sentido ominoso
da palavra, e 2) além de um totalitarismo voraz, na medida
em que, nestes dias, assistimos uma modulação que foge
da biopolítica arquetípica cada vez que as próprias comuni-
dades administram coletivamente a saúde do corpo social
quando os governos se limitam só à gestão da morte. Este

Gustavo Yañez González | 144


prolongamento aguarda ser ativado, aguarda sua pavorosa
legitimação quando, talvez, tenhamos acordado que a gêne-
se do vírus constitui mais uma expressão da nossa tirânica
relação com a estrangeiridade radical que são os outros
animais, com a tanatopolítica feita normativa sobre os cor-
pos valorizados enquanto mercadorias absolutas.
Provisoriamente, em meio da crueldade que é a pande-
mia, podemos concluir que, não será a hora, para ter algum
tempo possível, pergunto, de um porvir possível, de virar ra-
dicalmente o sentido de como consideramos aos outros ani-
mais e como consequência estraguemos estruturalmente o
capitalismo? Nao será hora, para ter algum tempo possível,
da invenção de outras relações com o vivo, as quais furem a
crise eco-biológica atual?

145 | Fragilidade e tiranía humana em tempos de pandemia


Hospitalidade e imunidade virtuosa

Por Patricia Manrique*

Publicado en lavoragine.net
27 de março, 2020
Traduçao: Caro Pierro

Pensar filosoficamente um evento como o que estamos


vivendo, requer, em primeiro lugar, tempo. Tempo para
deixar que a potencial novidade do que está acontecendo
possa abrir caminho no nosso olhar predeterminado, para
dar oportunidade à nova conjuntura: se corremos dema-
siado, podemos acabar presos a tudo o que a fisionomia
anterior alcança ou podemos considerar acontecimento,
nascimento de algo novo, a fatos superdimensionados por
diversos motivos -o que não diminui nem um pouco a im-

[*] Patricia Manrique (España, 1980) é pesquisadora independiente,


licenciada em Filosofía, e mestre em Pensamento Contemporâneo.
Atualmente pesquisa para seu doutorado sobre o político como terreno
da responsabilidade infinita e numa noçao filosófica e ética de democracia
como figura do comum.

147 | Hospitalidade e imunidade virtuosa


portância da reflexão sobre as condições de possibilida-
des deste superdimensionamento, claro-.
O que acontece, com a correria, frequentemente, é re-
duzir a outreidade à mesmidade: confina-la nos parâme-
tros habituais do próprio, na órbita do eu, do conhecido.
Levianas fala muito e muito bem sobre isto, a tendência do
pensamento ocidental a reduzir a outreidade, e aposta por
experimentar a radical alteridade, o totalmente outro que,
segundo ele, nos chama desde o rosto alheio. “A alteridade
do Outro não depende de uma qualidade que o distingua
do eu”, disse, “porque uma distinção dessa natureza impli-
caria entre nós precisamente esta comunidade de gênero
que anula a alteridade”. O eu e o outro são radicalmente
singulares e distintos.
Levinas chama de hospitalidade à acolhida da outreida-
de, do que implica o rosto do outro, que é uma abertura na
forma de vulnerabilidade que mexe, que convida, que cha-
ma, que diz “vem”, e uma responsabilidade que atinge o eu
com uma certa passividade, de inibição, de evitar, a seu ju-
ízo, a violência. Mas a violência, de diversos modos, lembra
Derrida, é inerente ao humano, o que abre a possibilidade
para uma hospitalidade violenta, que é, justamente, estar
violento, se deixar violentar, estar disposto a ser violentado,
ser extraído do lugar natural, removido… pela outreidade.
Merece a pena - literalmente - ser hospitaleiro com a
outreidade. Uma hospitalidade, destaca Derrida, que para
ser verdadeira só pode ser infinita: absolutamente aberta

Patricia Manrique | 148


ao que tem que chegar, ao “chegante” absoluto. Como a
responsabilidade que, sem limites, já não pode respon-
der ao que vem de honestidade radical. Porque trata-se
de “integrar” aquilo, aquela, aquele, o que seja que esteja
vindo, não é questão de lhe dar um formato suportável,
modelá-lo ao nosso prazer para parecer conhecido, senão
assumi-lo na sua singularidade e outreidade. A questão da
hospitalidade, que é a pergunta de como nos comporta-
mos com o/a/@ estrangeiro, a questão da nossa atitude
frente a estrangeria é a questão de como nos posiciona-
mos frente a outreidade em geral e, também, a pergunta
pela responsabilidade, por como dar uma resposta. Uma
resposta envolve, sempre, perguntas: Quem vem? Como
respondo? O que é vir e o que é responder?... E o modo
de fazer toda pergunta é também essencial, porque tem
perguntas capciosas e perguntas retóricas que só procu-
ram como resposta o conhecido, aquilo que queremos ou-
vir… impedindo escutar o que podem nos estar dizendo, a
verdade por trás de um acontecimento, da outreidade, os
mundos que abrem, os sentidos que libertam.
Por isso, desde quando o Instituto Crítico de Desapren-
dizado surgiu, surgiu rápido a proposta de pensar o que
estava acontecendo, senti, como parte do próprio instituto,
uma espetada de incomoardidade. Se esta nova situação
se pensa com pressa, o resultado pode ser um desfile de
visões particulares coladas à situação, uma certa repeti-
ção dessa visão que, de modo geral, temos das coisas,

149 | Hospitalidade e imunidade virtuosa


plasmando nossa impressão no que acontece: ideologia e
bastante euidade onde pessoalmente desejo autenticidade
e ouvir, sentir o que está chegando. Porque reduzir à mes-
midade não deveria ser o lugar da filosofia, ainda que a
filosofia, sempre é bom lembrar para não violenta-la mais
do necessário, não seja mais que “um dizer entre dizeres”
(Quintín racionero dixit). O pensamento rápido e euico,
essa brincadeira da mesmidade consigo mesma que não
faz mais - nem menos - que defender trincheira é a opi-
nião, que tanto se pratica atualmente, provavelmente por-
que ainda seja débil e precária, em democracia: assim que
acontece algo, tem um monte de opiniões sobre a questão,
e são muitas, algumas úteis outras não, mas não é aquele
pensamento desde a hospitalidade que deixa vir o que está
chegando senão a redução da realidade aos parâmetros
de a ou o opinante, um exercício de doma da outreidade
do real… Algo muito necessário, sem dúvidas, porque sem
opinião não teríamos apostas políticas, mas bem diferente
do que na filosofia se denomina “pensar”: se colocar frente
a realidade desde a nudez de preconceitos, questionar a
verdade, procurar linhas de fuga, problematizá-lo…
Por enquanto, se temos interesse em ser hospitaleiros
com o acontecimento, se queremos pensar no sentido que
a filosofia tenta pensar, devemos ponderar que a obsessão
com a mesmidade e a pressa não são precisamente van-
tajosas. A pressa está ligada ao produtivismo, a obsessão
por manter o ritmo produtivo que caracteriza o capitalis-

Patricia Manrique | 150


mo, e não só o sistema econômico mas, sobretudo, as sub-
jetividades modeladas para sustentá-lo. De fato, é só olhar
para o que aconteceu esses dias: se espalha o coronavirus,
uma doença que ataca países enriquecidos - isto é chave -
e da qual se disse que “não tem classe social”, o que signi-
fica que também afeta a classe média melhor posicionada
na parte mais privilegiada do planeta, e por tudo isto se
desenvolve uma fortíssima e consistente reação no estado
de exceção e o confinamento que exigem parar a maquina-
ria… Porém, rapidamente geraram-se infinitas atividades,
a maioria nao econômicas, com a finalidade de preencher
o espaço que a ruptura do habitual ritmo capitalista dei-
xa, como se precisássemos restaurar e manter o insus-
tentável ritmo anterior. Tomara saibamos questioná-lo em
vez de continuar reproduzindo-o no estado de exceção e o
freio que supõe um confinamento massivo e depois.
Talvez, ou talvez não, seja opinião apontar que o coro-
navírus na Europa classemediana e capitalista que vivia
numa torre de vigia de invulnerabilidade tenha descoberto
a própria fragilidade, tenha descoberto a outreidade afe-
tando-a sem opção, sem possibilidade de contenção total,
ainda que tentasse. As porosas fronteiras do capital dissi-
pam um virus que nao consegue parar o fechamento das
fronteiras às pessoas, que, certamente, não tem novidade
só que afeta aos turistas, essa espécie de eventuais apá-
tridas com direitos humanos -diferente, quero dizer, dos
migrantes-.Também é para destacar, e vai ser interessan-

151 | Hospitalidade e imunidade virtuosa


te ver até que ponto os próprios neoliberais reconhecem
isto, a evidência clara da mão invisível do mercado, mais
invisível que nunca, tem se demonstrado incapaz de segu-
rar a vida, levando seus defensores a clamar pelo comu-
nitário estatal na Saúde e inclusive na proteção social que
alimenta os circuitos comerciais -keynesianismo da vida
toda- onde antes só interessava o estado como membro
fantasma fiador de seus furtos especulativos… para res-
gatar bancos, capitalismo de amigões e questões assim.
Mas, depois de alguns dias, vamos vendo que a ser-
pente neoliberal não é nada, mas nada hospitaleira com o
acontecimento. Tem mudado pouco no seu umbigo, os mer-
cados que um dia baixam o dia seguinte já tem integrado
as medidas que dos governos propícios para salvar vidas
- europeias normalizadas, insistimos - e tem conseguido
questionar como aproveitar ao máximo, via especulação de
rapina, como é normal, ao que acontece. Eis que uma das
primeiras evidências mostradas no momento presente tem
sido - e novamente reconheço que duvido se é opinião ou
pensamento hospitaleiro com o acontecimento - a nitidez
com que tem mostrado algo que já se opinava e parece se
expor agora com toda sua nudez: que estamos nas mãos de
psicopatas e de um sistema necrolítico, absoluta e desaver-
gonhadamente assassino. Vale lembrar que necropolítica é
um termo criado por Achile Mbembe que fala não só de uma
política que tem o direito a matar mas também o direito a
expor a outras pessoas - incluindo os próprios cidadãos de

Patricia Manrique | 152


um país como acontece agora com muitos trabalhadores - à
morte, obrigando, em muitos casos, alguns corpos a per-
manecer entre a vida e a morte, como acontece nas frontei-
ras da Europa com as pessoas sem refúgio ou em muitos
lares de idosos e idosas sozinhos.
É impressionante o capital gasto esses dias, prova de
que quando há vontade as coisas podem ser feitas de um
jeito diferente. Estamos contemplando como os responsá-
veis políticos europeus mobilizam enormes quantidades
de dinheiro - até a Alemanha está disposta a se endividar e
dobrou seu orçamento em 50% - supostamente porque “a
vida é o principal”. Afortunadamente o estão fazendo, sem
dúvidas, mas não porque a vida seja o principal. Se fos-
se assim, não admitiriam e, ainda mais, não continuariam
impulsionando com medidas inhumanas quantidades ver-
gonhosas de afogados no Mediterrâneo, de meninas e me-
ninos da guerra perdidos e abusados, de mortes plenas ou
mortes em vida, de vidas fantasmagóricas, não-vidas, nas
fronteiras europeias. Se botassem realmente a vida acima
de tudo, cortar pela raiz com essa vergonha teria um custo
significativamente inferior ao que vai ter preservar a vida
no caso da expansão do COVID19 na Europa… Mas, eis a
questão, que o que importa agora é a vida europeia, a “nos-
sa”, de esse “nós” tão fechado e imunitário que chamamos
de Europa, essa zona geopolítica que tem demonstrado
uma falta de respeito absoluta pelo Direitos Humanos,
que tem exposto sua nudez, expondo que são, claramente,

153 | Hospitalidade e imunidade virtuosa


uma mentira inventada pelos países enriquecidos e sem
utilidade alguma, e que não tem direitos humanos mas só
direitos civis - e reduzidos -... Uma imoralidade que tem
e terá um custo civilizatório e cujas dimensões hoje são
muito difíceis de calcular. A exceção e a mobilização de
enormes recursos para proteger a vida da “cidadania meio
europeia” - a mais estandardizada, ficando de fora des-
de indigentes até domésticas passando por todas aquelas
pessoas que sobrevivem como podem - tem nos mostrado
o tipo de seleção social e cruel sobre a qual está constru-
ída a Europa, que continua sendo um produto da Moderni-
dade Colonial, caracterizado pela produção sistêmica de
sub-humanos, que vai desde os alvores do liberalismo e
sua íntima relação com a escravidão, e chega até os cam-
pos de extermínio nazistas ou as fazendas de colheita de
morango na Huelva, ou até a fronteira greco-turca onde
seres humanos são utilizados como fichas de um jogo geo-
político letal e macabro. Não, a vida não é considerada pela
primeira vez como o principal, como dizem por aí. É a vida
de as e os “nossos”, em todo caso.
O que é certo sim é que essa prepotente, autônoma,
inhumana Europa, que até agora se achava invulnerável,
encontra-se agora de frente com sua própria fragilidade,
com a fragilidade potencializada por uma antroponomia,
economia e política neoliberal que são assassinas tam-
bém da cidadania europeia… E o vírus, nem tão letal até
agora, aponta ao coração de um das questões chave na

Patricia Manrique | 154


Modernidade europeia: a relação entre comunidade e imu-
nidade. Porque na Europa não só tem havido, com o decor-
rer dos séculos, uma redução da comunidade e isto tem
distorcido e desvirtuado a própria communitas, reduzindo-
la à linguagem da identidade e particularidade, do sujeito e
da metafísica, convertendo-a em linguagem da totalidade,
da unidade, da homogeneidade, a linguagem do indivíduo.
Não é só que a semântica do próprio e da propriedade, do
individuo, tenha assediado a comunidade até o ponto de
convertê-la nesse algo próprio que um determinado grupo
de indivíduos - diferenciado do resto, juntos na identidade
que permite sua diferença - tem em comum: comunidades
da língua, da terra, da identidade… É que, como Roberto
Esposito investigou, em Communitas - origem e destino
da comunidade (1998) e em Immunitas - proteção e nega-
ção da vida (2002) -, a immunitas, a imunidade, tem se im-
posto até praticamente eliminar a communitas, o comum
munus, a obrigação recíproca devida entre seres huma-
nos que só somos em comum. A sociedade, a economia,
a técnica e a gestão modernas tem feito desaparecer pro-
gressivamente a relação. A Modernidade Colonial, desde
Hobbes, não é só um exercício de neutralização do conflito
inerente à vida em comum, via direitos e deveres contratu-
ais estabelecidos sem deixar espaço ao munus e, portan-
to, também, de despolitização, a que se impõe uma noção
de comunidade identitária, substantiva, que vira monstro
totalitário ou agregação individualista, e que exclui, in-

155 | Hospitalidade e imunidade virtuosa


festada de immunitas, toda outreidade… uma outreidade
sempre, certamente, prefabricada: racializades, migran-
tes, esclaves, refugiades… (* terminação “es” como nova
linguagem inclusiva).
Tentando responder o risco que implica o munus me-
diante o contraponto semântico de communitas que é
inmunitas, percebo que viver em comunidade é viver ex-
posto, é se comprometer, é estar comprometido, envolvi-
do, exposto… ainda à morte que pode me dar o outro/a, a
imunidade se impõe como saída da obrigação recíproca,
da prestação mútua, da communitas. Assim, se impõe a
figura do imune que “não é simplesmente distinto do “co-
mum”; é seu oposto”, segundo Esposito, para quem “os “in-
divíduos” modernos chegam a ser tais, ou seja, absolutos,
rodeados por limites precisos que os isolam e protegem
só tendo se libertado preventivamente da “dívida” que os
vincula mutuamente”, do risco que supõe o munus, a obri-
gação recíproca para com o outro. Libertam-se do inter-
câmbio, do contágio, da possível discussão com a vizinha…
da relação, mediante o contrato imunitário que tira esta e
apaga a ameaça de expropriação e exposição, de perigo
para a identidade que implica sempre.
Tem a immunitas, então, um componente antisocial
e anti-comunitario, porque interrompe o circuito social
de doação recíproca ao qual visa a communitas. Simone
Weil critica, por exemplo, a imunidade jurídica, que coloca
diante ao sujeito e seus direitos, esquecendo a obrigação:

Patricia Manrique | 156


a pessoa jurídica permite mudar o “porque tenho obriga-
ções, os outros terão direitos” pelo “porque tenho eu tenho
direitos, os outros terão obrigações”. A mudança vai de um
sujeito impessoal, anônimo, que admite sua expropriação
frente a presença da alteridade, que se compromete com
a outreidade, o outro que, primeiramente, parte da sua in-
dividualidade fechada, absoluta, proeminente, e lança a
exigência ao outro de que esta seja reconhecida.
Acontece que, desde uma visão contratualista liberal,
por cima de tudo estão os direitos: um enfermeiro ou uma
doutora em plena crises de coronavírus tem o direito de se
proteger e se negar a trabalhar, primeiramente preservar
a sua vida. Porém, o que estamos vendo é todo o pessoal
de saúde se expondo, assistindo a quem precisa, toman-
do conta deste munus, desta obrigação para com a vul-
nerabilidade dos doentes. Esta crise, parece, não poderia
se resolver se nos ativessemos aos termos contratuais, se
não houvesse uma exposição ao outro, inclusive ao con-
tágio, de muitos e muitas… A esse respeito, podemos nos
parabenizar com certo ressurgimento da sensação de co-
munidade - de reciprocidade, de obrigação mútua, não de
“pátria” ou “Estado”- da consciência da sua importância
que o vírus tem estimulado.
O certo é que não há comunidade sem algum tipo de
aparelho imunitário, mas também pode-se procurar for-
mas de entender a identidade de um modelo aberto e não
exclusivo para fazer com que o imune não seja inimigo do

157 | Hospitalidade e imunidade virtuosa


comum. procurar uma imunidade virtuosa, comunitária,
evidentemente necessária no caso do coronavírus, uma
imunidade comunitária onde o que deve nos importar não
seja a proteção própria senão a dos outros e outras, que
suponha que a luta pela saúde seja uma responsabilida-
de compartilhada, que requer o concurso de todas e todos
para todas e todos.
A retórica imunológica moderna, como temos visto nos
discursos de boa parte dos responsáveis políticos nestes
dias, tem apresentado constantemente uma retórica beli-
cista mostrando seu objeto de estudo como uma “batalha
sem trégua” contra todo tipo de risco ou contaminação: as
metáforas guerreiras tem invadido, por consequência, as
explicações de muitos imunólogos. Entende-se, mas tra-
ta-se de um discurso obsoleto, sem muita utilidade e nada
próprio neste contexto. É, por outro lado, uma visão nada
estranha numa sociedade que entende a relação entre o
eu e o outro em termos de uma aniquilação recíproca: do
mesmo modo que a immunitas levada ao extremo destrói
a communitas, o antibiótico, paradigma deste tipo de situ-
ação, funciona como bomba nuclear, e acaba com tudo o
que encontra ao redor ou, no paroxismo do impulso auto-
aniquilador, há as as doenças autoimunes, onde o sistema
imune luta contra si mesmo provocando falhas críticas no
organismo. Mas talvez tudo poderia ser diferente se es-
colhessem a linguagem e o imaginário que promovam a
imunidade comunitária, não a imunidade lutadora.

Patricia Manrique | 158


Outro tipo de análise contemporânea tenta escrever o
corpo fora da semântica do próprio, do indivíduo, operando
com noções de identidade aberta ao contágio e à mesti-
çagem, porosa, que aposte por outro tipo de imunidade,
que assume o risco sem ser medrosa. Donna Haraway, por
exemplo, que considera que “a doença é uma linguagem, o
corpo uma representação, e a medicina, uma prática polí-
tica”, aponta expressamente o “potente e polimorfo objeto
de fé, de conhecimento e de prática chamado sistema imu-
nitário” que considera “um mapa desenhado para servir
de guia no reconhecimento e na confusão do eu e do ou-
tro na dialética da biopolítica ocidental”. Na imunologia se
cristalizam o mito, o laboratório e a clínica formando uma
imagem masculinizada ligada ao extermínio nuclear, às
aventuras espaciais e à tecnologia militar. Mas o seu tra-
balho, ao contrário, propõe “a confusão das fronteiras e da
responsabilidade na sua construção”, como observa seu
Manifesto Cyborg (1984), um projeto desestabilizador que
aponta que a relação atual entre política e vida passa pelo
filtro da biotecnologia. Para Haraway, focada em desenvol-
ver novas soluções que passam por novas linguagens, as
metáforas biológicas que nomeiam o sistema imunitário
poderiam descrevê-lo como um possível mediador e não
um sistema central de controle ou um departamento de
defesa armado, entendendo a doença em termos de re-
conhecimento e comunicação. O eu, destaca Haraway, não
acaba na pele, não tem limites precisos ainda que projetos

159 | Hospitalidade e imunidade virtuosa


como o genoma humano quiseram definir-nos numa es-
pécie de projeto dominante do humanismo tecnocientífico,
pode-se pensar de um modo diferente o sistema imuni-
tário como uma comunicação ou interação entre um eu
semi-impermeável e o outro.
O confinamento e o estado de alarme tem o óbvio
perigo de supor, pela situação de exceção, um terreno
fértil para o autoritarismo estatal, mas nos arriscamos
não só a não melhorar nossos hábitos imunitários se-
não piorá-los, e que seja imposta a atitude autoritária
e a imunidade viciosa na sociedade civil, provocando
situações como as que vimos recentemente num vídeo
onde uma mulher puxava uns policiais enquanto estes
seguravam a outra que pedia socorro, ou as reiteradas
imagens de vizinhos julgando pedestres sem saber os
motivos destes para estar na rua - um excesso imunitá-
rio, uma imunidade viciosa, completamente fechada ao
outro, idiota. Pelo contrário, uma imunidade comunitá-
ria, que nos devolva ao munus em tempos de pandemia,
seria reforçar os vínculos de responsabilidade mútua
além da crise, e que, depois de valorizar a Saúde pública
que parece inevitável mas só nós podemos conseguir,
chegue ao reconhecimento de outros serviços públicos
enfraquecidos pelas políticas de austeridade neolibe-
rais cujo fracasso agora é evidente… E, sobretudo, o lu-
gar de cada um na convivência mediante uma remode-
lação radical das nossas subjetividades.

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A biopolitica, completamente visivel agora, obriga-
da talvez, implica e implicará constantemente, decisões
acerca de quem somos, qual é “nossa identidade”, e que
formamos parte desse “nós” que agora temos que defen-
der do vírus, mas tende a rejeitar a todo desconhecido,
outro… Em vez de negociar, em vez de priorizar uma imu-
nidade comum, hospitaleira com a outreidade, é fácil que
se imponha uma linguagem bélica das identidades fortes;
mas também é possível que o Covid19 só se supere com
a solidariedade entre singularidades, entre comunida-
des e entre nações ainda compartilhando informações e
equipamentos dado que, além disso, é esperado que sua
aparição seja, daqui pra frente, cíclica, em especial pela
aparente origem sendo uma zoonose, uma transferência
de doenças entre animal e ser humano, que se dá em con-
textos com cada vez menos diversidade. Teremos que nos
perguntar, por isso, quem consideraremos “nós” no futu-
ro, quem fará parte do corpo a ser protegido; quem fica-
rá simplesmente como transmissor viral… Frente a uma
imunidade radical que é claramente impossível em plena
globalização, vamos ver se somos capazes duma imuni-
dade comunitária, virtuosa. Já há, por exemplo, pessoas
trabalhando em residências e na Saúde que, estando in-
fectados/as e não tendo sintomas ou sendo estes leves,
permitindo-lhes ter uma vida normal, tem declarado que
preferem continuar trabalhando com doentes, em contex-
tos onde não contagiam e ao mesmo tempo que isto as

161 | Hospitalidade e imunidade virtuosa


ajuda a não contagiar a suas famílias. Essa é uma gestão
comunitária da imunidade, uma imunidade negociada, e
quebra com o mantra do isolamento total dos doentes, de
sua individualização, da fronteira radical, da imaginação
da separação como solução absoluta… Mudar o olhar abre
portas a novas soluções.
Continuemos atent(os)as, sejamos hospitaleir(os)as com
o acontecimento, com a outreidade, mas sobretudo com “es
outres”. Que não sejamos engolidos pela imunidade. E quem
sabe se o futuro trará algo novo, porvir, mas não qualquer
porvir, não qualquer tempo futuro com mais do mesmo.

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Aprendendo com o vírus
Por Paul B. Preciado*

Publicado em El País
28 de março, 2020
Tradução inédita dos geógrafos Gustavo Teramatsu
e Wagner Nabarro

A gestão política das epidemias põe em cena a utopia de comu-


nidade e as fantasias de imunidade de uma sociedade, exter-
nalizando seus sonhos de onipotência de sua soberania política

Se Michel Foucault tivesse sobrevivido ao flagelo da Aids e


resistido até a invenção da triterapia teria 93 anos hoje: te-
ria aceitado de bom grado ter se trancado em seu aparta-
mento na Rue de Vaugirard? O primeiro filósofo da história
a morrer pelas complicações geradas pelo vírus da imuno-
deficiência adquirida nos deixou algumas das noções mais
eficazes para pensar sobre a gestão política da epidemia

[*] Paul B. Preciado (España, 1970) é um filósofo transgênero, conhecido


por suas contribuições à teoria queer e à filosofia do gênero. Ele foi
discípulo de Ágnes Heller e Jacques Derrida.

163 | Aprendendo com o vírus


que, em meio ao pânico e à desinformação, tornam-se tão
úteis como uma boa máscara cognitiva.
O mais importante que aprendemos com Foucault é
que o corpo vivo (e, portanto, mortal) é o objeto central
de toda política. Il n’y a pas de politique qui ne soit pas une
politique des corps (não existe uma política que não seja
uma política dos corpos). Mas o corpo não é para Foucault
um organismo biológico dado sobre o qual o poder age. A
própria tarefa da ação política é fabricar um corpo, colocá-
lo em funcionamento, definir seus modos de reprodução,
prefigurar as modalidades de discurso por meio das quais
esse corpo se torna ficcionalizado até poder dizer “eu”.
Todo o trabalho de Foucault poderia ser entendido como
uma análise histórica das diferentes técnicas pelas quais
o poder gerencia a vida e a morte das populações. Entre
1975 e 1976, os anos em que publicou Vigiar e Punir e o
primeiro volume da História da Sexualidade, Foucault usou
a noção de “biopolítica” para falar de uma relação que o
poder estabeleceu com o corpo social na modernidade.
Ele descreveu a transição do que chamou de “sociedade
soberana” para uma “sociedade disciplinar” como o passo
de uma sociedade que define a soberania em termos de
decisão e ritualização da morte para uma sociedade que
gerencia e maximiza a vida das populações em termos
de interesse nacional. Para Foucault, as técnicas gover-
namentais biopolíticas se estendiam como uma rede de
poder que transbordava a esfera legal ou a esfera puni-

Paul B. Preciado | 164


tiva, tornando-se uma força “somatopolítica”, uma forma
de poder espacializado que se estendia pela totalidade do
território até penetrar no corpo individual.
Durante e após a crise da Aids, vários autores expan-
diram e radicalizaram as hipóteses de Foucault e suas
relações com as políticas imunológicas. O filósofo italiano
Roberto Espósito analisou as relações entre a noção políti-
ca de “comunidade” e a noção biomédica e epidemiológica
de “imunidade”. Comunidade e imunidade compartilham a
mesma raiz, munus. Em latim o munus era o tributo que
alguém tinha que pagar para viver ou fazer parte da co-
munidade. A comunidade é cum (com) munus (dever, lei,
obrigação, mas também oferenda): um grupo humano
estreitamente unido por uma lei e por uma obrigação co-
mum, mas também por um presente, por uma oferenda. O
substantivo immunitas é um vocábulo privativo que deriva
da negação do munus. No direito romano, a immunitas era
uma dispensa ou um privilégio que exonerava alguém dos
deveres societários que são comuns a todos. Aquele que
foi exonerado estava imune. Enquanto aquele que estava
desmunido era aquele a que se havia retirado todos os pri-
vilégios da vida em comunidade.
Roberto Espósito nos ensina que toda biopolítica é
imunológica: supõe uma definição de comunidade e o es-
tabelecimento de uma hierarquia entre aqueles corpos
que estão isentos de tributos (aqueles que são conside-
rados imunes) e aqueles que a comunidade percebe como

165 | Aprendendo com o vírus


potencialmente perigosos (os démunis) e que eles serão
excluídos em um ato de proteção imunológica. Esse é o
paradoxo da biopolítica: todo ato de proteção implica uma
definição de imunidade da comunidade, segundo a qual
esta se dará a si mesma a autoridade para sacrificar ou-
tras vidas para o benefício de uma ideia de sua própria
soberania. O estado de exceção é a normalização desse
paradoxo insuportável.
A partir do século XIX, com a descoberta da primeira
vacina contra varíola e os experimentos de Pasteur e Koch,
a noção de imunidade migrou do âmbito do direito e ad-
quiriu uma significação médica. As democracias liberais
e patriarcais-coloniais europeias do século XIX constroem
o ideal do indivíduo moderno não apenas como um agente
econômico livre (masculino, branco, heterossexual), mas
também como um corpo imune, radicalmente separado,
que não deve nada à comunidade. Para Espósito, a manei-
ra pela qual a Alemanha nazista caracterizou parte de sua
própria população (os judeus, mas também os ciganos,
homossexuais, as pessoas com deficiência) como corpos
que ameaçavam a soberania da comunidade ariana é um
exemplo paradigmático dos perigos da gestão imunoló-
gica. Essa compreensão imunológica da sociedade não
acabou com o nazismo, mas, pelo contrário, sobreviveu na
Europa legitimando as políticas neoliberais de gestão de
suas minorias racializadas e das populações migrantes. É
esta compreensão imunológica que forjou a comunidade

Paul B. Preciado | 166


econômica europeia, o mito de Shengen e as técnicas da
Frontex [Agência Europeia de Gestão da Cooperação Ope-
racional nas Fronteiras Externas] nos últimos anos.
Em 1994, em Flexible Bodies, a antropóloga Emily Mar-
tin, da Universidade de Princeton, analisou a relação entre
imunidade e política na cultura americana durante as cri-
ses de poliomielite e AIDS. Martin chegou a algumas con-
clusões pertinentes para analisar a crise atual. A imunida-
de corporal, argumenta Martin, não é apenas um mero fato
biológico independente de variáveis culturais e políticas.
Pelo contrário, o que entendemos por imunidade se cons-
trói coletivamente por meio de critérios sociais e políticos
que alternadamente produzem soberania ou exclusão,
proteção ou estigma, vida ou morte.
Se voltamos a pensar a história de algumas das epide-
mias globais dos últimos cinco séculos sob o prisma ofe-
recido por Michel Foucault, Roberto Espósito e Emily Mar-
tin, é possível elaborar uma hipótese que poderia assumir
a forma de uma equação: conte-me como sua comunidade
constrói sua soberania política e eu lhe direi quais formas
suas epidemias tomarão e como você as enfrentará.
As diferentes epidemias materializam no âmbito do
corpo individual as obsessões que dominam a gestão po-
lítica da vida e da morte das populações em um determi-
nado período. Para colocar nos termos de Foucault, uma
epidemia radicaliza e desloca as técnicas biopolíticas apli-
cadas no território nacional até o nível da anatomia políti-

167 | Aprendendo com o vírus


ca, inscrevendo-as no corpo individual. Ao mesmo tempo,
uma epidemia possibilita estender a toda a população as
medidas políticas de “imunização” que haviam sido apli-
cadas até agora de maneira violenta contra aqueles que
eram considerados “estrangeiros” tanto dentro como nas
fronteiras do território nacional.
A gestão política das epidemias põe em cena a utopia
da comunidade e as fantasias de imunidade de uma so-
ciedade, exteriorizando seus sonhos de onipotência (e os
fracassos retumbantes) de sua soberania política. A hipó-
tese de Michel Foucault, Roberto Espósito e Emily Martin
não tem nada a ver com uma teoria da conspiração. Não se
trata da ideia ridícula de que o vírus seja uma invenção de
laboratório ou um plano maquiavélico para estender ainda
mais políticas autoritárias. Pelo contrário, o vírus atua à
nossa imagem e semelhança, não faz mais do que replicar,
materializar, intensificar e estender a toda a população as
formas dominantes da gestão biopolítica e necropolítica
que já estavam trabalhando no território nacional e em
suas fronteiras. Portanto, cada sociedade pode ser defini-
da pela epidemia que a ameaça e pelo modo de se organi-
zar frente a ela.
Pensemos, por exemplo, na sífilis. A epidemia atingiu
a cidade de Nápoles pela primeira vez em 1494. O empre-
endimento colonial europeu havia acabado de começar. A
sífilis era como a arma de partida para a destruição colo-
nial e as políticas raciais que viriam com elas. Os ingleses

Paul B. Preciado | 168


a chamaram de “a doença francesa”, os franceses diziam
que era “o mal napolitano” e os napolitanos, que ela tinha
vindo da América: dizia-se ter sido trazida pelos coloni-
zadores que haviam sido infectados pelos indígenas… O
vírus, como Derrida nos ensinou, é, por definição, o estran-
geiro, o outro, o estrangeiro. Infecção sexualmente trans-
missível, a sífilis materializou nos corpos dos séculos XVI
ao XIX as formas de repressão e exclusão social que do-
minavam a modernidade patriarcal-colonial: a obsessão
pela pureza racial, a proibição dos chamados “casamen-
tos mistos” entre pessoas de diferentes classes e “raças”
e as múltiplas restrições que pesavam sobre as relações
sexuais e extraconjugais.
A utopia da comunidade e o modelo de imunidade da
sífilis é o do corpo branco burguês sexualmente confinado
na vida matrimonial como núcleo da reprodução do corpo
nacional. Portanto, a prostituta tornou-se o corpo vivo que
condensou todos os significantes políticos abjetos durante
a epidemia: uma mulher trabalhadora e muitas vezes racia-
lizada, um corpo fora das normas domésticas e matrimo-
niais, que fazia de sua sexualidade seu meio de produção,
a trabalhadora foi visibilizada, controlada e estigmatizada
como o principal vetor da disseminação do vírus. Mas não
foi a repressão da prostituição ou o confinamento de pros-
titutas em bordéis nacionais (como Restif de la Bretonne
imaginou) o que curou a sífilis. Muito pelo contrário. O isola-
mento das prostitutas apenas as tornou mais vulneráveis ​​à

169 | Aprendendo com o vírus


doença. O que curou a sífilis foi a descoberta de antibióticos
e especialmente penicilina em 1928, precisamente um mo-
mento de profundas transformações da política sexual na
Europa com os primeiros movimentos de descolonização, o
acesso das mulheres brancas ao voto, as primeiras descri-
minalizações da homossexualidade e uma relativa liberali-
zação da ética matrimonial heterossexual.
Meio século depois, a AIDS foi para a sociedade neo-
liberal heteronormativa do século XX o que a sífilis havia
sido para a sociedade industrial e colonial. Os primeiros
casos surgiram em 1981, precisamente no momento em
que a homossexualidade não era mais considerada uma
doença psiquiátrica, depois de ter sido objeto de perse-
guição e discriminação social durante décadas. A primei-
ra fase da epidemia afetou, prioritariamente, o chamado
4 H: homossexuais, hookers — profissionais do sexo —,
hemofílicos e heroin users — heroinômanos. A AIDS re-
masterizou e atualizou a rede de controle sobre o corpo e
a sexualidade que a sífilis havia tecido e que a penicilina
e a descolonização, os movimentos feministas e gays ha-
viam desarticulado e transformado nas décadas de 1960
e 1970. Como no caso das prostitutas na crise da sífilis, a
repressão à homossexualidade apenas causou mais mor-
tes. O que está transformando progressivamente a AIDS
em uma doença crônica tem sido a despatologização da
homossexualidade, a autonomia farmacológica do Sul, a
emancipação sexual das mulheres, o direito de dizer não

Paul B. Preciado | 170


às práticas sem preservativo e o acesso da população
afetada, independentemente de sua classe social ou grau
de racialização, a triterapias. O modelo de comunidade /
imunidade da AIDS tem a ver com a fantasia da soberania
sexual masculina entendida como um direito inegociável
de penetração, enquanto qualquer corpo penetrado sexu-
almente (homossexual, feminino, todas as formas de ana-
lidade) é percebido como desprovido de soberania.
Voltemos agora à nossa situação atual. Muito antes do
surgimento da COVID-19, já tínhamos iniciado um proces-
so de mudança planetária. Antes do vírus, já estávamos
passando por uma transformação social e política tão pro-
funda quanto a que afetou as sociedades que desenvol-
veram sífilis. No século XV, com a invenção da imprensa
e a expansão do capitalismo colonial, passou-se de uma
sociedade oral para uma sociedade escrita, de um modo
de produção feudal para um modo de produção industrial-
escravagista e de uma sociedade teocrática para uma so-
ciedade regida por acordos científicos em que as noções
de sexo, raça e sexualidade se tornariam dispositivos de
controle necro-biopolítico da população.
Hoje, estamos passando de uma sociedade escrita para
uma sociedade ciberoral, de uma sociedade orgânica para
uma sociedade digital, de uma economia industrial para
uma economia imaterial, de uma forma de controle disci-
plinar e arquitetônico para formas de controle microproté-
tico e midiático-cibernéticos. Em outros textos, chamei de

171 | Aprendendo com o vírus


farmacopornográfica o tipo de gestão e produção do corpo
e da subjetividade sexual dentro dessa nova configuração
política. O corpo e a subjetividade contemporâneos já não
são mais regulados unicamente pela passagem por insti-
tuições disciplinares (escola, fábrica, casa, hospital etc.),
mas, e acima de tudo, por um conjunto de tecnologias bio-
moleculares, microprotéticas, digitais e de transmissão e
de informação. No campo da sexualidade, a modificação
farmacológica da consciência e do comportamento, a
mundialização da pílula contraceptiva para todas as “mu-
lheres”, bem como a produção de triterapias, terapias pre-
ventivas para a AIDS ou o viagra são alguns dos índices de
gestão biotecnológica. A extensão planetária da Internet, a
generalização do uso de tecnologias informáticas móveis,
o uso de inteligência artificial e algoritmos na análise de
big data, o intercâmbio de informação em alta velocidade
e o desenvolvimento de dispositivos globais de vigilância
informática por meio de satélites são indícios desta nova
gestão semiótica-técnica digital. Se eu os chamei de por-
nográficas, é porque, em primeiro lugar, essas técnicas de
biovigilância se introduzem dentro do corpo, atravessam
a pele, nos penetram; e segundo, porque os dispositivos
de biocontrole já não funcionam mais pela repressão da
sexualidade (masturbatória ou não), mas pela incitação ao
consumo e à produção constante de um prazer regulado e
quantificável. Quanto mais consumimos e mais saudáveis​​
somos, melhor somos controlados.

Paul B. Preciado | 172


A mudança que está ocorrendo também pode ser a
passagem de um regime patriarcal-colonial e extrativista,
de uma sociedade antropocêntrica e de uma política em
que uma parte muito pequena da comunidade humana
planetária se autoriza a si mesma a levar a cabo práticas
de predação universal, a uma sociedade capaz de redis-
tribuir energia e soberania. De uma sociedade de energia
fóssil a uma sociedade de energia renovável. Também está
em questão a transição de um modelo binário de diferença
sexual para um paradigma mais aberto, no qual a morfolo-
gia dos órgãos genitais e a capacidade reprodutiva de um
corpo não definem sua posição social a partir do momento
do nascimento; e de um modelo heteropatriarcal a formas
não hierárquicas de reprodução da vida. O que estará no
centro do debate durante e após esta crise é quais serão
as vidas que estaremos dispostos a salvar e quais serão
sacrificadas. É no contexto desta mudança, da transforma-
ção das formas de entender a comunidade (uma comuni-
dade que hoje é a totalidade do planeta) e da imunidade
onde o vírus opera e se torna uma estratégia política.

Imunidade e política da fronteira

O que caracterizou as políticas governamentais dos últimos


20 anos, desde ao menos a queda das Torres Gêmeas, em
face das aparentes ideias de liberdade de circulação que do-
minavam o neoliberalismo da era Thatcher, foi a redefinição

173 | Aprendendo com o vírus


dos estados-nação em termos neocoloniais e identitários e
um retorno à ideia de uma fronteira física como condição para
o restabelecimento da identidade nacional e da soberania po-
lítica. Israel, Estados Unidos, Rússia, Turquia e a Comunidade
Econômica Europeia lideraram o desenho de novas frontei-
ras que, pela primeira vez em décadas, não só foram vigiadas
e protegidas, mas foram reinscritas por meio da decisão de
erguer muros e construir diques, e defendidas com medidas
não biopolíticas, mas necropolíticas, com técnicas de morte.
Como sociedade europeia, decidimos nos construir
coletivamente como uma comunidade totalmente imune,
fechada ao Oriente e ao Sul, enquanto o Oriente e o Sul, do
ponto de vista dos recursos energéticos e da produção de
bens de consumo, são nosso armazém. Fechamos a fron-
teira na Grécia, construímos os maiores centros de deten-
ção ao ar livre da história nas ilhas que fazem fronteira
com a Turquia e o Mediterrâneo e fantasiamos que assim
conseguiríamos uma forma de imunidade. A destruição da
Europa começou paradoxalmente com essa construção de
uma comunidade européia imune, aberta em seu interior e
totalmente fechada para estrangeiros e migrantes.
O que está sendo ensaiado em escala planetária por
meio da gestão do vírus é um novo modo de entender a
soberania em um contexto em que a identidade sexual e
racial (eixos da segmentação política do mundo patriarcal
e colonial até agora) está sendo desarticulado. A COVID-19
deslocou as políticas de fronteira que estavam ocorrendo

Paul B. Preciado | 174


no território nacional ou no super-território europeu para
o nível de cada corpo individual. O corpo, seu corpo indivi-
dual, como espaço vivo e como trama de poder, como cen-
tro de produção e consumo de energia, tornou-se o novo
território no qual as políticas de fronteira agressivas que
projetamos e testamos durante anos são expressas agora
sob a forma de uma barreira e guerra contra o vírus. A
nova fronteira necropolítica mudou das costas da Grécia
até a porta do domicílio privado. Lesbos começa agora na
porta de sua casa. E a fronteira não para de te cercar, ela
empurra até ficar cada vez mais perto do seu corpo. Calais
explode agora na sua cara. A nova fronteira é a máscara. O
ar que você respira deve ser apenas seu. A nova fronteira
é a sua epiderme. O novo Lampedusa é a sua pele.
Reproduzem-se agora sobre os corpos individuais as po-
líticas da fronteira e as rigorosas medidas de confinamento
e imobilização que nós, como comunidade, aplicamos nos
últimos anos a migrantes e refugiados — até deixá-los fora
de toda comunidade. Durante anos, nós os tivemos no limbo
dos centros de detenção. Agora somos nós que vivemos no
limbo do centro de detenção de nossas próprias casas.

A biopolítica na era ‘farmacopornográfica’

As epidemias, por seu apelo a um estado de exceção e à


imposição inflexível de medidas extremas, também são
grandes laboratórios de inovação social, ocasião para uma

175 | Aprendendo com o vírus


reconfiguração em larga escala das técnicas do corpo e
das tecnologias do poder. Foucault analisou a mudança da
gestão da lepra para o controle da peste como o processo
pelo qual as técnicas disciplinares de espacialização do
poder da modernidade foram implantadas. Se a lepra foi
confrontada por medidas estritamente necropolíticas que
excluíram o leproso, condenando-o, senão à morte, pelo
menos à vida fora da comunidade, a reação à epidemia de
peste inventou a gestão disciplinar e suas formas de inclu-
são excludente: segmentação rigorosa da cidade, confina-
mento de cada corpo em cada casa.
As diferentes estratégias adotadas por diferentes paí-
ses diante da extensão da COVID-19 mostram dois tipos to-
talmente diferentes de tecnologias biopolíticas. A primeira,
operando principalmente na Itália, Espanha e França, aplica
medidas estritamente disciplinares que não são, em muitos
aspectos, muito diferentes daquelas usadas contra a pes-
te. Trata-se do confinamento doméstico de toda a popula-
ção. Vale a pena reler o capítulo sobre a gestão da peste na
Europa de Vigiar e Punir para perceber que as políticas de
gestão da COVID-19 não mudaram muito desde então. Aqui,
a lógica da fronteira arquitetônica funciona e o tratamento
de casos de infecção em ambientes hospitalares clássicos.
Essa técnica ainda não mostrou evidências de eficácia total.
A segunda estratégia, colocada em marcha pela Co-
réia do Sul, Taiwan, Cingapura, Hong Kong, Japão e Isra-
el, supõe a mudança de controle arquitetônico moderno

Paul B. Preciado | 176


e técnicas disciplinares para técnicas farmacoporno-
gráficas de biovigilância: aqui a ênfase está na detecção
individual do vírus por meio da multiplicação de testes
e vigilância digital constante e rigorosa dos pacientes
através de seus dispositivos informáticos móveis. Te-
lefones celulares e cartões de crédito aqui se tornam
instrumentos de vigilância que permitem rastrear os
movimentos do corpo individual. Não precisamos de
pulseiras biométricas: o celular se tornou o melhor bra-
celete, ninguém está separado dele. Um aplicativo de
GPS informa à polícia dos movimentos de qualquer cor-
po suspeito. A temperatura e o movimento de um cor-
po individual são monitorados por meio de tecnologias
móveis e observados em tempo real pelo olho digital de
um Estado ciber-autoritário para o qual a comunidade é
uma comunidade de ciberusuários e a soberania é aci-
ma de tudo transparência digital e gestão de big data.
Porém, essas políticas de imunização política não são
novas e não foram empregadas anteriormente somente
para a busca e captura dos assim chamados terroristas:
desde o início da década de 2010, por exemplo, Taiwan le-
galizou o acesso a todos os contatos de aplicativos de en-
contro sexual dos celulares com o objetivo de “prevenir” a
expansão da AIDS e a prostituição na internet. A COVID-19
legitimou e estendeu essas práticas estatais de biovigilân-
cia e controle digital normalizando-as e fazendo-as “ne-
cessárias” para manter uma certa ideia de imunidade. No

177 | Aprendendo com o vírus


entanto, os mesmos Estados que implementam medidas
de vigilância digital extrema não planejam proibir o trá-
fico e o consumo de animais selvagens ou a produção in-
dustrial de aves e mamíferos, nem reduzir as emissões de
CO2. O que aumentou não é a imunidade do corpo social,
mas a tolerância cidadã perante o controle cibernético es-
tatal e corporativo.
A gestão política da COVID-19 como forma de admi-
nistração da vida e da morte desenha os contornos de
uma nova subjetividade. O que se terá inventado depois
da crise é uma nova utopia da comunidade imune e uma
nova forma de controle do corpo. O sujeito do tecnopa-
triarcado neoliberal que a COVID-19 fabrica não tem
pele, é intocável, não tem mãos. Não troca bens físicos,
nem toca moedas, paga com cartão de crédito. Não tem
lábios, não tem língua. Não fala diretamente, deixa uma
mensagem de voz. Não se reúne nem se coletiviza. É
radicalmente indivíduo. Não tem rosto, tem máscara.
Seu corpo orgânico se oculta para poder existir por trás
de uma série indefinida de mediações semio-técnicas,
uma série de próteses cibernéticas que lhe servem de
máscara: a máscara do endereço de correio eletrônico,
a máscara da conta do Facebook, a máscara do Insta-
gram. Não é um agente físico, mas um consumidor digi-
tal, um teleprodutor, é um código, um pixel, uma conta
bancária, uma porta com um nome, um domicílio a que
Amazon pode enviar seus pedidos.

Paul B. Preciado | 178


A prisão branda: bem-vindo à telerrepública da sua casa

Um dos deslocamentos centrais das técnicas biopolíticas


farmacopornográficas que caracterizam a crise da CO-
VID-19 é que o domicílio pessoal — e não as instituições
tradicionais de confinamento e normalização (hospital, fá-
brica, prisão, colégio) — aparece agora como o novo centro
de produção, consumo e controle biopolítico. Já não se trata
só de que a casa seja o lugar de confinamento do corpo,
como era o caso da gestão da peste. O domicílio pessoal se
converteu agora no centro da economia do teleconsumo e
da teleprodução. O espaço doméstico existe agora como um
ponto em um espaço cibervigiado, um lugar identificável em
um mapa do Google, uma caixa reconhecível por um drone.
Se me interessei em seu momento pela Mansão Play-
boy é porque ela funcionou em plena guerra fria como um
laboratório no qual estavam sendo inventados novos dis-
positivos de controle farmacopornográfico do corpo e da
sexualidade que haveriam de se estender a partir do início
do século XXI e que agora se ampliam à totalidade da po-
pulação mundial com a crise da COVID-19. Quando fiz mi-
nha pesquisa sobre a Playboy, me chamou atenção o fato
de que Hugh Hefner, um dos homens mais ricos do mundo,
passou quase 40 anos sem sair de sua Mansão, vestido
unicamente com pijama, roupão e pantufas, bebendo coca-
cola e comendo aperitivos e pôde dirigir e produzir a re-
vista mais importante dos Estados Unidos sem sair de sua

179 | Aprendendo com o vírus


casa ou mesmo de sua cama. Suplementada com uma câ-
mera de vídeo, uma linha direta de telefone, rádio e música
ambiente, a cama de Hefner era uma autêntica plataforma
de produção multimídia da vida de seu habitante.
O biógrafo Steven Watts denominou Hefner como um
“um recluso voluntário em seu próprio paraíso”. Adepto
de dispositivos de arquivo audiovisual de todo tipo, Hef-
ner, muito antes que existisse o celular, o Facebook ou o
Whatsapp, enviava mais de vinte fitas de áudio e vídeo
com mensagens que iam de entrevistas ao vivo a diretri-
zes de publicação. Hefner havia instalado na mansão, na
qual viviam também uma dúzia de Playmates, um circuito
fechado de câmeras e podia, desde sua central de contro-
le, acessar todos os cômodos em tempo real. Coberta de
painéis de madeira e espessas cortinas, mas penetrada
por milhares de cabos e repleta do que nesse momento se
tinha como as mais altas tecnologias de telecomunicações
(e que hoje nos pareceriam absolutamente arcaicas), era
ao mesmo tempo totalmente opaca e totalmente transpa-
rente. Os materiais filmados pelas câmeras de vigilância
acabavam também nas páginas da revista.
A revolução biopolítica silenciosa que Playboy liderou
supunha, para além da transformação da pornografia he-
terossexual em cultura de massas, colocar em questão
a divisão que a sociedade industrial do século XIX havia
fundado: a separação das esferas da produção e da repro-
dução, a diferença entre a fábrica e a residência e com ela

Paul B. Preciado | 180


a distinção patriarcal entre masculinidade e feminilidade.
Playboy acatou essa diferença propondo a criação de um
novo enclave de vida: o apartamento de solteiro totalmen-
te conectado às novas tecnologias da comunicação com as
quais o novo produtor semiótico não necessita sair nem
para trabalhar, nem para praticar sexo — atividades que,
aliás, haviam se tornado indistinguíveis. Sua cama girató-
ria era ao mesmo tempo sua mesa de trabalho, um es-
critório de direção, um cenário fotográfico e um lugar de
compromissos sexuais, além do aparelho de televisão que
transmitia o famoso programa Playboy After Dark. Play-
boy antecipou os discursos contemporâneos sobre o te-
letrabalho e a produção imaterial que a gestão da crise
da COVID-19 transformou em um dever cidadão. Hefner
chamou esse novo produtor social de “trabalhador hori-
zontal”. O vetor de inovação social que Playboy colocou
em marcha era a erosão (para não dizer a destruição) da
distância entre trabalho e ócio, entre produção e sexo. A
vida do playboy, constantemente filmada e difundida nos
meios de comunicação da revista e da televisão, era to-
talmente pública, ainda que o playboy não saísse de sua
casa ou mesmo de sua cama. Nesse sentido, Playboy co-
locava também em questão a diferença entre as esferas
masculinas e femininas, fazendo com que o novo operá-
rio multimídia fosse o que parecia na época um oxímoro,
um homem doméstico. O biógrafo de Hefner nos recorda
que esse afastamento produtivo precisava de um suporte

181 | Aprendendo com o vírus


químico: Hefner era um grande consumidor de Dexedrina,
uma anfetamina que eliminava o cansaço e o sono. Desse
modo, paradoxalmente, o homem que nunca saía de sua
cama, não dormia nunca. A cama como novo centro de
operações multimídia era uma cela farmacopornográfica:
só poderia funcionar com a pílula anticoncepcional, drogas
que mantiveram o nível produtivo em alta e um constante
fluxo de códigos semióticos que haviam se convertido no
único e verdadeiro alimento que nutria o playboy.
Isso lhes soa familiar agora? Isso tudo parece estranho
a suas próprias vidas confinadas? Recordemos agora as
consignas do presidente francês Emmanuel Macron: esta-
mos em guerra, não saiam de casa e teletrabalhem. As me-
didas biopolíticas de gestão do contágio impostas frente ao
coronavírus têm feito com que cada um de nós nos transfor-
memos em um trabalhador horizontal mais ou menos play-
boyesco. O espaço doméstico de qualquer um de nós está
hoje dez mil vezes mais tecnificado do que estava a cama
giratória de Hefner em 1968. Os dispositivos de teletrabalho
e telecontrole estão agora na palma de nossas mãos.
Em Vigiar e Punir, Michel Foucault analisou as celas
religiosas de confinamento unipessoal como autênticos
vetores que serviram para modelizar a passagem das téc-
nicas soberanas e sangrentas de controle do corpo e da
subjetividade anteriores ao século XVIII para as arquitetu-
ras disciplinares e os dispositivos de confinamento como
novas técnicas de gestão da totalidade da população. As

Paul B. Preciado | 182


arquiteturas disciplinares foram versões secularizadas
das células monásticas nas que se gesta pela primeira vez
o indivíduo moderno como alma encerrada em um corpo,
um espírito leitor capaz de ler as consignas do Estado.
Quando o escritor Tom Wolfe visitou Hefner, disse que ele
vivia em uma prisão tão branda quanto o coração de uma
alcachofra. Podemos dizer que a mansão Playboy e a cama
giratória de Hefner, convertidos em objeto de consumismo
pop, funcionaram durante a guerra fria como espaços de
transição nos quais se inventa um novo sujeito protético,
ultraconectado e as novas formas de consumo e contro-
le farmacopornográficas e de vigilância que dominam a
sociedade contemporânea. Essa mutação se estendeu e
amplificou mais durante a gestão da crise da COVID-19:
nossas máquinas portáteis de telecomunicação são nos-
sos novos carcereiros e nossos interiores domésticos se
converteram na prisão branda e ultraconectada do futuro.

Mudança ou submissão

Porém, tudo isso pode ser uma má notícia ou uma grande


oportunidade. É precisamente porque nossos corpos são
os novos enclaves do biopoder e nossos apartamentos as
novas células de biovigilância que se torna mais urgente
do que nunca inventar novas estratégias de emancipação
cognitiva e de resistência e colocar em marcha novos pro-
cessos antagonistas.

183 | Aprendendo com o vírus


Contrariamente ao que se poderia imaginar, nossa saú-
de não virá da imposição de fronteiras ou da separação,
mas de um novo entendimento da comunidade com todos
os seres vivos, de um novo equilíbrio com os outros se-
res vivos do planeta. Precisamos de um parlamento dos
corpos planetário, um parlamento não definido em termos
de políticas de identidade nem de nacionalidades, um par-
lamento de corpos vivos (vulneráveis) que vivem no pla-
neta Terra. O evento COVID-19 e suas consequências nos
chamam a liberar-nos de uma vez por todas da violência
com que definimos nossa imunidade social. A cura e a re-
cuperação não podem ser o simples gesto imunológico
negativo da retirada do social, do confinamento da comu-
nidade. A cura e o cuidado só podem surgir de um pro-
cesso de transformação política. Sanar-nos a nós mesmos
como sociedade significa inventar uma nova comunidade
para além das políticas de identidade e da fronteira com as
que até agora produzimos a soberania, mas também para
além da redução da vida a sua biovigilância cibernética.
Seguir com vida, nos manter vivos como planeta perante
o vírus, mas também perante o que possa acontecer, sig-
nifica colocar em marcha formas estruturais de coopera-
ção planetária. Como o vírus muda, se queremos resistir à
submissão nós também devemos mudar.
É necessário passar de uma mudança forçada a uma
mudança deliberada. Devemos nos reapropriar critica-
mente das técnicas de biopolítica e de seus dispositivos

Paul B. Preciado | 184


farmacopornográficos. Em primeiro lugar, é imperativo
mudar a relação de nossos corpos com as máquinas de
biovigilância e biocontrole: eles não são simples disposi-
tivos de comunicação. Temos que aprender coletivamente
a alterá-los. Mas também é preciso nos desalinharmos.
Os Governos nos chamam ao confinamento e ao teletra-
balho. Utilizemos o tempo e a força do confinamento para
estudar as tradições de luta e resistência minoritárias que
nos ajudaram a sobreviver até aqui. Desliguemos os celu-
lares, desliguemos a internet. Façamos o grande blackout
perante os satélites que nos vigiam e imaginemos juntos a
revolução que vem.

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