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sopa de wuhan
Giorgio Agamben
Slavoj Zizek
Jean Luc Nancy
Franco “Bifo” Berardi
Santiago López Petit
Judith Butler
Alain Badiou
David Harvey
Byung-Chul Han
Raúl Zibechi
María Galindo
Markus Gabriel
Gustavo Yáñez González
Patricia Manrique
Paul B. Preciado
Título original: Sopa de Wuhan
Autores: Giorgio Agamben, Slavoj Zizek, Jean Luc Nancy,
Franco “Bifo” Berardi, Santiago López Petit, Judith Butler,
Alain Badiou, David Harvey, Byung-Chul Han, Raúl Zibechi,
María Galindo, Markus Gabriel, Gustavo Yañez González,
Patricia Manrique y Paul B. Preciado
188 páginas | 13 x 19 cm
pabloamadeo.editor@gmail.com
@pabloamadeo.editor
pablo.amadeo.editor
editorialsiesta@gmail.com
@editorialsiesta
a Li Wenliang
ÍNDICE
Exceção viral
Jean Luc Nancy (28 de fevereiro) 31
Contágio
Giorgio Agamben (11 de março) 33
Crônica da psicodeflação
Franco “Bifo” Berardi (16 de março) 37
13 | Nota editorial
Sobre a edição brasileira
Editorial Siesta
Publicado em Quodlibet.it
26 de fevereiro, 2020
Tradução: Sara Wagner Pimenta Gonçalves Junior para Medium
Giogio Agamben | 20
nicípio ou zona em questão; c) suspensão de eventos ou ini-
ciativas de qualquer tipo, atos e todas as formas de reunião
em local público ou privado, incluindo os de natureza cultural,
recreativa, esportiva e religiosa, mesmo que sejam realiza-
dos em locais fechados ou/e abertos; d) suspensão dos ser-
viços educativos para crianças e escolas de todos os níveis
e graus, bem como da frequência de atividades escolares e
do ensino superior, exceto para atividades de ensino à dis-
tância; e) suspensão dos serviços de abertura ao público de
museus e outras instituições culturais e locais referidos no
artigo 101º do Código do Património Cultural e da Paisagem,
conforme previsto no Decreto Legislativo nº 22 de Janeiro de
2004 42, bem como a eficácia das disposições regulamenta-
res sobre o acesso livre e sem restrições a estas instituições
e locais; f) suspensão de todas as viagens educativas, tanto
na Itália como no estrangeiro; g) suspensão dos processos de
falência e das atividades dos serviços públicos, sem prejuízo
da prestação dos serviços essenciais e dos serviços públicos;
h) aplicação da medida de quarentena com vigilância ativa
entre as pessoas que tenham estado em estreito contato com
casos confirmados de doenças infecciosas generalizadas.
A desproporção em relação ao que o NRC considera ser a
gripe normal, não muito diferente das que se repetem todos
os anos, é impressionante. Parece que, tendo esgotado o ter-
rorismo como causa das medidas excepcionais, a invenção
de uma epidemia pode oferecer o pretexto ideal para a sua
extensão para além de todos os limites.
Slavoj Žižek | 24
O que torna esse ataque tão fascinante é o tempo exis-
tente entre o golpe e o momento da morte: posso manter
uma agradável conversa enquanto eu permanecer sen-
tado e sossegado, mas durante todo esse tempo estarei
ciente de que no momento em que eu começar a andar,
meu coração irá explodir e eu cairei morto.
Não se parece com a ideia daqueles que especulam
sobre como o coronavírus levaria o sistema comunista da
China à sua queda? Numa espécie de “Técnica dos Cinco
Pontos para Explodir o Coração” social, no regime comu-
nista do país, as autoridades podem sentar-se, observar e
atravessar os movimentos da quarentena, mas qualquer
mudança real na ordem social (como confiar nas pessoas)
resultará em sua queda.
Minha modesta opinião é muito mais radical: a epide-
mia do coronavírus é uma espécie de “Técnica dos Cinco
Pontos para Explodir o Coração” de ataque ao sistema
capitalista internacional — um sinal de que não podemos
seguir pelo mesmo caminho que viemos até agora, de que
precisamos uma mudança radical.
Slavoj Žižek | 26
Nesse ponto, ele estava correto — estamos todos no
mesmo barco. É difícil não reparar na enorme ironia do fato:
aquilo que nos uniu e nos levou à solidariedade global se
expressa, no nível da vida cotidiana, em orientações seve-
ras para evitar o contato com os outros, e até de se isolar.
Além do mais, não estamos lidando apenas com amea-
ças virais — outras catástrofes já estão surgindo no horizon-
te ou mesmo acontecendo: secas, ondas de calor, tempesta-
des fora de controle, etc. Para todos esses casos, a resposta
não é o pânico, mas o trabalho árduo e urgente para estabe-
lecer algum tipo de coordenação global eficiente.
Slavoj Žižek | 28
como uma entidade viva. Lendo a mídia empresarial, fica-
mos com a impressão de que, na verdade, não deveríamos
nos preocupar com os milhares que morreram (nem com
os outros milhares que ainda vão morrer), mas com os
“mercados que estão ficando apreensivos”. O coronavírus
perturba cada vez mais o bom funcionamento do merca-
do mundial e, segundo o que ouvimos, o crescimento pode
cair dois ou três por cento.
Tudo isso não indica claramente a necessidade urgente
de uma reorganização da economia global, que não esteja
mais à mercê dos mecanismos de mercado? É óbvio que
não estamos falando de comunismo às antigas, mas de al-
guma forma de organização mundial que consiga contro-
lar e regular a economia — bem como limitar a soberania
dos estados-nação quando necessário. Os países já con-
seguiram fazer isso no contexto da guerra no passado, e
agora todos nós estamos, efetivamente, nos aproximando
de uma guerra clínica.
Além do mais, não devemos ter medo de reparar em al-
guns efeitos colaterais positivos da epidemia. Um de seus
símbolos são os passageiros aprisionados (em quarente-
na) em grandes cruzeiros — boa maneira de se libertar
da obscenidade desses navios, devo dizer. (Só precisamos
tomar cuidado para que as viagens a ilhas isoladas ou a
outros resorts exclusivos não se torne, novamente, o privi-
légio de uns poucos ricos, como aconteceu décadas atrás
com voos de avião). A produção de automóveis também se
Slavoj Žižek | 30
Exceção viral
Publicado em antinomie.it
28 de fevereiro, 2020
Tradução: rond@paranoici.org - Medium
31 | Exceção viral
as de Agamben) é de cerca de 1 para 30: não me parece uma
diferença pequena.
Giorgio alega que os governos se utilizam de pretextos
para estabelecer estados contínuos de exceção. Mas ele não
percebe que a exceção efetivamente se torna a regra em um
mundo onde as interligações técnicas de todo tipo (desloca-
mentos, transferências de todo tipo, exposição ou difusão de
substâncias, etc.) alcançam uma intensidade até então des-
conhecida e que cresce junto com a população. A multiplica-
ção desta última também inclui, nos países ricos, o prolonga-
mento da vida e o crescimento no número de idosos, e, em
geral, o de pessoas em risco.
Não devemos confundir o alvo: uma civilização intei-
ra está envolvida, não há dúvida. Há um tipo de exceção
viral —biológica, informática, cultural— que nos pande-
miza. Os governos nada mais são que tristes executores,
e atacá-los parece mais uma manobra de distração que
uma reflexão política.
Lembrei que Giorgio é um velho amigo. Lamento trazer à
tona uma memória pessoal, mas não me afasto, afinal de um
registro de reflexão geral. Quase trinta anos atrás os médicos
julgaram que eu deveria fazer um transplante de coração.
Giorgio foi uma das poucas pessoas que me aconselhou a
não os escutar. Se tivesse seguido seu conselho eu provavel-
mente teria morrido em pouco tempo. Podemos errar. Giorgio
continua sendo um espírito de uma delicadeza e gentileza a
que se pode chamar —e sem a menor ironia— excepcional.
Jean-Luc Nancy | 32
Contágio
Publicado em Quodlibet.it
11 de março, 2020
Tradução: Ricardo Moura para Medium
33 | Contágio
[grida]” milanês sobre a praga de 1576 os descreve assim,
convidando os cidadãos a denunciá-los:
Giogio Agamben | 34
deram de fato e de direito cada cidadão como um poten-
cial terrorista. A analogia é tão clara que o interlocutor em
potencial que não cumprir as prescrições é punido com
prisão. Particularmente invisível é a figura do portador
saudável ou precoce, que infecta uma multiplicidade de
indivíduos sem ser capaz de se defender contra ela. Como
alguém poderia se defender contra a infestação.
Ainda mais triste do que as limitações das liberdades im-
plícitas nas disposições é, na minha opinião, a degeneração
das relações entre os homens que elas podem produzir. O
outro homem, quem quer que seja, mesmo um ente querido,
não deve se aproximar ou tocar um ao outro e devemos co-
locar entre os dois uma distância que, segundo alguns, é de
um metro, mas, de acordo com as sugestões mais recentes
dos chamados especialistas, deve ser de 4,5 metros (esses
cinquenta centímetros são interessantes!). Nosso próximo
foi abolido. É possível, dada a inconsistência ética de nossos
governantes, que essas disposições sejam ditadas pelo mes-
mo temor que pretendem provocar, mas é difícil não pensar
que a situação criada é exatamente a que aqueles que nos
governam tentaram realizar repetidamente: que universida-
des e escolas sejam fechadas de uma vez por todas e que as
lições sejam dadas apenas de forma online, que paremos de
nos encontrar e conversar por razões políticas ou culturais
e apenas troquemos mensagens digitais. E que, tanto quan-
to for possível, as máquinas substituam todo contato — todo
contágio — entre os seres humanos.
35 | Contágio
Crônica da psicodeflação
37 | Crônica da psicodeflação
conhece o silêncio. Tente deter o discurso subvocal. Experi-
mente dez segundos de silêncio interior. Você se encontrará
com um organismo resistente que te impõe falar. Esse orga-
nismo é a palavra.
William Burroughs, O ticket que explodiu
21 de fevereiro
Retornando de Lisboa, uma cena inesperada no aeroporto
de Bolonha. Na entrada há dois humanos completamente
cobertos com uma roupa branca, capacete luminescente e
um aparelho estranho nas mãos. O aparelho é uma pistola
termômetro de altíssima precisão que emite luzes violetas
para todos os lados.
Aproximam-se de cada passageiro, detém-no, apon-
tam a luz violeta na sua frente, controlam a temperatura e
logo o deixam ir.
Um pressentimento: estamos atravessando um novo
portal no processo de mutação tecnopsicótica?
28 de fevereiro
Desde que voltei de Lisboa não posso fazer outra coi-
sa: comprei umas vinte telas de pequenas proporções
e as pinto com tinta colorida, fragmentos fotográficos,
lápis, carvão. não sou pintor mas quando fico nervoso,
quando sinto que está acontecendo algo que gera vibra-
ções dolorosas no meu corpo, começo a rabiscar para
me relaxar.
2 de março
Um vírus semiótico na psicosfera bloqueia o funcionamen-
to abstrato da máquina, porque os corpos abrandam seus
movimentos, finalmente renunciam a ação, interrompem a
39 | Crônica da psicodeflação
pretensão do governo sobre o mundo e deixam que o tem-
po retome o fluxo no qual nadamos passivamente, segun-
do a técnica de natação conhecida como “fingir que estou
morto”. A nadada engole uma coisa depois da outra, mas
enquanto isso a ansiedade de manter unido o mundo que
mantinha o mundo unido vai se dissolvendo.
Não tem pânico, não tem medo, só silêncio. Revelar-se
revelou-se inútil, então detenhamo-nos.
Quanto tempo vai durar o efeito desta fixação psicótica
que chamamos de coronavirus? Dizem que a primavera ma-
tará o vírus, mas pelo contrário poderia exaltá-lo. Não sabe-
mos nada a respeito, como podemos saber qual temperatura
prefere? Pouco importa o quão letal seja a doença: parece
sê-lo modestamente, e esperamos que se dissolva logo.
Mas o efeito do vírus não é tanto o número de pessoas
que ele debilita e o pequeno número de pessoas que mata.
O efeito do vírus está na paralisia racional que ele propa-
ga. A economia mundial fechou sua parábola expansiva já
faz um tempo, mas não conseguimos aceitar a ideia do es-
tancamento como um novo regime a longo prazo. Agora o
vírus semiótico está nos ajudando nesta transição para a
imobilidade. Querem vê-lo?
3 de março
Como reage o organismo coletivo, o corpo planetário, a
mente hiperconectada submetida durante três décadas a
tensão ininterrupta da competência e da hiperestimula-
41 | Crônica da psicodeflação
Mas tem uma surpresa, um giro, um imprevisto que
frustra qualquer discurso sobre o inevitável. O imprevisto
que estivemos aguardando: a implosão. O organismo su-
perexcitado do gênero humano, depois de décadas de ace-
leração e frenesí, depois de alguns meses de convulsões
sem perspetivas, fechado num túnel cheio de raiva, de gri-
tos, de fumaça, finalmente se vê afetado pelo colapso: se
difunde uma gerontomaquia que mata principalmente oc-
togenários, mas bloqueia, peça por peça, a máquina global
de excitação, de frenesí, de crescimento da economia...
O capitalismo é uma axiomática, ou seja, funciona
baseado numa premissa não comprovada (a necessida-
de do crescimento ilimitado que faz possivel a acumu-
laçao do capital). Todas as concatenações lógicas e eco-
nômicas são coerentes com esse axioma, e nada pode
ser concebido ou tentado fora desse axioma. Não existe
uma saída política da axiomática do Capital, não existe
uma linguagem capaz de enunciar o exterior da lingua-
gem, não há possibilidade de destruir o sistema, porque
o processo linguístico todo acontece dentro dessa axio-
mática que não permite a possibilidade de enunciados
eficazes extra sistêmicos. A única saída é a morte, como
aprendemos com Baudrillard.
Só depois da morte poderemos começar a viver. De-
pois da morte do sistema, os organismos extra sistêmicos
poderão começar a viver. Sempre que sobrevivam, claro, e
não têm certeza disso.
4 de Março
É esta nossa última chance? Não sabíamos como nos des-
fazer do polvo, não sabíamos como sair do cadáver do Ca-
pital; viver sem esse cadáver que apodrece a existência de
todos, mas agora o choque é o prelúdio da deflação psí-
quica definitiva. No cadáver do Capital éramos obrigados a
superestimulação, a aceleração constante, a competência
generalizada e a superexploração com salários decres-
centes. Agora o vírus esvazia a bolha da aceleração.
Faz tempo que o capitalismo se encontra num estado
de estancamento irremediável. Mas continuar exigindo
aos animais de carga que somos, para nos obrigar a conti-
nuar correndo, ainda quando o crescimento se tornou num
espelhismo triste e impossível.
Não dava para pensar numa revolução porque a subje-
tividade está confusa, deprimida, convulsiva, e o cérebro
político já não tem controle nenhum sobre a realidade. E
é aqui então uma revolução sem subjetividade, puramen-
43 | Crônica da psicodeflação
te implosiva, um revolta da passividade, da resignação.
Resignemo-nos. De repente, esta parece ser uma consig-
na ultra subversiva. Chega da agitação inútil que deveria
melhorar e no entanto só produz uma piora na qualidade
da vida. Literalmente: não há mais nada a fazer. Então não
façamos nada.
É difícil que o organismo coletivo se recupere desse
choque psicótico-viral e que a economia capitalista, agora
reduzida a um estagnação irremediável, retome seu ca-
minho glorioso. Podemos nos afundar no inferno de uma
detenção tecno-militar de que só a Amazon e o Pentágono
tem as chaves. Ou bem podemos esquecer a dívida, o cré-
dito, o dinheiro e a acumulaçao.
O que a vontade política não tem conseguido fazer po-
deria ser feito pela potência mutante do vírus. Mas essa
fuga deve ser preparada imaginando o possível, agora que
o imprevisível tem rasgado a tela do inevitável.
5 de Março
Manifestam-se os primeiros sinais do desmoronamento
do sistema das Bolsas e da economia, os especialistas em
temas econômicos observam que dessa vez, a diferença
de 2008, as intervenções dos bancos centrais e outros or-
ganismos financeiros não serão de muita utilidade.
Pela primeira vez, a crise não surge de fatores finan-
ceiros nem sequer de fatores estritamente econômicos, do
jogo da oferta e demanda. A crise provém do corpo.
6 de Março
Naturalmente, pode se argumentar exatamente o contrário
do que eu disse: o neoliberalismo, no seu matrimônio com o
etnonacionalismo, deve dar um pulo no processo de abstra-
ção total da vida. Eis, então, o vírus que obriga todos a ficar
em casa, mas não bloqueia a circulação das mercadorias.
Estamos no limiar de uma forma tecnototalitaria na qual os
corpos serão distribuidos, controlados, distanciados.
No Internazionale se publica uma matéria de Srecko
Horvat (tradução de New Statesman).
45 | Crônica da psicodeflação
Segundo Horvat, “o coronavirus não é uma ameaça
para a economia neoliberal, mas, ao contrário, cria o con-
texto perfeito para essa ideologia. Mas, do ponto de vista
político o vírus é um perigo, porque uma crise sanitária po-
deria favorecer ao objetivo etnonacionalista de reforçar as
fronteiras e desafiar a exclusividade racial, de interromper
a livre circulação das pessoas (especialmente se elas vêm
de países em desenvolvimento) sem deixar de garantir
uma circulação de bens e capitais sem controle.
“O medo de uma pandemia é mais perigoso do que o
próprio vírus. As imagens apocalípticas nas mídias ocul-
tam um vínculo profundo entre a extrema direita e a eco-
nomia capitalista. Como um vírus que precisa de uma cé-
lula viva para se reproduzir, o capitalismo também vai se
adaptar à nova biopolítica do século XXI”.
“O novo coronavirus já tem impactado a economia glo-
bal, mas não impedirá a circulação e a acumulaçao do ca-
pital. Se for o caso, logo nascerá uma forma mais perigosa
de capitalismo, que contará com um maior controle e uma
maior purificação das populações”.
Naturalmente, a hipótese formulada por Horvat é realista.
Mais eu acho que essa hipóteses mais realista não se-
ria realista, porque subestima a dimensão subjetiva do co-
lapso e os efeitos a longo prazo da deflação psíquica sobre
a estagnação econômica.
O capitalismo conseguiu sobreviver ao colapso finan-
ceiro de 2008 porque as condições do colapso foram todas
7 de Março
Meu amigo matemático, Alex, me escreve: “Todos os recur-
sos superinformaticos estão comprometidos para achar o
antídoto ao corona. Esta noite sonhei com a batalha final
entre o biovirus e os vírus simulados. Em todo caso, o hu-
mano já está fora, eu acho”.
A rede mundial informática está procurando a fórmula
capaz de enfrentar o infovírus contra o biovirus. É preciso
decodificar, simular matematicamente, construir tecnica-
mente o corona-killer, para difundi-lo depois.
Enquanto isso, a energia se retira do corpo social, e a
política mostra sua importância constitutiva. A política
cada vez mais é o lugar do poder, porque a vontade não
tem controle sobre o infovirus. O biovirus prolifera no
corpo estressado da humanidade global. Parece que os
pulmões são o ponto mais fraco. As doenças respirató-
rias tem se propagado durante anos proporcionalmente
à propagação de substâncias irrespiráveis na atmosfe-
ra. Mais o colapso acontece quando, ao se encontrar com
o sistema midiático, entrelaçar-se com a rede semióti-
ca, o biovirus tem transferida sua potência debilitante
ao sistema nervoso, ao cérebro coletivo, obrigando-o a
abrandar seus ritmos.
47 | Crônica da psicodeflação
8 de Março
Durante a noite, o Primeiro Ministro Conte comunica a de-
cisão de pôr em quarentena um quarto da população ita-
liana. Piacenza, Parma, Reggio e Modena estão em qua-
rentena. Bolonha não. Por enquanto.
Nos últimos dias falei com Fabio, falei com Lucía, e tí-
nhamos decidido nos reunir esta noite para jantar. Faze-
mos isso de vez em quando, nos encontramos em algum
restaurante ou na casa do Fabio. São jantares um pouco
tristes ainda se não o expressamos, porque os três sabe-
mos que é o resíduo artificial do que antes acontecia de
um jeito completamente natural várias vezes na semana,
quando nos reuniamos com nossa mãe.
Esse hábito da nossa mãe de nos encontrar para almo-
çar (ou, mais raramente, para jantar) tinha permanecido,
apesar de todos os eventos, os movimentos, as mudanças,
depois da morte do pai: nos encontrávamos para almoçar
com mamãe toda vez que que fosse possível.
Quando minha mãe se viu incapaz de preparar o almo-
ço, esse hábito terminou. E pouco a pouco, a relação entre
nós três tem mudado. Até então, apesar de ter sessen-
ta anos, tínhamos continuado nos vendo quase todos os
dias de um modo natural, tínhamos continuado a ocupar
o mesmo lugar na mesa que ocupavamos quando tínha-
mos dez anos. Ao redor da mesa aconteciam os mesmos
rituais. Mamãe sentava junto ao aquecedor porque isto lhe
permitia continuar tomando conta da cozinha enquanto
49 | Crônica da psicodeflação
tivo pelo qual decidiram me fazer uma análise também,
e enquanto aguardo nao posso sair de casa. Eu respondi
de um jeito cético, mas ela foi implacável e me falou algo
bastante impressionante, que eu ainda nao tinha pensado.
Me falou que a taxa de transmissão de uma gripe
normal é de zero ponto vinte um, enquanto a taxa de
transmissão do coronavirus é de zero ponto oitenta.
Para ser claros: no caso de uma gripe normal, tem que
se encontrar com quinhentas pessoas para pegar o ví-
rus, mas no caso do corona basta que se encontre com
cento e vinte. Interessante.
Logo, ela, que parece estar informadíssima porque foi
fazer o exame e portanto falou com os que estão na linha
da frente do contágio, me disse que a média de idade dos
mortos é de oitenta e um anos.
Bom, eu já suspeitava disso, mas agora eu sei. O coro-
navirus mata velhos, em particular mata velhos asmáticos
(que nem eu).
Na sua última comunicação, Giuseppe Conte, que eu
acho que é uma boa pessoa, um presidente quase por ca-
sualidade que nunca deixou de parecer alguém que pouco
tem a ver com a política, falou: “pensemos na saúde dos
nossos avós”. Comovedor, já que me encontro no incômodo
papel do avô a ser protegido.
Tendo abandonado o ceticismo, agradeci a Tania e falei
que seguiria suas recomendações. Liguei para Lucía, fala-
mos um pouco e decidimos postergar o jantar.
9 de Março
O problema mais grave é a sobrecarga a que está subme-
tido o sistema de saúde: as unidades de terapia intensiva
estão à beira do colapso. Existe o perigo de não poder curar
a todos os que precisam de uma intervenção urgente, fala-
se da possibilidade de escolher entre pacientes que podem
ser curados e pacientes que não podem ser curados.
Nos últimos dez anos, cortaram 37 bilhões do sistema
de saúde pública, reduziram-se as unidades de cuidados
intensivos e o número de médicos gerais diminuiu dras-
ticamente. Segundo o site quotidianosanità.it, “em 2007
o Serviço Sanitário Nacional Público tinha 334 Departa-
mentos de emergência-urgência (Dea) e 530 de pronto
socorro. Eis que, dez anos mais tarde a dieta tem sido
drástica: 49 Dea foram fechados (-14%) e 166 pronto so-
corro já não existem (-22%). Mas o recorte mais evidente
é nas ambulâncias, tanto para as do Tipo A (emergência)
quanto as do Tipo B (transporte sanitário). Em 2017, as
51 | Crônica da psicodeflação
do Tipo A foram reduzidas em 4% comparando com dez
anos atrás, enquanto as do Tipo B foram reduzidas pela
metade (-52%). Devemos considerar também como tem
diminuído drasticamente as ambulâncias com médicos a
bordo: em 2007, o médico estava presente em 22% dos
veículos, enquanto em 2017 só em 14,7%. As unidades
móveis de reanimação também foram reduzidas em 37%
(eram 329 em 2007, e 205 em 2017). O ajuste tem afeta-
do também as residências privadas para idosos, que de
qualquer jeito tem bem menos estrutura e ambulâncias
que os hospitais públicos.
“A partir dos dados pode se perceber como tem ha-
vido uma contração progressiva no número de leitos em
escala nacional, muito mais evidente e relevante no nú-
mero de leitos públicos comparado com a proporção de
leitos administrados pela iniciativa privada: o recorte do
total de 32.717 leitos remete principalmente ao servi-
ço público, com 28.832 leitos a menos do que em 2010
(-16%) comparado com 4.335 leitos a menos no serviço
privado (-6,3%)”.
10 de Março
“Somos ondas do mesmo mar, folhas da mesma árvore,
flores do mesmo jardim”.
Isto vem escrito nas dezenas de caixas de máscaras
que chegam da China. As mesmas máscaras que a Europa
tem nos rejeitado.
12 de Março
Itália. O país todo entra em quarentena. O vírus corre mais
rápido do que as medidas de contenção.
53 | Crônica da psicodeflação
Billi e eu botamos a máscara, pegamos a bicicleta e va-
mos às compras. Só as farmácias e os mercados de alimen-
tos podem permanecer abertos. E também as bancas, com-
pramos os jornais. E as tabaqueiras. Compro papel de seda,
mas o haxixe na sua caixa de madeira está escasso. Logo
ficarei sem drogas, e na Piazza Verdi ja nao tem nenhum
dos garotos africanos que vendem para os estudantes.
Trump usou a expressão “foreign virus” (vírus
estrangeiro).
All viruses are foreign by definition, but the President
has not read William Burroughs (Todos os vírus são por
definição estrangeiros, mas o Presidente não leu William
Burroughs).
13 de Março
No Facebook tem um cara engenhoso que publicou no meu
perfil a frase: “Ola Bifo, aboliram o trabalho”.
Na realidade, o trabalho é abolido só para uns poucos.
Os operários das indústrias estão no pé de guerra porque
tem que ir para a fábrica como sempre, sem máscara ou
outras proteções, a meio metro de distância um do outro.
O colapso, logo as férias longas. Ninguém pode dizer
como sairemos desta.
Poderíamos sair, como alguém predisse, sob as condi-
ções de um estado tecno-totalitário perfeito. No livro Black
Earth, Timothy Snyder explica que não há melhor condição
para a formação de regimes totalitários do que situações
55 | Crônica da psicodeflação
Mas, ao contrário, poderíamos sair dela com um grande
desejo de abraçar: solidariedade social, contato, igualdade.
O vírus é a condição de um pulo mental que nenhum
discurso político teria como produzir. A igualdade tem
voltado ao centro da cena. Imaginemo-la como o ponto de
partida para o tempo que virá.
Publicado em elcritic.cat
18 de março, 2020
Tradução: Caro Pierro
Publicado em versobooks.com
19 de março, 2020
Tradução: Artur Renzo para o Blog Boitempo
[*] Judith Butler (EEUU, 1956) Judith Butler (EEUU, 1956) é uma filósofa
pós-estruturalista norteamericana, que tem feito importantes aportes
na cena feminista, a teoria queer, a filosofia política e a ética. Autora
de Problemas de gênero. Feminismo e subversão da identidade (1990)
e Corpos que importam. O limite discursivo do sexo (1993), e traduzida
em 20 idiomas, ambos livros descrevem o que hoje conhecemos como a
teoria queer. Outros trabalhos de Butler abordam problemas relevantes
para disciplinas acadêmicas como filosofia, direito, sociologia, ciências
políticas, cinema e literatura.
Judith Butler | 62
eficaz contra a COVID-19. Claramente ávido para marcar
pontos políticos que poderão garantir sua reeleição, Trump
já tentou comprar (com dinheiro) direitos exclusivos para
os EUA de uma vacina de uma empresa alemã, a CureVac,
financiada pelo governo alemão. O Ministro Alemão de
Saúde, que certamente não deve ter ficado nada conten-
te, confirmou à imprensa alemã que a oferta foi de fato
feita. Um político alemão, Karl Lauterbach, comentou: “A
venda exclusiva aos EUA de uma possível vacina precisa
ser evitada a todo custo. Capitalismo tem limites.” Supo-
nho que ele estava questionando o “uso exclusivo” e não
ficaria nem um pouco mais satisfeito com a mesma pro-
visão caso ela se aplicasse exclusivamente aos alemães.
Assim esperemos, porque podemos imaginar um mundo
no qual vidas europeias são valorizadas acima de todas
as outras – vemos esse tipo de valoração se desenrolando
violentamente nas fronteiras da União Europeia.
Não faz sentido recolocar a questão, o que Trump estava
pensando? A questão foi levantada tantas vezes em um es-
tado de completa exasperação que não podemos nem ficar
surpresos. Isso não significa que nossa raiva diminui com
cada nova instância de auto-engrandecimento antiético ou
criminoso. Se ele tivesse êxito no seu esforço de comprar
uma potencial vacina e restringir seu uso apenas aos cida-
dãos estadunidenses, será que ele acredita que esses ci-
dadãos aplaudiriam seus esforços, extasiados com a ideia
de estarem livres de uma ameaça mortífera quando outros
Judith Butler | 64
protegidos contra a morte a qualquer custo e aqueles cujas
vidas são consideradas não valerem o bastante para serem
salvaguardadas contra a doença e a morte.
Tudo isso ocorre sob o pano de fundo da disputa presi-
dencial estadunidense na qual as chances de Bernie San-
ders emplacar a nomeação do Partido Democrata parecem
agora ser muito remotas, embora não sejam estatistica-
mente impossíveis. As novas projeções que colocam Joe
Biden claramente como o candidato favorito são devasta-
doras nestes tempos precisamente porque tanto Sanders
quanto Elizabeth Warren defendiam a pauta do “Medicare
for All”, um programa abrangente de saúde pública que ga-
rantiria atendimento básico de saúde para todas as pessoas
no país. Tal programa acabaria com as empresas de plano
de saúde organizadas em função do mercado que regular-
mente abandonam pessoas doentes, exigem delas despe-
sas médicas adicionais literalmente impagáveis, e perpetu-
am uma hierarquia brutal entre as pessoas asseguradas, as
não-asseguradas e as inasseguráveis.
A abordagem socialista de Sanders diante da saúde pú-
blica pode ser descrita mais apropriadamente como uma
perspectiva social democrata, não substancialmente dife-
rente daquela que Elizabeth Warren apresentou nas fases
iniciais de sua campanha. No entender dele, a cobertura mé-
dica constitui um “direito humano”, e com isso ele quer di-
zer que todo ser humano tem direito ao tipo de atendimento
de saúde que ele precisar. Mas por que não compreendê-la
Judith Butler | 66
tre Trump e Biden surgem precisamente no momento em
que a pandemia paralisa a vida cotidiana, intensificando
a precariedade dos sem-teto, dos não-assegurados e dos
pobres. A ideia de que talvez pudéssemos nos tornar um
povo que deseja ver um mundo no qual a política de saú-
de seja igualmente comprometida com todas as vidas,
com o desmantelamento do domínio do mercado sobre o
atendimento médico, que distingue entre quem é digno e
quem pode ser facilmente abandonado à doença e à mor-
te – por um breve momento essa ideia esteve viva. Pas-
samos a entender a nós mesmos de maneira diferente à
medida que Sanders e Warren apresentavam essa outra
possibilidade. Compreendemos que talvez fosse possível
começarmos a pensar e atribuir valor para além dos ter-
mos que o capitalismo nos apresenta.
Mesmo que Warren não seja mais candidata, e que San-
ders dificilmente recupere seu embalo eleitoral, devemos
ainda nos perguntar, especialmente agora, por que nós
como um povo ainda nos opomos à ideia de tratar todas as
vidas como se elas tivessem o mesmo valor? Por que alguns
ainda se entusiasmam com a ideia de que Trump buscaria
garantir uma vacina que protegeria as vidas americanas
(como ele as define) antes de todas as demais? A proposta
de uma saúde pública e universal revigorou um imaginá-
rio socialista nos EUA – um imaginário que agora precisa
esperar para poder se realizar como uma política social e
como compromisso público neste país. Infelizmente, na era
Judith Butler | 68
Sobre a situação epidêmica
Alain Badiu | 70
pesquisa que teria disponibilizado ao mundo da medicina
instrumentos genuínos de ação contra a SARS 2.
Portanto, não achei que houvesse algo a ser feito além
de tentar, como todo mundo, me isolar em casa, e nada a ser
dito além de incentivar todos os demais a fazer o mesmo. A
adesão a uma disciplina rigorosa nesse ponto é ainda mais
necessária pois fornece suporte e proteção fundamental para
todos aqueles que estão mais expostos: toda a equipe médica,
é claro, que está diretamente na frente e que deve poder con-
fiar em uma disciplina firme, inclusive por parte dos infecta-
dos; mas também todos os mais frágeis, como os idosos, es-
pecialmente aqueles em casas de repouso; assim como todos
aqueles que precisam trabalhar e correr o risco de contágio. A
disciplina daqueles que podem obedecer ao imperativo “ficar
em casa” também deve encontrar e propor meios para aque-
les que quase não têm ‘casa’ ou mesmo coisa alguma, para
que possam encontrar um abrigo seguro. Pode-se imaginar,
neste caso, uma requisição geral dos hotéis.
É verdade que esses deveres são cada vez mais urgen-
tes, mas, pelo menos no exame inicial, eles não exigem
grandes esforços analíticos ou a constituição de uma nova
maneira de pensar.
Mas estou lendo e ouvindo tantas coisas, inclusive em
meus círculos imediatos, que me desconcertam tanto pela
confusão que elas manifestam como por sua total inade-
quação à situação – em última análise, simples – em que
nos encontramos.
Alain Badiu | 72
Como resultado, me sinto um pouco compelido a reu-
nir algumas ideias simples. Eu as chamaria alegremen-
te de cartesianas.
Comecemos então definindo o problema, que em ou-
tros lugares foi tão mal definido e portanto tão mal tratado.
Uma epidemia é complexa pelo fato de ser sempre um
ponto de articulação entre determinações naturais e so-
ciais. Sua análise completa é transversal: é preciso apre-
ender os pontos nos quais as duas determinações se cru-
zam e extrair as consequências.
Por exemplo, é provável que o ponto de apoio inicial da
atual epidemia seja encontrado nos mercados da província
de Wuhan. Os mercados chineses são conhecidos por sua
sujeira perigosa e por seu gosto irreprimível pela venda ao
ar livre de todos os tipos de animais vivos, empilhados uns
sobre os outros. Daí o fato de que, em determinado momen-
to, o vírus se encontrou presente, em uma forma animal em
si mesma herdada dos morcegos, em um ambiente popular
muito denso e em condições de higiene rudimentar.
A trajetória natural do vírus de uma espécie para outra
transita então para a espécie humana. Como exatamen-
te? Ainda não sabemos, e apenas estudos científicos nos
dirão. Vamos, de passagem, criticar todos aqueles que cir-
culam fábulas tipicamente racistas on-line, respaldadas
por imagens falsificadas, segundo as quais tudo decorre
do fato de os chineses comerem morcegos quando ainda
estão quase vivos …
Alain Badiu | 74
Apesar da existência de algumas autoridades transnacio-
nais, é claro que são os estados burgueses locais que es-
tão na linha de frente.
Tocamos aqui em uma grande contradição do mun-
do contemporâneo. A economia, incluindo o processo de
produção em massa de objetos manufaturados, está sob
a égide do mercado mundial – sabemos que a simples
montagem de um telefone celular mobiliza trabalho e re-
cursos, inclusive minerais, em pelo menos sete estados
diferentes. E, no entanto, os poderes políticos permane-
cem essencialmente de tipo nacional. E a rivalidade entre
imperialismos, antigos (Europa e EUA) e novos (China, Ja-
pão…), exclui qualquer processo que conduza a um estado
mundial capitalista. A epidemia também é um momento
em que a contradição entre economia e política se torna
flagrante. Mesmo os países europeus não estão conse-
guindo prontamente ajustar suas políticas diante do vírus.
Preso a essa contradição, os estados nacionais tentam
enfrentar a situação epidêmica, respeitando o máximo
possível os mecanismos do Capital, embora a natureza do
risco os obrigue a modificar o estilo e as ações do poder.
Sabemos há muito tempo que, no caso de uma guerra
entre países, o Estado deve impor, não apenas às massas
populares, como é de se esperar, mas à própria burguesia,
restrições consideráveis, tudo para salvar o capitalismo
local. Algumas indústrias são quase nacionalizadas em
prol de uma produção desenfreada de armamentos que
Alain Badiu | 76
É inevitável que algumas lacunas maciças apareçam
no meio desse esforço. Considere a falta de máscaras
protetoras ou o despreparo em termos da duração do iso-
lamento hospitalar. Mas quem pode realmente se gabar
de ter “previsto” esse tipo de coisa? Sob certos aspectos,
o estado não impediu a situação atual, é verdade. Pode-
mos até dizer que, ao enfraquecer, década após década,
o sistema nacional de saúde, junto com todos os setores
do estado que atendem ao interesse geral, agiu como se
nada parecido com uma pandemia devastadora pudesse
afetar nosso país. Nesta medida, o estado é muito culpado,
não apenas na sua versão Macron, mas na de todos os que
vieram antes dele pelo menos nos últimos trinta anos.
No entanto, é correto observar aqui que ninguém havia
previsto, ou mesmo imaginado, o surgimento de uma pan-
demia desse tipo na França, exceto talvez por alguns cientis-
tas isolados. Muitos provavelmente pensaram que esse tipo
de coisa era para a África negra ou para a China totalitária,
mas não para a Europa democrática. E certamente não são
os esquerdistas – ou gilets jaunes ou mesmo os sindicalis-
tas – que gozam de um direito particular de defender esse
ponto e de continuar a fazer barulho sobre Macron, seu alvo
irrisório nos últimos tempos. Eles também não tinham ab-
solutamente previsto isso. Pelo contrário, com a epidemia já
a caminho vindo da China, eles multiplicaram, até muito re-
centemente, assembleias descontroladas e manifestações
barulhentas, o que deveria desqualificá-los hoje, quem quer
Alain Badiu | 78
derna, fortemente estruturada por líderes notáveis. No caso
chinês, a guerra revolucionária interna precedeu a guerra
mundial, e o Partido Comunista Chinês já estava, em 1940,
à frente de um exército popular que havia sido experimen-
tado e testado. Por outro lado, em nenhum poder ocidental
a guerra desencadeou uma revolução vitoriosa. Mesmo no
país derrotado em 1918, na Alemanha, a insurreição espar-
taquista foi rapidamente esmagada.
A lição a ser tirada disso é clara: a epidemia em anda-
mento não terá, como epidemia, nenhuma consequência
política digna de nota em um país como a França. Mesmo
supondo que nossa burguesia – à luz dos slogans incômo-
dos, frágeis e difusos – acredite que chegou o momento
de livrar-se de Macron, isso de modo algum representará
qualquer mudança digna de nota. Os candidatos “politica-
mente corretos” já estão esperando nos bastidores, assim
como os defensores da forma mais mofada de um “nacio-
nalismo” tão obsoleto quanto repugnante.
Quanto aos que desejam uma mudança real nas
condições políticas deste país, devemos tirar proveito
desse interlúdio epidêmico e até do isolamento – intei-
ramente necessário – para trabalhar em novas figuras
da política, no projeto de novos locais da política, e no
progresso transnacional de um terceiro estágio do co-
munismo após o brilhante momento de sua invenção e
o (interessante, mas no limite derrotado) estágio de sua
experimentação estatista.
Alain Badiu | 80
Políticas anticapitalistas em tempos de COVID-19
PorDavid Harvey*
Publicado em jacobinmag.com
20 de março, 2020
Tradução de Gabriel Soares
David Harvey | 82
Espiralando
David Harvey | 84
gundo lugar, as condições que favorecem a transmissão
rápida entre os organismos hospedeiros variam muito. Po-
pulações humanas de alta densidade são, ao que parece,
alvos fáceis para a recepção de patógenos. É sabido que
as epidemias de sarampo, por exemplo, apenas florescem
em grandes centros populacionais urbanos, mas desapa-
recem rapidamente em regiões pouco populosas. Como
os seres humanos interagem uns com os outros, se mo-
vimentam, se disciplinam ou esquecem de lavar as mãos
afeta o modo como as doenças são transmitidas. Nos últi-
mos tempos, a SARS, a gripe aviária e suína parecem ter
saído da China ou do Sudeste Asiático. A China também so-
freu muito com a peste suína no ano passado, ocasionando
o abate em massa de porcos e o aumento dos preços da
carne suína. Não digo tudo isso para culpabilizar a China.
Existem muitos outros lugares onde os riscos ambientais
para mutação e difusão viral são altos. A gripe espanhola
de 1918 pode ter saído do Kansas e a África pode ter incu-
bado o HIV/AIDS, e certamente iniciou o Nilo Ocidental e o
Ebola, enquanto a dengue parece florescer na América La-
tina. Mas os impactos econômicos e demográficos da pro-
pagação do vírus dependem de fraturas e vulnerabilidades
preexistentes no modelo econômico hegemônico.
Não fiquei indevidamente surpreso que o COVID-19
tenha sido encontrado inicialmente em Wuhan (embora
não seja conhecido se ele se originou lá). Claramente, os
efeitos locais seriam substanciais e, dado que este era um
David Harvey | 86
erroneamente o problema como algo acontecendo “lá” e,
portanto, que não merecia maiores preocupações (com al-
guns sinais preocupantes de xenofobia anti-chinesa vindo
a tona em certas partes do mundo). A interrupção que o
vírus causou no que, em tudo o mais, seria uma triunfante
história de crescimento da China foi até recebida com sa-
tisfação em alguns círculos da administração Trump.
No entanto, histórias de interrupções nas cadeias produ-
tivas globais que passam por Wuhan começaram a circular.
Tais histórias foram amplamente ignoradas ou tratadas como
problemas para determinadas linhas de produtos ou corpora-
ções (como a Apple). As desvalorizações foram locais e par-
ticulares, e não sistêmicas. Os sinais de queda na demanda
dos consumidores também foram minimizados, ainda que
empresas como McDonald’s e Starbucks, que têm grandes
operações no mercado interno chinês, tivessem de fechar
suas portas por um tempo. A concomitância do Ano Novo Chi-
nês com o surto do vírus mascarou os impactos ao longo de
janeiro. A complacência dessa resposta não caiu bem.
As notícias iniciais da disseminação internacional do
vírus foram ocasionais e episódicas, com um surto grave
na Coréia do Sul e em alguns outros hotspots como o Irã.
Foi o surto italiano que desencadeou a primeira reação
violenta. O colapso do mercado de ações, que começou em
meados de fevereiro, oscilou um pouco, mas, em meados
de março, levou a uma desvalorização líquida de quase
30% nas bolsas de valores do mundo todo.
David Harvey | 88
vírus que são bem conhecidas desde a década de 1960).
A Big Pharma raramente investe em prevenção; tem pou-
co interesse em investir na preparação para uma crise de
saúde pública. Adora achar curas. Quanto mais doentes es-
tamos, mais eles ganham. A prevenção não contribui para
os dividendos do acionista. O modelo de negócios aplicado
à provisão de saúde pública eliminou as capacidades de
enfrentamento excedentes que seriam necessárias em
uma emergência. A prevenção não era nem um campo de
trabalho suficientemente atraente nem para justificar par-
cerias público-privadas. O presidente Trump cortou o or-
çamento do Centro de Controle de Doenças (CDC, sigla em
ingês) e dissolveu o grupo de trabalho sobre pandemias do
Conselho de Segurança Nacional no mesmo espírito que
cortou todo o financiamento de pesquisas, inclusive sobre
as mudanças climáticas. Se eu quisesse ser antropomór-
fico e metafórico sobre isso, concluiria que o COVID-19 é a
vingança da natureza por mais de quarenta anos de maus-
tratos brutos nas mãos de um violento e não regulamenta-
do extrativismo neoliberal.
Talvez seja sintomático que os países menos neolibe-
rais, China e Coréia do Sul, Taiwan e Cingapura, tenham
passado pela pandemia até agora em melhor forma que a
Itália, embora o Irã não nos permita adotar esse argumen-
to como um princípio universal. Embora houvesse muitas
evidências de que a China lidava mal com a SARS com
muita dissimulação e negação inicial, desta vez o presi-
David Harvey | 90
valor das empresas e em certos setores se mostraram mais
sistêmicas e substanciais do que se pensava inicialmente. O
efeito a longo prazo pode ser o de encurtar ou diversificar as
cadeias de suprimentos, enquanto se muda para formas de
produção menos intensivas em mão-de-obra (com enormes
implicações para o emprego) e maior dependência de siste-
mas de produção dotados de inteligência artificial. A ruptura
das cadeias produtivas implica demitir ou dispensar traba-
lhadores, o que diminui a demanda final, enquanto a deman-
da por matérias-primas diminui o consumo produtivo. Por si
só, esses impactos no lado da demanda poderiam produzir,
no mínimo, uma leve recessão.
Mas as maiores vulnerabilidades estão em outros luga-
res. Os modos de consumo que explodiram após 2007–8
quebraram com consequências devastadoras. Esses mo-
dos foram baseados na redução do tempo de rotação do
consumo o mais próximo possível de zero. A enxurrada
de investimentos em tais formas de consumo teve tudo
a ver com a absorção máxima de volumes de capital ex-
ponencialmente crescentes em formas de consumo que
tivessem o menor tempo possível de rotação. O turismo
internacional foi emblemático. As viagens internacionais
aumentaram de 800 milhões para 1,4 bilhão entre 2010 e
2018. Essa forma de consumo instantâneo exigiu investi-
mentos maciços em infraestrutura em aeroportos e com-
panhias aéreas, hotéis e restaurantes, parques temáticos
e eventos culturais, etc. Este local de acumulação de capi-
David Harvey | 92
econômica não esteve sujeita a flutuações violentas (com
algumas exceções, como a erupção vulcânica da Islândia
que bloqueou os voos transatlânticos por algumas sema-
nas). Mas o COVID-19 está causando não uma flutuação
violenta, mas um colapso onipotente no coração da forma
de consumo que domina nos países mais ricos. A forma
espiral da acumulação infinita de capital está entrando em
colapso interior, de um lado do mundo ao outro. A única
coisa que pode salvá-lo é um consumo em massa financia-
do e inspirado pelo governo, evocado do nada. Isso exigirá
socializar toda a economia dos Estados Unidos sem, por
exemplo, chamar isso de socialismo.
As linhas de frente
David Harvey | 94
de cuidar e manter os principais centros de fornecimen-
to (como supermercados) abertos ou ficar desemprega-
da sem benefícios (como cuidados de saúde adequados).
Funcionários assalariados (como eu) trabalham em casa
e recebem seus salários como antes, enquanto os CEOs
voam em jatos particulares e helicópteros.
As forças de trabalho em muitas partes do mundo são
socializadas há muito tempo para se comportarem como
bons sujeitos neoliberais (o que significa culpar a si mes-
mas ou a Deus se algo der errado, mas nunca ousar sugerir
que o capitalismo pode ser o problema). Mas mesmo bons
indivíduos neoliberais podem ver que há algo errado com
a maneira como esta pandemia está sendo respondida.
A grande questão é: quanto tempo isso vai durar? Pode
demorar mais de um ano e, quanto mais demorar, maior a
desvalorização, inclusive da força de trabalho. Os níveis de
desemprego quase certamente subirão para níveis compa-
ráveis aos da década de 1930 na ausência de intervenções
estatais maciças que terão que ir contra o receituário neoli-
beral. As consequências imediatas para a economia e para
o cotidiano social são múltiplas. Mas não são todas ruins. Na
medida em que o consumo contemporâneo estava se tor-
nando excessivo, estava se aproximando do que Marx des-
creveu como “consumo excessivo e consumo insano, sig-
nificando, por sua vez, o monstruoso e o bizarro, a queda”
de todo o sistema. A imprudência desse consumo excessivo
tem desempenhado um papel importante na degradação
David Harvey | 96
gundo aspecto não poderá ser repetido na escala neces-
sária. Os pacotes de resgate criados em 2008 focavam nos
bancos, mas também envolviam a nacionalização de facto
da General Motors. Talvez seja significativo que, diante do
descontentamento dos trabalhadores e do colapso da de-
manda de mercado, as três grandes montadoras de Detroit
estejam fechando, pelo menos temporariamente.
Se a China não pode repetir seu papel de 2007–8, então
o ônus de sair da atual crise econômica muda, agora, para
os Estados Unidos, e aqui está a ironia suprema: as únicas
políticas que funcionarão, tanto econômica quanto politi-
camente, são muito mais socialistas do que qualquer coi-
sa que Bernie Sanders possa propor, e esses programas
de resgate terão que ser iniciados sob a égide de Donald
Trump, presumivelmente sob a máscara de “Making Ame-
rica Great Again”.
Todos os republicanos que se opuseram visceralmente
ao resgate de 2008 terão que se curvar ou desafiar Donald
Trump. Este último, se for sábio, cancelará as eleições em
caráter emergencial e declarará a origem de uma presi-
dência imperial para salvar o capital e o mundo dos “tu-
multos e revoluções”.
Publicado en El País
22 de marzo, 2020
Traduçao: Editora Vozes
[*] Byung-Chul Han (Corea del Sur, 1959) é um filósofo e ensaísta que
ensina na Universidade de Artes de Berlim. Autor, entre outros trabalhos,
de The Society of Fatigue, publicado há um ano Loa a la tierra.
Publicado em elsaltodiario.com
25 de março, 2020
Traduçao: Caro Pierro
Hegemonia tecnológica
[*] María Galindo Neder (Bolivia, 1964) é uma ativista boliviana, militante
do feminismo radical, psicóloga e comunicadora, cofundadora do colectivo
Mujeres Creando em 1992, que continua liderando. Atualmente co dirige:
Radio Deseo, emissora radiofônica com alcance nas cidades de La Paz e
Alto. Por suas ações controversas, catalogadas como “arte performática” ou
happenings, tem sido detida pela polícia boliviana em várias oportunidades.
Trabalha com temáticas como a despatriarcalização no contexto do
processo constituinte boliviano e o feminicídio como crime de Estado.
Publicado em El País
27 de marzo, 2020
Traduçao: Caro Pierro
Publicado em Quodlibet.it
27 de março, 2020
Traduçao: Medium
Publicado em ficciondelarazon.files.wordpress.com
26 de março, 2020
Traduçao: Caro Pierro
Publicado en lavoragine.net
27 de março, 2020
Traduçao: Caro Pierro
Publicado em El País
28 de março, 2020
Tradução inédita dos geógrafos Gustavo Teramatsu
e Wagner Nabarro
Mudança ou submissão