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ABSTRACT. Bus 174 – Government`s indirect violence and moral panic.The bus
174 kidnapping, which took place in Rio de Janeiro in 2000, represented a key moment in
which real society collided against the ideal one. While exposed on national television,
Sandro Barbosa do Nascimento showed that that the fact of being part of a country’s
population is not the same as being part of the society of that country. The events that
unfolded showed the repressive strategy of State, society and media, all of which perpetuate
social inequality.
Key words: violence, social exclusion, community, media.
Nem sempre é possível perceber o quanto a imagem substituem, aos olhos da sociedade, toda a trajetória
acalentada do filho ideal impede que os pais do indivíduo.
enxerguem o filho real com suas características e Yves Michaud explica que “como dano físico a
dificuldades, seus limites e suas potencialidades, suas
violência é facilmente identificável; como violação
demandas e necessidades, mas isso acontece muito
de normas, quase qualquer coisa pode ser
(SAYÃO, 2009).
considerada uma violência” (MICHAUD, 2001,
O sequestro do ônibus adquire dimensões p. 10). O sequestro do ônibus era uma
emblemáticas, pois representa o que o Giddens demonstração de violência explícita para os
(2003, p. 107) denomina “momentos decisivos”, nos indivíduos que estavam dentro do veículo. Portanto,
quais “os eventos se reúnem de tal maneira que o demonstração visível. Por outro lado, Sandro foi
indivíduo fica como se estivesse na encruzilhada da exposto à violência imaterial. “A violência não é
vida”. Por personificar o conflito entre a sociedade apenas o enfrentamento aberto de dois adversários,
real e a ideal, Sandro estava na encruzilhada. mas o efeito de uma empresa anônima na qual todo
Ele foi excluído da sociedade ideal, no entanto, mundo se subtrai à responsabilidade” (MICHAUD,
por conta da ocasião, era impossível lhe negar a 2001, p. 11).
existência, ele interrompia o ritual da segurança
Essa forma não guerreira que declara um combate não
pública. O que abalou a convicção que se procura
aos inimigos políticos, mas aos perigos da população
passar, de uma sociedade de iguais. identificados através da classificação das raças revela a
O ritual define a qualificação que devem possuir os “aceitabilidade de tirar a vida em uma sociedade de
indivíduos que falam [...]; define os gestos, os normalização”. Ou seja, se a biopolítica quer garantir
comportamentos, as circunstâncias, e todo o seu direito de matar, pois o biopoder se funda na
conjunto de signos que devem acompanhar o modificação da máxima deixar viver e fazer morrer para
discurso; fixa enfim, a eficácia suposta ou imposta fazer viver e deixa morrer, mas, de qualquer modo, se a
das palavras, seu efeito sobre aqueles aos quais se biopolítica ainda quer garantir este direito ela tem que
dirigem os limites de seu valor de coerção funcionar com os dispositivos do racismo. Este sentido
(FOUCAULT, 1998, p. 39). de retirar a vida se estende à morte contemporânea da
qual o homo sacer é vítima, o que não significa
O sequestro do ônibus para Sandro foi uma necessariamente assassinato direto, mas também e,
oportunidade de se mostrar presente na sociedade. talvez, principalmente sua forma indireta que atuam
Entretanto, para a parcela da população possuidora através do afastamento, rejeição e morte política
do discurso dominante, o sequestro representava (CERA, 2006).
uma quebra na sua “política discursiva” Benjamin Barber explica que no atual contexto
(FOUCAULT, 1998). Por isso, no fim, a morte de de globalização, as pessoas são reconhecidas pela
Sandro acabou sendo, para esse grupo, um desfecho contribuição na geração de riqueza e no potencial de
aceitável e até mesmo desejável para a consumo. Dessa forma, “as identidades são antes de
desconfortante exposição das consequências da qualquer outra coisa, profissionais” (BARBER, 2004,
exclusão social. p. 43).
Sandro, analfabeto e desempregado, não era
Exclusão, mídia e violência reconhecido como parte da sociedade e dessa forma
De acordo com Ford (2004, p. 94) “toda sofria com a invisibilidade social, que não deixa de
tipificação significa amputação de variáveis”. Yves ser uma variação da violência. A invisibilidade social
Michaud destaca que “há na apreensão da violência consiste na negação da singularidade do indivíduo.
um componente subjetivo que depende dos critérios O filósofo Félix Guattari explica que “a
utilizados: critérios jurídicos, institucionais, valores singularidade é um conceito existencial; já a
identidade é um conceito de referenciação, de
do grupo ou do subgrupo e até mesmo disposições
circunscrição da realidade a quadros de referência,
pessoais” (MICHAUD, 2001, p. 14).
quadros estes que podem ser imaginários”
No caso de Sandro, a violência que ele sofreu
não é levada em conta tanto na atuação da polícia, (GUATTARI; ROLNIK, 1986, p. 68). A
como na cobertura da mídia. Ambas, ao negarem as singularidade é componente essencial no processo
variáveis que o levaram até aquele momento, fazem de identificação do indivíduo com o lugar onde vive
de Sandro um estereótipo do criminoso cruel. e a tomada de consciência de sua existência.
Para o pesquisador Muniz Sodré, “próprio do Mas ninguém se conscientiza separadamente dos
mecanismo ideológico é a troca da parte pelo todo” demais. A consciência se constitui como consciência do
(SODRÉ, 2004, p. 22). É o que ocorre com Sandro, mundo. Se cada consciência tivesse seu mundo, as
as 4h 20 min. de duração do sequestro do ônibus consciências se desencontrariam em mundos diferentes
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Há violência quando, numa situação de interação, Sandro pôde se fazer ouvir e expôs não apenas a
um ou vários atores agem de maneira direta ou sua situação, mas a de várias pessoas em condição
indireta, maciça ou esparsa, causando danos a uma semelhante. No dia 12 de junho de 2000, a
ou várias pessoas em graus variáveis, seja em sua sociedade silenciou-se para escutar as exigências de
integridade moral, em suas posses, ou em suas
Sandro à janela do ônibus. A sociedade pôde
participações simbólicas e culturais (MICHAUD,
2001, p. 11). entender a violência do sistema opressivo que dá
origens a cidades que são “de um lado um arremedo
No caso de Sandro, o Estado, que tem o dever de de cidade global servindo de isca para atrair
garantir o acesso do cidadão aos seus direitos, foi investidores internacionais, de outro, o inchaço
omisso. Porém, se fez presente na hora de puni-lo e entrópico de pobreza e desamparo das periferias”
garantir a segurança dos demais. Paulo Eduardo (ARANTES, 2004, p. 74).
Arantes ironiza essa incoerência da ação estatal: “não Aqueles que falam de modo democrático precisam
tenhamos mais medo de compensar o encolhimento silenciar-se para que se permita que a voz
econômico e social do Estado pela sua expansão em daqueles que devem ser ouvidos emerja [...] esta
matéria policial e penal” (ARANTES, 2004, p. 51). compreensão do poder de silenciar implica o
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Nesse contexto, como afirma Michaud (2001, comodismo da parcela mais alta da sociedade,
p. 55), “não há mais violência pura nem violência evitando que ela assuma que a manutenção de seu
escandalosa, e ela não é santa nem desonrosa: vale o estilo de vida gera uma parcela de excluídos.
que produz e o benefício que traz”. A questão de Traquina descreve o jornalismo como um
Sandro não fazer parte dos que deviam ser “campo”. Segundo o autor, o conceito de campo
protegidos pode ser notada nas coberturas midiáticas abrange três fatores: 1) um número ilimitado de
do sequestro do ônibus 174. Houve naquele “jogadores”; 2) um prêmio que os “jogadores”
momento um recorte da realidade. “A verdade não disputam, nomeadamente as notícias; e 3) um grupo
corresponde à realidade, mas alguma coisa que, para especializado, os jornalistas, que reivindicam o
‘nós’ é bom acreditar” (ARANTES, 2004, p. 33). monopólio de como distinguir e elaborar as notícias
(TRAQUINA, 2005, p. 27). No campo jornalístico, os
Conclusão diversos participantes vão negociar com os jornalistas
O sequestro do ônibus foi um erro de cálculo no qual enfoque será dado a determinado fato.
sistema de segurança Estatal. “Os limites da São “promotores” que avançam as suas “necessidades
estratégia se devem aos riscos de derrapagem na de acontecimentos”. Interagem com os profissionais
escalada ou então à imprevisibilidade introduzida do campo jornalístico, os jornalistas, que, em última
por aqueles que não têm nada a perder ou a ganhar” instância, decidem, em interação com outros
jornalistas, o que é notícia, qual é a sua importância,
(MICHAUD, 2001, p. 61).
e como é definida (TRAQUINA, 2005, p. 28).
O Estado é o ente responsável pela manutenção
da ordem. No entanto, como afirma Giddens (2003, A cobertura também criou a ilusão de que a
p. 106) “mesmo em ambientes de risco morte de Sandro representava o fim da insegurança
relativamente confinados há sempre resultados não da sociedade. Esta crença pode estar baseada em uma
intencionais e imprevistos”. Sandro expôs a cisão da “nostalgia permanente de uma coletividade em que
sociedade e, como bem destacou Arantes (2004, poderíamos, enfim, descansar [...] e nos permita
p. 38), “o contraste entre opulência e pobreza em renunciar por um tempo a nossas responsabilidades
mesmo espaço urbano sempre gerou desconforto singulares” (CALLIGARIS, 2009a, p. 15). Ao
em cientistas sociais e opinião pública em geral”. personificar a violência em um indivíduo, a mídia
A mídia, que também trabalha para informar procurou exteriorizar o mal, mantendo uma
uma minoria, estereotipou Sandro. Projetar no ato sensação de que com a eliminação dele, o restante da
dele apenas motivações criminosas ajuda a eximir a sociedade se manteria segura.
sociedade de assumir a culpa das consequências da Para Peter Burke, “os rumores que transmitem e
exclusão social. amplificam os pânicos coletivos são muitas vezes
A culpa não se expressa apenas no plano religioso, reações à falta de informações confiáveis” (BURKE,
moral, jurídico ou psicológico. A culpa pode ter 2009, p. 5), o que ocorre em coberturas simplistas
conotação social e política. Sentem-se culpadas pessoas como as do sequestro do ônibus 174. Essa atitude
pertencentes a grupos que exploram ou exploraram,
contribui para tornar grupos excluídos alvos de
oprimem ou oprimiram, discriminam ou
discriminaram outros grupos (SCLIAR, 2006, p. 161). preconceito, atacando a consequência e não a causa
da violência.
Dessa forma, a cobertura do sequestro do ônibus
[...] muitas vezes a ‘realidade’ é contada como uma
174 tratou o fato como excepcionalidade e procurou
telenovela, e aparece quase sempre em pedaços, em
retratar Sandro como um viciado em drogas que queria acontecimentos, uma avalanche de acontecimentos
satisfazer seu vício por meio de furtos aos “cidadãos de perante a qual os jornalistas sentem como primeira
bem”. Assim, os espectadores sentiam-se confortados obrigação dar respostas com notícias, rigorosas e se
por não ter concorrido para aquele fato. “A informação possível confirmadas, o mais rapidamente possível,
perante a tirania do fator tempo (TRAQUINA,
e a comunicação permitem obter adesão ou agir sobre
2005, p. 20).
mecanismos de persuasão, permitem até condicionar
espíritos” (MICHAUD, 2001, p. 58). Uma solução para a construção de uma sociedade
Essa adesão ocorre porque o discurso como verdadeiramente democrática estaria, segundo Burke
destaca Foucault (1998, p. 10) “não é simplesmente (2009, p. 5), “no jornalismo responsável, quer na
aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominação, televisão, no rádio ou nos jornais”. Pois, como assinala
mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do Traquina (2005, p. 26), “os jornalistas são participantes
qual queremos nos apoderar”. Ao tratar o caso de ativos na definição e na construção das notícias, e, por
Sandro como fato isolado, a mídia endossa o conseqüência, na construção da realidade”. Porém, o
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aprimoramento dos jornalistas e, em decorrência, do CERA, F. B. Corpus: a vida política. Revista Literatura
jornalismo deve ser seguido pela escola, como afirma e Autoritarismo, 2006. Disponível em:
Perini (2007, p. 32), <http://www.ufsm.br/grpesqla/revista/num10>. Acesso
em: 15 dez. 2009.
É certamente necessário [embora ainda estejamos
terrivelmente longe de consegui-lo] que eles [os DE PAULA, C. Sabre o amor. Vida Simples, v. 5,
alunos] cheguem a manejar a linguagem técnica e n. 79, p. 78, 2009.
jornalística, pelo menos como leitores. Uma FORD, A. O contexto do público: transformação
exigência que a civilização faz do homem moderno é comunicacionais e socioculturais. In: MORAES, D.
[...] que seja capaz de obter informações cruciais (Org.). Por uma outra comunicação. Rio de Janeiro:
para sua participação na vida política de sua
Record, 2004. p. 87-105.
comunidade e do país.
FOUCAULT, M. A ordem do discurso. Tradução
De acordo com Perini (2007), o ensino não deve, Laura F. A. Sampaio. Campinas: Loyola, 1998.
no entanto, prender-se somente aos textos FREIRE, P. Pedagogia dos sonhos possíveis. 3. ed. São
jornalísticos, mesmo porque Traquina (2005, p. 27) Paulo: Unesp, 2001.
ressalta que estes não refletem a realidade como um FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 47. ed. São Paulo:
todo e sim “uma parte seletiva da realidade”. Dessa Paz e Terra, 2008.
forma, para a promoção de uma sociedade mais GIDDENS, A. Modernidade e identidade. Rio de
consciente e, consequentemente, menos violenta e Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
mais inclusiva, a informação deve estar disponível a
GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica:
todos e todos devem ter o direito à educação que cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1986.
permitirá interpretá-las.
KEPP, M. Atenção universal. Folha de S. Paulo, São
Paulo, 26 out. 2009. (Caderno Equlíbrio, p. 2).
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Paulo, 1 out. 2009b. (Caderno Ilustrada, p. 17) and reproduction in any medium, provided the original work is properly cited.
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