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Resenha do filme “Ônibus 174”

O documentário “Ônibus 174” tem como assunto principal o assalto ao ônibus 174, no Rio de
Janeiro, que se tornou um sequestro após o veículo ter sido encurralado pelos policiais. O filme
também resgata detalhes da vida e infância de Sandro Barbosa do Nascimento, o qual foi o
responsável pelos crimes. Além disso, retrata a postura da polícia e da imprensa no acontecimento.
Antes mesmo de iniciar a reprodução do filme, a pergunta que permeia o espectro da
Psicologia Social pode ser percebida: o que levou Sandro a agir como agiu? De que modo sua
subjetividade influenciou nisso? E de que maneira a sociedade teve parte nisso, ao ajudar na
construção da subjetividade deste homem?
O documentário já se inicia respondendo um pouco a estas perguntas. Enquanto a câmera
sobrevoa às comunidades da periferia carioca e depois os prédios da zona sul, algumas pessoas - não
nomeadas - contam relatos da vida na rua, da desigualdade, mas sobretudo experiências permeadas
de sofrimento ético-político (definida por Bader Sawaia) e humilhação social (conceito de José Moura
Gonçalves Filho).
Conforme a vida de Sandro vai sendo descrita, nota-se que aos poucos a sociedade o foi
privando de sua “humanidade”. Sua mãe foi morta em sua frente quando tinha 6 anos. Então ele foi
morar na rua. Lá, rompe todos os seus laços familiares e com instituições tradicionais, já deixando de
lado os que seriam responsáveis por sua socialização primária. A sua construção ali passava a ser na
rua, juntamente com seus companheiros de gangue (que se protegiam em seu grupo social, por
terem os mesmos objetivos: a sobrevivência). Eles eram, agora, seu grupo de referência para sua
socialização primária. E com eles se tornava o estereótipo do humilhado descrito por GONÇALVES
FILHO (1998): “O humilhado atravessa uma situação de impedimento para sua humanidade, uma
situação reconhecível nele mesmo - em seu corpo e gestos, em sua imaginação e em sua voz - e
também reconhecível em seu mundo”.
O sociólogo Luis Eduardo (um dos entrevistados para documentário), chama os meninos em
situação de rua de “meninos invisíveis" e afirma que de vez em quando eles emergem e
surpreendem a sociedade com a sua violência, que seria um “grito desesperado e impotente” diante
dela. A vida de Sandro, permeada de violência desde a infância - parentes assassinados e amigos, já
que foi sobrevivente da Chacina da Candelária - constrói um homem capaz de também agir
violentamente para se proteger. Isso vai de encontro às teorias da Psicologia Social de cunho
sociológico, que afirmam que a sociedade é que constrói o sujeito.
No entanto, como Denise Jodelet e Serge Moscovici defendem em suas teorias, não é apenas
a sociedade que transforma o homem, mas o homem também transforma a sociedade. Enquanto ele
é construído, constrói. Sandro, sendo homem em situação de rua, com um histórico que construiu
sua personalidade instável, propensa a violência por ter sido violentado - inclusive pela polícia, que
durante o sequestro do ônibus está ali em todo o tempo - também constrói na sociedade no
momento em que decide assaltar aquele veículo. Ali, ele fez uma escolha dentro de sua socialização
secundária - dentro do que lhe era permitido, escolheu assaltar e sequestrar o ônibus - mas que
interferiria na vida dos reféns, policiais e imprensa.
Ali ele transformava com sua atividade e também estava definindo o seu destino. Ele queria,
na verdade, fugir. Mas assim como em toda a sua vida, o seu fim foi violento e infelizmente também
foi construído por suas atitudes. A sua consciência também na sua forma de transformar, já que ali
estava representada toda a violência de sua vida - os policiais e a sociedade, representada pelos
repórteres . Eles o cercavam e em meio a seus sentimentos, emoções e imaginário acerca desses
“atores” dentro desta situação, agiu.
Diante da transformação mútua de sujeito-sociedade presente no filme, não é possível
deixar de notar também como a identidade de Sandro atua. Quem ele era naquele momento era:
alguém que queria ser visto. Ele era invisível, mas naquele instante ele passava a ser alguém que
reafirma sua existência pelo mundo, mesmo que fosse por meio de algo que tanto o feriu, que foi a
violência. “Eu ‘tava’ na Candelária, o bagulho é sério, mataram os irmãozinhos, então eu não tenho
nada a perder na minha mão”, diz Sandro em um momento do acontecimento.
Se levarmos em conta a Psicologia Social de cunho sociológico, de acordo com as teorias de
Erving Goffman, ali, todos estavam desempenhando os seus papéis sociais no teatro da vida, e cada
um podia perceber o papel do outro e assim reagir a ele. A imprensa, a sociedade e os policiais viram
um marginal. Sandro sabia disso. Inclusive, pede que não seja filmado a princípio, tampa o rosto, pois
não quer ser reconhecido desta forma e sabe que estão ali por causa dos reféns, não para o seu
benefício. E ele também reconhece nesses atores um papel: daqueles que o violentaram por toda a
vida e os que o ignoraram e trataram como invisível. Mas acima de tudo, eles são a representação de
poder. Eles podem, Sandro não. E ao tomar reféns, talvez Sandro buscava impor o seu poder e desejo
de ser visto diante de tais papéis empenhados ali. As câmeras asseguravam isto. E com o tempo ele
também reconheceu esse papel e passou a aproveitar da presença das câmeras.
No entanto, quando Sandro atira em uma refém, a polícia é autorizada a atirar. Depois de
algum tempo, Sandro desce do ônibus com outra refém. A polícia atira, Sandro também. A refém
morre. A multidão (representando a sociedade) se aproxima, tentando linchar o criminoso. E assim,
diante das câmeras, a polícia o mata asfixiado. Diante de todos esses acontecimentos, pode-se
concluir que Sandro atuou na construção de seu destino, mas a sociedade também o fez ao
submetê-lo a toda a violência que sofreu, conforme a Psicologia Social Contemporânea leva a
analisar.

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