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Quadrinhos como forma de resistência: Uma entrevista


com Rubens Menezes
Julia Stoever

12–17 minutes

“Toda produção cultural é a produção do próprio tempo.”

Aos 44 anos, Rubens Menezes se descreve como um pobre viciado em histórias em quadrinhos.
“Tenho milhares e milhares de revistas que me assombram e que definem as coisas que eu penso”,
diz o autor de Os Consumidores Selvagens e a Ascensão dos Palhaços, HQ que conta de uma
maneira didática e bem humorada como aconteceu a escalada neofascista em nosso país. “Tudo o
que eu sei eu aprendi lendo quadrinhos”.

Na entrevista abaixo, além de comentar como a arte e a política coexistem, a simbiose de ideias e
como as influências sociais submergem e emergem nas páginas quadriculadas, Rubens Menezes
fala também sobre seu processo de criação, referências e da sua vontade de mudar o mundo. Afinal,
se não tivermos mais nada, ainda teremos a arte e a esperança.

Arte: Rubens Menezes

Estou curiosa sobre sua história pessoal com os quadrinhos. Quais são suas influências, em
particular? Você lia quadrinhos quando criança? O que você tem lido ultimamente?

Acho que quando comecei a ler gibis, eu lia aqueles que me estavam acessíveis. Eu devia ler
provavelmente a Turma da Mônica e me lembro que lia alguns da Disney também nesse meio tempo.
Mas um que me marcou muito foi Os Novos Titãs nº 8, do George Pérez, eu devia ter uns nove anos
quando li a primeira vez. O título era Horror e Morte na Cidadela. Eu não conhecia nada do universo
dos Jovens Titãs e de repente me aparecia o Robin em um outro planeta, lutando contra alienígenas,
inclusive namorando com uma alienígena e ué, cadê o Batman? (risos). Era muito legal. Acho que foi
com essa história que percebi que eu gostava de quadrinhos.

Quanto as minhas influências, li muitos quadrinhos de super-herói, mais DC do que Marvel. Mas
nunca fui muito de reparar no desenhista, sempre vi o desenho meio que para um fim, que é contar a
história. Sempre fui mais de querer saber quem era o roteirista. Sou muito influenciado por Alan
Moore, Frank Miller, Neil Gaiman, Katsuhiro Otomo, etc. Essa galera que nos anos 80 para os 90
estavam nas bancas de jornal e fizeram a minha cabeça e de muitos outros da minha geração.

Ultimamente tenho lido muito mangá, como One Punched Man, Lobo Solitário e The Promised
Neverland, esse último tenho lido com o meu filho. Além dos mangás, tenho lido Bone, um ou outro
de super-herói e alguns quadrinhos nacionais que tem sido lançados atualmente também.

Em respeito da sua trajetória acadêmica, da sua formação profissional e de suas experiências


de ensino e de pesquisa, quais aspectos a faculdade de História, em particular, adequaram
seu método de pesquisa e de narrar histórias às suas HQs?

Metade da minha carga horária é em cursos de computação, agora, minha formação acadêmica é
completamente diferente. Sou historiador, formado naquela “várzea” ali do Butantã, onde fiz também
o meu mestrado e doutorado. Quando eu penso na USP, penso como se fosse a minha segunda
casa. A FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo)
é a origem de toda a minha reflexão e pensamento. Foi ali que aprendi a pensar. A expressão alma
matters se aplica muito bem no meu caso: é impossível desassociar quem eu sou da experiência
que tive de ter estudado nesse lugar. Todas as histórias que eu produzo são de alguma maneira
conectadas com a passagem do tempo, com a História. Em tudo o que eu faço, tenho esse elemento
do tempo, influenciando as decisões ou os desfechos.

E como surgiu a ideia de Os Consumidores Selvagens e a Ascensão dos Palhaços? Como foi
o processo de produção?

Essa história foi feita literalmente às pressas. Ela foi feita entre 19 de Julho a 11 de Setembro de
2019. Eu fiz 68 páginas em 54 dias. Tenho uma porção de histórias que estão há anos paradas, mas
essa foi quase como um ataque epilético, porque foi algo que aconteceu e eu precisava fazer, era
preciso ser feita com urgência. Eu usei a desculpa da Feira DES.GRÁFICA e pensei numa história
de pelo menos 20 páginas que falasse sobre fascismo. A princípio a ideia era fazer 13 ou 18 razões
com 20 tópicos, um tópico por página e quando eu vi já estava com um gibi com quase 70 páginas
(risos). Já tinha perdido todos os prazos e estava fazendo uma história completa. Eram ideias que
estavam há muito tempo na minha cabeça e eu ficava sempre com essa listinha das coisas que
levariam a gente para o fascismo. Tinham só duas que a gente não completava: um militarismo
exacerbado e a figura do líder, esse líder mítico, messiânico, tosco. A gente não tinha esses dois
elementos, então não dava para dizer que estávamos sob fascismo. Mas agora…

Ilustração: Rubens Menezes

A capa da sua HQ é uma releitura de “Asterix — o Adivinho” de Albert Uderzo, que


infelizmente nos deixou no início deste ano. Seus desenhos têm uma qualidade cartunesca,
isso é retirado de uma tradição de quadrinhos humorísticos? Quais artistas, além do Uderzo,
inspiraram a maneira como você desenha?

Sofri muito para fazer a capa porque não queria colocar o Bozo nela. Eu precisava colocá-lo na
capa, mas ele não podia aparecer. Uma coisa meio Daniel San no Karate Kid, sabe? Quando ele vai
para aquela festa de Halloween vestido de Homem Invisível. Ele está lá, mas ninguém consegue vê-
lo porque está com aquela fantasia de chuveiro (risos). Eu queria fazer alguma coisa assim. Até que
um belo dia me lembrei dessa capa do Asterix e pensei como ela é genial. O Adivinho está lá, mas
não está lá, só tem a projeção da sombra dele. Então, fiz essa releitura.

Quanto minhas influências, acho que nunca pensei muito nisso. Provavelmente minhas influências
são muito mais dos desenhos animados do que daos quadrinhos, além do humor paulista dos anos
80, como os grandes Angeli, Laerte e Glauco. Tenho um outro tipo de desenho também, que é mais
realista, só que quando desenho nesse estilo preciso parar e pensar mais, agora o desenho nesse
estilo cartoon são mais naturais, saí meio automático.

Existe algum motivo específico para escolha de animais como personagens? É alguma
influência de Maus ou A Revolução dos Bichos?

Claro que a Revolução dos Bichos e Maus estão sempre na fundo da nossa cabeça, mas a razão
dos bichinhos é que eu queria que fosse algo fofo. Porque o que acontece na história é terrível
(risos). Quando você conta uma história terrível e a ilustra com desenhos fofos, de alguma maneira
ela fica mais pesada. Fica mais difícil de engolir. Fazendo os palhacinhos fofinhos, eles ficam mais
terríveis do que palhaços feios fazendo coisas feias.

Eu gosto dessa coisa da dissimulação e brinco muito com isso. Quando aparece um policial na
história, por exemplo, ele é um cachorro. Quando se tem um banqueiro, ele é um porco, o porco
capitalista. E o personagem que narra a história é um jumento. Quando ele fala alguma coisa, os
outros olham para ele e dizem: “mas você é um burro!” e no fim ele é o único que está vendo o que
está acontecendo.

Em determinado momento da história, um dos personagens, o jumento, explica sobre a


função da propaganda e como o uso dos meios de comunicação de massa foram cruciais
nesse processo de ascensão do neofascismo no Brasil. Qual foi a responsabilidade da mídia
na eleição do Bolsonaro?

A mídia é cúmplice. Não podemos perder de vista que a mídia no Brasil é comandada por nove
famílias que não são de maneira alguma ligadas aos interesses da população. As pessoas
costumam pensar no fascismo como uma coisa de guerra, mas o fascismo é na verdade uma forma
de se chegar ao poder. O fascista é o burguês assustado. A burguesia gosta de parecer democrática
e progressista, mas se você fizer uma pequena ameaça dos privilégios, já aderem ao fascismo
facilmente. É o que vemos a nossa mídia fazendo. É só voltar nas gravações e ver as capas da Veja
ou da ISTOÉ em 2016, ver as gravações da Globo News em campanha aberta pelo golpe que retirou
a Dilma. É um absurdo. Agora eles meio que se arrependem, mas não muito, eles se arrependem
mais da forma do que do conteúdo. O conteúdo está alinhado. Os grandes meios de comunicação
no Brasil não são incentivadores do golpe, eles são os sócios, os patrocinadores. Eles tem cota. E
não é cota pequena, é cota de quem vota. São donos do Bozo e de tudo o que aconteceu depois.

Toda vez que há opressão, a cultura assume um papel fundamental, como foi na Ditadura
Militar e agora, novamente. Como você vê o papel da cultura hoje no Brasil? Qual é o papel
que os artistas jogam na construção da esperança, em meio há tantas trevas?

Eu me divido um pouco entre o que eu vejo e a opinião do Saramago. Ele dizia que ninguém se
importava com a literatura, mas que ele ia aproveitar esse espaço que tinha como um grande escritor
e ganhador do Nobel de Literatura para falar de política e fazer críticas que realmente importavam.

Esse governo tem uma questão diferente da época da Ditadura; é sim um governo fascista, mas não
é um governo hegemônico. Você tem fascistas no poder, mas a sociedade como um todo não está
embarcada nisso. A verdade é que a menor parte da sociedade embarcou nesse governo. Então,
você tem uma produção cultural intensa contra a figura e toda a representação. Se pensarmos em
música, vamos de Emicida à Arnaldo Antunes, com aquela música do “O Real Resiste”, Hot e Oreia
com “Eu vou’’ com participação do Djonga, muita produção de quadrinhos, de multimídia e que está
sendo algo que reorganiza a resistência. Enquanto a esquerda parece bastante perdida e aflita
diante da situação, você vê uma resistência cultural.

Você verá a questão da pandemia em toda arte produzida no futuro, seja por se referir diretamente a
ela ou seja por tentar não falar dela. Sempre terá aquela sombra. E o Brasil terá duas sombras: a
tragédia da pandemia e ainda a tragédia da ascensão do Bozo (que como você pode perceber, tenho
tanta bronca que não fico nem falando o nome dele, pois como Neil Gaiman nos ensinou: “nomes
tem poder” e eu não gosto de ficar o evocando).

O ano passado foi marcado por polêmicas acerca de quadrinhos e política. Um dos episódios
mais marcantes foi quando Joe Bennett, desenhista da saga The Immortal Hulk da Marvel, fez
um post em seu Facebook apoiando a agressão de Augusto Nunes contra o jornalista Glenn
Greenwald. Logo depois, surgiu uma imagem em grupos de quadrinhos de um suposto
movimento intitulado “Quadrinhos sem Política”. Como é para você, ver esse tipo de
movimento surgindo? É possível desvincular a política das histórias em quadrinhos?

Tenho tido muita vontade de escrever sobre essa questão de “quadrinhos sem política’’. Não existe
isso. Toda obra artística, toda criação humana é política e é ainda mais política se ela disser que não
é política. Aí ela é política e canalha, pois está tentando se esconder.

Esse “movimento’’ deu origem a outro movimento, os Quadrinistas Antifascistas. Vemos muitos
quadrinistas que se declaram antifascistas e que andam com os bottoms e que dizem abertamente
que são antifascistas e você não vê quase ninguém que se diz partidário do “Quadrinhos sem
política’’.

A direita tem um problema interessante de que ela não tem muita facilidade para ter artistas. É mais
difícil o artista ser de direita. Quem é a Laerte da direita? Quem é o Aroeira da direita? Não tem.
Então eles acabam recorrendo a tentar silenciar o outro lado.

Todo dia é dia de combater o fascismo. Foto: Rubens Menezes

Por fim, você acredita que os quadrinhos podem ser um recurso didático e pedagógico e
deveriam ser usadas em sala de aula? De que maneira os quadrinhos podem ajudar os
professores a ensinar História?

Com certeza, os quadrinhos são ótimos para isso. Às vezes ser didático é pegar uma ideia complexa
e tentar introduzir algumas simplificações para que ela seja mais fácil de ser compreendida e permitir
que a pessoa possa a partir dali desenvolver um conhecimento mais profundo pegando referências
ou indo atrás de coisas que vão ficando cada vez mais densas. De maneira nenhuma estou dizendo
que os quadrinhos são menos densos, tem obras de quadrinhos que são mais densas que muita
literatura que já li. Obras como Maus, Gen Pés Descalços, Watchmen, Cavaleiro das Trevas, A Piada
Mortal, V de Vingança, O Escultor, Habibi, Pílulas Azuis, entre outras, são obras que são quase
como um soco no estômago, mas acho que os quadrinhos conseguem conversar principalmente
com um público mais jovem, de uma maneira mais fácil. Nós, professores de História, costumamos
usar muito a arte, cinema, quadrinhos, cartoons, porque a questão da história é você ver o tempo
cristalizado naquela produção artística, naquela produção cultural. Toda produção cultural é a
produção do próprio tempo.

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