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Mundo dos Outros - 22 Personagens e 1 Ensaio” (3ª edição revista e ampliada, Manole, 2014,
pp.271-287)
1.
sobre uma – uma única – pessoa viva, famosa ou não. Texto biográfico não significa
exatamente biografia, que é outro gênero. Nem tudo o que é biográfico é biografia, aliás.
fato de que, em ambos, tudo gira em torno do personagem central (evito a palavra
perfilado).
Cada ser humano tem um perfil, assim como cada perfil só pode ser sobre um ser
robôs programáveis, sem estilo nem identidade, o texto do tipo perfil simplesmente não
existiria. O perfil expressa a vida em seu contexto. Atém-se à individualidade, mas não
qualquer coisa. Mas, para mim, jornalisticamente falando, não existe perfil de cidade,
perfil de bairro, perfil de um edifício, perfil de uma época, perfil de um grupo, perfil de
um cão (na ficção, sim), etc. Em jornalismo, o ponto de vista é sempre humano.
Lugares, animais, grupos, etc., por mais vivos – por mais marcantes que sejam as
humanas.
Claro que você pode fazer uma reportagem ou uma crônica sobre um lugar, um
edifício, uma época, e tentar desvendar a cultura, a personalidade e a alma do tal lugar,
autobiográfico. Perfil, não. O perfil (em forma de texto escrito) possui parâmetros
protagonista tenha mudado suas opiniões, conceitos, atitudes e estilo de vida, o texto
pode continuar despertando interesses. Quanto à narratividade, ela se expressa por uma
2.
estão em toda parte. No entanto, ninguém é personagem de uma narrativa pelo simples
fato de estar vivo. Para se tornar personagem de um perfil, são necessários dois
processos antecedentes: o autor escolher uma pessoa (ou ser escolhido pela pessoa) e o
qual pertence; 2) há indivíduos que se diferenciam da multidão por suas atitudes e/ou
suas vidas.
autor do perfil. Por incrível que pareça, o personagem em si não é decisivo para a
com a narração. Escapismo justificar que o personagem é isso, aquilo, comum, igual,
anônimo, caladão, etc.; ou que a história dele/dela é fraca e que, “por isso, a coisa não
for. Você deve estar pensando: “Ah, mas o Gay Talese fez aquele antológico perfil do
Frank Sinatra sem falar com o Frank Sinatra”. Certo, certo. Mas considere que Talese
queria muito falar com o Frank; e cite, se for capaz, outro perfil antológico em que o
sobre mortos. A arte do perfil (arte no sentido de um fazer tal que, quando faz, altera o
fazer, pois não comporta fórmulas) reside exatamente na vida presente que possui um
passado.
observar e refletir. Tudo dentro do possível, claro, pois cada caso é um caso. Você tem
de seu círculo de relacionamentos; movimentar-se com ela por locais diversos; tem de
pongue. Perfil não é debate. Autores que ficam paralisados diante do personagem,
métodos. Os perfis elucidam, indagam, apreciam a vida num dado instante, e são mais
atraentes quando atiçam reflexões sobre aspectos universais da existência, como vitória,
meus leitores a se verem por um ângulo diferente. Humanizar não é um mistério. É uma
evitar maniqueísmos. Uma pessoa não é isto ou aquilo. Ela é isto, aquilo, aquilo outro e
sociabilidade, hobbies, etc.); vou aos lugares que ela frequenta; capto sua visão de
mundo e suas marcas de temperamento; e não idealizo ninguém, jamais. As pessoas são
o que são. E que assim sejam. Evito, com todas as minhas forças, ser judicativo e duvido
A ideia de self-made man (ou self-made woman) é outro ponto importante. Para
3.
os olimpianos do mundo das artes, da política, dos esportes e dos negócios. Esperava-se
que o perfil lançasse luzes sobre a fase atual, o comportamento, os valores, a visão de
americanas como The New Yorker, Esquire, Vanity Fair, Harper’s e Atlantic, entre
e com a sua turma, entre shows, gravações, sessões para escolha de novos compositores,
programas de TV, jantares e viagens. “Eu nunca o havia visto fora do palco e dos vídeos”,
assume Freire no texto. “Não eram os fatos de sua vida pessoal que interessavam, mas
protagonista com opiniões deste sobre temas contemporâneos como sexo, família,
Alguns: Lincoln Barnett, Joseph Mitchell, Janet Flanner, Lillian Ross, Calvin Trillin,
Susan Orlean, David Remnick, Mark Singer, John McPhee, Joan Didion… Vários dos
americana. Seu “Frank Sinatra está resfriado”, publicado na edição de abril de 1966 da
Esquire, é talvez o texto-perfil mais lido no mundo. Pelas circunstâncias em que foi
realizado, talvez seja mais apropriado dizer que esse texto é a exceção da exceção, pelo
ser entrevistado exatamente porque estava resfriado. Em vez de retornar a Nova York
com as mãos vazias, Talese decidiu ficar nos arredores à espera de uma oportunidade
de ao menos trocar umas palavras com “The Voice”, o que tampouco aconteceu. Restou-
lhe, então, seguir os passos do astro por bares, estúdios, programas de TV, cassinos e
lutas de boxe.
Estava presente, por exemplo, em um bar de Beverly Hills, onde Sinatra bateu
boca, sem mais nem menos, com Harlan Ellison, um jovem roteirista de Hollywood. O
diálogo entre os dois foi reproduzido e transmite não apenas a exaltação de ânimos como
o humor intragável de Sinatra, que, além de resfriado, atravessava uma fase difícil.
Talese mostra como o cantor se relacionava com a sua trupe e com o mundo;
nascera cinquenta anos antes. As cenas são orientadas por ações, descrições, ironias e
fundada em 1925, que detém o crédito de principal difusora de perfis. O grande passo
da New Yorker foi a contratação de Joseph Mitchell no final da década de 1930. Mitchell
jornalistas literários de todos os tempos. Os dois textos que escreveu sobre o folclórico,
Lincoln Barnett, repórter da Life entre 1937 e 1946, é outro memorável. Barnett
contribuiu muito para essa atividade. Na única coletânea em livro que publicou – The
world we live in: sixteen close-ups (1951) –, ele comenta por que e como escreveu alguns
de seus principais textos. Segundo Barnett, o autor de perfis “tem de se preocupar com
morto”.
O Brasil não tem tradição em Jornalismo Literário, e esta é uma das razões de
ainda ser rala a maioria de nossas produções do tipo perfil. Revistas como Piauí e
Brasileiros, surgidas entre 2006 e 2008, têm ajudado a reduzir um pouco o nosso déficit
disposição cursos, livros e sites que ampliaram nosso entendimento sobre o jornalismo
4.
acham que deve ser chamado de perfil o texto que enfoca o protagonista de uma história
(a história de sua própria vida). O que se deve ter em vista no perfil, portanto, é o
protagonismo.
literatura, cinema ou teatro sem personagens. Para nos aproximarmos das boas
realizações, portanto, deveríamos nos misturar com a arte constantemente, nos expor a
que a pessoa assuma uma pose. O fotógrafo Henri Cartier-Bresson, por outro lado,
Em princípio, não há diferença entre representar uma coisa vista e uma coisa
rememorada – nenhuma delas pode ser transcrita como tal, sem uma linguagem, “sem
aquele domínio da expressão que Rembrandt fez seu e que é patente de ponta e ponta
– fronte, nariz, boca e queixo – e estudar as formas que esstas quatro partes podem
tomar. Uma vez que esses elementos do semblante humano estejam gravados na mente,
Cada encontro é tão singular quanto decisivo. Os personagens não são modelos
espontâneas. Na verdade, autores de textos do tipo perfil estão o tempo inteiro atentos
a quatro processos tão fundamentais quanto indivisíveis: 1) os espaços; 2) os tempos; 3)
as circunstâncias; 4) os relacionamentos.
aqui, agora).
deve refletir também a consciência do autor sobre o que ocorreu nos bastidores.
trabalho autoral. O poeta E. E. Cummings (1894-1964) dizia que o artista não é um sujeito
que descreve, mas um sujeito que sente. Em um perfil, tanto a pesquisa quanto a
5.
sorriso da Mona Lisa (La Gioconda), de Leonardo da Vinci. Luxúria? Castidade? Ironia?
Ternura? Talvez aquele sorriso não expresse nada além de um disfarce, mas quanta
saudável ambiguidade contida nele, não? Observe também como as mãos da Mona Lisa
obtido será apenas um esgar. É preciso sentir a expressão humana, e essa só vem no seu
instante”, afirma Gombrich. Então, um retrato por escrito tem de ser construído de modo
delas:
consequentemente, de compreensão.
para tal. Nesse caso, perde-se o conceito de texto-perfil, modalidade que aborda
ajuda de um conjunto de cuidados. Dou atenção ao que a pessoa diz a seu respeito e ao
que ela diz a respeito de outras pessoas; dou atenção ao que ela diz a respeito dos
tento captar o que outras pessoas têm a dizer sobre o protagonista (ou sobre algum
assunto correlacionado).
está atravessando. Opero, então, com um acúmulo de indícios, que podem ou não ser
personagem. Mas esse risco é evitável. Na dúvida, concentro-me no que de fato está
Nos perfis deste livro, me deixei levar pelo que foi possível captar por meio de
aspectos, igualmente difícil de praticar, pois requer tanta paciência quanto aquela
olfato, tato, audição, etc. Os insights mais importantes da história da ciência e das artes
plena de observação passa por exercícios diários muitas vezes desprezados pela razão,
como caminhar no escuro, apalpar ou cheirar objetos com os olhos vendados, tentar
adivinhar o que há dentro de caixas e latas pelo peso e formato e reconstruir os cenários
comunicação não verbal. Por meio dela, pode-se compor um conjunto de pistas para que
o que uma pessoa faz e como ela faz é o que, para mim, torna o perfil tão interessante de
6.
aluno me respondeu certa vez. Mas… Xavecar não é o verbo apropriado porque,
originalmente, significa “agir de forma vil e incorreta”. Mas, no dia a dia (em São Paulo,
pelo menos) usa-se o verbo xavecar no sentido de “dar uma cantada”, “convencer”,
“persuadir”.
Persuadir é tudo. Então, como persuadir a pessoa (famosa ou não) que você
escolheu a dedo? Como convencê-la a deixar que você entre no mundo dela e a
Agora, algumas anotações que resumem o que foi abordado até aqui:
assim sejam.
texto-perfil.
compreendê-lo.
atua.
protagonista.
fazem bem.
Relaxe: isso acontece até com quem pode passar uma década dedicando-se à