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UM TEXTO IMPECÁVEL

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Brasil

Eu tinha lido o texto de Luiz Felipe Pondé, publicado ontem na


Ilustrada, da Folha. Queria, como faço agora, publicá-lo na íntegra.
Decidi esperar um dia — o jornal de ontem já foi. Mas o texto de
Pondé ficará. É uma resposta a Marcelo Coelho, sim, mas é o
menos importante. O artigo dispensa comentários […]
Por Reinaldo Azevedo Atualizado em 31 jul 2020, 18h11 - Publicado em 10 fev 2009,
05h21
Eu tinha lido o texto de Luiz Felipe Pondé, publicado ontem na Ilustrada, da Folha.
Queria, como faço agora, publicá-lo na íntegra. Decidi esperar um dia — o jornal de ontem
já foi. Mas o texto de Pondé ficará. É uma resposta a Marcelo Coelho, sim, mas é o menos
importante. O artigo dispensa comentários adicionais. Entre tantas considerações de
primeira grandeza, destaco este trecho:
“Escrevo e leio para não me sentir só.
Quando olho os ‘avanços’ da nossa minúscula
história, penso: como nos verão em mil anos? Como a decadência do século 17? Rirão de
nós porque demos direitos aos ratos, enquanto fizemos dos bebês lixo reciclável pelo
direito de gozar mais?”

Num programa Roda Viva com o ministro José Gomes Temporão, da Saúde, que fazia a
defesa da legalização do aborto, indaguei se não poderíamos garantir aos fetos os
mesmos direitos de que gozam os ovos de tartaruga. A minha intervenção foi
considerada agressiva.

Fiquem com a “Metamorfose”. A de Pondé.


*


ser indagado se não tinha esperanças, Kafka disse, “esperanças há muitas, mas não
Ao
para nós”. Janouch narra um dia em que ele, com 20 anos, disse a Kafka, então com 40,
“hoje não estou entendendo nada do que você diz”. Kafka respondeu “deve ser a
misericórdia de Deus, porque sendo você jovem, e estando eu hoje pessimista, se você me
entendesse, você ficaria mal”. Confessa: “o pessimismo é meu pecado”.
Por que os clássicos são tão pessimistas? Seria o trágico uma moda? Três mil anos de
moda? Improvável. Na sua coluna de 21 de janeiro, meu colega ilustrado (velha piada
entre nós) Marcelo Coelho critica “meu” pessimismo. Colunistas que “matam a esperança”
são supérfluos. O bom jornalismo opinativo é pautado pelo conflito de idéias, por isso,
agradeço suas críticas. Ele acha que ao duvidar do Iluminismo reforço forças regressivas
na experiência humana. Eu penso que o Iluminismo é que é regressivo porque caminha
sobre fantasias enquanto os homens caminham sobre tumbas. Nós modernos somos a
raça mais covarde que caminhou sobre a Terra. Não escrevo para tornar a vida do meu
leitor melhor. Escrevo e leio para não me sentir só. Quando olho os “avanços” da nossa
minúscula história, penso: como nos verão em mil anos? Como a decadência do século 17?

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Rirão de nós porque demos direitos aos ratos, enquanto fizemos dos bebês lixo reciclável
pelo direito de gozar mais? Respondo a pergunta “o que eu acho da Revolução Francesa?”
com “ainda é cedo pra dizer qualquer coisa”.

Imaginem dois africanos no século 19. Um vende o outro como escravo (negros vendiam
negros). O escravo é levado para os Estados Unidos e lá sofre todo tipo de horror da
escravidão. O outro fica livre e feliz na África. Adiantem o filme. O bisneto do escravo
mora nos EUA, casa na praia, filhos na faculdade, e a esposa, bisneta de outro escravo,
médica de sucesso. Voltem pra África. Muitos bisnetos do que ficou lá continuam a viver
em seus buracos, matando-se do mesmo jeito (como acabou a escravidão, perderam a
chance de vender seus “irmãos”). Famílias afundam na miséria. Qual é a moral desta
história? Que a escravidão foi uma bênção para os afro-americanos porque os levou para
os EUA? E a liberdade do outro, a maldição de seus bisnetos? Os afro-americanos, que
hoje celebram a vitória do Obama, depois de muito sofrimento, diriam “ainda bem que
nossos bisavós foram escravos”? Não! A escravidão é um horror.

A questão é outra: qual o sentido da história humana? Nenhum. A história não é a luta
entre a luz e as trevas. Não porque elas não existam, mas porque não sabemos identificar,
com o microscópio das idéias claras e distintas de que dispomos, a trama infinita de suas
relações. Um homem faz o que pode em meio a opacidade do mundo. Meu pecado é não
fazer o marketing da democracia de massa. Falsos sentimentos são comuns nos homens,
logo, quanto mais homens, maior a chance de mentira, por isso desconfio de bons
sentimentos em grandes quantidades.

Mais? Os índios não vivem em comunhão com a natureza, apenas ficaram na idade da
pedra em técnicas de domínio da natureza, como muitos africanos que ficaram na África.
A ciência e a política tampouco fazem os homens melhores. O mundo não é dividido entre
elite má e pobre bom. Se a elite é cruel, o povo é violento e interesseiro. Os homens não
são iguais, alguns são melhores. A igualdade ama o medíocre. É mentira que todo mundo
possa julgar as coisas por si só. A propaganda desta mentira gera uma horda de invejosos
que sonham em destruir quem eles julgam livres. Supérfluo? Mentira. Num mundo
parasitado pelo marketing como forma de vida, ser pessimista é um método. Não se trata
de dizer morbidamente “o mundo é mau”, mas reconhecer que no humano a verdade é
uma ferida incurável. A esperança que conta é a do animal ferido.

Nada disso implica concordar com crianças mortas. O debate ao redor da esperança não é
um problema do quão otimista somos, mas o que em nós nos faria colaborar com nazistas
na França ocupada, além do medo. Manter o emprego? A chance de destruir alguém
melhor do que eu? Tomar a mulher de alguém? Promoção pessoal? Nada mais banal,
nada mais humano. Na “Metamorfose”, Gregor Samsa, agora uma barata, vê a delícia que
é caminhar de cabeça pra baixo com suas perninhas coladas ao teto. Sente-se finalmente
feliz. A barata é a otimista em Kafka.

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