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O capitalismo mata.

Ou: O triste fim de um ser humano (de muitos humanos)


Resenha sentimental do filme “Você Não Estava Aqui” – titulo original Sorry We
Missed You (2019) –, de Ken Loach
Leonardo Borges é pobre, cientista social, poeta e bebum

Como toda boa obra de arte, o mais recente filme de Ken Loach é passível de
muitas interpretações e abordagens. Papeis de gênero na sociedade, com ênfase
na sobrecarga que recai sobre as mulheres? O filme aborda. A crescente (e
patológica? Desconfio que sim. Certamente contraditória) presença da tecnologia na
vida das pessoas, com a eliminação de empregos e o distanciamento pessoal?
Temos até propaganda da Apple. A luta por reconhecimento e atenção, para não
ser apenas mais um ser anônimo no meio da multidão? Temos o problemático
adolescente Seb e suas marcas (pixos) pelo espaço urbano. A descartabilidade dos
idosos que não podem mais produzir e possuem pouco poder de compra? Tem
também. A insegurança gerada pela excessiva flexibilização da vida? Está lá na
tela, o filme inteiro. Mutações no mundo do trabalho? Deixe a ex-sindicalista
aposentada se espantar com a jornada de trabalho da sua cuidadora, 14 horas por
dia. Em suma: abordagem crítica do ethos (valores, se preferirem) da
contemporaneidade (ou do neoliberalismo, termo com menor capacidade analítica e
maior poder de mobilização politica)? Presente! da primeira à última cena.
O filme aborda cada um desses “assuntos” com profundidade, de forma precisa e
segura. Fosse eu um crítico pedante, destes que temos aos borbotões, o titulo
dessa resenha seria “Poliedro Contemporâneo”. Mas prefiro ser direto, opção
também escolhida por Ken Loach nas suas obras: O Capitalismo mata,
principalmente quando excessivamente desregulado, verdade tão óbvia que às
vezes esquecemos.
O enredo do filme é uma realidade cada vez mais vivenciada por milhões e milhões
de pessoas ao redor do planeta: a luta de um trabalhador precarizado (no Brasil,
chamamos esse fenômeno de uberização do mercado de trabalho), Ricky, e de sua
esposa, Abby, também devidamente precarizada e super explorada, para garantir o
sustento do lar. O sonho (talvez delírio fosse melhor) de se tornar empreendedor faz
com que Ricky venda o carro com o qual sua esposa vai trabalhar para financiar
uma van a fim de se tornar “sócio” (trabalhador informal seria uma definição mais
honesta) de uma empresa de entregas, controlada draconianamente pelo impiedoso
Maloney. Enquanto isso, Abby passa a ir trabalhar de transporte público para visitar
os 6 idosos que ela precisa cuidar por dia: fazer comida, dar comida na boca, limpar
a casa, limpar as pessoas, trocar as fraldas, dar remédios... A lista dos cuidados
não acaba e não é bom presságio que isso, o cuidado com os nossos velhos, tenha
virado um mercado. Taí, talvez o conflito entre velho x novo seja outro fio a costurar
o realista retrato apresentado na tela por Loach: velho mundo do trabalho x novo
mundo do trabalho. O diretor parece nos advertir que o frio e cruel descarte dos
velhos (trabalhos e pessoas), opção aparentemente tomada por todos, não é feito
sem dor e perdas: de dignidades e de direitos, tanto dos trabalhadores, quanto das
pessoas já fora do mundo produtivo – os aposentados idosos.
Enquanto Ricky e Abby trabalham 14 horas por dia, 6 dias por semana – e ainda
possuem colegas de trabalho solenemente descartados após trabalharem 14 dias
sem folga –, seus filhos, Sebastian, ou Seb, e Liza, crescem sem os pais. E ao
passo que Liza, cerca de 11 anos, lida com a ausência dos pais lutando para
promover encontros e vivenciar momentos de afeto na família (nem que seja
cochilar abraçada ao pai, que dorme exausto no sofá após o estafante dia de
trabalho) e assumindo responsabilidades, numa clara referência à perpetuação das
jornadas duplas e triplas das mulheres – tal qual faz sua mãe –, Seb, cerca de 16
anos, escolhe o caminho da delinquência juvenil para “existir” e, quem sabe assim,
não ser apenas mais uma pessoa completamente descartável e invisível – tal qual
seu pai. “E até pra morrer, você tem que existir”, já nos advertiu o cantor
pernambucano Otto.

Pequena pausa para um depoimento pessoal


Meu pai, Edgar, ótimo garçom segundo testemunhos de colegas de profissão,
morreu aos 58 anos. Quando me perguntam do que ele morreu, hoje eu digo numa
boa: morreu de bingo (ainda que sua vida não possa ser resumida ao vício no jogo,
certamente sua morte deve muito a este fato). Não consigo dar as datas com
precisão, mas meu pai foi viciado em bingo de 1999 a 2005, quando o jogo foi
proibido no Brasil durante o primeiro governo Lula (e pensar que tem pessoas que
se dizem de esquerda e se declaram autonomistas, ou anti-Estado, ou apolíticas).
Durante este período, para além das privações que sua família (nós: minha mãe,
meus dois irmãos e eu) passou, sua vida – e a de minha mãe, Lurdes – deve ter
sido um inferno, igual ao vivido pelas personagens Abby e Ricky. Uns dois anos
após a sua morte, que aconteceu em 2016, minha família encontrou uma carta
escrita de próprio punho por ele, cujo título era: O triste fim de um ser humano. No
texto em letras tremulas – fragilidade e emoção –, temos um desabafo sincero de
alguém que sabia que estava acabando, e que estava acabando antes da hora.
Culpa pelo vicio e pelas humilhações que sua família passou, mesmo ele tendo
lutado até o fim. Essa carta não existe mais, meu irmão precisou queima-la, decisão
que respeito. Mas na única vez em que a li, minha vontade foi a de transforma-la
numa performance duracional1 na qual eu, devidamente paramentado de garçom,
subiria e desceria uma escada que levasse até o mezanino de um restaurante.
Repetiria o gesto até ficar mancando e cair. Caído, tiraria a carta do bolso e a leria
em voz alta (antigamente o sacrifício de uma pessoa nunca era em vão, coisa
banal). Numa das nossas longas conversas madrugadas à dentro pouco antes dele
morrer, meu pai me confessou que ele achava que foi o subir e descer uma escada
no restaurante em que ele trabalhava – doente, é bom registrar – que acelerou a
evolução da doença que o matou. Dois ou três meses antes de sua morte, ao
recebermos o diagnostico do estado grave em que ele se encontrava, eu perguntei
para ele: “Pai, por que você acha que isso aconteceu com você? Tão Cedo?”. E ele
me respondeu: “Ah Lê, foi o bingo”.

Sim, o filme fala de trabalhadores precarizados do pós-crise de 2008. Fala de uma


sociedade doente, na qual centenas de adultos em idade produtiva lotavam bingos
em dia de semana à tarde. Assim como lotam igrejas e ruas. Desespero,
desamparo, desrespeito, desorientação. Em mais de um momento, Ricky confessa
que não sabe o que fazer. Mas ele luta e se bate. E sofre as consequências de
aderir inconscientemente e irrefletidamente ao discurso neoliberal vigente:
empreendedorismo, flexibilidade, liberdade. (Parênteses necessário em tempos de
justas lutas identitárias: o maior poder do opressor é se perpetuar na sua vitima
através da reprodução de atos desumanizadores por parte do oprimido. Essa é a
igualdade permitida pelo neoliberalismo: igualdade de dominação e desumanização.
O “Não se transforme naquilo que te feriu” está mais esquecido que a Constituição

1
Em poucas palavras, performance duracional é um tipo de performance – ação artística na interface das
“linguagens” artes visuais e artes cênicas – na qual o artista performer executa um ato o máximo de tempo
que seu corpomente aguenta, até a exaustão. Postula a simultaneidade e indiferenciação entre arte e vida.
de 1988. A vingança pode até ser uma forma possível de justiça no plano individual.
No plano coletivo, da ordem da Política, costuma apenas produzir ressentimentos
entre frações da população que deveriam se unir em algumas lutas. Os opressores
agradecem. E assim trabalhadores – para ficar apenas no recorte de classe, que é o
qual tenho “legitimidade” para abordar e discutir – seguem adotando discursos e
valores dos empregadores).
Enquanto economistas louvam a produtividade do “trabalhador” chinês 2 (pessoa
escravizada) e tomam isso como parâmetro, Ricky precisa dirigir sua van com os
ossos do corpo quebrados. E humanos seguem acabando antes da hora, agora
cada vez mais. O capitalismo mata, e não deveríamos aceitar isso sem revolta e
indignação. Mas uma indignação que se desdobre em paciente e eficaz ação
coletiva e politica. E não em escapismos de lacração em redes sociais ou surtos de
consumismo – de bens e “experiências”. O desafio é grande, vivemos a era do ego.
Para ficarmos apenas no período pós-Abolição (formal) da escravidão 3, da
instituição do trabalho assalariado por aqui, não custa lembrar que o Ministério do
Trabalho do Estado Brasileiro, simbolicamente desmontado por esse atual
(des)governo ultraliberal, foi criado na esteira da Revolução de 1930 em novembro
daquele ano e é fruto de décadas de luta da classe trabalhadora. A primeira grande
greve no Brasil foi registrada em 1917 e a CLT só foi promulgada em 1943. Se o
caminhar é longo o melhor a se fazer é escolher um caminho e seguir pouco a
pouco, passo a passo.

2
Sobre este ponto, assistir ao documentário American Factory (2019), de Julia Reichert e Steven Bognar.
3
A Abolição em si, à despeito da narrativa oficial colonialista atribuir um papel exagerado à família imperial
brasileira, é outro exemplo de um longo e tenaz processo de mobilização, sendo resultado de séculos de
resistência – que se deu dos mais diversos modos – das pessoas negras escravizadas e de uma emergente
sociedade civil urbana, que através das universidades, jornais, panfletos formaram um vigoroso movimento
abolicionista.

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