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António Raúl Sitoe

Eduardo Gomes da Silva Filho


(Org).

Fluxos
Contemporâneos:
Migrações
Transnacionais e
Direitos Humanos
Diretora
Barbara Alinne F. Assumpção

Produção Gráfica
Editora Aluz

Capa
Editora Aluz

Diagramação
Editora Aluz

Revisão Técnica
Karoline Assunção

Jornalista Grupo Editorial Aluz


Barbara Alinne F. Assumpção, MTB 0091284/SP

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REVISORES
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Felipe Lazari. São Paulo, Brasil.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Fluxos contemporâneos: Migrações transnacionais e
Direitos Humanos. 1. Ed – São Paulo: Editora Científica, 2022.
166p.
ISBN: 9786599491443

1. Migração 2. Transnacionais 3. Direitos Humanos I.


Sitoe, António Raúl; II. Silva Filho, Eduardo Gomes
(Org.). III. Título
CDD-378
Índices para catálogo sistemático:
1. Educação
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.
As migrações transnacionais são um fenômeno diretamente ligado à globalização,
evidenciam-se a partir de processos de desterritorialização, atrelados a diversas causas,
como fatores políticos, sociais, econômicos, climáticos, bélicos, culturais, étnicos e religiosos.

A categoria de migrante pode ser compreendida por intermédio das migrações


voluntárias e forçadas, neste segundo caso, em relação aos refugiados. Além da análise
destes fluxos migratórios na contemporaneidade, a obra também pretende discutir à
luz das contribuições de pesquisadores que versam sobre esta temática, um olhar mais
pormenorizado acerca dos direitos destes grupos humanos, sejam eles, emigrantes,
refugiados ou apátridas.
SUMÁRIO
1 A legislação migratória, os direitos das pessoas
refugiadas no Brasil e a Lei de migração: antigos dilemas,
novos desafios 11

2 A exploração sexual de imigrantes e de refugiadas no


Brasil: Direitos Humanos, liberdade sexual e o direito ao
próprio corpo 27

3 Imaginário social, racismo e identificação de africanos


no Rio de Janeiro nos últimos 22 anos 39

4 Gobernanza Migratoria Ecuatoriana ante los flujos


Migratorios colombianos y venezolanos 55

5 A era dos muros vs. Globalização: Por uma migração


segura, ordenada e regular 67

6 Atenção a criança e ao adolescente migrante no Estado


de Roraima: projeto infâncias em movimento 81

7 O impacto da mídia no programa de educação superior


para migrantes da Universidade Federal de Roraima 93

8 Ius migrandi: princípios universais dos direitos humanos,


proteção ao migrante e refugiado venezuelanos 107

9 A imigração nipônica no Brasil: nuances e percalços de


interesses políticos e econômicos 121

Sobre os Organizadores 131


Fluxos Contemporâneos: Migrações Transnacionais e Direitos Humanos

1 A legislação migratória, os direitos


das pessoas refugiadas no Brasil e a Lei
de migração: antigos dilemas, novos
desafios1
Eduardo Gomes da Silva Filho2

“A violência e a guerra nunca hão de ser o melhor


caminho, sob nenhuma perspectiva. O estrago que se faz é
sempre irreparável, mesmo com todo o apoio que se possa
dar. A paz deve ser um imperativo a ser buscado sempre, e
é preciso disseminá-la mais e mais, através das gerações,
dos países, da educação, da imprensa, da arte, do direito,
das diferentes linguagens e para os diversos setores das
sociedades.”
(Silvia Sander, Oficial de Proteção da ACNUR).

1 INTRODUÇÃO

D
esde que entrou em vigor no Brasil em meados de 2017, a nova Lei de Mi-
gração3 vem promovendo profícuos debates. Principalmente por alguns
pontos, que são considerados controversos por parte da classe jurídica, como
nos casos da não extradição para crime político e de opinião, assim como consoante à
Constituição Federal de 1988, que proíbe que refugiados ou asilados sejam extraditados.
Contudo, o presente texto não tem a pretensão de contestar ou corroborar tais
dispositivos legais previstos em lei, far-se-á amiúde uma breve análise acerca das ques-
tões pontuais que envolvem a legislação migratória no Brasil, assim como os direitos das
pessoas refugiadas sob o prisma da nova Lei de Migração.
Doravante, abordar-se-á de forma verticalizada alguns impactos dessa nova Lei à
luz dos arcabouços jurídicos e teórico metodológicos no Estado de Roraima, que passa
por um aumento do fluxo migratório nos últimos anos, sobretudo de migrantes e refu-
giados venezuelanos.

1 O texto foi produzido com base na Disciplina: Tópicos Especiais – Legislação Migratória no Brasil
– Direito das pessoas refugiadas e a Lei de Migração, ministrada pelo Prof. Dr. João Carlos Jarochinski
Silva, no Programa de Pós-Graduação em Sociedade de Fronteira-PPGSOF/UFRR, onde cursei como
aluno especial para obtenção de créditos para conclusão da carga horária do Doutorado.
2 Professor da Universidade Federal de Roraima-UFRR. Doutorando pelo Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade Salgado de Oliveira-PPGH/UNIVERSO. A pesquisa conta com o
apoio da CAPES, desde agosto de 2022. E-mail: eduardo.filho@ufrr.br.
3 Cf: BRASIL. LEI 13.445, DE 24 DE MAIO DE 2017. Institui a Lei de Imigração. Disponível em: http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13445.htm. Acesso em 20 ago. 2022.

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2 UMA BREVE ANÁLISE DA POLÍTICA MIGRATÓRIA NO BRASIL NA ERA VARGAS (1930 tuberculose, tracoma, infecções venéreas e outras referidas nos regulamentos de
saúde pública;
– 1945) V – Toxicômano;
VI – Que apresente lesão orgânica com insuficiência funcional, verificada
conforme preceitua a legislação em vigor;
De acordo com Koifman (2020), havia uma preocupação exacerbada do governo VII – Menor de 18 anos e maior de 60;
Vargas em relação à política migratória, com a implantação de medidas de cunho pro- VIII – Cigano ou nômade;
IX – Que não prove o exercício de profissão lícita ou a posse de bens suficientes
tetivas e restritivas, aos moldes europeus de eugenia, com vistas a um suposto aprimo- para se manter e às pessoas que o acompanham na sua dependência, feitas tais provas
ramento da raça brasileira. segundo os preceitos do regulamento que será expedido para melhorar execução
da presente lei;
Ainda segundo Koifman (2020), tais medidas consistiam em privilegiar a chegada X – Analfabetos;
de imigrantes para trabalhar na área agrícola, visando uma suposta proteção à ideologia XI – Que se entregue à prostituição, ou a explore, ou tenha costumes mani-
festamente imorais;
desses grupos e da proteção social dos brasileiros, além de uma suposta preservação da XII – De conduta manifestamente nociva à ordem pública ou à segurança
matriz étnica brasileira, como já mencionado acima. Outrossim, Koifman ainda afirma: nacional;
Do mesmo modo, a influência das ideias eugenistas já podia ser observada XIII – Já anteriormente expulso do Brasil, salvo se o ato de expulsão tiver sido
nos decretos publicados no início da década de 1920, conforme se constata da le- revogado;
gislação que atribuía ao Poder Executivo a prerrogativa de “impedir a entrada no XIV – Condenado em outro país por crime de natureza que determine a sua
território nacional” de “estrangeiro mutilado, aleijado, cego, louco, mendigo, portador extradição segundo a lei brasileira4 (KOIFMAN, 2020, p. 165-166).5
de moléstia incurável ou de contagiosa grave” e de “todo estrangeiro de mais de 60
anos” (KOIFMAN, 2020, p. 160).
Partindo do pressuposto que toda política migratória é seletiva, os imigrantes que
Como pode ser observado, existia por parte do governo uma tentativa de branquea- se tornaram irregulares por esse Decreto, viam-se em uma situação de impossibilidade,
mento da população, tanto apoiado nos decretos supramencionados, quanto na esteira diante à entrada no país, além das práticas de xenofobia que ficara evidentes.
de intelectuais da época, como discorre Alves Filho (1979). A reparação para tal descalabro, veio depois de muitas discussões e protestos de
Existia uma efemeridade em relação às leis de migração, sobretudo na primeira entidades não governamentais, movimentos sociais e parte da sociedade civil, por inter-
década de Vargas no poder, como observamos em Koifman (2020). De acordo com o médio da Lei nº 9.459 de 13 de maio de 1997,6 que preconiza:
“Art. 1º Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discrimi-
autor em tela: nação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.”
O primeiro ato do governo provisório de Vargas relacionado com a imigra- “Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça,
ção foi a publicação do Decreto nº 19.482, em 12 de dezembro de 1930, que trouxe cor, etnia, religião ou procedência nacional.
a seguinte ementa: “Limitada a entrada, no território nacional” de passageiros es- Pena: reclusão de um a três anos e multa.
trangeiros de terceira classe, dispõe sobre a localização e amparo de trabalhadores § 1º Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos,
nacionais, e dá outras providências”. (KOIFMAN, 2020, p. 161). distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação
do nazismo.
Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.
Isso claramente tinha um viés voltado à aporofobia, explicitado na análise de Koi- § 2º Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios
fman (2020, p. 163), “Os imigrantes pobres eram dessa forma responsabilizados por contri- de comunicação social ou publicação de qualquer natureza:
Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.
buir para o desemprego e apontados como prejudiciais à economia e à segurança social”. § 3º No caso do parágrafo anterior, o juiz poderá determinar, ouvido o Ministério
Público ou a pedido deste, ainda antes do inquérito policial, sob pena de desobediência:
Acerca das questões que envolvem a aporofobia, a filósofa espanhola Adela Cortina, I - O recolhimento imediato ou a busca e apreensão dos exemplares do ma-
em seu livro “Aporofobia, a aversão ao pobre; um desafio para a democracia”, analisa terial respectivo;
II - A cessação das respectivas transmissões radiofônicas ou televisivas.
entre as várias nuances, questões relacionadas à pobreza e o ódio que parte da sociedade [...] § 3º Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor,
elitista nutre em desfavor dessa classe. Segundo Koifman (2020), isso é reforçado antes etnia, religião ou origem: Pena: reclusão de um a três anos e multa.” (BRASIL, 1997,
arts. 1º; 20º).
mesmo da promulgação da Constituição Federal de 1934, quando o governo publicou
dois Decretos que pretendia barrar a entrada de estrangeiros, tidos como indesejáveis. 3 A MIGRAÇÃO NO BRASIL NO SEGUNDO GOVERNO VARGAS (1951 – 1954)
Nesse sentido, soma-se a publicação do Decreto nº 24.215, que aumentou ainda
mais as restrições quanto à entrada de estrangeiro imigrante, isso sem distinguir sexo, De acordo com a pesquisadora Amanda Pereira dos Santos (2017), foi no segundo
vejamos: governo de Getúlio Vargas que houve a fundação do Instituto Nacional de Imigração e
I – Aleijado ou mutilado, salvo se tiver íntegra a capacidade geral de trabalho,
Colonização (INIC). Segundo a autora, após a criação do INIC também houve:
admitida, porém, uma redução desta até vinte por cento, tomando-se por base o
grau médio da tabela de incapacidade para indenização de acidentes no trabalho, 4 Art. 2º do Decreto nº 24.215, de 9 de maio de 1934.
verificada nos moldes dos dispositivos legais sobre o assunto; 5 Ainda segundo Koifman (2020), os Ciganos inauguraram a legislação da época, como grupo
II – Cego ou surdo-mudo; étnico indesejado.
III – Atacado de afecção mental, nevrose ou enfermidade nervosa; 6 Altera os arts. 1º e 20 da Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, que define os crimes resultantes
IV – Portador de enfermidade incurável ou contagiosa grave, como lepra, de preconceito de raça ou de cor, e acrescenta parágrafo ao art. 140 do Decreto-lei nº 2.848, de 7 de
dezembro de 1940.

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[...] a criação da Carteira de Colonização do Banco do Brasil, elaborado pelo 4 UM BREVE OLHAR SOB A POLÍTICA MIGRATÓRIA NO BRASIL DURANTE OS GOVERNOS
Poder Executivo e proposto ao Congresso Nacional em 1952. Após a aprovação do
projeto na Câmara dos Deputados e no Senado, esses órgãos iniciaram suas ativi- MILITARES (1964 – 1985)
dades em 1954 e coordenaram a política de imigração e de colonização do país até
o ano de 1962. (SANTOS, 2017, p. 122).
Durante o regime Civil-Militar no Brasil, a legislação migratória vigente foi pautada
Ainda conforme Santos (2017), ficou sob a responsabilidade do Instituto as ativida- na Lei 6.815/1980, que define a situação jurídica do estrangeiro no Brasil e cria o Conselho
des que eram inerentes à Divisão de Terras e Colonização do Ministério da Agricultura, Nacional de Imigração. De acordo com Oliveira (2022), em relação à política migratória,
assim como ao Conselho de Imigração e Colonização e ao Departamento Nacional de a doutrina de segurança instalou dispositivos autoritários e segregacionistas, prevendo
Imigração do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio. Ainda de acordo com a autora: supostos crimes de estrangeiros, além de mantê-los em locais fixos, com objetivo de fa-
Assim, a partir de janeiro de 1954, o INIC passou a ser o órgão responsável cilitar sua fiscalização. Oliveira continua discorrendo sobre a situação da época:
pelo encaminhamento de trabalhadores nacionais de uma região para outra, pela A repressão política durante o regime atingia a todos os indivíduos, se este
execução do programa nacional de colonização do território brasileiro, bem como fosse considerado subversivo seria perseguido e até poderia ser expulso do territó-
orientou e promoveu a seleção, entrada, distribuição e fixação dos imigrantes (SAN- rio nacional. No caso do imigrante a situação de vulnerabilidade era muito maior,
TOS, 2017, p. 131). não somente carregava sobre si a identificação de não-nacional, como também a
existência de instrumentos normativos autoritários peculiares à sua condição, o que
expunha a fragilidade do imigrante num regime de repressão. (OLIVEIRA, 2022, p. 34).
A autora prossegue sua análise, e depreende que na década de 1950 a perspectiva
do governo Vargas em relação à causa migratória, estava pautada aos interesses assi- Apesar da Doutrina de Segurança Nacional ser um instrumento utilizado na década
milacionistas ao território nacional, partindo de características definidas e/ou profissões de 1940, para tentar combater o avanço dos países do eixo durante a II Guerra Mundial
estabelecidas, como nos casos das entradas de agricultores e artífices com experiência e, supostamente, o avanço do comunismo, sobretudo, a partir da Revolução Cubana de
técnica, a fim de suprir uma carência de mão de obra para qualificação profissional de 1959 e por ditaduras na América Latina, essa Doutrina foi também utilizada no Brasil na
trabalhadores rurais. De acordo com a autora: “Vargas evidenciou a figura do imigrante Ditadura, como aponta Oliveira abaixo:
desejável como um “fator de produção” e um elemento aditivo aos recursos do Brasil” No período da Ditadura militar no Brasil predominou a Doutrina da Segurança
Nacional para manter o capitalismo como sistema econômico no Sul do continente
(SANTOS, 2017, p. 137). americano. Sob a ideologia da Segurança Nacional, o regime adotou posturas rígidas
Outrossim, a autora ainda comenta: como padrão de conduta em relação à oposição política, o “inimigo interno” preci-
sava ser combatido em prol do desenvolvimento nacional. (OLIVEIRA, 2022, p. 36).
No cumprimento de suas funções, o Instituto Nacional de Imigração e Colo-
nização estava habilitado a firmar acordos e contratos com os estados, municípios e
entidades públicas ou privadas. Além disso, poderia instalar agências de colocação Ainda de segundo Oliveira (2022), desde meados de 1949, essa doutrina já havia
com o objetivo de realizar o levantamento e o cadastro da mão de obra disponível nas
áreas rural e urbana. A partir desses dados, Vargas apontava que o INIC seria capaz
sido desenvolvida no Brasil, com a criação da Escola Superior de Guerra (ESG), adotando
de orientar a migração interna e distribuir o trabalhador nacional migrante pelas um rígido discurso quanto à política migratória, sob o argumento de fortalecimento do
diversas regiões do país, de acordo com as necessidades locais, possibilitando, assim,
o assentamento “à terra onde melhor convier a ele e ao país (SANTOS, 2017, p. 138).
discurso à segurança nacional. Em relação à postura dos militares após o golpe de 1964,
Oliveira Comenta:
Após o Golpe Militar de 1964, as Constituições de 1967 e 1969 não dispuse-
Santos (2017), ainda nos esclarece acerca das primeiras ações do INIC, em meados ram sobre os estrangeiros de forma adequada, se limitaram a restringir os direitos,
mesmo na literatura não são encontradas tantas referências a política migratória
do ano de 1955, que se debruçou sobre ações referentes às questões de “atividades de durante o regime. A Constituição de 1967 tratou sobre a competência da União para
recepção, desembarque, desembaraço de bagagem, hospedagem, encaminhamento e legislar a matéria migração, entrada, extradição e expulsão (art. 8º), a competência
do Supremo Tribunal Federal para apreciar pedido de extradição (art. 114) e a com-
colocação de migrantes nacionais e imigrantes”. (SANTOS, 2017, p. 139). petência da Justiça Federal para processar e julgar, em primeiro grau, determina-
das matérias. A Constituição de 1969, que se trata da Emenda Constitucional nº. 1,
Vargas via no seu projeto nacional desenvolvimentista uma lacuna que poderia de 17 de outubro de 1969, que para muitos estudiosos pode ser considerada outra
ser preenchida por imigrantes mais “qualificados”, selecionados pelo INIC, preferencial- Constituição, em virtude da matéria tratada, ampliou a competência do Conselho
de Segurança Nacional para “conceder licença para funcionamento de órgãos ou
mente europeus e que ajudassem na qualificação e formação de mão de obra técnica, e representações de entidades sindicais estrangeiras, bem como autorizar a filiação
das nacionais a essas entidades” (art. 89, VI). (OLIVEIRA, 2022, p. 39).
era veementemente contra os imigrantes que recebiam a alcunha de “indesejáveis”, no
caso em questão, negros, ciganos e outras minorias étnicas.
O autor ainda relembra a participação do Brasil na Convenção da ONU, “relativa
A partir da análise acima, podemos inferir que de certa forma, houve uma tentativa
ao Estatuto dos Refugiados em 1951” (OLIVEIRA, 2022, p. 40). A esse respeito, para fins de
de continuidade de branqueamento da população e aversão à pobreza e à entrada de
detalhamento, reproduzimos abaixo parcialmente o Artigo 1º deste Estatuto:
“imigrantes de cor”, desagradavam às pretensões do presidente Vargas desde os primór- Art. 1º - Definição do termo “refugiado”
dios do seu governo. A. Para os fins da presente Convenção, o termo “refugiado” se aplicará a
qualquer pessoa:
1) Que foi considerada refugiada nos termos dos Ajustes de 12 de maio de 1926
e de 30 de junho de 1928, ou das Convenções de 28 de outubro de 1933 e de 10 de

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fevereiro de 1938 e do Protocolo de 14 de setembro de 1939, ou ainda da Constituição agride a Convenção Americana de Direitos Humanos, o Pacto Internacional de Direitos
da Organização Internacional dos Refugiados; as decisões de inabilitação tomadas
pela Organização Internacional dos Refugiados durante o período do seu manda- Civis e Políticos e a Declaração Universal de Direitos Humanos.
to, não constituem obstáculo a que a qualidade de refugiados seja reconhecida a De acordo com Laís Azeredo Alves:
pessoas que preencham as condições previstas no parágrafo 2 da presente seção; [...] a Lei de Refúgio apresenta-se como vanguardista, já que entre outros
2) Que, em consequências dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de ja- aspectos, o acesso ao pedido de refúgio é permitido a todo e qualquer imigrante
neiro de 1951 e temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, e na condição de solicitante de refúgio, permitindo-lhe acesso à documentação e
grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade e permissão de trabalho (ALVES, 2019, p. 38).
que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse país,
ou que, se não tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha sua resi-
dência habitual em consequência de tais acontecimentos, não pode ou, devido ao A autora prossegue “A limitação do Estatuto do Estrangeiro na permissão de entrada
referido temor, não quer voltar a ele. No caso de uma pessoa que tem mais de uma
nacionalidade, a expressão “do país de sua nacionalidade” se refere a cada um dos e estada abriu espaço para que a amplitude da lei de refúgio fosse utilizada como forma
países dos quais ela é nacional. Uma pessoa que, sem razão válida fundada sobre de regularização migratória” (ALVES, 2019, p. 38). Sendo assim, nota-se que há dificulda-
um temor justificado, não se houver valido da proteção de um dos países de que é
nacional, não será considerada privada da proteção do país de sua nacionalidade des e entraves para observar critérios mais assertivos sobre as demandas de solicitação
(CONVENÇÃO RELATIVA AO ESTATUTO DOS REFUGIADOS, 1951, p. 2). de refúgio no Brasil. Sobre esses dados até meados de 2109, a pesquisadora comenta:
Nesse sentido, segundo dados do ACNUR (2017), o Brasil acolhe cerca de 10.145
pessoas reconhecidas como refugiados (mas apenas 5.134 permanecem com registro
Em termos regionais, quanto à definição de refugiado, a Lei nº 9.474 Art. 1, III, espe- ativo no país) e mantém uma fila de 86.007 pessoas na qualidade de solicitantes de
cifica: “[...] III – devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a refúgio, aguardando uma resposta do governo (ALVES, 2019, p. 39).

deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país”. BRASIL, 1997). Já no
A seguir podemos observar, de acordo com dados obtidos por Alves (2019, p. 40),
tocante à política no período ditatorial, de acordo com a pesquisadora Laís Azeredo Alves:
Foi criada nesse contexto uma normativa com o objetivo de gerenciar e um quadro contendo os maiores grupos de imigrantes no Brasil no ano de 2017, na se-
controlar os fluxos migratórios no Brasil, o chamado “Estatuto do Estrangeiro”. A quência, em termos comparativos, também veremos um outro quadro, que demonstra
prerrogativa do Estatuto era a compreensão do imigrante como uma ameaça ao
país se ele não atuasse como investidor ou como estratégico para o mercado. Assim, a entrada de imigrantes no Brasil de outras nacionalidades em anos anteriores.
uma perspectiva utilitarista e securitária caracterizou essa normativa, tanto que
entre as práticas planejadas estavam novamente a expulsão e a deportação, que Quadro 1 – Maiores grupos de imigrantes no Brasil (2017)
representam, [...]”. (ALVES, 2019, p. 36).

5 OS FLUXOS MIGRATÓRIOS NO PÓS 1985 E A MUDANÇA DE PARADIGMA DA


LEGISLAÇÃO

Os fluxos migratórios no Brasil vêm ao longo dos anos sofrendo alterações de acordo
com diversos fatores, tanto endógenos quanto exógenos. Do ponto de vista endógeno,
houve um aumento da emigração para países da Europa (como Portugal) e EUA, geral-
mente em busca de melhores condições de vida. Já a entrada, sofreu um aumento signi-
ficativo, com o agravamento da crise na Venezuela, principalmente no Estado de Roraima.
Após o final da Ditadura Militar, na chamada Nova República, algumas mudanças
foram feitas na legislação, mas nem sempre os resultados foram o que os migrantes es-
peravam. De certa forma, o Estatuto do Estrangeiro, Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980,
Fonte: Migration Policy, 2018, com base em dados adquiridos no UM DESA, apud Alves,
se evidencia como um documento extremamente nacionalista, além de conservador, que 2019, p. 40.
prioriza de maneira excessiva a segurança e restringe de forma deliberada a liberdade
dos imigrantes em território nacional. Destarte, esses indivíduos são concebidos como Como observado acima, o quadro 2, abaixo na sequência, nos dá uma noção acerca
pessoas de menor importância em relação aos cidadãos do país. do fluxo migratório entre os anos de 1880-1969.
Contudo, o problema do Estatuto do Estrangeiro é que ele desrespeita os direitos
humanos e traz restrições ao direito de se formar associações, fazer reuniões, manifes-
tações, sindicalização e greve. É mister lembrar que os direitos humanos citados aqui
não estão presentes apenas na Constituição, mas podem também ser encontrados em
tratados internacionais que o Brasil compõe. Grosso modo, o Estatuto do Estrangeiro

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António Raúl Sitoe & Eduardo Gomes da Silva Filho (Org). Fluxos Contemporâneos: Migrações Transnacionais e Direitos Humanos

Quadro 2 - Chegadas de Imigrantes no Brasil por Nacionalidade, 1880-1969 fluxo migratório, contudo, esse texto não tem a pretensão de analisar tais causas, apenas
direcionar o leitor para reflexões pertinentes ao aumento deste fluxo no espaço transfron-
teiriço Venezuela Brasil, tendo como exemplo principal, a fronteira entre esses dois países,
localizada entre as cidades de Santa Elena de Uairén (Venezuela) e Pacaraima (Brasil).
Assim como abordar de forma suscinta, o processo de acolhimento e interiorização,
sobretudo, a partir das ações desenvolvidas pela Operação Acolhida em conjunto com
Organismos Internacionais e Governamentais.
Para iniciarmos, faremos um breve comentário, acerca da Operação Acolhida, que
foi instituída a partir dos Decretos nº 9285 e 9286, de 15 de fevereiro de 2018. Apesar de
terem teores distintos, eles convergem para a causa da ajuda humanitária no país, em
consonância com a ACNUR e outras agências que veremos a seguir.
O Decreto 9285, reconheceu a situação de extrema vulnerabilidade desses imi-
grantes no Estado de Roraima, já o Decreto 9286, criou o Comitê Federal de Assistência
Emergencial. O plano prático de apoio em si, entrou em vigor através da medida provisório
Fonte: Levy, 1974.
820, que criou medidas específicas para o acolhimento de venezuelanos em Roraima,
Na tabela abaixo, veremos dados do ano de 2020, com base em informações do como a criação de abrigos, com o apoio do Exército, ACNUR, ONGs, entidades religiosas,
Observatório das Migrações Internacionais. como a ADRA e Cáritas, segundo Silva (2018).
Segundo a Geógrafa Isabel Pérez Alves (2018), no ano de 2018, a média de entrada
Tabela 1 – Número de solicitantes de reconhecimento da condição de refugiado, segun- de imigrantes venezuelanos no posto de atendimento na cidade de Pacaraima, foi de 416
do principais países de nacionalidade ou residência habitual, Brasil – 2020.
pessoas. Com o aumento do fluxo, parte da sociedade civil também presta apoio, como
no caso de instituições ligadas à Igreja Católica, entre elas, o Serviço Jesuíta a Migrantes
e Refugiados – SJMR. A seguir, a partir de dados coletados e analisados pela autora, exibi-
mos um gráfico que mostra a migração para o Brasil, a partir de estados mais próximos
venezuelanos:

Gráfico 1 – Proporção de Proveniência dos atendidos pelo SJMR por estado

Fonte: SILVA, G. J; CAVALCANTI, L; OLIVEIRA, T; COSTA, L. F. L; MACEDO, M. Refúgio em


Números, 6ª Edição. Observatório das Migrações Internacionais; Ministério da Justiça e Segu-
rança Pública/ Comitê Nacional para os Refugiados. Brasília, DF: OBMigra, 2021. Refúgio em
Números, p. 9.

A seguir, veremos um pouco da questão migratória venezuelana para o Brasil, a


partir de aspectos da crise migratória mais recente.

6 A MIGRAÇÃO VENEZUELANA PARA O BRASIL: E O AUMENTO DO FLUXO MIGRATÓRIO


Fonte: Alves (2018, p. 155).
NO ESTADO DE RORAIMA, TRIAGEM, ACOLHIDA E INTERIORIZAÇÃO

A Venezuela vem passando por sérios problemas nos últimos anos, tanto de ordem Abaixo, podemos observar uma tabela com dados de 2018, que consta o número
política, social e, consequentemente, econômica. Isso tem uma interferência direta no de abrigados em Boa Vista e Pacaraima.

18 19
António Raúl Sitoe & Eduardo Gomes da Silva Filho (Org). Fluxos Contemporâneos: Migrações Transnacionais e Direitos Humanos

Tabela 2 – Abrigados em Boa Vista e Pacaraima de Coordenação de Interiorização (CCI) e orientação para inclusão nos registros para
realocação.
Já no CCI, há a articulação junto com a equipe de planejamento logístico da Es-
tratégia de Interiorização, realização de coordenação e previsão de voos mensais com
base no quantitativo de vagas que cada modalidade atenderá, planejamentos de datas
de FFTs, coordenação logística para transporte aéreo e terrestre (todas as modalidades).
Após essa fase, ocorre o encaminhamento para os abrigos e espaços emergenciais,
onde há sessões de informação sobre Interiorização, identificação de interesse na Inte-
riorização e registro (todas as modalidades); encaminhamentos para o abrigo Rondon 2
(modalidade institucional); oferta do Programa Empoderando Refugiadas e outros pro-
gramas de capacitação e acesso ao trabalho (modalidades VES)7; mapeamento de perfis
com interesse na modalidade institucional para posterior realocação.
No abrigo Rondon 2 (Abrigo de Interiorização), acontece a orientação e análise
de proteção a beneficiários oriundos do BV 8 (todas as modalidades); identificação dos
perfis a serem abrigados nos centros de acolhida e integração nas cidades de destino,
preparação de listas para interiorização, sessões de orientação, análise de proteção, coleta
Fonte: Silva (2018, p. 210).
de dados para Fitness for Travel (FFT) (modalidade institucional).
No FFT de Boa Vista, há o Registro no Sistema de Gestão de Casos do ACNUR (pro-
Segundo o autor, “os abrigos Rondon 2 e BV 8, têm uso diferenciado. O Rondon 2 GresV4), coleta de dados, análise de proteção, encaminhamentos e provisão complemen-
é usado para transição, com venezuelanos prontos para interiorização. O BV 8 tem uso tar de informação (todas as modalidades). Antes das viagens, ocorrem os procedimentos
misto (acolhimento e transição)” (SILVA, 2018, p. 210). de pré-embarque e orientações (modalidade institucional). No Alojamento de Trânsito
De acordo com dados da ACNUR (2021), após a chegada em Pacaraima, os imi- de Manaus- ATM, muitos imigrantes e refugiados são atendidos, com procedimentos de
grantes e refugiados passam por um rito sistematizado. Primeiro eles passam pelo Posto acolhimento, informação sobre destino, análise de proteção, monitoramento de saúde,
de Interiorização e Triagem- PITRIG, para a identificação de interesse na interiorização, atividades educativas para crianças e encaminhamento para serviços essenciais (moda-
registro e encaminhamento para alojamento de trânsito BV 8 (todas as modalidades). lidades VES, reunificação familiar e reunião social).
Na sequência, eles passam pelo Alojamento de Trânsito BV 8, nele, há o encami- Já nas casas de passagem, eles recebem acolhimento durante o trânsito de famílias
nhamento para o abrigo de Interiorização Rondon 2 e os procedimentos de pré-embar- que aguardam emissão de passagem para o destino e/ou que têm como destino cidades
que (todas as modalidades). Ato contínuo, eles passam pelo Centro de Capacitação e do interior (todas as modalidades). Como destino, eles são recebidos nos Centros de Aco-
Referência, onde há o Registro no Sistema Acolhedor e oferta de capacitação profissional lhida e Integração, onde passam por acolhimento por até 3 meses e depois encaminhados
para acelerar a integração. para os serviços públicos (educação, saúde, assistência), análise de proteção, análise de
Outro passo importante é serviço prestado pela Comunidade Batista, onde ocorre capacidades e experiência profissional, apoio na preparação de currículos, identificação
a identificação de perfis a serem recebidos nos centros de acolhida e integração nas de oportunidades de trabalho, intermediação com empregadores, contato com comu-
cidades de destino, preparação de listas de pessoas beneficiárias a serem interiorizadas, nidades locais de apoio.
registro no sistema acolhedor e no Sistema de Gestão de Casos do ACNUR (proGres v4) Esse apoio social é feito por meio de acolhimento temporário enquanto se com-
e encaminhamento para o Abrigo Rondon 2. Outro procedimento padrão, é a passagem pleta o período inicial de adaptação ao novo trabalho e cidade (modalidade VES). Tam-
pelo Fitness for Travel (FFT), que consiste no Registro no Sistema de Gestão de Casos do bém podem contar com serviços de referência, tais como: assistência jurídica, apoio à
ACNUR (proGres v4), coleta de dados, análise de proteção, encaminhamentos e provisão documentação, encaminhamento aos serviços públicos (saúde, educação, assistência,
complementar de informação (todas as modalidades). abrigamento público), concessão de auxílio financeiro (CBI) para perfis mais vulneráveis,
Ao chegar em Boa Vista, também há uma ´serie de procedimentos, entre eles, atendimento em saúde mental, oferta e/ou encaminhamento a cursos de português, ca-
podemos destacar ações relacionadas à triagem e acolhimento temporário. No PITRIG pacitação profissional, intercultural e educação financeira, apoio à busca e intermediação
de Boa Vista, há a identificação de perfis a serem recebidos nos centros de acolhida e a vagas de trabalho, apoio ao empreendedorismo (todas as modalidades).
integração nas cidades de destino, preparação das listas de pessoas interessadas na Também são feitos serviços e apoios complementares, com base em apoios
Interiorização, referenciamento para cadastro no sistema Acolhedor nos abrigos ou Centro
7 Vaga de Emprego Sinalizada.

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António Raúl Sitoe & Eduardo Gomes da Silva Filho (Org). Fluxos Contemporâneos: Migrações Transnacionais e Direitos Humanos

especializados nas áreas de educação, revalidação de diplomas, cursos de idiomas, serviços


complementares de saúde e apoio à geração de emprego e renda.
De acordo com Cortina (2005), o conceito pleno de cidadania integra o status le-
gal, baseado em um conjunto de direitos, um status moral, pautado em um conjunto
de responsabilidades, além de uma identidade, que é quando uma pessoa sabe e sente
que pertence a uma sociedade.
De acordo com dados do Observatório das Migrações Internacionais (2021), “ao
final do ano de 2020 existiam 57.099 pessoas refugiadas reconhecidas pelo Brasil”. (OB-
Migra, 2021, p. 1). Ainda de acordo com OBMigra (2021), o refúgio no Brasil entre os anos
de 2011 e 2020, bateu a casa de 265.729 mil imigrantes solicitantes. Nesse período houve
o reconhecimento de 94,3% do total de pessoas refugiadas no Brasil. A nacionalidade
com maior número de pessoas refugiadas reconhecidas, entre 2011 e 2020, sem dúvida
é a venezuelana com cerca de (46.412), seguida dos sírios com (3.594) e dos congoleses
com (1.050).
Ainda de acordo com dados da OBMigra (2021):
Os nacionais da Venezuela foram responsáveis pelo aumento significativo
de solicitações da condição de refugiados no Brasil, consequência da decisão do
Conare8 de 14 de junho de 2019 de reconhecer a situação de “grave e generalizada
violação de direitos humanos” na Venezuela.
Esta fundamentação foi aplicada a 93,7% do total de processos deferidos
pelo Conare no período 2011 a 2020. Os refugiados venezuelanos correspondiam a
92,8% das pessoas reconhecidas como refugiadas com base nesta fundamentação.
(OBMigra, 2021, p. 1).

Segundo a ACNUR (2022): Fonte: Boletim ACNUR, junho de 2022.


Além da modalidade institucional, a interiorização também pode ser feita por
reunificação familiar, reunião social e vaga de emprego sinalizada. A reunião social
é a que representa a maior parte dos deslocamentos (46%), e consiste na união de CONSIDERAÇÕES FINAIS
beneficiários a pessoas com quem possuam vínculo de amizade ou afetividade, ou
a familiares cujo vínculo não possa ser comprovado por meio de documentação.
(ACNUR, 2022, s/p). Analisou-se no texto um breve panorama acerca de questões sensíveis dos fluxos
migratórios para o Brasil, com ênfase nos migrantes venezuelanos. Também se versou
Imagem 1 – Operação brasileira ACNUR e parceiros
sobre parte da legislação migratória no Brasil, com ênfase no caso dos refugiados, tendo
como suporte jurídico o Estatuto do Estrangeiro e a Lei de Migração.
Tivemos como ponto de partida o marco temporal da chamada Era Vargas (1930 –
1945), que se preocupou muito mais com a eugenia, do que propriamente uma solução
para as questões que envolviam os estrangeiros. No seu segundo governo, entre os anos
de 1951 e 1954, ele criou o Instituto Nacional de Imigração e Colonização (INIC), mas seu
objetivo principal foi muito mais tentar a criação de uma carteira nacional de ensino
técnico aos agricultores, além de tentar barrar a entrada dos chamados “indesejáveis”,
termo utilizado às minorias étnicas.
Durante o Governo Civil-Militar foi criado o Conselho Nacional de Imigração, com
ênfase na política da Doutrina de Segurança Nacional, pautada em um viés segregacio-
nista e autoritário. Mesmo com a participação do Brasil na Convenção da ONU, “relativa
ao Estatuto dos Refugiados em 1951, pouca coisa mudou.
8 Criado pela Lei nº 9.474/1997 com o objetivo de reconhecer e tomar decisões sobre a condição Após o fim da Ditadura (período de redemocratização), no que se convencionou
de refugiado no Brasil, além de promover a integração local dessa população, o Comitê Nacional para os chamar de “Nova República”, algumas modificações jurídicas acabaram influenciando
Refugiados (CONARE) é um órgão multiministerial do qual participam o governo, a sociedade civil e a
ONU, por meio do ACNUR. em uma mudança de paradigma na legislação migratória, como no caso do “Estatuto

22 23
António Raúl Sitoe & Eduardo Gomes da Silva Filho (Org). Fluxos Contemporâneos: Migrações Transnacionais e Direitos Humanos

do Estrangeiro” de 1980, que ainda estava ligado ao nacionalismo exacerbado, fato que 1989, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, e acrescenta
desencadeou uma série de críticas de diversos setores da sociedade, que culminou mais parágrafo ao art. 140 do Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. 1997. Disponí-
vel em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9459.htm. Acesso em: 22 ago. 2022.
adiante em uma nova reformulação com a instituição da Lei de Migração no ano de 2017.
Nesse sentido, ocorreram avanços significativos para os imigrantes, que não podem CONVENÇÃO RELATIVA AO ESTATUTO DOS REFUGIADOS, 1951. Disponível em: file:///E:/
mais ser presos por estarem de modo irregular no país. Além de Permitir aos mesmos que Arquivos/Desktop/Convencao_relativa_ao_Estatuto_dos_Refugiados.pdf. Acesso em: 22
se manifestem politicamente, além de associar-se a reuniões políticas e sindicais. Oposto de ago. de 2022.
ao Estatuto do Estrangeiro, essa lei também trata dos brasileiros que vivem no exterior.
CORTINA, Adela. Aporofobia, a aversão ao pobre: um desafio para a democracia. Ade-
No último ato deste breve opúsculo, fez-se uma análise do fluxo de migrantes ve- la Cortina; tradução de Daniel Fabre – São Paulo: Editora Contracorrente, 2020.
nezuelanos para o Brasil, com destaque para as ações de acolhimento e interiorização,
fruto da parceria do Exército brasileiro, Organismos Internacionais (ONU/ACNUR), além CORTINA, Adela. Ciudadanos del mundo – hacia uma teoria de la ciudadania. Madrid:
Alianza, 2005.
de entidades religiosas e demais colaboradores, mostrando a importância destas ações
para o devido exercício da cidadania e acima de tudo, o respeito aos direitos humanos. DECRETO Nº 24.215, de 9 de maio de 1934. Dispõe sobre a entrada de estrangei-
ros em território nacional. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/de-
REFERÊNCIAS cret/1930-1939/decreto-24215-9-maio-1934-557900-publicacaooriginal-78647-pe.html.
ACNUR. Boletim Informativo: junho/2022. Disponível em: https://www.acnur.org/portu- Acesso em: 22 ago. 2022.
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BRASIL. Presidência da República, Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº
9.459, de 13 de maio de 1997. Altera os arts. 1º e 20 da Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de

24 25
António Raúl Sitoe & Eduardo Gomes da Silva Filho (Org). Fluxos Contemporâneos: Migrações Transnacionais e Direitos Humanos

2 A exploração sexual de imigrantes e de


refugiadas no Brasil: Direitos Humanos,
liberdade sexual e o direito ao próprio
corpo
Emerson Dias da Silva9
Raimundo Nonato Freitas dos Santos10

1 INTRODUÇÃO

E
mbora os termos ‘imigrante’ e ‘refugiado’ sejam por muitas vezes trabalha-
dos como sinônimos, eles não se confundem: a Lei nº. 13.445/17 considera
imigrante qualquer pessoa nacional de outro país ou apátrida que trabalha
ou reside e que se estabelece de modo temporário ou definitivo no Brasil11, ao passo em
que a Lei nº 9.474 de 1997 aponta para o reconhecimento como refugiado de todo o in-
divíduo que tenha se acolhido na proteção brasileira devido a perseguição por motivos
de raça, religião, nacionalidade ou de demais questões políticas, que não possa ou não
deseje regressar ao seu país quando em território brasileiro devido a tais circunstâncias,
ou ainda que diante de grave e generalizada violação de direitos humanos, seja forçado
a deixar seu país de nacionalidade em busca de refúgio no Brasil12.
Em países em desenvolvimento, como ocorre no Brasil, os fluxos de migração e
de busca por refúgio trazem uma série de problemas, sobretudo a exploração desses
indivíduos para o trabalho ou para a exploração sexual (SERPA; FELIPE, 2019), sendo uma
questão que está diretamente relacionada ao nível de vulnerabilidade dos indivíduos
(BERTOLDO, 2021). No país, se fala em um fluxo imigratório contemporâneo pós-2010, o
qual é caracterizado pela chegada de pessoas oriundas de países como Haiti, Venezuela,
Senegal, Cuba, dentre outros (VAZAROTTO; SINDELAR; DANIELI, 2019), estabelecendo a
possibilidade de discutir o fenômeno sob diferentes perspectivas dentro da temática dos
Direitos Humanos.
O presente artigo científico busca analisar especificamente a exploração sexual
de refugiadas e imigrantes que chegam ao Brasil em busca de melhores condições de
vida, correlacionado tal temática com dinâmicas dos Direitos Humanos como a liberda-
de sexual e o direito ao uso do próprio corpo. Para tanto, foram definidos os seguintes
objetivos específicos:
 Traçar um paralelo sobre a imigração para o Brasil na contemporaneidade,
destacando os principais países que têm seus cidadãos recebidos em seu
território, de modo regular ou irregular, bem como as causas do fenômeno;
9 Professor da Secretaria de Estado de Educação do Amazonas-SEDUC-AM. Mestre em Geografia
pela Universidade Federal do Amazonas-UFAM. E-mail: emersongeo1980@hotmail.com.
10 Professor da Secretaria de Estado de Educação do Amazonas-SEDUC-AM. Mestre em Geografia
pela Universidade Federal do Amazonas-UFAM. E-mail: raimundo.santos.1983@seducam.pro.br.
11 Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13445.htm Acesso: jul.
2022.
12 Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9474.htm Acesso: jul. 2022.

26 27
António Raúl Sitoe & Eduardo Gomes da Silva Filho (Org). Fluxos Contemporâneos: Migrações Transnacionais e Direitos Humanos

 Apresentar conceitos de exploração sexual e correlacionar essa prática abu- brasileiras e pela maior facilidade de imigração no país quando comparado com outros
siva com a vulnerabilidade de imigrantes e refugiados de um modo geral, destinos de migração, como os Estados Unidos e o Canadá. A autora faz uso do exemplo
trazendo exemplos que ilustram o caso; da chegada de médicos cubanos ao Brasil para ilustrar as incoerências e dificuldades
 Analisar a questão da exploração sexual na ótica de refugiadas/imigrantes percebidas pelos imigrantes ao chegarem em terras tupiniquins:
Uma parte numericamente restrita desses imigrantes consegue empregos
oriundas de outras países em âmbito nacional, apontando para relatos, causas, bastante privilegiados em relação a salários, bônus e garantias contratuais. Esses
consequências e repercussões em matéria de violações de direitos humanos. imigrantes, embora tenham um perfil qualifica-especializado e entrem pelo circuito
legalizado do trabalho imigrante, também sofrem com as contradições do nosso
mercado de trabalho e do funcionamento da sociedade brasileira. O racismo, a
Para tanto, foi realizada uma pesquisa de cunho bibliográfico, a qual conta com a xenofobia e as agressões contra os médicos cubanos são emblemáticas para en-
tendermos essa questão (VILLEN, 2018, p. 45).
análise de dados e informações extraídos de outras obras, como livros publicados, artigos
científicos, dissertações, teses, periódicos, dentre outros. Em um primeiro momento, foram
De acordo com Vazarotto, Sindelar e Danieli (2019), no Brasil contemporâneo so-
coletados 29 materiais de pesquisa, dentre os quais 9 foram descartados por não contri-
bretudo pós-2010 houve a constatação de uma diversificação de grupos migratórios,
buírem para o alcance dos objetivos, gerando um total de 20 publicações efetivamente
incluindo cidadãos paraguaios, chineses, senegaleses, colombianos, cubanos e haitianos,
utilizadas na publicação do artigo. O problema de pesquisa, ou seja, a questão norteadora
de uma forma não observada anteriormente na história nacional. As autoras destacam
que se busca responder com o desenvolvimento do estudo, consiste na seguinte indaga-
que a “década de 2010 a 2019, no Brasil, foi marcada por uma intensificação desses fluxos,
ção: qual a correlação entre a exploração sexual de imigrantes / refugiadas no Brasil e as
sendo que mais de um milhão de imigrantes ingressaram no país considerando todos
temáticas de Direitos Humanos no tocante à liberdade sexual e ao uso do próprio corpo?
os amparos legais” (VAZAROTTO; SINDELAR; DANIELI, 2019, p. 2), sendo um movimento
A justificativa para a realização do estudo parte justamente do fato relatado por
intensificado pela crise econômico-financeira de 2008, a qual provocou alterações nos
autores como Vazarotto, Sindelar e Danieli (2019), que tratam de um fluxo migratório
eixos de deslocamentos em todo o mundo, transformando o Brasil em um destino possí-
contemporâneo no Brasil a partir da década de 2010, estabelecendo a necessidade de
vel para migrantes destas e de outras regiões em busca de melhores condições de vida.
pesquisar diferentes fenômenos sobre tal processo no contexto brasileiro de hoje. Des-
Para exemplificar a complexidade da imigração no Brasil contemporâneo, cumpre-
taca-se que se trata de um tema que vem sendo pesquisado com mais afinco ao longo
-se mencionar o estudo de Magalhães, Bógus e Baeninger (2018), o qual fora dedicado
dos últimos anos, embora em volume ainda abaixo do desejado para tamanha relevân-
exclusivamente para a análise dos migrantes haitianos e bolivianos na cidade de São
cia da questão. Deste modo, espera-se igualmente que a elaboração do presente artigo
Paulo pós-2010: esses cidadãos, assolados por acontecimentos como o terremoto do Haiti
científico possa contribuir para motivar estudos e pesquisas futuros sobre a temática da
(2010) e as graves crises sociais e econômicas da Bolívia acabam encontrando no Brasil
exploração sexual de imigrantes e refugiadas que chegam ao Brasil.
uma oportunidade para terem acesso ao trabalho de modo mais significativo do que
em seus países de origem. Isso não significa de modo algum que se trate de uma estra-
2 DAS IMIGRAÇÕES PARA O BRASIL NA CONTEMPORANEIDADE: BREVES ANOTAÇÕES
tégia sempre exitosa, a exemplo da pesquisa de Rios (2018), na qual o autor constatou a
existência de trabalho em condições análogas à escravidão por trabalhadores bolivianos
Destarte, cumpre-se destacar que a própria história do Brasil envolve a chegada de
explorados nas indústrias têxteis e de confecções da capital paulista.
sujeitos oriundos de outros países e continentes em seu território: nesse ponto podem ser
Segundo Bertoldo (2021) não é possível falar em imigração no Brasil contemporâneo
citados fatos como a chegada dos colonos portugueses ao Brasil no início da formação
sem tratar de outras questões, como racismo estrutural, preconceito social e xenofobia
nacional e o tráfico de escravos africanos (SILVA; SILVA, 2014), assim como a chegada de
contra os migrantes oriundos de outros países, em especial daqueles menos ‘ocidenta-
imigrantes alemães, italianos e espanhóis, dentre outros, para terras brasileiras ao longo
lizados’, como ocorre nos casos de cidadãos provenientes de países africanos e mesmo
da história (BATSCHAUER, 2004). Contudo, para os fins pretendidos no presente estudo,
de países mais pobres da América Latina:
não será dada grande importância para a história dos movimentos imigratórios para o Falar da imigração contemporânea para o Brasil significa falar da incômoda
Brasil ao longo da história, mas sim para a ocorrência de imigrações no contexto con- presença de determinados grupos sociais diante da ordem hegemônica (racista e
xenófoba) e que se expressa pela intolerância a determinadas culturas, povos e nacio-
temporâneo. nalidades. Principalmente diante do contexto político e econômico da última década,
o país passou a ser considerado como um destino favorável dentre a população de
Villen (2018) destaca que o quadro de imigração no Brasil de hoje está muito as- alguns países, atraindo muitos imigrantes de países africanos(as), principalmente
senegaleses(as) e ganeses(as) normalmente em busca de oportunidades de tra-
sociado ao contexto da disponibilidade de trabalho (mesmo com o país enfrentando balho, e outros fluxos intensos como de haitianos(as) e bolivianos(as) e venezuela-
nos(as), dentro das dinâmicas e realidades próprias dessa imigração. Nesse contexto
sucessivas crises na geração de emprego e renda), guerras e tragédias em outros países, é possível perceber tratamentos completamente distintos dependendo de quem
liberdades e direitos civis, dentre outros, sendo que, mesmo o Brasil sendo um destino é o imigrante e de onde ele vem. A imigração do Norte Global, apesar de bastante
representativa em termos numéricos, sequer é assunto de discussão no espaço pú-
menos procurado por migrantes de outras regiões do mundo (como do Norte Global, da blico, na política ou pela mídia. Essa é uma imigração totalmente legitimada e, por
isso, vista como um movimento natural, que não gera qualquer questionamento ou
Ásia e do Oriente Médio) a entrada dessas pessoas é facilitada pela dinâmica das fronteiras dúvida por parte da sociedade ou no campo da política. Por outro lado, a chegada

28 29
António Raúl Sitoe & Eduardo Gomes da Silva Filho (Org). Fluxos Contemporâneos: Migrações Transnacionais e Direitos Humanos

de imigrantes de países africanos e latinos tornou latente a discussão sobre o tema traficadas de regiões pobres para as regiões mais ricas da Europa e forçadas à prostituição”,
nas agendas políticas, na mídia e nas universidades, levantando controvérsias sobre
a desejabilidade desses fluxos, controle e regulação da imigração e questões sobre sendo que das mais de 12.000 vítimas de tráfico humano relatadas entre 2012 e 2014, 67%
criminalidade e segurança pública (BERTOLDO, 2021, p. 6).
eram exploradas para fins sexuais e 30% para trabalho forçado, sendo necessário destacar
que mulheres e meninas são mais exploradas sexualmente, com apenas 4% das vítimas
É possível constatar, deste modo, que a imigração contemporânea no Brasil está
identificadas sendo do sexos masculino. A autora destaca ainda que o leste europeu, o
diretamente relacionada com a chegada de homens e mulheres fragilizados ao país, os
norte da África e a Ásia costumam ser as principais procedências para a exploração e
quais atravessam abusos e preconceitos, além de práticas abomináveis como a submissão
para o tráfico sexual no território europeu.
ao trabalho em condições análogas à escravidão. Em posse dessas informações, torna-se
O principal entendimento a ser produzido para os fins do presente estudo nesse
possível iniciar a discussão sobre a exploração sexual de imigrantes no país.
contexto consiste em traçar um paralelo entre os processos imigratórios e a exploração
3 EXPLORAÇÃO SEXUAL: CONCEITOS E UM RETRATO GERAL DA EXPLORAÇÃO DE sexual. Nesse ponto, destaca-se o estudo de Pereira e Silva (2019), no qual o autor reforça
IMIGRANTES NO BRASIL E NO MUNDO que brasileiras que migram para países mais desenvolvidos acabam sendo submetidas
à exploração sexual, inclusive em países que são ‘destinos dos sonhos’, como os Estados
Para que seja possível discutir a questão da exploração sexual no Brasil especifi- Unidos. Deste modo, assim como imigrantes brasileiras (sobretudo no contexto da imi-
camente no contexto da chegada de imigrantes no território nacional, é fundamental gração ilegal) acabam sendo vulnerabilizadas em outros países, se tornando mais sus-
compreender a problemática da exploração sexual no país de um modo geral. De acordo cetíveis à exploração sexual, o mesmo ocorre com as imigrantes de outros países menos
com Serpa e Felipe (2019, p. 9) “a exploração sexual se caracteriza por uma prática sexual desenvolvidos em território nacional. Doravante, será abordado especificamente o tema
obrigada por alguém, a outro, a exercê-la ou de impedi-la de abandoná-la caso deseje, da exploração sexual desses(as) imigrantes no contexto brasileiro.
sendo, portanto, uma prostituição forçada”, atingindo sobretudo pessoas em maior con-
dição de vulnerabilidade, como mulheres, crianças e adolescentes. 4 A EXPLORAÇÃO SEXUAL DE IMIGRANTES NO TERRITÓRIO BRASILEIRO
Vega e Paludo (2015) apontam que conceituar a exploração sexual não é tarefa
fácil, uma vez que existem diferentes formas de explorar os corpos das vítimas, como a A temática da exploração sexual de imigrantes no contexto contemporâneo é re-
exploração para a pornografia, o turismo sexual, o tráfico para fins sexuais, a prostituição lativamente recente, sobretudo ao considerar as mudanças no fluxo migratório para o
na infância e na adolescência e a cafetinagem, dentre outras. Contudo, as autoras defen- Brasil a partir da década passada. Contudo, um volume cada vez maior de estudos vem
dem que todas as definições de exploração sexual detêm um ponto de encontro comum: sendo produzido com o intuito de aprofundar o fenômeno, conhecendo suas causas e
a violação dos corpos humanos como prática que envolve dinheiro, presentes, favores, consequências, bem como formas de evita-lo e combate-lo. Mahon (2021) realizou um
abusos e ameaças, sempre representando um domínio de poder em função da vítima. estudo sobre a exploração sexual na fronteira entre o Brasil e a Venezuela (em Roraima)
Dessa forma, para os fins pretendidos para o presente estudo, considera-se como , reforçando que os imigrantes venezuelanos que chegam ao Brasil o fazem sobretudo
exploração sexual uma categoria ampla, a qual se relaciona à exploração sexual (prosti- de forma irregular, e que, quando conseguem entrar e permanecer no país legalmente,
tuição) pela qual determinado indivíduo obtém lucros. Kluk et al. (2022, p. 2), por exemplo, ainda não são tidos por parte significativa da sociedade como ‘cidadãos plenos’, o que
a consideram como “a ação na qual o perpetrador da violência, em uma relação de auto- contribui para as formas de exploração sexual. Todo esse contexto contribui, inclusive, para
ridade, utiliza meios como a força física, coibição ou intimidação psicológica para forçar o tráfico humano de mulheres e meninas na fronteira para que elas sejam exploradas
outra pessoa a se submeter ou praticar ato sexual”, sendo que em seu estudo os autores sexualmente no território brasileiro:
tratam de questões como a exploração sexual de mulheres, crianças e adolescentes com Podemos afirmar que a fragilidade de fiscalização na fronteira oportuniza
essa prática ilícita, tanto no Brasil quanto na Venezuela, haja vista que as polícias
vício em drogas e outras substâncias ‘facilitadoras’ de violência e abusos sexuais. federal e rodoviária federal estão mais preocupadas em coibirem o tráfico de drogas,
Demenech et al. (2021), por sua vez, concentraram seus estudos na exploração passando despercebido o tráfico de mulheres na fronteira, como se menos impor-
tância merecesse. Essa intensa mobilidade migratória, aliada à falta de condições
sexual de crianças e adolescentes que se encontram em situação de rua na região Sul estruturais do Estado de Roraima para abrigar tais pessoas, além da ausência de
do Brasil, ressaltando novamente a relação entre a exploração sexual e a vulnerabilidade fiscalização na fronteira por parte das autoridades policiais, tem contribuído para o
aumento do tráfico humano para fins de exploração sexual no local, não havendo
dos sujeitos. Deste modo, quando tratamos de imigrantes chegados ao Brasil, com am- políticas públicas efetivas para prevenção e combate da criminalidade (MAHON,
plo nível de vulnerabilidade como no caso dos imigrantes oriundos de outros países da 2021, p. 261).
América Latina, do Oriente Médio e da África.
Não se trata, evidentemente, de uma realidade vivida única e exclusivamente no Nigre (2021, p. 40) buscou analisar a exploração sexual das venezuelanas que mi-
Brasil: a autora portuguesa Rabello (2018, p. 58) traçou uma análise sobre as vítimas gram para o Brasil em sua pesquisa, destacando que “Há relatos de tráfico para explo-
de exploração sexual na Europa, reforçando que “Dezenas de milhares de vítimas são ração sexual cometidos tanto por brasileiros quanto venezuelanos, que na maior parte

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António Raúl Sitoe & Eduardo Gomes da Silva Filho (Org). Fluxos Contemporâneos: Migrações Transnacionais e Direitos Humanos

são companheiros das vítimas”, com mulheres que chegam ao Brasil e permanecem em é até curioso pensar em pessoas que vislumbram no país uma ‘melhor condição de vida’,
abrigos e acabam sendo dominadas e exploradas por homens com o intuito de obter lucro. fugindo de abusos, perseguições e das condições de suas terras natais como um todo.
Em seu estudo, são contadas as histórias de diversas venezuelanas que vieram ao Brasil, Todavia, é a questão da vulnerabilidade que ‘oportuniza’ os casos de exploração sexual em
a exemplo da trajetória de Madá, moça de 18 anos que aceitou uma oferta de emprego âmbito nacional, sobretudo considerando mulheres, crianças e adolescentes imigrantes
de R$ 4.000,00 (quatro mil reais) para exercer o ofício de cozinheira, mas, ao invés de ser ou refugiadas.
conduzida ao local combinado, foi levada a um bordel e informada que devia a quantia de De acordo com Messias da Silva e Teixeira (2021, p. 131) grupos de imigrantes no
R$ 8.000,00 (oito mil reais), por despesas com passagens, comida e hospedagem, sendo Brasil “contém pessoas em situação de extrema vulnerabilidade, que estão mais sujeitas
forçada a trabalhar com práticas sexuais até quitar sua dívida. à exploração de seu trabalho, sendo mais visadas ao tráfico de pessoas, forma de explora-
Outro caso relatado no estudo supramencionado é o de Stephany, mulher trans ção que representa mercantilização do próprio ser humano”. Nesse âmbito, “as mulheres
venezuelana, a qual vendia seu corpo na cidade de Caracas e foi seduzida por oferta de são mais comumente aliciadas para exploração na esfera privada (trabalho doméstico,
trabalho em Boa Vista/RO, mas que, ao chegar na casa onde iria trabalhar, reteve seus do- exploração sexual e casamento forçado)” (MESSIAS DA SILVA; TEIXEIRA, 2021, p. 136), ao
cumentos de identidade e protocolos de refúgio confiscados, impedindo que ela pudesse passo em que homens costumam ser explorados com direcionamento para o trabalho
ir embora, com todo o dinheiro obtido por ela e por outras venezuelanas sendo dado ao escravo, embora não seja incomum que as mulheres e crianças sofram abusos correlatos,
homem. Percebe-se, desta forma, que a questão da exploração sexual ocorre muitas ve- como ao serem exploradas sexualmente ao mesmo tempo em que estão submetidas ao
zes com a promessa de emprego e de melhores condições de vida no Brasil. No entanto, trabalho escravo em confecções e na indústria têxtil e do vestuário (RIOS, 2019).
quando as vítimas chegam ao território nacional, acabam sendo persuadidas e forçadas Ao analisarem a questão da efetividade dos direitos humanos e sociais das mulheres
a engajarem em atividades sexuais, em clara privação aos seus direitos como um todo. refugiadas no Brasil, Serpa e Félix (2018) destacam que o caminho do refúgio por inúmeras
Já Toledo e Braga (2020) analisaram o fenômeno da exploração sexual na Missão vezes acabam expondo as pessoas mais vulneráveis à violência sexual, física e psicológi-
das Nações Unidas para a estabilização no Haiti (MINUSTAH), destacando o caso de uma ca, incluindo a exploração sexual por grupos criminosos ou mesmo por pessoas de suas
haitiana de 16 anos que havia recebido a promessa de alimentos e de uma residência comunidades, que fazem promessas de um ‘sonho brasileiro’ que não existe, obrigando
no Brasil, por parte das tropas brasileiras, mas que foi deslocada para outro local, sendo as vítimas e venderem seus próprios corpos por inúmeras alegações, retendo documen-
ameaçada com uma arma e estuprada por oficiais. Percebe-se que a própria “promessa” tos e informando sobre dívidas com deslocamento, hospedagem e alimentação (NIGRE,
de facilitação para chega ao país pode acabar se transformando em uma possibilidade 2021). Percebe-se assim que as questões envolvendo a chegada de pessoas vulneráveis
para a exploração sexual, em uma relação na qual os abusadores fazem-se valer das ao Brasil, sobretudo quando tratamos do gênero feminino, fomentam um insólito e fértil
condições de vulnerabilidade das vítimas para promoverem abusos sexuais e estupros. terreno para a exploração sexual, constituindo grave ofensa aos direitos humanos.
Segundo Menezes (2020, p. 11) “devido à sobreposição de marcadores sociais como a Para Serpa e Felipe (2019, p. 1) a “exploração sexual tem sido discutida no mundo
pobreza, o gênero, a sexualidade, a etnia e a própria condição de imigrante, esses sujeitos todo como uma das formas mais extremas de violação aos direitos humanos”, sobretudo
são considerados vulneráveis” ao chegarem ao Brasil, o que facilita a práticas abusivas, dentro desse contexto de fluxos migratórios / imigratórios e do aumento do número de
não apenas a exploração sexual, mas também a exploração para o trabalho escravo, uso refugiados em países de todo o mundo. No Brasil, as autoras apontam que a discussão é
das vítimas para o tráfico de drogas, entre outras. Constata ainda que “há uma grande ainda significativamente recente, intensificada com o aumento do número de imigrantes
incidência do tráfico de pessoas principalmente bolivianos, para fins de exploração la- e refugiados.
boral no Brasil, sendo as mulheres as principais vítimas do crime” (MENEZES, 2020, p. 4). Com a exploração sexual destes grupos, dessa forma, ocorre a gravíssima violação
Santos, Pires e Hoffmann (2018) enfatizam as questões que correlacionam a explo- de outros direitos, como o direito de liberdade sexual (uma vez que as vítimas não se en-
ração sexual e os direitos humanos para imigrantes e refugiadas que chegam ao Brasil: contram em poder de escolha e sofrem em relações de abuso sexual) e de usar o próprio
No que tange aos direitos humanos, as migrações levam a debates e discus-
sões ao tema diariamente, visto que são pessoas que buscam condições melhores corpo (já que as mulheres, crianças e adolescentes submetidas à exploração acabam
de vida na maioria dos casos, especialmente as mulheres, que saem de seu país ou sendo enxergados pelos abusadores como objetos ou produtos), consistindo em grave
região, acompanhadas de seus filhos, pais, e diversos familiares mesmo que por
muitas vezes estejam invisíveis aos olhos da humanidade. Dessa forma, questiona violência aos Direitos Humanos.
– se neste estudo a proteção aos Direitos Humanos das mulheres migrantes, que
estão postas em diversos fluxos migratórios, como refugiadas ou apenas migrantes,
mulheres que no caminho para seu objetivo são vítimas de tráfico humano, abusos CONCLUSÕES
e exploração, seja com fins sexuais ou para trabalho doméstico (SANTOS; PIRES;
HOFFMANN, 2018, p. 2).
O Brasil é um país que se constituiu através da chegada de pessoas oriundas de
Na visão do autor do presente estudo, o Brasil é um país que enfrenta uma série outros locais em seu território, a exemplo da chegada dos colonizadores, do tráfico de es-
de dificuldades no atendimento das necessidades de seus cidadãos. Nessa perspectiva, cravos e dos movimentos de imigração de cidadãos como alemães, italianos e espanhóis

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António Raúl Sitoe & Eduardo Gomes da Silva Filho (Org). Fluxos Contemporâneos: Migrações Transnacionais e Direitos Humanos

para o trabalho. Contudo, as dinâmicas migratórias se alteraram profundamente com o origem e vislumbrarem melhores condições de vida e oportunidades no Brasil. Ao che-
decorrer da história: na atualidade o país é menos atrativo para imigrantes europeus e de garem ao país, no entanto, se deparam com novas formas de abuso e persistem como
países subdesenvolvidos como um todo, mas se torna um destino possível e até mesmo vítimas de abusos e de violência e exploração sexual como um todo. No presente estudo,
desejável para outros imigrantes e refugiados, como haitianos, venezuelanos, senegaleses fora apresentado também o relato de uma mulher trans venezuelana, que vivia de pros-
e cubanos, dentre outros. tituição em seu país de origem, mas que ao chegar no Brasil foi explorada sexualmente
Essa nova era de imigração contemporânea no país traz uma série de fenômenos juntamente com outras meninas.
a serem analisados, sobretudo considerando o tratamento dado aos cidadãos destes Justamente por tratar-se de um novo momento de imigração para o país por parte
países no território brasileiro. Tais imigrantes e refugiados se inserem no Brasil em uma de pessoas vulneráveis, há um volume ainda aquém desejado de publicações e estudos
condição de vulnerabilidade social e econômica, o que os torna mais propensos para que buscam problematizar a exploração sexual destes sujeitos no território nacional. No
eventuais abusos cometidos. Dentre os abusos mais graves em matéria de Direitos Hu- entanto, em pesquisa realizada pelo autor, constatou-se um aumento do volume de pu-
manos estão o trabalho escravo e as formas diversas de exploração sexual, sendo que blicações sobre o tema ao longo dos últimos anos, as quais por muitas vezes são acom-
para a segunda questão, trata-se de um fenômeno que costuma recair sobre mulheres, panhadas de outras noções de Direitos Humanos, como a submissão dos imigrantes e
crianças e adolescentes do sexo feminino, além dos grupos da população LGBTQI+. refugiados ao trabalho escravo e em condições análogas à escravidão de um modo geral.
O presente estudo consistiu em uma investigação acerca da exploração sexual de Ademais, as pesquisas e estudos sobre a exploração sexual das pessoas e grupos vulnerá-
imigrantes / refugiadas no Brasil contemporâneo, tendo como pano de fundo questões veis dentro da linha proposta no artigo científico encontra outras barreiras e limitações,
relacionadas aos Direitos Humanos, como a liberdade sexual e o direito de usufruir do como a falta de fiscalização e a possibilidade de existir muitas situações de exploração
próprio corpo como bem desejar. Por muitas vezes, sobretudo quando tratamos de países sexual de imigrantes / refugiadas que não chegam ao conhecimento do público e dos
vizinhos como a Venezuela, os relatos apresentados indicam que as vítimas são atraídas pesquisadores em caráter geral.
com propostas de emprego, mas, ao chegarem ao Brasil, são levadas a bordéis e outros Isso posto, o presente estudo não objetivou esgotar o assunto ou torná-lo plena-
locais voltados para a prostituição, informadas de dívidas altíssimas e forçadas a traba- mente acabado, mas sim estabelecer uma análise sobre o fenômeno pesquisado com
lharem como prostitutas além de terem seus documentos e dinheiro confiscados, com base em temas de Direitos Humanos, como a liberdade sexual e o direito ao uso do pró-
todo ou quase todo o lucro de suas atividades indo para seus abusadores. prio corpo. Deste modo, espera-se que o artigo científico possa motivar novos estudos
Imigrantes e refugiados que chegam ao Brasil, voluntariamente ou não, acabam e pesquisas sobre o tema, buscando novas formas para o enfrentamento dessas graves
sendo concebidos como sujeitos vulneráveis, o que facilita a exploração sexual ou demais violações que acometem sobretudo imigrantes e refugiadas do sexo feminino no Brasil.
práticas de abuso. É também o caso das imigrantes bolivianas, submetidas tanto ao tra-
REFERÊNCIAS
balho escravo quanto à exploração sexual, bem como das demais pessoas que chegam
ao país em busca de melhores condições de vida. Por isso, trata-se de um problema de BATSCHAUER, J. Arranjo Produtivo Eletrometal-Mecânico Da Microrregião De Join-
imigrantes de países mais pobres, não sendo uma realidade vivenciadas por pessoas e ville/SC: Um Estudo Da Dinâmica Institucional. Dissertação apresentada ao Curso de
grupos que detém um maior poder financeiro e não encontram barreiras para viverem Pós-graduação em Economia da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis,
2004.
no Brasil devido às suas nacionalidades e ao maior poder aquisitivo, como no caso de
mulheres da maior parte dos países da Europa e da América do Norte. BERTOLDO, J. Intersecções entre nacionalidade e raça: considerações sobre o trata-
Destaca-se que a exploração nem sempre decorre da ação de grupos e criminosos mento de imigrantes no Brasil. Revista nuestrAmérica, v. 9, n. 17, e5650792, 2021, Ene-
ro-Junio, 2021.
brasileiros, uma vez que muitas vezes os próprios companheiros ou conhecidos das víti-
mas de suas terras natais acabam se portando como os exploradores sexuais, violando DEMENECH, L.M et al. Exploração sexual de crianças e adolescentes em situação de
os Direitos Humanos e Sociais, bem como as liberdades das vítimas como um todo. Con- rua no Sul do Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, v. 26, n.11, p, 5701-5710, 2021.
tudo, verificou-se que não se trata de uma realidade exclusiva do Brasil, já que existem
KLUK, E et al. Mulheres em situação de violência sexual sob efeito de drogas facilitado-
amplos relatos e estudos que narram os casos de mulheres brasileiras levadas a países ras de abuso sexual. Research, Society and Development, v. 11, n.8, e0911830538, 2022.
da Europa e aos Estados Unidos, também com a promessa de altos salários e cargos, mas MAGALHÃES, L.F.A; BÓGUS, L.M.M; BAENINGER, R. Migrantes Haitianos E Bolivianos
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REMHU, Rev. Interdiscip. Mobil. Hum., Brasília, v. 26, n. 52, abr. 2018, p. 75-94.
Há uma série de fatores que contribuem significativamente para o agravamento
desse fenômeno: as vítimas chegam ao Brasil com pouca ou nenhuma condição finan- MAHON, L.A. Tráfico De Pessoas Para Fins De Exploração Sexual Na Fronteira Brasil-Ve-
ceira, tendo por muitas vezes sendo vítimas de formas diversas de violência e abusos. É nezuela: Desafios E Formas De Prevenção E Combate Ao Ilícito. Revista Ibero-Ameri-
uma situação paradoxal: vítimas de exploração sexual podem ‘fugir’ de seus países de cana De Humanidades, Ciências E Educação, 7(6), 245–265, 2021.

34 35
António Raúl Sitoe & Eduardo Gomes da Silva Filho (Org). Fluxos Contemporâneos: Migrações Transnacionais e Direitos Humanos

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36 37
António Raúl Sitoe & Eduardo Gomes da Silva Filho (Org). Fluxos Contemporâneos: Migrações Transnacionais e Direitos Humanos

3 Imaginário social, racismo e


identificação de africanos no Rio de
Janeiro nos últimos 22 anos
Jorge Santana13

Se ao pisar o solo, o teu coração disparar


Se entrares em transe sem ser da religião
Se comeres Fungi, Quisaca e Mufete de Cara-pau
Se Luanda te encher de emoção
Semba dos Ancestrais- Martinho da Vila

1 INTRODUÇÃO

N
o presente artigo analisarei dois casos de violência e criminalização contra
os refugiados e imigrantes africanos no Rio de Janeiro. O primeiro caso é
dos angolanos, imigrantes e refugiados, moradores do Conjunto de Favelas
da Maré. A partir do ano 2000 eles foram vítimas de uma criminalização produzida pelo
Estado fluminense e por veículos de comunicação. O que produziu efeitos como a viola-
ção de direitos humanos e a exposição deles ao risco de vida. Os efeitos ainda produzem
desdobramentos até hoje.
O segundo caso é do congolês Moïses Kabagambe, de 24 anos, barbaramente
espancado e assassinado por cinco homens na praia da Barra da Tijuca, em janeiro de
2022. Neste evento trágico, as investigações só iniciaram após a mobilização da família
da vítima, da pressão dos meios de comunicação e dos movimentos sociais. Este caso foi
ignorado pelo governo federal, que atualmente é adepto de uma política imigratória de
viés racista e xenofóbico.
Analiso esses dois casos a partir da identificação dos africanos no Brasil, do ima-
ginário social acerca da África e da sua população amplamente compartilhados na so-
ciedade brasileira, e por último analiso como o racismo foi um fator fundamental. Em
especial, o racismo destinado contra africanos em nosso país. O objetivo é apresentar
como na história recente os africanos são vítimas de violência, racismo e violação dos
direitos humanos no Brasil.

2 A CRIMINALIZAÇÃO DOS ANGOLANOS NO CONJUNTO DE FAVELAS DA MARÉ

Nas décadas de 1980 e 1990 desembarcaram no Brasil milhares de imigrantes e


refugiados angolanos, grande parte dos que chegaram fixaram-se no Rio de Janeiro (PE-
TRUS, 2001). O fluxo de angolanos para o Brasil tem origem no acirramento dos conflitos
armados da Guerra Civil Angolana (1974-2002)14. O conflito resultou das disputas entre
13 Jorge Amilcar de Castro Santana é licenciado em História pela Universidade do Estado do Rio
de Janeiro, mestre em Ciências Sociais pelo Programa de Pós –Graduação em Ciências Sociais na UERJ
e atualmente doutorando em Ciências Sociais pelo mesmo programa. É autor também do romance
histórico Desculpas, meu ídolo Barbosa, publicado em 2022, pela editora Multifoco.
14 Após a independência, o país africano adentrou em uma longa guerra civil (1975-2002) entre os
três grupos guerrilheiros que lutavam pela independência e após pelo poder. O MPLA de orientação

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António Raúl Sitoe & Eduardo Gomes da Silva Filho (Org). Fluxos Contemporâneos: Migrações Transnacionais e Direitos Humanos

grupos guerrilheiros após a independência do país africano conquistada em 197415. O Na Maré, segundo a geógrafa Regina Petrus (2001) habitavam um número de 3
conflito armado tinha contornos da Guerra Fria, pois os dois principais grupos eram fi- mil imigrantes e refugiados, formando uma comunidade imigrante viva. No Conjunto de
nanciados e apoiados pelas duas superpotências mundiais: Estados Unidos da América Favelas os angolanos se fixaram e construíram raízes, desenvolveram relações e criaram
e União Soviética. laços com os moradores da Maré17. A presença é tão forte que existe uma localidade
O Movimento Popular Pela Libertação de Angola (MPLA) era apoiado pela antiga conhecida como Esquina dos Angolanos. Essa localidade concentra bares, restaurantes
União Soviética, era um grupo de orientação marxista e liderado pelo médico e político e comércios de propriedade dos imigrantes, é um dos pontos de encontro da comuni-
Agostinho Neto. Enquanto a União Nacional Para Independência Total de Angola (UNITA), dade, não só da Maré, como do Rio de Janeiro. É possível no local comer um Mufete ou
de orientação capitalista e liderada por Jonas Savimbi e a Frente Nacional de Libertação Cachupa, pratos tradicionais do outro lado do Atlântico.
de Angola (FNLA), também de orientação capitalista e liderada por Holdon Roberto, eram Aos domingos acontece tradicionalmente o Pagode da Esquina dos Angolanos, que
apoiados pelos Estados Unidos. O acirramento dos conflitos armados, inclusive atingindo já está na agenda cultural da favela. O que demonstra como os imigrantes estão fami-
a capital angolana, resultou em uma profunda crise econômica e social provocando a liarizados e fazem parte da favela como fazem parte de diversos aspectos da vida social.
fuga de parte população. Na Maré, os imigrantes africanos são conhecidos pelo apelido de “Angolas”. A princípio a
Nesse cenário difícil no país africano, muitas famílias emigraram ou se refugiaram utilização da categoria angola pelos moradores da Maré pode indicar um desprezo pela
no Brasil. O Rio de Janeiro tornou-se um núcleo importante para quem buscava uma individualidade dos angolanos. Entretanto, o que observei no trabalho de campo é que
base para recomeçar a vida do outro lado do Atlântico. Um dos fatores que contribuiu as pessoas que mantêm relações de proximidade com Angolas conhecem o nome de
para que a capital fluminense se tornasse esse núcleo de angolanos era a existência de cada um. As pessoas que não mantêm relações de proximidade com os angolas utilizam
um voo semanal direto da companhia de aviação angolana, a TAAG (PETRUS, 2001). Por da categoria Angola para se referir a um angolano (SANTANA, 2016).
meio desse voo desembarcaram em 20 anos muitos africanos fugindo do conflito armado. A maioria dos angolanos na Maré fixaram moradia nas favelas da Vila do João, Vila
A escolha pela “Cidade Maravilhosa” era também fruto da imagem da antiga capital dos Pinheiros e Conjunto Pinheiros, as três são consideradas berço dos imigrantes e refu-
do Brasil divulgada pelas telenovelas brasileiras transmitidas naquele país, que contri- giados africanos na Maré. Contudo, eles se espalharam por todas as favelas do conjunto,
buíram para uma imagem idealizada (PETRUS, 2001). A força da cultura brasileira a partir mas há uma segunda concentração importante nas favelas da Nova Holanda e Parque
dos músicos, atores e demais artistas foram fundamentais para despertar o interesse no União. Há também alguns residindo e são proprietários na Praia de Ramos, onde está
Rio de Janeiro como um novo lugar para viver longe da violência. situado o famoso Piscinão de Ramos18, área famosa de lazer da população carioca.
Os africanos oriundos da antiga colônia portuguesa entraram no Brasil em duas No final dos anos 1980 e na década de 1990 os angolanos residentes no Rio de Ja-
modalidades, como imigrantes ou como refugiados. Devido a Guerra Civil os angolanos neiro tinham como principal atividade econômica a Mukunza. Essa atividade informal
podiam pedir abrigo como refugiados16. Alguns conseguiram ajuda financeira nos pri- consistia na compra de produtos brasileiros populares no país africano, devido às novelas
meiros meses por meio da Cáritas-RJ, pelo Alto Comissariado da Nações Unidas Para brasileiras como: roupas, chinelos, entre outros produtos (PETRUS, 2001). A comunidade
Refugiados (ACNUR) ou pela Pastoral do Imigrante. Outra parcela veio para o Brasil como imigrante enviava os produtos pelo voo da TAAG, para seus amigos e familiares revende-
imigrantes, em busca de fugir do conflito armado, melhores condições de vida, emprego rem em Luanda. Durante anos essa atividade era lucrativa e rendia um bom orçamento
e demais questões comuns aos imigrantes. para mukunzeiros.
Na metrópole fluminense os imigrantes africanos criaram núcleos em diversos Outra parcela da comunidade angolana trabalhava especialmente na área da cons-
bairros, como na Lapa, no Méier, na cidade de Duque de Caxias na região metropolitana trução civil, tanto com pedreiro, ajudante de pedreiro, pintor e demais ocupações. Nesse
e especialmente no Conjunto de Favelas da Maré. A última, localizada próximo do aero- período ocorriam muitas obras de edifícios e condomínios na região da Barra da Tijuca e
porto do Galeão, possui uma grande oferta de ônibus em direção ao centro da cidade, do Recreio, o que abriu uma boa oportunidade de emprego (SANTANA, 2016). A comuni-
tornando-se assim ao longo dos anos 90 o principal núcleo de imigrantes e refugiados no dade angolana conseguiu criar uma rede, concentrando vários conterrâneos na atividade
Brasil (PETRUS, 2000). Chegou a ganhar a alcunha de “Umbigo dos Angolanos no Brasil”, econômica, o que é comum em contexto de imigração.
devido a grande quantidade de nacionais residindo lá (SANTANA, 2016).
17 O Conjunto de Favelas da Maré é uma das maiores favelas do Rio de Janeiro, com
marxista e apoiado pela antiga União Soviética, a UNITA apoiada pelos Estados Unidos da América e a
FNLA de orientação aproximadamente 150 mil habitantes distribuídos em 16 favelas. A ocupação da região teve início em
15 A guerra de luta pela independência de Angola teve início em 1961, quando grupos armados meados do século XX, quando trabalhadores nordestinos que trabalharam nas obras da construção
passaram a combater as tropas lusitanas na então colônia. Em 1974, a Revolução dos Cravos derrubou da Avenida Brasil fixaram moradia na região (SOUZA, 2005). Um território alagadiço, que antes era um
a ditadura portuguesa abrindo espaço para negociações que culminaram com a independência de grande manguezal. Para ocupar o local os primeiros moradores tiveram de construir palafitas para não
Angola, com a assinatura do Acordo de Alvor, em janeiro de 1975. evitar a inundação de suas residências, em dias de maré alta, quando água subia bastante.
16 Não eram todos os imigrantes e refugiados que desejavam imigrar ou buscar refúgio no 18 O Piscinão de Ramos é uma importante área de lazer da população carioca. Foi construído na
Brasil. No meu trabalho de campo encontrei alguns que desejavam ir para Portugal, Estados Unidos década de 2000 pelo então governador Antonhy Garotinho (19998-2002). O local conta com uma piscina
ou Canadá. Contudo essas nações criaram grandes dificuldades para entrada de angolanos ou não de água da Baía de Guanabara, quiosques, restaurantes, quadras de futebol e de vôlei. No Piscinão tem
concediam o visto de refugiado. dois quiosques de proprietários angolanos.

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E uma parte da comunidade passou dedicar-se ao comércio, tanto na Maré como operação policial, para parte da população a mesma foi a prova cabal da participação
na região do Centro do Rio de Janeiro. No Conjunto de Favelas da Maré tem uma varie- deles no tráfico de drogas (SANTANA, 2016). A foto abaixo publicada no vespertino Folha
dade de comércios de propriedade dos imigrantes africanos como bares, restaurantes, de São Paulo reflete de maneira fidedigna o descalabro.
depósito de bebidas, lojas de celular, salões de beleza, lojas de roupas entre outras. No
Imagem 1 – Jornal O Globo de 8 de fevereiro de 2000
camelódromo da Uruguaiana, no coração da cidade, há quase uma dezena de boxes que
vendem uma infinidade de produtos (SANTANA, 2016).
A partir da década de 1980, com o crescimento da criminalidade urbana, do tráfi-
co de drogas, grupos de traficantes de drogas ilícitas no varejo passaram a controlar o
território da Maré, produzindo episódios de violência e a consequente criminalização do
território e de seus moradores (SILVA, 2009). Atualmente a Maré é controlada por duas
facções criminosas: Comando Vermelho e Terceiro Comando Puro. Além da milícia, que
também controla duas favelas. A disputa entre os grupos criminosos pelo poder con-
tribuiu para um imaginário social criminalizante da região. Uma área de divisa entre as
duas facções ficou famosa com o nome “Faixa de Gaza”19, devido aos intensos tiroteios.
Nesse cenário violento a comunidade sofreu um duro golpe no ano 2000, quan- Fonte: PESSOA; CERQUEIRA, 2000a, p. 13.
do foi surpreendida por denúncias infundadas de que os imigrantes africanos na Maré
estavam fornecendo treinamento de guerrilha para os traficantes de drogas ilícitas de Nesse sentido o imaginário social e racista acerca de África serviu perfeitamente
uma determinada facção. A denúncia ocorreu, após uma chacina contra uma das facções como uma luva. Na verdade, havia toda uma imagem do continente africano como um
rivais, na favela Nova Holanda. A partir desse evento teve início um corolário perverso de território envolto em conflitos armados, portanto associar imigrantes africanos com guerra,
associação dos angolanos com o tráfico de drogas ilícitas, produzindo uma criminalização guerrilha era muito fácil. Dessa forma a construção da denúncia conseguiu amplo apoio
dessa comunidade. popular e das autoridades.
No dia 10 de fevereiro de 2000, um grupo de traficantes dentro de um caminhão, Não apenas o Estado foi responsável por esse processo de criminalização, como
desembarcaram munidos de fuzis, roupas militares e executaram 5 traficantes do Coman- os meios de comunicação, pois a partir da chacina teve início uma série de reportagens
do Vermelho, na favela Nova Holanda. Os realizadores da chacina seriam supostamente sobre o mito de que angolanos, ex-guerrilheiros da guerra civil angolana estariam forne-
traficantes do Terceiro Comando Puro, das favelas da Maré controladas pelo grupo, onde cendo treinamento de guerrilha para os traficantes de drogas na Maré. Dessa maneira, a
residiam a maioria dos imigrantes. Segundo testemunhas os invasores teriam utilizado suposta ilação tomou uma grande amplitude circulando não apenas na imprensa carioca,
técnicas de guerrilha e falavam um português com sotaque, o que foi interpretado como fluminense e nacional.
características dos angolanos (SANTANA, 2016). O coordenador da secretaria de Segurança Pública à época, Luiz Eduardo Soares,
Nos dias seguintes à chacina, um delegado responsável pela investigação, deu uma escreveu em um artigo ao jornal O Globo, no dia 2 de fevereiro de 2000, defendendo que
declaração aos meios de comunicação afirmando a hipótese da participação de “mer- se fossem dinamarqueses não ocorreria às violações de direitos humanos, que o processo
cenários angolanos” junto ao tráfico da Maré. As notícias sobre essa suposta associação era uma soma de racismo, preconceito de classe e contaminação da identidade nacio-
iniciaram um processo de mais denúncias e testemunhas afirmando a mesma tese. O nal angolana. Completou afirmando que era um processo de estigmatização do grupo
que culminou em megaoperação policial no dia 7 de fevereiro, na favela da Maré reunindo social e que a vida dos atingidos pelas supostas acusações estava em risco. Enviou uma
Polícia Militar, Polícia Civil e Polícia Federal para averiguar a participação dos imigrantes carta também ao chefe do Executivo estadual pedindo o fim das acusações infundadas
na criminalidade (SOARES, 2000). (SOARES, 2000).
A operação não apenas violou os direitos humanos com a detenção ad hoc dos Ao fim da operação policial foi constatada que os angolanos não tinham partici-
imigrantes para serem cadastrados, fotografados e interrogados sem nenhuma compro- pação ou envolvimento com atividade do tráfico de drogas ilícitas. No dia 14 de fevereiro
vação de terem cometido alguma ilegalidade. Todos os angolanos nas favelas da Maré de 2000, o governador do Rio de Janeiro, Anthony Garotinho, pediu desculpas públicas
foram colocados em suspeição, eram criminosos em potencial (SANTANA, 2016). e defendeu punição aos policiais responsáveis pela operação policial e a violação dos di-
Quem estava na rua, chegando do trabalho ou na frente de casa foi levado de reitos humanos (SOARES, 2000). O Itamaraty também se posicionou de maneira crítica
maneira truculenta para o posto policial, onde eram fichados. Além da ilegalidade da a operação e a estigmatização dos africanos na Maré.
19 A Faixa de Gaza é a região localizada na divisa entre as favelas da Baixa do Sapateiro e Nova Holanda. Apesar da reviravolta e do pedido de desculpas, os angolanos sofreram com
A primeira é controlada pelo Terceiro Comando Puro e a segunda pelo Comando Vermelho, portanto local
de intensos tiroteios entre os grupos rivais, com efeitos desastrosos para a população residente ao redor. os efeitos. Alguns perderam o emprego, outros foram espancados e passaram a ser

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cotidianamente vítimas de revistas vexatórias pelas forças policiais. Desde o ano 2000 A família Kabagambe reside no bairro de Brás de Pina23, na Zona Norte do Rio de
diversas notícias até o ano 2013 associavam os angolanos com o tráfico de drogas ilícitas. Janeiro. Em um pequeno apartamento de um quarto, dividido entre os dois irmãos da
Os efeitos estão em voga até hoje, pois parte da população carioca ainda acredita vítima e a mãe. Como é comum na vida de diversos refugiados e imigrantes, não conse-
no mito de mercenários angolanos fornecendo treinamento de guerrilha para trafican- guiram trabalho formal, indo trabalhar no mercado informal uma ocupação laboral pre-
tes. Como escutei dos próprios em diversas ocasiões: “Nós saímos de Angola fugindo da cária (ANTUNES, 2004). No cenário carioca, Moïses conseguiu oportunidades de trabalho
violência para sofrer violência aqui no Brasil” (SANTANA, 2016).20 informal, especialmente na praia, onde trabalhou em distintas funções como garçom,
vendedor, atendente, entre outras.
2.1 O assassinato de Moïses Kabagambe
No serviço na praia do Rio de Janeiro, assim como em outras áreas o pagamento
é feito a partir de diárias, o trabalhador recebe pelo dia trabalhado sem vínculos empre-
Desde a década de 1980, o Brasil foi a porta de entrada para milhares de refugiados
gatícios ou direitos trabalhistas. Foi justamente por cobrar duas diárias do gerente do
africanos, oriundos de nações assoladas por guerras civis. Não foi diferente com os con-
quiosque Tropicália, na praia da Barra da Tijuca, que teve início a confusão que resultou
goleses fugindo dos conflitos armados em sua nação natal. É importante ressaltar que
em seu assassinato. O valor do trabalho exercido como atendente era de R$100,00, por-
os países do Norte Global estabeleceram cotas de refugiados, dificultando a entrada de
tanto o congolês reivindicava receber ao todo R$ 200,00.
refugiados, especialmente os africanos, com contornos claros de racismo e xenofobia21.
Moïses estava trabalhando em outro estabelecimento também na avenida litorâ-
Uma comunidade congolesa se abrigou no Brasil, especialmente nas cidades do Rio de
nea, mas retornou ao Tropicália para cobrar por diárias atrasadas. No dia 24 de janeiro foi
Janeiro e de São Paulo.
ao antigo quiosque cobrar o dinheiro por volta das 22h (RIANELLI, CARDOSO, 2022). Ao
O Congo era uma colônia da Bélgica até 1960, quando conquistou a independência
reivindicar o pagamento ao gerente teve início uma discussão que culminou em uma
sob a liderança do intelectual e político Patrice Lumumba, eleito primeiro presidente,
briga física entre os dois. Contudo, os demais presentes e funcionários aderiram à briga,
mas assassinado no ano seguinte. Após a emancipação política teve início uma série de
em favor do gerente, ou seja, foram cinco pessoas contra o refugiado congolês. A vítima foi
conflitos armados e golpes de Estado. Em 1965, o militar Mobutu Sese Seko (1965-1997)
espancada cruelmente e os agressores fizeram uso de pedaços de pau e taco de beisebol.
assumiu o poder através de um golpe de Estado, impondo uma violenta ditadura de forte
Mesmo depois de a vítima cair no chão os agressores continuaram a brutal sessão
caráter nacionalista e autoritária.
de golpes e depois um dos agressores aplicou um golpe de luta marcial, o mata leão24,
Em 1997, o ditador foi destituído por rebeldes liderados por Laurent Kabila que es-
asfixiando a vítima por alguns longos segundos até não esboçar mais nenhuma reação.
tavam inconformados com a corrupção, autoritarismo e violência do regime ditatorial. A
Posteriormente o amarraram e o deixaram jogado ao lado do quiosque desacordado ou
partir de 1997, o país passou a chamar-se novamente de República Democrática do Con-
provavelmente já morto (RIANELLI, CARDOSO, 2022). Os agressores e nem os clientes
go. A expulsão das tropas estrangeiras aliadas na luta contra o ditador Mobotu resultou
chamaram o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) ou se mobilizaram para
em um intenso conflito armado, envolvendo milícias, civis e os grupos étnicos. O conflito
levá-lo ao Hospital Municipal Lourenço Jorge, a cerca de 3 quilômetros de distância.
ainda ocorre em diversas regiões, desde a virada do século milhões de congoleses saíram
As imagens das câmeras de monitoramento revelam a brutalidade do espanca-
do país natal.
mento, que ocorreu por aproximadamente 15 minutos. Elas revelam cinco homens, que
Nesse contexto, Moïse Mugenyi Kabagambe e mais dois irmãos chegaram ao Bra-
agrediam barbaramente a vítima, enquanto pessoas caminhavam e praticavam exercícios
sil, em 2011, quando deixaram a República Democrática do Congo, devido à guerra civil,
na pista de caminhada na orla. É importante relatar, que o local do crime foi a Avenida
violência e perseguição étnica e política (JANSEN, 2022). A sua avó e outros familiares
Lúcio Costa, a segunda mais importante avenida do bairro, muito movimentada, com a
da etnia Hema foram assassinados e o pai está desaparecido. Ao chegarem no Brasil, os
presença de hotéis, restaurantes, bares, policiamento e amplamente vigiada por câmeras
três irmãos foram acolhidos pela Cáritas22. A mãe Ivone Kabagambe e seus outros dois
de monitoramento.
irmãos chegaram aqui em 2014. A família reside na região Ituri, no nordeste do Congo,
O crime demorou cinco dias até repercutir na imprensa, quando a família de Moïses
que é disputada belicamente pelas etnias Hema e Lendu. E nos últimos anos a região
Kabagambe realizou uma manifestação solitária, em frente ao quiosque, onde ocorreu o
tornou-se ainda mais perigosa a partir da atuação do Estado Islâmico, potencializando
incidente. Os familiares não apenas reivindicavam apenas investigações e punição para
ainda mais os efeitos deletérios da guerra civil para população (JANSEN, 2022).
20 Durante meu trabalho de campo e observação direta, apliquei a metodologia de entrevistas com os algozes do ente querido, como também denunciavam a retirada ilegal dos órgãos do
um grupo de imigrantes angolanos no Estado do RJ entre os anos de 2014 e 2016.
21 A Guerra Russa-Ucraniana iniciada em 2022 apontou como o racismo conduz a política de
ente querido pelo Instituto Médico Legal (IML) do Rio de Janeiro25. O ato foi filmado e
recebimento de refugiados na União Europeia. Enquanto refugiados oriundos de países africanos 23 Na região do bairro de Brás de Pina existe uma comunidade de congoleses.
sofrem anos para conseguir um visto de refúgio na região, os refugiados de guerra da Ucrânia foram 24 Mata leão é o nome popular para a técnica marcial de estrangulamento. A técnica consiste em
admitidos sem dificuldades nos países da Zona do Euro, aproximadamente 2 milhões de refugiados. pressionar com os braços o pescoço do oponente até cortar o fornecimento de oxigênio para o cérebro.
22 A Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro é uma ONG (Organização Não Governamental) 25 Na reportagem, a família de Moïses Kabagambe denunciava que os órgãos da vítima teriam sido
que pertence a Igreja Católica. Desde 1976 oferece o apoio e acolhimento por meio do Programa de retirados e destinados para doação de órgãos. Enquanto a Polícia Civil do Rio de Janeiro respondeu que
Atendimento a Refugiados e Solicitantes de Refúgio. A sede da Cáritas RJ é no bairro do Maracanã. os órgãos estavam guardados no IML.

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António Raúl Sitoe & Eduardo Gomes da Silva Filho (Org). Fluxos Contemporâneos: Migrações Transnacionais e Direitos Humanos

transmitido pelo jornal televisivo RJTV 2. Produzindo o início de corolário de notícias na Apesar de as imagens das câmeras de monitoramento apontarem a participação
imprensa e pressão pela resolução do crime. de cinco homens no espancamento da vítima, até agosto de 2022, quando escrevo o
O caso não ganhou apenas a atenção na mídia brasileira, como na imprensa inter- presente artigo, os outros dois agressores não foram presos. Os três assassinos presos
nacional, revelando ainda mais o descaso do Estado brasileiro e a violação dos direitos em fevereiro permanecem privados de liberdade, aguardando o julgamento. O Ministério
humanos. O caso da Barra da Tijuca estava na esteira de outros casos emblemáticos de Público do Rio de Janeiro indiciou os três por homicídio triplamente qualificado. Outras
violação aos direitos humanos e racismo contra a população negra no Brasil nos últimos duas pessoas presentes no dia do evento trágico foram indiciadas no artigo 135, que es-
meses. Os casos de racismo e violência eram ignorados pelo governo federal, partidário tabelece o crime de omissão de socorro, por não terem chamado o SAMU.
da tese da inexistência de racismo no Brasil. A fala da mãe da vítima reflete um pouco do sentimento de refugiados e imigrantes
A partir de uma forte mobilização nas redes sociais dos movimentos negro e de di- oriundo de países conflagrados por conflitos bélicos que vem para o Brasil em busca de
reitos humanos, foi organizado um grande ato “Justiça por Moïse”, na Barra da Tijuca, em paz. Ivana Lay relatou em uma entrevista:
Eles quebraram as costas do meu filho, quebraram o pescoço. Eu fugi do
frente ao quiosque. O ato26 ocorreu no dia 5 de fevereiro de 2022, com gritos de justiça, Congo para que eles não nos matassem. No entanto, eles mataram o meu filho
aqui como matam em meu país. Mataram o meu filho a socos, pontapés. Mataram
defesa dos direitos humanos, combate ao racismo, xenofobia e demais pautas correlatas. ele como um bicho. (…) Ele era trabalhador e muito honesto. Ganhava pouco, mas
A família Kabagambe estava presente, imigrantes e refugiados africanos, que fizeram era dele. No final, chegava com parte do dinheiro e me dava para ajudar a pagar o
aluguel. E reclamava, dizendo que ganhava menos que os colegas (O Globo, 2022).
intervenções culturais como músicas, danças e teatrais. No mesmo dia aconteceram atos
em Brasília, São Paulo, Porto Alegre, Salvador, São Luís, Cuiabá, Natal, Belo Horizonte e Essa declaração da congolesa radicada no Brasil vai ao encontro das declarações
Redenção (JUSTIÇA, 2022). dos angolanos, em meio ao processo de criminalização no início do século XXI. Nos dois
casos os africanos vieram para o Brasil fugindo da violência e dos conflitos bélicos, mas
Imagem- 2 Arte gráfica da campanha “Justiça por Moïse Mugenyi”
aqui foram vitimados, em ações embebidas do início ao fim de racismo.

2.2 Identificação, imaginário social e racismo

Início a análise desses dois casos de violência contra africanos residentes na an-
tiga Terra de Vera Cruz27 a partir dos fatores que contribuíram diretamente para esses
episódios: identificação, imaginário social e racismo. Compreender o processo de identi-
ficação dos refugiados e imigrantes negros no Brasil esclarece os efeitos destes grupos
serem comumente acometidos por atos violentos e sofrer com sucessivas violações dos
diretos humanos. Os dois casos separados por 22 anos, apontam como esses atores não
são concebidos como cidadãos portadores de direitos pelo Estado e por parcela da po-
pulação brasileira.
Fonte: www.ugt.org.br/post/41170-Justica-por-Moise-Mugenyi Gérard Noiriel (2007) estabelece que os processos de identificação são comuns
nas sociedades modernas e evidenciam as relações de poder. A identificação pode ser
Antes do ato, no primeiro dia de fevereiro de 2022, devido à pressão dos meios de
realizada por um grupo social, pelo Estado e pelos meios de comunicação. Em geral,
comunicação, dos militantes dos movimentos sociais e da família, três homens foram pre-
esse processo ganha mais força quando é produzido por grupos sociais privilegiados,
sos pela morte do refugiado congolês, em prisão preventiva (MINISTÉRIO, 2022). Alisson
situados na parte de cima da hierarquia social. Pois, esses grupos têm acesso a recursos
Cristiano Alves, um dos acusados divulgou um vídeo em que defendia que o ato criminoso
econômicos e aos meios de comunicação, portanto a identificação produzida consegue
não teve nenhuma motivação racial, dessa forma negando terem agido motivados pelo
alcançar uma parcela significativa da população.
racismo (MINISTÉRIO, 2022). Assim como no caso da criminalização dos angolanos na
No caso dos angolanos a identificação foi construída pelo Estado. Após a chacina,
Maré, o secretário de segurança, o Cel. Josias Quintal, também defendeu que o ato não
foi a Polícia Civil fluminense que primeiramente veiculou a suposta participação dos afri-
foi motivado por racismo.
canos no evento trágico. A suspeição ganhou coro nos meios de comunicação potencia-
26 Participei do ato junto com amigos e militantes. O ato foi muito bonito, com a presença de militantes
históricos do movimento negro fluminense. Contudo, quando cheguei perto do quiosque Tropicália, onde lizando ainda mais a amplitude e alcançando a população carioca e fluminense. Outras
aconteceu a tragédia, me senti muito mal, minha pressão caiu, fiquei zonzo e sem forças. Apesar de já ter
participado de atos próximo de locais de tragédias como essa, as energias que emanavam daquele local agências do Estado compartilharam da identificação dos angolanos como envolvidos
me afetaram como nunca. No ato, a fala de uma importante militante dos direitos humanos, que teve um
filho assassinado e torturado por agentes do Degase, me marcou. Na fala ela dizia que não queria estar de no tráfico de drogas ilícitas, dando início uma esteira de operações contra o grupo social
novo reunida para manifestar contra a morte de mais um jovem negro, que precisávamos lutar pelo fim (SOARES, 2000).
do genocídio do povo afrodescendente. Voltei para casa refletindo que ainda nos encontraríamos ainda
em muitos atos em defesa da justiça por jovens negros assassinados. 27 Primeiro nome do Brasil, ainda no século XVI, quando teve início a colonização.

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Não houve uma crítica ou sequer um cuidado por parte do Estado sobre os efei- Um segundo ponto importante é o imaginário social hegemônico acerca de África
tos que a criminalização poderia gerar para os acusados. Como aponta Machado Silva e dos africanos é um dos fatores importantes para os sucessivos casos de violência contra
(2008), no Rio de Janeiro, desde 1980 há uma identificação corrente dos moradores de pessoas nascidas no mais velho dos continentes. As imagens e representações da África
favela com traficantes de drogas ilícitas, com forte atuação do Estado e grande adesão são em geral estigmatizantes, negativas e desabonadoras. Esse imaginário social espe-
na sociedade. Os moradores de favela seriam cúmplices, convenientes ou mesmo par- cialmente veiculado pelos meios de comunicação é partilhado por parte dos brasileiros.
tícipes das atividades criminosas nos seus espaços de moradia (SILVA, 2008). Portanto, O espaço é curto para discorrer com mais profundidade sobre o imaginário de África
a criminalização dos angolanos é fruto da identificação deles construída pelo Estado a aqui, mas faço uma breve análise. O imaginário corrente e de senso comum é dividido
partir de supostos relatos e por serem moradores de favelas. em dois grandes arquétipos que se retroalimentam: o primeiro é de uma África idílica,
Uma política de identificação com fortes características de racismo e preconceito cristalizada, com populações autóctones vivendo de maneira tradicional, em aldeias e
de classe, pois por serem trabalhadores e pobres, configurando assim um grupo poten- vilarejos, paisagens de savanas povoadas por animais silvestres; a segunda é de um conti-
cialmente apto a se engajar em atividades criminosas. No caso, de Moïses Kabagambe nente arrasado por epidemias, pobreza, miséria, subdesenvolvimento, conflitos armados
a identificação foi com um sujeito despossuído de direitos, mesmo sendo naturalizado e grupos guerrilheiros e de mercenários envolvidos em episódios violentos.
brasileiro, porém de origem africana. É comum os casos de refugiados ou imigrantes O segundo imaginário social contribuiu e contribui para os episódios traumáticos
vítimas de assédio moral, violação de direitos trabalhistas e de trabalho análogo a escra- de violência contra africanos. Pois, a parcela brasileira que compartilha desse imaginário
vidão no Brasil (SILVA, 2015). concebe os africanos como figuras pobres ou como violentas. Logo, quando foram veicu-
Dessa forma, o início da discussão que dá origem ao espancamento do refugia- ladas as primeiras notícias de angolanos como “mercenários” rapidamente ganhou força
do congolês, tem origem na negação do gerente do quiosque em pagar pelo trabalho na população carioca, que já compartilhava de imagens dos africanos como “senhores
exercido. Posteriormente, o espancamento e consequentemente o assassinato, tem con- da guerra” e imersos em uma vida atravessada por conflitos bélicos.
tornos de que os agressores partilhavam de uma identificação da vítima como alguém O que somado ao temor corrente na sociedade carioca da violência urbana, como
sem direitos. A identificação de um indivíduo, que por ser negro e africano, era passível aponta Machado Silva (2008), em poucos dias havia um medo assentado no Rio de Janeiro
de ser violentamente agredido em meio a uma das avenidas mais importante da capital de que as traficantes drogas ilícitas, com o treinamento militar alcançariam um poderio
fluminense. bélico antes nunca visto e, portanto, tendo condições de “dominar a cidade”. A metáfora
As relações de poder estão imbricadas no assassinato do trabalhador, pois casos da guerra30 (LEITE, 2008) foi operada, tendo agora não só os comerciantes de drogas,
como esses têm uma lógica de que as vítimas não são possuidores de direitos e, portanto, mas também um novo inimigo público, os imigrantes africanos. A partir do medo, todas
podem ser submetidos a toda série de atrocidades. Como a identificação de um sujeito as medidas até as ilegais e aviltando os direitos humanos podem ser acionadas pelo Es-
sem direitos configura também uma certeza uma imputabilidade, por ser um africano, tado com amplo apoio da sociedade carioca.
negro e pobre. Um caso emblemático ocorreu em 199728, o indígena Galdino Jesus dos No caso do crime cometido na Barra da Tijuca, o imaginário social retifica o olhar
Santos, da etnia Pataxó foi embebido com líquido inflamável, enquanto dormia e depois dos agressores dos africanos como não detentores de direitos e passíveis de punições
foi incendiado. Os assassinos, jovens, brancos e de classe média. Um dos algozes explicou a despeito do Estado Democrático de Direito. O processo de identificação contribui
o motivo do crime: “Desculpa, pensei que era um mendigo” (PARKS, 2020). diretamente, porém também o imaginário social. Alguém advindo de um continente
A explicação de um dos assassinos aponta de maneira fidedigna, como uma parcela assolado por miséria, conflitos armados, doenças e todo tipo de imagens negativas é
da sociedade brasileira identifica determinados grupos como despossuídos de direitos. alguém destituído de direitos, como não possuidor de cidadania.
Como por exemplo: negros, indígenas, pessoas em situação de rua, imigrantes, refugia- Logo, é alguém que não tem direito de reivindicar direitos, como ser pago pelo tra-
dos etc. Ao dizer que o objetivo era colocar fogo em um indivíduo em situação de rua, ele balho executado, quanto mais arvorar a discutir com um brasileiro e proferir xingamentos.
aciona uma identificação de que o alvo inicial é um sujeito destituído de direitos, alguém É a partir desse imaginário social sobre os africanos que os agressores decidiram agredir
passível de sofrer violência. Retorno a esse episódio histórico para apontar o quanto na com crueldade o congolês. A brutalidade do crime revela o que os algozes pensavam e
lógica dos assassinos de Moïses, como para reforça sua interseccionalidade como negro, concebiam a vítima: um africano, negro, pobre e que estava extrapolando os limites para
de origem africana e pobre são marcadores os quais apontava para alguém identificado de carne avícola na região Sul do Brasil. Onde muitos africanos refugiados ou imigrantes, em sua maioria
muçulmanos são submetidas as mais distintas formas de exploração, assédio moral e trabalho análogo
como sem direitos29. a escravidão. Sua pesquisa também vai no sentido de como os empregadores identificam os africanos,
28 Em 1997, em Brasília cinco jovens, brancos, de classe média, moradores de bairros nobres, sendo imigrantes e refugiados como sujeitos sem direitos.
um deles menor de idade atearam fogo no cacique indígena da etnia Pataxó, Galdino Jesus dos Santos. 30 Segundo a socióloga Márcia Leite (2008) a metáfora da guerra é a ideia pela qual a cidade do
O cacique estava dormindo em um ponto de ônibus, quando foi incendiado e acabou morrendo. Os Rio Janeiro está em guerra, devido aos tiroteios, roubos, sequestros, tráfico de drogas e outras atividades
assassinos foram presos e condenados. criminosas. Tendo os traficantes de drogas ilícitas, como os principais inimigos do Estado e da população
29 Allan Rodrigo de Campos Silva (2013), em sua dissertação de mestrado Imigrantes afro-islâmicos de bem, pois são os primeiros os responsáveis pela produção da violência. E a reivindicação de medidas
na indústria avícola halal brasileira, revela a situação aviltante de imigrantes africanos em frigoríficos drásticas e fora da legalidade para combater os inimigos.

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alguém com tantos estigmas e marcadores sociais degradantes. Assassinar alguém com institucional como: a demora da Polícia Civil em investigar o crime (apenas depois da
tantos estigmas sobrepostos não seria um ato passível de punição. repercussão na imprensa), a remoção dos órgãos da vítima sem a permissão da família
Uma vasta bibliografia em diversas áreas das Ciências Humanas aborda o racismo e, principalmente, a declaração do presidente da Fundação Palmares, que escreveu em
no Brasil me diversos aspectos, questões e perspectivas. Contudo aqui abordarei o racis- sua conta no twitter:
Moïse andava e negociava com pessoas que não prestam em tese, foi um
mo a partir das definições de Silvio de Almeida, (2020), Sérgio Guimarães (2012) e Alex vagabundo morto por vagabundos mais fortes. A cor da pele nada teve a ver com
Vargem e Bas’Ilele Malomalo (2015) para compreender como racismo atinge os africanos o brutal assassinato. Foram determinantes o modo de vida indigno e o contexto de
selvageria no qual vivia e transitava. (CORREIO BRASILIENSE, 2022).
vivendo no Brasil e produz efeitos deletérios como evidenciam de maneira fidedigna os
casos de violência analisados nesse artigo.
Mesmo com as críticas, o presidente da Fundação Palmares, criada para promoção
O Brasil é um país multicultural e multirracial, com a segunda população negra do
da cultura afro-brasileira e combate ao racismo, manteve esse posicionamento sobre o
planeta, cerca de 54%, segundo os dados do IBGE. Entretanto, desde o século XIX, quando
caso. O que revela o racismo institucional também no bárbaro assassinato. A eleição do
grande parte dessa população ainda era escravizada, o racismo desenvolveu-se a partir das
atual mandatário da presidência da República, Jair M. Bolsonaro (PL) já apontava desde
camadas abastadas e do próprio Estado. A raça negra, não só ela era concebida a partir
antes de sua eleição para uma política de restrições à entrada de imigrantes e refugia-
dos pressupostos do darwinismo social, da eugenia e de demais teorias raciais vindas da
dos, baseada em racismo e xenofobia. A primeira declaração no ano de 2015, em uma
Europa como inferior à raça branca ou europeia.
entrevista quando era deputado federal:
Não apenas no século XIX, mas antes os negros no Brasil já sofriam, por motivo de Não sei qual é a adesão dos comandantes, mas, caso venham reduzir o efe-
raça, contudo é a partir deste século, que as ideias e teorias racialistas passaram a circular tivo [das Forças Armadas], é menos gente na rua para fazer frente aos marginais
do MST, que são engordados agora por senegaleses, haitianos, iranianos, bolivianos,
por aqui a partir de intelectuais da terra e estrangeiros defendo políticas públicas para e tudo que é escória do mundo, né, e agora tá chegando os sírios também aqui. A
o branqueamento racial31 do país (GUIMARÃES, 2009). Ao mesmo tempo essas ideias escória do mundo tá chegando aqui no nosso Brasil como se nós já não tivéssemos
problemas demais para resolver. Esse é o grande problema que nós podemos ter
racistas defendiam, que o país não conseguiria alcançar o desenvolvimento de nações (GLOBO.COM, 2018).
europeias com um contingente grande de população pertencentes às raças inferiores
(negros e indígenas). A segunda declaração é também quando ele ainda era deputado federal, mas na
Portanto, era necessário eliminar essa população de raças problemáticas. Assim, época em 2018 era candidato à presidência da República.
De cada quatro angolanos que vêm para o Brasil, três deles não são verda-
como também incentivar a vinda de imigrantes brancos e europeus. Ao longo do século deiramente angolanos. Temos uma fronteira muito porosa e por isso somos vítimas
XX medidas, leis e outras políticas racistas foram executadas pelo Estado brasileiro (GUI- também da imigração ilegal. Hoje temos mais de dois milhões de pessoas ilegais no
nosso país e nossas autoridades têm trabalhado para conter essa questão (CORREIO
MARÃES, 2009). BRASILIENSE, 2019).
Como afirma Sílvio de Almeida (2015) o racismo é uma forma sistemática de
preconceito que tem a raça como fundamento. E é manifestado através de práticas
As duas declarações revelam uma adesão a uma agenda anti-imigração em voga
conscientes e inconscientes que produzem desvantagens ou privilégios de acordo
com a raça dos indivíduos. E Almeida (2015) define que discriminação racial são os há anos na Europa e nos Estados Unidos, imersa em racismo e xenofobia. Contudo há um
tratamentos distintos operados para os grupos sociais, a partir do critério racial como detalhe nessa declaração, que são as nacionalidades as quais ele elege como “escória”
estes são identificados tanto pelos indivíduos como pelo Estado. O autor classifica em e “problema”. São nacionalidades da África, Ásia e América Latina. Revelando não ape-
três concepções de racismo: (a) individualista, (b) institucional e a (c) estrutural.
nas xenofobia, mas, sobretudo o racismo contra os imigrantes senegaleses, angolanos e
No primeiro caso, dos angolanos ocorreu um racismo institucional, pois foram as
haitianos. O presidente dissemina não só racismo, como um imaginário social de medo
instituições do Estado, mas não só elas, responsáveis por produzir um processo de cri-
na população, tal como o governo fluminense disseminou contra os angolanos no início
minalização de um grupo social a partir da raça e da nacionalidade. Segundo Almeida
do século XXI.
(2015) as instituições são racistas, pois são hegemonizadas por grupos raciais que as uti-
Enquanto o presidente classifica imigrantes de África e América Latina como “es-
lizam para impor seus objetos políticos e econômicos. Portanto, o Estado dominado por
cória”, durante seu mandato promoveu vistos humanitários para refugiados ucranianos e
pessoas da raça branca é operacionalizado para produzir racismo.
Já no caso do congolês existe tanto a atuação do racismo individualista, por parte afegãos cristãos (PODER 360, 2022). O que revela a discricionariedade da política imigra-
dos cinco agressores, como também pelos demais que observaram a cena sem inter- tória, permeado por critérios racistas, de intolerância religiosa e islamofóbicos. Enquanto,
ferir na brutal agressão. Porém, outras camadas ao observar o caso apontam o racismo alguns são considerados ameaças à segurança, outros são recebidos de portas abertas.
31 A teoria do branqueamento racial no Brasil era principalmente defendida de disseminada por Nesse sentido os africanos em solo brasileiro são vítimas de duas discriminações: a
pensadores e teóricos eugenistas. Estes defendiam a impossibilidade de modernização do Brasil, com
uma grande população negra, indígena e mestiça. Portanto era preciso estimular a vinda de imigrantes primeira pelo fato de serem negros, portanto, sofrem racismo assim como grande parte
europeus, incentivar a miscigenação, proibir a entrada de africanos e demais raças inferiores para a da população brasileira e são vitimados por serem africanos. Um continente, o qual a
longo prazo alcançar uma população branca. O médico e eugenista João Baptista de Lacerda acreditava
se as medidas fossem aplicadas em 100 anos o Brasil teria uma população branca.

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António Raúl Sitoe & Eduardo Gomes da Silva Filho (Org). Fluxos Contemporâneos: Migrações Transnacionais e Direitos Humanos

partir de um imaginário social tem forte conotação negativa que estende também aos que perderam seus entes, mas de toda a sociedade continuará sendo a luta por um país
seus habitantes. Como defendem Alex Vargem e Bas’Ilele Malomalo (2015), os africanos mais democrático, socialmente mais justo e, acima de tudo, que respeito a Constituição
estão em uma categoria abaixo dos negros brasileiros, que já ocupam a base da pirâmide Federal e os direitos humanos.
hierárquica socioeconômica. Dessa forma esse grupo social é vulnerável a violação de
REFERÊNCIAS
direitos humanos, violência estatal e violência física.

CONSIDERAÇÕES FINAIS ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Editora Janadaíra, 2016.

ANTUNES, Ricardo; ALVES, Giovanni. As mutações no mundo do trabalho na era da mun-


As violações dos direitos humanos dos africanos residentes no Brasil é um fenôme- dialização do capital. Educação e Sociedade, Campinas, v. 25, n. 87, p. 335-351, maio/ago.
no corrente, tendo seu início ainda no período colonial com o tráfico de cinco milhões de 2004. DOI: https://doi.org/10.1590/S0101-73302004000200003. Disponível em:https://www.
scielo.br/j/es/a/FSqZN7YDckXnYwfqSWqgGPp/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 16 ago.
escravizados para a América lusitana. Contudo, se nos primeiros séculos os estrangeiros 2022.
oriundos de África não estavam submetidos a direitos como afirma Mbembe (2015). E
desde a instauração da República os imigrantes e brasileiros naturalizados gozam de ci- GUIMARAES, Antônio Sérgio Alfredo. Classes, raças e democracia. 2. ed. rev. São Paulo:
Editora 34, 2012.
dadania e dos direitos plenos como os brasileiros de nascimento. Porém, o racismo ainda
produz uma iniquidade no acesso à cidadania plena. LEITE, Márcia Pereira. Violência, risco e sociabilidade nas margens da cidade: percepções
No período Imperial (1822-1889), na província do Rio de Janeiro uma lei foi aprova- e formas de ação de moradores de favelas cariocas. In: SILVA, Luiz Antonio Machado da
da pelo Assembleia da Província do Rio de Janeiro em 1837, que proibia escravizados e (org.). Vida sob cerco: violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2008. p. 115-142. Acesso em: 16 ago. 2022.
africanos, mesmo os libertos de estudar em escolas públicas primárias. A instauração da
República (1889) não significou uma mudança radical de tratamento para os africanos, NOIRIEL, Gérard (éd.). L’identification: genèse d’un travail d’État. Paris: Belin, 2007.
não à toa o Decreto Presidencial nº 598,32 de 1890 vedava a entrada no país de africanos
PETRUS, Maria Regina. Emigrar de Angola e imigrar no Brasil: jovens imigrantes angolanos
e asiáticos. Há um racismo institucional arraigado contra os africanos desde o século XIX.
no Rio de Janeiro: história(s), trajetórias e redes sociais. 2001. Dissertação (Mestrado em Pla-
Os africanos vieram para o Brasil para fugir da violência, mas deparam-se aqui com nejamento Urbano e Regional) – Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional,
um cenário violento, mas sobretudo discriminatório com negros e africanos. Os casos do Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2001. Disponível em: http://objdig.
passado, à guisa dos angolanos na Maré, não produziu a transformação desse cenário. E ufrj.br/42/teses/538811.pdf. Acesso em: 16 ago. 2022.
o homicídio de Moïses Kabagambe aponta como o Estado brasileiro não empreendeu SANTANA, Jorge Amilcar de Castro. Imigrantes africanos em um conjunto de fave-
políticas públicas sólidas de combate ao racismo, a xenofobia e a promoção da igualdade. las no Rio de Janeiro: redes sociais, disputas, trabalho informal e ilegalismo. 2016. 205f.
Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
E nesse sentido concluo este trabalho com um trecho do artigo da jornalista negra Flávia Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.
Oliveira sobre a temática abordada:
[...] O Rio de Janeiro é território de carnificina permanente. Aqui morre-se a SILVA, Allan. Imigrantes afro-islâmicas na indústria avícola halal brasileira. Dissertação
pauladas à beira-mar (caso de Moïse Kabagambe, de 24 anos); baleado pelo vizinho de mestrado em Geografia Humana, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas-
na volta do trabalho (Durval Teófilo Filho, 38); à queima-roupa ao vender bala na
estação das barcas (Hiago Macedo, 22). Tudo isso num ano em que o segundo mês, -USP, São Paulo, 2013.
fevereiro nem terminou. São homens negros os alvos preferenciais das abordagens
policiais, do cárcere, do extermínio. São predominantemente negras as famílias ví- SILVA, Eliana Sousa. O contexto das práticas policiais nas favelas da Maré: a busca de
timas dos desastres naturais. São dimensões institucional e ambiental da mesma
mazela, o racismo [...] (JORNAL O GLOBO, OLIVEIRA, Flávia, 2022).
novos caminhos a partir de seus protagonistas. 2009. Tese (Doutorado em Serviço Social)
– Departamento de Serviço Social, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio
de Janeiro, 2009. Disponível em: https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/colecao.php?strSe-
A carnificina contra negros e africanos ainda está na ordem do dia, na cidade de
cao=resultado&nrSeq=15620@1. Acesso em: 16 ago. 2022.
São Sebastião do Rio de Janeiro como em todo o país. Contudo, após a pressão popular
e de parte da mídia, a Prefeitura do Rio de Janeiro, resolveu no dia 30 de junho de 2022, SILVA, Luiz Antonio Machado da (org.). Vida sob cerco: violência e rotina nas favelas do
cedeu a concessão de um quiosque à família Kabagambe no Parque Madureira, a fim Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008a.
de tentar reparar a terrível situação que estava posta. SOARES, Luiz Eduardo. Meu casaco de general: 500 dias no front da segurança pública
Contudo, isso jamais consolará a dor dos seus entes queridos, nem desfasará o no Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
preconceito enraizado na sociedade fluminense. Casos assim, infelizmente acontecem
VARGEM, Alex André; MALOMALO, BaséIlele. A imigração africana contemporânea para
no Brasil de forma cotidiana, numa demonstração da forma de agir das elites escravo- o Brasil: entre a violência e o desrespeito aos direitos humanos. In: MALOMALO, Bas’ Ilele;
cratas que ainda se perpetuam no poder. A palavra de ordem não apenas das famílias FONSECA, Dagoberto José; BADI, Mbuyi Kabunda (org). Diáspora africana e migração
na era da globalização: experiências de refúgio, estudo, trabalho. Curitiba: CRV, 2015.
P. 107-128.
32

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Resumen

E
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ecuatoriano la crisis migratoria, ante el incremento de los flujos migratorios
MINISTÉRIO Público do Rio denuncia assassinos de Moïse por homicídio triplamente
de colombianos y venezolanos desde el 2001 al 2021? Esto, con el objetivo de analizar la
qualificado. Brasil de Fato. 22 fev. 2022. Disponível em: https://www.brasildefato.com.
br/2022/02/22/ministerio-publico-do-rio-denuncia-assassinos-de-moise-por-homicidio- gobernanza migratoria ecuatoriana, en el deseo de atenuar los problemas que afronta
-triplamente-qualificado. Acesso em: 16 ago. 2022. las personas que se encuentran en situación de movilidad humana, así también explorar
la evolución de marco jurídico y su aplicación de acuerdo con el desarrollo del fenómeno
CHANCELER da Angola diz que seu país deve continuar parceiro estratégico do País.
Correio Brasiliense. 2 jan. 2019.Disponívelem:https://www.correiobraziliense.com.br/app/ migratorio tanto en Colombia como en Venezuela. EL propósito de esta investigación es
noticia/politica/2019/01/02/interna_politica,728433/chanceler-da-angola-diz-que-seu-pais- exponer el esfuerzo del Ecuador por alcanzar una Gobernanza Migratoria que permita
-deve-continuar-parceiro-estrategi.shtml. Acesso em: 16 ago. 2022.
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moise-kabagambe-fugiu-aos-14-anosdo-congo-para-nao-morrer,5648d29ba316a9ac412e- humana hacia Ecuador, Refugiados colombianos y venezolanos.
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33 Luis Santiago Manzano Terán, Mayor del Ejército de Ecuador. Doctorando en Ciencias Militares en
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la Escuela de Comando y estado Mayor del Ejército de Brasil/Instituto Meira Mattos. Máster en Gerencia en
-por-vagabundos-diz-camargo-sobre-moise/. Acesso em: 16 ago. 2022.
Seguridad y Riesgos en la Universidad de Fuerzas Armadas ESPE-Ecuador. Graduado en Ciencias Militares
en la UFA-ESPE. Área de estudio: Seguridad y Defensa. E mail, santiagomanzanoteran@hotmail.com
VIVI para contar mataram meu filho como matam no meu país. 2 de fevereiro de 2022. 34 Marco Antonio Granja Sánchez, Mayor del Ejército de Ecuador. Doctorando en Ciencias Militares
Disponível em: https://oglobo.globo.com/epoca/noticia/2022/02/vivi-para-contar-mataram- en la Escuela de Comando y estado Mayor del Ejército de Brasil/Instituto Meira Mattos. Máster en Estudios
-meu-filho-aqui-como-matam-em-meu-pais-1-25375606.ghtml. Acesso em: 16 ago. 2022. Avanzados de Terrorismo y Contraterrorismo en la Universidad de la RIOJA-España. Máster en Tecnologías
para la Gestión y Práctica docente en la Pontificia Universidad Católica del Ecuador. Graduado en Ciencias
Militares en la UFA-ESPE. Área de estudio: Seguridad y Defensa. E mail, marquito8080@gmail.com

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António Raúl Sitoe & Eduardo Gomes da Silva Filho (Org). Fluxos Contemporâneos: Migrações Transnacionais e Direitos Humanos

1 METODOLOGÍA Este concepto incurre en que la responsabilidad sobre la gestión migratoria nacio-
nal e internacional recae directamente sobre los Estados, pero también hace partícipe
Esta investigación es de carácter cualitativa, mediante el empleo del método de a otros actores que interactúan en la dinámica de participación estado sociedad como;
estudio de caso a través de la recolección de datos de fuentes primarias y secundarias, ciudadanos, migrantes, ONGs, sector privado, organizaciones religiosas, organizaciones
así como cruce datos entre las cifras del Ministerio de Relaciones Exteriores y Movilidad internacionales, diferentes gremios, entre otros.
Humana y Organizaciones No Gubernamentales.
El presente trabajo consta de tres partes; iniciaremos plasmando algunos conceptos 2.3 Migración
como; gobernabilidad, gobernanza migratoria, migración. En una segunda parte anali-
zaremos la evolución de la gobernanza migratorias en relación con el marco jurídico y La migración es un fenómeno mundial que se encuentra intrínseco en las socie-
finalmente, como se ha desarrollado la migración colombiana y venezolana en el Ecuador dades y con la globalización se ha vuelto más visible ya que no solo afecta a quienes se
y como es evaluado el Ecuador en lo referente a gobernanza migratoria. desplazan sino a las sociedades que acogen, reestructurando la economía, la seguridad, la
Como veremos en este trabajo investigativo, las causas que motivan el flujo migra- identidad y soberanía nacional, así como las relaciones regionales (HAAS e al., 2019, p. xiii).
torio de colombianos y venezolanos hacia el Ecuador son de distinta índole y la respuesta La Organización Internacional para las Migraciones (OIM) define a la migración
estatal ha ido adaptándose ante las diferentes situaciones que se han presentado a través como:
“Movimiento de personas fuera de su lugar de residencia habitual, ya sea
de los años. Esta experiencia ecuatoriana como país de acogida y tránsito de migrantes a través de una frontera internacional o dentro de un país”
han generado buenas prácticas y en otros casos, aprendizajes que deben ser corregidos
por los diferentes órganos estatales. Este trabajo es un punto de partida para futuras Así también define al Migrante como:
investigaciones para evaluar la respuesta estatal ate la situación de movilidad humana. “Término genérico no definido en el derecho internacional que, por uso
común, designa a toda persona que se traslada fuera de su lugar de residencia
habitual, ya sea dentro de un país o a través de una frontera internacional, de
2 REVISANDO ALGUNOS CONCEPTOS manera temporal o permanente, y por diversas razones…” (IOM, 2019).

2.1 Gobernabilidad Algunos autores como Pozo (2005), Bendixen et al. (2005), Orozco et al. (2005), Sua-
rez (2008), OIM (2013), entre otros (DURAND; LUSSI, 2015), presentan un sin número de
Según Aguilar 2010, la gobernabilidad es de estricta responsabilidad del Estado y causas convergentes entre sí, por las que se produce la migración, de las cuales se han
tiene que ver con su capacidad para resolver los problemas (AGUILAR, 2010, p. 24). plasmado en esta investigación las que se consideran principales, teniendo un efecto
Para Carlos Montero 2012, la Gobernabilidad es “la capacidad de gobernar”, lo que causal necesario, pero no suficiente (Gráfico 1).
puede representarse como la aplicación del poder a través de la función gubernamental,
Gráfico 1. Causalidad de la Migración
aunque la gobernabilidad se la relaciona con otros conceptos como; estabilidad, orden
y crisis, estos funcionan como condiciones necesarias pero no suficientes (MONTERO
BAGATELLA, 2012, p. 11).
Podríamos indicar que la gobernabilidad es la forma como el Estado administra,
gestiona o soluciona problemas dentro de su competencia, para alcanzar una estabilidad
que permita al gobierno implementar políticas y estrategias dentro de cualquier aspecto.

2.2 Gobernanza migratoria

Según la OIM al presentar la concepción de “gobernanza de la migración” señala


que es eficiente cuando se cumple con las normas internacionales y se protegen los de-
rechos humanos, por lo que la define como: Fuente. Autores
“…conjuntos de normas jurídicas, leyes, reglamentos, políticas y tradiciones,
así como de estructuras organizativas (subnacionales, nacionales, regionales e Estas causas pueden generar grandes debates según la perspectiva teórica con
internacionales), y procesos pertinentes que regulan y determinan la actuación
de los Estados en respuesta a la migración en todas sus formas, abordando los la que sea analizada, ya que generalizar la migración, buscar un patrón exacto o una
derechos y obligaciones y fomentando la cooperación internacional” (OIM, 2019, fórmula precisa para establecer causas comunes, es muy complicado y podría decirse
p. 103)

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António Raúl Sitoe & Eduardo Gomes da Silva Filho (Org). Fluxos Contemporâneos: Migrações Transnacionais e Direitos Humanos

que hasta imposible, por lo que para entender la gobernanza migratoria de un estado, a la no discriminación por condiciones migratorias, dando un tratamiento especial a la
es necesario conocer las teorías de la migración y entender todos los puntos de vista migración enfocado hacia las personas migrantes y sus familias para que puedan ejercer
posibles para establecer una prospectiva amplia de lo que el migrante busca, necesita y sus derechos y cumplir con sus deberes (CASTILLO, 2018).
desea alcanzar en otro país. La Constitución de la República del Ecuador (CRE) promulgada en el 2008, es la
Sin afán de adentrarnos en las teorías de la movilidad humana tenemos varias con vigésima que ha tenido el país y es considerada como garantista, cambiando el modelo
diferentes ópticas como las de enfoque económico (la teoría neoclásica, la teoría de la de “Estado Social” a “Estado Constitucional de derechos y justicia”, fortalecida en términos
nueva economía de las migraciones, la teoría de la migración familiar y de la selectividad de preservación de los derechos humanos, ciudadanía universal y movilidad humana, de
de la migración, la teoría del doble mercado de trabajo y a world systems theory) y con esta última registra cincuenta y ocho artículos, siendo una de sus principales caracterís-
enfoque clásico de las principales disciplinas afines (enfoque de perspectiva top-down y ticas la regulación de los procesos migratorios, tratando la movilidad humana en siete
bottom-up, enfoque de procesualidad, enfoque por mosaico y estudios por temas emer- de sus nueve títulos y enfoca una sección específica dentro del Título de Derechos, posi-
gentes), cada una con sus respectivos representantes que contraponen o coadyuvan a cionando al país como un ejemplo de respeto a los derechos humanos de las personas
otras teorías para entender mejor la movilidad humana (DURAND; LUSSI, 2015). en movilidad humana, así también como una de las más avanzadas de la región, esto le
A pesar que las causas de la migración al parecer están consideradas en su tota- permite abarcar la seguridad del Estado en forma integral, buscando que el migrante
lidad, la OIM 2019, en lugar de determinar causas, establece dos factores; de impulso y pueda aportar al desarrollo del Ecuador como país de acogida (JURADO, 2020).
atracción , a los que atribuye las razones por lo que se dan los movimientos migratorios Los cambios que se realizan en la CRE son importantes en todo aspecto, pero para
desde, entre y hacia américa latina como son; (1) La exclusión social y discriminación, (2) el presente trabajo nos enfocaremos en el tema de la migración venezolana y colombia-
Crisis económica, (3) Inequidad, pobreza y desempleo, y (4) Desastres ambientales (OIM, na, exclusivamente sobre el área de extranjeros en el Ecuador, siendo así que en la actual
2019, p. 89) constitución otorga a las personas extranjeras que se encuentran en el país, los mismos
En el caso de las personas solicitantes de asilo y refugiados las razones para salir de derechos y deberes que los ciudadanos ecuatorianos como lo establece en el Art. 9 donde
literalmente dice:
su país son para salvaguardar su propia seguridad o para proteger su integridad y digni- “Las personas extranjeras que se encuentren en el territorio ecua-
dad y la de sus familias, huyendo de la persecución ya sea por violaciones a los derechos toriano tendrán los mismos derechos y deberes que las ecuatorianas, de
acuerdo con la Constitución”
humanos, conflicto armado, violencia de pandillas en su mayoría debido a las actuaciones
de agentes no estatales (OIM, 2021a) Tabla 1. Garantías constitucionales
Art. Objeto
2.4 Evolución de la Gobernanza migratoria en relación con el marco jurídico
11. Se establece que nadie podrá ser discriminado, entre otros, por
Antiguamente el Ecuador contaba con una legislación que databa del año 1967 su condición migratoria o lugar de nacimiento……
para la regularización de los flujos migratorios en país, en la cual no se contaba con una 40. se reconoce el derecho que tienen las personas a migrar y prohíbe
política específica sobre a población migrante y mucho menos para la población extran- la consideración de ilegal al ser humano por su condición migratoria
jera o refugiada, esta ley fue modificada en la Constitución de 1998 pero aún con ciertas 41. Reconoce los derechos de asilo y refugio de acuerdo con la ley y
falencias, a partir del año 2000, donde inicia la migración forzada de Colombianos en su los instrumentos internacionales de derechos humanos.
gran mayoría por causa del conflicto entre estado y guerrillas, se implementan iniciativas 42. Prohíbe todo desplazamiento arbitrario y establece las garantías
presentadas en la Comunidad Andina, presencia de ONG´s y se crea la subsecretaría de constitucionales para las personas que hayan sido desplazadas,
quienes tendrán derecho a recibir protección y asistencia humanitaria
asuntos consulares y migratorios. En el 2001 se Crea el Plan Nacional de Migrantes, en el
emergente de las autoridades……
2003 entró en vigor la Convención Internacional sobre la Protección de los Derechos de
66. Reconoce y garantiza “el derecho a transitar libremente por el
todos los Trabajadores Migratorios y de sus Familiares, reconociendo los derechos jurídi-
territorio nacional y a escoger su residencia, así como a entrar y salir
cos de los migrantes y sus familias (HERRERA e colab, 2011).
libremente del país.
Durante el gobierno del Eco. Rafael Correa (2007-2017), en el año 2008 se expide la
392. Determina la responsabilidad del Estado ecuatoriano de velar
nueva Constitución de la República del Ecuador, la cual cuenta con avances normativos
por los derechos de las personas en movilidad humana, mediante el
en la preservación de derechos humanos y en el tema migratorio, modificando el con-
diseño, adopción, ejecución y evaluación de políticas……
cepto de movilidad humana y la relación persona-territorio, promoviendo el derecho a Fuente. Constitución del Ecuador, 2008
circular libremente tanto a nivel nacional como regional, planteando la búsqueda equi-
A partir del 2008 los flujos migratorios fueron en aumento, generando un nuevo
librada de soluciones a la situación migratoria, donde garantiza el derecho a migrar y
enfoque en el tema migratorio, centrado en los derechos humanos que vela por la garantía

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António Raúl Sitoe & Eduardo Gomes da Silva Filho (Org). Fluxos Contemporâneos: Migrações Transnacionais e Direitos Humanos

y protección de los mismos, en donde los tratados internacionales exigen su estricto 2018)8,21]]},”issued”:{“date-parts”:[[“2018”]]}}}],”schema”:”https://github.com/citation-style-
cumplimiento anteponiéndose al concepto de soberanía, dando primordial importancia -language/schema/raw/master/csl-citation.json”} , hasta julio del 2022 con Brasil en turno
a la naturaleza del ser y de la persona, así también se tiene el enfoque securitista, donde de la Presidencia se han realizado ocho reuniones.
para cualquier Estado toda presencia extranjera en su territorio representa una amenaza El 1 de junio de 2022, el presidente en turno Guillermo Lasso emite el decreto N°
o riesgo, generando la creación de una agenda migratoria (Barbieri e Colab, 2020) 436 en el que busca regularizar a las personas de nacionalidad venezolana con situación
El Ecuador cuenta con tratados y convenios a los cuales está adscrito en este tema, migratoria irregular para legitimar su actividad económica y personal. (PRESIDENCIA DE
así como también la colaboración de organizaciones internacionales como la Organización LA REPÚBLICA, 2022), la ONU para los Refugiados, y la (OIM) acogieron con beneplácito
Internacional para las Migraciones (OIM), Grupo Mundial sobre Migración (GMG), ACNUR, la iniciativa de regularización ya que el Ecuador alberga el tercer número más alto de
La Convención Internacional sobre la Protección de los Derechos de todos los Trabajado- personas refugiadas y migrantes de Venezuela a nivel mundial (ACNUR, 2022).
res Migrantes y de sus Familiares de las Naciones Unidas, la Organización Internacional
del Trabajo (OIT), entre otras (CASTILLO, 2018). 2.5 La migración colombiana en el Ecuador
En el mes de febrero del 2017, se aprueba la Ley Orgánica de Movilidad Humana,
en esta ley se busca la participación de todos los actores sociales y estatales, así como Encontrar un solo factor para explicar la migración colombiana a finales de la década
la solución a problemas que se fueron presentando desde la promulgación de la CRE de los años noventa es complejo y requerirá un estudio desde varias ópticas para expli-
operacionalizando el principio de la ciudadanía universal y fortaleciendo la Gobernanza carlo. Adriana González Gil, doctora especializada en América Latina Contemporánea,
migratoria en el Ecuador (OEA, 2017). Actualmente esta ley ha tenido tres modificaciones, mantiene que a partir de la década de los años ochenta los intereses públicos queda-
la última fue expuesta en el Tercer Suplemento del mes de febrero del 2021 (Ley Orgánica ron subordinados ante el interés de particulares donde el cultivo de coca llegó a ser el
de Movilidad Humana, 2021). generador económico en varios estados de Colombia (2015, p. 4). Las disputas por estos
Así también en el mes de agosto del 2017 se expide el reglamento a la Ley Orgánica territorios entre grupos ilegales armados (guerrillas), carteles del narcotráfico y el control
de Movilidad Humana mediante decreto ejecutivo N° 111, el mismo que hasta la presen- por parte de la fuerza pública, colocaron a la población civil en medio de un escenario de
te fecha ha tenido una modificación en abril del 2018 (GARCÉS, 2017). Este reglamento violencia generalizada que derivó en el desplazamiento forzado hacia zonas más seguras.
consta de tres libros; el primero sobre las personas en movilidad, donde designa la au- Solo entre 1995 y 1999 cerca de 39.900 colombianos se desplazaron a países fronterizos
toridad competente a movilidad humana, regula la condición de las personas, establece como: Venezuela 19300 (48%), Ecuador 12700 (33%) y Panamá 7900 (19%) (GONZALEZ GIL,
procedimientos de naturalización, establece mecanismos de protección a víctimas de 2015, p. 13).
trata de personas, tráfico ilícito de migrantes, entre otros. El segundo libro trata sobre los La migración colombiana hacia el Ecuador, se intensifica en los años 2001 a 2003
documentos de viaje, procedimientos de expedición y legalización. El tercer libro trata producto de las fumigaciones a las plantaciones de coca del gobierno colombiano, como
sobre el control migratorio, determinando la autoridad rectora, procedimientos de ingreso parte del Plan Colombia (CARREÑO, 2012, p. 7). De acuerdo con ACNUR, la violencia inter-
y salida, así como también de expulsión y deportación entre otros. na en Colombia ocasionó que cerca de 300.000 colombianos busquen refugio en países
En mayo del 2018 se crea el Plan Nacional de Movilidad Humana y con él, su órgano vecinos, donde Ecuador se ha convertido en uno de los países que mayor número de
ejecutor que es la Mesa Nacional de Movilidad Humana, el cual tiene su principal objeti- refugiados ha aceptado (RIAÑO e colab., 2008, p. 9).
vo, “Incrementar las atenciones a las personas en movilidad humana para la protección De acuerdo con los números del Ministerio de Relaciones Exteriores y Movilidad
de sus derechos”, esta Mesa reúne actores estatales como privados en la búsqueda de Humana del Ecuador, las puertas de ingreso para colombianos en busca de refugio han
soluciones a los problemas de asistencia de los migrantes así como el establecimiento de sido dos: la primera y más importante es el puente Rumichaca que une el departamen-
políticas que agiliten los canales correspondientes en la regularización de los migrantes to de Nariño en Colombia y la Provincia de Carchi en Ecuador. La segunda, para Gisselle
en la obtención un seguro de salud, trabajo y acceso a muchos otros beneficios que sus Jácome (2021, p. 6) son más de 100 pasos clandestinos que se abren en 175 km de frontera
derechos le otorgan (Plan Nacional de Movilidad Humana, 2018). compartida en el departamento de Putumayo (Colombia) y las Provincias de Sucumbíos
En septiembre de 2018 por iniciativa del gobierno, se reunieron representantes de 13 y Orellana en Ecuador. Hasta septiembre de 2021, Ecuador ha otorgado la calidad de
países en Quito, el propósito fue articular estrategias para atender la crisis de refugiados refugiados a 69.248 colombianos aproximadamente (MREMH, 2021, p. 1) y hasta 2019 se
y migrantes venezolanos, ya que los flujos migratorios se incrementaban y la capacidad registraron 191.537 inmigrantes colombianos en territorio Ecuatoriano (“Ecuador - Inmi-
de respuesta de los países estaba siendo desbordada, de esta manera se dio origen al gración 2019”, 2019), también podemos indicar que el Ecuador alberga a por lo menos tres
Proceso de Quito, en esa reunión, Argentina, Brasil, Chile, Colombia, Costa Rica, Ecuador, generaciones de Colombianos nacidos en el país (CANCILLERÍA DE COLOMBIA, 2021, p. 42).
México, Panamá, Paraguay, Perú y Uruguay firmaron la “Declaración de Quito Sobre De acuerdo a las leyes de migración de Ravastein, la migración de colombianos hacia
Movilidad Humana de Ciudadanos Venezolanos en la Región” (PROCESO DE QUITO, el Ecuador responde a una migración de corta distancia, internacional (GEORG, 2017, p.

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António Raúl Sitoe & Eduardo Gomes da Silva Filho (Org). Fluxos Contemporâneos: Migrações Transnacionais e Direitos Humanos

4). De igual manera basándonos en la clasificación de la migración de José Cortizo esta Es en esta tercera ola es donde Ecuador comienza a albergar a migrantes vene-
migración es permanente, no económica, forzada por la violencia e inseguridad quien zolanos que buscan mejores días para ellos y sus familias. Ecuador volvió a ser atractivo
debe migrar con su grupo familiar y que con la ayuda de organismos internacionales para migrantes por sus leyes que despenalizan la migración ilegal e introducción de
pueda tener acceso a beneficios en su calidad de refugiado (2005, p. 7). programas de regularización. De acuerdo con la ACNUR y la Fundación Refugiados por
Para Angela Carreño el 84 % de los refugiados colombianos piensan vivir en Ecuador Venezuela (2021, p. 1) existen alrededor de 6,11 millones de migrantes venezolanos por el
por la seguridad y estabilidad que encontraron, pese a las difíciles condiciones econó- mundo, de los cuales 5,06 millones son migrantes y refugiados venezolanos en América
micas y un 60 % de ellos, han buscado vivir en el anonimato en las periferias urbanas ya Latina y El Caribe, 432.900 se encuentran en Ecuador (Ver cuadro 2: Evolución de la mi-
que tienen mejores condiciones a acceder a trabajo con la tranquilidad y la seguridad gración venezolana en América Latina).
que en su país no encontraron (2012, p. 2).
En una entrevista de la agencia de noticias DW, efectuada en el año 2016 a Juan Cuadro 2. Evolución de la migración venezolana en América Latina
Aguilar, refugiado colombiano en Ecuador, este indica que, pese a la firma del acuerdo
de paz entre el Gobierno Colombiano y las FARC, él no piensa volver a Colombia. Él es
enfático en manifestar que el acuerdo no necesariamente representa la disminución de
la violencia y que más del 80% de refugiados piensan continuar su vida en Ecuador (2016,
parag. 7).

2.6 La migración venezolana hacia el Ecuador

Luis León Ganatios (1999, p. 5) manifiesta que la migración venezolana comienza


con la victoria en las urnas de Hugo Chávez Frías en 1998, quien llega al Palacio de Mi-
raflores, con la promesa de modificar la constitución de 1961 a través de una Asamblea
Nacional Constituyente que permita restar la hegemonía a los partidos políticos más re- Fuente. R4V (2021).
presentativos de ese entonces. De esta forma los primeros flujos migratorios se dirigieron
a Colombia y Estados Unidos por tres motivos principales: la necesidad de buscar nuevas Estas cifras se mantienen en constante cambio, hasta abril del 2022 se registraron
oportunidades, la inestabilidad política y la inseguridad personal. 513.903 migrantes y refugiados (ACNUR, 2022), el perfil del migrante venezolano es dife-
De acuerdo con Leonardo Vivas y Tomás Páez, (2017, p. 5) la migración venezolana rente al colombiano, pues la mayor parte de las personas no buscan refugio, la migración
la clasifican en 3 olas. La primera desde el 2000 al 2012, la segunda 2012-2015 y la tercera en su gran mayoría es voluntaria, de carácter económica producto de la necesidad de
desde 2015 a la actualidad. mejores condiciones de vida. Por lo general la realiza en solitario y una vez estabilizado
En la primera ola los migrantes venezolanos los denomina “Buscadores de opor- comienza a enviar dinero para traer a su entorno familiar (VIVAS; PAEZ, 2017, p. 11).
tunidades”, son ciudadanos de ingresos medios que encontraron en Estados Unidos y
el Suroeste de Europa oportunidades de prosperar con inversiones y nuevos emprendi- 2.7 Evaluación de la Gobernanza Migratoria del Ecuador
mientos.
La segunda ola responde a la caída del precio del petróleo desde sus históricos más En el 2015 la OIM, elaboró un Marco de Gobernanza sobre la Migración (MiGOF), que
altos, junto con la carestía de materia prima donde se comienza a visibilizar la falta de permite a los Estados establecer los elementos primordiales para la creación de “políticas
alimentos y se elevan los niveles de inseguridad. En esta ola migratoria existe una mezcla migratorias bien gestionadas”, basados en 90 indicadores agrupados en 6 dimensiones,
de personas de ingresos medios junto con gente de bajos recursos que buscan en los para evaluar las políticas migratorias de los países y promover el dialogo y así impulsar una
países vecinos (Colombia, Panamá y Puerto Rico) mejores condiciones de vida. adecuada gestión de la migración (OIM, 2020). El Ecuador ha sido evaluado en el año 2018
En la tercera ola, luego de la muerte de Hugo Chávez y la llegada de Nicolás Ma- y 2021, también en la última evaluación incorpora la evaluación a políticas y respuestas al
duro al poder, la migración venezolana aumentó exponencialmente al agravarse la crisis COVID-19 con enfoque a la gobernanza de la migración (OIM, 2021b).
económica e inseguridad. A esta ola, Leonardo Vivas y Tomás Páez 2017, la denominan
CONCLUSIÓN
“Migración de la Desesperación” y el extracto social corresponde a personas de bajos re-
cursos que buscaron en los países de la región una ventana de escape desesperada para La migración venezolana y colombiana hacia el Ecuador han generado cambios en
brindar una esperanza a sus familias (VIVAS; PAEZ, 2017, p. 26). el contexto nacional y regional ya que con el pasar del tiempo se incrementa el número

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António Raúl Sitoe & Eduardo Gomes da Silva Filho (Org). Fluxos Contemporâneos: Migrações Transnacionais e Direitos Humanos

de migrantes que buscan acogida, por lo que el Ecuador en la búsqueda de precautelar JÁCOME, Giselle. Ecuador: Frontera pasos irregulares. Disponível em: https://www.voz-
deamerica.com/a/ecuador-frontera-pasos-irregulares/6251636.html.
los Derechos Humanos de las personas en movilidad humana ha modificado sus leyes,
suscrito a convenios y tratados internacionales con la finalidad de asistirlos y brindar una JURADO, Juan Francisco Simbaña. LA MIGRACIÓN VENEZOLANA Y SU INCIDENCIA EN
LA SEGURIDAD DEL ESTADO ECUATORIANO. p. 16, 2020.
solución legalizada y duradera a sus problemas migratorios.
El Ecuador continúa brindando ayuda a los refugiados de varios países, Venezuela LEÓN, Luis. reciente de movilización social en Venezuela 1999 – 2009. Clío América, n. 7,
p. 13, 1999.
y Colombia especialmente, cumpliendo así con los tratados y acuerdos internacionales
donde es signatario. Su ayuda ha sido fundamental para que las personas en estado de MINISTERIO DE RELACIONES EXTERIORES Y MOVILIDAD HUMANA. Infografía Estadística
de Refugiados-histórico (hasta sept-2021).
movilidad humana que huyen por la violencia y la amenaza se establezcan en el Ecuador
con ayuda económica y social. Son más de 4000 solicitudes que actualmente se están MONTERO BAGATELLA, Juan Carlos. Gobernabilidad: Validez/Invalidez o moda del con-
cepto. Revista mexicana de ciencias políticas y sociales, v. 57, n. 216, p. 09–23, dez 2012.
tramitando para otorgar la calidad de refugiados, sin embargo, esto demanda ciertos
requisitos que deben cumplir los solicitantes oportunamente. OEA. OEA - Organización de los Estados Americanos: Democracia para la paz, la segu-
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António Raúl Sitoe & Eduardo Gomes da Silva Filho (Org). Fluxos Contemporâneos: Migrações Transnacionais e Direitos Humanos

5 A era dos muros vs. Globalização:


Por uma migração segura, ordenada e
regular
Murilo Seri Fagundes35

1 INTRODUÇÃO

E
ste é o início de um longo estudo sobre o crescente aumento de muros que
atualmente são vistos no mundo, mesmo com a globalização fazendo cada
vez mais parte da humanidade. Este é um fator emblemático que os seres
humanos precisam resolver o mais rápido possível. Não podemos deixar de ser solidários
com os migrantes que sofrem graves violações dos direitos humanos e que precisam de
uma circulação mais fraterna entre os Estados por onde passam. Para isso abordamos as
concepções sobre a sociedade cosmopolita que compreende o cidadão do mundo, sendo
assim está além das fronteiras traçadas pelos Estados e a sociedade construtivista enten-
de que o cidadão é uma construção social do mundo. Para o presente artigo foi utilizada
a metodologia bibliográfica de coleta dados em sites de Organizações Internacionais,
Protocolos, Declarações e Tratados, através dos descritores: fronteiras, livre circulação
de pessoas, direitos humanos, pacto global para migração, declaração para migração e
circulação de pessoas, sociedade internacional, cosmopolita e construtivista. O objetivo
do presente estudo é levantar o questionamento da necessidade do levantamento dos
muros em uma era globalizada.
O mundo teve um grande período de globalização, grande fluxo migratório de
pessoas, fronteiras e muros deixaram de existir, como por exemplo o muro de Berlim.
O crescimento social era latente aos olhos e foram surgindo concepções que o mundo
viveria em uma grande comunidade internacional. Nos últimos anos o mundo viu um
crescente fluxo migratório por decorrência de conflitos internacionais, internos e desas-
tres naturais ou causados pelo homem. Com isso os Estados se viram obrigados a voltar
a usar de uma premissa antiga dentro do Sistema Internacional, os muros, adotando um
discurso nacionalista e anti-imigração.
Por isso as Organizações Internacionais e os Estados, viram a necessidade de criar
um instrumento internacional para a migração segura, ordenada e regular, partindo do
pressuposto que todos os seres humanos que migram fazem isso de forma regular, sem

35 Mestrando em Relações Internacionais pela Universidade Federal do ABC (UFABC). Especialista


em Direito Internacional pelo Centro de Estudos em Direito e Negócios (CEDIN). Membro do Grupo
de Pesquisa Diálogo Ambiental, Constitucional e Internacional, cadastrado no CNPQ e certificado
pela Universidade de Fortaleza, na linha de pesquisa Direitos Humanos, Estado e Cidadania. Membro
no Grupo de Estudos sobre Migração Ambiental do Observatório Latino-americano sobre Mobilidade
Humana, Mudança Climática e Desastres (MOVE-LAM) da Universidade Para a Paz da Organização das
Nações Unidas; Membro do Núcleo de Estudos de Direito Internacional de Ribeirão Preto (NEDIRP) no
Editorial e Grupo de Estudo em Direito Internacional dos Direitos Humanos. Lattes: http://lattes.cnpq.
br/4570021715256102; ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6535-5417. E-mail: murilopfagundes@gmail.
com / murilo.fagundes@ufabc.edu.br.

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pensar nas pessoas que deixam os seus Estados por guerras, perseguições e que preci- Para a Assembleia das Nações Unidas a necessidade do ser humano de migrar
sam sair o mais rápido possível para que não sejam mortos. Entender essas situações é demonstra seu desenvolvimento pois, este não pode ficar preso em um lugar em que a
de extrema importância para a proteção dos seres humanos. sua vida corre algum tipo de perigo imediato (DNIRM, 2016, p. 01):
Desde os primeiros tempos, a humanidade está em movimento. Algumas pessoas
Fazer o diálogo entre os conceitos de globalização, muros, sociedade cosmopolita mudam em busca de novas oportunidades e horizontes econômicos. Outros se mo-
e construtivista é importante para entender que o mundo passa por uma transformação vem para escapar armados conflito, pobreza, insegurança alimentar, perseguição,
terrorismo ou violações dos direitos humanos e abusos. Outros ainda o fazem em
e que isso não vai parar por causa dos Estados, eles precisam acompanhar a evolução resposta aos efeitos adversos das mudanças climáticas, desastres naturais (alguns
dos quais podem estar ligados às mudanças climáticas), ou outros fatores ambientais.
da sociedade. Muitos se mudam, de fato, por uma combinação dessas razões (tradução do autor).
Neste contexto, o problema da pesquisa é analisar a importância da Declaração de
Nova Iorque para Refúgio e Migração e o Pacto Global para Migração Segura, Ordenada Visando a necessidade de se pensar ao longo dos anos na questão da migração
e Regular no contexto da nova Era dos Muros. segura, ordenada e regular, a Resolução de 19 de setembro de 2016 (A / 71 / L.1), aderiu em
O objetivo geral é analisar o diálogo crítico entre os conceitos de globalização e a seus objetivos os tópicos da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável “incluin-
nova era dos muros, que cria uma instabilidade na busca pela proteção do indivíduo e do através da implementação de políticas de migração planejadas e bem gerenciadas”
de sua família, “numa sociedade cosmopolita”, globalizada que ultimamente se vê numa (DNIRM, 2016, p. 04):
crescente onda de construção de muros (fronteiras). Tomamos nota do relatório do Secretário-Geral, intitulado “Em segurança e digni-
dade: abordando grandes movimentos de refugiados e migrantes”, elaborado de
Os objetivos específicos são: (i) analisar o direito de migrar pela busca de segurança; acordo com a decisão da Assembleia Geral 70/539 de 22 de dezembro de 2015, em
preparação para esta alta reunião de nível. Embora reconhecendo que as seguintes
(ii) identificar os problemas causados pela construção dos muros na questão da migra- conferências não tiveram um resultado intergovernamental acordado ou foram
ção; (iii) Compreender como as Teorias Cosmopolita e Construtivistas, podem auxiliar na de alcance regional, tomamos nota da Cúpula Humanitária Mundial, realizada em
Istambul, Turquia, em 23 e 24 de maio de 2016, a reunião de alto nível sobre respon-
desconstrução dessa nova Era dos Muros. sabilidade global -partilha das vias de admissão de refugiados sírios, convocada pelo
A metodologia é de análise documental e histórica, buscando explorar a questão do Gabinete do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados a 3 de março
de 2016, a conferência “Apoiando a Síria e a Região”, realizada em Londres a 4 de
ressurgimento de novos muros na atual sociedade globalizada. A base teórica cinge-se fevereiro de 2016, e o compromisso conferência sobre refugiados somalis, realizada
em Bruxelas em 21 de outubro de 2015. Embora reconheça que as seguintes iniciati-
às teorias das relações internacionais, direito internacional. vas são de natureza regional e se aplicam apenas a esses países participando neles,
O escopo temporal das referências bibliográficas da pesquisa é de 1951 a 2021. O tomamos nota de iniciativas regionais, como o Processo de Bali sobre Contrabando
de Pessoas, Tráfico de Pessoas e Crimes Transnacionais Relacionados, a Iniciativa
espaço geográfico é amplo por causa do problema abordado na nova era dos muros da Rota de Migração União Europeia-Chifre da África e a Iniciativa União Africana
- Chifre da África sobre Tráfico de Pessoas e Contrabando de Migrantes (Processo
entre os Estados, notadamente, entre os países do Continente Europeu e os Estados que de Cartum), Processo de Rabat, Plano de Ação de Valletta e Declaração e Plano de
fazem parte do Bloco da União Europeia, esta situação percorre espaços antes integrados Ação do Brasil (tradução do autor).

e de livre circulação de pessoas, mas em pleno ano de 2022, vem sofrendo mudanças
significativas. A preocupação com os migrantes é um ponto base desta Declaração (DNIRM, 2016,
Quanto aos resultados esperados, o autor apresenta a importância tanto da Decla- p. 06), mesmo que ela não tenha vínculo obrigatório com os Estados partes da Organi-
ração de Nova Iorque de 2016 e o Pacto Global de 2018, e ninguém pode ser proibido de zação das Nações Unidas (ONU). Ela traz iniciativas regionais como caminhos a serem
migrar por qualquer violação de direitos humanos sofrido em seu Estado de origem ou seguidos como vimos na citação acima. Outro ponto importante é a preocupação sobre
até mesmo em outros por causa de sua religião, nacionalidade, filiação política, grupo o motivo do início da migração, a segurança durante a viagem e pós chegada ao local
social e etnia. Ainda acrescento que por motivos ambientais por causa das mudanças de acolhimento.
[...] proteger os direitos humanos e as liberdades fundamentais de todas as pessoas,
climáticas também estão incluídas nesse artigo. em trânsito e após a chegada. Ressaltamos a importância de abordar as necessida-
des imediatas de pessoas que foram expostas a problemas físicos ou psicológicos
abuso durante o trânsito após a sua chegada, sem discriminação e sem consideração
2 A DECLARAÇÃO DE NOVA IORQUE PARA REFÚGIO E MIGRAÇÃO - (DNIRM) ao status legal ou migratório ou meio de transporte[...] (tradução do autor).

Para o Stuart Hall (2003), a migração faz parte da história dos seres humanos em A proteção dos migrantes é o principal ponto da Declaração de Nova Iorque para
todos os seus aspectos: Refúgio e Migração. No atual cenário mundial há deslocamentos forçados por vários mo-
[...] os movimentos migratórios sempre foram uma constante na história, sendo que tivos e a discriminação ao outro não pode ser motivo de não acolhimento, de xenofobia,
as migrações são parte da realidade cotidiana das diferentes sociedades devido a
diversos fatores que levam as pessoas a se mudarem, tais como “desastres natu- de abuso e atos degradantes contra os migrantes.
rais, alterações ecológicas e climáticas, guerras, conquistas, exploração do trabalho,
colonização, escravidão, semiescravidão, repressão política, guerra civil e subdesen- Os diplomas internacionais ratificados (Convenção de 1951 Relativa ao Estatuto
volvimento econômico. dos Refugiados e o Protocolo de 1967), pelos Estados são de suma importância para que
haja uma garantia fundamental para a proteção internacional. Temos ainda o Direito

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António Raúl Sitoe & Eduardo Gomes da Silva Filho (Org). Fluxos Contemporâneos: Migrações Transnacionais e Direitos Humanos

Internacional dos Refugiados, o Direito Internacional dos Direitos Humanos e o Direito O PGMSOR busca que todos possam migrar de forma segura e ordenada, mas
Internacional Humanitário, que formam uma maior proteção mais ampla aos refugiados. sabemos que isso não ocorre em situações de conflitos locais e internacionais. Com os
A Declaração de Nova Iorque para Refúgio e Migração é um conjunto de boas ações fluxos migratórios atuais podemos perceber que eles ocorrem de forma já enunciada,
coletadas de diferentes locais do mundo a fim de melhorar a acolhida dos refugiados e mas que os Estados tendem a fechar os olhos para eles.
migrantes em seus Estados de acolhimento. Com a resolução, começaram as negocia- Para o PGMSOR, (2018, p. 05):
A migração nunca deve ser um ato desesperado. Quando for esse o caso, nós de-
ções intergovernamentais para o desenvolvimento do Pacto Global para Migração Se- vemos cooperar a fim de atender às necessidades dos migrantes em uma situação
gura, Ordenada e Regular. Tendo os objetivos de firmar compromissos e entendimentos de vulnerabilidade e resolver quaisquer problemas que surjam (tradução do autor).
sobre as relações que as migrações têm no mundo e a importância que os Estados têm
na gestão e na governança global. Querer que as pessoas que migram por motivos de violência generalizada, saiam
de seu Estado de forma ordenada e com todos os documentos em posse é pensar que o
2.1 Pacto Global para Migração Segura, Ordenada e Regular - (PGMSOR) mundo vive numa eterna utopia e sabemos que não é isso que acontece. O Pacto Mundial
para Migração Segura, Ordenada e Regular, precisa de maior enfoque nos seres humanos
As negociações do Pacto Global tiveram o seu início em 2017 e em 2018 teve a que podem vir a sair dos seus locais originais sem um breve aviso.
conferência intergovernamental sobre migrações, na qual o Pacto foi apresentado para O PGMSOR (2018, p. 05, 06 e 07), é baseado num conjunto de Princípios orientado-
adoção dos Estados, construído por diferentes atores internacionais de interesse direto, res, transversais e interdependentes que são:
Prioridade à dimensão humana; cooperação internacional; Soberania Nacional;
como os próprios migrantes, Estados, sociedade civil e o setor privado (DNIRM, 2016). Estado de direito e garantia do devido processo; Desenvolvimento sustentável; Di-
Em seu preâmbulo, os Estados e seus representantes afirmam a importância que reitos humanos; levando em consideração a questão de gênero; Adaptação às ne-
cessidades das crianças; Abordagem que mobiliza todas as autoridades públicas;
o Pacto tem neste momento em que o mundo passa por um grande fluxo migratório, Abordagem que mobiliza toda a sociedade (tradução do autor).
visto antes somente no período da Segunda Guerra Mundial. Baseando-se em princípios
consagrados internacionalmente como a própria Carta das Nações Unidas, a Declaração Ainda o Pacto Global para Migração Segura, Ordenada e Regular (2016, p. 1), traz em
Universal dos Direitos Humanos, o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos seu bojo um conjunto de Objetivos e Compromissos em que os Estados que o ratificaram
entre outros instrumentos de direitos humanos, foi construído o Pacto Global para Mi- se comprometem apesar de não ter caráter vinculativo:
O pacto global não é juridicamente vinculativo. No entanto, representa a vontade
gração Segura, Ordenada e Regular (PGMSOR, 2018). política e ambição da comunidade internacional como um todo para fortalecer a
cooperação e solidariedade com os refugiados e os países de acolhimento afetados
O PGMSOR (2018, p. 03) tem “estrutura de cooperação que não é legalmente vincu- [...] (tradução do autor).
lativa, que se baseia nos compromissos acordados pelos Estados-Membros na Declaração
de Nova Iorque para Refugiados e Migrantes”. O PGMSOR, é muito ambicioso em sua estrutura e prevê grandes ações humani-
O Pacto tem a intenção de intensificar o conhecimento sobre as migrações, sa- tárias com foco na solidariedade conjunta entre os Estados, visto somente com o fim da
bendo que esta ação pode facilitar o desenvolvimento de políticas públicas assertivas Segunda Guerra Mundial.
para cada migração. A solidariedade compartilhada é fundamental em momentos de
grandes fluxos migratórios no mundo pois, nenhum Estado pode por si só resolver todos 3 GLOBALIZAÇÃO COMO CONEXÃO AO OUTRO VS. MUROS
os problemas enfrentados por estas situações. Por isso o Pacto tem o objetivo de com-
partilhar responsabilidades. A Globalização é um fenômeno de aproximação entre diferentes sociedades e de
Para o PGMSOR, (2018, p. 04 e 05): nações, a conexão aproximou lugares distantes e de diferentes culturas, hoje o mundo
O objetivo deste Pacto Mundial é mitigar fatores negativos e estruturas que im-
pedem os indivíduos de encontrar e manter meios de vida sustentáveis em seu se tornou uma aldeia global, onde tudo está conectado. Outro ponto importante sobre
país de origem e forçá-los a buscar um futuro em outro lugar. Tem como objetivo a globalização é a questão dos novos modos de organizar a comunidade política global
reduzir os riscos e vulnerabilidades aos quais as pessoas estão expostas. migrantes
nas diferentes fases da migração, promovendo o respeito, proteção e realização de e as transformações que são expressão de poder em nível global.
seus direitos humanos e provisão para a provisão assistência e cuidado. Por meio Cesare (2020), afirma que “Fronteiras estatais, muros nacionais e restrições arbitrá-
deste Pacto Global, buscamos responder às preocupações legítimas das populações,
embora reconhecendo que as sociedades estão passando por uma fase demográ- rias para as quais seria impossível buscar uma justificativa natural impedem a livre circu-
fica, econômica, social e fatores ambientais em diferentes escalas que podem ter lação sobre a Terra”, isto significa a restrição da liberdade de circulação que sempre foi
um impacto sobre as migrações ou como resultado delas. Nós nos esforçamos para
criar condições favoráveis que permitam a todos os migrantes enriquecer nossas tida como um direito primordial e fundamental do indivíduo reconhecida na Declaração
sociedades graças às suas capacidades humana, econômica e social, e assim faci- Universal dos Direitos Humanos (DUDH) das Nações Unidas (1948) que dizem:
litar sua contribuição para desenvolvimento sustentável nos níveis local, nacional, Artigo VI
regional e global (tradução do autor). Todos os indivíduos têm direito ao reconhecimento, em todos os lugares, da sua
personalidade jurídica (DUDH, 1948).

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António Raúl Sitoe & Eduardo Gomes da Silva Filho (Org). Fluxos Contemporâneos: Migrações Transnacionais e Direitos Humanos

Todos os Estados, Organizações Internacionais devem reconhecer toda pessoa como Para o autor Tim Marshall (2021) que esteve nas duas Alemanhas quando o Muro
um cidadão e reconhecer os direitos que eles possuem mesmo estando fora do seu país. de Berlim foi derrubado e ouviu, “Derrube este muro!”, esse é o grito de milhares de mi-
Artigo XII
grantes que estão tentando cruzar estes muros. Donatella di Cesare (2020), afirma que
I. Toda a pessoa tem o direito de livremente circular e escolher a sua residência
no interior de um Estado. “O nome apaga a fronteira e a possibilidade de fechá-la para sempre” ao se referir que a
II. Toda a pessoa tem o direito de abandonar o país em que se encontra, incluindo
denominação da área entre EUA e México de Mexicamerica ou Tercera Nación, já traduz
o seu, e o direito de regressar ao seu país (DUDH, 1948).
o sentimento de que ali é local de trânsito onde os dois países e as nacionalidades se
misturam.
Mesmo sendo um documento sem poder vinculativo perante os Estados, a DUDH
A autora Donatella di Cesare (2020), traz o conceito de “psicopolítica”, que remete à
tem um papel fundamental na construção dos direitos humanos de toda a sociedade
uma época trágica da segregação que trazia o aparente sentido de segurança e separava
internacional. Ela reconhece que independente da situação em que se encontra o indi-
“eles de nós”. Os Estados (chefe de Estado), tendem a construir muros para deixar o que
víduo, ele tem o direito de sair e voltar para o seu Estado de origem ou um segundo ou
é estranho de fora, do que é conhecido do de dentro.
terceiro país e que nenhum muro ou fronteira imposta pelos Estados podem impedi-lo
Uma geopolítica dos muros não pode deixar de notar o impasse com a globaliza-
de entrar e de sair de qualquer lugar do mundo.
ção, sendo algo relativo à livre circulação de migrantes. O muro anti-imigração idealizado
Os muros, na história tem duas conotações iniciais, a primeira e de proteção quan-
pelo Estado-Nação, não é somente um mero ícone de sua soberania, mais do que isso é
do pensamos na antiguidade, tempo em que as cidades eram protegidas por grandes
um novo ciclo de embate entre o norte e o sul global para assuntos da intensa migração.
fortificações que limitava o avanço de exércitos inimigos em período de guerras entre
O geógrafo Michel Foucher (2012), nos traz o conceito de “fronteiras políticas”, que
reinos. Um dos muros mais imponentes do mundo é a Muralha da China que foi construí-
são aquelas construídas pelos Estados-nação, para definir seus limites geográficos pe-
da há cerca de 2500 anos para a proteção de grupos invasores. Este sistema de proteção
rante outros Estados. Um ponto importante é que estas linhas se expandem por todo
cobriu 21 mil km que separavam os reinos feudais e posteriormente os cidadãos urbanos
o globo, elas se fortalecem e aumentam sem nenhum controle sobre a área terrestre e
e rurais (MARSHALL, 2021).
pelos mares. As fronteiras continuam sendo a principal bússola geopolítica dos Estados e
A segunda conotação é política e um dos maiores exemplos que temos foi a cons-
de seus limites. Os mapas têm um papel fundamental nessa construção, eles delimitam
trução do Muro de Berlim pós Segunda Guerra Mundial. A União das Repúblicas Socia-
antigos, atuais e novos Estados, eles têm o papel de limitar a circulação da humanidade.
listas Soviética (antiga URSS), em conjunto com o Governo de Berlim determinaram a
A globalização traz à mente um mundo sem fronteiras (muros) e esta realidade
construção do Muro para barrar a saída da população alemã que ficou no leste europeu. A
poderia estar muito próxima, porém, o Continente Europeu demonstra uma situação
queda do Muro de Berlim construído trouxe novamente a aproximação entre o Ocidente
diferente porque essas barreiras estão mais em evidência do que imaginamos (CESARE,
e o Oriente. Ele dividiu a Alemanha depois da Segunda Guerra Mundial.
2020).
Ele não separava somente dois regimes políticos completamente diferentes, ele
Para Leves & Bedin (2018, p. 5) “a redução das distâncias, à aceleração do tempo,
separava uma nação, um povo. Marshall (2021), relata em sua viagem as Alemanhas, que
à quebra das identidades nacionais, à ruptura das fronteiras e à conformação de novas
seu impacto maior foi chegar à muralha” ela era como nenhuma vista antes, construí-
relações políticas” é um ato da globalização.
da para não impedir invasores, mas manter quem estava dentro”, o cidadão que queria
No PGMSOR, (2018, p. 04) “fato importante abordado pelo próprio Pacto Global é
transitar entre duas cidades da antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS),
entender que a Globalização” tem um papel fundamental na interligação do migrante
precisava de autorização, mesmo sendo um cidadão daquele regime. A queda do muro
com o cidadão nacional e vise versa. Mas não podemos pensar que essa conexão com o
em 1989, foi para a população alemã um marco para a livre circulação novamente como
outro é sempre positiva. Para Cesare (2020, p. 30 e 31), o outro é visto “como um estran-
uma nação unificada, com o direito de ir e vir sem qualquer limitação.
geiro perigoso, um inimigo oculto e clandestino, um selvagem invasor, um potencial
A Linha da Paz, localizada na Capital da Irlanda do Norte em Belfast, o muro foi
terrorista - certamente não um hóspede”.
construído nos anos 1970 para separar duas comunidades religiosas (católicos e os pro-
As políticas adotadas pelos Estados tendem à demarcação entre o eu e o outro ou
testantes) que estavam em conflito, o muro a cada dia aumenta de tamanho recebendo
cidadãos dos não-cidadãos, portanto fronteiras para separar indivíduos tendem a crescer,
placas de ferro e arames farpados.
Um dos muros mais emblemáticos da história é entre Israel e a Palestina, localizados mesmo que o mundo venha se interligando ainda mais (LAMAZIÈRE, 2007, p. 116, 117, 118).
na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Os dois muros separam os dois territórios palestinos, Para Lamazière (2007, p. 118):
Com efeito, grande parte das decisões tomadas por grupos indiferentes aos que
estes dois territórios não possuem ligação e a entrada e a saída da população de palestinos estão fora das fronteiras do Estado têm desdobramentos que afetam a humanidade
precisa ser autorizada previamente pelo Estado de Israel. Existem outras construções de como um todo. Assim, é preciso universalizar o acesso à formulação de tais decisões
para criar, finalmente, verdadeira política global.
muros (fronteiras) atualmente pelo mundo que separam pessoas, que limitam a entrada
e a saída das pessoas.

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O PGMSOR (2018, p. 03), entende que os Estados têm soberania total sobre as suas pensamos na cidadania ela não é global, mas local e fixada em Estado, podemos limitar
fronteiras e que deste modo o País tem total liberdade de fazer e agir em seu território. a proteção internacional da pessoa humana. Nisso se deixa de proteger migrantes que
Este Pacto Global estabelece uma estrutura de cooperação que não é legalmente
vinculativa, que se baseia nos compromissos acordados pelos Estados-Membros sofrem algum ato de grave violação de direitos humanos.
na Declaração de Nova Iorque para Refugiados e Migrantes. Promove a cooperação Os direitos humanos são construídos em coletividade, mas o seu gozo é individual
política internacional de migração entre todos os atores relevantes, sabendo que
nenhum Estado pode gerenciar a migração sozinho e respeita a soberania dos (o direito a ter a diferença reconhecida e a continuar diferente tem temor a reprimendas
Estados e suas obrigações ao abrigo do direito internacional (tradução do autor).
ou punição), e por si só a sua garantia também é coletiva. Daí surge o zelo pelos traçados
Três elementos passaram a rondar as migrações internacionais com mais força e das fronteiras e pela construção de postos de fronteiras com alta segurança. Para ter
pressão principalmente para os Estados que recebem os fluxos migratórios que são: as direito, a diferença precisa ser compartilhada por um número alto de indivíduos, basica-
fronteiras, a cidadania e os direitos humanos. Eles tendem a ter dificuldade em fazer uma mente é o controle de indivíduos que faz o reconhecimento da necessidade de proteção
assimilação em conjunto dos três, assim tendo problemas na hora de realizar a proteção e a transposição de fronteiras (BAUMAN, 2003, p. 71).
integral dos migrantes. DNIRM, (2018, p. 09): Kofi Annan (2021, p. 235) entende que essas barreiras físicas, construídas para separar
Reconhecendo que os Estados têm direitos e responsabilidades de administrar e Estados e seres humanos, não podem impedir o direito à vida e a dignidade de ninguém
controlar suas fronteiras, implementamos procedimentos de controle de fronteira
em conformidade com obrigações aplicáveis de acordo com o direito internacio- em qualquer parte do mundo:
nal, incluindo direito internacional dos direitos humanos e direito internacional dos “Hoje, muro nenhum pode separar crises humanitárias ou de direitos humanos
refugiados. Iremos promover a cooperação internacional em controle e gestão de numa parte do mundo de crise de segurança nacional em outra. O que começa
fronteiras como um elemento importante de segurança para os Estados, incluindo com o fracasso em defender a dignidade de uma vida termina, com demasiada
questões relacionadas ao combate ao crime organizado transnacional, terrorismo frequência, com uma calamidade para nações inteiras”.
e comércio ilícito (Tradução do Autor).

A DNIRM, entende que a (2016, p. 23) “Cooperação internacional para o controle Para Lamazière (2004, p. 41), o ser humano pode estar em qualquer lugar do globo
de fronteiras, com total respeito pelos direitos humanos dos migrantes”, mas também sem ter que pedir permissão para tal ato:
“um direito de visita, o direito que cabe a todo ser humanos de se propor à socie-
entende que a solidariedade não pode deixar de existir em momentos complicados e dade, em virtude de direito da propriedade comum da superfície da Terra, sobre
a qual, enquanto superfície do globo, eles não podem se espalhar ao infinito, mas
que muros e barreiras militarizadas podem minar a solidariedade que todos temos que precisam por fim suportar um ou outro, pois originalmente ninguém tem o direito
ter com os outros, porque somos um povo separados em Estados. mais do que o outro de estar em um determinado lugar da Terra”.

Mesmo que seja radical ou liberal, a democracia sempre bate como uma onda nos
Os Estados Westfalianos não irão sumir de forma imediata, mas sim pelo processo
muros que limitam o Estado-nação, mostrando que esta barreira visível é o maior pro-
da globalização, com novos atores políticos internacionais e com o aumento das ligações
blema para os cidadãos que estão fora ou dentro daquele Estado. A democracia é um
globais em defesa dos direitos humanos trazendo à tona a fragilidade das fronteiras in-
domo sob aquele país, ela não se estende a outros, porque cada democracia tem as suas
ternacionais. Cesare (2020) aborda em seu livro que “desde que os Estados-nação repar-
diferenças e isso perpassa para os cidadãos de dentro ou fora dessa redoma. O controle
tiram o planeta, foi aumento em um limite e outro, um <<refugo da terra>>”, o que sobra,
absoluto e unilateral da fronteira (muro), é de livre execução do soberano, que se utiliza
o que ninguém quer por ser problemático. Ela define o refugo como algo que “sobra da
do poder coercitivo para a entrada e saída das pessoas (CESARE, 2020).
terra dividida, são os sem-pátria, os sem-cidades, os refugiados, presos entre as fronteiras
3.1 Sociedade Cosmopolita nacionais que aparecem como rejeitos incômodos, corpos estranhos, seres indesejáveis”.
Estas pessoas não estão previstas em nenhuma ordem mundial surgindo assim o novo
A base do cosmopolitismo é a formação de uma Sociedade Mundial em que o ser gênero humano: os <<supérfluos>>.
humano é o protagonista. A Sociedade Internacional, no decorrer dos anos, passou por Para Nour (2013, p. 55), esse é um processo que vem sendo construído dentro das
um processo evolutivo significativo no qual o ser humano passou a ocupar a agenda Relações Internacionais e do Direito Internacional. Para quem estuda a relação entre as
principal de um sistema anteriormente ocupado pelos Estados. Este processo permitiu duas, ela explica que “[...] direito dos cidadãos do mundo, que considera cada indivíduo
que fosse construído um panorama global cosmopolita, baseado na universalidade e não membro de seu Estado, mas membro, ao lado de cada Estado, de uma sociedade
cooperação mundial. cosmopolita [...]”.
Para Gomes, (2001) importa assinalar primeiramente, que a cidadania cosmopolita Para Leves & Bedin (2018, p. 5) “[...] a Terra torna-se um só e único “mundo” e assis-
é mais do que um catalisador de diferentes identidades culturais. A sua concepção tem te-se a uma refundição da totalidade-terra, a qual adquire um novo status: de território
como pressuposto uma nova maneira de ver e edificar o mundo, ou seja, também envolve comum da humanidade [...]”, partindo dessa citação a terra seria de toda humanidade,
a construção de uma nova subjetividade. sem qualquer limitador, mas como já abordado, os Estados têm a dominação do território
Barbara Will, (2010, p. 163), traz aspectos importantes sobre o cidadão do mundo, e da livre circulação das pessoas. Para Boaventura de Sousa Santos (2003, p. 29):
Quem é que precisa do cosmopolitismo? A resposta é simples: quem quer que seja
em uma sociedade global sem barreiras, mas isso fica somente no imaginário. Quando vítima de intolerância e de discriminação precisa de tolerância; quem quer que veja

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ser-lhe negada a dignidade humana essencial precisa de uma comunidade de se- o indivíduo, seu desejo e sua vontade são o desejo e a vontade da coletividade do grupo,
res humanos; quem quer que seja não-cidadão precisa de cidadania mundial, seja
em que comunidade ou nação for. Os socialmente excluídos, vítimas da concepção o que proporciona uma maior coesão e harmonia social.
hegemónica de cosmopolitismo, precisam de um novo tipo de cosmopolitismo. Este sentimento estaria na base do sentimento de pertencimento a uma nação, a
uma religião, à tradição, à família, enfim, seria um tipo de sentimento que seria en-
contrado em todas as consciências daquele grupo. Assim, os indivíduos não teriam
Para a construção de uma sociedade cosmopolita, onde os direitos humanos são características que destacam suas personalidades, como apontamos no exemplo
realmente de todos e que podem dizer que consideramos os seres humanos como ci- dado em relação à tribo indígena, por se tratar de uma organização social “mais
simples” (DURKHEIM, 1984, 12-20).
dadãos do mundo é preciso de uma conexão ao outro além de uma troca de cultura. É
entender que a sociedade global passa por problemas e que todos têm um papel nesse Diferenças à parte, podemos afirmar que tanto a solidariedade orgânica como a
processo de resolução. mecânica têm em comum a função de proporcionar uma coesão social, isto em uma
Trata-se de um universalismo que visa apagar as fronteiras que demarcam os que ligação entre os indivíduos. Em ambas existiam regras gerais, a exemplo de leis sobre
podem participar do diálogo dos que não podem, numa tentativa de constituir esfera direitos e sanções. Enquanto nas sociedades mais simples de solidariedade mecânica
ilimitada de diálogo (LAMAZIÈRE, 2007). prevalecem regras não escritas, mas de aceitação geral, nas sociedades mais complexas
de solidariedade orgânica existiriam leis escritas, aparatos jurídicos também mais com-
3.2 Sociedade Construtivista plexos. Em suma, Émile Durkheim buscou compreender a solidariedade social (e suas
diferentes formas) como fator fundamental na explicação da constituição das organiza-
A perspectiva construtivista é chave para se responder a questões acerca de como ções sociais, considerando para tanto o papel de uma consciência coletiva e da divisão
se produz a auto evidência dos riscos reais e sobre quais atores, instituições, estratégias do trabalho social.
e recursos são decisivos para sua fabricação (BECK, 2011). Isto é, os riscos existem e não Na teoria construtivista, abordando a ação social, em que os seres humanos cons-
são meramente uma construção social, mas a sua transformação depende de como troem a sociedade em que quer viver, existe uma linha tênue nessa construção, a de
são percebidos socialmente (GUIVANT, 2001). Uma das grandes preocupações do cons- ter o equilíbrio social e dos seus agentes. Estes agentes podem ser denominados como
trutivismo é entender como os atores são socialmente construídos, o modo pelo qual o controlados, ou seja, a influência social é preponderante para determinar como cada
mundo material se forma e é formado pela ação e interação humana, dependendo de sociedade vai se organizar e reorganizar a partir da consciência coletiva e das ações. Pen-
interpretações normativas e epistêmicas dinâmicas do mundo material (ADLER, 1999). sando nessa relação como os de dentro e os de fora, podemos construir uma sociedade
Em primeiro lugar, as ideias conhecidas como coletivas e institucionalizadas em práticas fraterna e solidária.
são o meio e o propulsor da ação social que define os limites do possível e o impossível
CONSIDERAÇÕES FINAIS
para os indivíduos (ADLER, 1999).
Cada um de nós teria uma consciência própria (individual) a qual teria caracte-
As migrações se dão por muitos motivos, a sociedade internacional precisa entender
rísticas peculiares e, por meio dela, tomaremos nossas decisões e faríamos escolhas no
que nem todo ser humano deixa o seu Estado-nação, território ou qualquer outro lugar
dia a dia. A consciência individual estaria ligada, de certo modo, à nossa personalidade.
para causar problemas em outro local. As pessoas saem porque vem sofrendo graves
Mas a sociedade não seria composta pela simples soma de homens, isto é, de suas cons-
violações de direitos humanos de forma individual, familiar ou coletiva e ninguém quer
ciências individuais, mas sim pela presença de uma consciência coletiva (ou comum). A
ser considerado o outro ou o intruso em nenhum lugar do mundo. As pessoas buscam
consciência individual sofreria a influência de uma consciência coletiva, a qual seria fruto
refúgio porque realmente precisam e nisso se veem obrigadas a sair de uma hora para
da combinação das consciências individuais de todos os homens ao mesmo tempo.
outra sem nenhum documento pessoal, o que as fazem se tornar vulneráveis diante dos
Assim, podemos afirmar que a solidariedade social de Durkheim se daria pela cons-
elementos que são exigidos para adentrar um território estrangeiro.
ciência coletiva, pois essa seria responsável pela coesão (ligação) entre as pessoas. Con-
A Declaração de Nova Iorque Migração e Refúgio e o Pacto Global para Migração
tudo, a solidez, o tamanho ou a intensidade dessa consciência coletiva é que iria medir
Segura, Ordenada e Regular, são elaborados de forma ampla pela sociedade civil mundial,
a ligação entre os indivíduos, variando segundo o modelo de organização social de cada
Estados, Organizações Internacionais e por Estados que não querem os migrantes
sociedade. Nas sociedades de organização mais simples predominaria um tipo de soli-
(refugiados) à sua porta, então tendem a minar qualquer ato de migração a considerando
dariedade diferente daquela existente em sociedades mais complexas, uma vez que a
irregular. Entender que existem dois pontos de vista nestes documentos internacionais
consciência coletiva se daria também de forma diferente em cada situação.
é de suma importância sendo que a Declaração foi feita inteiramente pelos Estados-
Segundo Durkheim (1984, p. 12), a solidariedade do tipo mecânica depende da
nações e o Pacto Global, foi uma ação conjunta está que podemos dizer que os próprios
extensão da vida social que a consciência coletiva (ou comum) alcança. Quanto mais
migrantes poderão participar, porque foi elaborado um fórum mundial para a construção
forte a consciência coletiva, maior a intensidade da solidariedade mecânica. Aliás, para
do documento. Por este motivo ele é de suma importância no Sistema Internacional, mas

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António Raúl Sitoe & Eduardo Gomes da Silva Filho (Org). Fluxos Contemporâneos: Migrações Transnacionais e Direitos Humanos

não tem muita relevância a nova questão da Era dos Muros que vem emergindo em todo KANT, Immanuel. À Paz Perpétua: um projeto filosófico. Tradução e notas de Bruno Cunha.
o mundo, por não ter um poder vinculativo aos Estados. RJ: Editora: Vozes (Petrópolis) & Universitária São Francisco (Bragança Paulista) 2020. -
(Coleção Pensamento Humano).
Nos primórdios da humanidade não havia elementos que separassem os seres
humanos a não ser os naturais, assim o mundo era de todos os seres humanos. Hoje LAMAZIÈRE, Christina. Problematizando o conceito de poder em Foucault e suas con-
aborda-se duas concepções: a sociedade cosmopolita e a construtivista. sequências para pensar o político na Teoria de Relações Internacionais. Rio de Janeiro,
2007.
A sociedade cosmopolita tem uma concepção utópica que entende o indivíduo
como como aquele que pode ir e vir livremente, sem necessidade de qualquer autoriza- LEVES, Aline M. Pedron; BEDIN, Gilmar Antônio. A proteção internacional dos direitos
ção de um país. Porém, a partir da formação dos Estados, eles passaram a controlar essa humanos: em busca de uma sociedade cosmopolita baseada na heterogeneidade. Rio
livre circulação que já existia antes, a fim de proteger a premissa de sua existência que é Grande do Sul, 2018.
ter uma população permanente. MARSHALL, Tim. A era dos muros: Porque vivemos em um mundo dividido. Editora:
A sociedade construtivista é formada pelas ações sociais das pessoas e que o mundo Zahar. Rio de Janeiro, 2021.
é uma construção social e que isso reflete o mundo em que vivemos. Aceita-se então dizer
ONU - Organização das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos Huma-
que podemos construir uma sociedade fraterna e acolhedora, um ambiente social em
nos. Disponível em: https://declaracao1948.com.br/declaracao-universal/declara-
que as migrações são uma condição permanente dos seres humanos e que a circulação cao-direitos-humanos/?gclid=Cj0KCQjw852XBhC6ARIsAJsFPN31DyEo2WV1CNrtHBya-
é livre entre as nações. Mas também não podemos deixar de levar em consideração as jBoInFfp8sdZbObhaN23Nn7y787KOy3-eaUaAtflEALw_wcB. Acesso em: 01 ago. 2022.
preocupações que os Estados têm em manter a sua segurança interna, como também
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as necessidades básicas que estes migrantes e que serão dadas pelos países. https://www.iom.int/sites/g/files/tmzbdl486/files/our_work/ODG/GCM/NY_Declaration.
Por isso é tão complicado de entender ações tão radicais dos seres humanos, quan- pdf. Acesso em: 10 out. 2021.
do constroem muros a fim de separar pessoas, com a visão de que o outro vai destruir ou
SANTOS, Milton. Técnica, espaço e tempo: globalização e meio técnico-científico. São
influenciar nosso estilo de vida (educação, economia, social), sem pensar que esta atitude
Paulo: HUCITEC, 1997.
possa custar a vida de outras pessoas. O muro é construído por medo do outro, com a
ideia de que uma possível invasão, possa gerar perda da identidade nacional. NATIONS UNIES. Pacte mondial pour des migrations sûres, ordonnées et régulières.
Disponível em: https://www.un.org/en/ga/search/view_doc.asp?symbol=A/RES/73/195&Lan-
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78 79
António Raúl Sitoe & Eduardo Gomes da Silva Filho (Org). Fluxos Contemporâneos: Migrações Transnacionais e Direitos Humanos

6 Atenção a criança e ao adolescente


migrante no Estado de Roraima: projeto
infâncias em movimento
Maria de Nazaré da Silva Nunes36
Natalia Silva Nunes37

[...] a Pedagogia Marista se propõe ao diálogo


com a comunidade educativa na consolidação de
suas demandas oportunizando conquistas, acesso,
garantia, manutenção e a defesa de direitos huma-
nos, pelo viés da experiência e constante reflexão so-
bre esses valores. (Conviver marista, 2016, p.29).

1 INTRODUÇÃO

O
estado de Roraima está localizado no extremo norte do Brasil e faz fron-
teira com a República Cooperativa da Guiana, Venezuela, e os estados do
Amazonas e Pará. O estado possui quinze municípios, são eles: Alto Alegre,
Amajari, Boa Vista, Bonfim, Cantá, Caracaraí, Caroebe, Iracema, Mucajaí, Normandia, Pa-
caraima, Rorainópolis, São João da Baliza, São Luiz e Uiramutã.
Sabendo que nos últimos anos houve um aumento de migrantes no território na-
cional, é preciso considerar que há altos índices de venezuelanos, haitianos, bolivianos,
espanhóis, franceses e americanos. Assim, entendemos que o migrante é todo indivíduo
que buscará endereço em outro país, e o emigrante é aquele que residirá fora do Brasil.
De acordo com a Lei de Migração de 24 de maio de 2017, o migrante é denomina-
do imigrante (reside e se instala no país), emigrante (que reside no exterior), residente
fronteiriço (que geralmente reside no município fronteiriço), visitante visitas sem direito
a residência e o apátrida (não considerado nacional de nenhum Estado).
No Estado de Roraima, como resultado do aumento do fluxo migratório em 2015,
evidenciou o surgimento de organizações e projetos que visam atender prioritariamente
os migrantes venezuelanos em situação de vulnerabilidade social, entre eles o Projeto
Infâncias em Movimento.
O Projeto “Infâncias em Movimento” integrava o Programa Direitos Humanos e In-
fâncias em Movimento, sendo uma parceria entre a União Marista do Brasil (UMBRASIL),
Instituto Migração e Direitos Humanos (IMDH), Diocese de Roraima, Centro Marista de
Defesa da Infância, Associação do Voluntariado e da Solidariedade (AVESOL). Tinha por
finalidade a promoção do Direito ao Brincar, garantia e promoção da infância, resgate e
respeito do território de cada sujeito atendido, as atividades foram desenvolvidas entre
junho/2019 e junho/2020. O projeto objetivou responder os seguintes objetivos: atenção
36 Discente do Curso de Licenciatura em Educação do Campo, da Universidade Federal de Roraima
-UFRR, e-mail: nazare.ufrr2018@yahoo.com.
37 Discente do Curso de Medicina Veterinária, da Universidade Federal de Roraima- UFRR, e-mail:
nataliasilvanunes2017@gmail.com.

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António Raúl Sitoe & Eduardo Gomes da Silva Filho (Org). Fluxos Contemporâneos: Migrações Transnacionais e Direitos Humanos

às infâncias com a comunidade, famílias, crianças, educadores e voluntários de modo a para regular sua residência no Brasil. Para tanto, é necessário retirar documentos que
assegurar a sustentabilidade e a adequação ao contexto local; promoção do direito ao permitam a realização de trabalho regulamentado e a aquisição de bens e serviços pre-
brincar e do desenvolvimento integral das crianças; Ressignificação do espaço destina- vistos na Constituição Federal de 1988 e na Lei de Imigração de 2017.
do para acolhida de crianças atendidas na Paróquia Consolata; e Reconhecimento das Ao perceber a migração no estado de Roraima, é notório que é um Estado que
práticas culturais das infâncias atendidas. construindo a partir do processo migratório, bem como as primeiras tentativas de colo-
Neste sentido, o presente trabalho aqui apresentado tem por finalidade apresentar nização, Barros (1995) relata que o segundo momento de suma importância no processo
as ações desenvolvidas ao longo do tempo de execução do “Projeto Infâncias em Movi- de colonização deu-se em 1800–1890, momento qual a migração do povo nordestino
mento” no Município de Boa Vista/RR com crianças e adolescentes no tocante de 2019 para região norte. Nesse momento, a principal fonte de economia era agropecuária e
a 2020. agronomia.
Conceição (2012) escreve que mediante a instauração da Constituição Federal de
2 MARCO TEÓRICO 1988 ocorreu o desmembramento do município de Boa Vista do Rio Branco do Estado
do Amazonas, esta passou a ser Unidade Federativa do Brasil, e entre as vantagens deste
Ao considerar o processo histórico de migração, fica claro que, de acordo com a desmembramento pode-se destacar a independência política e econômica. Percebe-se
Declaração Universal dos Direitos Humanos, todo ser humano tem o direito à liberdade que devido a existências do garimpo no estado de Roraima, iniciou-se um processo de
de atravessar fronteiras. Com o intuito de propor conhecimento sobre o fenômeno mi- migração, pois muitos dos garimpeiros sem perspectivas de vida, passaram a voltar para
gratório, vê-se que é o grande marco no processo de garantia do direito dos migrantes seus estados de origem.
no Brasil dado pela Constituição Federal de 1988. Nessa perspectiva é possível afirmar que a questão da migração para o Estado de
A Constituição Federal de 1988 em seu artigo 1.º Trata dos princípios fundamentais, Roraima contribuiu com a criação dos municípios, entre os fatores que contribuíram com
logo o inciso 3.º Dispõe sobre a dignidade humana, nesse sentido o imigrante deverá ser o processo migratório para o Estado pode-se destacar o garimpo, o interesse pelas terras
reconhecido enquanto pessoa que precisa ter seus direitos assegurados e respeitados. No sem dono”. Conceição (2012, p.16) destaca que “o estado apresenta uma população nativa
artigo 4.º Dispõe da República Federativa do Brasil e suas relações internacionais, sendo de índios Macuxi, Taurepang, Ingarikó, Wapixana, Ianomami, Waimiri-Atroari, Maiongong,
preciso frisar que no inciso segundo dispõe do refúgio ou asilo político ao migrante. No além de uma população migrante oriunda de todas as regiões do país”.
artigo 5.º Da Constituição Federal dispõe que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção Souza (2012) comenta que o fluxo migratório para o estado de Roraima tem sua
de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País origem na década de sessenta, motivadas pela proposta de novos empreendimentos,
a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade” relações de produção na região, questão do agronegócio, mineração e garimpo, progra-
(BRASIL, 1988). mas de assentamento e colonização. Vale (2007, p. 25–26) realça que:
Até os anos de 1970, Roraima era dividida em dois municípios: Boa Vista
Lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017, quando reza sobre a Situação Documental de e Caracaraí; em 1882 os dois municípios foram desmembrados em oito: Boa Vis-
Migrantes e Visitantes, tratando de documentos, vistos, tipos de vistos, Registro e Iden- ta, Caracaraí, Alto Alegre, Bonfim, Mucajaí, Normandia, São João da Baliza e São
Luiz do Anauá; e, em 1996, passou por mais um desmembramento com mais sete
tificação Civil de Imigrantes e Portadores de Visto Diplomático, Oficial e de Cortesia. No municípios; Amajari, Cantá, Caroebe, Iracema, Pacaraima, Rorainópolis, Uiramutã),
adentrando-se em reservas ambientais e áreas indígenas.
Capítulo III, trata da situação jurídica do migrante e do visitante, considerando a condição
de Residente Fronteiriço, a Proteção do Apátrida e a Redução da Apatridia, o Asilo, a Au- Nesse sentido, é fundamental notar que a migração contribuiu para a criação de
torização de Residência, o Reagrupamento Familiar, enquanto no Capítulo IV a Entrada e outros municípios, pois até meados da década de 1970 havia apenas dois municípios no
Saída do Território Nacional considerando o processo de Inspeção Marítima, Aeroportuária estado de Roraima, que anos depois também se tornaram 15 municípios. O processo mi-
e Fronteiriça, do Impedimento de Entrada, enquanto no Capítulo V trata das medidas de gratório, portanto, foi de suma importância, pois devido aos migrantes vindos de outros
retirada compulsória considerando o processo de Repatriação, Deportação, Expulsão e a estados, eles foram responsáveis pelo desenvolvimento agrário e urbano.
Proibições. No que se refere ao Capítulo VI, pondera-se sobre a opção de nacionalidade ou Dessa forma, percebe-se que o processo histórico do Estado de Roraima está vin-
naturalização, enquanto o Capítulo VII aborda sobre as políticas públicas para migrantes culado ao processo migratório para a região, sabendo disso, é necessário citar o processo
e o direito do migrante no território brasileiro. migratório ocorrido em Roraima no ano de 2016.
Em suma, de acordo com a legislação, será permitida a residência no território do A fim de propor proximidade com a temática serão feitas considerações sobre os
país, levando-se em conta o ensino ou expansão acadêmica no caso de estrangeiros que países que fazem fronteiras com o Estado de Roraima com enfoque na migração dos
procuram o Brasil para fins de estudo. Busque tratamento de saúde específico, acolhi- venezuelanos, no entanto, é preciso contextualizar zonas fronteiriças, enquanto: “as zo-
mento humanitário. Se o voluntário participa de atividades religiosas. Nesse contexto, é nas fronteiriças são zonas de empréstimos e apropriações culturais por isso, um lugar
necessário mencionar que os venezuelanos em busca de país acabam por exigir asilo

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António Raúl Sitoe & Eduardo Gomes da Silva Filho (Org). Fluxos Contemporâneos: Migrações Transnacionais e Direitos Humanos

privilegiado para a compreensão do fenômeno migratório internacional” (RODRIGUES, • Migração Econômica: Quando a pessoa se muda para encontrar trabalho ou seguir
2006, p. 2). Vale destacar o conceito de Rost (2007) sobre a migração Brasil-Venezuela uma carreira específica;
quando diz que: • Migração Social: Quando a pessoa se muda para ter uma qualidade de vida melhor
Na fronteira entre Brasil e Venezuela, cresce diariamente o fluxo de migração,
ou para estar perto de familiares ou amigos;
principalmente de brasileiros indo para o país vizinho, motivados pelo comércio e
pelo contrabando de combustível, que passou a ser uma forma de sobrevivência de • Migração Política: Quando a pessoa se muda para escapar de conflito ou perseguição
muitas famílias fronteiriças. Outro motivo, que atraí muitos brasileiros, para à cidade
política, religiosa ou étnica;
de Santa Helena do Uairén, é o fato da atividade de garimpagem não ser ilegal o que
faz com que brasileiros e guianenses se direcionem para lá em busca de trabalho • Migração Ambiental: Algumas causas deste tipo de migração são os desastres naturais,
nessas minas. Já os venezuelanos, recorrem à cidade de Boa vista, capital do estado
tais como inundações ou secas.
de Roraima em busca de serviços públicos, como o de saúde e educação. Porém, em
ambas as fronteiras, não há a devida fiscalização, o que acaba permitindo muitas Observa-se que os motivos listados estão relacionados às relações sociais, bem
pessoas transitando ilegalmente em ambos os estados, crescendo assim, a quan-
como à questão ambiental. Diante desse contexto, observa-se que muitos dos migrantes
tidade de pessoas que vivem de forma ilegal nessas localidades (ROST, 2007, p. 23).
buscam em outro país a ausência de alguns desses fatores. Vale ressaltar que migração
em síntese é o ato de migrar, de uma região para outra, onde um indivíduo ou grupo é
Dessa forma, a travessia da fronteira entre Brasil e Venezuela, cresce contida, os
direcionado para um estado, município ou até mesmo um bairro de sua nacionalidade.
brasileiros vão para o país vizinho motivados pelo comércio, já que há relatos de contra-
Como mencionado, a Venezuela enfrenta uma grave crise econômica, política
bando de mercadorias para o Brasil, como no caso do garimpo. Enquanto os venezuelanos
e humanitária, com constante deslocamento de grande parte de sua população para
buscam acesso a bens e serviços oferecidos no país, como saúde e educação. Nota-se
outros países, como o Brasil. Roraima se destaca como a principal porta de entrada do
que muitos migrantes, por falta de condições financeiras, são contratados em regime
país. Alguns dos fatores que levam os venezuelanos a deixar seu país de origem são a
favorável à escravidão sem direitos trabalhistas previstos na legislação. Percebe-se tam-
ausência de proteção do Estado, a violação dos direitos humanos, a escassez de alimen-
bém que há alguns entre os venezuelanos que, por terem mais educação, conseguem
tos e medicamentos, e a dificuldade de acesso a serviços básicos como a saúde. Além da
empregos com melhores salários e direitos trabalhistas.
hiperinflação e desvalorização da moeda, o que leva a uma diminuição drástica do poder
Sabe ainda que “Considera-se como migração o movimento de entrada, com âni-
aquisitivo da população (MILESI, COURY e ROVERY, 2018).
mo permanente ou temporário e com a intenção de trabalho e/ou residência, de pessoas
Em decorrência do efeito da hiperinflação, o valor da cesta básica para uma famí-
ou populações, de um país para outro”. (JACINTO, LUZ, 2009, p.1). Conforme mencionado
lia passou a custar muitas vezes mais do que o valor do salário-mínimo. Inviabilizando
observa-se que migração está relacionada ao ato de deslocamento de um local para o
a compra de alimentos básicos para grande parte da população. Assim, houve um au-
outro, podendo tem vários motivos que contribuem para esse deslocamento.
mento nos índices de violência nas cidades venezuelanas, principalmente por parte da
É preciso entender o migrante como aquele que migra para o Brasil, com a finalidade
população faminta e desesperada. Existem várias discussões sobre a violação dos direitos
de residência física ou temporária. O que se observa no contexto atual do país é o aumento
humanos na Venezuela.
do fluxo migratório de venezuelanos para o Brasil. Entre os fatores que contribuem para
A Organização das Nações Unidas (ONU) tem inclusive uma Missão dedicada a in-
o deslocamento de venezuelanos para o território nacional, podemos destacar a crise
vestigar as violações de direitos humanos que ocorrem no país. Entre elas estão relatadas
econômica e política que a Venezuela.
a ocorrência de execuções extrajudiciais, detenções arbitrárias, tortura, violência sexual
Em suma, os venezuelanos buscam novas oportunidades no território brasileiro
e de gênero (ANISTIA INTERNACIONAL, 2022). Portanto, ao buscar mudar-se para outros
como emprego, moradia, além de acesso a bens e serviços como educação e saúde. Há
países, essa população desesperada busca desfrutar de melhores condições de vida. E
relatos de que famílias inteiras cruzam a fronteira todos os dias, acreditando que no Brasil
ter acesso e poder usufruir dos direitos humanos básicos. O Brasil, por sua proximidade
será possível subsidiar os familiares uma vida digna. No entanto, o que se observa é um
com a Venezuela, recebe diariamente um grande fluxo migratório e a principal porta de
estado de vulnerabilidade social.
entrada é o estado de Roraima.
Fica claro que os fatores que propiciam o aumento de pessoas migrantes estão
O intenso fluxo migratório trouxe à tona as fragilidades de diversos setores da so-
correlacionados a fatores internos como guerras e perseguições, que podem ser moti-
ciedade brasileira, como saúde e segurança. Como, Niño (2020), menciona no fragmento
vados por quebra de costumes, além de fatores externos serem decorrentes de vínculos
a seguir:
laborais e familiares, entre outros. De acordo, vê-se que as migrações podem ter deslo- Desse modo, a crise venezuelana tem redimensionado as migrações frontei-
camentos temporários ou definitivos, que podem ser coletivos ou mesmo internos ou riças na América do Sul, desbordando as capacidades de governos locais, ativando
uma maior presença das instituições estatais nessas regiões, evidenciando pro-
internacionais. Em suma, o migrante busca novas oportunidades, de trabalho, estudo, blemas prévios à chegada de imigrantes em municípios fronteiriços e mudando a
saúde. Dennis (2015), elenca os principais motivos que contribuem para o fenômeno da cotidianidade das populações de fronteira. Ao chegarem no território brasileiro essa
população castigada sofre com problemas como a falta de empregos e xenofobia
migração, estes sendo: (NIÑO, 2020, p. 53).

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António Raúl Sitoe & Eduardo Gomes da Silva Filho (Org). Fluxos Contemporâneos: Migrações Transnacionais e Direitos Humanos

Existem dois principais pontos de concentração do fluxo de migrantes venezue- aos imigrantes. Em termos de pesquisa bibliográfica, deve-se enfatizar o uso de artigos,
lanos no estado de Roraima, são eles: o município de Pacaraima, que fica a 20 km de leis, regulamentos internos e institucionais etc. Segundo Pereira (2010, p. 72.): “Quando
Santa Helena de Uairén; E a capital do estado, o município de Boa Vista, que é a principal processado a partir de material que não foi tratado analiticamente”. Ressalta-se que para
cidade de Roraima e que concentra o maior número de migrantes. O fluxo migratório se obter respostas aos objetivos específicos deste estudo, serão utilizadas leis e regulamentos
intensificou a partir do ano de 2015 em direção a Boa Vista e Pacaraima. Segundo dados relativos à imigração. De acordo com o primeiro procedimento, contribuirá por meio de
do Ministério da Justiça e Segurança Pública em 2020, Roraima teve o maior número de materiais que servirão como fonte de conhecimento teórico. No que se refere à pesquisa
pedidos de refugiados, em torno de 42.512. Cabe destacar que a maioria dos pedidos de documental, deve-se destacar que materiais como artigos, leis, regulamentos internos e
refúgio no país são provenientes de venezuelanos, cerca de 17.385, o que representa 60,2% institucionais, inclusive será usado.
do total de pedidos de reconhecimento do status de refugiado em 2020 (SILVA et al, 2021). Com isso, será fazer o levantamento metodológico do trabalho, que se pauta no
Em decorrência desse intenso fluxo migratório, o estado de Roraima, principal- levantamento de informações partir dos arquivos do Projeto Infâncias em referente aos
mente os municípios de Pacaraima e Boa Vista, sofrem com problemas estruturais para atendimentos realizados.
absorver essa população. Os migrantes venezuelanos vivenciam em território brasileiro
situações de xenofobia, trabalho análogo ao escravo e infantil, exploração sexual, entre 4 RESULTADOS
outras situações. Que caracterizam esses indivíduos como parte da população vulnerável.
Assim, diversas ações foram implementadas ao longo dos anos para atender os anseios O Projeto Infâncias em Movimento, por meio das ações desenvolvidas, buscou
desses migrantes, como o Projeto Infância em Movimentos. promover o Direito ao Brincar, garantia e promoção da infância, resgate e respeito do
território de cada sujeito atendido, entre junho/2019 e junho/2020. O projeto objetivou
3 METODOLOGIA responder os seguintes objetivos: atenção às infâncias com a comunidade, famílias, crian-
ças, educadores e voluntários de modo a assegurar a sustentabilidade e a adequação ao
Para propor uma melhor compreensão do processo de pesquisa, é necessário es- contexto local; promoção do direito ao brincar e do desenvolvimento integral das crianças;
clarecer que: “Pesquisa é um trabalho que envolve planejamento semelhante ao de um Ressignificação do espaço destinado para acolhida de crianças atendidas na Paróquia
cozinheiro. Ao preparar um prato, o cozinheiro precisa saber o que quer fazer, obter os Consolata; e Reconhecimento das práticas culturais das infâncias atendidas.
ingredientes, certificar-se de que possui os utensílios necessários e concluir as etapas Projeto Direitos Humanos e Infâncias e Movimento tinha como parceiros UMBRA-
necessárias no processo” (SILVA, MENEZES 2005, p. 9). Por meio do mencionado, enten- SIL (na articulação das organizações e execução do Programa e seus Projetos; mobilização
de-se que a pesquisa deve ser entendida como um trabalho, porém para a efetividade do comitê gestor do Programa; desenvolvimento do processo de captação de recursos.);
ela deve ser planejada, considerando aspectos como tema e objetivos. Uma vez que os Instituto Migrações e Direitos Humanos – IMDH (na articulação das organizações parceiras
objetivos nortearão a pesquisa. Como a pesquisa deve ser entendida como um trabalho, em Boa Vista; acompanhamento do comitê gestor.); Associação Paranaense de Cultura /
para a execução ela deve ser planejada, considerando aspectos como tema e objetivos. Centro Marista de Defesa da Infância – CMDI ( na elaboração e sistematização do progra-
O estudo tem como objetivo apresentar as ações desenvolvidas no “Projeto Infâncias em ma e projetos, promovendo o fortalecimento da Rede de Proteção local; integrante do
Movimento” no Município de Boa Vista/RR com crianças e adolescentes no período de Comitê Gestor; assessoramento da equipe local, na formação dos colaboradores.); Diocese
2019 a 2020. de Roraima - Paróquia Consolata (disponibilização do espaço físico para desenvolvimento
Primeiramente, é preciso explicar a natureza da pesquisa, que será pura, segundo das atividades; acompanhamento do comitê gestor.); Associação do Voluntariado E Da
Gerhard e Silveira (2009), permitirá a geração de novos conhecimentos. Portanto, este Solidariedade – AVESOL (formalização da documentação legal junto aos voluntários);
estudo proporcionará novos conhecimentos sobre a imigração de Roraima. Segundo União Sul Brasileira de Educação e Ensino – USBEE - PMBSA (coordenação do projeto
Gil (2010, p 27), a pesquisa básica “reúne pesquisas destinadas a preencher lacunas de do “Direitos Humanos e Infância em Movimento - DHIM” na cidade de Boa Vista, Rorai-
conhecimento”. Dessa forma, este estudo proporcionará aos pesquisadores um relato ma, responsável pelos custos e sustentabilidade do projeto – pagamento da folha de
sobre as questões levantadas sobre o tema. Portanto, este estudo proporcionará novos pagamento dos colaboradores, e pedagógicos e atividades educativas; e articulação das
conhecimentos sobre a imigração de Roraima. Esta pesquisa fornece respostas às ques- organizações, encaminhamentos para rede de proteção.
tões colocadas pelos temas discutidos. Indiscutivelmente, este estudo fornece uma nova Os atendimentos prestados tinham por finalidade atender os princípios do Ser-
referência sobre o assunto, com foco em Roraima. viço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos, preconizado na Resolução n.º 109, de
Segundo Cervo (2007) sobre o primeiro programa, ele contribuirá por meio de 11 de novembro de 2009:
Serviço realizado em grupos, organizado a partir de percursos, de modo a
material que será utilizado como fonte de conhecimento teórico. Porque através garantir aquisições progressivas aos seus usuários, de acordo com o seu ciclo de vida,
desses programas, documentos, livros e guias podem ser utilizados no atendimento a fim de complementar o trabalho social com famílias e prevenir a ocorrência de

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António Raúl Sitoe & Eduardo Gomes da Silva Filho (Org). Fluxos Contemporâneos: Migrações Transnacionais e Direitos Humanos

situações de risco social. Forma de intervenção social planejada que cria situações colaboradores das instituições maristas do Rio Grande Sul, além de membros da frater-
desafiadoras, estimula e orienta os usuários na construção e reconstrução de suas
histórias e vivências individuais e coletivas, na família e no território. Organiza-se de nidade de leigos, as atividades desenvolvidas junto as crianças tinham por finalidade
modo a ampliar trocas culturais e de vivências, desenvolver o sentimento de per- trabalhar aspectos relacionados a Amazônia brasileira e venezuelana. As atividades de-
tença e de identidade, fortalecer vínculos familiares e incentivar a socialização e a
convivência comunitária. Possui caráter preventivo e proativo, pautado na defesa senvolvidas em fevereiro tiveram como princípio trabalhar o “Cuidado com o próximo” e
e afirmação dos direitos e no desenvolvimento de capacidades e potencialidades, a cultura por meio de atividades no Carnaval. As crianças tiveram como atividade a cria-
com vistas ao alcance de alternativas emancipatórias para o enfrentamento da
vulnerabilidade social. (BRASIL, 2009, p.16). ção de suas próprias fantasias, para serem usadas na festa de carnaval com as crianças
e adolescentes, e seus pais e responsáveis.
As atividades desenvolvidas tinham por finalidade proporcionar aos atendidos, ati- Em março, trabalharam na história (eixo), com destaque para o Documento Queri-
vidades, que tinham por eixos o reconhecimento da identidade e do território, do direito a da Amazônia. Destacando quatro sonhos: sonho Social, Sonho Cultural, Sonho Ecológico
ser criança e adolescer, bem como atuação nos encaminhamentos e acompanhamentos e Sonho da Igreja. As ações são baseadas nos quatro verbos do Papa Francisco: Promover,
de casos a Rede de Proteção local. Integrar, Receber e Proteger. Atividades recentes desenvolvidas em sala de aula, com
Logo: crianças contra a pandemia.
Tem por foco a constituição de espaço de convivência, formação para a parti- Seguindo os protocolos de segurança do (Covid-19), em 18 de março de 2020,
cipação e cidadania, desenvolvimento do protagonismo e da autonomia das crianças
e adolescentes, a partir dos interesses, demandas e potencialidades dessa faixa etária. os atendimentos presenciais foram suspensos. Nos meses de maio, abril e maio, foram
As intervenções devem ser pautadas em experiências lúdicas, culturais e esporti-
vas como formas de expressão, interação, aprendizagem, sociabilidade e proteção
realizadas atividades remotas com a equipe de colaboradores e voluntários para treina-
social. Inclui crianças e adolescentes com deficiência, retirados do trabalho infantil mento. Um trabalho de monitoramento remoto para crianças e adolescentes teve início
ou submetidos a outras violações, cujas atividades contribuem para ressignificar
vivências de isolamento e de violação de direitos, bem como propiciar experiências em junho, com entrega de materiais pedagógicos para realização das atividades propos-
favorecedoras do desenvolvimento de sociabilidades e na prevenção de situações tas no grupo de WhatsApp, as ações atingem 13 famílias, com um total de 31 crianças e
de risco social. . (BRASIL, 2009, p.16).
adolescentes em acompanhamento, permanecendo até o final do contrato da equipe
Neste sentindo, as atividades que deram início no dia 6 de junho de 2019, contou contratada. Em julho, o trabalho desenvolvido com as famílias passou a ser realizado por
com a participação inicialmente de mais de 50 (cinquenta) crianças e adolescentes, no meio das Pastorais Sociais de Roraima em parceria com o grupo de voluntários.
período que corresponde a segunda e terceira semana as atividades desenvolvidas es-
Gráfico 1: Crianças e Adolescentes Atendidas Pelo Projeto Infâncias Em Movimento
tavam atreladas aos eixos território e identidade, foi motivado a confecção de desenhos
que demonstravam os sentimentos das crianças a respeito da sua casa. Percebeu-se a Fonte: Elaborado a partir dos arquivos do Projeto Infâncias em Movimento
necessidade conhecer e reconhecer os anseios das crianças e os adolescentes, por meio
dos desenhos percebemos que muitas dessas tinham saudades da escola e utilizavam De acordo com os dados ilustrados, fica evidente que o projeto teve uma alta ro-
as cores da bandeira da Venezuela. tatividade nos acompanhamentos realizados com crianças e adolescentes, fenômeno
Quanto às atividades desenvolvidas em julho, visavam trabalhar os eixos de Direito, explicado pela localização da sede do projeto, é possível perceber, pelos dados quantita-
Histórias e Projetos, como proposta para as atividades dinâmicas do espelho, eu com outro, tivos, a assistência específica e adequada às emergências que se apresentam e impõe
uma árvore arqueológica e uma foto do momento. Em relação às atividades realizadas em condições diferenciadas para que as crianças participem de uma situação humanitária.
agosto de 2020, vale destacar que as atividades voltadas aos eixos de histórias, projetos Diante do perfil de frequência do público-alvo que demanda o planejamento de um
e territórios foram desenvolvidas por meio da árvore genealógica, desenvolvimento de processo educativo pensado para que as ações educativas sejam de curta duração e não
jogos, confecção de porta-retratos, histórico de citações, confecção de lápis. Em torno das exijam participação continuada. Além de um processo de cadastro simplificado para
atividades que aconteceram em setembro, foram centradas na cultura, uma identidade atender a demanda emergencial das famílias, que apresentam inúmeras peculiaridades
de construção de pinos de boliche para animais de estimação, cartazes de comidas típicas nas configurações e dificuldades de acompanhamento dos participantes.
brasileiras e venezuelanas, citando histórias e confeccionando bolsas. As atividades de- Entre as atividades desenvolvidas estavam momentos de formação e captação de
senvolvidas em outubro se desenvolveram a partir dos eixos território, cidadania, cultura, voluntários além das atividades junto às crianças e adolescentes, e as famílias na inten-
direito e identidade. A dinâmica do meu talento compartilhado se destaca entre minhas ção de trabalhar o fortalecimento de vínculo previsto na Política Nacional de Assistência
atividades, criando jogos, criando cartilhas ECA, a dinâmica do design colaborativo, cau- Social. Sabendo que o “voluntário é o jovem, adulto ou idoso que, devido ao seu interesse
sando infecções natalinas e decorando uma sala. Em dezembro, as aulas tiveram como pessoal e seu espírito cívico, dedica parte do seu tempo, sem remuneração, às diversas
objetivo trabalhar o significado do Natal através das tradições do Brasil e da Venezuela. formas de atividades de bem-estar social ou outros campos” (Cf. Voluntariado da ONUBR
Em relação às atividades desenvolvidas de janeiro a dezembro de 2020, observa-se — Nações Unidas no Brasil). Contudo, as atividades desenvolvidas por meio do projeto,
que, no mês de janeiro de 2020, o projeto recebeu dois grupos de voluntários maristas proporcionaram ao grupo de voluntários, experiências significativas.

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António Raúl Sitoe & Eduardo Gomes da Silva Filho (Org). Fluxos Contemporâneos: Migrações Transnacionais e Direitos Humanos

Este resumo representa algumas das perspectivas de análise e posicionamento CONCEIÇÃO, Cleudimar Araújo. O Surgimento do Bairro Asa Branca na Década de 1980,
ético e político sobre a iniciativa. Diálogos de diferentes formas e por meio de diferentes Em Boa Vista/RR. Monografia apresentada como requisito para a obtenção do título de
Graduação, no Curso de Bacharel e Licenciatura em História da Universidade Federal de
estratégias entre equipes geograficamente distantes, mas integradas na missão de ofe-
Roraima – UFRR. Boa Vista-RR, 2012.
recer conjuntamente, em rede, uma alternativa de esperança para as crianças de Boa
Vista são consideradas nesse caminho. Desta forma, importa realçar as potencialidades Declaração Universal dos Direitos Humanos. UNIC / Rio / 005 – ago. 2009. Disponível
em: http://www.onu.org.br/img/2014/09/DUDH.pdf. Acesso em: 04 jul. 2022.
e desafios vividos neste percurso, uma vez que não se trata neste projeto, neste território,
e neste relatório, de um projeto replicável em grande escala na sua forma de operar o DENNIS, Rebecca. O que é migração? 2015. Disponível em: http://tilz.tearfund.org/pt-pt/
quotidiano. resources/publications/footsteps/footsteps_71-80/footsteps_78/. Acesso em: 03 jun. 2022.

CONSIDERAÇÕES FINAIS MARTINS, Ronei Ximenes. Metodologia de pesquisa: guia de estudos. – Lavras: UFLA,
2013.
Assim, as atividades desenvolvidas pelo projeto, eram destinadas a atender as crian-
MENEZES, Estera Muszkat SILVA, Edna Lúcia da. Metodologia da pesquisa e elaboração
ças e os adolescentes do entorno da Paróquia da Consolata e pelo IMDH em situações de dissertação. 4. ed. rev. atual. – Florianópolis: UFSC, 2005.
risco em decorrência da crise humanitária, em processo de abandono de ambientes sig-
nificativos, e precisam de acolhimento e mediação para que o momento em que estejam MILESI, R.; COURY, P.; ROVERY, J. Migração Venezuelana ao Brasil: discurso político e xe-
nofobia no contexto atual. Revista do corpo discente do PPG- História da UFRGS. Porto
presente no espaço é o lúdico, a espiritualidade, o aprendizado e o compartilhamento
Alegre, v. 10, n. 22, p. 53-70, ago. 2018. Disponível em: https://www.seer.ufrgs.br/index.php/
— caminhos para a socialização. Para isso, é necessário afirmar o funcionamento dos aedos/article/view/83376/49791. Acesso em 22 ago. 2022.
mecanismos de proteção de crianças e imigrantes, através de alternativas que permitam
o desenvolvimento de competências socioeducativas. ONG Repórter Brasil. Caderno temático Migração: O Brasil em Movimento (publicação
do programa Escravo, nem pensar. 2012. Disponível: http://reporterbrasil.org.br/wp-con-
Desta forma, o projeto pretendeu contribuir para formas de acolhimento e socia- tent/uploads/2015/02/10.-caderno_migracao_baixa.pdf. Acesso em: 03 jun. 2022.
lização das crianças e adolescentes migrantes: aumentar o interesse das crianças pelas
diferentes línguas; valorizar a cultura anterior e o conhecimento do mundo; criar diálogo ROCHA, José Antonio Meira da. Modelos de TCC conforme ABNT Normas ABNT Dicas:
As etapas da pesquisa. 2010. Disponível: http://meiradarocha.jor.br/news/tcc/2010/06/21/
com os elementos do novo território; vivenciar situações da própria idade e conviver com
as-etapas-da-pesquisa/. Acesso em: 04 jun. 2022.
os pares. Esses processos ampliam a capacidade da criança de aprender sobre diferentes
áreas do conhecimento, principalmente por meio da alfabetização e do brincar. Nesse RODRIGUES, Francilene. Migração transfronteiriça na Venezuela. Estud. av. v.20 n.57 São
cenário, é fundamental que os espaços acolhedores se transformem em ambientes lú- Paulo may/aug. 2006
dicos, buscando em cada lugar um sentimento de pertencimento, em contraposição a ROST, Carla Regina. Fazendo Gênero na Fronteira: Migração de Venezuela nas e Guia-
uma visão adultocêntrica da constituição de territórios e territorialidades, que desconsi- nenses na Tríplice Fronteira Brasil- Venezuela –Guiana. 2006. Disponível em: http://www.
dera as culturas infantis. abant.org.br/conteudo/ANAIS/CD_Virtual_26_RBA/grupos_de_trabalho/trabalhos/GT%20
35/carla%20rost.pdf. Acesso: 20 ago. 2022.
O aprendizado compartilhado nesta jornada permitiu o reconhecimento do territó-
rio, o aprofundamento das situações humanitárias das crianças e adolescentes migrantes SOUZA, Carla Monteiro de. Boa vista/RR e as migrações: mudanças, permanências, múl-
em Boa Vista e o reconhecimento de profissionais que impactam nos projetos e na vida tiplos significados. Revista acta geográfica, ano 3, n°5, jan. /jun. Dez 2009.
de muitas pessoas. As questões de posicionamento e treinamento atravessam contextos
VALE, Ana Lia Farias. Migração e territorialização: As Dimensões Territoriais dos Nor-
e precisam privilegiar o objetivo principal em resposta ao apelo observado. destinos em Boa Vista / RR. Tese aprovada como requisito parcial para obtenção do grau
de Doutor em Geografia, da Universidade Estadual Paulista. 2007. Disponível em: http://
REFERÊNCIAS www2.fct.unesp.br/pos/geo/dis_teses/07/analiafariasvale.pdf. Acesso: 20 ago. 2022.
ANISTIA INTERNACIONAL. Venezuela: conselho de direitos humanos da ONU deve renovar
mandato de especialistas para averiguar violações, 2022. Disponível em: https://anistia.
org.br/informe/venezuela-conselho-de-direitos-humanos-da-onu-deve-renovar-manda-
to-de-especialistas-para-averiguar-violacoes/. Acesso em 22 ago. 2022.

BRASIL. DECRETO Nº 41.721, DE 25 DE JUNHO DE 1957. Promulga as Convenções In-


ternacionais do Trabalho de nº11,12,13,14,19,26,29,81,88,89,95,99,100 e 101, firmadas pelo
Brasil e outros países em sessões da Conferência Geral da Organização Internacional do
Trabalho. Disponível: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/Antigos/D41721.htm.
Acesso em: 04 jul. 2022.

90 91
António Raúl Sitoe & Eduardo Gomes da Silva Filho (Org). Fluxos Contemporâneos: Migrações Transnacionais e Direitos Humanos

7 O impacto da mídia no programa de


educação superior para migrantes da
Universidade Federal de Roraima
Pâmela Yolle Faria Adona38
Dra. Carla Monteiro de Souza39
Dra. Iana dos Santos Vasconcelos40
Dr. Adrian José Padilla Fernandez41

1 INTRODUÇÃO

O
texto apresentado procura estabelecer um diálogo entre a pesquisa em an-
damento sobre o Programa de Acesso à Educação Superior de Refugiados,
Solicitantes de Refúgio e Imigrantes em situação de Vulnerabilidade da
Universidade Federal de Roraima, com as notícias veiculadas na mídia desde a aprovação
da Resolução 07/2018, que instituiu o Programa no âmbito da UFRR42.
Como pano de fundo para a implantação do Programa está a grande migração
internacional verificada em Roraima, nos últimos cinco anos, composta majoritariamente
por venezuelanos, mas também por haitianos, cubanos dentre outros. Dados do Governo
Federal apontam que ingressaram no Brasil 807 venezuelanos como residentes tem-
porários, no ano de 2016. Contudo, a partir de 2017, há um crescimento deste número,
principalmente no estado de Roraima, registrando-se 6.894 venezuelanos migrantes.
No ano de 2019, o quantitativo atingiu 61.859 migrantes venezuelanos como residentes
temporários43.
Conforme dados da Polícia Federal (PF), compilado pelo Portal G144, se estabele-
ceu uma nova rota de entrada no Brasil de haitianos e cubanos para o Brasil, através da
fronteira da República Cooperativista da Guiana (ex Guiana Inglesa) com o município de

38 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Fronteiras-UFRR, com o projeto


Uma análise do Programa de Acesso à Educação Superior de Refugiados, Solicitantes de Refúgio e
Imigrantes em situação de vulnerabilidade da Universidade Federal de Roraima. E-mail: pamela.adona@
ufrr.br e ID Lattes 5955717774561359
39 Doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, com pós-
doutorado em Migrações, realizado no Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da
Universidade de Lisboa. Professora do PPGSOF/UFRR e do PROFHISTÓRIA/UFRR. E-mail: carla.
monteiro@ufrr.br e ID Lattes 1172359927297691.
40 Professora da licenciatura Intercultura do Instituto Insikiran de Formação Superior Indígena
da Universidade Federal de Roraima- UFRR. Atualmente pesquisadora do Laboratório de Estudos
Migratórios- LEM - UFSCar, Grupo Interdisciplinar Sobre Fronteiras da UFRR- GEIFRON e Grupo
de Estudos Migratórios na Amazônia- GEMA/UFAM. E-mail: iana.vasconcelos@ufrr.br, ID Lattes
3418264527771362
41 Doutor em Jornalismo pela Universidade de São Paulo (2003). Professor visitante sênior do
PPGSOF/UFRR. E-mail: adrian.fernandez@ufrr.br, ID Lattes 6057203166667975.
42 Uma primeira versão deste trabalho foi apresentada como atividade avaliativa da disciplina
Estado, Migração e Fronteira do Programa de Pós-Graduação Sociedade e Fronteira da Universidade
Federal de Roraima.
43 Obtido na Cartilha Percurso, Percalços e Perspectivas: A Jornada do Projeto – Atuação em Rede –
República Federativa do Brasil.
44 https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2019/12/16/nova-onda-de-haitianos-chega-ao-brasil-pela-
guiana-e-engrossa-exodo-de-estrangeiros-em-roraima.ghtml

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António Raúl Sitoe & Eduardo Gomes da Silva Filho (Org). Fluxos Contemporâneos: Migrações Transnacionais e Direitos Humanos

Bonfim/Roraima, aumentando o número de migrantes destas nacionalidades no estado. autor destaca e descreve os possíveis impactos das notícias transmitidas pelos meios de
Segundo a PF, 31.685 imigrantes cubanos entraram legalmente pelo município de Bon- comunicação de massa, mostrando-os como fios condutores e criadores de realidades
fim, entre janeiro de 2018 a novembro de 2019, número que pode ser maior se pensarmos distorcidas e generalizadoras. Os noticiários de TV e as notícias de jornal, bem como vídeos
nos ingressos não legais. Conforme a mesma fonte, se em 2017, 12 haitianos entraram na internet, são usados para transmitir focos de ansiedade e dos temores do público. Os
em Roraima pela Guiana, em novembro de 2019, esse número chegou a 13.511. Matéria de migrantes e refugiados muitas vezes são vistos como coisas e não pessoas pelos espec-
01 de janeiro de 2020, publicada na Folha de Boa Vista, dá conta que em dezembro de tadores e usuários receptores e potenciais “formadores de opinião”. As notícias passam
2019, a PF registrou a presença de 18.952 haitianos em Roraima45. Junto a isso, pesquisa a ser fomentadoras de medo a serviço da cegueira moral.
assinada por Level e Jarochinski Silva (p. 95), apurou que, entre 2015 e 2019, “grande parte A estigmatização do outro e a xenofobia são fatores marcantes no processo de mi-
dos migrantes haitianos que viviam/vivem em Boa Vista estavam vindo da Venezuela”, gração aqui tratado e, segundo Fernández (2020, p. 27), a mídia contribui sobremaneira
explicando que muitos já viviam nesse país e que migraram pelos mesmos motivos que para construir a ideia de que o migrante é a causa dos problemas das sociedades recep-
os venezuelanos. toras. Assim, acreditamos que sociedade roraimense encampa a noção de que aumento
Para que o presente texto fosse desenvolvido, realizou-se uma pesquisa com funda- da violência e o crescimento do desemprego, por exemplo, tem como fatores a chegada
mentação teórica sobre o conceito migrações e ações afirmativas, bem como na legislação dos venezuelanos.
sobre o assunto. Quanto aos dados utilizamos os do Censo Escolar da Educação Supe- A mídia é um componente não apenas de informação, mas de formação e, segun-
rior e os coletados nos questionários aplicados para pesquisa de mestrado supracitada, do Fernandez (2020, p. 22-23), neste novo contexto global extremamente midiatizado
buscamos, também, dados de outras universidades federais nacionais que desenvolvem interveem na formação de “subjetividades na sociedade contemporânea.” Desta forma,
projetos semelhantes, com vagas ou programas específicos para Refugiados, Solicitantes é dever da mídia ter todo cuidado ao veicular notícias e manchetes que despertem sen-
de Refúgios e Imigrantes em Situação de Vulnerabilidade. Como fontes primárias, ana- timentos e atitudes de descriminação do outro, o que nem sempre acontece.
lisamos notícias publicada em jornais (em meio eletrônico) e portais de notícias sobre o O título da matéria Venezuelanos vão poder ingressar em cursos de graduação da
tema tratado, publicadas no período de 2018 em diante. UFRR para ocupar vagas ociosas sem prestar vestibular, veiculada no dia 09/07/2018, no
Portal G146, um canal de comunicação da Rede Amazônica (afiliada da Rede Globo) de
2 MIDIATIZAÇÃO DAS MIGRAÇÕES E RESOLUÇÃO 07/2018 DA UFRR grande circulação, mostra como o uso de algumas palavras podem levar ao falso pen-
samento de que a entrada dos migrantes se daria de maneira imediata, tendo em vista
A questão dos migrantes tem sido amplamente divulgada, e não são poucas as não utilizar o meio tradicional de ingresso no ensino superior, o vestibular.
imagens que circulam em diferentes mídias com cenas dramáticas a nível mundial na- No dia seguinte, 10/07/2018, o novo Programa da UFRR ganha repercussão nacional
cional e, nos últimos anos, a nível local. Em Roraima passaram a ser tão recorrentes que no site Brasil Escola, hospedado no Portal UOL, com a seguinte manchete: Venezuelanos
ao invés de comover a sociedade, acabam contribuindo para gerar o que Bauman (2017, poderão ocupar vagas remanescentes da UFRR47. No corpo da matéria, em informações
p. 8) denomina “fadiga da tragédia dos refugiados”. sumárias o programa é descrito como “... uma forma de inclusão social pela educação
Notícias veiculadas pela mídia local, que antes destacava as migrações Sul-Norte, para os estrangeiros que residem em Boa Vista/RR e buscam uma nova chance”, desta-
como a dos sírios em direção à Europa, por exemplo, passa a mostrar um crescente pro- cando que não haverá vestibular, mas uma forma de seleção diferenciada, explicando
cesso migratório Sul-Sul, o grande êxodo de venezuelanos para países vizinhos, dentre sumariamente os critérios adotados.
eles o Brasil. Como foi amplamente divulgado Roraima é a porta de entrada desses mi- Ainda no âmbito da mídia de alcance nacional, o site Razões para Acreditar, em
grantes e sua chegada ao estado produz diferentes reações na sociedade local. 12/07/2018, repercutiu a publicação do Brasil Escola, com o seguinte título: Venezuelanos
Observando o cotidiano, – nós como moradores locais – podemos dizer que a popu- poderão estudar na Universidade Federal de Roraima48. O texto apresentado na maté-
lação roraimense começou a se assustar com a chamada “crise migratória” e com ela se ria repete de forma sumária o apresentado no Brasil Escola, dando a notícia um caráter
instala o que Bauman (2017, p.7) nomeia de “pânico moral”. Nesse sentido, a população e positivo e alvissareiro, tendo em vista o próprio slogan da página: “Não é que o mundo
os governantes temem pelo desequilíbrio étnico e social, mas principalmente econômico esteja pior, você que não fica sabendo das coisas boas que acontecem”.
e político, temendo que o desembarque de um número crescente de “estrangeiros” no Não obstante, ainda que as duas últimas matérias citadas tenham textos bem ob-
estado pode representar no médio e longo prazo. jetivos e enfatizem a questão da inclusão e da necessidade de ações que contemplem
Bauman (2017) traz percepções referentes as possíveis origens e impactos desse
46 https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/venezuelanos-vao-poder-ingressar-em-cursos-de-
pânico moral, procurando ressaltar os motivos que levam os políticos a utilizarem tais
graduacao-da-ufrr-sem-vestibular.ghtml
fatos como material de campanha eleitoral e como dispositivo de poder e controle. O 47 https://vestibular.brasilescola.uol.com.br/noticias/venezuelanos-poderao-ocupar-vagas-
45 https://folhabv.com.br/noticia/CIDADES/Capital/Quase-19-mil-haitianos-entraram-e- remanescentes-ufrr/343113.html
permaneceram-em-Roraima/61386 48 https://razoesparaacreditar.com/venezuelanos-estudar-universidade/

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António Raúl Sitoe & Eduardo Gomes da Silva Filho (Org). Fluxos Contemporâneos: Migrações Transnacionais e Direitos Humanos

o grande número de migrantes venezuelanos em situação de vulnerabilidade, o fato de remanescentes dos anos anteriores que são destinadas aos processos de transferências
destacar na manchete esses migrantes em especial, e o uso do verbo “ocupar” na pri- e de ingresso para segunda graduação, e somente depois essas vagas são disponibili-
meira, as aproximam da primeira matéria apresentada aqui, no Portal G1, ao potencializar zadas para o Programa em questão. Observando a situação das vagas ociosas em nível
possíveis leituras enviesadas e xenofóbicas. nacional, o Censo de 2019 afirmou que no referido ano existiam 97.212 vagas remanes-
A repercussão negativa e a emergência de reações xenofóbicas da sociedade local, centes, da quais apenas 28.867 vagas foram preenchidas, restando mais de 68 mil vagas
ficam explícitas quando, no dia 18/07/2018, o reitor da UFRR em exercício, vem a público remanescentes ociosas que poderiam ser disponibilizadas por programas institucionais
prestar informações sobre a aprovação do Programa. Na matéria publicada na Folha de como este da UFRR.
Boa Vista, intitulada “Refugiados não vão tomar vagas de brasileiros” esclarecer reitor, Dr. O Edital Nº 053/2019-CPV-UFRR é o primeiro edital lançado para atender à Resolu-
Américo Lyra, “deixou claro que não haverá uma segregação entre vagas destinadas a ção 07/2018, que estabelece o Programa de Acesso à Educação Superior para Refugiados,
brasileiros e venezuelanos, mas sim uma oportunidade para os refugiados ingressarem Solicitantes de Refúgios e Imigrantes em Situação de Vulnerabilidade. Foram ofertadas
na universidade caso haja alunos desistentes de seus cursos antes das aulas começa- 32 vagas de ampla concorrência e 04 vagas de portadores de necessidades especiais
rem”. Informando sobre a natureza do Programa e todas as etapas do processo seletivo, - PNE, totalizando 36 vagas para 07 cursos: Bacharelado em Ciências da Computação,
o representante da instituição afirma enfaticamente: “Os brasileiros não serão prejudica- Bacharelado em Ciências Biológica, Licenciatura em Ciências Biológica, Licenciatura em
dos. Não estamos dando vantagens indevidas a venezuelanos, ao contrário do que muito Física, Bacharelado em Matemática e Licenciatura em Pedagogia.
tem se comentado”, inclusive apresentando exemplos para fundamentar sua afirmação. O processo seletivo ocorreu em 02 etapas: a primeira contendo 10 questões de
Ao nosso ver, logo no lançamento do Programa, a mídia dissemina informações conhecimento específico levando em consideração o curso escolhido pelo candidato,
preliminares que vão ao encontro do estranhamento vivido pela sociedade roraimense49 e a segunda etapa uma redação em língua portuguesa que auferiria a capacidade do
diante da presença massiva de migrantes venezuelanos. Reconhecendo que Programa candidato em comunicar-se no referido idioma. Além disso, bem-sucedido no processo
tenha sido criado a partir do crescimento da migração procedente da Venezuela, dados seletivo, o candidato teria a obrigação comprovar aprovação em um curso de português
apresentados acima mostram a intensificação do processo de migração internacional, instrumental ou equivalente, na UFRR. Como se vê o processo de ingresso envolveu cri-
não obstante, a forma como as manchetes apresentadas são compostas fomenta um térios bem definidos, embora diferenciados.
sentimento negativo em relação aos venezuelanos em especial, ainda que o Programa No caso do Programa da UFRR, para poder participar do processo seletivo, além
esteja voltado para todo e qualquer migrante que se enquadre no público-alvo, uma vez de possuir o Ensino Médio ou equivalente em seu país, o candidato deverá se enquadrar
que induzem a leitura comparativa em relação às condições de acesso dos brasileiros, em uma das categorias migratórias do Programa: refugiado, solicitante de refúgio ou
que devem fazer vestibulares concorridos para ingresso no ensino superior enquanto os imigrante em situação de vulnerabilidade. Logo, não é qualquer migrante que pode
migrantes – destacados, os venezuelanos – gozariam de “benefícios” para cursar uma candidatar-se e concorrer a uma vaga, uma vez que existem no estado de Roraima mi-
universidade pública. Neste sentido, todos títulos mencionam “venezuelanos” e todas grantes de diferentes categorias.
omitem o termo “processo seletivo”, optando por verbos como “ingressar”, “estudar”, O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados - ACNUR52 conceitua
“ocupar”. os refugiados como “pessoas que estão fora de seu país de origem devido a fundados
É importante destacar que o Artigo 207 da CF/198850 prevê a autonomia das Uni- temores de perseguição” relacionado a fatores como “raça, religião, nacionalidade, per-
versidades para gerenciar a criação de cursos, quantitativos de vagas, formas de ingresso tencimento a um determinado grupo social ou opinião política, como também devido à
e outros aspectos segundo a sua Política Institucional. Na UFRR51, apuramos que pri- grave e generalizada violação de direitos humanos e conflitos armados”. Já os solicitantes
meiramente as vagas originárias são destinadas ao vestibular tradicional e ao Sistema de refúgios “são pessoas que solicitam às autoridades competentes serem reconhecidas
de Seleção Unificada - SISU/ENEM, posteriormente são contabilizadas as vagas ociosas e como refugiado, mas que ainda não tiveram seus pedidos avaliados definitivamente pelos
49 https://theintercept.com/2019/11/28/violencia-xenofobia-venezuelanos-roraima/ https://www12.
sistemas nacionais de proteção e refúgio.” O imigrante em situação de vulnerabilidade
senado.leg.br/noticias/materias/2020/02/13/senadores-de-roraima-cobram-acoes-para-conter- não recebe uma definição especifica segundo tal Organização.
violencia-provocada-por-migracaohttps://amazoniareal.com.br/migrante-cidadao-violencia-expoe-a-
xenofobia-em-roraima/https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/08/refugiados-venezuelanos-sao-
O Protocolo de Assistência a Migrantes em Situação de Vulnerabilidade publicado
agredidos-e-expulsos-de-tendas-em-roraima.shtml https://www.nexojornal.com.br/expresso/2018/03/22/ pela Organização Internacional para as Migrações – Brasil conceitua o “migrante em si-
Os-3-ataques-cometidos-contra-imigrantes-venezuelanos-em-Roraimahttps://www.jornaldocomercio.
com/_conteudo/2018/03/internacional/617727-brasileiros-atacam-abrigo-de-venezuelanos-em-roraima.
tuação de vulnerabilidade” como o “migrante ou grupo de migrantes com a capacidade
htmlhttps://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2018/08/19/pacaraima-tem-ruas-desertas-apos-confronto- limitada de evitar, resistir, lidar ou recuperar-se do risco potencial ou da situação de vio-
entre-brasileiros-e-venezuelanos.ghtml
50 Art. 207. As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão lência, exploração e abuso a que são expostos ou que vivenciam no contexto migratório”,
financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e 52 Também chamada Agência da ONU para Refugiados, atua em nível global para assegurar e
extensão. (BRASIL, 1988) proteger os direitos das pessoas em situação de refúgio em todo o mundo. Ver: https://help.unhcr.org/
51 Dados obtidos através da Plataforma Integrada de Ouvidoria e Acesso a Informação (fala.br). brazil/asylum-claim/refugiado-x-migrante/

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António Raúl Sitoe & Eduardo Gomes da Silva Filho (Org). Fluxos Contemporâneos: Migrações Transnacionais e Direitos Humanos

sendo que “essa capacidade reduzida é o resultado da interação de fatores individuais, um conjunto de informações qualificadas, o caráter malicioso e sensacionalista do título
familiares, comunitários e estruturais.” causa um impacto inicial que, acreditamos, pode influenciar a leitura de todo texto.
Importante destacar que esse Processo Seletivo teve visibilidade nacional, sendo Retomando o desenrolar da implantação do Programa promovido pela UFRR, o
publicado no dia 29 de abril de 2019 no site institucional do ACNUR53. Tal matéria, dife- Edital Nº 074/2019, publicado no dia 05 de julho de 2019, no site da UFRR, com a classifi-
rente da matéria veiculada pelo Portal G1 a época da edição da Resolução de criação do cação oficial dos aprovados, com início previsto para o segundo semestre letivo de 2019.
Programa, deixa claro tratar-se de um processo seletivo diferenciado, com o título UFRR Importante frisar que alguns cursos tiveram que convocar posteriormente os candidatos
abre edital para seleção de refugiados e imigrantes em situação de vulnerabilidade. da lista de espera para preenchimento das vagas, e mesmo assim, das 36 vagas ofertadas
Salienta-se que o que status “solicitante de refúgio” foi mencionado apenas na matéria, no processo, apenas 30 alunos se matricularam.
informando corretamente acerca do público-alvo do programa, junto a isso, o uso da No dia 27 de agosto de 2019 é publicado no site da UFRR (www.ufrr.br) o segundo
expressão “edital de seleção” já demonstra que o acesso à UFRR não se dará de forma processo seletivo para o Programa regido pela Resolução 07/2018. O Edital Nº 082/2019-
graciosa, ou seja, sem qualquer critério ou comprovação de mérito54. CPV ampliou o quantitativo de vagas ofertadas no primeiro edital, ofertando desta vez
Nesse contexto, a Universidade Federal de Roraima passou a constar no rol de Ins- 100 (cem) vagas, sendo 91 (noventa e uma) para ampla concorrência e 09 (nove) para PNE,
tituições Nacionais55 que fornece serviços educacionais para Refugiados e Solicitantes distribuídas em 19 cursos 58. Os requisitos para inscrição e as etapas do processo seletivo
de Refúgio, disponibilizado pela sua Comissão Permanente de Vestibular - CPV56. Apesar no edital não sofreram modificações.
da posterior suspensão do programa, o contato da CPV ainda consta na página da Orga- Em matéria publicada no dia 01 de outubro de 2019 no próprio site da UFRR, a
nização até os dias atuais, pois é possível ter conhecimento dos editais (2019.2 e 2020.1) instituição reforça o caráter social do seu Programa, como mecanismo de inclusão e, ao
lançados pelo programa. mesmo tempo, como ação integrada à gestão, como enfatizado acima pelo reitor Jefferson
Ainda que, segundo Bertoldo (2020, p.70), atualmente, o exercício do direito de in- Fernandes. O presidente da CPV/UFRR, Antônio Aparecido Giocondi, destaca a importân-
gresso é uma faculdade e depende de cada universidade, a partir da autonomia univer- cia do processo na promoção educacional dos migrantes em relação à realidade local,
sitária, não havendo regras ou procedimentos unificados, bem como diretivas comuns. enfatizando que tão importante quanto o acesso estão as ações visando a permanência
O destaque pelo ACNUR, portanto, liga-se ao fato de que o Programa da UFRR atende do aluno imigrante: “A partir do momento que eles ingressam na universidade, nos cabe
à documentos dos quais o Brasil é signatário, como a Declaração Mundial sobre Educa- dar um suporte de disciplina de português, como forma de apoio e inclusão, para que
ção Superior no Século XXI: Visão e Ação (1998) e o Fórum Mundial de Educação (2000), eles consigam acompanhar os demais alunos em sala de aula”.
mas principalmente por oferecer à refugiados, solicitantes de refúgios e imigrantes em No dia 19 de outubro de 2019, no contexto do lançamento do segundo processo
situação de vulnerabilidade uma oportunidade de se qualificar visando a inserção no seletivo, o site Amazoom59 publicou a matéria Processo Seletivo da UFRR para Imigrantes
mercado de trabalho brasileiro. e Refugiados Sofre Duras Críticas informando sobre a denúncia realizada ao Ministério
Nesse aspecto, a matéria do Portal G1, cuja manchete comentamos acima, destaca Público de Roraima alegando inconstitucionalidade e pedindo a anulação do referido
essa questão, ao contar com a análise do Dr. Gustavo Simões, então professor do curso processo seletivo. A matéria informa que a denúncia se refere “a exclusividade do processo
de Relações Internacionais da UFRR: “Para os imigrantes em situação de vulnerabilidade, seletivo” e foi impetrada junto aos Ministério Público Federal em Roraima pelo “enge-
o programa representa uma oportunidade de se inserir melhor no competitivo mercado nheiro e digital influencer, Luizinho Timbó, juntamente com o professor de Economia
brasileiro”. Na mesma matéria, o então reitor da UFRR, Dr. Jefferson Fernandes, explica da UFRR, Rubem Pessoa [...] pedindo a anulação do processo”, por considerarem “que é
os benefícios do Programa para a instituição: “O não preenchimento total das vagas nos inconstitucional você abrir um vestibular exclusivo para estrangeiros, mesmo que com
cursos de graduação traz impactos diretos à nossa Instituição como salas parcialmente vagas remanescentes”. Segundo Timbó, “nenhum lugar do mundo dá vaga exclusiva
vazias e a consequente diminuição dos recursos financeiros enviados à UFRR”57. Reto- para estrangeiros. EUA não dá, Europa não dá 60, e já teve crise migratória lá (...) sabem
mando o que destacamos sobre o título da matéria, ainda que seu conteúdo apresente que isso não dá certo”.

53 Também chamada Agência da ONU para Refugiados, atua em nível global para assegurar 58 Cursos: Agroecologia (T); Agronomia (B); Antropologia (B); Artes Visuais (L); Ciências Econômicas
e proteger os direitos das pessoas em situação de refúgio em todo o mundo. https://help.unhcr. (B); Ciências Econômicas (B); Ciências Sociais (B); Comunicação Social - Jornalismo (B); Geografia
org/brazil/2019/04/29/ufrr-abre-edital-para-selecao-de-refugiados-e-imigrantes-em-situacao-de- (B); Geografia (L); Geologia (B); História (L); Letras - Português e espanhol (L); Matemática (L); Música
vulnerabilidade/ (L); Química (L); Relações Internacionais (B); Secretariado Executivo (B) e Zootecnia (B). Sendo B =
54 A esse respeito, deixamos claro que ao usar a palavra “mérito” nos atemos a ideia que norteia os Bacharelado; L = Licenciatura e T = Tecnológico.
processos seletivos para ingresso no Ensino Superior no Brasil. 59 https://www.redeamazoom.org/post/processo-seletivo-da-ufrr-para-imigrantes-e-refugiados-
55 https://help.unhcr.org/brazil/viver-no-brasil/educacao/ sofre-duras-crit%C3%ADcas
56 hthttp://ufrr.br/cpv/index.php?option=com_ 60 Sobre a superficialidade do argumento de Timbó, ver: https://educacao.estadao.com.br/noticias/
phocadownload&view=category&id=40&Itemid=301tps://www.santiagodantas-ppgri.org/ geral,universidades-europeias-oferecem-bolsas-exclusivas-para-brasileiros,1623398. “Quer estudar no
57 https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/venezuelanos-vao-poder-ingressar-em-cursos-de- exterior? Veja mais de 30 programas de bolsas pelo mundo”. https://exame.com/carreira/bolsas-estudo-
graduacao-da-ufrr-sem-vestibular.ghtml canada-japao-espanha/

98 99
António Raúl Sitoe & Eduardo Gomes da Silva Filho (Org). Fluxos Contemporâneos: Migrações Transnacionais e Direitos Humanos

O site ouviu o presidente da CPV/RR, Antônio Giocondi, que contra-argumenta: No 30/11/2019, o Portal G1 publicou a matéria Justiça determina suspensão de pro-
“desde 2018 já vínhamos anunciando como o faríamos se houvessem vagas sem serem cesso seletivo para refugiados e imigrantes na UFRR64 que também informa sobre o
ocupadas depois de haverem passado pelos processos de Transferência e Portador de cancelamento do processo seletivo, mas, ao contrário da matéria anterior, dá mais deta-
Diploma, processos esses que foram executados em janeiro de 2019”. Ouviu também o lhes sobre a decisão judicial. Importante destacar no título dessa matéria e no da citada
Dr. João Alfredo de Azevedo Ferreira, presidente da Comissão de Direito Internacional da acima, foi enfatizado que se tratava de um “processo seletivo”, sendo que na notícia da
OAB – RR, que diz que não existe uma base de sustentação legal sólida para realização Folha de Boa Vista não há menção sobre vagas remanescentes, enquanto o G1 dá desta-
de tal processo seletivo pela UFRR, pois o mesmo tem como base uma resolução apro- que a isso, no subtítulo da matéria: “Programa estava em vigor desde julho de 2018; vagas
vada pelo Conselho de Ensino e Pesquisa (CEPE) da própria UFRR (Resolução 07/2018) ofertadas eram remanescentes de outros editais na universidade”.
afirmando: “não vejo até então qualquer demonstração de que esteja lastreado numa Além disso, na matéria consta várias partes da argumentação apresentada pela juíza
lei específica onde ele como uma norma resolutiva ele tenha poder de avançar a ponto da 4ª Vara, Luiza Farias da Silva Mendonça, que entendeu haver “discriminação reversa
de estabelecer um processo seletivo de tal porte”. injustificável”65 na seleção, e afirmou que o Programa, “extrapolou os limites constitucio-
As leis que Ferreira menciona são a Lei 9.474/97 (Lei de Implementação do Estatuto nais e legais” pois os critérios da resolução que criou a seleção são “nitidamente, despro-
do Refugiado/1951), que possibilita um acesso facilitado a educação através do seu artigo porcionais e em flagrante ofensa ao princípio constitucional da igualdade”, apontando a
44, e a Lei 13.445/2017 (Lei de Migração), bem como a própria Constituição Federal de “desproporcionalidade “da citada política afirmativa, em detrimento dos demais compo-
1988, que tem como princípio básico a “dignidade da pessoa humana” e assegura como nentes da sociedade”, comparando o processo seletivo específico ao vestibular da UFRR.
direitos sociais básicos “a educação” e “a assistência aos desamparados”, no Artigo 6º, não Destaca-se que a argumentação da magistrada, baseada na premissa equivocada
havendo no referido artigo menção a qualquer diferença entre nacionais e estrangeiros. da “discriminação reversa”, não leva em conta a legislação brasileira sobre as ações afir-
Junto a isso, a Constituição, no seu Artigo 207, garante às Universidades, “na forma da lei, mativas, que visam justamente promover a igualdade e corrigir as desproporcionalidades
de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial”, o sociais existentes na nossa sociedade. Como mencionado anteriormente, são mecanis-
que lhes possibilita implantar programas de ações afirmativas. Com relação ao ingresso mos diferenciados para que grupos socialmente minoritários e/ou vulneráveis possam
no Ensino Superior, apesar da previsão legislativa nacional e em mecanismos interna- ter direito, neste caso, ao Ensino Superior.
cionais dos quais o Brasil é signatário61, a criação de programas é uma iniciativa das No contexto da suspensão do processo seletivo, a UFRR somente se pronunciou
próprias universidades que “levam em consideração a situação vulnerável de refugiados no dia 04 de dezembro, publicando uma nota no site institucional66, apresentando, em
e solicitantes e podem disponibilizar vagas exclusivas para refugiados, solicitantes e/ou três parágrafos, apenas informações básicas. É oportuno mencionar que todos os comu-
migrantes em situação de vulnerabilidade” (CSVM, 2019a, p. 12)62. nicados institucionais foram divulgados apenas na língua portuguesa.
Para Gomes (2001, p. 131) “essas políticas sociais, que nada mais são do que tentativas Para Dantas e Gomes (2014), mesmo com a Lei 9474/97, para o refugiado e o imi-
de concretização da igualdade substancial ou material”, as quais são categorizadas como grante a integração local é considerada complexa, englobando barreiras de adaptação e
“’ação afirmativa’ ou, na terminologia do direito europeu, de ‘discriminação positiva’ ou convivência por conta de fatores culturais, socais e econômicos. Estes, também tem que
‘ação positiva’”. Essas ações afirmativas geram responsabilidade para o Estado de criar lidar com constantes discriminações, pois é visto como uma ameaça pelos nacionais ao
condições de igualdade entre os indivíduos, impondo um tratamento diferenciado. ter que dividir oportunidades. Posteriormente, a Lei n.º 13.445/2017 institui uma nova visão
No dia 29/11/2019, o jornal Folha de Boa Vista, publicou a matéria intitulada Justiça sobre o migrante, que, segundo João Chaves67, “vê o migrante não como ameaça, mas
determina suspensão do processo seletivo para imigrantes63 informando sobre o can- como contribuinte para a sociedade brasileira”, vendo “a migração fora da perspectiva da
celamento da prova, marcada para 08/12/2019, e que a medida se dá em “cumprimento criminalização e securitária”, superando o paradigma estabelecido pelo antigo Estatuto
à Decisão judicial (processo n° 1003775-84.2019.4.01.4200) expedida pela 4ª Vara da Seção do Estrangeiro e identificando o migrante como um “um sujeito de direitos”. Todavia, a
Judiciária da Justiça Federal de Roraima”. Por meio de um texto sumário, composto por realidade é que na sociedade os migrantes ainda são vistos como ameaças, como pessoas
apenas três pequenos parágrafos, a matéria informa o endereço eletrônico da CPV/UFRR.
64 https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2019/11/30/justica-determina-suspensao-de-seletivo-para-
61 Declaração Universal de Direitos Humanos (1948); Convenção de 1951 e o Estatuto do Refugiado refugiados-e-imigrantes-na-ufrr.ghtml
65 Discriminação reversa  é a  discriminação  contra os membros de um grupo dominante ou
(1951); Protocolo de 1967; Pacto de São José da Costa Rica (1969); Declaração de Cartagena – 1984; Convenção
majoritário, em favor dos membros de uma minoria ou grupo historicamente desfavorecido. Link:
Internacional sobre a Proteção dos Direitos de todos os Trabalhadores Migrantes e seus Familiares – 1990; https://pt.wikipedia.org/wiki/Discrimina%C3%A7%C3%A3o_reversa. “Não existe racismo reverso dentre
Declaração de São José sobre Refugiados e Pessoas Deslocadas (1994); Declaração e o Plano de Ação do outras razões, pelo simples fato de que nunca houve escravidão reversa...”, posicionamento do Juiz João
México para Fortalecer a Proteção Internacional dos Refugiados na América Latina - 2004; Convenção Azambuja (11ª Vara de Goiânia) que destacou a “impossibilidade ontológica de uma pessoa branca ser
Interamericana contra Todas as Formas de Discriminação e Intolerância (2013); Convenção Interamericana vítima de racismo” (Estadão, 30/01/2020; link: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/nao-
contra Racismo, Discriminação Racial e Formas Relacionadas de Intolerância (2013) existe-racismo-reverso-diz-juiz-ao-absolver-jovem-negro-denunciado-por-postagens-sobre-brancos/
62 https://www.acnur.org/portugues/wp-content/uploads/2019/09/Relatorio-Anual-CSVM_Digital.pdf 66 https://ufrr.br/ultimas-noticias/6049-suspensao-do-processo-para-refugiados-imigrantes-2020-1
63 https://folhabv.com.br/noticia/CIDADES/Capital/Justica-determina-suspensao-de-processo- 67 Entrevista na Cartilha Percurso, Percalços e Perspectivas: A Jornada do Projeto – Atuação em Rede
seletivo-para-imigrantes/60173 – República Federativa do Brasil

100 101
António Raúl Sitoe & Eduardo Gomes da Silva Filho (Org). Fluxos Contemporâneos: Migrações Transnacionais e Direitos Humanos

que querem conquistar os poucos empregos locais e usufruir de um sistema de saúde destacando que a referida instituição promove, desde 2014, o ingresso de migrantes
e educação que já é precário para sociedade local. admitidos no Brasil, com status de refugiado, de acolhida humanitária ou similar. E,
ainda, a Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), criada em 2010,
2.1 Programas em outras universidades federais
que nasceu com a missão de contribuir para a integração latino-americana, oferecendo
50% das vagas novas ofertadas pela universidade para brasileiros e os outros 50% para
Não desejamos entrar no mérito de questões judiciais neste artigo, mas compreen-
candidatos de outras nacionalidades da América Latina e Caribe.
dermos o perfil do público-alvo do Programa para entender os mecanismos adotados
Podemos citar, também, a Universidade Federal da Bahia adota desde 2018 vagas
no seu processo seletivo. Para isso, contamos com a experiências de outras instituições
extras especificas para Aldeados, Quilombolas, Trans e Refugiados72. Para esses candi-
Brasil a fora.
datos é utilizada a nota do Enem no processo classificatório, tendo este aluno prioridade
Em pesquisa realizada na Plataforma de Informação do Governo Federal (fala.br),
face aos demais refugiados que não tenham feito Enem, os quais serão avaliados através
através de um questionário padronizado, constatou-se que 17 Universidades Federais68
de outros critérios, como o tempo no Brasil.
possuíam vagas ou programas específico para refugiados, solicitantes de refúgio ou visto
Nossa pesquisa tem confirmado o que demonstra Bertoldo (2020, p.80), que “a
humanitário e imigrantes em situação de vulnerabilidade. Algumas dessas Universidades
maioria das instituições já possuía formas diferenciadas de ingresso desde os anos 2000
utilizam como processo seletivo o ENEM outras realizam processos seletivos próprios.
até 2010”, apontando também que “outra parcela representativa passou a aprovar norma-
Importante destacar que este tipo de programa não é uma novidade em nossas
tivas nesse sentido nos últimos anos, de 2014 a 2019”. Assim, verificamos que os programas
Instituições de Ensino Superior, apesar de terem ganhado destaque a partir de 2017, com
específicos e a adoção de processos seletivos diferenciados antecedem bastante o Progra-
as notícias acerca das migrações em massa de venezuelanos para o Brasil. Antes deste
ma da UFRR, ressaltando que estes continuam vigentes e sendo ampliados atualmente.
fluxo migratório algumas universidades possuíam o Programa Pró-Haiti69, do governo
federal, só que neste caso os candidatos deveriam ser estudantes de uma IES haitiana. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tal programa acabou abrindo as portas para que outros semelhantes fossem criados
diretamente pelas Universidades Federais. Nessa situação podemos citar a Universida- O preconceito enraizado na sociedade dificulta ainda mais a inserção dos refugiados.
de Federal da Fronteira Sul, que possui o Programa de Acesso à Educação Superior da Essas pessoas sofrem com o choque cultural diante de novos costumes e, com o olhar
UFFS para Estudantes Haitianos – PROHAITI, instituído em 201370, e que posteriormente diferenciado que recebem da população local. Logo, é notório a necessidade de medidas
criou o Programa de Acesso e Permanência a Estudantes Imigrantes (PRÓ-IMIGRANTE), para a conscientização dos brasileiros acerca do assunto. É importante que a sociedade
em 201971, não sendo implantado devido a situação pandêmica vivenciada, mas possui tenha uma postura crítica e busque conhecimento em fontes confiáveis, não aceitando
previsão para processo seletivo específico. qualquer informação que a mídia divulga.
Apresentamos alguns exemplos, começando pela Universidade Federal de São Isso fica claro, na leitura que fizemos das matérias supracitadas. Disponíveis na
Paulo (Unifesp), com seu Programa de Ingresso de Refugiados, Apátridas e Portadores plataforma de buscas Google, publicadas por veículos de grande penetração local como
de Visto Humanitário, criado em 16 de outubro de 2019; realizou dois processos seletivos o jornal Folha de Boa Vista (impresso e eletrônico) e o Portal G1/RR, percebemos um
em 2020 e 2021. Segundo Isabel Hartmann, pró-reitora de Graduação da Unifesp, o pro- tratamento diferenciado naquelas que tratam da aprovação do Programa no âmbito da
cesso seletivo específico adotado pela Unifesp, tem um número de questões menores e UFRR e sobre o primeiro processo seletivo e aquelas que se referem a sua suspensão.
linguagem mais objetiva, uma linguagem que não contenha ambiguidades ou figuras Nas primeiras a prevalência do termo “venezuelano”, junto a “refugiado” e “imigrante”,
de linguagem, tendo em vista as dificuldades linguísticas dos candidatos, mas que avalie
vinham associadas a poder “ocupar”, “estudar”, “ingressar” na UFRR, omitindo-se nos
o que é universalmente necessário para o indivíduo estar no ensino superior.
títulos o termo processo seletivo. Ora, até um leigo sabe que o título da notícia é o “cha-
Com programa específico, a Universidade Federal do Paraná, com um Vestibular
mariz” para a leitura, resume o seu conteúdo definindo, explícita ou implicitamente, o
Especial, implementado desde 2018, que busca preencher vagas suplementares,
direcionamento do que será lido.
68 Universidade Federal do Pará; Universidade Federal da Bahia; Universidade Federal do Paraná;
Universidade Federal de Santa Maria; Universidade Federal Juiz de Fora; Universidade Federal de Minas Por outro lado, verificamos que os mesmos veículos de mídia expuseram a sus-
Gerais; Universidade Federal do ABC; Universidade Federal Fronteira do Sul; Universidade Federal de
Santa Catarina; Universidade Federal de Pelotas; Fundação Universidade de Brasília; Universidade Federal pensão do Programa e de seu segundo processo seletivo de forma diferente. No corpo
da Integração Latino – Americano; Universidade Federal de São Paulo; Universidade Federal Triangulo das matérias e nos seus títulos foram usados os termos adequados e foi omitida toda e
Mineiro; Universidade Federal Vales do Jequitinhonha e Mucuri; Fundação Universidade Federal Mato
Grosso do Sul; Fundação Universidade Federal de São Carlos. qualquer menção aos “venezuelanos”.
69 O Pró-Haiti foi criado por meio da Portaria Nº 092, que estabelece o Programa Emergencial Pró-
Haiti em Educação Superior e dispõe sobre os procedimentos para operacionalização das atividades Observamos que a sociedade ao ler essas notícias, as têm como verdade, notada-
do programa, orientado pelo Memorando de Entendimento assinado pelo Brasil e Haiti no dia de 25
de fevereiro de 2010 para a reconstrução, o fortalecimento e a recomposição do Sistema de Educação mente quando associadas a outras publicadas nos mesmos veículos, nas páginas poli-
Superior do Haiti.
70 https://www.uffs.edu.br/atos-normativos/resolucao/consuni/2013-0032 ciais, por exemplo, que associam os migrantes venezuelanos ao crime, à violência urbana
71 https://www.uffs.edu.br/atos-normativos/resolucao/consuni/2019-0016 72 https://ingresso.ufba.br/aldeados-quilombolas-ptrans-refugiados

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António Raúl Sitoe & Eduardo Gomes da Silva Filho (Org). Fluxos Contemporâneos: Migrações Transnacionais e Direitos Humanos

e à prostituição. Acreditando que tais fatos prejudicam os roraimenses, culpabilizam a BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília,
migração e os migrantes que, além disso, são vistos como usurpadores dos serviços pú- DF, Senado, 1988.
blicos, benefícios e oportunidades que deveriam ser dos brasileiros locais. Junto a isso,
BRASIL. Lei 9.474/97. Define mecanismos para a implementação do Estatuto dos Re-
as famosas fake news disseminam todo tipo de informação falsa, distorcida, preconcei- fugiados de 1951, e determina outras providências. Brasília, DF, Senado, 1997. Disponível
tuosa e discriminatória, interferindo na possibilidade de uma leitura mais aprofundada em www.planalto.gov.br. Acessado em 25 abr. 2021.
e crítica sobre o assunto.
BRASIL. Cartilha Percurso, Percalços e Perspectivas: A Jornada do Projeto – Atuação
Ainda mais quando tratamos do Ensino Superior em uma instituição pública, gra- em Rede. Brasília, DF, Senado.
tuita e de qualidade, como a UFRR. Da mesma forma que outras instituições públicas
do Brasil, a UFRR, a par do princípio da equidade que norteia as políticas de educação BRASIL. Lei 13.445/2017 – Lei de Migração. Brasília, DF, Senado, 2017. Disponível em
www.planalto.gov.br acessado no dia 25 abr. 2021.
brasileiras, reconhecendo necessidades de grupos específicos e atuando para reduzir o
impacto das desigualdades, vem buscando implantar, expandir e aperfeiçoar programas DANTAS, Virgínia da Hora; GOMES, Olívia M. Cardoso. A política de interna no Brasil de
que contemplem as cotas raciais e para egressos do ensino público e os processos sele- proteção aos refugiados e as ações do governo federal: assistência social e benefício de
tivos específicos para imigrantes. prestação continuada para refugiados no Brasil. CONPEDI, Florianópolis, 2014.
No âmbito das universidades, as “desproporcionalidades” alegadas para a suspen- FERNÁNDEZ, Adrian Padilla. Interculturalidade, Mídia e Migração na América Latina.
são do processo seletivo, se fundamentam no princípio da autonomia, inclusive quanto à Interfaces da Mobilidade Humana na Fronteira Amazônica. Márcia Maria de Oliveira;
determinação da sua política de seleção e ingresso de alunos, cabendo às suas instâncias Maria das Graças Santos Dias (Orgs). Boa Vista: Editora da UFRR, 2020.
colegiadas as decisões acerca dessas ações, que coadunadas com sua missão constitu-
GOMES, Joaquim Benedito Barbosa. A recepção do instituto da ação afirmativa pelo
cional e institucional, acolham aqueles que se encontrem em situação de vulnerabilidade Direito Constitucional Brasileiro. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 38, n.
social, como migrantes e refugiados. 151, p. 129-151, jul. /set. 2001. Disponível em: https://www.academia.edu/14661392/A_rece-
É importante deixar claro, portanto, que no contexto aqui tratado a mídia local p%C3%A7%C3%A3o_do_instituto_da_a%C3%A7%C3%A3o_afirmativa_pelo_Direito_Cons-
titucional_brasileiro. Acesso em: 12 set. 2021
teve e terá papel relevante, tendo em vista que não há mídia isenta e descomprometida
com as políticas editoriais que respondem a diferentes interesses – econômicos, políticos, INEP – INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO
ideológicos, culturais e geopolíticos. As mídias são formadoras de opinião. TEIXEIRA. Censo da Educação Superior 2019: Divulgação dos Resultados. Brasília -
DF. 2019. https://download.inep.gov.br/educacao_superior/censo_superior/documen-
Aliadas às experiências sociais dos roraimenses face à migração venezuelana, ao
tos/2020/Apresentacao_Censo_da_Educacao_Superior_2019.pdf. Acessado 20 abr. 2021.
somar-se as vozes dos políticos locais – que buscam escapar das cobranças da população
acerca da qualidade dos serviços públicos – e as dos arautos do apocalipse de plantão, a LEVEL, Beatriz Patrícia de Lima; SILVA, João Carlos Jaroschinski. Uma Mesma Partida,
mídia local contribuiu para a descontinuação do Programa de Acesso à Educação Supe- um mesmo Destino: Haitianos e Venezuelanos em Boa Vista – RR. Mobilidade Huma-
na na Pan-Amazônica: implicações teóricas e experiências empíricas. EDUFRR. Boa
rior de Refugiados, Solicitantes de Refúgio e Imigrantes em situação de Vulnerabilidade, Vista – RR. 2020 p, 89-106. Acessado em: https://www.academia.edu/45679854/UMA_
inviabilizando-o. No Brasil de hoje, temos escolhas bem sentidas a fazer, e temos certeza MESMA_PARTIDA_UM_MESMO_DESTINO_HAITIANOS_E_VENEZUELANOS_EM_BOA_
que fomentar o pânico moral, a xenofobia e o ódio ao diferente não deve ser uma delas. VISTA_RR.

OIM - Organização Internacional para as Migrações. Protocolo de Assistência a Mi-


Referências
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tps://www.acnur.org/portugues/wp-content/uploads/2020/09/Relat%C3%B3rio-Anual-
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Paris. 1998. Disponível em: http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Direito-a-E-
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ACNUR. Cátedra Sérgio Vieira de Mello – Relatório de Atividades 2019. [S. l.]: ACNUR,
sao-e-acao.html. Acessado: 20 abr. 2021.
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VASCONCELOS, Iana dos Santos. “Desejáveis” e “indesejáveis”: diferencialidades e pa-
radoxos no acolhimento de venezuelanos/as em Roraima e no Amazonas. Tese de Dou-
BAUMAN, Z. Estranhos à nossa porta. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2017
torado (Antropologia Social) - Universidade Federal de São Carlos, campus São Carlos,
São Carlos. Orientador (a): Igor José de Renó Machado. Maio/ 2021.
BERTOLDO, Jaqueline. Fronteiras da igualdade: direito à educação superior para imi-
grantes e refugiados(as) na UFSM. Orientador: Giuliana Redin Dissertação (mestrado) -
Universidade Federal de Santa Maria, Centro de Ciências Sociais e Humanas, Programa
de Pós-Graduação em Direito, RS, 2020.

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António Raúl Sitoe & Eduardo Gomes da Silva Filho (Org). Fluxos Contemporâneos: Migrações Transnacionais e Direitos Humanos

8 Ius migrandi: princípios universais dos


direitos humanos, proteção ao migrante
e refugiado venezuelanos
António Raúl Sitoe73

1 INTRODUÇÃO

A
pesquisa é sobre princípios universais, direitos humanos, proteção de mi-
grantes e refugiados venezuelanos no Brasil. Ao debate sobre os princípios
universais dos direitos humanos é uma discussão frequente no meio aca-
dêmico no mundo e particularmente no Brasil com intuito de compreender a causa da
emergência humanitária venezuelana, identificação, acolhida e interiorização do migran-
te. Para isso, foi necessário que o governo brasileiro reconhecesse a crise venezuelana
e objetivando acolher os requerentes do refúgio foi promulgada Lei nº 9.474, de 22 de
julho de 1997 que define no art. 1º “será reconhecido como refugiado todo indivíduo que:
devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade,
grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não
possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país”.
As sociedades, desde à origem do mundo e no curso dos séculos, têm acolhido
imigrantes que abandonam as suas origens por causa da violência, insegurança e per-
seguição. Por essa razão, as crises econômicas, política, social, a insegurança alimentar,
guerras e perseguições em massa produzem inúmeros refugiados e deslocados. Contudo,
os indivíduos fugindo da ameaça e da vontade de salvaguardar o direito fundamental,
vida e liberdade, os governos, cumprindo as suas obrigações humanitárias, com a coo-
peração de organismos internacionais, desenvolvem políticas que possam amparar aos
migrantes e refugiados venezuelanos. Em razão disso, no princípio do século XXI, a pro-
teção ao migrante, refugiado e requerente de asilo passa a significar solidariedade com
as populações que se encontram em risco, encontrando resposta à demanda dentro dos
princípios emanados pelos organismos internacionais, regionais e nas legislações dos
estados. A proteção de migrantes e refugiados é da responsabilidade de Estados, por isso
que, o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), ao longo de 71
anos da sua história, tem atuado em colaboração com os governos dos estados, parceiros
na proteção de refugiados.
Consequentemente, governos por meio da parceria com o ACNUR tem concedido
asilo aos refugiados, criando condições de sua permanência dentro do território nacional
até que haja condições do retorno seguro nos seus países. Nessa cooperação, junto com
os governos, o ACNUR opera em territórios, prestando assistência humanitária, financeira
aos refugiados através de programas nacionais do financiamento às operações de pro-
teção e assistência do ACNUR.
73 Doutorando em História pelo PPGH/UNIVERSO-RJ. Email: antonio_teacher@hotmail.com, CV:
http://lattes.cnpq.br/3019837874674858.

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António Raúl Sitoe & Eduardo Gomes da Silva Filho (Org). Fluxos Contemporâneos: Migrações Transnacionais e Direitos Humanos

Facilitando a acolhida, abrigamento e interiorização por meio de emprego com origem filosófica dos direitos humanos variou em cada momento histórico, sendo que,
carteirinha assinada, o Brasil encontra soluções perduráveis para problemas de migrantes existe algo em comum em todas as concepções à ideia da singularidade que por si só
e refugiados que ficaram sem proteção no seu país de origem. serve como fundamento para a sua proteção.
O quadro jurídico sustenta a proteção internacional ao refugiado foi construído pe- Tal ideia de precedência axiológica do homem em relação ao Estado até ao pri-
los Estados que assumiram o seu compromisso em garantir a proteção dos refugiados a meiro período do reconhecimento dos direitos humanos ao longo do século XVIII, onde
partir da adesão à convenção de 1951 concernente ao Estatuto dos Refugiados, princípio se acredita que, os próprios direitos do homem, direitos naturais eram anteriores à exis-
fundamental sobre a proteção aos refugiados. tência da sociedade.
Posto isso, é possível considerar que, a proteção dos cidadãos é da responsabilida-
2 FUNDAMENTO JURÍDICO INTERNACIONAL PARA A PROTEÇÃO AOS REFU- de do Estado. De tal sorte, os governos quando se eximem de fornecer a proteção aos
GIADOS cidadãos, nisso, correndo o risco da violação dos seus direitos, são obrigados a abandonar
o seu país em busca de refúgio em outro país. Daí deriva a relevância dos organismos
Depois da Segunda Guerra Mundial, uma das maiores preocupações do mundo foi internacionais, quando os governos dos países de origem não protegem os direitos fun-
por meio da Organização das Nações Unidas, o estabelecimento da Declaração Universal damentais dos refugiados, intervém para que esses direitos sejam preservados.
dos Direitos Humanos em 1948, visando fornecer a segurança, a sobrevivência humana Depois do fim da Segunda Guerra Mundial é promulgada a Declaração Universal
por meio da garantia de direitos essenciais ao homem embasado no imperativo cate- dos Direitos Humanos de 1948 e as quatro Convenções de Genebra de 1949 sobre o di-
górico kantiano que estabelece o seguinte o “homem, e duma maneira geral, todo o ser reito humanitário internacional, assim como uma série de tratados e declarações inter-
racional, existe como fim em si mesmo” (KANT, 2005, p. 68) e que toda a sua essência é nacionais e regionais e vinculativos e não vinculativos, que tratam especificamente as
igual independentemente da sua origem sociocultural, racial ou nacional. E como realça necessidades de refugiados. No contexto de pós-guerra, a Assembleia Geral das Nações
Hannah Arendt (1989, p. 330) são os “direitos a ter direitos” e são considerados essenciais, Unidas criou o Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados
pois o ser humano é titular em consequência de uma construção histórica, buscou as- (ACNUR) com a finalidade de proteger os refugiados e para encontrar soluções definiti-
segurar a proteção e dignidade à vida do ser humano. O núcleo de direitos humanos vas para seus problemas. A ACNUR o seu trabalho funda-se em um conjunto de normas
plasmados na Declaração Universal dos Direitos Humanos é essencial para que homem e instrumentos internacionais como a Declaração Universal dos Direitos Humanos e das
possa sobreviver e preservar a sua dignidade. quatro Convenções de Genebra sobre direito humanitário internacional.
A garantia dos direitos humanos encontra-se respaldada nos fundamentos filo-
sóficos, diante do Estado, compondo a sua justificativa política. Em sua razão disso, os 2.1 Princípios internacionais sobre a proteção dos refugiados
fundamentos políticos explicam a existência dos direitos humanos que por seu meio
se busca a proteção humana da violação de direitos por parte do Estado. Como Arendt O preâmbulo da Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados
assevera, o Estado é o espaço onde se realizam os direitos humanos, uma vez sendo o contém uma linguagem bastante incisiva sobre os direitos humanos. O seu primeiro pa-
pressuposto para o exercício da cidadania no Estado. Como Norberto Bobbio vai notar a rágrafo refere que, os seres humanos devem gozar dos direitos e liberdades fundamentais
seguir, o ser humano é anterior ao Estado, aderindo-o através da vontade própria, com tal como estabelece o art. 7 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, “Todos são
o objetivo de contar com uma proteção oficial. O Estado sendo criação humana, não se iguais perante a lei e, sem distinção, têm direito a igual proteção da lei. Todos têm direito
sobrepõe ao seu criador. Por isso, Norberto Bobbio deixa a seguinte lição: a proteção igual contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra
Ao contrário não existe nenhuma Constituição democrática, a começar pela
qualquer incitamento a tal discriminação”. No segundo parágrafo recorda a preocupação
Constituição republicana da Itália que não pressuponha a existência de indivíduos
singulares que têm direitos enquanto tais. E como seria possível dizer que eles são da Organização das Nações com os refugiados, assim como os esforços da agência em
‘invioláveis’ se não houvesse o pressuposto de que, axiologicamente, o indivíduo é
garantir aos refugiados o pleno gozo dos seus direitos e liberdades fundamentais. Estes
superior à sociedade de que faz parte?”;80 e “a finalidade de toda associação política
é a conservação destes direitos”81 (estes direitos equivalendo a direitos humanos). princípios incorporam os valores dos direitos humanos no tratamento dos refugiados,
(BOBBIO, 1992, p. 102).
orientando adequadamente a interpretação das disposições contidas na Convenção
das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 em conformidade com a
Em outras palavras a garantia da segurança dos seres humanos mantém-se em re- Convenção de Viena sobre o direito dos tratados de 1969.
lação à construção estatal, garante da proteção dos direitos humanos. Dessa forma, tanto Embora sob o ponto de vista do direito internacional a preocupação com a questão
pela antecedência do indivíduo em relação ao Estado e pelo fato do último ser a criação de refugiados surja no início da década de 1950 do século XX, à sua origem refere-se ao
do homem serve de instrumento para resguardar os direitos dos indivíduos diante das indivíduo que, desde o período clássico, com a inviolabilidade dos templos, permitia-se
atividades do Estado, sendo estas a base do seu fundamento político. No concernente à ao indivíduo uma espécie de refúgio. Na época moderna, o seu uso começa na França

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António Raúl Sitoe & Eduardo Gomes da Silva Filho (Org). Fluxos Contemporâneos: Migrações Transnacionais e Direitos Humanos

com o refugie, usado com o sentido de “procurar abrigo, proteção”, fazendo referência podem causar um medo para esse indivíduo, embora circunstâncias objetivas possam
aos Huguenotes, protestantes franceses que se deslocaram após a revogação do Edito de não constituir o mesmo para o outro indivíduo (ACNUR, 1996).
Nantes e dos massacres da trágica noite de São Bartolomeu havida em 1572 (HATHAWAY, Entretanto é necessário realçar que, o temor, a sua origem, tratando-se de um
1991). instituto de direito, funda-se a partir de situações concretas do país que afetam a vida, a
A Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951, base do direito interna- insegurança, a liberdade de quem busca o refúgio e a preservação da integridade física
cional dos refugiados, define refugiados nestes termos, indivíduos que estavam fora do em país do destino.
seu país de origem por causa de uma série de acontecimentos catastróficos na Europa Nisso, Liliana Jubilut e Gustavo Ferraz de Campos Monaco (2010. p. 87) entendem
que tiveram lugar até antes da Convenção sobre Refugiados em 1 de janeiro de 1951. que, o Direito Internacional dos Direitos Humanos (DIDH), Direito Internacional dos Re-
Com o surgimento de emergências humanitárias e refúgios nas décadas de 1950 e 1960, fugiados (DIR) e Direito Internacional Humanitário (DIH) constituem instrumentos (JU-
tornou-se urgente a ampliação no âmbito temporal e espacial sobre os refugiados. Essa BILUT, 2012) tradicionais de proteção dos direitos humano (CANÇADO TRINDADE, 1996).
virada de 1950/1960 constituiu marco importante em relação à proteção de refugiados Estes instrumentos normativos atuam na garantia dos direitos humanos de todos os
no mundo, sobretudo nos países signatários da Convenção (LOESCHER, 1993, pp. 68-70). seres humanos, na proteção dos que deixam o país de origem em decorrência do temor
De acordo com esta convenção, no seu 1o §, art. 33 relativa à proibição de expulsão de perseguição por razões ideológicas, rácicas, religiosas ou pertencimento a um grupo
ou de rechaço entende que, específico (ACNUR, 1951), uma atuação, visando proteger as pessoas durante o conflito
Nenhum dos Estados Contratantes expulsará ou rechaçará, de maneira al-
armado internacional ou nacional (JUBILUT, 2007).
guma, um refugiado para as fronteiras dos territórios em que a sua vida ou a sua
liberdade seja ameaçada em virtude da sua raça, da sua religião, da sua nacionali- A redação desse instrumento era tida como meio de proteção às vítimas de perse-
dade, do grupo social a que pertence ou das suas opiniões políticas (ACNUR, 1951).
guição da guerra. Quando os conflitos derivam das diferenças étnicas, religiosas ou polí-
Por conseguinte, o termo refugiado fortaleceu-se com a Convenção Relativa ao ticas, põem em causa à vida das pessoas, e elas fugindo de tais conflitos são nos termos
Estatuto dos Refugiados de 1951, adquirindo por essa via o sentido que hoje possui no da Convenção de 1951 como refugiados. O Comitê Executivo na sua sessão realizada em
direito internacional e nas demais legislações nacionais sobre refugiados. O artigo 1 da 1998 enfaticamente reafirmou isto em várias ocasiões (ACNUR, 1998). À luz disso, comu-
nidades inteiras, estando em riscos de perseguição, com base na Convenção e porque os
Convenção apresenta princípios para a definição da pessoa refugiada,
1) Que foi considerada refugiada nos termos dos Ajustes de 12 de maio de 1926 membros da comunidade se encontram atingidos, de forma análoga prejudicaria o seu
e de 30 de junho de 1928, ou das Convenções de 28 de outubro de 1933 e de 10 de
fevereiro de 1938 e do Protocolo de 14 de setembro de 1939, ou ainda da Constituição pedido de asilo individual. Contrariamente, tais fatos facilitariam o reconhecimento do
da Organização Internacional dos Refugiados (ACNUR, 1951, online). estatuto de refugiado, pois o processo sociológico que gera a estigmatização constitui
arquétipo de perseguição.
Sobre o racismo, Norberto Bobbio, Nicola Mateucci e Gianfranco Pasquino (1999, p.
À luz deste instrumento, os refugiados têm direito à proteção internacional
800), no seu Dicionário de Política, a questão embora existindo desde há séculos, teve
quando os seus direitos humanos estiverem ameaçados. O refugiado tem direito contra
proporções políticas no começo da modernidade. As ideologias de supremacia racial ti-
o repatriamento para o território onde a sua liberdade estaria posta em causa. O art. 33
veram destaque com o processo de colonização que refletiu na desigualdade de meios
da Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 garante o
tecnológicos e econômico, a emergência do elemento ideológico buscou estabelecer
princípio de não expulsão (ACNUR, 1984). Esta proteção e outros contidos nessa Conven-
relações de desigualdades sociais, refletindo-se em subordinações em relações do poder
ção constituem o objetivo da determinação do estatuto do refugiado. Nesse sentido, os
e econômico. Do racismo vai derivar o conceito de inferioridade fundada em aspectos
princípios de direitos humanos devem servir de base para interpretação e na definição de
essencialmente não inerentes ao ser humano como os seus usos e costumes, a organi-
quem é abrangido do direito à proteção. Decerto, a complementaridade entre a proteção
zação social e entre outros, tendo apenas merecido atenção no pensamento racista o
dos refugiados e o sistema internacional de proteção dos direitos humanos foi expressa
aspecto coloração da pele.
e elaborada em diversos documentos do Alto-comissariado das Nações Unidas para os
O Manual do ACNUR identifica “temor causado pela perseguição” como parte central
Refugiados e conclusões do Comitê Executivo (ACNUR, 1981, no 22).
da definição e trata do medo com detalhes consideráveis (ACNUR, 1996). Não obstante
Passando para outra vertente dos refugiados em África, a Convenção que rege os
o medo seja um sentimento subjetivo, para fins da definição do estatuto de refugiado
problemas específicos da Organização de Unidade africana (OUA), o tratado regional
deve ser objetivo. O grau que cada um desses elementos subjetivos pode ser relevante
adotado em 1969 acrescentou uma consideração objetiva à definição encontrada na Con-
para determinado caso individual. Em casos em que nenhum medo subjetivo se mani-
venção de 1951 citado em Liliana Lyra Jubilut (2007, p.88): “Qualquer pessoa que devido à
feste objetivamente, as circunstâncias podem justificar o reconhecimento no sentido
agressão externa, ocupação, domínio estrangeiro ou eventos que perturbem seriamente
de que qualquer pessoa ocorreria riscos que a ausência do medo seria indiferente. Sob a ordem pública em parte ou em todo o seu país de origem ou nacionalidade, é obrigada
outro enfoque, pode haver casos em que circunstâncias objetivas em si não parecem ser a deixar seu local de residência habitual para buscar refúgio em outro local fora de seu
convincentes, mas têm em conta crenças e atividades da pessoa, essas circunstâncias país de origem ou de nacionalidade”.

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António Raúl Sitoe & Eduardo Gomes da Silva Filho (Org). Fluxos Contemporâneos: Migrações Transnacionais e Direitos Humanos

Em 1984, a conferência de representantes de governos latino-americanos e de pelo país de nacionalidade do estrangeiro (reciprocidade), isto não será aplicado
aos refugiados. A noção de reciprocidade não se aplica aos refugiados, pois eles não
notáveis juristas adotou a Declaração de Cartagena. Verossimilmente à Convenção da gozam da proteção de seu país de origem.
OUA, a Declaração acrescenta uma consideração mais objetiva à definição contida na
Convenção sobre Refugiados de 1951 que inclui: “pessoas que fogem de seus” países “por- O Comitê executivo insta aos Estados membros e o ACNUR a continuar a promover,
que suas vidas, segurança ou liberdade foram ameaçadas pela violência generalizada, onde for relevante, iniciativas regionais de proteção aos refugiados e soluções perduráveis,
agressão estrangeira, conflito interno, violações maciças dos direitos humanos ou outras e assegurar que, os padrões regionais desenvolvidos sejam totalmente consistentes com
circunstâncias que perturbaram seriamente a ordem pública”. os padrões de proteção universalmente reconhecidos e respondam às circunstâncias
De modo análogo, o Protocolo sobre Refugiados de 1967 embora haja uma relação, particulares e regionais e às necessidades de proteção (ACNUR, 1997).
é um instrumento independente da Convenção de 1951. Ambos os dispositivos excluem as 2.3 Princípios regionais de assistência ao refugiado
limitações temporais e geográficas estabelecidos na definição de refugiado da Conven-
ção. As duas ferramentas cobrem as três questões fundamentais: a definição do termo A Convenção de 1969 rege alguns problemas específicos dos problemas de refu-
refugiado, assim como as condições para o término e a exclusão do estatuto de refugiado. giados em África pela Organização da Unidade Africana. As lutas que caracterizaram o
O estatuto legal dos refugiados em países de asilo, seus direitos e obrigações, incluindo fim da era da dominação colonial em África culminaram com onda de movimentos de
o direito de serem protegidos contra repatriação forçada ou expulsão para um território refugiados em grande escala. Essas deslocações fizeram com que, não se elaborasse e
onde sua vida ou liberdade estariam ameaçadas. adotasse o Protocolo de Refugiados de 1967, mas igualmente que a Convenção da Or-
A obrigação dos Estados membros é de cooperação com o Alto-comissariado das ganização da Unidade Africana de 1969 regulamentasse os problemas especificamente
Nações Unidas para os Refugiados no desempenho das suas funções, facilitando seu tra- dos países africanos. A Convenção da Organização da Unidade Africana considera a
balho na supervisão da implementação da Convenção. Aderindo o Protocolo, os Estados Convenção sobre Refugiados de 1951 um “instrumento fundamental e universal relativo
concordam em aplicar a maioria dos artigos da Convenção sobre Refugiados artigos 2-34, ao estatuto de refugiado”, único tratado regional de refugiados juridicamente vinculante.
a todas as pessoas que se enquadram na definição de refugiado no protocolo. Entretanto, A Convenção da Organização da Unidade Africana adota a definição contida na
a maioria dos Estados preferiu aderir tanto a Convenção quanto o protocolo. Os estados Convenção de 1951, nela acrescenta uma consideração mais objetiva: entende por refu-
signatários reafirmaram que ambos tratados são centrais para o regime internacional giado qualquer pessoa que deixa o seu país por “agressão externa, ocupação, dominação
de proteção aos refugiados. estrangeira ou graves perturbações da lei e da ordem em todo ou parte do país de origem
A setuagésima oitava Conferência da União Interparlamentar realizada em outubro ou nacionalidade”. Esta percepção significa que, os indivíduos que fogem da agitação,
de 1987 invocava todos os parlamentos e governos a tomarem a sua responsabilidade da violência generalizada e da guerra têm o direito de reivindicar o estatuto de refugiado
em proteger os refugiados e de acolher as vítimas de perseguição política, em conformi- nos Estados que aderiram esta convenção, independentemente de terem medo funda-
dade com o estabelecido pela Convenção de 1951 Relativa ao Estatuto dos Refugiados. mentado na perseguição.
O Comitê Executivo reafirma que a Convenção de 1951 e o Protocolo de 1967 continuam
Tabela 1: Estados Membros que aderiram a Convenção da OUA sobre os Refugiados,
sendo centrais para o regime internacional de refugiados (ACNUR, 1999).
Agostos de 2003.

2.2 Responsabilidades dos signatários na Convenção sobre refugiados África do Costa do Lesoto Ruanda
Sul Marfim

Angola Egito Libéria Senegal
Segundo os princípios gerais do direito internacional, toda a convenção é obriga-
Argélia Etiópia Malaui Seicheles
tória para os membros, devendo por isso, ser aplicada com uma boa-fé. Os países que
Benin Gabão Mali Serra Leoa
sancionaram a Convenção sobre Refugiados têm obrigação de garantir a proteção aos
Botsuana Gâmbia Marrocos Sudão
refugiados dentro de seu território, segundo os dispositivos da convenção. As cláusulas
Burkina Gana Mauritânia Suazilândia
dos países que ratificaram a Convenção sobre Refugiados e do Protocolo e devem im- Faso
plementá-las, incluem:
Cooperação com o ACNUR - O artigo 35 da Convenção sobre Refugiados Burundi Guiné Moçambique Tanzânia
e o artigo II do Protocolo de 1967 exigem que os Estados Membros cooperem com Camarões Guiné- Níger Togo
o ACNUR no desempenho de suas funções e, em particular, que ajudem o ACNUR
em sua função de supervisionar a implementação dos tratados. Bissau
Informações sobre legislação nacional - Os Estados Membros na Convenção
sobre Refugiados comprometem-se a informar o Secretário Geral da ONU sobre as Cabo Guiné Nigéria Tunísia
leis e regulamentos adotados para garantir a implementação da Convenção. Verde Equatorial
Isenção de reciprocidade - Quando, segundo a legislação nacional, a conces-
são de um direito a um estrangeiro está sujeita à concessão de tratamento similar

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Chade Líbia República Centro- Uganda Tabela 2: Estados que em julho de 2003 haviam aderido à Convenção de 1954.
Africana Albânia Brasil Guatemala Macedônia Suazilândia,
Congo Quênia República Democrática Zâmbia Antígua e Chade Guiné Madagascar Suazilândia,
do Congo Barbuda
Zimbábue
Argélia Coréia do Irlanda México Trinidad e
Sul Tobago
2.4 A Declaração de Cartagena Argentina Costa Rica Israel Holanda Tunísia
Armênia Croácia Itália Noruega Uganda,
Em 1984, uma Conferência de representantes de governos e eminentes juristas da
Austrália Dinamarca Líbia São Vicente Hungria,
América Latina, reuniram-se em Cartagena, em Colômbia para discutir a proteção inter- e Granadinas
nacional dos refugiados na região. A reunião adotou o que viria a ser conhecido como Azerbaijão Equador Kiribati, Sérvia e Zâmbia,
Declaração de Cartagena. A Declaração recomenda que a definição dos refugiados usada Montenegro
e toda a região da América Latina abrangem, além da definição contida na Convenção Barbados Fiji Lesoto Eslováquia Zimbábue.
sobre os refugiados de 1951, mas inclui também as pessoas que fogem dos seus próprios Bélgica Finlândia Letônia Eslovênia
países “Porque as suas vidas, a sua segurança ou a sua liberdade era ameaçadas por uma Bolívia França Libéria Espanha,
violência generalizada, uma agressão estrangeira, conflitos internos, uma violação maciça Bósnia e Alemanha Lituânia Suécia
e dos direitos humanos ou outras circunstâncias que tenham gravemente perturbado a Herzegovina
ordem pública”. Embora a Declaração não seja juridicamente vinculante, a maioria dos Botsuana Grécia Luxemburgo Suíça
Estados da América Latina aplica, de fato, a sua definição de refugiado, alguns estados
incorporaram a definição na sua própria constituição. Esta Declaração foi aprovada pela
Organização dos Estados Americanos (OEA), da Assembleia geral da ONU e do Comitê 2.5 Legislação brasileira de proteção ao refugiado

Executivo Consultivo do ACNUR.
Durante muito tempo e, sobretudo com a emergência humanitária venezuelana, o
No que tange ao asilo, a Assembleia Geral da ONU em 1967 adotou uma Decla-
Brasil se tornou na região de América Latina um dos destinos preferenciais para a solici-
ração sobre Asilo Territorial dirigido aos Estados. Na Declaração, a Assembleia Geral da tação do refúgio, representando a capacidade e o funcionamento da política pública para
ONU reafirma que a concessão de asilo é uma ação pacífica e humanitária que nenhum o acolhimento e proteção do refugiado. Como país signatário e seu compromisso com
Estado pode considerar hostil e enfatiza que é responsabilidade do país de asilo avaliar o o pacto internacional, o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (2016a)
pedido de asilo de cada indivíduo. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, no seu ponderou que, o Brasil joga papel importante na governança e proteção internacional
art. 14 estabelece “toda a pessoa tem o direito de procurar e desfrutar em outros países de refugiados na América Latina.
de asilo de perseguição”. A Lei nº 9.474, de 22 de julho de 1997 o seu artigo 1 representa o ponto central de
Conforme se reconhece na Convenção da OUA, na Declaração de Cartagena e na como o Estado brasileiro conceitua e atua na proteção dos refugiados. O artigo a partir
da Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 e do Protocolo de 1967 Relati-
Declaração da ONU sobre Asilo Territorial de 1967 é uma ação humanitária e apolítica. A
vo ao Estatuto dos Refugiados define quem deve ser protegido dentro do ordenamento
palavra asilo é um termo genérico que engloba todas as formas de proteção fornecidas
jurídico nacional. A proteção ao refugiado compreende a recepção, registro, procedi-
por um país em benefício dos refugiados em seu território. Em sentido mais restrito, asilo
mento de determinação de estatuto, assistência e integração local e, os mecanismos de
significa proteção essencial, ou seja, proibição de retorno forçado (expulsão) às fronteiras
repatriação, naturalização ou reassentamento (JUBILUT, GODOY, 2017). Sobre esse pacto,
de territórios onde a vida ou liberdade do refugiado estaria ameaçada por um período o direito internacional dos refugiados e a sua inclusão no Direito brasileiro conheceu a
limitado, com a possibilidade de permanecer no país anfitrião até que uma solução possa seguinte evolução:
ser encontra em outro país. Para muitos países, o termo asilo incorpora direitos estabe-
lecidos pela Convenção de 1951, mas também vai muito além dessa percepção. Tabela 3: Evolução da legislação brasileira sobre o refugiado
Os direitos fundamentais de proteção aos refugiados são igualmente direitos fun- 15 de julho Brasil assina a Convenção sobre o Estatuto de Refugiado de 1951.
de 1952
damentais plasmados na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948:
Artigo 13 - 1. Toda pessoa tem direito à liberdade de locomoção e residência 28 de Decreto n. 50.215 promulga a Convenção sobre o Estatuto do
dentro das fronteiras de cada Estado. 2. Toda pessoa tem o direito de deixar qualquer janeiro de 1961 Refugiado de 1951, no ordenamento jurídico brasileiro. É feita uma “reserva
país, inclusive o próprio, e a este regressar. geográfica”, ou seja, o Brasil só aceita refugiados vindos do continente
Artigo 14- 1. Toda pessoa, vítima de perseguição, tem o direito de procurar europeu.
e de gozar asilo em outros países. 2. Este direito não pode ser invocado em caso de
perseguição legitimamente motivada por crimes de direito comum ou por atos 08 de Decreto n. 70.946 promulga o Protocolo de 1967 que passa a integrar
contrários aos propósitos e princípios das Nações Unidas (BRASIL, SENADO FEDE- agosto de l972 o ordenamento jurídico brasileiro.
RAL, 2013, p. 21).

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1977 Primeira missão do Alto Comissariado das Nações Unidas ACNUR no Tabela- 4: refugiados venezuelanos reconhecidos no Brasil
Brasil (esta missão instala-se na cidade do Rio de Janeiro). Nesta época, em
plena ditadura militar, a atividade do ACNUR limita-se a reassentar, em um
terceiro país de asilo, buscadores de asilo vindos de países da América do
Sul: Chile, Argentina, Uruguai e Paraguai.
1979-80 150 (cento e cinquenta) vietnamitas são acolhidos. Não lhes é
concedido o status de refugiado (por causa da reserva geográfica), mas
um estatuto migratório alternativo lhes é dado.
1982 Presença do ACNUR enquanto organização internacional é
oficialmente reconhecida pelo Governo brasileiro.
1986 Brasil acolhe 50 (cinquenta) famílias Bahai’s, aproximadamente
200 (duzentas) pessoas, perseguidas no Irã, por razões religiosas. Por não
poderem receber o status de refugiado (em razão da reserva geográfica),
são reconhecidos como asilados.
1989 Escritório do ACNUR é transferido para Brasília. No final deste ano
(1989), levanta-se a cláusula da reserva geográfica.

1992-1994: Brasil acolhe cerca de 1.2 mil angolanos que são obrigados a deixar
seu país logo após o final das eleições. Apesar de não serem refugiados, de FONTE: CONARE, 2022
acordo com a definição clássica de 1951 (fundado temor de perseguição
em razão de: raça, religião, nacionalidade, filiação a grupo social ou opinião
política), o Governo brasileiro concede-lhes o status de refugiado, aplicando A nível global, a prevalência de conflitos armados, crise política, os migrantes per-
a Declaração de Cartagena que prevê a concessão do status de refugiado manecem marginalizados e excluídos da concepção e análise de políticas tanto em nível
devido à “grave e generalizada violação de direitos humanos” (guerra civil
e m Angola). nacional quanto internacional. Na fala Des Gasper e Giulia Sinatti (2016) consideram que
Maio de Projeto de lei que estabelece a incorporação da Convenção de 1951 ainda mantém os migrantes fora de suas deliberações, embora suas contrapartes sejam
1996 ao Direito brasileiro é enviado ao Congresso Nacional juntamente com o
Plano Nacional de Direitos Humanos. os Estados que os financiam.
22 de julho A Lei n. 9.474 que implementa a Convenção sobre o Estatuto do O Brasil, vinculado à Declaração de Cartagena, alargou a sua concepção sobre o
de 1997 Refugiado de 1951 ao Direito brasileiro é sancionada e promulgada pelo refugiado, incluindo pessoas que abandonaram o seu país, pois a sua vida foi ameaçada
presidente da República.
em decorrência da insegurança, agressão estrangeira, violações dos direitos humanos
07 de Na festa comemorativa dos Direitos Humanos toma posse a
setembro de Coordenadoria do CONARE (Comitê Nacional para os Refugiados) que e outras circunstâncias que perigam a vida pública. A América Latina com a posição de
1998: tinha como presidente a dra. Sandra Valle (Secretaria Nacional de Justiça destaque em relação à proteção dos direitos dos refugiados, Julia Moreira (2007), alerta
do Ministério da Justiça) [...]. O CONARE é o órgão do Governo brasileiro
responsável pela elegibilidade dos “casos individuais” bem como da que, as comparações do Brasil com os países da região devem ser feitas com cuidado
elaboração das políticas públicas para os refugiados.
FONTE: Guilherme Assis de Almeida, (2000, p. 2-3). para que não represente um retrocesso aos avanços conquistados.

Esse marco legal Lei n. 9.474 foi muito importante para a acolhida de venezuelanos CONCLUSÃO
que escapam da violência, ameaças, insegurança, escassez de alimentos, remédios e
serviços básicos. De 5 milhões de venezuelanos, vivendo fora do país, majoritariamente A Segunda Guerra Mundial provocou diversos deslocados, por esse motivo, a Orga-
nos países latino-americanos e caribenhos, Brasil é o quinto maior destino (ACNUR). O nização das Nações promulgou a Declaração Universal dos direitos Humano, tornando-se
ACNUR (2016a) avalia, não obstante no Brasil haja condições propícias para a proteção do instrumento universal para a garantia da segurança dos deslocados, vítimas de catástrofes
refugiado, que seja necessário encontrar soluções para a crescente demanda de 3.000% naturais, de conflitos armados, de violência, liberdade de expressão, liberdade religiosa,
de solicitantes de refúgio, especialmente aos fluxos haitianos e recentemente Síria e Ve- perseguição política e outros malefícios que ameaçam a preservação da vida.
nezuela. Diante da crescente busca pelo refúgio, Camila Ignácio Geraldo e Vanessa Bel- Esta declaração, historicamente, teve um papel importante, pois concentra em si
trame (2022) notaram que, o governo federal, para satisfazer esta demanda, adotou uma todo o núcleo dos direitos humanos essenciais para sobrevivência e proteção da dignida-
estratégia que atingiu mais de oitocentos municípios, demonstrando que essa população de da vida humana. Realçou-se o papel do Estado, enquanto criação do homem, como
tem direito à proteção, tendo conseguido interiorizar mais 76 mil refugiados e migrantes instrumento para a proteção dos direitos individuais, sendo este seu fundamento político.
venezuelanos no Brasil. Como comprometimento do governo brasileiro à necessidade de A necessidade da busca do refúgio ficou remontada desde o período clássico, idade
refugiados venezuelanos até junho de 2022, o ACNUR apresentava os seguintes dados: moderna e de forma mais institucionalizada na metade do século XX com uma carac-
terística constante de garantir a inviolabilidade dos direitos fundamentais do homem, o
fim da necessidade de refúgio é a busca do abrigo e proteção. Os acontecimentos mais

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António Raúl Sitoe & Eduardo Gomes da Silva Filho (Org). Fluxos Contemporâneos: Migrações Transnacionais e Direitos Humanos

sangrentos da história levaram a Organização das Nações Unidas a criar um Escritório BRASIL, SENADO FEDERAL. Direitos Humanos, atos internacionais e normas correlatas,
do Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, tendo criado uma Conven- 4a ed. Brasília: Secretaria de Editoração e Publicações, 2013
ção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados e diversos protocolos para a CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Direito Internacional dos Direitos Humanos, Di-
viabilização da Convenção de 1951. Os estados contraentes desses tratados tornaram-se reito Internacional Humanitário e Direito Internacional dos Refugiados: Aproximações ou
instrumentos principais para o regime internacional de proteção aos refugiados. Convergências. In: CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto; PEYTRIGNET, Gilbert; SANTIA-
GO, J. R. As Três Vertentes da Proteção Internacional dos Direitos da Pessoa Humana.
Segundo realidades de cada região, a Organização da Unidade Africana adotou
San Jose, Brasília: Instituto Interamericano de Direitos Humanos, Comitê Internacional
a convenção de 1969 para a resolução de problemas específicos de refugiados do con- da Cruz Vermelha, Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, 1996
tinente. As deslocações derivadas da luta e do fim da dominação colonial fizeram que
a organização adotasse o Protocolo de refugiados de 1967. Em 1984, os governantes da GASPER, Des e SINATTI, Giulia (2016), Una investigación sobre migración en el marco de
la seguridad humana, Migración y Desarrollo, vol. 14, N° 27. Disponível em http://www.
América Latina e os proeminentes juristas reunidos em Cartagena, Colômbia adotaram
redalyc.org/pdf/660/66049818002.pdf, acesso em 31 jul 2022
a Declaração de Cartagena para a proteção internacional dos refugiados na região.
Apesar desses instrumentos e contínuos esforços dos países signatários das Con- GERALDO, Camila Ignacio e BELTRAME, Vanessa (2022) Plataforma help para pessoas
venções e protocolos, direitos internacionais e legislações nacional sobre os refugiados, refugiadas. https://www.acnur.org/portugues/2022/06/12/interiorizacao-beneficia-mais-
-de-76-mil-pessoas-refugiadas-e-migrantes-da-venezuela-no-brasil, acesso 29 jul 2022
os países destinatários dos refugiados enfrentam dificuldades na execução desses ins-
trumentos. Entretanto, Brasil conseguiu nesses últimos anos acolher e interiorizar os re- Guilherme Assis de Almeida, A LEI N. 9.474/97 e a definição ampliada de refugiado:
fugiados em diversos municípios, salvaguardando assim os seus direitos fundamentais. breves considerações. São Paulo, janeiro de 2000. Disponível em file:///C:/Users/User/
Downloads/67475-Texto%20do%20artigo-88895-1-10-20131125.pdf, acesso em 30 jul 2022
Este trabalho não esgotou a problemática de refugiados no Brasil, no entanto o debate
continuará nas próximas pesquisas. HATHAWAY, James C., The Law of Refugee Status, 1st Ed., Toronto: Butterworth’s, 1991

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118 119
António Raúl Sitoe & Eduardo Gomes da Silva Filho (Org). Fluxos Contemporâneos: Migrações Transnacionais e Direitos Humanos

9 A imigração nipônica no Brasil:


nuances e percalços de interesses
políticos e econômicos
Silvio Marcio Gomes Oliveira74

1 INTRODUÇÃO

O
principal objetivo deste artigo é apresentar sob uma perspectiva histórica-
analítica, os interesses e objetivos que culminaram na chegada dos
japoneses ao Brasil durante o início do século XX, assim como este processo
foi costurado entre os governos do Brasil e do Japão como forma de minimizar interesses
de ambos Países no tocante a dois objetivos em comum: atender as necessidades do Brasil
que naquele momento necessitava de mão de obra para trabalhar nas fazendas de café,
principalmente em São Paulo e no sul, mais ao norte do Paraná, representando assim, o
que chamamos de a terceira fase histórica do ciclo do café, caracterizada pela existência
de pequenas propriedades e a cooperativa e, do outro lado, o Japão, que precisava de
certa forma, aliviar a tensão social no País, causada por seu alto índice demográfico. 
É deveras importante salientarmos que até a década de 1850, quem formava o
grosso do contingente de trabalhadores braçais para a agricultura no Brasil eram os
escravos negros que desterrados da África, desempenhavam a força humana para a
consolidação de uma agricultura voltada à exportação em larga escala.
Contudo, é importante observar que
Como já vimos, para o Brasil, assim como para os demais Países do Ocidente,
o grande País asiático até o século XIX era a China da Dinastia Chin. É compreensível
que o Brasil tenha dado preferência a este País para estabelecer relações diplomá-
ticas, já que havia interesse para receber imigrantes destinados a lavoura de café e
a potencialidade demográfica da China já era conhecida para envio de emigrantes
(NINOMIYA:1996, p. 247)

Ou seja, num primeiro momento, o governo brasileiro optara pelos chineses ao invés
dos japoneses, e isto tem uma explicação plausível, pois neste momento, o Japão estava
passando por um gradativo processo de mudanças que perpassavam pelo crivo de uma
ampla reforma de cunho administrativa, afinal era de muita importância para o governo
japonês abolir definitivamente o modo de produção feudal que persistia há séculos e
construísse novas províncias que coadunassem com o desenvolvimento tecnológico que
refletia na chegada das indústrias, assim como no engendramento de empresas estatais
e por fim com a estruturação do Estado sob o domínio da Dinastia Meiji.
É importante ressaltar que os primeiros japoneses que aqui chegaram, foi fruto de
um processo de imigração adotado pelo governo japonês que buscava uma conciliação
entre o período de modernização do Japão, iniciada ainda durante a era Meiji em
1866 e o agravamento das tensões sociais causadas principalmente pela alternância
74 Mestre em Serviço Social pela PUC-SP, Pós-graduado em História e Professor Substituto de História
da Universidade Federal de Roraima-UFRR;

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António Raúl Sitoe & Eduardo Gomes da Silva Filho (Org). Fluxos Contemporâneos: Migrações Transnacionais e Direitos Humanos

das relações de produção vigentes que deixavam naquele momento de ser utilizados A imigração japonesa no Brasil tem como marco inicial a chegada do navio
Kasato Maru, em Santos, no dia 18 de junho de 1908. Do porto de Kobe a embarcação
por um campesinato manual e passava a se aproximar vertiginosamente de técnicas trouxe, numa viagem de 52 dias, os 781 primeiros imigrantes vinculados ao acordo
modernizadas de agricultura deixando como consequência um alto índice de camponeses imigratório estabelecido entre Brasil e Japão, além de 12 passageiros independentes.
Embora o Japão tenha enviado seus primeiros imigrantes ao Brasil em 1908,
desempregados por não dominarem estas novas técnicas no campo. Não obstante, é os primeiros japoneses a pisar em solo brasileiro foram quatro tripulantes do barco
deveras importante ressaltar que junto ao processo de modernização citado alhures, ao Wakamiya Maru, que, em 1803, afundou na costa japonesa. Os náufragos foram
salvos por um navio de guerra russo que, mesmo não podendo desviar-se de sua
mesmo tempo, houve também uma modificação no tocante a cobrança de impostos, rota, levou-os em sua viagem. No retorno, a embarcação aportou, para conserto, em
Porto de Desterro, atual Florianópolis (SC), no dia 20 de dezembro, permanecendo
haja vista que eles foram intensificados e não seria mais aceito pelo governo japonês
até 4 de fevereiro de 1804. Ali, os quatro japoneses fizeram registros importantes
o pagamento com materiais e colheitas, mas sim, deveriam ser entregues em dinheiro da vida da população local e da produção agrícola da época76.
o que fez com que vários indivíduos perdessem terras ou passassem por condições de
extrema pobreza. Como se percebe a incursão nipônica no Brasil, quando de sua primeira “visita”
oficial datada ainda no estupor do início do século XIX, por náufragos, já dera aos japo-
É imprescindível observarmos que tal alternância gerou um certo desequilíbrio
neses uma primeira impressão do que os iria esperar quase um século depois de sua
nas relações sociais, pois agora estes camponeses desempregados e sem perspectivas
vinda oficial as terras tupiniquins, apesar de que embora este contato inicial tenha sido
a curto prazo, não teriam mais oportunidades dentro de um sistema avançado que os
apenas um referencial ao que os japoneses iriam encontrar de fato quando aqui chegam
inviabilizariam dentro deste processo pela sua falta de capacitação com as novas técnicas
no século XX, pode-se dizer em suma que
implementadas. Pelo fato de estarem situados em posições antípodas no globo terrestre e
A partir deste processo, uma das alternativas encontradas pelo governo japonês, devido à política isolacionista adotada pelo Japão no início do século XVII até mea-
dos do século XIX, podemos afirmar que os japoneses nada sabiam sobre o Brasil.
foi estabelecer um contrato com o Brasil, que influenciava a imigração de japoneses Conheciam, contudo, os portugueses que levaram as armas de fogo àquele país no
ano de 1543 e a partir daí, por cerca de meio século, se familiarizaram com o cris-
para o nosso território, garantindo desta forma uma estabilidade social para o Japão e de tianismo levado pelos jesuítas da Península Ibérica, principalmente portugueses.
quebra, mão-de-obra para os grandes fazendeiros do Sul e do Sudeste brasileiro. Apesar de poucos contatos, ocorridos principalmente na segunda metade do sé-
culo XVI, é curioso encontrarmos no léxico japonês palavras de origem portuguesa
Assim, partindo deste pressuposto histórico-econômico-social, este artigo, pretende como “carta”, “gibão”, “copo”, “tabaco”, etc., o mesmo ocorrendo com a língua por-
tuguesa, onde podemos encontrar palavras como “biombo”, de origem japonesa
discutir e contextualizar os interesses que estavam por trás do acordo de imigração en- (NINOMIYA:1996; p.245)
tre Brasil e Japão e o quanto isso influenciou, de certa forma, as relações concomitantes
entre nós brasileiros e o povo nipônico sob uma perspectiva social, econômica e cultural. Já em relação ao Tratado de Amizade, Comércio e Navegação entre o Brasil e
o Japão é importante frisar que ele foi celebrado em Paris no dia 5 de novembro de
2 O TRATADO DA AMIZADE, COMÉRCIO E NAVEGAÇÃO: A PEDRA FUNDAMENTAL DA 1895, entre os ministros plenipotenciários, ou seja, por agentes diplomáticos investidos
IMIGRAÇÃO NIPÔNICA
de plenos poderes, em relação a uma determinada missão especial entre Brasil e Japão,
intermediado pelo governo francês. Isto, de per si, facilitou e incentivou os imigrantes
O Brasil em meados do final do século XIX, ainda estava num processo de transição
japoneses a virem para o Brasil, pois a celebração do referido Tratado, deu plenas condi-
e adaptação por conta do fim do escravismo agrícola que houvera sido tardiamente se
ções de igualdade jurídica, social e política para que brasileiros e japoneses se sentissem
encerrado pela Lei Áurea de 188875, proporcionado uma legião de ex-escravos ávidos por
mais seguros em relação a deixar seus respectivos Países de origem.
trabalho o que acabou inserindo-os numa demanda crescente de mão-de-obra barata
Pode-se observar esta segurança jurídica como um agente facilitador da imigração
que mais tarde se deslocaria para indivíduos de outras nacionalidades, dando início de
dos japoneses para o Brasil quando se analisa o Art. XI do Decreto 2.489, de 31 de março
forma asseverada ao processo imigratório em nossas terras. Nesta toada, o ciclo do café
de 1897 que promulga
se encontrava em ascensão eminente, sendo este produto (o café) a principal comodities  ARTIGO XI
Os cidadãos e subditos de cada uma das duas Altas Partes Contrac-
brasileira. Neste aspecto, urge a necessidade crescente de mão-de-obra apta ao trabalho tantes gosarão respectivamente nos Territorios e Possessões da outra Parte,
nos campos e nas lavouras, principalmente em São Paulo e no norte do Paraná e para de inteira protecção para as suas pessoas e propriedades; terão livre e facil
accesso junto aos tribunaes para a defesa de seus direitos; e, da mesma
suprir estas demandas necessárias, entra em cena um novo personagem na história: os fórma que os cidadãos ou subditos do paiz, terão o direito de empregar
advogados, solicitadores ou mandatarios para se fazerem representar junto
imigrantes transnacionais. aos ditos tribunaes.
No caso específico destes dois Estados, produtores de café, uma destas mãos-de- Gosarão igualmente de uma inteira liberdade de consciencia, e, con-
formando-se com as leis e regulamentos em vigor, terão o direito de exercer
-obra que se disponibilizaram a vir trabalhar nas lavouras cafeeiras neste período foram pública ou privadamente o seu culto; terão igualmente o direito de enterrar
os japoneses. Neste contexto é mister salientar que os seus nacionaes respectivos, segundo os seus ritos, nos logares conve-
nientes e apropriados que, para esse fim, forem estabelecidos e mantidos77. 
75 A  Lei Áurea  (Lei  Imperial número 3.353)  foi  assinada pela Princesa Isabel no dia 13 de maio de 76 Site oficial da Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo. Fonte: Museu Histórico da Imigração
1888. A partir dessa data, a escravidão passou a ser considerada crime e quase 700 mil escravos foram Japonesa no Brasil
libertados no Brasil (grifo nosso). 77 Legislação Informatizada - DECRETO Nº 2.489, DE 31 DE MARÇO DE 1897 - Publicação Original

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António Raúl Sitoe & Eduardo Gomes da Silva Filho (Org). Fluxos Contemporâneos: Migrações Transnacionais e Direitos Humanos

Pode-se observar que o referido Tratado, foi o marco jurídico que instala a chegada Em meio a uma viagem exaustiva, os imigrantes japoneses desembarcam no
dos japoneses ao Brasil, dando-lhes garantias de liberdade e socorro jurídico visando Porto de Santos no dia 17 de junho de 1908, trazendo 781 imigrantes de várias provín-
sua estadia de, em tese, uma forma mais segura ao estabelecer residência por aqui. cias do Japão. Logo após o desembarque no Porto de Santos, os neófitos imigrantes
Uma observação importante se refere a chegada da primeira remessa de japoneses rumaram via estrada de ferro para a Hospedaria do Imigrante onde eles aguardaram
ao Brasil que foi alinhada a criação da primeira Companhia Imperial de Emigração em quase dez dias para saberem de fato onde iriam se estabelecer. No dia 27 de junho, logo
1905. O responsável por esta empreitada foi Fukashi Sugimura que ao chegar ao Brasil pela manhã, os imigrantes são enviados para as primeiras seis fazendas mais prosperas
para assumir seu posto como ministro-residente da Legação, foi abordado em colóquios daquela época.
que teve com o presidente e o ministro da fazenda brasileira a respeito da questão imigra- Segundo dados do Museu Histórico da Imigração Japonesa, cada fazenda recebeu
tória. O próprio estado de São Paulo, que Sugimura visitara como parte do cronograma um número quantitativo de famílias divididas da seguinte forma:
Fazenda Dumont (recebeu 51 famílias), Fazenda Guatapará (23), Fazenda
oficial, parecia alimentar grandes expectativas em relação ao trabalhador japonês. São Martinho (27), Fazenda Sobrado (15), Fazenda Floresta (24), Fazenda Canaã (24)
Assim, em junho de 1905, Sugimura produziu um relatório, que mais tarde seria e dez imigrantes permaneceram em São Paulo.
enviado ao ministério, onde contava sobre sua viagem por São Paulo e detalhava quão
promissora era a possibilidade de se introduzir o imigrante japonês naquele estado. Su- No entanto, ao chegarem as fazendas, os imigrantes se deparam com uma reali-
gimura esperava que, ao ler o tal relatório, todo o país voltasse os olhos em direção à dade totalmente alheia aquela à qual eles estavam esperando encontrar e logo tiveram
América do Sul. Pode-se imaginar a motivação do ministro sabendo-se que o relatório que encarar a dura realidade das fazendas de café, tais como, instalações insalubres,
foi enviado em várias partes, cada qual em um navio diferente, pois o ministro temia que excessivas horas de trabalho diário e os baixos salários pagos pelos fazendeiros. Cecilia
ao enviar o relatório completo de uma só vez o atraso provocado pelo correio marítimo Noriko Ito79, relata da seguinte forma a nova vida dos imigrantes japoneses
O início da vivência no Brasil significava, aos olhos da grande maioria, uma
fosse deveras grande. situação alarmante, as acomodações precárias (nas casas de pau a pique) e a falta
de condições mínimas de higiene nada condiziam com a proposta oferecida aos
Com a repercussão do relatório, a recém-fundada Companhia Imperial de Coloni- imigrantes no Japão. Não bastasse o desconforto das acomodações e a jornada
zação, não tardou em dirigir-se à Legação Brasileira no Japão e ao Ministério das Relações dura de trabalho pesado, ainda havia a questão dos baixos salários, que mal conse-
guiam pagar as despesas básicas. As inúmeras complexidades iniciais, aliadas ao
Exteriores, e em dezembro do mesmo ano, se dirigiu para o Brasil e em 6 de novembro desconhecimento da língua e dos hábitos alimentares, uma vez que os japoneses
não tinham o costume de consumir gordura animal em suas refeições, acabavam
de 1907, assina o contrato com o Ministério da Agricultura que a época era comandada motivando a ideia de fuga noturna nos trabalhadores. Os fazendeiros, por sua vez,
por Carlos Botelho78. tendo passado pelo processo da abolição da escravatura, ainda não estavam adap-
tados ao tratamento da mão de obra assalariada.
O referido contrato estabelecia que:
1- A Companhia Imperial de Colonização deveria recrutar um total de 3 mil imigrantes- Também a esse respeito, Tanaka (2014) aponta que
-família para trabalhar nas fazendas de café do Brasil dentro de um prazo de 3 anos. [...] para os imigrantes, as condições de trabalho encontradas foram desani-
Os imigrantes deveriam ser remetidos até o porto de Santos, sendo que a primeira madoras e as dificuldades de adaptação foram grandes, visto que eram 23 fisicamen-
leva (composta por mil indivíduos) deveria chegar no mês de maio de 1908; te muito diferentes, tinham dificuldades com a comunicação e não se acostumavam
2- O governo brasileiro assumia o pagamento das 10 libras da passagem de navio, de- com a comida brasileira. Além disso, não conheciam direito o trabalho na lavoura,
vendo os fazendeiros que contratassem os imigrantes restituir-lhe 4 libras retiradas que era pesado demais e as condições de moradia e saneamento eram por demais
do salário dos imigrantes. precárias, não foram raras as epidemias entre a comunidade. Outro problema foram
as crises econômicas que fizeram com que muitas das promessas de dinheiro fácil
Desta forma, o recrutamento processou-se com a ajuda de representantes de cada não fossem cumpridas gerando revoltas entre os imigrantes. (TANAKA, 2014, p. 38).
província, mas somente 781 emigrantes haviam sido recrutados até o final de abril (600
homens e 181 mulheres, além de 12 espontâneos). A maior dificuldade foi reunir famílias Desta forma, os imigrantes japoneses percebem que seus sonhos trazidos ao cru-
inteiras de emigrantes, sendo muitas delas “compostas” — ou seja, casamentos de fa- zar o Atlântico Sul de uma vida salutar, havia se tornado um pesadelo incontornável,
chada e parentescos inventados.
pois longe de sua pátria, sua cultura e suas tradições, famílias inteiras agora vivem sob
o jugo do trabalho exasperante e precário o que levou o governo japonês através de sua
3 DO KASATO MARU AS FAZENDAS DE CAFÉ: A DURA REALIDADE NIPÔNICA
embaixada no Rio de Janeiro, a oferecer subsídios a fim de incentivar a emigração ao
Brasil, isso já no ano de 1925.
Consta-se que a primeira embarcação que deu início à imigração japonesa para
Todo esse processo só veio a piorar com a entrada do Japão na Segunda Guerra
o Brasil partiu do Porto de Kobe, em abril de 1908. Durante um mês e vinte e dois dias
Mundial ao lado dos Países do Eixo, no caso a Alemanha nazista e a Itália fascista, uma
navegando dos mares da Ásia até o Oceano Atlântico, a tripulação do navio Kasato Maru,
vez que por conta disso, o Brasil rompe as relações diplomáticas com o Japão em 1942,
trazia consigo a esperança e a perspectiva de uma vida prospera e longeva numa terra
colocando os japoneses imigrantes como inimigos e interrompendo o processo de imigra-
inóspita para eles.
78 Jorge Botelho, ocupou a pasta da Secretaria da Agricultura no governo de Jorge Tibiriçá, Presidente
ção entre o Japão e o Brasil que só é normalizada em 1953 com a retomada das relações
do Estado de São Paulo de 1904 a 1908, que então compreendia também as de Comércio, Obras Públicas, diplomáticas entre ambos.
Viação, Navegação e Iluminação. Foi eleito senador por São Paulo em 1919, sendo reeleito em 1927. 79 Presidente do Centro de Pesquisas em Cultura Japonesa de Goiás (CPCJ-GO).

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António Raúl Sitoe & Eduardo Gomes da Silva Filho (Org). Fluxos Contemporâneos: Migrações Transnacionais e Direitos Humanos

Desta forma O fato de os imigrantes nipônicos manterem essa peculiaridade em relação a ou-
Não é novidade que os japoneses nunca foram totalmente aceitos desde sua
chegada ao Brasil, mas a partir de 1930, a situação deixou de ser apenas preconceito tros imigrantes, não os tornava menos expostos a exploração e as formas vigentes que
e esse povo passou a sofrer uma pressão ainda maior. Isso porque foi nesse período os cafeicultores implementaram para aqueles que vinham trabalhar no cultivo e plan-
que um “espírito nacionalista” tomou conta não só da política brasileira, mas de vários
países ao redor do mundo, inclusive do próprio Japão. Arai e Hirasaki (2008) colocam tação de café, principalmente no interior de São Paulo, uma vez que estavam sujeitos
que vários jornais influentes expressavam que “as raças orientais são inassimiláveis
pelos ocidentais”, o que incitava ainda mais os brasileiros a sentir ódio por aqueles a se inserirem nas formas de organização e produção a qual estes fazendeiros haviam
imigrantes (SANTOS: 2016, p.26). implementado como o contrato de parceria80 e o colonato81 que foi uma forma dos
fazendeiros manterem o modelo de exploração e ao mesmo tempo criar um estado de
Neste caso, percebe-se que as questões de cunho político acabaram influenciando
dependência permanente para os imigrantes.
de forma concreta o processo imigratório dos japoneses no Brasil, interferindo de forma
Diferentemente de outros imigrantes, os japoneses não tardaram a conquistar sua
abrupta nas relações e na vida particular destes imigrantes e que dão um novo contorno
independência junto as fazendas de café e iniciam a curto prazo, um processo de auto-
as relações de produção estabelecidas, uma vez que não mais vistos como bem-vindos
nomia que visava, antes de tudo, a ruptura com o modelo de exploração a qual estavam
por aqui, resta-lhes apenas a perseguição e exploração intensa.
inseridos. Assim
Ainda em relação ao trabalho nas fazendas de café, podemos frisar que Depois de três ou quatro anos no cafezal, a vida do imigrante começava a
O desenvolvimento e organização da força de trabalho livre destinada as fa- adquirir estabilidade. Por exemplo: na Fazenda Sobrado, que acolheu alguns dos
zendas de café de São Paulo foi ao mesmo tempo um processo econômico e político. imigrantes da primeira leva, ganhava-se em média somente 910 réis por dia (o equi-
A dinâmica da situação decorreu tanto das razões econômica dos fazendeiros, como valente a 0,54 iene. Vale a pena lembrar, um riquixá ganhava, em 1902, entre 0,40
do poder de barganha utilizado pelos trabalhadores ao resistir às suas imposições e 0,50 ienes por dia). Uma vez acostumados ao trabalho, os imigrantes ganhavam,
(STOLKE E HALL: 1983.p.81). em novembro de 1908, entre 0,60 e 1,20 ienes por dia.
Mesmo nas fazendas onde o valor pago fosse menor, era possível cultivar nos
dias de folga outras espécies (tais como arroz, milho, feijão, cana-de-açúcar e hor-
Durante o processo de colonização oficial do governo paulista que data a partir taliças) entre os pés de café ou em terras mais afastadas do cafezal e criar animais,
transformando o excedente numa espécie de “renda extra”. Três anos depois, na
do período Republicano se deu uma nova dinâmica para atrair mão-de-obra imigrante mesma fazenda (isto é, em julho de 1911), era possível juntar cerca de 1.200 mil réis
por ano (o equivalente a 840 ienes), podendo ser subtraídos dessa quantia entre
que foi através da criação de Núcleos Coloniais em diversas regiões do estado ligados à 350 e 420 ienes para serem enviados ao Japão; a situação nas outras fazendas era
cafeicultura. Como se sabe, a mão- de- obra estrangeira era de diferentes nacionalidades, mais ou menos similar (National Diet Library Japan).
mas em relação aos japoneses, podemos destacar uma diferenciação em comparação as
Dessa forma, se engendra os primeiros agricultores independentes, que adquiriam
normas estabelecidas pelos cafeicultores a outros imigrantes, principalmente os recém-
lotes de terras usando o dinheiro acumulado durante o trabalho nas fazendas, prática
-chegados da Europa como suíços, espanhóis, alemães e portugueses, pois ao invés de
comum entre os colonos que desejavam sua independência, ou mesmo aqueles que
instalarem-se nos Núcleos, a primeira leva de imigrantes japoneses foi, como já citado
não tivessem acumulado uma soma muito vultosa, formavam parcerias (dando origem
alhures, para as seis grandes fazendas de café. Isto tem uma explicação plausível, pois se
à chamada “agricultura de parceria”), alugavam as terras ou as adquiriam através de sua
analisarmos pelo ponto de vista econômico tendo como foco a realidade de São Paulo, a
compra a prestações. Como muitos pensavam em retornar ao Japão tempos depois, ha-
questão da imigração que se inicia em meados do século XIX e tem um processo contínuo
via indivíduos que consideravam a aquisição das terras como um prejuízo a ser evitado.
no início do século XX, estava direcionada exclusivamente ao predomínio da economia
Mas o processo que diminui gradativamente o número de imigrantes japoneses
cafeeira, assim como a permanente manutenção de um processo de acumulação do
ao Brasil, tem notoriedade na década de 1960, quando o Japão passa a apresentar um
capital com base no modelo de economia colonial.
grande desenvolvimento econômico, fato este que corresponde aos dias atuais, pois
Assim sendo, a vinda dos imigrantes japoneses foi justificada não para se juntarem
segundo dados do Fundo Monetário Internacional (FMI) há uma projeção que o PIB do
ao Núcleos Coloniais existentes no Estado, mas para serem utilizados como mão-de-obra
Japão cresça 2,4% em 2022 e avance 2,3% em 2023, de acordo com o relatório mais recente
barata para grandes cafeicultores.
divulgado em abril deste ano.
Conforme relatório apontado pela Secretaria de Agricultura de 1908, neste mesmo
80 De acordo com o contrato de parceria, o fazendeiro financiava o transporte dos imigrantes de
ano o governo paulista já havia deixado de lado a ideia de investir na criação destes novos seu país de origem ao porto de Santos, adiantava o custo do percurso de Santos à fazenda, assim como
núcleos, procurando acomodar os imigrantes, (com exceção dos japoneses), nas colônias os mantimentos e instrumentos necessitados pelos imigrantes até que eles pudessem reembolsá-lo
com ganhos de suas primeiras colheitas. O fazendeiro designava aos trabalhadores o número de pés de
já criadas anteriormente, pois café que eles poderiam cuidar, colher e beneficiar e atribuía-lhes um pedaço de terra para o cultivo de
“O Serviço de Colonização, um dos de maior importância do Estado, carac- seus próprios gêneros alimentícios. Além disso, os imigrantes recebiam uma casa, aparentemente grátis.
terizou-se, em 1908, pelo augmento das necessarias e indispensaveis facilidades de Sua remuneração consistia em metade dos ganhos líquidos com o café e com as colheitas de gêneros
localização em benefício da massa immigratoria de todos aquelles que cooperam alimentícios. Os trabalhadores ficavam obrigados a repor os gastos feitos pelos fazendeiros em seu favor
para o povoamento do solo paulista. Assim foi que, em vez de serem creados mais com pelo menos metade dos seus ganhos anuais com o café. O contrato inicial não especificava sua
núcleos coloniaes, tratou o Governo de adoptar medidas, cujo resultado foi a grande duração, mas declarava o volume do débito acumulado pelo imigrante por conta das suas despesas de
affluencia de tomadores de lotes, já completando a lotação de algumas colônias, já transporte e outros adiantamentos. (STOLCKE E HALL: p.80)
enchendo enormemente outras” (RELATÓRIO DA SECRETARIA DE AGRICULTURA 81 Um sistema misto de remuneração por tarefas e por peça, o colonato, uma fórmula que prevaleceria
DE 1908, 1909, p.171) nas fazendas de café da década de 1880 até meados do século vinte (ibdem).

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António Raúl Sitoe & Eduardo Gomes da Silva Filho (Org). Fluxos Contemporâneos: Migrações Transnacionais e Direitos Humanos

CONCLUSÃO Almanaque do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil. São Paulo: Editora Escala,
2008.
O processo de imigração iniciado entre o final do século XIX e o início do XX, marcou NINOMIYA, M. O centenário do Tratado de Amizade, Comércio e Navegação entre Brasil e
de forma significativa o modelo de acumulação capitalista no Brasil. Com a crescente Japão. Revista USP, [S. l.], n. 28, p. 245-250, 1996. DOI: 10.11606/issn.2316-9036.v0i28p245-250
produção em escala do café, a mão-de-obra por aqui encontrava dificuldade em obter SAITO, Cecilia Noriko. O Imigrante a a Imigração japonesa no Brasil e no Estado de Goiás.
indivíduos que pudessem suprir a demanda nas fazendas de café do Sudeste e norte do Dossiê Imigrantes: O Imigrante e a imigração japonesa. Revista UFG, Goiânia: 2011.
Sul. SAKURAI, Célia. Os Japoneses. São Paulo: Editora Contexto, 2007.
A derrocada do escravismo no Brasil, ocorrida em 1888, dificultou ainda mais o
SANTOS, Méllanie Christina Batista; OS imigrantes japoneses no Brasil: a inserção e a
trabalho árduo nos cafezais e obrigou os grandes latifundiários a buscarem uma nova adaptação à sociedade brasileira após a Segunda Guerra Mundial, BRASÍLIA – DF: 2016.
solução para o problema que os cercava. Com a promulgação do Tratado de Amizade,
STOLCKE, Verena e HALL, Michael M. A introdução do trabalho livre nas fazendas de café
Comércio e Navegação, os fazendeiros viram nesta ação uma grande oportunidade para de São Paulo. Revista Brasileira de História/Unicamp. São Paulo: 1983.
ampliar o fluxo migratório transnacional; isso se consolida com a chegada de imigrantes
TANAKA, Aline Midori de Moraes. Imigração e colonização japonesa no Brasil - um re-
de várias partes do mundo, inclusive do Japão. sumo. Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Direito – PPGDir. /UFRGS, Porto
Os japoneses advindos da cultura enraizada no modo de produção feudal, viram Alegre: 2014.
nesta conjuntura uma grande oportunidade de darem continuidade aquilo que sempre Sites
fizeram a vida toda (trabalho agrícola), assim como uma eminente oportunidade também Site Alesp: https://www.al.sp.gov.br/noticia/
para uma vida prospera em novas terras. Por outro lado, fazendeiros ávidos pelo lucro e https://www.ndl.go.jp/brasil/pt/s3/s3_1.html, “100 anos de imigração japonesa no Brasil”.
por mão-de-obra barata, já tinham em mente as formas de proporcionar aos imigrantes
japoneses uma nova maneira de colonizá-los, frustrando assim, o sonho incipiente dos Site Câmara dos Deputados: https://www2.camara.leg.br/legin/
imigrantes asiáticos.
Neste enredo de decepção, sonhos despedaçados e ressignificação, começa a
jornada dos imigrantes nipônicos no Brasil que, como vimos, foi bem diferente daquilo
que eles almejavam ao sair do Japão. A exploração e a dificuldade de adaptação ao cli-
ma temperado do Brasil e as novas formas de exploração impostas pelo novo modo de
produção vigente aos olhos dos mesmos, fizeram dos japoneses atores sociais que se
condicionaram ao emaranhado e complexo modelo de interesses particulares que os
tornavam apenas peças repositórias para atingirem a pujança econômica dos grandes
latifúndios brasileiros, trazendo à tona o pensamento de Sérgio Buarque de Holanda no
qual remonta a formação da própria sociedade brasileira que foi engendrada por meio
das raízes coloniais na construção da nossa cultura nacional.
O legado que os imigrantes japoneses deixaram traduz a resiliência a qual este povo
sempre teve em diversos momentos da história que perpassa por uma transformação
desenvolvimentista e industrial no final do século XIX, duas de suas cidades destruídas
por bomba atômica em 1945, o avanço tecnológico dos dias atuais e a própria imigração
que mostrou aos japoneses uma nova forma de adaptação e prosperidade econômica
no Brasil.
Que essa mesma resiliência e capacidade de mutação social, seja o escopo para
outros povos que passam pelo drama da imigração impulsionada por guerras, fenômenos
naturais, sociais e políticos causados, em grande parte, pela incapacidade dos indivíduos
que detém o poder em racionalizar e humanizar as relações com seu povo.

REFERÊNCIAS

A.C. Fátima; ANBG. Meia volta ao mundo, imigração japonesa em Goiás. Goiânia: ANBG,
2008.

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António Raúl Sitoe & Eduardo Gomes da Silva Filho (Org). Fluxos Contemporâneos: Migrações Transnacionais e Direitos Humanos

Sobre os Organizadores
António Raúl Sitoe

Doutorando em História no programa de Pós-graduação


em História da Universidade Salgado de Oliveira. Mestre em Ciên-
cias Jurídicas e Sociais pelo Programa de Pós-graduação em So-
ciologia e Direito, Faculdade do Direito - Universidade Federal
Fluminense, possuo grau de Bacharelato em Filosofia pelo Semi-
nário Filosófico Interdiocesano Santo Agostinho da Matola em
Moçambique. Licenciatura em Sagrada Teologia pela Pontificia
Facoltà Teologica Mariannum em Roma, Itália. Licenciatura em
Ensino de Filosofia pela Universidade Pedagógica em Maputo,
Moçambique. Licenciatura em Filosofia pela Universidade São
Tomás de Moçambique. Membro do grupo de Pesquisa Questões
Humanitárias e Poder Aeroespacial (GPHUMAER) da Universida-
de da Força Aérea (UNIFA). De 2015 até início de 2019, fui docente
no Instituto Superior Maria Mãe de África (ISMMA) em Maputo,
Moçambique no curso de Licenciatura em Filosofia e Ética; e de
2016-2017, fui docente no Instituto Superior de Gestão de Negó-
cios (ISGN) da Matola, Moçambique, nos cursos de Licenciatura
em Administração Pública, Licenciatura em Direito e no curso de
Licenciatura em Gestão de Recursos Humanos. De 2013 até 2014
Planificador Eleitoral no Secretariado Técnico da Administração
Eleitoral.

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Eduardo Gomes da Silva Filho Esta obra foi composta em fonte Montserrat e impressa em papel off set pela
Editora Aluz em dezembro de 2022.

Professor da Universidade Federal de Roraima - UFRR. Dou-


torando em História pela Universidade Salgado de Oliveira-UNI-
VERSO-RJ, Mestre em História Social pela Universidade Federal
do Amazonas-UFAM, Licenciado e Especialista em História pela
Fundação de Ensino Superior de Olinda - FUNESO. Membro da
Associação Nacional dos Historiadores, ANPUH. Concentra suas
pesquisas na História Social do Trabalho, História Indígena, En-
sino de História, Fronteira, Defesa Nacional, Migração e História
do Tempo Presente. Participa de Projetos de Ensino, Pesquisa e
Extensão, além de integrar grupos de pesquisas e colaborar como
parecerista Ad Hoc para importantes instituições. É autor de diver-
sos livros, capítulos e artigos relacionados à História Indígena do
Tempo Presente, Ensino de História e História Social do Trabalho.

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