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MS

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2
FRONTEIRAS ÉTNICO-CULTURAIS
Tráfico e migração de pessoas nas fronteiras de
Mato Grosso do Sul

Álvaro Banducci Júnior


Ana Paula Martins Amaral
Andréa Flores
Andréa Lúcia Cavararo Rodrigues
ANTONIO HILARIO AGUILERA URQUIZA (Org.)
César Augusto Silva da Silva
Cícero Rufino Pereira
Dolores Pereira Ribeiro Coutinho
Estela Márcia Rondina Scandola
João Paulo Calvez
Leonardo Chaves de Carvalho
Levi Marques Pereira
Luciani Coimbra de Carvalho
Luma Alves Farina
Marco Antonio Rodrigues
Maucir Pauletti
Rosa Sebastiana Colman
Valdir Aragão do Nascimento

CAMPO GRANDE / MS
2018
3
Reitor
Marcelo Augusto Santos Turine

Vice-Reitora
Camila Celeste Brandão Ferreira Ítavo

Obra aprovada pelo


CONSELHO EDITORIAL DA UFMS

Conselho Editorial
Alem Mar Bernardes Gonçalves
Alessandra Borgo
Ana Carolina da Silva Monteiro
Ana Rita Coimbra Motta De Castro
Antonio Conceição Paranhos Filho
Antonio Hilario Aguilera Urquiza
Elisângela de Souza Loureiro
Geraldo Alves Damasceno Junior
Marcelo Fernandes Pereira
Marcos Paulo da Silva
Nalvo Franco de Almeida Jr
Ronaldo Chadid
Rosana Cristina Zanelatto Santos
Ruy Caetano Correa
Vladimir Oliveira da Silveira

Revisão Linguística e Ortográfica


Valdir Aragão do Nascimento

Planejamento Gráfico da Capa,


Editoração e Impressão
Gráfica Pontual

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Coordenadoria de Bibliotecas – UFMS, Campo Grande, MS, Brasil)

Fronteiras étnico-culturais: tráfico e migração de pessoas nas fronteiras de Mato Grosso


do Sul / Antonio Hilario Aguilera Urquiza (Org.). -- Campo Grande, MS: Ed.
UFMS, 2018.
310 p.: il.; 21 cm.

Inclui bibliografias.
ISBN 978-85-7613-000-0 (broch.)

1. Nativos – Direitos fundamentais . 2. Direitos humanos – Aspectos sociais – Mato


Grosso do Sul. 3. Tráfico humano. 4. Fronteiras – Aspectos sociais . 5. Brasil –
Fronteiras – Paraguai. 6. Paraguai – Fronteiras – Brasil. I. Aguilera Urquiza, Antonio
Hilário.

CDD (23) 341.4852

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APRESENTAÇÃO..............................................................................7

PARTE 1 – MIGRAÇÕES, FRONTEIRAS E POVOS INDÍGE-


NAS.....................................................................................................11

REFLEXÕES ACERCA DO DIREITO AO OGUATÁ PORÃ


NA FRONTEIRA BRASIL/PARAGUAI PELOS KAIOWÁ/PAĨ
TAVYTERÃ.......................................................................................13
Andréa Lúcia Cavararo Rodrigues, Antonio Hilario Aguilera Urquiza e
Marco Antonio Rodrigues

REMOÇÕES FORÇADAS - ÑEMOSARAMBIPA - ENTRE OS


GUARANI DE MATO GROSSO DO SUL.....................................45
Rosa Sebastiana Colman

TRÁFICO E MIGRAÇÃO DE INDÍGENAS PARA COLHEITA


DE MAÇÃ NO SUL DO BRASIL – DESDOBRAMENTOS NO
COMÉRCIO INTERNACIONAL...................................................69
Dolores Pereira Ribeiro Coutinho, Maucir Pauletti e Luma Alves Farina

OCUPAÇÃO COLONIAL E FORMAS DE MOBILIDADE


ENTRE OS GUARANI E KAIOWÁ NA FRONTEIRA BRA-
SIL-PARAGUAI: A CAMINHO DO TEKOHA EM BUSCA DO
TEKO PORÃ NA REGIÃO MERIDIONAL DA AMÉRICA DO
LATINA.............................................................................................95
Levi Marques Pereira

PARTE 2 – MIGRAÇÕES, FRONTEIRAS E DIREITOS


HUMANOS....................................................................................109

5
O DIREITO HUMANO DE MIGRAR E A NOVA POLÍTICA
MIGRATÓRIA BRASILEIRA..................................................111
Ana Paula Martins Amaral, Andréa Flores e João Paulo Calves

MIGRAÇÃO E TRÁFICO DE PESSOAS NA FRONTEIRA: UMA


ABORDAGEM À LUZ DOS DIREITOS HUMANOS...............145
Cícero Rufino Pereira e Ana Paula Martins Amaral

SUBJUGANDO MENTES E INTERCAMBIANDO CORPOS:


BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A DINÂMICA DO TRÁ-
FICO DE SERES HUMANOS NA ATUALIDADE.....................153
Valdir Aragão do Nascimento e Álvaro Banducci Júnior

A PROTEÇÃO INTERNACIONAL AOS REFUGIADOS NO BRA-


SIL: O CASO DO ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL.........217
César Augusto Silva da Silva

O TRÁFICO DE PESSOAS E A ASSISTÊNCIA ÀS VÍTI-


MAS NO BRASIL: DO PROTOCOLO DE PALERMO À LEI
N.º 13.344/2016.............................................................................243
Leonardo Chaves de Carvalho e Luciani Coimbra de Carvalho

TRÁFICO DE PESSOAS – MIRANDO O MUNDO COM OS PÉS


NO CHÃO PLATINO......................................................................277
Estela Márcia Rondina Scandola

AUTORES........................................................................................305

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APRESENTAÇÃO

A presente publicação é fruto de um amplo projeto de pesquisa


ainda em andamento, com o tema FRONTEIRAS ÉTNICO-
CULTURAIS – Análise do tráfico e migração de pessoas nas
fronteiras de Mato Grosso do Sul (financiado pelo CNPq), as-
sim como em parceria com outro projeto mais amplo intitulado
Análise do tráfico e migração de pessoas nas fronteiras de
MS (“Projetão”; financiado pela FUNDECT/MS), desenvolvi-
dos de forma interdisciplinar e interinstitucional por professores,
alunos e técnicos da UFMS, UCDB e MPT (24ª região/MS),
durante os anos de 2015 a 2017.

A partir do pano de fundo da Globalização com a consequente


intensificação da mobilidade humana e da recente Lei do Mi-
grante (Nº 13.445/2017) aprovada pelo Executivo, com polêmi-
cos vetos, pretendemos com esta obra, inicialmente, compilar
alguns avanços teóricos e especialmente dados do trabalho de
campo realizado pelas equipes de pesquisadores/as, assim como
envolver outras pessoas, pesquisadores/as que, de alguma for-
ma, também tomaram parte neste processo de construção de co-
nhecimento e que desenvolvem pesquisam dentro da mesma te-
mática, da mobilidade humana e das fronteiras étnico-culturais.
O/aleitor/a perceberá que os vários artigos apresentam as dis-
cussões desses/as autores/as a partir do trabalho e pesquisa com
a temática do tráfico e das migrações de pessoas nas fronteiras
que incidem com o Estado de Mato Grosso do Sul (com a Bo-
lívia e o Paraguai especialmente), tendo como foco, a interface
temática entre as áreas da antropologia, dos Direitos Humanos

7
e da História na reconstituição destas trajetórias, mobilidades,
transgressões e comunidades tradicionais afetadas, assim como
elementos de suas práticas culturais.
Objetivamos, ainda, com esta publicação, oferecer à sociedade
brasileira e sul-mato-grossense um material denso sobre a di-
nâmica da mobilidade humana nas fronteiras desta região do
país, a partir de suas particularidades geopolíticas, históricas e
culturais. Afinal, Mato Grosso do Sul apresenta especificidades
únicas, como sendo um Estado em fronteira política com dois
países e vários outros estados da Federação, assim como uma
densa população indígena, significativa, mas invisível popula-
ção quilombola. Historicamente é marcada por ser uma região
receptora de migrantes, nacionais (de várias regiões do país, no
processo de colonização) e de outros países, com destaque para
os de origem paraguaia e boliviana e, mais recentemente, dentre
outros, dos haitianos.
Não menos importante é nossa intenção em disponibilizar um
material de apoio a educadores/as e outros/as pesquisadores/as
sobre a temática das migrações e tráfico de pessoas nas frontei-
ras de Mato Grosso do Sul, para que possam ampliar o leque de
compreensão dessa temática pouco estudada em nossa região,
assim como apresentar aos/às interessados/as (especialmente
das áreas de ciências humanas e sociais) um material que possa
ser refletido com o intuito de fomentar o surgimento de novas
experiências de construção da cidadania emancipatória e da in-
clusão social nas várias realidades brasileiras, particularmente
dos povos tradicionais e migrantes.
Em termos metodológicos, a maior parte dos textos caracteriza-
se por ser fruto de pesquisas bibliográficas e documentais, assim
como especialmente através dos dados levantados no trabalho
de campo, com o propósito de avançar no campo da ciência e
8
disponibilizar informações, a respeito das trajetórias de mobi-
lidade das populações tradicionais e migrantes nesta região de
fronteira, suas relações com o território e reprodução sociocul-
tural, assim como modalidades de tráfico de pessoas, uma reali-
dade pouco documentada e que segue impactando famílias, na
contramão do ordenamento jurídico nacional e internacional.
Na primeira parte (MIGRAÇÕES, FRONTEIRAS E POVOS
INDÍGENAS) temos uma sequência de quatro textos, que tra-
tam especialmente da mobilidade do povo Guarani (Kaiowá e
Ñandeva) no sul do Estado e a relação com as fronteiras étnicas
e territoriais. Quanto à segunda parte (MIGRAÇÕES, FRON-
TEIRAS E DIREITOS HUMANOS), é composta por seis tex-
tos, a partir de uma abordagem mais jurídica e política, tendo
como pano de fundo os direitos humanos. Tratam, ainda, das te-
máticas dos refugiados e do tráfico de pessoas na região platina.
Aproveito esse espaço também para os agradecimentos, espe-
cialmente ao CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico), agência de fomento que possibilitou
essa pesquisa, assim como à FUNDECT (Fundação de am-
paro à Pesquisa do Estado de Mato Grosso do Sul), à Editora
da UFMS e às parcerias com tantos e tantas pesquisadores/as,
alunos/as e ex-alunos/as, sobretudo aos/às que fazem parte do
grupo de pesquisa (CNPq) Antropologia, Direitos Humanos e
Povos Tradicionais.

Boa leitura a todos/as.


Antonio H. Aguilera Urquiza
Verão de 2018

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PARTE 1
MIGRAÇÕES, FRONTEIRAS
E POVOS INDÍGENAS

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12
REFLEXÕES ACERCA DO DI-
REITO AO OGUATÁ PORÃ NA
FRONTEIRA BRASIL/PARAGUAI
PELOS KAIOWÁ/PAĨ TAVYTERÃ

Andréa Lúcia Cavararo Rodrigues1,


Antonio H. Aguilera Urquiza2
Marco Antonio Rodrigues3

INTRODUÇÃO
O presente artigo propõe uma análise sobre a dinâ-
mica e motivação da mobilidade espacial dos Kaiowá/Paĩ
Tavyterã localizados na região de fronteira Brasil/Paraguai
e o rearranjo desse povo ao chegar ao novo território em
ambos os países. Mobilidade espacial, de acordo com Col

1 Mestranda em Antropologia Social - PPGAS pela Universidade Federal de


Mato Grosso do Sul. Bolsista CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior. Especialista em Antropologia História dos Povos
Indígenas pala Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (2017). Bacharela
em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (2016).
Foi Bolsista PIBIC CNPq.2014/15.
2 Professor adjunto da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, orientador
da pesquisa. Possui Doutorado em Antropologia pela Universidade de Sala-
manca/Espanha; atualmente é docente do curso de Ciências Sociais, da Pós-
Graduação em Direitos Humanos da UFMS e do Programa de Pós-Graduação
em Antropologia Social (UFMS) e Professor colaborador da Pós-Graduação em
Educação (UCDB).
3 Especialista em Teoria e Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Ca-
tólica de Minas Gerais (2015). Bacharel em Direito pela Universidade Federal
de Mato Grosso do Sul. Foi voluntário PIBIC CNPq 2014/15 e 2015/16. Pes-
quisador da FUNDECT (Fundação de Apoio ao Desenvolvimento do Ensino,
Pesquisa e Tecnologia no Estado de Mato Grosso do Sul).

13
man (2015, p. 20 apud VAINER E MELLO, 2012), com-
preende os movimentos territoriais de população: “a imi-
gração e emigração de indivíduos, famílias ou grupos”.
O povo kaiowá/Paĩ se refere aos representantes do
subgrupo Kaiowá pertencentes ao tronco Tupi, da família
linguística Tupi-guarani, que no Brasil engloba os Kaiowá,
os Ñandeva e os Mby’a (PEREIRA, 1999, p.14). São em
sua maioria bilíngues, ou seja, além do Guarani, falam o
português (Brasil) ou castellano (Paraguai), todavia os mais
idosos falam somente a língua materna. O Guarani é a lín-
gua utilizada cotidianamente entre eles, em conversas, reu-
niões e ensinamentos dos “mais velhos” para as crianças e
jovens.
Nesse panorama, as cidades fronteiriças do Mato
Grosso do Sul tornam-se verdadeiros laboratórios de estudo
do processo de inserção dos migrantes, sendo um espaço
privilegiado para a discussão dos temas acerca da diversi-
dade e da trajetória histórica e cultural de povos indígenas
(AGUILERA URQUIZA, 2013, p. 07).
O historiador Antônio Brand, em sua tese “O impac-
to da perda da terra sobre a tradição Kaiowá/Guarani: os
difíceis caminhos da palavra”, relata:
Os Kaiowá (Paĩ Pavyterã) foram descobertos pelo
mundo colonial, em 1750-60, por ocasião da exe-
cução do Tratado de Madrid (...). Foram conside-
rados descendentes dos Itatim, cujo território se
estendia desde o rio Apa até o rio Miranda, tendo
ao Leste a serra de Amambai e a Oeste o rio Para-
guai (...) (BRAND, 1997, p.49-50 apud MELIÀ,
G. GRÜNBERG, F. GRÜNBERG, 1976, p.155).

14
Alguns estudiosos (MELIÁ, 2008), (BRAND,
1997), (PEREIRA, 1999), dentre outros, afirmam que os
Kaiowá/Paĩ possuíam um território ao Norte, até os rios
Apa e Dourados e, ao Sul, até a Serra de Maracaju e os
afluentes do Rio Jejuí, chegando ao Leste/Oeste por uma
distância de aproximadamente 100 Km, em ambos os lados
da Serra de Amambai, abrangendo uma extensão de terra de
aproximadamente a 40 Km2. Território este que, com a con-
solidação dos Estados Nacionais, foi dividido pela fronteira
Brasil/Paraguai.
Nesta espacialidade localizam-se suas aldeias, ten-
do como referência as matas e os córregos, dimensionando
seus territórios como algo específico de cada família exten-
sa, de modo a dar continuidade ao bom modo de ser de seus
ancestrais.
É na aldeia, enquanto tekoha (considerado um lugar
onde tem natureza e vida plena) que os Kaiowá vivenciam
e atualizam seu modo de ser (BRAND, 1997, p.2-8). Ao
mesmo tempo, o povo Kaiowá/Paĩ tem por tradição cultural
a prática da mobilidade espacial, baseada na prática milenar
e muito conhecida dentre os povos indígenas como Oguatá
Porã.
Percebe-se que, para os Kaiowá/Paĩ, o viver bem
está ligado ao viver no tekoha, ou seja, está relacionado à
qualidade da terra onde possam ser felizes, da mesma forma
que os seus antepassados foram.
A mobilidade espacial praticada entre os Kaiowá/
Paĩ está vinculada ao princípio da ancestralidade do terri-
tório. Eles são povos agricultores que utilizam um siste-
ma rotativo das terras, de forma a se evitar o desequilíbrio

15
ecológico. Eles também praticam visitação a seus parentes,
podendo ficar por meses até mesmo anos, mantendo assim
suas redes sociais e políticas. Outra causa não menos im-
portante é o deslocamento para outros territórios devido a
conflitos internos, doenças, acidentes e imprevistos com pa-
rentes como, por exemplo, o falecimento de algum membro
da família.
Outro fator a ser destacado na prática da mobilidade
espacial é a cosmologia e seu caráter transcendental. Se-
gundo Evans-Pritchard (2002), a cosmologia representa um
conjunto de doutrinas e princípios religiosos, míticos ou
científicos que se ocupa em explicar a origem e o princípio
do universo.
De acordo com esse autor, é possível inferir que a
ideia de cronologia para os indígenas é completamente di-
versa das adotadas em nosso cotidiano, bem como a sua
visão acerca das delimitações espaciais impostas pelos Es-
tados.
Ao longo do tempo, geógrafos, políticos e juriscon-
sultos classificaram teoricamente as fronteiras em físicas ou
naturais e artificiais. As primeiras, físicas ou naturais, são
obras da própria natureza e as segundas, resultantes da ação
do homem (GABAGLIA, 2014, p.09).
De acordo com Gabaglia (2014, p.14), entre as teo-
rias adotadas, tem-se a Teoria da Fronteira de Civilização,
em que as fronteiras são determinadas por aspectos econô-
micos, religiosos e pelas instituições jurídicas que regem as
populações desses locais.

16
Considerando que toda essa situação teve reflexos
diretos ao longo da formação da sociedade em diversos paí-
ses latino-americanos, cumpre ressaltar a organização dos
estados e a sua formação, e tomando por base o Estado bra-
sileiro, houve todo um aparato jurídico alienígena que ser-
viu para beneficiar as classes dominantes e as oligarquias
existentes na época, favorecendo o clientelismo, os abusos
e a expansão irregular de terras em detrimento do direito já
estabelecido nas populações tradicionais que, naquele mo-
mento, detinham a posse imemorial do território.
Conforme Nader (2015, p.156), direito consuetudi-
nário significa um conjunto de normas de conduta social,
criadas espontaneamente pelo povo, através do uso reitera-
do e que gera a certeza de obrigatoriedade, reconhecidas e
impostas pelo Estado.
Noutro giro, uma das características fundamentais
do fenômeno da imigração é que, fora algumas situações
excepcionais, ele contribui para dissimular a si mesmo sua
própria verdade. Por não conseguir sempre pôr em confor-
midade o direito e o fato, a imigração condena-se a engen-
drar uma situação que parece destiná-la a uma dupla contra-
dição: não se sabe mais se se trata de um estado provisório
que se gosta de prolongar indefinidamente ou, ao contrário,
se se trata de um estado mais duradouro, mas que se gos-
ta de viver com um imenso sentimento de provisoriedade
(SAYAD, 1998, p.45).
Em decorrência desses argumentos, a Mensagem de
Veto nº 163, de 24 de maio de 2017 reflete toda a incerte-
za e desconhecimento associados ao tema central proposto
neste trabalho, pois o veto ao parágrafo segundo do artigo
primeiro da Lei nº 13.445 de 24 de maio de 2017 restringiu
17
a liberdade de movimentação dos povos indígenas ao longo
das terras tradicionalmente ocupadas, impactando em cheio
um dos costumes imemoriais dos povos indígenas, que é o
Oguatá Porã.
Nesse panorama, este artigo pretende discorrer ini-
cialmente sobre os conceitos de mobilidade, circulação,
cosmologia e rearranjo da população, fundamentando sua
metodologia na pesquisa bibliográfica e nos aspectos teó-
ricos sobre o assunto, uma vez que a pesquisa está em sua
fase inicial.
Em um segundo momento, serão abordadas defini-
ções acerca de fronteira a fim de se contextualizar e com-
preender as limitações impostas aos povos tradicionais
quando houve a demarcação geográfica pelos Estados na-
cionais.
Por derradeiro, este artigo trará considerações so-
bre o direito consuetudinário, direitos fundamentais e faz
breves comentários concernentes à Mensagem de Veto nº
163/2017 e suas implicações sobre os direitos dos povos
tradicionais na fronteira.

MOBILIDADE, COSMOLOGIA E CIRCUITO


KAIOWÁ/PAĨTAVYTERÃ: FATORES DE PRESER-
VAÇÃO DE SUA CULTURA E DIGNIDADE
De acordo com Evans-Pritchard (2002), o movimen-
to de aldeias para acampamentos possui aproximadamen-
te a mesma conotação em todas as partes do seu território
tradicional. Sendo a distância ecológica uma relação entre
comunidades definida em termos de densidade e distribui-
18
ção, referenciando a água, vegetação, vida animal, insetos,
e assim por diante.
Ainda segundo o mesmo autor (EVANS-PRIT-
CHARD, 2002) a distribuição espacial dos povos tradicio-
nais também se dá em função das condições físicas e do ter-
reno. No tocante às condições físicas, ela se dá em função
da escassez de alimentos e pela falta de coesão política e de
perspectivas de desenvolvimento. Em função do terreno, a
distribuição irá ocorrer em função do tamanho do terreno e
de suas elevações e acidentes naturais que possam facilitar
o seu modus vivendi.
Nesse panorama, é importante destacar a cosmolo-
gia Kaiowá/PaĩTavyterã, baseada em mitos que irão deter-
minar a sua estratégia migratória, fundada em uma lógica
espiritual tradicional, fundada em uma visão transcendental
apta a guiá-los na constante busca de uma nova região, livre
de ameaças sobrenaturais.
Cabe destacar, neste ponto, acerca dos limites ora
questionados a partir do momento em que se estuda a mo-
bilidade Kaiowá/PaĩTavyterã, pois ao se confrontar o saber
tradicional e o estabelecido, verifica-se um encontro entre
dois tipos de visão conforme definiu Lévi-Strauss (1989),
uma baseada na cosmologia fundada em um conjunto de
crenças que levam ao não reconhecimento de fronteiras
definidas pelos indígenas por parte dos estados nacionais
soberanos, e as eventuais fronteiras impostas pela proprie-
dade privada.
De acordo com o pensamento de Lévi-Strauss
(1989), exposto na obra O Pensamento Selvagem, “selva-
gens” e “civilizados” possuem igualdade na inferência ló-

19
gica e dedutiva sobre a realidade que os cerca, ressaltando a
existência de dois modos diferentes de pensamento cientí-
fico poderão estar em proximidade com a intuição sensível
(transcendentalidade do ser) ou mais distanciado (cientifi-
cismo).
Conforme ainda o mesmo autor, (LÉVI-S-
TRAUSS,1989), o pensamento primitivo é baseado em
uma visão cosmológica que aprecia todas as coisas do uni-
verso segundo o ponto de vista da transcendentalidade, em
que o mito possui uma lógica interna capaz de explicar os
acontecimentos sociais, marcando a conexão entre a natu-
reza e sua cultura.
Dentro do processo de construção dos Estados Na-
cionais, via de regra, houve a privação da liberdade dos po-
vos indígenas em praticar seus deslocamentos espaciais, re-
presentativo da busca de um lugar onde possam ser Kaiowá/
Paĩ, ou seja, ter sua identidade.
Estudos realizados sobre os Kaiowá/Paĩ por Me-
liá (2008-2016), Brand (1993), Pereira (1999), Crespe Lutti
(2009), dentre outros, tratam a parentela como o princípio
básico da organização social. A parentela ou família exten-
sa é a reunião de várias famílias nucleares, formada pelo
pai, mãe, filhos e agregados. É um núcleo político, social,
econômico e religioso, organizado a partir dos mais idosos,
agregando de três a quatro gerações.
Para os Kaiowá/Paĩ, devido a sua visão cosmoló-
gica, as fronteiras demarcadas pelos estados nacionais não
fazem o menor sentido. Por outro lado, desde o período
colonial, sua história vem sendo fortemente marcada e de-
marcada por essas fronteiras, representantes do monopólio

20
estatal que ofendeu literalmente o modo de vida dessa po-
pulação indígena.
Após o processo de expropriação dos territórios
Kaiowá no sul do Estado de Mato Grosso do Sul, para a
expansão das frentes de ocupação econômica, esta popula-
ção indígena foi obrigada a se recolher em reservas a partir
da segunda década do século XX. Este recolhimento resul-
tou em grandes problemas na organização social do povo
Kaiowá, e que permanece até os dias atuais.
Segundo Pereira (2012, p. 125), entre 1915 e 1928,
o Serviço de Proteção aos Índios (SPI) requereu áreas de
terras junto ao antigo estado de Mato Grosso e demarcou
oito pequenas reservas destinadas ao recolhimento da popu-
lação de centenas de grupos Kaiowá e Guarani que viviam
no estado. O órgão indigenista oficial do Estado brasileiro
considerava necessária a criação destes espaços por con-
siderar importante a proteção aos povos indígenas diante
ao avanço desenfreado das frentes pioneiras de ocupação
da terra, que vinha ocasionando a dizimação de inúmeras
etnias indígenas. O processo de demarcação de reservas
Kaiowá constituiu-se na assimilação forçada dessa popula-
ção à cultura e sociedade nacional. A escolha desses espa-
ços foi baseada em áreas próximas a povoamentos de não
indígenas, como exemplo o caso das reservas de Dourados,
Caarapó, Amambai, Limão Verde, Sassoró, Taquaperi, Por-
to Lindo e Pirajuí.
Diante da proximidade com os não indígenas, o
povo Kaiowá adaptou-se gradualmente ao novo território,
tendo como consequência a ampliação do seu circuito, e
para melhor compreender esse circuito, são utilizadas al-
gumas das séries de categorias que servem para conformar
21
uma “família” de acordo com a terminologia de Magnani
(2002, p.20), que são: pedaço, trajeto, mancha, pórtico e
circuito.
Primeiramente, podemos dizer que os kaiowá cons-
tituíram o seu pedaço, ou seja,de acordo com o magistério
de Magnani (2002, p.20) está descrita a noção de pedaço,
onde eles passaram a possuir “uma referência espacial, a
presença regular de seus membros e um código de reconhe-
cimento e comunicação entre eles” e com isso a manuten-
ção de sua organização social, mesmo estando em reservas,
pois trouxeram seus símbolos e códigos.
Tendo em vista a perda de seus tekoha, os kaiowá
necessitam buscar o que falta em outros territórios para
completar sua alimentação, buscar atendimento médico,
pois há falta de mata com ervas medicinais decorrentes do
desmatamento e do progresso, além da busca por educação
em cidades próximas, já que o Estado não proporciona edu-
cação indígena na maioria das reservas.
Outro fator que explica a noção de circuito é a busca de
trabalho, pois não há mais território para cultivar seus plantios
de subsistência e, por fim, a visita aos parentes residentes em ou-
tras reservas indígenas também é uma característica do circuito.
Essa transição entre os diversos espaços que não man-
têm entre si uma relação de contiguidade espacial é definida por
Magnani (2002, p.23) como circuito, ou seja, os Kaiowá pos-
suem um complexo circuito “formado pelo universo do traba-
lho, pelas instituições de saúde, de ensino, cultura, lazer etc”.
Segundo Colman (2015, p.23), a noção de território
circulatório está relacionada aos diversos saberes que são

22
empreendidos em processos de construção de identidade,
memória coletiva e laços sociais (apud. TARRIUS, 1993).
Conforme Colman (2015, p.21 apud. VAINER E
MELO, 2012), migrar está intrinsecamente ligado ao movi-
mento espacial de uma população, e conforme essa autora,
os deslocamentos espaciais ocorrem em virtude de catástro-
fes naturais, guerras, perseguições e outros fatores decor-
rentes da ação humana.
Conforme Wirth (1973), os modos de vida das pes-
soas seguem paradigmas que refletem a cultura dominante,
onde o conceito de lugar circunscrito e definido tem a ver
com a própria origem do Estado, outrora dividido em feu-
dos que deram lugar às cidades, que são produtos de um
processo do crescimento e evolução dos modos de asso-
ciação humana, que exercem influência sobre os modos de
vida das pessoas e sua visão acerca da realidade.
Sem dúvida, a estruturação desse processo entra em
conflito com a visão de território dos povos tradicionais e,
como citado, vê-se pressionada por uma visão eurocêntrica
e por padrões sociais reforçados pela cultura dominante.
De acordo com Louis Wirth (1973, p.11), o aumen-
to do número de habitantes de uma comunidade para mais
de algumas centenas levará inevitavelmente à dificuldade
de cada um dos membros conhecer pessoalmente uns aos
outros.
Segundo as ideias de Wirth (1973, p.12), o super-
ficialismo, o anonimato e o caráter transitório das relações
sociais na cidade explicam a sua racionalidade e frieza de
sentimentos decorrentes do seu vazio social, que não per-

23
mite uma compreensão do “outro” que se diferencie e seja
dotado de outro paradigma que necessita ser compreendido
e estudado.
Wirth (1973, p.15) afirma que a mobilidade dos in-
divíduos os sujeita a um status flutuante no seio de gru-
pos sociais diferenciados que compõem a estrutura social
da cidade, levando a uma instabilidade e insegurança como
norma geral de aceitação. Diante disso, o urbanismo é visto
pelo autor segundo a inter-relação entre a estrutura física
(território) onde estão os indivíduos, o seu sistema de orga-
nização social e o conjunto de atitudes de ideias que se har-
monizam dentro de um comportamento coletivo e sujeitos
a mecanismos de controle social.
Importa destacar que a mobilidade espacial pra-
ticada entre os Kaiowá/Paĩ está vinculada ao princípio da
ancestralidade do território, hipótese que notadamente não
se enquadra no raciocínio tradicional e no senso comum,
ensinado aos não indígenas, fator que gera conflitos devido
aos traços nos quais se funda a formação e estrutura social e
política das cidades, sejam elas fronteiriças ou não.

BREVES CONSIDERAÇÕES ACERCA DO PROCES-


SO DE DEMARCAÇÃO DAS FRONTEIRAS BRASI-
LEIRAS
Segundo Gabaglia (2014, p.15), existem duas for-
mas de o Estado acrescer o seu território: uma originária,
decorrente de ocupação, e outra derivada, em decorrência
de tratados ou posse imemorial. Nesse sentido, o que seria
o Estado senão uma sociedade permanente de pessoas inde-

24
pendentes, estabelecidas em determinado território e com
governo autônomo encarregado de dirigi-la.
Como característica material do Estado tem-se os
conceitos de território, povo e governo, sendo o território
indispensável ao Estado, além disso, o conceito de território
se impõe, juntamente com as relações sociais baseadas na
noção de país.
Paralelamente, surge a importância do solo, em uma
cronologia que se seguiu à substituição das tribos pelas na-
ções, transformando as relações fundadas em parentesco
em instituições fundadas no território e na propriedade.
A sociedade política tem como dever principal con-
servar o território e prevenir ameaças. O território termina
nas fronteiras, definidas como áreas de extremidade do ter-
ritório de um Estado que confinam com as do outro.
As fronteiras são zonas de interpenetração e, ao
mesmo tempo, zonas de separação, sendo, nos dizeres de
Gabaglia (2014, p. 06), “arenas de lutas contínuas entre os
elementos de fusão e os elementos de disjunção, daí o cará-
ter original e estranho que oferecem”.
Conforme Gabaglia (2014, p.07), na região de fron-
teira, as relações sociais existem ou tendem a se formar pela
evolução histórica, caracterizando verdadeiros centros de
contato e focos de vida intensa, sendo verdadeiros órgãos
vitais do Estado, ao lado de suas capitais.
Segundo esse autor (GABAGLIA, 2014, p.07), no
princípio, as fronteiras eram vastas regiões de terra desa-
bitadas e caracterizadas por desertos, pântanos, montanhas
e outros obstáculos naturais. Ainda conforme Gabaglia

25
(2014, p.07), o aumento da população, o valor crescente
da terra, melhor utilizada pelo trabalho humano, dentre ou-
tros fatores, contribuíram para o estreitamento das zonas de
fronteira, culminando com o estabelecimento de faixas de
fronteira, levando-se em conta a existência real e o aspecto
peculiar desses territórios.
Outra teoria a ser destacada seria a das Fronteiras
Políticas, que nem sempre repousará na justiça e na equi-
dade, vindo muitas vezes a esconder, sob a forma jurídica,
extorsões dos mais fortes sobre os mais fracos (ibid., p.15).
Pelo menos até o século XVI, a ideia religiosa domi-
nou o mundo ocidental, e o papa era considerado soberano
de todas as terras dos infiéis, não só pelo direito que a Santa
Sé tinha sobre todas as regiões e sobre todos os reinos do
mundo, o que era indiscutível, mas também pela doação
que Constantino Magno fizera ao Papa São Silvestre e aos
seus sucessores (ibid., p.16).
Logo, o Sumo Pontífice poderia dispor das terras
como bem lhe aprouvesse em favor dos Estados mais capa-
zes e melhor aparelhados para difundir a fé católica, conce-
dendo o título definitivo das terras por intermédio de bula
papal, justificando a ocupação das terras pela cristianização
(ibid., p.16).
No âmbito da América Latina, os Estados que se
emanciparam ou se desdobraram tiveram inúmeras ques-
tões sobre limites devido às indefinições quanto às fron-
teiras que separavam territórios espanhóis e portugueses,
sendo aplicado o princípio romano do uti-possidetis como
regra razoável para delimitação de fronteiras (GABAGLIA,
2014, p.48).

26
No caso brasileiro, o alargamento das fronteiras se
deu no decurso do domínio espanhol (1580-1640), onde fo-
ram reunidas as duas coroas ibéricas sob o mesmo cetro,
possibilitando a expansão de regiões e a arquitetura de um
novo mapa político da região fronteiriça brasileira, resul-
tando na fundação de cidades como a de Corumbá/MS, em
1778, por Luiz de Albuquerque, dentre outras cidades fron-
teiriças fundadas sob o pálio do princípio do uti-possidetis4
e por outras razões que fugiriam ao objetivo deste trabalho
(GABAGLIA, 2014, p. 59).
A História não é linear, mas resulta de pressões e
lutas sociais, e as transformações requeridas pela sociedade
podem ser viabilizadas a partir de práticas sociais e políti-
cas, construídas cotidiana e coletivamente.
Segundo Barth (2000, p.111), a realidade de todas
as pessoas é composta de construções culturais, sustentadas
de modo eficaz tanto pelo mútuo consentimento quanto por
causas materiais inevitáveis.
Conforme o mesmo autor (BARTH, 2000, p.171),
todo comportamento social é interpretado, construído, e
nada indica que exista uma situação em que duas pessoas-
coincidam plenamente na interpretação de um dado evento.
Na verdade, uma relação social pressupõe apenas certo grau
de convergência a respeito de teorias passageiras entre os
indivíduos em integração.

4 Princípio do Direito Romano fundamentado na premissa de que,


quem tem a posse de fato, possui de direito. O “Uti Possidetis” conferia
a posse da terra a quem a tivesse ocupado e povoado, e foi o ponto fun-
damental do Tratado de Madri (1750). (Nota do autor).

27
FRONTEIRAS DO DIREITO CONSUETUDINÁRIO:
QUAL O SEU ALCANCE NA FORMAÇÃO DO ESTA-
DO BRASILEIRO?

De acordo com Boaventura de Sousa Santos (2003,


p.06) o conjunto de pressupostos que norteiam a cultura e
política ocidentais estão organizados em uma entidade so-
cial chamada direito, capaz de ser definida nos seus pró-
prios termos e de funcionar de maneira autônoma. Nas pa-
lavras do autor:
Todos esses pressupostos se afiguram bastante
problemáticos quando encarados a partir de fora
das fronteiras da modernidade ocidental. Ao cabo
de quinhentos anos de expansão européia, e de
uma geografia diversificada de zonas de contac-
to extremamente diversificada, onde houve lugar
a uma miríade de formas de hibridação e criou-
lização, continua a ser problemático, em muitas
culturas e sociedades não européias, identificar o
direito como um campo social autónomo e homo-
géneo. (...) compondo um vasto leque de estrutu-
ras normativas ancoradas em entidades e agencia-
mentos não estatais (SANTOS, 2003, p.06).

Ao menos desde a época de 1500, a Europa experi-


mentou inúmeras crises e guerras como a que ocorreu entre
as duas potências ibéricas da época, e que levaram Espanha
e Portugal à bancarrota, mais ainda Portugal, que teve que
se lançar ao mar na busca de novas fronteiras de comércio
e renda para amenizar a crise econômica interna e externa
existente.
Assim como Ortega y Gasset (1983, p.105) buscou
a compreensão política e social de seu país através de suas

28
raízes históricas, é necessário lançar um olhar amplo para
se compreender alguns matizes da situação estudada.
O homem vive de sonhos, expectativas e esperan-
ças. Assim também os indígenas têm esse direito, esperar
que algo melhor lhes aconteça, a sua terra prometida, o seu
solo e a sua paz.
Os governos passam, no entanto, a questão indíge-
na é um dos assuntos que resistiram ao tempo, atravessando
governos a fio, sem solução concreta, mas apenas com pa-
liativos ou soluções cosméticas.
Desde o descobrimento da América, nunca se veri-
ficou uma política favorável aos indígenas, que continuam
a ser violados em seus direitos, em sua cultura e, princi-
palmente, em suas propriedades. Com a dizimação quase
completa de tribos inteiras por doenças, trabalhos forçados
e resistência à dominação, não restando alternativa ao go-
verno senão importar escravos africanos.
Com o advento da escravidão, os índios foram re-
legados a um segundo plano, recebendo a herança do os-
tracismo ao serem marcados pela sociedade como pessoas
incapazes e improdutivas.
Segundo Platão (2013, p.23):
O orador Trasímaco entra na conversação para defen-
der a idéia de que a justiça se define pelo interesse do
mais forte, e que a injustiça é mais vantajosa do que
a justiça. Sócrates refuta-o e insiste principalmente no
fato de que sem justiça sociedade alguma é possível.

Esse debate, ocorrido há aproximadamente dois mil


e quinhentos anos, ressalta a necessidade de se estabelecer

29
parâmetros para o que se poderia definir por justiça, e até
que ponto ela é efetiva no sentido de regular as relações en-
tre os indivíduos, bem como entre estes e o próprio Estado.
Nesse contexto, seria a injustiça mais vantajosa do
que a justiça e a equidade? Ao longo de anos, o homem
tem desenvolvido modelos de justiça que inevitavelmente
refletiram, em quase sua totalidade, os interesses dos mais
fortes, das classes dominantes.
Não seria diferente no caso dos indígenas e povos
tradicionais, que ao longo do tempo foram destituídos de
suas coisas, em prol do progresso, dizem alguns; no entan-
to, esse mesmo progresso tem ocasionado danos irrepará-
veis a esses povos, mais fracos nesse processo, marcados
em muitos locais por densa miséria e exclusão social.
Tornando o foco para a causa indígena, observa-se
que, historicamente, não há como se diferenciar políticas
que fossem voltadas para resguardar os interesses imedia-
tos das populações tradicionais, ou mesmo a sua dignidade,
destruída ao longo dos anos.
Embora as raízes históricas do problema das popu-
lações indígenas nos países da América do Sul tenham suas
diferenças, em um ponto elas concordam: quanto à violên-
cia praticada contra essas populações, que ficaram à mercê
de invasores e assassinos, privadas de qualquer direito fun-
damental efetivo.
Nesse contexto, quanto à situação política, social
e histórica brasileira, destacam-se as palavras de Faoro
(2012, p. 602): “a civilização brasileira, como a persona-
gem de Machado de Assis, chama-se ‘Veleidade’, sombra

30
coada entre sombras, ser e não ser, ir e não ir, a indefinição
das formas e da vontade criadora”.
A história mostra que a situação do índio no Brasil
fora remediada em grande parte pelo tráfico negreiro em
função de dois fatores: dizimação quase absoluta da popu-
lação indígena e grandes lucros causados pela escravidão,
muito embora a população indígena também tenha sido so-
corrida pelas missões jesuíticas estabelecidas, criadas para
catequizar e proteger os índios.
Nos dizeres de Barbosa (1995, p.117), a América
Latina é o reflexo de sua realidade histórica e social: na
verdade, um amontoado de espelhos partidos. Sociedades
forjadas pela cruz e pela espada, na coragem desmedida do
colonizador na sua crueldade e intolerância, plasmadas na
cobiça, na aventura e no desejo pela conquista desenfreada
do território, da exploração desmedida dos metais precio-
sos, seguida de genocídios e demais violações à vida huma-
na em todos os sentidos.
Considerando que toda essa situação terá reflexos
diretos ao longo da formação da sociedade nos diversos
países latino-americanos, cumpre ressaltar a organização
dos estados e a formação, analisando-se o caso brasileiro,
de todo um aparato jurídico alienígena que serviu para be-
neficiar as classes dominantes e as oligarquias existentes na
época, favorecendo o clientelismo, os abusos e a expansão
irregular de terras em detrimento do direito já estabelecido
nas populações tradicionais que habitavam o território.
Segundo Volkmer (2003, p.38), registra-se a conso-
lidação de uma instância de poder que, além de incorporar
o aparato burocrático e profissional da administração lusita-

31
na, surgiu sem identidade nacional, completamente desvin-
culada dos objetivos de sua população de origem da socie-
dade como um todo. Alheia à manifestação e à vontade da
população, a Metrópole instaurou extensões de seu poder
real na Colônia, implantando um espaço institucional que
evoluiu para a montagem de uma burocracia patrimonial
legitimada pelos donatários, senhores de escravos e pro-
prietários de terras.
Com isso, desenvolveu-se um cenário contraditório
de dominação política: “de um lado, a pulverização do po-
der na mão dos donos das terras e dos engenhos, seja pelo
profundo quadro de divisão de classes, seja pelo vulto da
extensão territorial; de outra parte, o esforço centralizador
que a Coroa impunha, através dos governadores-gerais e da
administração legalista. A ordem jurídica vigente, no domí-
nio privado ou público, marchará decisivamente no sentido
de preeminência do poder público sobre as comunidades,
solidificando uma estrutura com tendência à perpetuação
das situações de domínio estatal (VOLKMER, 2003, p.38).
A aliança do poder aristocrático da Coroa com as
elites agrárias locais permitiu construir um modelo de Es-
tado que defenderia, mesmo depois da independência, os
intentos de segmentos sociais donos da propriedade e dos
meios de produção.
Naturalmente, o aparecimento do Estado não foi re-
sultante do amadurecimento histórico-político de uma Na-
ção unida ou de uma sociedade consciente, mas de imposi-
ção da vontade do Império colonizador.

32
Instaura-se, assim, a tradição de um intervencionis-
mo estatal no âmbito das instituições sociais e na dinâmica
do desenvolvimento econômico. Tal referencial aproxima-
se do modelo de Estado absolutista europeu, ou seja, no
Brasil, o Capitalismo se desenvolveria sem o capital, como
produto e recriação da acumulação exercida pelo próprio
Estado (VOLKMER, 2003, p.38).
Nas palavras desse autor (VOLKMER, 2003, p. 42):
Na sua globalidade, a compreensão, quer da cul-
tura brasileira, quer do próprio Direito, não foi
produto da evolução linear e gradual de uma ex-
periência comunitária como ocorreu com a legis-
lação de outros povos mais antigos. Na verdade, o
processo colonizador, que representava o projeto
da Metrópole, instala e impõe numa região habi-
tada por populações indígenas toda uma tradição
cultural a1ienígena e todo um sistema de legalida-
de ‘avançada’ sob o ponto de vista do controle e
da efetividade formal.

Conforme Volkmer (2003, p.42), ao se analisar as


raízes culturais da legislação brasileira, dos três grupos ét-
nicos que constituíram nossa nacionalidade, somente a do
colonizador luso trouxe influência dominante e definitiva à
nossa formação jurídica.
Se a contribuição dos indígenas foi relevante para
a construção de nossa cultura, o mesmo não se pode dizer
quanto à origem do Direito nacional, pois os nativos não
conseguiram impor seus “mores” e suas leis, participando
mais “na humilde condição de objeto do direito real”, ou
seja, objetos de proteção jurídica.
Igualmente o negro, para aqui trazido na condição
de escravo, se sua presença é mais visível e assimilável no
33
contexto cultural brasileiro, a sua própria condição servil
e a desintegração cultural a que lhes impelia a imigração
forçada a que se viam sujeitos, não lhes permitiu também
pudessem competir com o luso na elaboração do Direito
brasileiro (VOLKMER, 2003, p.45).
De acordo com Volkmer (2003, p.45), desde o iní-
cio da colonização, além da marginalização e do descaso
pelas práticas costumeiras de um Direito nativo e informal,
a ordem normativa oficial implementava, gradativamente,
as condições necessárias para institucionalizar o projeto ex-
pansionista lusitano.
A consolidação desse ordenamento formalista e
dogmático está calcada doutrinariamente, num primeiro
momento, no idealismo jusnaturalista; posteriormente, na
exegese positivista.Cumpre ressaltar, nessa trajetória, que
os traços reais de uma tradição subjacente de práticas ju-
rídicas informais não-oficiais podem ser encontrados nas
remotas comunidades de índios e negros do Brasil colonial
(VOLKMER, 2003, p.46).
Nos dizeres de Volkmer (2003, p. 47):
Na verdade, a riqueza desses grupos indígenas
revela-se na convivência com a pluralidade de
valores culturais diversos, organizando suas mo-
dalidades de comportamento conforme disposi-
ções jurídicas “que nada têm a ver com o Direito
Estatal, porque são a expressão de uma sociedade
sem estado, cujas formas de poder são legitimadas
por mecanismos diferentes dos formais e legais do
Estado.

Em outras palavras, ousamos afirmar que os povos


indígenas, na atualidade, podem voltar a exercitar suas prá-

34
ticas de direito consuetudinário, ou seja, segundo o autor,
práticas das regras estabelecidas em sua cultura tradicional,
legitimadas por sua forma própria de visão de mundo.

DIREITO À AUTODETERMINAÇÃO: UM DOS


PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS PREVISTOS NA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL
Quando se analisa o fluxo migratório, os indígenas
e os migrantes estarão sempre na situação desconfortável
e de vulnerabilidade comum às minorias sociais, estando
sujeitos a todo tipo de dificuldades para sobreviver no novo
ambiente, passando por discriminação e marginalização
(CARDOSO DE OLIVEIRA & BAINES, 2005). Por outro
lado, a auto identificação indígena é um direito garantido
pela Constituição Federal de 1988, sendo um importante re-
conhecimento da consciência política e cidadã de ser índio.
Dentro desse aspecto, não significa que “qualquer
um pode ser índio”, mas, com base no processo histórico
-étnico e reconhecimento de seu povo, esta população não
deveria passar por discriminação e muito menos qualquer
dúvida quanto a sua identidade-étnica.
De acordo com Bim (2014), a Convenção OIT nº
169 se aplica aos povos indígenas e tribais (Indigenousand
Tribal Peoples ou PeuplesIndigènes et Tribaux). É opor-
tuno discorrer sobre o que se entende como povos tribais,
mesmo que esses não estejam abrangidos pelo § 3º do arti-
go 231 da Constituição Federal de 1988.
Por residirem em região de fronteira, os Kaiowá/Paĩ
passam por frequentes dificuldades para se auto afirmar e

35
autodeterminar, pois a sociedade não indígena frequente-
mente questiona a sua nacionalidade, ocasionando grande
dificuldade quanto ao acesso às políticas nacionais em am-
bos os países, ou seja, Brasil e Paraguai.
Há impedimento e dificuldade para solicitação de
um simples registro de nascimento, no qual muitas vezes os
cartórios brasileiros costumam não admitir sua identidade
étnica alegando que os mesmos são paraguaios e, do lado
de lá da fronteira, alegam que eles são brasileiros.
Nessa lógica, não resta a essa população alternativa
senão permanecer sem o direito de ser registrado do lado
brasileiro, em clara afronta ao Código Civil Brasileiro e ao
seu direito de se autodeterminar.
Diante disso, não restam dúvidas de que esses car-
tórios não reconhecem os direitos indígenas estabelecidos
pelo Estado brasileiro, e nem o Código Civil, pois ao negar
a emissão da certidão de nascimento, refletem a sua dis-
criminação aos indígenas, com o consequente bloqueio ao
livre acesso às políticas públicas, como educação, saúde,
bolsa família e sistema previdenciário.
De acordo com Sgarbossa (2009, p.28), devido à
constitucionalização do modelo de Estado Social, os di-
reitos que antes eram considerados simples direitos sociais
ou direitos sociais ordinários passaram a integrar o grupo
dos direitos fundamentais, ao lado dos direitos e liberdades
clássicos (civis e políticos).
Nos dizeres desse autor (SGARBOSSA, 2009,
p.30), trata-se aqui do advento de um novo modelo de di-
reitos fundamentais, os direitos fundamentais sociais, cuja

36
estrutura, significativamente diversa daquela dos direitos
fundamentais clássicos, acaba por provocar uma revolução
na concepção e na compreensão dos direitos fundamentais
e, em última análise, do próprio Direito Constitucional.
Inicialmente, impõe-se uma incursão acerca do de-
nominado caráter duplo dos direitos fundamentais, consa-
grado na dogmática jusfundamental contemporânea, para,
em seguida, valendo-se das compreensões preliminares
acerca dos direitos fundamentais, buscar compreender o al-
cance da elevação dos direitos sociais à categoria de direi-
tos fundamentais, e tal caráter duplo assenta-se em que na
atualidade os direitos fundamentais são considerados, por
um lado, como direitos subjetivos do indivíduo e, por outro,
como elementos fundamentais da ordem objetiva da coleti-
vidade (SGARBOSSA, 2009, p.30).
Em apertada síntese, ao compararmos a disposição
do parágrafo 2º do art. 1º da Lei nº 13.445/2017 (Nova Lei
de Migração), temos uma mostra inequívoca dos padrões
culturais arraigados na consciência política brasileira, que
ainda não se desvinculou de sua forma autoritária e discri-
minatória ao privar os povos tradicionais do direito a se
deslocar livremente sob o manto de aparente legalidade,
justiça e equidade, cujas evidências denotam exatamente o
contrário.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
As fronteiras Kaiowá/Paĩ costumam ser pautadas
em acidentes geográficos, fronteiras ecológicas e relações
de parentesco, passando a confrontarem-se com as frontei-

37
ras dos estados nacionais contemporâneos e, também, com
frentes econômicas de expansão territorial, às quais contam
com a anuência dos chefes de estados em ambos os países,
alterando essas fronteiras em detrimento do território dos
Kaiowá/Paĩ. O conceito de fronteira fixa e rígida, delimi-
tando o espaço, não existe entre a população indígena, pois
essa costuma ser uma concepção ocidental.
Segundo Athias (2016), a partir da Constituição Fe-
deral de 1988 os povos indígenas recuperam seus direitos
originários de poderem se constituir como cidadãos etnica-
mente diferenciados mostrando, assim, a possibilidade de
existência de um Estado pluriétnico.
Porém, a letra da Constituição não garantiu, até o
momento, a inclusão das comunidades étnicas em um pro-
cesso de participação plena nas políticas públicas de de-
senvolvimento que permitam a essas comunidades exer-
cer plenamente seus direitos. Apesar de um “crescimento
econômico” anunciado pelo governo, as comunidades
étnicas constituem-se em grupos vulneráveis que buscam
soluções para seus problemas, que tendem a se agravar
devido à política do Estado mínimo, onde não há espaço
para políticas sociais que incluam as minorias étnicas.
Noutro ponto, os elementos particulares da cultura
Guarani fundem-se na dualidade entre o pensamento reli-
gioso e a ciência, cujas funções são explicar a realidade do
homem (LEVI-STRAUSS, 1989). Porém, quais seriam os
limites da natureza humana e de sua cultura? Até que ponto
elas se harmonizam e se entrechocam?
A vida cotidiana de parte dos Kaiowá/ Paĩ, caracte-
rizados por ser uma população indígena sem fronteiras ou,

38
ao menos, sem as mesmas fronteiras impostas pelos Esta-
dos nacionais, resume-se ou limita-se apenas à liberdade de
ir e vir, seja para, visitar seus parentes, busca de um novo
território, ou até mesmo, poderem gozar de mais direitos
como trabalhar, acesso à educação e saúde.
É de vital importância a sugestão de Volkmer (2003,
p.46), onde seria essencial o resgate histórico de um plu-
ralismo jurídico comunitário, localizado e propagado atra-
vés das ações legais associativas no interior dos antigos
“quilombos” de negros e nas “reduções” indígenas sob a
orientação jesuítica, constituindo-se nas formas primárias
e autênticas de um Direito insurgente, eficaz e não-estatal.
Evidentemente, tais concepções seriam capazes de
desmentir o mito da centralização jurídica ocidental moder-
na, fundada na unicidade territorial de um Direito estatal
e formal. A historiografia oficial em geral não reconhece
a existência, no período anterior à colonização, de várias
nações indígenas, cada qual com um Direito próprio, base
de suas formas de procedimento no âmbito da propriedade,
posse, família, sucessão, matrimônio e delito (VOLKMER,
2003, p.47).
Diante desses fatos, surge a reflexão sobre a ex-
pansão econômica desenfreada que ameaça o futuro da
humanidade. Estudar a cultura indígena nos remete a uma
indagação: será que a sociedade não indígena pensa no seu
futuro como os indígenas?
Hans Jonas (2006) nos alerta sobre uma ética pau-
tada na responsabilidade, fundamentada no compromisso
com os seres futuros e nossa responsabilidade para com
eles. Estudiosos sobre o autor, como Battestin & Ghiggi

39
(2016) advertem que “o dever para com as gerações futuras
é um dever da humanidade, independentemente se os seres
são ou não nossos descendentes”, da mesma forma que a
cultura indígena é pautada na preservação do hoje para o
futuro, e quaisquer ações diferentes poderão resultar em sé-
rias consequências para as gerações futuras.

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44
REMOÇÕES FORÇADAS -
ÑEMOSARAMBIPA - ENTRE OS
GUARANI DE MATO GROSSO
DO SUL5
Rosa Sebastiana Colman6

INTRODUÇÃO
Uma das características principais dos Guarani é a
sua mobilidade espacial. Melià (1991) aponta como um pon-
to de saída, ou de dispersão, hipotético desde o Rio Guaporé,
afluente do rio Amazonas, ao norte das terras baixas da Bo-
lívia e aquele em que foram encontrados por expedicioná-
rios europeus do século XVI, em que aconteceram várias
migrações em diversas direções há mais de 3.000 anos. Os
povos que falam línguas de origem tupi seguiram os cursos
do rio Amazonas e atingiram a costa do Atlântico, enquanto
os que deram origem aos Guarani, há 2000 anos,

5 Trabalho originalmente apresentado no Seminário “Migrações Inter-


nacionais, Refúgio e Políticas”, realizado no dia 12 de abril de 2016 no
Memorial da América Latina, São Paulo. Encaminhado para avaliação
e publicação na revista Mediações no Dossiê Remoções forçadas de
grupos indígenas no Brasil republicano, organizado por Edilene Coffaci
de Lima e Jorge Eremites de Oliveira.
6 Rosa Sebastiana Colman - Possui graduação em Geografia pela Uni-
versidade Federal de Mato Grosso do Sul, mestrado em Desenvolvi-
mento Local pela Universidade Católica Dom Bosco e doutorado em
Demografia pela UNICAMP. Atualmente é professora na área de ciên-
cias humanas na Faculdade Intercultural Indígena da Universidade da
Grande Dourados (FAIND/UFGD). Email: rosacolman01@yahoo.
com.br

45
começaram uma migração que chegou até a bacia do rio
Paraguai, desceu até o rio Paraná, subiu pelo leste e seguiu
seus afluentes e depois até o litoral atlântico, enquanto ou-
tros grupos foram pela bacia do rio Uruguay e seus afluen-
tes, passaram pelos divisores de águas e entraram no Jacuí,
atualmente Rio Grande do Sul.
O primeiro elemento a ser considerado é a locali-
zação em um território transnacional: os Guarani estão
presentes em quatro países (Bolívia, Brasil, Paraguai e Ar-
gentina). No Brasil, nos estados de Mato Grosso do Sul,
São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Paraná, Santa
Catarina e Rio Grande do Sul. É neste amplo território que
as comunidades se instalam e por onde circulam. Outra ca-
racterística é o sentido cultural e mítico dessa mobilidade
espacial, em busca de territórios com melhores recursos
naturais, onde os Guarani possam realizar o seu Guarani
Reko, jeito próprio de viver. Através da mobilidade espa-
cial eles caminham em direção à chamada “terra sem ma-
les” (Yvy Marane’ỹ) (NIMUENDAJU, 1914; METRAUX,
1927 apud MELIÀ, 1991).  Destaca-se, ainda, outro perfil
do movimento, que se caracteriza como forma de solução
de conflitos, desentendimentos, morte de parentes, doen-
ças (PEREIRA, 2007). Além disso, há o sentido político da
mobilidade espacial causada por expulsões, pelo processo
de reconhecimento das terras indígenas, dos limites territo-
riais, do esgotamento dos recursos naturais, da construção
de rodovias e de empreendimentos imobiliários. Inicial-
mente trato do conceito de Ñane Retã - o território guarani
- e do conceito de Fronteira.
Tradicionalmente, os Guarani se territorializavam
de acordo com vários fatores: a disponibilidade de locais

46
com recursos naturais considerados apropriados, ou seja,
locais livres de ameaças sobrenaturais; a proximidade de
parentelas aliadas; a habilidade do líder em reunir a paren-
tela e resolver os problemas; e a incidência ou não de doen-
ças ou mortes (PEREIRA, 2007).

AS FRONTEIRAS E OS GUARANI
Os Guarani trabalham com noções e conceitos pró-
prios de fronteira, uma ideia mais sociológica e ideológica,
que inclui e exclui, definindo quem pertence e quem não
pertence a determinada coletividade, estabelecendo os limi-
tes a partir dos quais eles não se sentem “a gosto” (MELIÀ,
2007)7. A prática guarani de fronteira tem relação com a
ecologia, o parentesco e a economia. Nesse sentindo, para
Brand (et al, 2008, s/p.):
É importante ter presente que a discussão sobre
identidade guarani remete, diretamente, para
a ideia de pertencimento e para as relações
de parentesco – atualizadas por filiação e
descendência, memória, comunicação. São
Guarani aqueles que se assumem como
descendentes e que são reconhecidos como tais,
sendo que a ideia de cidadania guarani específica
está associada ao conceito de pertencimento. Daí
a importância da concepção de território como
espaço de comunicação, com as suas marcas
referidas e atualizadas pela memória.

Dessa forma, também as cercas e malhas viárias re-


configuram as rotas de trânsito. Segundo Melià (2007),

7 Relatório da Reunião sobre o projeto Os Guarani no MERCOSUL,


Foz de Iguaçu, Novembro de 2007.

47
os territórios indígenas seriam, acima de tudo, “territórios
de comunicação”, prenhes de memória e de história, que
podem ser visualizados por marcas, tais como caminhos,
casas, recursos naturais e acontecimentos específicos. Refe-
rindo-se às fronteiras guarani, Melià (2007) entende que são
parte da sua identidade, remetendo para o seu modo de ser.
O território é o espaço no qual as relações de parentesco,
com suas complexas redes de comunicação, se reproduzem.
Por isso, sob a ótica indígena, essas fronteiras podiam ser
relativizadas em determinados casos, como pelos casamen-
tos ou pelas dinâmicas de alianças. Essas redes seguem, no
presente, plenamente em vigor, constituindo e desconsti-
tuindo fronteiras, entendidas como dinâmicas e não fixas.
Não faz sentido, para os Guarani, as fronteiras na-
cionais, embora, desde o período colonial, sua história ve-
nha sendo fortemente marcada e demarcada pelas fronteiras
dos Estados nacionais. Porém, é importante destacar que
desde o período colonial os Guarani buscam ignorá-las, re-
sistindo a esse tipo de enquadramento. Durante uma via-
gem de intercâmbio8 foi possível constatar como, para os
Guarani, essas fronteiras seguem não fazendo sentido, pois
todos os participantes da viagem sentiam-se e reconheciam-
se como parentes (BRAND; COLMAN, 2010).
A história de vida de um dos integrantes dessa via-
gem, Santiago Franco9, permite compreender bem essa afir

8 No âmbito do projeto de Apoio ao Fortalecimento das Políticas Pú-


blicas entre os Guarani na região das fronteiras entre o Paraguai, Ar-
gentina e Brasil foi realizada, entre os dias 29/03 a 06/04 de 2009, uma
viagem de intercâmbio entre os diversos grupos guarani, localizados no
Paraguai, Argentina e Brasil.
9 Santiago Franco é guarani Mbya e reside no Rio Grande do Sul.

48
mação. Ele nasceu no Paraguai, morou na Argentina e agora
mora em Porto Alegre, no Brasil. Logo no início da viagem
já se reencontrou com seu tio, Hilário Acosta, morador da
Província de Misiones, ARG, outro participante da viagem,
que há muito tempo não via. E, assim, em quase todas as
aldeias visitadas, os participantes da iniciativa encontravam
parentes e ou conhecidos. Porém, ficou claro, também, que,
apesar dos esforços dos Guarani em ignorar as fronteiras
nacionais, essas interpõem dificuldades crescentes a sua cir-
culação e a seus direitos, como bem expressa o depoimento
do mesmo Santiago: “Os governos nos limitando, dividin-
do-nos, deixando sem espaço, negando nossos direitos!”.
Da mesma forma, outro participante, Joaquim
Adiala Hara10, afirma: “Nós Guarani que somos Mbya,
Guarani Ñandeva, Kaiowá, Paĩ Tavyterã, não somos dife-
rentes porque sempre fomos um grande povo, com auto-
nomia e sem fronteira. Somos os verdadeiros donos dessa
imensa terra que se chama América”. Seu relato confirma a
percepção guarani sobre as fronteiras nacionais.
A necessidade de, a cada momento, ter que pedir li-
cença nas aduanas/alfândegas e comunicar a saída e entrada
nos diversos países gerava uma situação de visível incômo-
do aos integrantes da viagem. “Por que não se tem liberda-
de para circular livremente nos três países?”, perguntavam
eles, considerando, especialmente que, “guarani é guarani
em todos os lugares”.
São, certamente, inúmeros os povos que se encon-
tram em situação idêntica à dos Guarani, ao longo de toda a
fronteira do Brasil. Podíamos citar aqui os Tikuna, Tukano

10 Ava Guarani de Porto Lindo, Japorã/MS.

49
e diversos outros povos no estado do Amazonas, os Maku-
xi, Wapixana e Yanomami, em Roraima, e tantos outros.
São povos que, em diversos momentos de nossa história,
desempenharam papel relevante na garantia das fronteiras
nacionais, como está bem documentado.
É relevante destacar que a maior parte dos
deslocamentos espaciais transfronteiriços, envolvendo
povos indígenas, refere-se a deslocamentos espaciais
ou à mobilidade espacial dentro de um mesmo território
ancestral, fenômeno, aliás, muito anterior às próprias
fronteiras nacionais e coloniais. Esse é diretamente
decorrente do fato de que as fronteiras impostas pelos
Estados nacionais ignoraram, completamente, as fronteiras
territoriais indígenas, cortando e fragmentando o território
de um mesmo povo. Esse é um ponto de maior relevância
para as discussões sobre políticas públicas no âmbito do
MERCOSUL, porque, como veremos, é esse exatamente o
caso dos Guarani. Por isso, ainda segundo dados da CEPAL
(2006, p. 205), trata-se de uma migração fronteiriça, sendo
que nove de cada dez migrantes indígenas são de um país
vizinho.
Cada povo indígena tinha suas fronteiras, definidas e re-
definidas através de um complexo processo, tendo como base
suas concepções de território. As fronteiras guarani, num pas-
sado relativamente recente, passaram a confrontar-se com as
fronteiras dos Estados Nacionais e, também, com frentes eco-
nômicas de expansão territorial, alterando essas fronteiras e des-
figurando o território, mediante a imposição de novas marcas.
Constituem-se, historicamente, referenciais impor-
tantes no processo de definição e redefinição das fronteiras
os acidentes geográficos – as fronteiras ecológicas – e, de
50
maneira especial, as relações de parentesco e as complexas
redes de reciprocidade e/ou disputas internas daí decorren-
tes. Essas redes seguem, no presente, plenamente em vigor,
constituindo e desconstituindo fronteiras, sempre vistas
como algo dinâmico e nunca fixo. O conceito de fronteiras
fixas, rígidas, fronteiras enquanto limites, parece ser uma
concepção ocidental. Sob a ótica indígena essas fronteiras
podiam ser relativizadas em determinados casos, como em
caso de casamentos ou pelas dinâmicas de alianças.
Na medida em que as regiões fronteiriças dos Es-
tados Nacionais vão sendo ocupadas – transformando-se
em fronteiras vivas - crescem as interferências na vida dos
povos transfronteiriços, através da imposição de modelos
linguísticos e educacionais distintos, bem como de sistemas
de atendimento à saúde, de políticas de garantia de territó-
rios e sua exploração.
Não existem políticas de línguas comuns nos dife-
rentes Estados Nacionais em relação ao Guarani, ao seu uso
nas escolas como língua de instrução ou como segunda lín-
gua, ao registro das variedades dialetais e à coleta de lite-
ratura oral. Políticas, eventualmente em prática, não foram
suficientemente estudadas, acompanhadas e avaliadas, nem
houve, tampouco, um intercâmbio de experiências entre as
instâncias interessadas. Sequer se conhece com precisão os
dados demográficos sobre os falantes de Guarani, sendo
que diferentes fontes apresentam dados, às vezes, contra-
ditórios.
No entanto, apesar dessa imposição dos Estados Na-
cionais, existe consenso entre os pesquisadores de que os
Guarani seguem com suas dinâmicas internas e próprias de
definição e redefinição das fronteiras culturais. Percebe-se,
51
claramente, a persistência transfronteiriça das redes de re-
lacionamento, através das quais os Guarani de Mato Gros-
so do Sul, do litoral e de outras regiões do Brasil, seguem
mantendo intensas e variadas trocas com seus parentes que
residem na Argentina e no Paraguai. O mesmo se verifica
entre os Kaiowá e Guarani, de Mato Grosso do Sul, onde
persistem, também, os deslocamentos espaciais transfron-
teiriços. Trata-se, claramente, da persistência de desloca-
mentos espaciais dentro do mesmo território guarani.
Ao analisar o fenômeno desses deslocamentos espa-
ciais transfronteiriços, segundo dados da CEPAL (2006, p.
203), verifica-se, desde 1990, clara tendência de aumento
na “migração internacional indígena” e que esse fenômeno
está relacionado diretamente à situação dos territórios e dos
seus recursos naturais, em especial à situação de ocupação
das terras indígenas por terceiros, os não-índios, gerando
um clima de muita violência. Esses são apontados como
fatores que impulsionam deslocamentos espaciais tempo-
rários e/ou definitivos. Além disto, principalmente, o que
se observa entre os Kaiowá e Guarani, podemos citar as
políticas sociais e o processo de reconhecimento territorial
como fatores de impulsão de deslocamentos.
É lógico que políticas anti-indígenas mais agressi-
vas, verificadas em determinado país, podem motivar des-
locamentos espaciais maiores para o outro lado da fronteira
nacional, em busca de melhores condições de vida, ou seja,
melhores condições para a vivência de sua cultura, sem-
pre dentro do mesmo território. Por isso, em muitos casos,
mesmo em se tratando de deslocamentos espaciais dentro
do mesmo território tradicional, esses podem ser caracteri-
zados, segundo a CEPAL (2006, p. 200), como mobilidade

52
espacial forçada, porque decorrentes da total falta de condi-
ções de vida em determinado país (violência generalizada).
Seguramente essa é a causa de alguns deslocamentos espa-
ciais verificados entre os Guarani hoje.
O estudo da CEPAL destaca com propriedade que a
especial vinculação aos territórios por parte dos povos indí-
genas representa um fator que, ao mesmo tempo que facilita
deslocamentos espaciais transfronteiriços dentro do mesmo
território indígena, dificulta deslocamentos espaciais para
fora do território ancestral. Um segundo fator a explicar a
“menor intensidad de la inmigración internacional indíge-
na”, ou “una menor propensión a migrar que las no indíge-
nas” (2006, p. 214), seria o fato de os povos indígenas, em
decorrência de sua condição de pobreza e discriminação,
apresentarem extrema vulnerabilidade.
Há, no entanto, outro aspecto referente às fronteiras
no MERCOSUL, que é importante trazer para as discussões
aqui em curso. Analisando a história da ocupação regional,
especialmente das regiões fronteiriças entre o Brasil e Para-
guai, percebe-se que essas fronteiras foram, historicamen-
te, e ainda são, completamente permeáveis e até ignoradas
quando se trata de interesses das grandes empresas transna-
cionais, especialmente brasileiras, na exploração dos recur-
sos naturais.
É o que se verificou no período pós-guerra do Paraguai
– no tempo da exploração dos ervais - destacando-se a aquisição
pela Companhia Matte Larangeira, em 1902, de uma área de
80 mil hectares de terra, na zona do Salto Del Guairá, Paraguai.
Em períodos mais recentes houve, ainda, um impor-
tante deslocamento de colonos e de grandes empresários

53
brasileiros, especialmente entre 1962-1972, processo am-
plamente conhecido no Brasil. Segundo Nickson (1976, p.
15)11, em 1972, no Departamento de Canindeyu, os brasilei-
ros constituíam cerca de 43% da população total. Segundo
esse mesmo autor, com a proibição de exportação de madei-
ra não cerrada, em 1972, por parte do Paraguai, “un flore-
ciente comercio de contrabando de troncos se desarrolló”
na região, beneficiando os Estados brasileiros, gerando a
rápida destruição das matas em toda a região que constitui
o território tradicional dos Paĩ Tavyterã.
Aliás, o mesmo Nickson (1976, p. 26) destaca, com
ênfase, a participação dos grandes proprietários brasileiros
no processo de desalojamento de camponeses e comunida-
des indígenas, ocupantes tradicionais daquelas terras, pro-
cesso que se agrava com a transferência da soja para essa
mesma região.

COSMOLOGIA DA CAMINHADA PARA OS


GUARANI
Atualmente há uma profunda ligação da caminhada
dos povos guarani rumo ao leste, com a formação das Ter-
ras Indígenas já existentes e com as que estão em formação.
Assim como indica o relato de um ancião guarani, colhido
por Ladeira (2007, p. 112):
[...] sempre, sempre foi assim, caminhando e en-
contrando as aldeias e os parentes e parando e tra

11 Estudo de Andrew Nickson, apresentado na Conferência sobre De-


sarrollo Del Amazonas em Sete Países, organizada pelo Centre ofLatin
American Studies, Universidad de Cambridge, nos dias 23 a 26 de se-
tembro de 1976.

54
balhando e formando outra aldeia. E antigamen-
te, é como hoje, existia muitas aldeias, até muito
mais, que a gente ia andando e encontrando. E
tem aldeia que não existe mais e agora tem outras.
Mas, antes, tinha mais gente, mais aldeias e pa-
rentes nos caminhos.

A questão da mobilidade espacial guarani, conforme


Ladeira (2001, p. 113), “permeia todas as discussões que
envolvem a regularização das terras e atividades de subsis-
tência”. Para os Guarani, “os movimentos fazem parte de
sua noção de mundo, estando presentes desde a sua cons-
trução”. Ladeira (2001, p. 113) considera que “os desloca-
mentos (movimentos) dos Guarani podem ser de naturezas
e motivos diversos, mas não são antagônicos, podem ser
complementares e suas causas podem estar interligadas”.
Na cosmologia Mbyá, a mobilidade espacial é mais
evidente, pois a dinâmica das relações sociais está estrutu-
rada nesta prática do Oguata. Assim, como relata um xamã
mbya: “A gente está aqui na terra não para ficar quieto, mas
para se movimentar” (CICCARONE, 2004, p. 04).
A relação entre cosmologia guarani e mobilidade
espacial é descrita por Ciccarone (2004, p. 04) da seguinte
forma:
A forma de sua historicidade, e a rede dos sig-
nificados da vida coletiva, são construídas na
mobilidade, de maneira que os Mbyá mudam na
persistência de seu estar em movimento. O mo-
vimento e sua produção no tempo/espaço mítico
podem ser considerados um princípio regulador
e propriedade constitutiva da concepção do seu
universo, dos mundos e do desenvolvimento da
existência humana, permeando a trama das nar-
rativas inaugurais, assim como é, em suas formas

55
históricas de dinamismo, que a sociedade Mbyá e
seus indivíduos se reconhecem e constroem sua
presença no mundo.

O tema da mobilidade espacial Mbyá não consiste


em achar um modo tradicional de vida, mas de buscar esse
modo melhor em espaço e tempo diferente do atual. A tra-
dição estaria na procura em si. A autora sugere, ainda, que
se relativize o tekoa enquanto uma categoria espacial e que
se entenda a realização do teko enquanto algo que envolva
certo grau de “diferenciação e individualização na vivência
do próprio ‘costume’ e alterações constantes sobre o modo
de vida” (PISSOLATO, 2007, p. 122).

ÑEMOSARAMBIPA ENTRE OS GUARANI E


KAIOWÁ
Para além do costume tradicional, existem migra-
ções forçadas, ou seja, casos em que comunidades inteiras,
tekoha inteiros foram desalojados forçadamente de suas ter-
ras pelas frentes de colonização modernas, como registra
Brand (1997). O relato a seguir é bastante ilustrativo:
Primeiro entraram na fazenda Califórnia, me-
diram tudo o mato [...]. Fomos no Botelha
Guasu, demoramo um pouco, plantamo. Aí já
vieram e fizeram de novo mensura [...] igual
Califórnia [...] depois que os karaí [não índios]
nos expulsaram, fomos no Jukeri [outra al-
deia]. Bom e aí foi de novo agrimensor e man-
dou embora a gente de novo e aí todos que ti-
nha terra foram expulsos [...] Já éramo só nós,
trabalhava nas fazendas, fomos trabalhar lá no
Tatakua [...] depois [...] perto do Tacuru, de-
pois saímos [...] pro Paraguai [...] Agora já não
faço mais casa (Laurentino da Silva, kaiowá,

56
antigo morador da aldeia Botelha Guasu, mu-
nicípio de Tacuru).

A situação se agravou com a implantação de grandes


propriedades voltadas para empreendimentos agropecuá-
rios e, a partir da década de 1970, com a entrada do plantio
da soja e dos consequentes desmatamentos. Nas atividades
de desmatamento, os próprios indígenas, por mais contradi-
tório que possa parecer, colaboraram efetivamente. Muitas
lideranças foram cooptadas e iludidas e forneceram madei-
ras para as serrarias e madeireiras. Essas ações estiveram
no auge da atividade econômica nesse período. Os relatos
indígenas indicam que caminhões e caminhões saíam das
terras indígenas carregados de madeira. Essa atividade eco-
nômica influenciou, diretamente, a situação de ‘esparramo’
e posterior confinamento dos Kaiowá e Guarani. Em Gua-
rani, ‘esparramo’ é mosarambipa. Este conceito é utilizado
pelos indígenas para explicar o processo de dispersão das
aldeias e famílias extensas no momento em que ocorreu a
implantação das fazendas de gado e correspondente perda
da terra. Assim como se observa na afirmação de Brand
(2000, p. 108):
No período caracterizado pelo ‘esparramo’, que vai
aproximadamente de 1950 a 1970, período, tam-
bém, de implantação das fazendas, inúmeras aldeias
kaiowá/guarani foram destruídas e seus moradores
dispersos. Famílias extensas foram desarticuladas.
Evidentemente, esses moradores dispersos não en-
contravam mais as condições necessárias para man-
terem suas práticas religiosas coletivas e específicas,
especialmente os rituais de iniciação dos meninos e
das meninas. Por essa razão inúmeros adultos hoje
não são mais portadores do Tembeta.

57
O processo de expulsão e confinamento deixou
como uma das consequências, o “esparramo” (mosarambi-
pa), que significou a desintegração e desestruturação social,
como mostra o relato, colhido por Brand, de Don Quitito,
liderança já falecida, nascido na área tradicional Ñanderu
Marangatu, no Município de Antônio João, quando expli-
cou a destruição dessa aldeia, em 1950:
[...] tempo de Getúlio Vargas, [...] tempo do general
Rondon mesmo que era. [...] e de noite chegou Pio
Silva. Chegou e disse: eu sou patrão, eu comprei
este lugar, já comprei. Agora esta fazenda é meu
[...] é meu isto. Quero que vão todos daqui, falou
em português. Vão todos daqui, este já é meu [...]
“depois o índio foi pro Paraguai, pra Pisyry, um
pouco pra Calça Cumprida, outro pouco já foi pra
Dama Kuê, outro pouco pra Dourados e o restante
foi pras fazendas (BRAND, 2000, p. 112).

Esse fato também está descrito em Pereira (2001, p.


79): “A expulsão da terra alterou profundamente as formas
de relação que a população de Arroio-Korá estabelecia com
outras aldeias”. Até a década de 1960 “desenvolviam inten-
so intercâmbio matrimonial e ritual com as populações de
Canta Galo (Karaja Yvy), Sete Cerros, Samakuã, Taquaral,
Yvykuarusu e Pirajuí, e no Paraguai se relacionavam, princi-
palmente, com a Colônia Comunidad” (PEREIRA, 2001, p.
80). Segundo este autor, “com a dispersão da população, as
famílias passaram a compor novas alianças com a população
das localidades onde se instalaram, entrando em outras redes
de trocas matrimoniais, arranjos políticos e religiosos”. Pe-
reira conclui que “novos fatores históricos alteraram assim a
constituição dessas redes de apoio mútuo e a própria compo-
sição das parentelas” (PEREIRA, 2001, p.80).

58
Para Levi Pereira12, é preciso observar a tempora-
lidade e a ecologia nos deslocamentos espaciais dos Gua-
rani. Este autor afirma que, no território dos Kaiowá de
Mato Grosso do Sul e Paraguai, houve situações parecidas
de desmatamentos e entrada da soja nos dois países, mas
em períodos diferentes. Na década de 1970 e 1980, quando
se acirraram os problemas fundiários nessa região, muitos
Guarani e Kaiowá se viram forçados a viver no Paraguai. E
na década de 1990, quando esse fato ocorreu no Paraguai,
em que os sojeiros brasileiros entraram no país vizinho, ex-
pulsando os Guarani de suas terras, muitos destes se viram
obrigados a mudar para o Brasil.
Essa situação foi observada por Levi Pereira (2001)
no estudo de identificação da TI de Arroyo Kora (Paranhos,
MS), em que cita vários relatos dessas idas e vindas dos
Guarani do Paraguai para o Brasil e vice e versa. Como
exemplo citado por Pereira:
Alberto Tapari foi assassinado no Paraguai em
1977, para onde tinha sido levado para trabalhar
como peão. Foi expulso da cabeceira Tonguery
por volta de 1970 por um fazendeiro de nome
Júlio Nunes. Uma de suas filhas está enterrada
nessa cabeceira. Os filhos estão morando no Pa-
raguai, na Colônia Comunidad e estão dispostos a
retornar para o Arroio-Korá, tão logo a terra seja
demarcada. Alberto era sobrinho de Ricardo (PE-
REIRA, 2001, p. 46).

Este autor (2001, p. 80) considera que “várias das


antigas aldeias com as quais se relacionavam também per-
deram suas terras no mesmo período, isto aconteceu com
Samakuã, Taquaral, Sete Cerros (já reocupada) e Karaja

12 Em conversa informal, Dourados, MS, junho de 2014.

59
Yvy”. E segue explicando as consequências das expulsões:
“A desarticulação dessas aldeias representou duro golpe nas
redes de trocas e alianças que existiam entre elas. Disper-
sas, essas populações tiveram que entrar em novas alianças
para tornar viável sua permanência nos novos locais de re-
sidência”. E cita, como exemplo, a situação de uma anciã
kaiowá, de nome Mamerta: “com a expulsão de Arroio-Ko-
rá, morou por muitos anos na Colônia Comunidad no Para-
guai, retornou para o Brasil quando saiu a demarcação de
Sete Cerros, de onde planejaram o retorno para Arroio-Ko-
rá” (PEREIRA, 2001, p.80).
Hoje em dia, além das expulsões violentas dos seus
territórios tradicionais, existe um tipo de migração pendular
forçada, que são os trabalhos assalariados fora das aldeias,
em muitos casos uma ida e vinda das usinas no mesmo dia,
outras vezes viagens a trabalho que duram um ou mais me-
ses. Esse tipo de trabalho fora das comunidades tornou-se
praticamente o único meio de sobrevivência desse grupo
Guarani, principalmente em Mato Grosso do Sul.
Nesse sentido, Levi Pereira (2001, p. 77) considera
que “a mobilidade do trabalho volante ou changa, como é
denominada regionalmente, lhes dá a sensação de controle
sobre o território. Um controle ilusório, mas que lhes per-
mite seguir operando com os conhecimentos próprios ao
modo de ser guarani”.
Com relação à intensidade das relações com a so-
ciedade envolvente, Pereira (2001, p. 79) sinaliza que “esta
intensidade é maior entre os homens jovens, que estão mais
expostos ao contato e que, pela própria divisão do trabalho,
possuem maior mobilidade espacial”.

60
É preciso ter claro que os processos de deslocamentos
espaciais ocorrem de forma diferenciada entre os Guarani
e seus diferentes povos ou subgrupos, como considera Levi
Pereira (2001, p.18):
A migração apresenta-se de forma diferenciada nos
subgrupos guarani que vivem no Brasil: 1) entre
os Kaiowá e os Ñandeva ocorre o abandono dessa
prática a partir do XIX. Assim, o movimento co-
letivo das migrações que reuniam centenas e até
milhares de pessoas (coletividade), deslocando-se
pelo território (horizontalidade), foi substituído
pela busca individualizada (individualismo) da
perfeição religiosa via ascetismo (verticalidade); 2)
os Mby’a, ao contrário, mantiveram grande parte
das características originais da tradição migratória.

Nimuendaju (1987, p.31) descreveu que, na pri-


meira década do século XX, ocorria a última migração
envolvendo os Guarani de MS, os quais teriam saído das
“proximidades do Rio Iguatemi e conduzidos por um Karaí
(“vocábulo com que honraram seus feiticeiros”, Montoya,
1876), dirigiam-se rumo leste em busca de uma ‘terra sem
mal’”.
Segundo Pereira (2001, p.19), “com o término das
migrações, os Guarani de MS mantiveram-se no território
em que hoje se encontram, habitando seus tekoha”. Mas
não se descarta a ocorrência de uma mobilidade espacial
que atualmente acontece “dentro do território onde estão
distribuídas as aldeias-tekoha, através dos mecanismos que
regulam a circulação de pessoas entre aldeias, especifica-
mente, casamentos, alianças políticas e religiosas”.
O relato a seguir, de uma mulher xamã de mais
de 60 anos, que vive atualmente na reserva de Dourados,

61
ilustra muito bem a situação descrita por Pereira (2007),
ao afirmar que o modelo político criado na reserva é fator
preponderante na decisão de fogos e parentelas de cederem
às pressões para abandonar seus lugares de origem e se mu-
darem para esses locais:
Antes eu vivia no Guyraroká, nas margens do cór-
rego Karacu, meus parentes sempre viveram lá,
mas não tinha assistência, o fazendeiro veio, ocu-
pou e aí mandava a gente sair, dizia que lugar de
índio agora era na reserva, os parentes já tinham
saído quase tudo. Aí veio parente meu que mo-
rava na reserva, junto com Funai e disseram que
não era bom morar sozinho na fazenda, melhor
mudar para reserva, ia ter assistência do governo,
ajuda de saúde, escola, semente, ferramenta. Aí
eu pensei..., melhor mudar..., e fui para a reserva
de Dourados, eu era nova, viúva com dois filhos
(PEREIRA, 2007, p.11).

Pereira também indica que o período inicial da ocu-


pação agropecuária intensificou muito a fragmentação das
aldeias e o deslocamento da população. Na consideração
de Pereira isto se deve, provavelmente, à intensificação das
mortes provocadas pelas epidemias. “O motor do desloca-
mento era, na maioria das vezes, o conflito entre parentelas,
e ele se intensifica com a chegada dos novos ocupantes da
terra” (PEREIRA, 2007, p.10). Aos poucos, essa população
foi se “acomodando nas reservas”, à medida que não tinha
mais onde se estabelecer.
No entendimento de Pereira (2007, p. 11), “a com-
preensão sobre o crescimento demográfico de reservas,
como a de Dourados, deve ser buscada também na presença
das agências indigenistas, na forma de sua atuação e nos
recursos de que dispunham”. Para este autor, a proximidade

62
das reservas mais populosas com centros urbanos é “um
forte indicativo do poder atrativo exercido pela possibili-
dade, real ou imaginada, de acesso a recursos e assistência
social”.
Nesse sentido Pereira (2007) informa que A reserva
de Dourados comportou, desde a década de 1920, conside-
rável infraestrutura de agências indigenistas. Isto facilitou o
acesso a ferramentas, remédios e outros bens industrializa-
dos para muitas famílias que para lá se recolheram. Força-
dos a viverem em áreas de “acomodação” e impossibilita-
dos de seguirem vivendo em parentelas dispersas, segundo
a configuração de redes de alianças flexíveis e instáveis, os
Kaiowá incorporam a presença indigenista. A situação de
reserva instaura um novo padrão de assentamento. Nele, as
autoridades externas ocupam o centro da vida política. Na
reserva se geram figurações sociais inteiramente novas, ins-
tituídas como respostas adaptativas às condições históricas
às quais a maior parte da população kaiowá se submeteu de
maneira compulsória.
Na realidade dos Kaiowá e Guarani de Mato Grosso
do Sul, segundo Pereira (2007, p. 6), a situação de reserva,
imposta pelo SPI a partir de 1928, “altera profundamente
o padrão tradicional de assentamento das parentelas e al-
deias”. Antes da ocupação colonial, a população kaiowá se
territorializava de acordo com vários elementos como a dis-
ponibilidade de locais considerados
apropriados por comportarem recursos naturais
para o estabelecimento da residência, pois, como
disse o líder político de uma reserva, ‘antigamente
o índio sempre procurava o lugar bom para morar,
onde tinha mato bom, água boa’, ou seja, há um
conjunto de fatores ecológicos influenciando tal
escolha (PEREIRA, 2007, p. 6).

63
Além disso, os Kaiowá, tradicionalmente, conside-
ravam outro elemento importante para estabelecerem resi-
dência: “o local tinha que estar livre de ameaças sobrena-
turais, como espíritos maus ou mortos ilustres recentes”.
Pereira (2007, p. 6) ainda destaca como elementos neces-
sários:
[...] a proximidade de parentelas aliadas, com as
quais era possível fazer festas e rituais religiosos,
sendo a rivalidade com os vizinhos um aconte-
cimento suficiente para provocar a migração; a
capacidade do cabeça de parentela e do líder da
aldeia de conduzir eficazmente a vida comunitá-
ria, ou seja, de demonstrar habilidade para unir os
parentes e resolver problemas de convivência en-
tre os fogos domésticos; e, ainda, a incidência ou
não de doenças ou mortes repentinas provocadas
por causas consideradas não-naturais (PEREIRA,
2007, p. 6).

Da situação de reserva descrita anteriormente é que “a


intensidade de mobilidade dos assentamentos e a maior ou me-
nor proximidade social e espacial entre eles estava conectada a
fatores ambientais, sociológicos e cosmológicos” (PEREIRA,
2007, p. 6). A forma como se deu a ocupação agropastoril in-
terrompeu essa dinâmica. É a partir de então que, para o autor,
“a reserva institui novos espaços de produção das relações so-
ciais, interferindo em todos os campos da existência das comu-
nidades kaiowá aí reunidas” (PEREIRA, 2007, p.6). Nas últi-
mas décadas, a realidade nas reservas está tão complexa que
vem desafiando diversos pesquisadores a “formular conceitos
e modelos explicativos para dar conta das implicações sociais
dessa realidade de assentamento” (PEREIRA, 2007, p.6).

64
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir dos anos 1990 trabalhos importantíssimos
começaram a mostrar que os territórios guarani foram todos
suprimidos, e que eles foram confinados (BRAND, 1997).
O processo de expulsão e confinamento deixou como uma
das consequências o “esparramo” (mosarambipa), que sig-
nificou a desintegração e desestruturação social (BRAND,
2000). E que, para além do costume tradicional do Oguata,
existem migrações forçadas, ou seja, casos em que comu-
nidades inteiras, tekoha inteiros foram desalojados, força-
damente, de suas terras pelas frentes de colonização mo-
dernas.
A questão da abrangência territorial (Bolívia, Pa-
raguai, Argentina e Brasil) é destaque neste artigo porque
a prática guarani de fronteira tem relação com a ecologia,
o parentesco e a economia baseada na reciprocidade. No
entanto, de forma cada vez mais clara, verifica-se os mes-
mos problemas enfrentados pelos Guarani, independente do
lado da fronteira em que estejam: fome e violência, decor-
rentes da perda sistemática dos territórios tradicionais e do
total confinamento em espaços insuficientes para a sua vida.
Constata-se que há entre os Guarani e Kaiowá, do Brasil,
um aumento assustador da violência, incluindo elevados
índices de suicídio, desnutrição e outras formas de mani-
festação de violência. Rapidamente, os mesmos problemas
vêm atingindo os Guarani residentes nos outros países do
Mercosul.
Mas não é só violência. Uma característica da mo-
bilidade espacial guarani é o sentido cultural e mítico do
Oguata guarani, em busca de territórios com melhores recur-
sos naturais, a chamada “terra sem males” (Yvy Marane’ÿ),
65
onde os Guarani podem realizar o seu jeito de ser e de viver
(Guarani Reko). Destaca-se, ainda, outro perfil deste movi-
mento, que se caracteriza como forma de solução de con-
flitos, desentendimentos, morte de parentes, doenças. Além
disso, há o sentido político da mobilidade espacial causada
por expulsões, pelo processo de reconhecimento das terras
indígenas, os limites territoriais, esgotamento dos recursos
naturais, construção de rodovias e empreendimentos imo-
biliários. Tradicionalmente, os Guarani se territorializavam
de acordo com vários fatores: a disponibilidade de locais
com recursos naturais considerados apropriados, ou seja,
locais livres de ameaças sobrenaturais; a proximidade de
parentelas aliadas; a habilidade do líder em reunir a paren-
tela e resolver os problemas; e a incidência ou não de doen-
ças ou mortes (PEREIRA, 2007).

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a tradição Kaiowá/Guarani: os difíceis caminhos da pala-
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66
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mobilidade, parentesco e xamanismo Mbya (Guarani). São
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68
TRÁFICO E MIGRAÇÃO DE
INDÍGENAS PARA COLHEITA
DE MAÇÃ NO SUL DO BRASIL
– DESDOBRAMENTOS NO CO-
MÉRCIO INTERNACIONAL

Dolores Pereira Ribeiro Coutinho13


Maucir Pauletti14
Luma Alves Farina15

INTRODUÇÃO
Desde os primórdios dos relacionamentos entre
seres humanos o indivíduo luta para que seu trabalho seja
revestido de dignidade, remunerado de forma compatível
e que seja reconhecido pelos resultados que é capaz de pro-
duzir. Tanto isso é verdade que observamos os mais diver-
sos dispositivos legais, em todas as partes do planeta, que
buscam amparar o trabalhador, não importando sua cor ou
matriz sociocultural. Dispositivos esses conquistados após
muitos anos de lutas e de reivindicações individuais e cole

13 Dolores Pereira Ribeiro Coutinho, Doutora em Ciências Sociais


(PUC/SP), professora da Universidade Católica Dom Bosco no pro-
grama de desenvolvimento local e na graduação do curso de direito
- doloresribeiro@uol.com.br.
14 Maucir Pauletti, professor, especialista, mestre em direito econômi-
co e doutorando em Desenvolvimento Local na Universidade Católica
Dom Bosco. Endereço eletrônico: maucir@ucdb.br
15 Luma Alves Farina, acadêmica do 9º semestre do curso de Direito
da Universidade Católica Dom Bosco. Endereço eletrônico: lumaalves-
farina@hotmail.com

69
tivas com o intuito de sacramentalizar essas conquistas em
favor do humano, do justo e do digno.
A problemática deste artigo que envolve milhares
de trabalhadores indígenas que sem alternativa se deslocam
para o sul do País para colher frutas e verduras, por opção e
recorte dos autores, envolverá, de forma específica, o des-
respeito a essas leis, inclusive a parte que se compreende
como afronta e desrespeito direto ao texto Constitucional
de nosso País, o parâmetro de respeito ao homem-sujeito,
empurrando com isso, muitos cidadãos para condições su-
bumanas, indignas e inaceitáveis no que tange ao trabalho
degradante, ao tráfico de humanos e ao trabalho escravo.
A realidade tem por origem a incessante busca do
lucro máximo pelos empregadores e donos do capital, que
de forma gananciosa justificam suas práticas e usam isso
como expediente de sobrevivência na chamada globaliza-
ção da economia e consequentenecessidade do negócio ge-
rar mais e mais rendimento, submetendo seus empregados
e prestadores de serviços a exaustivas jornadas de trabalho,
não os remunerando de forma condizente, legal e justa pelo
que realizam.
Contudo o trabalho degradante expõe tais trabalhado-
res, muitas vezes, a exaustivas jornadas de trabalho, em quase
todas as empresas contratantes, prejudicando sua saúde, em
ambientes indignos e com segurança precária, com salários
considerados ínfimos, muitas vezes sem assinatura na carteira
de trabalho. Enfim, infelizmente, a realidade é que na vida des-
ses trabalhadores não se fazem presentes vários aspectos que
deveriam tornar sua vida digna, e são diversas as possibilida-
des existentes que tornam degradante o trabalho humano, além
das exemplificadas e que não se abordam neste texto.
70
Nesse contexto, parece ser consenso em quase todo
o planeta, que o tema do trabalho e sua temática atrelada, o
desemprego está a tomar conta da agenda do dia a dia, pois
a existência de há um movimento crescente de desmoro-
namento das conquistas sociais e de constantes perdas dos
direitos fundamentais para uma relação digna de trabalho,
circunstâncias estas que estão a afetar inclusive o continen-
te europeu, tido como o último reduto das garantias sociais
e trabalhistas do mundo, como consequência da nova cara
do neoliberalismo, que simplesmente desmonta a estrutura
protetiva do trabalhador, ou seja, a parte mais frágil dessa
relação de trabalho.
Com isso nos adequamos a uma metodologia de-
dutivo-analítica a uma abordagem mista para contemplar o
significativo contingente de trabalhadores indígenas que no
momento, em que são simplesmente ignorados pelas usinas
de álcool e açúcar que, por décadas serviram e nelas foram
muito explorados, agora, sem alternativas, precisam buscar
outra alternativa para sobreviverem. Neste contexto se faz
a análise do conteúdo da dignidade humana e sua aplicação
às relações de trabalho proporcionadas aos trabalhadores
indígenas. Assim sendo, a partir daí indica-se possíveis so-
luções, com uma rigorosidade maior quanto à aplicabilida-
de das leis do nosso ordenamento e fiscalização do Estado
junto às relações de trabalho.
Por meio de informações bibliográficas, com busca
de dados e referenciais históricos, na legislação, em doutri-
nas e jurisprudências ligadas ao tema, bem como em infor-
mações tiradas de procedimentos administrativos junto ao
Ministério Público do Trabalho e outros órgãos que tratam
diretamente desta temática e que permitem a partir dos ca-

71
sos tratados individualmente, verificar a realidade de todos
os trabalhadores que são submetidos a estas práticas desu-
manas nas relações de trabalho.

TRABALHADORES INDÍGENAS NA COLHEITA DE


FRUTAS NO SUL DO BRASIL
As aldeias indígenas do estado de Mato Grosso do
Sul- MS há muito tempo servem como estoque de mão de
obra barata e desqualificada. Os trabalhadores indígenas
são usados e explorados por força de suas constantes neces-
sidades, fruto de um longo processo de exclusão e de aban-
dono por parte do Estado brasileiro que sempre os ignorou
como etnias diferenciadas e povos originários.
O reflexo de tal política desenvolvimentista nefasta,
levada a termo durante décadas por órgãos específicos que
atuam com a questão indígena e que, entre outras coisas,
produzem um significativo contingente de trabalhadores
braçais em decorrência do fato de não terem tido oportu-
nidade de se prepararem, capacitarem, para as exigências
do mercado de trabalho e, também, por não terem em suas
aldeias disponibilidade de terras para delas tirarem seu sus-
tento.
Nesse contexto, transcorridos quase vinte anos do
século XXI, milhares de trabalhadores que serviram como
mão de obra barata nas usinas de álcool e açúcar do es-
tado desde a década de 80, simplesmente foram descarta-
dos, pois tiveram seus espaços de trabalho substituídos pela
mecanização da colheita e estão tendo que se submeter às
novas e precárias condições de trabalho, ao clima diverso,

72
mais frio e úmido do sul do país para que de lá tirem a sua
subsistência.
Em contato com estes trabalhadores nas aldeias de
origem e nos territórios, espaços de destino, onde execu-
tam o trabalho nos pomares das serras gaúcha e catarinen-
se, identifica-se que respeitadas as diferenças, continua o
processo de exploração, trabalhando muitas horas diárias
devido ao ganho por produção, encarando situações muito
adversas das que estão acostumados, principalmente com
o clima e tendo o ganho mitigado por conta das formas de
pagamento e pela individualização da produção diária.
Nessas contratações, em que há sérios problemas re-
ferentes ao agenciamento de mão de obra pelos prepostos
das empresas, na forma como são deslocados para o sul do
país, pela demora na viagem (percurso de 1400 km), pela
diferença nos hábitos alimentares, pelos alojamentos, pelas
promessas feitas que não são cumpridas e na dificuldade no
recebimento do salário devido, pois a retirada de parte ou
todo o pagamento em espécie incide no risco dos assaltos e
ou problemas pessoais na viagem, e quando adiam o rece-
bimento, deixando para receber quando do retorno para a
origem, o pagamento demora, muitas vezes, não chega no
prazo estabelecido, adicionalmente, se recebem em cheque
precisam pagar deságio para sua compensação ou seja, há
um conjunto de fatores que estão a mitigar direitos básicos,
fundamentais e que ensejam esta reflexão.
Esse cenário adverso está gerando várias compli-
cações para os trabalhadores que na safra 2016/2017 esti-
ma-se em sete a oito mil trabalhadores, segundo dados da
Comissão Permanente de Investigação e fiscalização das
condições de trabalho de MS, pois ao serem enganados por
73
agenciadores, longe de casa e sem terem com quem contar
para apresentarem suas reclamações, ficaram em situação
delicada e geralmente permanecem lá até o final do contra-
to. Não há dados precisos ainda, pois nem todas as empre-
sas que contratam estes trabalhadores firmaram o acordo
junto ao Ministério Público do Trabalho – MPT16, respon-
sável por pactuar que todos os contratados deveriam passar
pelas agências de emprego do estado de MS, vinculadas à
FUNTRAB (fundação de trabalho de MS) e com isso saí-
rem daqui devidamente registrados e minimamente protegi-
dos. No entanto, vários grupos são levados à revelia desse
acordo, gerando denúncias constantes as quais motivaram a
investigação.

DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NO TRABALHO


O presente artigo toma essa realidade como referen-
cial com o intuito de refletir e apresentar dados que auxi-
liem na busca por melhores condições de trabalho e, na me-
dida do possível, contribuir ao entendimento e construção
de alternativas para a erradicação do trabalho análogo ao
escravo, pois toda prática que submete o homem a péssimas
condições de trabalho, reforça tal percepção.
Há muitos anos a Lei Áurea aboliu legalmente a es-
cravatura, mas, infelizmente, em novas configurações, esta
prática ainda é uma realidade a ser enfrentada hoje, inclusi-
ve no MS, pois o lucro ainda é o grande estimulador

16 No final de 2016 na sede do MPT em Campo Grande oito empresas


produtoras de maçã atenderam a convocação feita para acertar os ajus-
tes sobre a safra 2016/17 quanto a contratação da mão de obra indígena
pela FUNTRAB, transporte, formas de pagamento e outros.

74
de tais condutas exploratórias. Com base nisso os critérios
utilizados para verificação da regularidade das condições
de trabalho e analisar o atendimento das condições bási-
cas necessárias que devem ser respeitadas e garantidas pelo
empregador para que o trabalhador em questão reúna os mí-
nimos direitos de homem, de sujeito adquirindo com isso
sua dignidade, pois os direitos constitucionais, trabalhistas,
os estabelecidos em tratados internacionais, subscritos pelo
Brasil, são extensivos a todos os trabalhadores, indistinta-
mente.
“Os direitos humanos são os direitos essenciais a to-
dos os seres humanos, sem que haja discriminação por raça,
cor, gênero, idioma, nacionalidade ou por qualquer outro
motivo” (Portal Brasil, 2016). Assim, os seguintes artigos
da Declaração universal de direitos do homem, bem como
todos os outros, deveriam ser tratados com prioridade para
com todo e qualquer ser humano, como preconizam o Arti-
go 3º “Todas as pessoas têm direito à vida, à liberdade e à
segurança pessoal”, o Artigo 4º “Ninguém pode ser mantido
em escravidão ou em servidão; a escravatura e o comércio
de escravos, sob qualquer forma, são proibidos”, e o Artigo
5º “Ninguém será submetido à tortura nem a punição ou tra-
tamento cruéis, desumanos ou degradantes”, da Declaração
Universal dos Direitos Humanos (1948).
A dignidade do homem é um princípio norteador,
que dá suporte a todos os demais, estando presente em nos-
sa Constituição em seu art. 1º: “A República Federativa do
Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Mu-
nicípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado De-
mocrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III - a
dignidade da pessoa humana” (BRASIL, 1988). Ademais,

75
nessa perspectiva, Sarlet afirma que a dignidade, “como
qualidade intrínseca da pessoa humana, é irrenunciável e
inalienável, constituindo elemento que qualifica o ser hu-
mano como tal e dele não pode ser destacado” (SARLET,
2002, p. 41).
Entretanto, mesmo sendo o Brasil o País que apa-
rece como melhor referência internacional na luta contra
o trabalho forçado, reconhecido pela Organização interna-
cional do Trabalho - OIT em seu relatório “Uma Aliança
Global contra o Trabalho Forçado”, lançado em maio de
2005, por intermédio de milhares de jurisprudências do
nosso ordenamento, observamos, infelizmente, que ainda é
uma realidade em nosso País. Vejamos:
Ementa:  RECURSO DE REVISTA 1 - DANO
MORAL. CONDIÇÕES DEGRADANTES
DE TRABALHO. AUSÊNCIA DE LOCAL
APROPRIADO PARA ALIMENTAÇÃO E DE
INSTALAÇOES SANITÁRIAS ADEQUADAS.
INDENIZAÇÃO. 1 .1. No caso, consta do acór-
dão regional que o autor, durante anos de trabalho,
não contava com pontos de refeição e banheiros
na lavoura em que se ativava. Somente a partir do
ano de 2007 a empresa passou a fornecer estrutura
para alimentação e instalações sanitárias, as quais,
contudo, se revelaram precárias, não atendendo
ao mínimo exigido pelo item 31.23.3.2 da Norma
Regulamentadora 31 do MTE.1.2.Diante do cená-
rio descrito pelo Tribunal de origem, fica evidente
que o trabalho era realizado pelo reclamante em
condições degradantes. Patente, assim, o desres-
peito aos direitos mínimos para o resguardo da
dignidade do obreiro, haja vista a falta de cuidado
com sua integridade e privacidade. 1.3. Desneces-
sário, nesse contexto, a comprovação de ofensa à
imagem e honra do obreiro para se deferir o pleito
indenizatório, pois, em se tratando de pedido de

76
dano moral, a ofensa revela-se in reipsa, ou seja,
deriva da própria natureza do fato. 1.4. Assim,
constatada a presença dos pressupostos identifi-
cadores da responsabilidade civil subjetiva, quais
sejam dano, nexo causal e culpa, impõe-se a con-
denação da reclamada em indenização por danos
morais. Recurso de revista conhecido e provido.

Nessa mesma linha podemos identificar no que se-


gue o reforço, ainda hoje, dado a tal entendimento. Veja-
mos:
Ementa: TRABALHO EM CONDIÇÃO ANÁ-
LOGA Á DE ESCRAVO. Qualquer trabalho que
não reúna as mínimas condições necessárias para
garantir os direitos do trabalhador há que ser consi-
derado trabalho em condição análoga à de escravo.
O contraponto do trabalho escravo moderno está
nas garantias constitucionais da dignidade da pes-
soa humana ( CF , art. 1º , III ), nos valores sociais
do trabalho e da livre iniciativa (inciso IV), na proi-
bição de tratamento desumano ou degradante (art.
5º, III), na função social da propriedade (XXIII),
na ordem econômica fundada na valorização
do trabalho humano e livre (art. 170), na explora-
ção da propriedade rural que favoreça o bem-estar
dos proprietários e dos trabalhadores (art. 186,
IV). RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.
Encontrado em: 2ª Turma 30/05/2014 no DEJT -
30/5/2014 Recorrente: União (Ministério do Tra-
balho e Emprego – MTe).

O Estado e a comunidade, ditos e apresentados como


democráticos, não podem e não devem aceitar como afronta
aos dispositivos legais, algo normal, tais direitos, que deri-
vam de normas cogentes, ou seja, normas que apresentam
imperatividade e devem ser cumpridas integralmente para
evitar uma atuação coercitiva por parte do Estado. Portanto,
como forma de ratificar o posicionamento, deve-se ressaltar
77
a definição e a importância da dignidade humana tal como
posta por Sarlet(2002, 2002, p. 62) ao sustentar que:
A qualidade intrínseca e distintiva de cada ser
humano que o faz merecedor do mesmo res-
peito e consideração por parte do Estado e da
comunidade, implicando, neste sentido, um
complexo de direitos e deveres fundamentais
que assegurem a pessoa tanto contra todo e
qualquer ato de cunho degradante e desuma-
no, como venham a lhe garantir as condições
existenciais mínimas para uma vida saudável,
além de propiciar e promover sua participa-
ção ativa e corresponsável nos destinos da
própria existência e da vida em comunhão
com os demais seres humanos.
Dentro desse contexto, indubitavelmente a noção
de dignidade não deve ser desprezada, pelo contrário, deve
ser sempre engrandecida. Sendo ela embaraçada, estamos
diante de vilipêndio de um Direito Fundamental. Por conse-
guinte, viola-se um direito reconhecido e regulado interna
e externamente, não devendo o infrator permanecer impune
dentro de todas as previsões legais do nosso ordenamento.
(SANTOS FILHO, 2016).
Nessa perspectiva, busca-se colocar o problema na
ordem do dia para que seja conhecido e que sua prática seja
repugnada, arrombando as portas de todo tipo de desrespei-
to aos direitos fundamentais, sagrados e inerentes a cada
trabalhador não importando sua raça, sua cor ou religião.

78
O TRABALHO ANÁLOGO A ESCRAVO, TRABA-
LHO DEGRADANTE E TRABALHO FORÇADO
Mesmo com o longo tempo de abolição da escravatu-
ra e fortemente repudiado por todas as gerações posteriores,
infelizmente, ainda enfrentamos este reprovável tipo de con-
duta de exploração do humano pelo humano em pleno século
XXI. A prática hoje denominada como trabalho escravo con-
temporâneo ou redução a condição análoga à de escravo está
tipificada no tipo legal do Código Penal Brasileiro em seu art.
149, que descreve este crime conforme como:
Redução a condição análoga à de escravo
Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à
de escravo, quer submetendo-o a trabalhos for-
çados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o
a condições degradantes de trabalho, quer res-
tringindo, por qualquer meio, sua locomoção em
razão de dívida contraída com o empregador ou
preposto: (Redação dada pela Lei nº 10.803, de
11.12.2003)
Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além
da pena correspondente à violência.(Redação
dada pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
§ 1o  Nas mesmas penas incorre quem:(Incluído
pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte
por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no
local de trabalho; (Incluído pela Lei nº 10.803, de
11.12.2003)
II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho
ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do
trabalhador, com o fim de retê-lo no local de traba-
lho.        (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)

79
 § 2o  A pena é aumentada de metade, se o cri-
me é cometido:(Incluído pela Lei nº 10.803, de
11.12.2003)
 I – contra criança ou adolescente;(Incluído pela
Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia,
religião ou origem.(Incluído pela Lei nº 10.803,
de 11.12.2003).( BRASIL, CÒDIGO PENAL,
2004, ART. 149).

Apesar da denominação adequada para o fenôme-


no ora estudado, o de ser trabalho em condição análoga à
de escravo, pode-se denominar o fenômeno ora em estudo
de forma mais reduzida, ou seja, trabalho escravo. Embora
ao fazê-lo cometa-se uma redução da expressão mais am-
pla utilizada pela lei (BRITO FILHO, 2004, p. 73),tendo
sempre em mente que o uso da expressão trabalho escra-
vo, se refere “trabalho em condições análogas à de escra-
vo” conforme o que estabelece a legislação. Isso enquanto
não se fizerem as alterações legais como as que estão sen-
do propostas no Congresso Nacional, que visa rever este
entendimento para amenizar o rigor exposto no artigo em
questão (projeto de lei 432/2013) que prevê o aumento
da impunidade e materialização como um retrocesso nos
direitos sociais17 em que os indígenas se encontram por
17 No site http://www.clinicatrabalhoescravo.com da Universidade
Federal de Minas Gerais, acessado em 18 de julho de 2016, encon-
tramos entre outras análises a proposta recomendando a rejeição da
proposta e a reativação de iniciativas como a “Lista Suja” do trabalho
escravo. Pois entre 1996 e 2013, mais de 50 mil trabalhadores explo-
rados em condições análogas à escravidão foram libertados no Brasil,
sendo o primeiro país do mundo a reconhecer a existência de trabalho
escravo e, 1995. No entanto, em 2016, não há sequer um responsável
pelos crimespreso. Nenhum dos poucos condenados cumpriu pena
até o fim o que mostra a importância desta discussão.

80
vários fatores, mas principalmente pelas circunstâncias de
vulnerabilidade a que foram relegados.
Logo, observa-se que trabalho em condições degra-
dantes e o trabalho forçado estão inseridos dentro do tipo
penal do trabalho análogo a de escravo, sendo este gênero
e àquele, espécies. Assim, não só a privação da liberdade
de locomoção é considerada trabalho escravo, como tam-
bém a falta das mínimas condições de dignidade como as
observadas junto aos trabalhadores indígenas, objeto desta
pesquisa e como pode-se observar abaixo no texto do Brito
Filho (2004, p. 73), vejamos:
[...] pode-se dizer que trabalho em condições de-
gradantes é aquele em que há a falta de garantias
mínimas de saúde e segurança, além da ausência
de condições mínimas de trabalho, de moradia,
higiene, respeito e alimentação, tudo devendo ser
garantido (...) em conjunto; ou seja, em contrário,
a falta de um desses elementos impõe o reconhe-
cimento do trabalho em condições degradantes.

Nessa mesma linha a OIT, há muito tempo, vem


discutindo a problemática da relação do trabalho forçado
ou obrigatório, situação que pode ser observada no que
segue exposto do artigo 2°, item 1, da Convenção n° 29
da OIT: “A expressão ‘trabalho forçado ou obrigatório’
designará todo trabalho ou serviço exigido de um indiví-
duo sob ameaça de qualquer penalidade e para o qual ele
não se ofereceu de espontânea vontade.” (OIT,1957, art.
2º).
Feitas as distinções, pode-se dizer que trabalho em
condições análogas à condição de escravo, ou trabalho
escravo é o que provoca direta ou indiretamente a restri-
ção à liberdade do trabalhador e/ou ocorre quando não
81
são respeitados os direitos mínimos previstos nas legis-
lações, que garantem a dignidade humana ao trabalhador.
A SAÚDE DOS TRABALHADORES SUBMETIDOS A
CONDIÇÕES INDIGNAS
O viés da saúde do trabalhador, nesse contexto,
precisa ser posto nesta discussão devido aos efeitos de se
submeter por vários contratos seguidos os trabalhadores in-
dígenas a uma jornada exaustiva e degradante, pois com o
tempo isso afeta a sua integridade física e reduz o tempo de
vida útil deste trabalhador, isso sem levar em conta o tempo
que permanecem longe do convívio de suas famílias.
A Organização Mundial de Saúde (OMS), em 1946,
definiu saúde como “um estado de completo bem-estar fí-
sico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de
doença ou de enfermidade”. Entretanto, esse conceito foi
considerado por muitos ultrapassado, visto que o termo
“completo bem-estar” é passível de diversas interpretações.
Por sua feita, a Organização Internacional do traba-
lho (OIT) editou a Convenção número 155, sobre Segurança
e saúde dos Trabalhadores e o Meio Ambiente de Trabalho,
a qual foi promulgada pelo Brasil por meio de Decreto em
1994. A referida Convenção traz um conceito de saúde mais
objetivo, afastando o termo “completo bem estar” adotado
pela OMS, conforme o Art. 3º alínea “e”: “o termo ‘saú-
de’, com relação ao trabalho, abrange não só a ausência de
afecções ou de doenças, mas também os elementos físicos
e mentais que afetam a saúde e estão diretamente relacio-
nados com a segurança e a higiene no trabalho” (DECRETO
no 1.254, 1994).

82
Como se sabe, o mercado de trabalho representa
grande importância para a economia de um país, portan-
to, a saúde do trabalhador é essencial para produtividade
e o desenvolvimento local. De acordo com a Organização
Mundial da Saúde (OMS):
Cerca de 45% da população mundial e cerca de
58% da população acima de 10 anos de idade
faz parte da força de trabalho. O trabalho desta
população sustenta a base econômica e material
das sociedades que por outro lado são dependen-
tes da sua capacidade de trabalho. Desta forma, a
saúde do trabalhador e a saúde ocupacional são
pré-requisitos cruciais para a produtividade e são
de suma importância para o desenvolvimento so-
cioeconômico e sustentável (OMS, 2011).

Todavia, a realidade do trabalho análogo a escravo


é que com a intensa violação dos direitos humanos, os tra-
balhadores em questão são submetidos a riscos, tanto a sua
saúde, como meio ambiente e a sua vida. Muitos convivem
com uma jornada exaustiva em que o trabalhador é compeli-
do ao esforço excessivo, ou ainda com trabalho forçado, em
que a vítima é isolada geograficamente ou mantida no local
através de fraudes, ameaças e violências físicas e psicológi-
cas. Essas situações merecem total atenção do Estado, pois
com vontade política e comprometimento é possível erradi-
car todos os tipos de trabalho escravo, proporcionando os
cuidados necessários para a saúde e vida dos trabalhadores
em questão, também.
O que se nota é que mesmo com as diversas puni-
ções previstas, como as proibições de créditos rurais, mul-
tas, processos criminais e trabalhistas, riscos de reputação,
inclusão na “lista suja”18 do MTE em que a empresa poderia
18 A lista suja do Ministério do trabalho recém divulgada por força de decisão

83
ser incluída e ter danos à imagem, enfim, a mão de obra ba-
rata atingida com o trabalho escravo ainda é algo vantajoso
e uma possibilidade viável para muitos empresários ganan-
ciosos, que visam o lucro em primeiro lugar, deixando de
lado as necessidades básicas e fundamentais do ser humano
empregado. Isso resta ratificado ao voltarmos os olhos para
a análise sobre as relações de trabalho produzidas por Karl
Marx há mais de 150 anos, mas que são, infelizmente, ainda
atuais e onde sustenta que:
Nós partiremos de um fato econômico contem-
porâneo. O trabalhador torna-se tanto mais pobre
quanto mais riqueza produz, quanto mais a sua
produção aumenta em poder e extensão. O tra-
balhador torna-se uma mercadoria tanto mais ba-
rata, quanto maior número de bens produz. Com
a valorização do mundo das coisas aumenta em
proporção direta a desvalorização do mundo dos
homens (MARX, 2004. p. 159).

Dessa forma, os direitos consagrados na Constitui-


ção Federal ficam muitas vezes somente previstos no papel
como podemos constatar no art. 6º da CF que traz o que
segue: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimen-
tação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a pre-
vidência social, a proteção à maternidade e à infância, a
assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”
(BRASIL, CF. art. 6º).
Assim sendo, em junho de 2014, foi promulgada a
Emenda Constitucional nº 81, mais conhecida como PEC
do trabalho escravo, que é uma importante e, talvez, a mais

judicial inclui hoje 250 empregadores que após terem tido o direito de defesa
não cumpriram com as regras mínimas para a questão e tiveram seu nome inclu-
so e divulgado para todo o país e para conhecimento internacional. Trata-se de
mais um expediente com o intuito de coibir esta prática desumana e inaceitável

84
drástica medida para contribuir com erradicação do traba-
lho escravo e que consiste na previsão da expropriação de
imóveis rurais ou urbanos em que se faça presente a prática
de trabalho escravo, além de constar que  os proprietários
dos imóveis desapropriados, não terão direito à indenização
e ainda estarão sujeitos às punições previstas no Código Pe-
nal. A emenda dá nova redação ao artigo 243 da Constituição
Federal, que passou a prever:
Art. 243 - As propriedades rurais e urbanas de
qualquer região do País onde forem localizadas
culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a ex-
ploração de trabalho escravo na forma da lei serão
expropriadas e destinadas à reforma agrária e a
programas de habitação popular, sem qualquer in-
denização ao proprietário e sem prejuízo de outras
sanções previstas em lei, observado, no que cou-
ber, o disposto no art. 5º.
Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor
econômico apreendido em decorrência do tráfico
ilícito de entorpecentes e drogas afins e da explo-
ração de trabalho escravo será confiscado e rever-
terá a fundo especial com destinação específica,
na forma da lei”(BRASIL, CF. art. 243º).

O que inegavelmente não acontece quando há prática


do trabalho análogo ao de escravo na propriedade, uma vez
que é uma das maiores negações aos direitos do homem. Por-
tanto, quem financia ou permite o trabalho escravo não está
cumprindo a função social de sua propriedade e merece ter
sua propriedade expropriada, além das outras penalidades,
na forma da lei. Nota-se, no entanto, que se faz mister criar
mecanismos objetivos e que punam pecuniariamente os in-
fratores aqui postos para que surtam efeitos e se crie a cons-
ciência de que o trabalhador precisa ter sempre e em todas as
relações laborais os direitos fundamentais garantidos.
85
PROCEDIMENTOS E MEDIDAS PARA A ERRADI-
CAÇÃO DO TRABALHO ANÁLOGO A ESCRAVO
Nesse contexto, restabelecer a dignidade dos tra-
balhadores, tomando como base a ideia de uma agenda do
trabalho decente definida pela OIT – Organização Interna-
cional do Trabalho, respeitando assim a saúde dos trabalha-
dores e a garantia das suas condições fundamentais de tra-
balho é o motivo central dessa atividade. Além de reafirmar
que através da aplicação rigorosa do nosso ordenamento
jurídico e de políticas públicas específicas é possível ba-
nir essas práticas, reintegrando os trabalhadores vitimados
ao ambiente de trabalho digno, respeitando assim suas ne-
cessidades básicas, bem como de suas famílias que sempre
acabam sofrendo junto, pois ficam à espera do retorno do
trabalhador para terem a sua subsistência garantida.
O Brasil ainda é um País que apresenta um alto con-
tingente de trabalhadores em situação de trabalho escravo,
no qual se incluem os indígenas. Um estudo feito sobre a
situação do trabalho escravo contemporâneo no Brasil, fru-
to de um esforço conjunto do Escritório da Organização In-
ternacional do Trabalho e de especialistas no tema, indicam
algumas razões para que isso ocorra:
O sistema que garante a manutenção do traba-
lho escravo no Brasil contemporâneo é ancora-
do em duas vertentes: de um lado, a impunidade
de crimes contra direitos humanos fundamentais
aproveitando-se da vulnerabilidade de milhares
de brasileiros que, para garantir sua sobrevivên-
cia, deixam-se enganar por promessas fraudulen-
tas em busca de um trabalho decente. De outro,
a ganância de empregadores, que exploram essa
mão-de-obra, com a intermediação de “gatos” e
capangas. (OIT, 2007).

86
A erradicação dessa prática depende de um esforço
conjunto de todas as instituições ligadas às atividades labo-
rativas e que envolvam a coibição simultânea a essas cau-
sas, bem como todas as outras possíveis e, constantemen-
te, reinventadas pelos empregadores. Segundo o estudo a
pouco “citado desde 1995, o governo federal e a sociedade
civil combatem o problema, buscando meios de libertar os
trabalhadores da situação de escravidão em que se encon-
tram. De 1995 a 2015, 49.816 pessoas foram libertadas da
escravidão no País” (OIT, 2007).
Já em 2005 foi lançado o Pacto Nacional pela Erra-
dicação do Trabalho Escravo, que reúne cerca de 250 em-
presas brasileiras e multinacionais que assumiram o com-
promisso de não negociar com quem explora o trabalho
escravo, que juntas correspondem a 30% do PIB Nacional,
segundo o Instituto Ethos.
A punição econômica dos infratores, através de ini-
ciativas como o Pacto pela erradicação do trabalho escravo
do Ministério da Justiça ou a divulgação pelo governo fe-
deral das empresas que utilizam de mão de obra escrava, a
chamada “Lista Suja”, tem sido decisiva para que o Brasil
alcance resultados positivos na luta pela eliminação desse
grave problema que macula a sua imagem, principalmente
no exterior. Ademais, além da restrição econômica aos em-
pregadores que cometem este crime, o Pacto prevê, primor-
dialmente, a promoção do trabalho decente, a integração
social dos trabalhadores vitimados e o combate ao alicia-
mento, de acordo com o supramencionado Instituto.
Portanto, com políticas públicas e inserção da so-
ciedade no tema, ajuda dos governos, ministérios públicos,
organizações sindicais e de empregadores, assim como ou-
87
tros parceiros sociais o objetivo de exterminar essa prática
é possível. Dessa forma, se faz necessária a aplicação rigo-
rosa das leis existentes, maiores fiscalizações, o aumento do
conhecimento sobre o tema e conscientização da sociedade,
com elaboração de palestras, disponibilização de materiais
para a sensibilização dos cidadãos para que realizem de-
núncias e ou boicotem a compra de produtos oriundos do
trabalho escravo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em percepções conclusivas cabe dizer frente ao ex-
posto que é inaceitável essa cruel prática da exploração de
pessoas por pessoas que se consideram melhores que outras
e que ainda ocorra nos dias de hoje, principalmente com os
indígenas. Muitas vezes e muitos ainda acreditam que o tra-
balho escravo esteja distante de nosso cotidiano, que é uma
prática que está apenas nos relatos históricos, entretanto,
essa realidade, infelizmente, se faz presente hoje em todos
os estados brasileiros e o que é pior não ocorre somente no
meio rural, por incrível que pareça, acontece também nos
grandes centros urbanos com migrantes vulnerabilizados e
que acabam, por várias razões nas mãos de pessoas inescru-
pulosas que não se importam com isso e que a única coisa
que querem é obter lucros em suas atividades.
Observamos que o trabalho é um meio justo de atin-
gir a dignidade, visto que é um instrumento que permite
o sustento do trabalhador e de suas respectivas famílias,
garantindo com isso a alimentação, saúde, moradia, lazer,
enfim, diversas previsões constitucionais tidas como essen-
ciais ao ser humano e que este se sente bem em poder pro-

88
ver com seu esforço e sua ação laborativa. Posto isso, por
óbvio, a legislação nacional e internacional não permite que
esse também seja um instrumento de grave insulto a essas
prerrogativas em caso de mitigação do valor do trabalho ou
por negligenciamento das condições em que se expõe estes
trabalhadores.
Infelizmente o trabalho escravo é constatado entre
homens, mulheres, crianças, idosos, garimpeiros, prostitu-
tas, indígenas, nordestinos, migrantes, enfim, não há uma
classe de foco específica, basta que humanos sejam colo-
cados em situação de vulnerabilidade para que esta nefasta
prática apareça. Essas pessoas possuem direito da devida
reinserção no mercado de trabalho e que se garanta todas as
previsões de direitos trabalhistas, visto ser o Estado a mão
forte para soerguer e proteger estas vítimas do infortúnio.
Por fim, como alternativa deveriam ser criados no-
vos mecanismos que rompam com este ciclo de impunidade
dos infratores, aplicando-lhes todas as sanções previstas e
supra expostas como forma de punição e prevenção, para
que essa cruel prática seja extinta do cenário brasileiro e
que o estado, via políticas próprias, crie estruturas capa-
zes de dar vazão e efetividade nas penalidades contra os
transgressores quando estes trabalhadores forem resgatados
da condição análoga a escravidão, possibilitando-lhes con-
dições de saírem deste quadro de vulnerabilidade que os
torna presas fáceis para os inescrupulosos sujeitos que não
se importam com o humano e que sempre optam para situa-
ções que gerem lucros e mais lucros, ignorando a dimensão
humana.
Erradicar o trabalho escravo hoje passa, necessaria-
mente, pelo cumprimento das leis existentes, porém, isso
89
não tem sido suficiente para acabar com esse flagelo social,
pois mesmo com aplicações de multas pesadas, corte de
crédito rural aos infratores ou apreensões de mercadorias,
maquinários e outros por utilizarem-se do trabalho escravo,
pouco ou nada resolve, pois, pasmem, mas ainda assim é
um bom negócio para muitos fazendeiros, produtores e em-
presários porque esta prática barateia os custos com a mão
de obra. Quando flagrados, os infratores pagam os direitos
trabalhistas que haviam sonegado aos trabalhadores e nada
mais acontece, infelizmente.

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SANTOS FILHO, Luiz A. Dignidade humana no trabalho:
observações acerca da interpretação desse princípio na pro-
teção das relações trabalhistas. Disponível em: http://www.
ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&ar-
tigo_id=11510 acesso em: dia 28 jun. 2016.

93
94
OCUPAÇÃO COLONIAL E FOR-
MAS DE MOBILIDADE ENTRE
OS GUARANI E KAIOWÁ NA
FRONTEIRA BRASIL-PARA-
GUAI: A CAMINHO DO TEKOHA
EM BUSCA DO TEKO PORÃ NA
REGIÃO MERIDIONAL DA AMÉ-
RICA DO LATINA

Levi Marques Pereira (UFGD)19


INTRODUÇÃO
O presente artigo discute o modo como o estabele-
cimento das fronteiras nacionais entre o Brasil e o Paraguai
impactou comunidades Kaiowá e Guarani que vivem na re-
gião cindida por fronteiras nacionais. Nesse início vamos
tratar do contexto histórico de mobilidade entre as comuni-
dades na fronteira Brasil-Paraguai. Tomo como referência
estudos de identificação de terras e perícias judiciais reali-
zadas nas comunidades de Ñande Ru Marangatu, município
de Antônio João (EREMITES DE OLIVEIRA; PEREIRA,
2009) e Arroio Korá, no município de Paranhos (PEREI-
RA, 2002). Os dois municípios fazem fronteira com o Pa-
raguai e, no lado paraguaio, também existem comunidades
do mesmo grupo étnico, próximas umas das outras. His-
toricamente, sempre existiu importante fluxo de relações
19 Doutor em Antropologia Social (USP), Professor/orientador do cur-
so de Mestrado em Antropologia Sociocultural (PPGAnt/UFGD) e do
Mestrado em História da Universidade Federal da Grande Dourados/
UFGD.

95
matrimoniais, festivas e rituais entre essas comunidades si-
tuadas nos dois lados da fronteira. O texto discute como a
intensiva ocupação das terras e a presença cada vez maior
dos aparelhos de Estado interferem nas relações entre as
comunidades, remodelando as relações intercomunitárias,
que a despeito das dificuldades impostas pelas legislações
específicas em cada país, mantém basicamente a mesma
moldura sociocultural anterior ao estabelecimento dos Es-
tados nacionais.
Os povos de língua e cultura guarani estão em con-
tato com frentes de expansão colonial desde o início do sé-
culo XVI. Como os Guarani ocupavam, desde período pré-
colonial, um amplo território, que hoje compõe parte dos
Estados nacionais do Brasil, Paraguai, Argentina e Bolívia,
as comunidades localizadas em localidades distintas foram
gradativamente atingidas por essa expansão. Algumas fo-
ram atingidas logo no início da colonização, mas existem
casos de comunidades no Paraguai oriental, fronteira com
o MS, cujos territórios só foram expropriados na penúltima
década do século XX, embora mantivessem contatos inter-
mitentes com a sociedade nacional. Comunidades kaiowá
e guarani do sul do estado de Mato Grosso do Sul (MS),
Brasil, mantiveram relativa autonomia até início do sécu-
lo XIX, quando passam a ser sistematicamente impactadas
por diferentes ondas de colonização agropastoril.
Entre as décadas de 1960-80 os Kaiowá e Guarani
do lado brasileiro perdem os últimos refúgios nos fundos de
fazendas, encerrando o ciclo de autonomia territorial. Pro-
cesso correlato também atingiu as comunidades kaiowá e
guarani do outro lado da fronteira, no Paraguai, só que em
período um pouco mais recente. Ou seja, de modo geral a

96
conclusão da expropriação aconteceu primeiro do lado bra-
sileiro e, cerca de duas décadas depois, no país vizinho. A
reflexão aqui proposta está centrada na região de fronteira
entre o estado de Mato Grosso do Sul - Brasil e o departa-
mento de Amambai – Paraguai e busca entender como o
fato da expropriação territorial dos Kaiowá e Guarani nos
dois países interfere no fluxo de mobilidade entre as comu-
nidades situadas nos dois lados da fronteira.
Do lado brasileiro, o auge do processo de expropria-
ção territorial na região fronteiriça aconteceu entre as déca-
das de 1960 e 1980. Do lado paraguaio, a expropriação das
terras das comunidades aconteceu de modo mais intenso
a partir da década de 1970. Como parte das famílias que
compunham comunidades no lado brasileiro dispunham de
parentes nas comunidades kaiowá e guarani do lado para-
guaio, e com elas mantinham intenso intercâmbio matrimo-
nial, político, festivo e ritual, a partir do momento em que
foram expulsas de suas terras por particulares que adquiri-
ram e titularam terras ocupadas por indígenas, iniciou-se
um processo de busca de refúgio junto aos parentes no país
vizinho. Nas décadas de 1960 até a 1980, grande parte das
comunidades no Paraguai vivia em condições ecológicas
bastante favoráveis, embora na maioria das vezes não dis-
pusessem de terras regularizadas como terras comunitárias
indígenas. Nessa condição, as comunidades do lado para-
guaio puderam recepcionar muitos parentes que viviam do
lado brasileiro, reconfigurando suas comunidades.
Entretanto, nas décadas seguintes a situação co-
meçou a mudar também do lado paraguaio. Chegaram os
particulares que adquiriram terras e começaram a retirar a
madeira e a formar pastagens e lavouras, restringindo os

97
espaços utilizados pelas comunidades indígenas. Muitos
desses novos proprietários eram de origem brasileira, al-
guns com experiência em atos de expropriação de terras
indígenas do lado brasileiro e com o domínio de técnicas
para expulsão violenta de comunidades indígenas de seus
territórios. Com o estabelecimento das propriedades de par-
ticulares, a derrubada da mata e a implantação de lavou-
ras e pastagens, a terra e demais recursos utilizados pelos
Kaiowá e Guarani começou a escassear.
O encurtamento das terras disponíveis aos Kaiowá e
Guarani no lado paraguaio e a dilapidação dos recursos do
ambiente, coincidem com o processo de redemocratização
da sociedade brasileira e com o início do reconhecimento
dos direitos dos índios aos seus territórios. Por volta do fi-
nal da década de 1990, no lado brasileiro, as comunidades
começam a se organizar para reivindicarem a demarcação
de seus territórios de ocupação tradicional, com base nos
direitos assegurados na Constituição brasileira promulgada
em 1988, que assegura tais direitos aos indígenas.
A partir da década de 1990 as famílias que perma-
neceram no Brasil, se refugiando nas pequenas reservas de-
marcadas pelo governo brasileiro para serem ocupadas por
comunidades indígenas ou em fazendas assumindo a condi-
ção de trabalhadores rurais, começam a se reorganizar para
reaverem seus antigos territórios. A notícia da rearticulação
das comunidades no lado brasileiro chega aos parentes que
estavam vivendo do lado paraguaio, que iniciam um pro-
cesso de retorno ao Brasil, somando-se às suas antigas co-
munidades. Essa mobilidade é apresentada no relatório téc-
nico de identificação e delimitação da terra indígena Arroio
Corá, no município de Paranhos -Brasil, cerca de 15 quilô-

98
metros da Fronteira com Ype Hum – Paraguai (PEREIRA,
2002). A proposta aqui é demonstrar como a mobilidade
se dá a partir do leque de vínculos parentais entre comu-
nidades sociológica e historicamente relacionadas. Procuro
também demonstrar como as alterações na paisagem, nos
ambientes ecológicos e as possibilidades de dispor de ter-
ras, interferem nos processos de mobilidade dos Guarani na
região de fronteira Brasil/Paraguai.

A PRESENÇA GUARANI NA REGIÃO DO VALE DO


IGUATEMI E A RELAÇÃO COM AS FRENTES PIO-
NEIRAS DE COLONIZAÇÃO
Os antepassados dos atuais moradores da comuni-
dade de Arroio Korá tiveram seu primeiro contato prolon-
gado com não índios por ocasião da instalação do Forte do
Iguatemi que fica a cerca de 10 quilômetros de distância. O
Forte foi criado através da carta régia de 22/03/1767. Situa-
do às margens do Iguatemi, pretendia expandir o território
português para o oeste e assegurar o controle da fronteira
com o território espanhol. Nas correspondências e nos re-
gistros sobre o Forte é possível encontrar referências sobre
a presença dos Guarani que aí já estavam instalados (SAN-
TOS, 2002).
Brand (1993, p. 20) cita o “Diário de navegação do
Rio Tietê, Rio Grande Paraná e Rio Iguatemi que principia
em 13.03.1769, do Sargento-Mor Theotônio José Juzarte
apud Taunay (1951: 280)” no qual se afirma que: “é esta
campanha abundante de gentio Cauan”, uma grafia aproxi-
mada dos atuais Kaiowá, e que “não tem os homens liber-
dade de saírem ao campo sem que vão com camaradas, por-

99
que do contrário correm risco suas vidas”, numa referência
clara à resistência dos Kaiowá à ocupação do seu território
pelos soldados do Forte. Como demonstraremos adiante, o
Forte terá vida curta, em poucos anos será abandonado e a
região voltará ao controle do Kaiowá.
É assim que a região do rio Iguatemi volta a ser
território praticamente povoado só por Guarani até 1850,
como aparece no Relatório do Diretor Geral de Índios,
da província de Mato Grosso, datado de 1848: “pouco
conhecimento temos desta Nação que habita as immediações
do Rio Iguatemy; consta com tudo que he bastante
mumerosa de indole pacífica, dada a vida sedentária e
agrícola, dotada de constância, qualidade raríssima entre os
Indígenas” (apud MONTEIRO, 1981:11). Estas passagens
deixam claras várias características importantes do modo
de ser guarani e do tipo de relação que até então mantinham
com a sociedade colonial: a) enfatiza o desconhecimento
que ainda se tem sobre ela; b) especifica com clareza que
o vale do rio Iguatemi é local de habitação tradicional dos
Guarani; c) fala de sua população numerosa e de sua ín-
dole pacífica; d) trata-se de uma população de agricultores
sedentários e não de uma população nômade. Essas carac-
terísticas são plenamente compatíveis com as observadas
na população guarani que ocupa parte da terra que reivin-
dicam em Arroio Korá. A disposição positiva em relação
aos Guarani explicita a intensão de ocupação da região e
de incorporação da população guarani como trabalhadores
nos empreendimentos econômicos que posteriormente se
estabelecerão, primeiro a extração da erva mate e, depois, a
implantação de fazendas de agropecuária.

100
Já Barbosa (1927: CXLIV), funcionário do Serviço
de Proteção aos Índios – SPI, que trabalhou na região e foi
inclusive responsável pelos estudos preliminares de demar-
cação da reserva de Pirajuí, afirma que:
Escolhi, também, na região de Ipehum, outra
área de terras destinada aos índios, que em nú-
mero superior a quinhentos, vivem nas margens
dos rios Pirajuy, Taquapery, Aguará e outros.
Esses índios estão em serviço de herva de Mar-
cellino Lima e não têm aldêa propriamente dita.
Formam pequenos núcleos, espalhados, que reu-
nidos em uma só propriedade formarão um nú-
mero elevado talvez a mais de mil, se reunidos
forem todos.

Aqui aparecem elementos importantes sobre a


presença indígena no território do rio Iguatemi. Men-
ciona que estavam distribuídos em pequenos núcleos
espalhados, esses núcleos são na verdade as parentelas
e os tekoha. Informa que o número de índios nas proxi-
midades de Ipehum (o lado brasileiro da cidade é hoje
chamado de Paranhos e fica a cerca de 20 quilômetros
de Arroio-Korá) e que se eles forem reunidos em uma só
propriedade, seriam mais de mil. Deixa claro também
que o intuito do SPI não é assegurar aos índios as ter-
ras onde suas comunidades estavam radicadas, mas sim
reuni-los em uma reserva sob a direção do órgão indi-
genista oficial. O relatório também menciona a grande
quantidade de terras devolutas que existiam na região,
para se ter uma ideia, os limites propostos para a reserva
de Pirajuí, confrontam por um lado com a fronteira com
o Paraguai e por outro com terras de matas devolutas.
Caso fizesse parte dos propósitos do SPI, seria relativa-

101
mente20 fácil propor a demarcação de terras para os diversos
núcleos de povoação indígena na região.

Apoiado nas fontes escritas e no relato das circuns-


tâncias históricas vividas pelos Guarani de Arroio-Korá, é
possível dizer que ocupação da região começa com a ins-
talação do Forte de Iguatemi, que é quando os Guarani ini-
ciam o contato intenso e prolongado com representantes
da sociedade colonial, sendo que naquele momento não
existia fronteiras nacionais, mas sim, disputas territoriais
entre os impérios ibéricos, português e espanhol. Antes do
Forte, existiam apenas contatos esporádicos, geralmente de
caráter bélico, com exploradores e bandeirantes, sem que
chegassem a implicar na perda do controle do território per-
manente por parte da etnia. Com certeza a penetração de
bandeiras, missionários, militares e exploradores era espo-
rádica e, passado o alvoroço, os Guarani se recompunham
no território.
O período do Forte vai de 1767, data de sua funda-
ção, até 1777, quando é destruído e abandonado. Constitui o
primeiro empreendimento colonial de peso na região, cujo
território era até então apenas cruzado por expedições ex-
ploratórias esporádicas. A curta duração do Forte se deveu a
oposição dos administradores luso/brasileiros sediados em
São Paulo, que se convenceram de sua ineficiência

20 Digo relativamente porque se nesse período a Cia Mate Larangeira


já não gozava do direito de posse exclusiva do território, pois já ha-
via caído a exclusividade nos arrendamentos, as terras já começavam a
despertar o interesse imobiliário. Por outro lado, é possível supor que
caso o SPI tentasse demarcar as terras ocupadas pelos índios, sofreria
a oposição dos regionais, que embora pouco numerosos, com certeza
considerariam tal atitude um despropósito ou um impeditivo para a ex-
pansão agropecuária na região.

102
para formar um núcleo sólido de povoação da fron-
teira. Influenciou também os altos custos de sua manuten-
ção, já que era distante e difícil de ser alcançado e, ao con-
trário das expectativas iniciais, a região não dispunha de
potencial para a exploração de minérios. Resulta assim que
o Forte é abandonado, e a região volta a ser um canto esque-
cido na colônia, povoado só por índios. Depois do abando-
no do Forte, segundo Gressler e Swensson (1988, p. 20), a
região sul de Mato Grosso “permanecia quase despovoada’’
[...] “apesar do surto colonizador do ciclo do gado” que ha-
via se iniciado já na década de 1830, pois este ficara cir-
cunscrito a pequenas regiões, distantes do Forte. O mesmo
fato é confirmado por Campestrini e Guimarães (1991, p.
92), que afirmam que até 1870 os Guarani mantinham total
domínio sobre seu território: “as terras ao longo do Ivinhe-
ma, do Brilhante, do Dourados, do Pardo..(eram) ...vistas
apenas como território de índios”.
Assim, após o abandono do Forte, os Guarani vol-
tam a gozar de livre trânsito e a deter o controle de prati-
camente todo o seu território tradicional, sendo que a pre-
sença de não índios na região volta a ser rarefeita. Poucos
aventureiros se dispunham a entrar nessas terras até então
consideradas como sertão ermo e “terra de índio”. Embora
esses contatos pudessem eventualmente fornecer a opor-
tunidade de aquisição de bens industrializados como fer-
ramentas metálicas que os Guarani já conhecem de longa
data, podiam ser facilmente evitados, caso julgassem pre-
judicados a sua autonomia. Na memória dos velhos, esse
tempo se funde ao tempo dos antepassados reais e míticos,
tempo do ‘ser pleno Guarani’, quando não havia mistura de
costumes, “era só Guarani puro”, afirmam. Esse tempo é
lembrado e imaginado como um tipo edílico, uma espécie

103
de jardim do Éden, para usar a imagem bíblica, tempo de
completa solidariedade entre os membros da comunidade,
de fartura de alimentos, de saúde, de festas e do domínio
dos xamãs poderosos, que curavam e protegiam a comuni-
dade. É o tempo da autonomia dos Guarani sobre sua for-
ma de vida, podendo decidir livremente sobre as regras que
regulavam o funcionamento de sua sociedade. Em guarani
denominam esse período de “yma guare”, entendido como
tempo antigo e verdadeiro.
Afirmam que no tempo do yma guare existia um flu-
xo de visitas e alianças entre parentelas que no século XX
serão forçadas a se reconhecerem como radicadas em paí-
ses distintos, a partir do estabelecimento das fronteiras na-
cionais. Tal fluxo continua até os dias de hoje, embora sem-
pre dificultado pelas legislações específicas dos dois países:
Paraguai e Brasil. Os próprios agentes públicos que atuam
na região dos dois lados da fronteira reconhecem esse fluxo,
muitas vezes sendo conivente com o trânsito de indígenas
sem o atendimento das formalidades legais, como o porte
de documentos e autorizações. De certo modo são conside-
rados como “gente da terra”, sobre os quais o controle do
Estado é tênue e pouco efetivo.
A expulsão da terra alterou profundamente as formas
de relação que a população de Arroio-Korá estabelecia com
outras aldeias. Até a década de 1960 desenvolviam inten-
so intercâmbio matrimonial e ritual com as populações de
Canta Galo (Karaja Yvy), Sete Cerros, Samakuã, Taquaral,
Yvykuarusu e Pirajuí, e no Paraguai, se relacionavam prin-
cipalmente com a Colonia21 Cuminidad. Com a dispersão
21 No Paraguai Colônia é o equivalente ao termo Reserva no Brasil, ou seja,
se refere às terras destinadas aos índios, legalmente reconhecidas pelo Estado,
no processo imposto de territorialização da população indígena em pequenas

104
da população, as famílias passaram a compor novas alian-
ças com a população das localidades onde se instalaram,
entrando em outras redes de trocas matrimoniais, arranjos
políticos e religiosos. Novos fatores históricos alteraram as-
sim a constituição dessas redes de apoio mútuo e a própria
composição das parentelas. Entretanto, seguiram mantendo
as antigas alianças, que foram e são reativadas sempre que
as condições se tornam propícias. São relações de alianças
matrimoniais, políticas, festivas e rituais de longa duração
e com grande profundidade histórica e, portanto, sempre
efetivadas.
O processo de cisão de comunidades pelo estabe-
lecimento de fronteiras nacionais também ocorreu com as
comunidades de Ñande Ru Marangatu (município de Antô-
nio João - Brasil) e Pysyry (Departamento de Amambay –
Paraguai). Historicamente, são comunidades intensamente
relacionadas, situadas nas duas margens do córrego Estrela,
um curso d’água de pouca profundidade. Acontece que com
o término da Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai
(1964-1970), o referido córrego foi tomado como fronteira
nacional entre Brasil e Paraguai. Tios, primos, irmãos, etc,
vizinhos de poucos metros, se viram de repente transfor-
mados em “estrangeiros”. O transtorno dura até os dias de
hoje, como as autoridades dos dois países tentando impor
sanções e dificuldades para a visitação entre parentes. Tal
fenómeno está bem demonstrado no relatório circunstan-
ciado de identificação e delimitação da terra indígena Ñan-
de Ru Marangatu (THOMAZ DE ALMEIDA, 2002) e no
relatório pericial (EREMITES DE OLIVEIRA; PEREIRA,
2009).

parcelas das terras que tradicionalmente ocupavam.

105
Vale registrar que os Guarani se transformaram em
indígenas transfronteiriços à revelia de seus interesses.
Foram os Estados nacionais que cindiram seus territórios,
impondo separações a histórias compartilhadas e redes de
alianças. Nesse sentido, constitui enorme desafios construir
políticas, acordos e procedimentos que permitam aos Gua-
rani seguirem se visitando, casando, festejando e pratican-
do rituais nos dois lados da fronteira. E devem fazê-lo sem
constrangimento de agentes públicos, como lhes assegura a
legislação internacional, como a Convenção n° 169 da OIT
sobre Povos Indígenas e Tribais, da qual tanto Brasil como
o Paraguai são signatários.

REFERÊNCIAS
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em Mato Grosso do Sul 1883-1947. Campo Grande: Inst.
Euvaldo Lodi, p.195-310 (Série Histórica. Coletânea).
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tradição kaiowá/guarani: os difícies caminhos da palavra.
Porto Alegre.Tese (doutorado em História) - PUC/RS.
BRAND, Antonio. 1993. O confinamento e seu impacto
sobre Pãi/Kaiowa. Dissertação de Mestrado em História.
Porto Alegre, PUCRS.
CAMPESTRINI, Hildebrando, GUIMARÃES, Acyr V.
1991. História de Mato Grosso do Sul. Campo Grande/Bra-
sília.
EREMITES DE OLIVEIRA, Jorge; PEREIRA, Levi Mar-
ques. 2009. Ñande Ru Marangatu: laudo antropológico e

106
histórico sobre uma terra kaiowá na fronteira do Brasil
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do Sul. Dourados: Editora da UFGD.
GRESSLER, Lori A., e SWENSSON, Lauro J. 1988. As-
pectos Históricos do Povoamento e da Colonização do Es-
tado de Mato Grosso do Sul. Dourados: Dag.
MELIÁ, B., GRÜNBERG, G., GRÜNBERG, F. 1976. Et-
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Tavyterã. Suplemento Antropológico. Assunción: Centro de
Estudos Antropológicos de La Univerdad Católica.
MONTEIRO, Maria Elisabeth B. 1981. Levantamento His-
tórico do Grupo Indígena Kayoá. Realizado por determina-
ção do Diretor do Departamento Geral do Patrimônio Indí-
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PEREIRA, Levi M. 2004. Imagens Kaiowá do Sistema So-
cial e seu Entorno. Tese de doutorado em Antropologia (et-
nologia). Universidade de São Paulo – USP.
PEREIRA, Levi M. 2002 b. Relatório de identificação da
Terra Indígena Arroio Kora. Município de Paranhos, Mato
Grosso do Sul, Documentação Funai, mimeo, Brasília.
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cumentação Funai, mimeo, Brasília, 1984.
THOMAZ DE ALMEIDA, Rubem F. 2002b. Relatório cir-
cunstanciado de identificação e delimitação da Terra Indí-
gena Ñande Ru Marangatu. Mimeo. Brasília

107
108
PARTE 2
MIGRAÇÕES, FRONTEIRAS
E DIREITOS HUMANOS

109
110
O DIREITO HUMANO DE MI-
GRAR E A NOVA POLÍTICA MI-
GRATÓRIA BRASILEIRA

Ana Paula Martins Amaral22


Andréa Flores23
João Paulo Calves24

INTRODUÇÃO
A evolução da espécie humana está umbilicalmente
ligada aos deslocamentos migratórios dos primeiros ani-
mais humanos que habitaram a terra. Logo, faz parte do
instinto humano o deslocamento de um lugar para outro.
Quando esse deslocamento se dá de um Estado soberano
para outro, tem-se o fenômeno do fluxo migratório inter-
nacional.

22 Professora Associada no Curso de Direito e Professora Permanente


no Programa de Mestrado em Direito da Universidade Federal do Mato
Grosso do Sul (FADIR). Pós Doutora em Direito pela Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestre e Doutora em Direito pela
PUC/SP. E-mail: anapaulamartinsa@yahoo.com.br
23 Doutora e Mestra em Direito pela Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo (PUC/SP). Professora do Curso de Direito da Universi-
dade Católica Dom Bosco (UCDB), e professora concursada da Uni-
versidade Federal do Mato Grosso do Sul/Brasil. E-mail: andreaflores.
adv@gmail.com
24 Mestrando pelo Programa de pós-graduação em Direito da Univer-
sidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), área de Concentração
em Direitos Humanos. E-mail calves.joao@hotmail.com

111
Ocorre que, com o passar dos anos os Estados fe-
charam as suas fronteiras, por meio de políticas migratórias
pautadas na segurança nacional, evitando a imigração de
pessoas em seus territórios. Nesse processo de fechamento
das fronteiras e enrijecimento de políticas anti-imigração,
inúmeras violações de direitos humanos são praticadas con-
tra esse grupo de pessoas vulneráveis. Todavia, com base
nas normas internacionais, é possível afirmar que uma pes-
soa tem o direito de migrar e firmar moradia em qualquer
país do mundo? Há um dever do Estado soberano de não
retirar esse migrante de seu território?
São justamente esses questionamentos que condu-
zem o desenvolvimento do presente trabalho, que com base
nas normas internacionais de direitos humanos buscará,
sem a pretensão de esgotar o tema, responder às aludidas
perguntas. Para tanto, o trabalho foi dividido em três capí-
tulos.
No primeiro, serão delineados os conceitos de mi-
grações voluntárias, analisando, nessa espécie de migração
humana, se há ou não um direito amplo e irrestrito de mi-
grar à luz da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
O segundo capítulo tem por escopo analisar o conceito de
deslocados forçados, com base nas normas internacionais,
bem como identificar a responsabilidade internacional dos
Estados soberanos com os refugiados. Por fim, com base
nos standards internacionais, será contextualizado o atual
fluxo migratório brasileiro, bem como se a nova de lei de
migração do País está alinhada com agenda internacional
de proteção dos direitos humanos dos migrantes.

112
UMA ANÁLISE CONCEITUAL DOS DESLOCA-
MENTOS HUMANOS VOLUNTÁRIOS
A história da evolução da humanidade está umbi-
licalmente ligada ao deslocamento de homens e mulheres
pelo globo terrestre. Segundo Harari (2016, p. 13-14, grifos
no original):
Os humanos surgiram na África Oriental há cer-
ca de 2,5 milhões de anos, a partir de um gênero
anterior de primatas chamados de Australopithe-
cus, que significa “macaco do sul”. Por volta de
2 milhões de anos atrás, alguns desses homens e
mulheres arcaicos deixaram sua terra natal para se
aventurar e se assentar em vastas áreas da África
do Norte, da Europa e da Ásia. Como a sobrevi-
vência nas florestas nevadas do norte da Europa
requeria características diferentes das necessárias
à sobrevivência nas florestas úmidas da Indonésia,
as populações evoluíram em direções diferentes.
[...] Após o deslocamento da primeira espécie de
humanos da África para outras regiões do mundo,
os humanos foram se desenvolvendo e evoluindo
ao longo dos séculos: “Os humanos na Europa e
na Ásia Ocidental deram origem ao Homo nean-
derthalensis (“homem do vale do Neander”), po-
pularmente conhecido ‘neandertais’. Os neander-
tais, mais robustos e mais musculosos do que nós,
sapiens, estavam bem adaptados ao clima frio da
Eurásia ocidental da era do gelo. As regiões mais
ocidentais da Ásia foram povoadas pelo Homo
Erectus, “Homem Ereto”, que sobreviveu na re-
gião por quase 1,5 milhões de anos, sendo a espé-
cie humana de maior duração.

No contexto histórico do Renascimento, da revo-


lução comercial e das colonizações, entre os séculos XIV
e fim do XVI, o pensador espanhol Francisco de Vitória,
113
considerado um dos fundadores da moderna concepção de
direito internacional, defendeu a ideia de que todos os seres
humanos tinham o direito natural de migrar, consubstancia-
do no amplo e irrestrito direito de liberdade de movimento.
Logo, segundo essa concepção, todas as pessoas são livres
para se deslocar no globo terrestre, explorando territórios
e mares, podendo, inclusive, assentar-se onde quisessem e
praticar o comércio de forma livre (QUINTEIROS, 2016).
A liberdade migratória foi utilizada para legitimar
as grandes navegações realizadas pelos europeus, principal-
mente espanhóis e portugueses, que tinham por objetivo ex-
plorar as riquezas e colonizar os povos nativos da América.
Contudo, salienta Quinteiro (2016), os pensadores da época
não vislumbraram que um dia os povos americanos também
se deslocariam para o continente europeu, utilizando o mes-
mo discurso.
Com o passar do tempo, a liberdade migratória do
ser humano foi cada vez mais controlada pela organização
da sociedade civilizada, mas foi com a emergência dos Es-
tados-nações, a partir do final do século XVIII, que o di-
reito natural de migrar foi drasticamente reduzido (SILVA,
2011). Desde então, a vigilância nas fronteiras e o enrije-
cimento de políticas migratórias, pautadas na noção de se-
gurança nacional, tem criado barreiras visando restringir o
direito do homem de se deslocar pelo mundo. Todavia, não
há como negar que o desejo de sair de um lugar para se ins-
talar em outro faz parte do próprio instinto humano.
A crise migratória experimentada pela humanidade
durante as guerras do século XX, principalmente durante
a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), em que milhares
de pessoas foram obrigadas a abandonar seus países para
114
salvar suas vidas da carnificina dos bombardeios aéreos e
terrestres provocados pelos Estados beligerantes, levou a
comunidade internacional a positivar, na Declaração Uni-
versal de Direitos Humanos (1948), o direito de migrar. In
verbis: “Artigo 13 1. Toda a pessoa tem o direito de livre-
mente circular e escolher a sua residência no interior de um
Estado. 2. Toda a pessoa tem o direito de abandonar o país
em que se encontra, incluindo o seu, e o direito de regressar
ao seu país”.
Extrai-se da norma internacional que o ser humano
tem o direito de imigrar e emigrar, tanto no âmbito inter-
nacional25como no território do próprio Estado. De acordo
com a Organização Internacional para as Migrações – OIM,
por migração compreende-se:
Processo de atravessamento de uma fronteira inter-
nacional ou de um Estado. É um movimento popu-
lacional que compreende qualquer deslocação de
pessoas, independentemente da extensão, da com-
posição ou das causas; inclui a migração de refu-
giados, pessoas deslocadas, pessoas desenraizadas
e migrantes econômicos. (OIM, 2009, p. 40).

São espécies do gênero os conceitos de imigração


e emigração. Por imigração entende-se o “processo através
do qual estrangeiros se deslocam para um país, a fim de aí
se estabelecerem” (OIM, 2009, p. 33). Já a expressão emi-
gração significa:
25 Segundo a Organização Internacional para as Migrações – OIM
(2009, p. 42), entende-se por migração internacional o “Movimentos de
pessoas que deixam os seus países de origem ou de residência habitual
para se fixarem, permanente ou temporariamente, noutro país. Conse-
quentemente, implica a transposição de fronteiras internacionais”. Já a
migração interna ocorre entre os Estados ou municípios que compõe a
estrutura federal ou unitária de um Estado-nação”.

115
Abandono ou saída de um Estado com a finali-
dade de se instalar noutro. As normas internacio-
nais sobre direitos humanos preveem que toda a
pessoa deve poder abandonar livremente qualquer
país, nomeadamente o seu próprio, e que, apenas
em circunstâncias muito limitadas, podem os Es-
tados impor restrições ao direito de um indivíduo
abandonar o seu território. (OIM, 2009, p.22).

Ao sair do seu país de origem para ingressar no ter-


ritório de outro Estado soberano, a pessoa passa a ser con-
siderada estrangeira, isto é, aquela que não é nacional do
Estado onde se encontra. Logo, considera-se nacional,
Pessoa que, através do nascimento ou da naturaliza-
ção, é membro de uma comunidade política, deven-
do fidelidade a essa comunidade, gozando de toda
a proteção e de todos os direitos civis e políticos;
membro de um Estado que tem direito a todos os
seus privilégios. Pessoa que goza da nacionalidade
de um determinado Estado. (OIM, 2009, p. 47).

Na era da chamada globalização, as causas e as con-


sequências dos deslocamentos humanos vêm sendo ampla-
mente discutidas26 e analisadas em razão dos impactos dos
fluxos migratórios27dos últimos anos. O debate ocorre em
uma arena multidisciplinar, tendo em vista que o estudo dos
deslocamentos de seres humanos engloba análises de as-
pectos jurídicos, políticos, sociais e culturais.
26 Há uma evidente polarização no debate do fenômeno migratório.
De um lado, há os que refutam a abertura das fronteiras em nome da
segurança nacional. Do outro, os que erguem a bandeira do direito
de migrar e do tratamento humanitário que deve ser dispensado ao
estrangeiro.
27 Compreende-se por fluxos migratórios a “contagem do núme-
ro de migrantes que se deslocam ou têm autorização para se deslocar
para (ou de) um país a fim de ter acesso a um emprego ou fixar-se du-
rante um determinado período de tempo” (OIM, 2009, p. 29).

116
De acordo com dados levantados pela ONU, esti-
ma-se que atualmente há, aproximadamente, 214 milhões
de migrantes internacionais. Segundo Milesi e Lacerda
(2008), as causas da migração são distintas, podendo se en-
quadrar em dois grandes grupos: (i) migração forçada e (ii)
migração voluntária.
Segundo Jubilut (2010, p. 281) as migrações volun-
tárias “abrangem todos os casos em que a decisão de migrar
é tomada livremente pelo indivíduo, por razões de conve-
niência pessoal e sem a intervenção de um fator externo”.
Enquadram-se nesse grupo pessoas que deixam seu país de
origem para buscar, em outro Estado, melhores condições
de vida, bem como aqueles que se movem para outros paí-
ses para estudo ou turismo. Essas pessoas podem ter, no
território de destino, o status de migrante regular, quando
autorizadas pelo governo local para entrar e permanecer
em seu território28, ou indocumentados, isto é, que não pos-
suem autorização para entrada e permanência no país29 (JU-
BILUT, 2010).
No âmbito das migrações voluntárias, é mister des-
tacar que o Artigo 13 da Declaração Universal dos Direi-
tos Humanos, reconhece, como direito amplo e irrestrito, a
migração interna, isto é, quando uma pessoa migra, dentro
do território do seu país, inclusive para construir residência
permanente. A migração internacional, entretanto, é direito
restrito, cujas restrições são impostas pelas políticas migra-

28 A regra para concessão de visto para entrada e permanência fica a


critério da política migratória de cada país, como forma de expressão
da soberania nacional.
29 O estrangeiro que entra ou permanece no país sem autorização pode-
rá, em regra, ser deportado ou expulso do território por meio de ações
das autoridades públicas.

117
tórias de cada Estado-soberano. Assim, o direito de migrar
entre os países é reconhecido pela Declaração de 1948, des-
de que autorizado pelo governo do Estado.

OS DESLOCAMENTOS FORÇADOS E A PROTE-


ÇÃO DOS REFUGIADOS NO ÂMBITO DOS DIREI-
TOS HUMANOS
As migrações forçadas se caracterizam quando o
elemento volitivo do deslocamento é inexistente ou mini-
mizado. Nesta classificação de fluxo migratório, Jubilut
(2010) esclarece que há diversas situações que levam uma
pessoa a migrar, sendo o refugiado a principal categoria de
migrante forçado, definido, nos termos do Artigo 1º, (2) da
Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951)30
como aquele que, “Temendo ser perseguido por motivos de
raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões po-
líticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade e que
não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da
proteção desse país.”

30 Para Moreira (2014, p. 87), “A construção da definição jurídica e


política de refugiado remonta ao contexto da Europa do pós-guerra.
A partir da Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951,
cunhou-se o termo refugiado como aquele que possui fundado temor
de perseguição por razões de raça, religião, nacionalidade, filiação em
certo grupo social ou opiniões políticas. O direito de o indivíduo per-
seguido em seu país de origem buscar asilo - ao transpor fronteiras,
deslocar-se para outro país e solicitar-lhe proteção -, todavia, distingue-
se do direito ao asilo, ou seja, à concessão desta proteção pelo país de
destino. Tal concessão constitui uma decisão soberana, relacionada ao
controle sobre território e população, bem como sobre acesso e per-
manência de estrangeiros. Dessa forma, como já afirmado, não só os
refugiados, como também o instituto do refúgio, estão ancorados na
lógica e dinâmica estatal”.

118
No caso da América Latina, a definição ganha mais
um elemento, qual seja, considera-se, para fins de conces-
são de refúgio, a pessoa que emigra do seu país de origem
por grave e generalizada violação de direitos humanos. A
necessidade de expansão da definição de refugiados, no
continente latino-americano, advém da experiência de con-
flitos que ocorreram na América Central, especificamente
na Nicarágua, El Salvador e Guatemala, quando mais de
dois milhões pessoas fugiram de seus países. Desse mon-
tante, Almeida e Michola (2015) salientam que apenas 150
mil se enquadraram na definição inserida na Convenção
Relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951).
Por esta razão, os países da América Central per-
ceberam a necessidade de produzir um documento que re-
fletisse a realidade local. Destarte, um grupo de juristas e
representantes de dez governos resolveu celebrar um co-
lóquio, cujo tema foi Proteção Internacional dos Refugia-
dos na América Central, México e Panamá: Problemas
Jurídicos e Humanitários. O diálogo celebrado entre os
participantes do evento, realizado entre os dias 19 e 22 de
novembro de 1984, na cidade de Cartagena das Índias, na
Colômbia, teve como fruto a elaboração de um documento
não mandatório, isto é, sem o efeito vinculante ine-
rente aos tratados internacionais, denominado Declaração
de Cartagena, na qual ficou estabelecido entre as partes:
Terceira - Reiterar que, face à experiência adqui-
rida pela afluência em massa de refugiados na
América Central, se toma necessário encarar a ex-
tensão do conceito de refugiado tendo em conta,
no que é pertinente, e de acordo com as caracte-
rísticas da situação existente na região, o previsto
na Convenção da OEA (artigo 1, parágrafo 2) e a

119
doutrina utilizada nos relatórios da Comissão In-
teramericana dos Direitos Humanos. Deste modo,
a definição ou o conceito de refugiado recomen-
dável para sua utilização na região é o que, além
de conter os elementos da Convenção de 1951 e
do Protocolo de 1967, considere também como
refugiados as pessoas que tenham fugido dos seus
países porque a sua vida, segurança ou liberdade
tenham sido ameaçadas pela violência generaliza-
da, a agressão estrangeira, os conflitos internos,
a violação maciça dos direito humanos ou outras
circunstâncias que tenham perturbado gravemen-
te a ordem pública (ACNUR, 1984, grifo nosso)

A proteção de pessoas refugiadas não é uma preo-


cupação exclusiva dos blocos continentais, pelo contrário,
foi no âmbito das Nações Unidas que se desenvolveu um
importante mecanismo de preservação dos direitos dos re-
fugiados, com base no próprio texto da DUDH. In verbis:
Artigo 14
1.Toda a pessoa sujeita à perseguição tem o di-
reito de procurar e de se beneficiar de asilo em
outros países.
2.Este direito não pode, porém, ser invocado no
caso de processo realmente existente por crime
de direito comum ou por atividades contrárias
aos fins e aos princípios das Nações Unidas (NA-
ÇÕES UNIDAS, 1948).

Com o intuito de mitigar os efeitos deletérios das


violações de direitos dos refugiados, as Nações Unidas de-
senvolveram o Estatuto Internacional do Refugiado, por
meio da Convenção de Genebra de 1951, e o seu Proto-
colo Facultativo de 1967. Tratam-se de dois instrumentos
normativos, com efeito vinculante que, além de definir a
categoria dos refugiados, estabelecem um extenso rol de

120
direitos e deveres que devem ser observados pelos Estados
signatários.
Um Estado-soberano tem o direito de impedir um
migrante voluntário de entrar em seu território, todavia, não
poderá negar asilo31 a uma pessoa que lhe solicite esse di-
reito. Ademais, não poderá deportar o refugiado enquanto
não cessar a causa motriz do refúgio, em homenagem ao
princípio do non refoulement:
Princípio previsto na Convenção de Genebra Re-
lativa ao Estatuto dos Refugiados, de 1951, de
acordo com o qual “Nenhum dos Estados Contra-
tantes expulsará ou repelirá (“refouler”) um refu-
giado, seja de que maneira for, para as fronteiras
dos territórios onde a sua vida ou a sua liberdade
sejam ameaçadas em virtude da sua raça, religião,
nacionalidade, filiação em certo grupo social ou
opiniões políticas.” Este princípio não poderá ser
“invocado por um refugiado que haja razões sé-
rias para considerar perigoso para a segurança do
país onde se encontra, ou que, tendo sido objecto

31 Nos termos do Glossário da OIM (2009, p. 9) há duas espécies de


asilo que pode ser concedido a um refugiado: 1) Asilo diplomático, defi-
nido como “abrigo que um Estado pode conceder para além dos limites
do seu território, em locais onde é concedida imunidade jurisdicional, a
indivíduos que requeiram protecção face à autoridade que os persegue
ou que reivindica a sua presença. O asilo diplomático pode ser conce-
dido em missões diplomáticas e nas residências particulares dos chefes
de missões, em navios de guerra ou aviões, mas não em instalações
de organizações internacionais, nem em consulados. O indivíduo não
tem qualquer direito de obter asilo diplomático, nem há a obrigação da
parte dos Estados em concedê-lo”; 2) Asilo territorial, consubstanciado
na “proteção estadual concedida a um estrangeiro, no próprio território
desse Estado, contra o exercício da jurisdição pelo Estado de origem,
com fundamento no princípio do non-refoulement, que conduz ao gozo
de determinados direitos internacionalmente reconhecido”.

121
de uma condenação definitiva por um crime ou
delito particularmente grave, constitua ameaça
para a comunidade do dito país”. (Art. 33.º, nºs 1
e 2 da Convenção de Genebra Relativa ao Estatu-
to dos Refugiados, de 1951). (OIM, 2009, p. 49).

Cançado Trindade, Peytrignet e Santigo (2004) afir-


mam que o princípio da não devolução (non refoulement)
do refugiado integra o rol de normas jus cogens do direito
internacional, sendo considerado a “coluna vertebral” do
sistema de proteção aos refugiados, não admitindo, portan-
to, norma em contrário.
A proteção dos direitos dos refugiados está pautada
no princípio da cooperação internacional entre os Estados e
a ONU32. No âmbito das Nações Unidas foi constituído um
órgão denominado Alto Comissariado das Nações Unidas
para Refugiados – ACNUR – com a incumbência de fiscali-
zar a aplicação e promover o direito dos refugiados em face
dos Estados.

32 Nesse sentido é o teor do artigo 2º da Protocolo Facultativo de 1967:


“1. Los Estados Partes en el presente Protocolo se obligan a cooperar en
el ejercicio de sus funciones con la oficina del Alto Comisionado de las
Naciones Unidas para los Refugiados, o cualquier otro organismo de las
Naciones Unidas que le sucediere; en especial le ayudarán en su tarea
de vigilar la aplicación de las disposiciones del presente Protocolo. 2.
A fin de permitir a la Oficina del Alto Comisionado, o cualquier otro
organismo de las Naciones Unidas que le sucediere, presentar informes
a los órganos competentes de las Naciones Unidas, los Estados Partes
en el presente Protocolo se obligan a suministrarle en forma adecuada
lasinformaciones y los datos estadísticos que soliciten acerca de: a) La
condición de los refugiados; b) La ejecución del presente Protocolo; c)
Las leyes, reglamentos y decretos, que estén o entraren en vigor, con-
cernientes a los refugiados”.

122
Nos Estados soberanos há o chamado Comitê Na-
cional para Refugiados – CONARE, que tem por objeti-
vo apreciar os pedidos de refúgios. Com efeito, é uníssono
o entendimento da doutrina internacionalista moderna no
sentido de que, desde o advento da Declaração Universal de
1948 e do Estatuto do Refugiado, há um sistema específico
do direito internacional dos direitos humanos vocacionado
com a promoção dos direitos das pessoas refugiadas, visto
que a vulnerabilidade e o sofrimento daqueles que não que-
rem sair de seus países de origem são mais acentuados que
aqueles do migrante voluntário (CANÇADO TRINDADE;
PEYTRIGNET; SANTIAGO, 2004).
Vale ressaltar, ainda, que a doutrina internacionalista
clássica, com base nas raízes históricas, compartimentaliza
a proteção internacional da pessoa humana em três grandes
vertentes autônomas – direito humano, direito humanitário
e direito dos refugiados. Todavia, essa concepção encon-
tra-se ultrapassada, já que a doutrina moderna concebe um
único direito internacional dos direitos humanos, com sis-
temas de proteção específicos complementares e inter-re-
lacionados (CANÇADO TRINDADE, PEYTRIGNET E
SANTIAGO, 2004).
De acordo com estudo feito pela ACNUR (2016),
denominado Global Trends – Forced Displacement in 2016,
os números colhidos reforçam a necessidade de uma prote-
ção específica para os refugiados no sistema internacional
e denunciam a maior crise humanitária do século XXI. No
final de 2016, havia aproximadamente de 65,6 milhões de
pessoas forçadas a deixar seus países de origem por dife-
rentes motivos. Dentre esses, 22,5 milhões se encaixam nas
definições de refugiados previstos nos instrumentos inter-

123
nacionais, o maior número da história, sendo que apenas
2,8 milhões solicitaram refúgio em algum país. Atualmente,
17,2 milhões de refugiados estão sob a responsabilidade da
ACNUR.
A cifra revela que uma a cada 113 pessoas em todo
o mundo foi forçada, de alguma maneira, a deixar seu país
de origem. Esse número revela que a quantidade de pessoas
deslocadas representa uma “população” maior que a do
Reino Unido, 21º país mais populoso do mundo (ACNUR,
2016). De acordo com os cálculos,
Do total contabilizado ao final de 2016 (65,6 mi-
lhões), 10,3 milhões representam pessoas que fo-
ram forçadas a se deslocar pela primeira vez. Cer-
ca de dois terços deste contingente (6,9 milhões)
se deslocaram dentro de seus próprios países. Isso
equivale a 1 pessoa se tornando deslocada interna
a cada 3 segundos – menos tempo do que se leva
para ler essa frase. (ACNUR, 2016, p.5).

O Estado que mais possui refugiados continua sen-


do a Síria, com 5,5 milhões. Um novo país começa a apre-
sentar cifras preocupantes, o Sudão do Sul, onde a ACNUR
(2016) já contabiliza 1,4 milhões de refugiados e mais 1,87
milhão de deslocados internos33.Além do Sudão do Sul, o
número de deslocados internos são alarmantes, cerca de
40,8 milhões de pessoas, a maioria na Síria e Iraque, com
um expressivo número na Colômbia (ACNUR, 2016).
O que é imensurável nessa crise migratória é o sofri-
mento, a humilhação e as perdas que essas pessoas sofrem

33 Entende-se, por deslocado interno, a pessoa que é forçada a sair do


seu local de assentamento (origem), porém, não sai do território nacio-
nal, isto é, não ultrapassa suas fronteiras. (OIM, 2009).

124
para conseguir o almejado asilo. Cançado Trindade (2008,
p. 57-58) retrata o sofrimento dos refugiados:
Migrações e deslocamentos forçados, com a con-
sequente retirada das pessoas de seus lugares de
origem, causam fortes traumas. Testemunhas de
migrações relatam o sofrimento do abandono do
lar, às vezes com a separação da família ou desa-
gregação, a perda da propriedade e de pertences
pessoais, a arbitrariedade e a humilhação por par-
te das autoridades de fronteiras e de agentes de
segurança, gerando um sentimento permanente de
injustiça. [...] Eles sempre permanecem lembran-
do seu lugar de origem, cultivando suas memórias
como meio de defender-se da adversa condição
de deslocados. No entanto, a “celebração da me-
mória” possui suas limitações, pois os deslocados
estão privados de horizonte e do senso de perten-
cer a algum lugar. Sempre precisam da ajuda de
outros. O drama dessas vítimas parece ser esque-
cido e negligenciado com o passar do tempo, e os
deslocados terminam por ter de aprender a viver
com a lenta e inevitável diminuição de, até mes-
mo, suas próprias memórias.

O maior desafio enfrentado, atualmente, no campo


da proteção dos migrantes reside na limitada definição do
termo, tendo em vista que o Estatuto Internacional dos Re-
fugiados (1951) restringe as causas ensejadoras da conces-
são do refúgio. Soma-se, ainda, o fechamento das fronteiras
e o endurecimento das políticas migratórias dos Estados,
com base nos argumentos do nacionalismo, da defesa na-
cional e, principalmente, pelo temor causado pelos terroris-
tas. Com isso, inúmeras pessoas morrem durante o percurso
aos países destinados, e quando chegam são impedidas de
entrar, ficando em acampamentos próximos das fronteiras

125
em situação de extrema miséria. Os que conseguem entrar
sofrem discriminação por xenofobia34.
Neste contexto, encontram-se os denominados “re-
fugiados ambientais”, pessoas forçadas a sair de seus países
de origem em razão de catástrofes ambientais, como ter-
remotos e tsunamis. Incluem-se, também, os deslocados
forçados em razão de desigualdades sociais, econômicas e
culturais que, sem perspectiva de vida no território ondem
nasceram, tentam buscar melhores condições de vida em
países considerados potências econômicas. Nestes casos,
não há concessão de asilo, todavia, o Estado que recebe
qualquer espécie de migrante deve promover a proteção,
sem discriminação, de todos os direitos inerentes à pessoa
humana.

Outros deslocados forçados que não se encaixam no


conceito de refugiado à luz das normas de direitos huma-
nos, são os migrantes que deixam seus países de origem
em razão crises econômicas que levam a situação de mi-
séria extrema. Ao sair do seu país de origem, o migrante
deixa para trás seus familiares, sua cultura e seus hábitos
para enfrentar uma nova cultura, em um local onde, em re-
gra, desconhece as leis e a língua, tornando-se vulneráveis
a violações de direitos humanos.

34 Segundo glossário da OIM (2009, p. 80), “No plano internacional


não existe uma definição universalmente aceita de xenofobia, muito
embora possa ser descrita como atitude, preconceito ou comportamen-
to que rejeita, exclui e, frequentemente, diminui pessoas com base na
percepção de que são estranhas ou estrangeiras relativamente à comuni-
dade, à sociedade ou à identidade nacional. Existe uma relação estreita
entre racismo e xenofobia, termos que são difíceis de distinguir”.

126
A POLÍTICA MIGRATÓRIA BRASILEIRA: UMA
BREVE ANÁLISE DA LEI 13.445 DE 24 DE MAIO DE
2017
A política migratória brasileira sofreu uma impor-
tante e progressiva alteração no ano de 2017, com a pro-
mulgação da Lei 13.44535, no dia 24 de maio, instituindo a
Lei de Migração. O Artigo 1º da novel legislação brasileira
define as espécies de migração que serão tuteladas pela nor-
ma:
II - imigrante: pessoa nacional de outro país ou
apátrida que trabalha ou reside e se estabelece
temporária ou definitivamente no Brasil; 
III - emigrante: brasileiro que se estabelece tem-
porária ou definitivamente no exterior; 
IV - residente fronteiriço: pessoa nacional de país
limítrofe ou apátrida que conserva a sua residên-
cia habitual em município fronteiriço de país vi-
zinho; 
V - visitante: pessoa nacional de outro país ou
apátrida que vem ao Brasil para estadas de curta
duração, sem pretensão de se estabelecer tempo-
rária ou definitivamente no território nacional; 
VI - apátrida: pessoa que não seja considerada
como nacional por nenhum Estado, segundo a
sua legislação, nos termos da Convenção sobre o
Estatuto dos Apátridas, de 1954, promulgada pelo
Decreto nº 4.246, de 22 de maio de 2002, ou assim
reconhecida pelo Estado brasileiro.

35 A lei é composta por 125 artigos aprovados a partir do projeto


de lei proposto pelo senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP).

127
Distintamente da política migratória anterior36, que
tratava o fenômeno migratório como questão de segurança
nacional, a nova política brasileira está pautada num ex-
tenso rol de princípios e diretrizes alinhados com o direito
internacional dos direitos humanos, entre os quais, desta-
cam-se:
Artigo 3º.A política migratória brasileira rege-se
pelos seguintes princípios e diretrizes: I-
universalidade, indivisibilidade e interdependên-
cia dos direitos humanos; 
II - repúdio e prevenção à xenofobia, ao racismo e
a quaisquer formas de discriminação;
III - não criminalização da migração;
IV - não discriminação em razão dos critérios ou
dos procedimentos pelos quais a pessoa foi admi-
tida em território nacional;
V - promoção de entrada regular e de regulariza-
ção documental; 
VI - acolhida humanitária;
VII - desenvolvimento econômico, turístico, so-
cial, cultural, esportivo, científico e tecnológico
do Brasil;
VIII - garantia do direito à reunião familiar; 

36 Antes de maio de 2017, a política migratória brasileira estava disci-


plinada na Lei 6.815, de 1980, aprovada no período da ditadura militar
e tinha como pano de fundo a chamada “Operação Condor” iniciada
pelo ditador chileno Augusto Pinochet. Esta consistia em um apoio mi-
litar entres os países da América do Sul, e tinha como objetivo precípuo
a perseguição e captura de opositores aos regimes autoritários. Destarte,
a principal característica da antiga política brasileira para as migrações
era justamente facilitar a expulsão de estrangeiros considerados inimi-
gos do regime (SPRANDEL, 2015).

128
IX - igualdade de tratamento e de oportunidade ao
migrante e a seus familiares; [...].

A humanização da política migratória37 brasileira


atendeu ao clamor que a sociedade civil, a academia e di-
versos partidos políticos haviam encampado contra a legis-
lação de 1980. Segundo Ramos (2017, 1-2),
[...] a nova lei é fruto da constatação de que negar
direitos, gerar entraves burocráticos na regulari-
zação migratória, atuar com arbítrio e sem coerên-
cia, são condutas que não reduzem o deslocamen-
to de pessoas, mas apenas degradam as condições
de vida do migrante, bem como prejudicam em-
presas, trabalhadores e a sociedade em geral. A
lei avança ao prever uma série de princípios e
diretrizes que conformam a atuação dos órgãos
públicos à luz da gramática dos direitos humanos.
Ao migrante é garantida, em condição de igualda-
de com os nacionais, a inviolabilidade do direito
à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, assegurando-lhe também os direitos
e liberdades civis, sociais, culturais e econômicos
(artigo 4º, caput e inciso I).

Destaca-se na lei a hipótese de concessão de visto


temporário para acolhida humanitária, previsto no Artigo
14, inciso I, alínea c38 e §3º da Lei 11.345/17, que tem

37 Ramos (2017, 1) destaca dois benefícios decorrentes da humaniza-


ção das migrações: “Na era da intensa mobilidade humana internacio-
nal, surgem (i) oportunidades para o Brasil se beneficiar da diversidade
e do multiculturalismo, bem como (ii) deveres de proteção para impedir
a construção jurídica de vulnerabilidades e a superexploração de mi-
grantes, em prejuízo à toda a sociedade”.
38 “Art. 14. O visto temporário poderá ser concedido ao imigrante
que venha ao Brasil com o intuito de estabelecer residência por tempo
determinado e que se enquadre em pelo menos uma das seguintes hipó-
teses: c) acolhida humanitária”.

129
por função precípua suprir a lacuna existente na definição
de refugiado para concessão de asilo no País, pois será
concedido:
[...] ao apátrida ou ao nacional de qualquer país
em situação de grave ou iminente instabilidade
institucional, de conflito armado, de calamidade
de grande proporção, de desastre ambiental ou de
grave violação de direitos humanos ou de direito
internacional humanitário, ou em outras hipóte-
ses, na forma de regulamento (BRASIL, 2017).

Outro ponto salutar da nova legislação é a isenção


do pagamento de taxas e emolumentos para concessão de
vistos concedida os imigrantes sem condições econômicas
de arcar com os custos cobrados pelo consulado ou embai-
xada brasileira, nos termos do Artigo 113, §3º39. Além do
mais, cinco espécies de vistos podem ser concedidas aos
imigrantes:(I) de visita; (II) temporário; (III) diplomático;
(IV) oficial; (V) de cortesia.
No que tange à acolhida humanitária, além da con-
cessão de visto temporário para esse fim, o legislador dis-
39 “Art. 113. As taxas e emolumentos consulares são fixados em con-
formidade com a tabela anexa a esta Lei.
§ 1º – Os valores das taxas e emolumentos consulares poderão ser
ajustados pelo órgão competente da administração pública federal, de
forma a preservar o interesse nacional ou a assegurar a reciprocidade
de tratamento.
§ 2º – Não serão cobrados emolumentos consulares pela concessão de:
I - vistos diplomáticos, oficiais e de cortesia; e
II - vistos em passaportes diplomáticos, oficiais ou de serviço, ou equi-
valentes, mediante reciprocidade de tratamento a titulares de documen-
to de viagem similar brasileiro.
§ 3º – Não serão cobrados taxas e emolumentos consulares pela
concessão de vistos ou para a obtenção de documentos para regularização
migratória aos integrantes de grupos vulneráveis e indivíduos em
condição de hipossuficiência econômica.

130
ciplina, no Artigo 30, inciso I, alínea c, a chamada autori-
zação de residência em razão da acolhida humanitária. A
lei assegura, ainda, nos termos do 3º, inciso XI, que todo o
migrante regular40 no Brasil terá acesso igualitário e livre
a serviços, programas e benefícios sociais, bens públicos,
educação, assistência jurídica integral pública, trabalho,
moradia, serviço bancário e seguridade social.
O texto normativo insere um novo crime no Código
Penal, a “Promoção de Migração Ilegal”, tipificado no Arti-
go 232-A, como infração penal:
[...] Promover, por qualquer meio, com o fim de
obter vantagem econômica, a entrada ilegal de es-
trangeiro em território nacional ou de brasileiro
em país estrangeiro:
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e
multa.
§ 1º– Na mesma pena incorre quem promover,
por qualquer meio, com o fim de obter vantagem
econômica, a saída de estrangeiro do território

40 De acordo com a OIM (2009, p. 42) considera-se migrante irregular


o “Movimento que ocorre fora do âmbito das normas reguladoras dos
países de envio, de trânsito e de acolhimento. Não existe uma definição
clara ou universalmente aceite de migração irregular. Da perspectiva
dos países de destino a entrada, a permanência e o trabalho num país é
ilegal, sempre que o migrante não tenha a necessária autorização ou os
documentos exigidos pelos regulamentos de imigração relativos à en-
trada, permanência ou trabalho de um dado país. Da perspectiva do país
de envio a irregularidade é vista em casos em que, por exemplo, uma
pessoa atravessa a fronteira internacional sem um passaporte válido ou
documentos de viagem ou não preenche os requisitos administrativos
para deixar o país. Há, porém, a tendência de usar o termo “migração
ilegal” nos casos de contrabando de migrantes e de tráfico de pessoas”.
O migrante irregular será deportado do Brasil por meio de medida ad-
ministrativa compulsória nos termos do Artigo 50 da Lei nº 13.344/17.

131
nacional para ingressar ilegalmente em país
estrangeiro.
§ 2º– A pena é aumentada de 1/6 (um sexto) a 1/3
(um terço) se:
I - o crime é cometido com violência; ou
II - a vítima é submetida a condição desumana ou
degradante.
§ 3º– A pena prevista para o crime será aplicada
sem prejuízo das correspondentes às infrações
conexas.

Considerada por muitos uma lei que coloca o Bra-


sil na vanguarda da proteção do migrante, na contramão da
tendência mundial, a nova lei de migração representa um
avanço41 para o país em matéria de proteção dos direitos
humanos, postura que proporcionará benefícios para toda a
sociedade brasileira, que tem por objetivo, conforme Artigo
3º da Constituição Federal, construir uma sociedade livre,
justa e solidária. Nesse sentido, Ramos (2017, p. 3) destaca:
Com esse novo marco jurídico, o Brasil dá importan-
te passo para tratar as migrações como verdadeiros
ganhos (materiais e imateriais) para nossa sociedade,
até hoje escondidos pelo discurso xenófobo. O pas-
sado, o presente e o futuro do Brasil estão relaciona-
dos com as migrações: nada mais justo e favorável
aos interesses nacionais que tratar o migrante com
dignidade, estimulando-o a contribuir, tal qual ocor-
reu ao longo de nossa história, ao desenvolvimento
de uma sociedade plural, desenvolvida e justa.

41 Em que pese os avanços proporcionados pela Lei, os vetos proferi-


dos pelo presidente da república provocaram um sentimento de frusta-
ções nos defensores de uma política migratória ampla e humanitária,
mormente no que concerne ao veto relacionado com o direito à livre
circulação de povos indígenas em terras tradicionais (RAMOS, 2017).

132
Segundo pesquisa realizada pelo Polícia Federal
(2015), o Brasil abriga aproximadamente 1,9 milhões de
imigrantes em situação regular. Desde 2013, mais de 400
mil estrangeiros migraram para o Brasil. Entre as nacionali-
dades que vieram ao País em busca de melhores condições
de vida, no período, estão Haiti (15,51%), Bolívia (7,67%)
e Colômbia (5,93%).
A extensa faixa de fronteira seca e a inexpressiva
fiscalização desses limites são fatores que facilitam a entra-
da de estrangeiros no Brasil, muitos em situação migratória
irregular. Logo, o número apresentado pela estatística da
Polícia Federal tende a aumentar, caso seja possível conta-
bilizar os estrangeiros indocumentados.
Além da concessão de vistos com política imigratória, o
Brasil desenvolve também um importante mecanismo de con-
cessão de refúgios para deslocados forçados, tendo ratificado e
incorporado, no ordenamento jurídico interno, a Convenção so-
bre Refugiados (1951), por meio da Lei 9.474, de 22 de julho de
1997, que define mecanismos para a implementação do Estatuto
dos Refugiados de 1951, e determina outras providências.
No que tange à definição do termo, o governo bra-
sileiro incorporou a definição do Estatuto do Refugiado
(1951) e expansão das causas, nos termos da Declaração de
Cartagena (1984), passando a admitir como refugiado, nos
termos do Artigo 1º da Lei 9.474/97:
[...] todo indivíduo que:
I - devido a fundados temores de perseguição por
motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo
social ou opiniões políticas encontre-se fora de
seu país de nacionalidade e não possa ou não
queira acolher-se à proteção de tal país;

133
II - não tendo nacionalidade e estando fora do país
onde antes teve sua residência habitual, não possa
ou não queira regressar a ele, em função das cir-
cunstâncias descritas no inciso anterior;
III - devido à grave e generalizada violação de di-
reitos humanos, é obrigado a deixar seu país de
nacionalidade para buscar refúgio em outro país.

Ingressando no território brasileiro, ainda que de


forma irregular, o imigrante poderá solicitar refúgio para
a autoridade fronteiriça, que tem o dever de orientar e en-
caminhar o solicitante às autoridades competentes. O pro-
cedimento de recebimento da solicitação e autorização de
residência provisória será conduzido pela Polícia Federal.
A deliberação definitiva acerca da concessão ou não do re-
fúgio será realizada pelo Comitê Nacional para Refugiados
– CONARE, composto por: I - um representante do Minis-
tério da Justiça, que o presidirá; II - um representante do
Ministério das Relações Exteriores; III - um representante
do Ministério do Trabalho; IV - um representante do Mi-
nistério da Saúde; V - um representante do Ministério da
Educação e do Desporto; VI - um representante do Depar-
tamento de Polícia Federal; VII - um representante de orga-
nização não-governamental que se dedique a atividades de
assistência e proteção a refugiados no país.
Os membros do CONARE serão designados para o
cargo pelo Presidente da República, mediante a indicação
dos órgãos e entidades que compõe o Comitê. O ACNUR
será sempre convidado para participar das reuniões do Co-
mitê, tendo o seu representante direito a voz, sem direito de
voto. Durante a apreciação do pedido, o refugiado e seus
familiares poderão ter acesso aos serviços públicos ofere-
cidos pelo governo brasileiro, bem como possibilidade de

134
trabalho com carteira assinada, fazendo jus aos direitos tra-
balhistas.
De acordo com trabalho publicado pela Secretária
Nacional de Justiça (2017), denominado “Refúgio em Nú-
meros”, o Brasil já concedeu 9.552 refúgios a imigrantes
forçados de 82 nacionalidades. Os dados apontam que,
desde o início do conflito na Síria, 3.772 sírios solicitaram
refúgio em território brasileiro. A crise na Venezuela au-
mentou as solicitações de refúgio no primeiro semestre de
2017, são mais de 3.800 solicitações feitas por nacionais
daquele país. É importante destacar que, em razão dos de-
sastres ambientais no Haiti, inúmeros haitianos vieram para
Brasil, todavia, estes não são considerados refugiados, pois
não se encaixam no conceito previsto no Artigo 1º da Lei
9.474/97.
O estudo produzido pela Secretária Nacional de Justiça
(BRASIL, 2017), entre 2014 e 2016, aponta que “43.871 Hai-
tianos tiveram sua situação migratória regularizada por meio de
Despacho Conjunto do CONARE, do CNIg e do Departamento
de Migrações, tendo suas solicitações de refúgio sido arquivadas”.
Extrai-se, ainda, do trabalho Refugiado em Núme-
ros (BRASIL, 2017) que o Brasil, no ano de 2016, deferiu
942 solicitações de refúgio sendo: 326 nacionais da Síria,
189 nacionais da República do Congo; 98 nacionais do Pa-
quistão; 57 nacionais da Palestina; 26 nacionais da Ango-
la; 19 nacionais da Republica de Guiné; 18 nacionais do
Iraque; 17 nacionais do Afeganistão; 17 nacionais de Ca-
marões; 16 nacionais de Nigéria; 14 nacionais da Colôm-
bia; 14 nacionais de Gana; 14 nacionais da Venezuela, 12
nacionais de Togo; 10 nacionais do Líbano e 95 de outras
nacionalidades.
135
Destarte, o Brasil possui um fluxo migratório cons-
tante de imigrantes e refugiados, excluindo turistas e imi-
grantes irregulares, especialmente dos países fronteiriços.
O problema se instala quando estes imigrantes chegam ao
País sem condições para trabalhar ou sem inserir-se no mer-
cado de trabalho, constituindo, assim, um problema social.
Nesse sentido, segundo Milesi (2008, p. 35):
Grande parte destes dois segmentos (imigrantes e
refugiados) participa do mercado de trabalho, in-
tegrando a população economicamente ativa. Há,
no entanto, aqueles que chegam em idade avan-
çada ou com a saúde comprometida, não possuin-
do condições para o provimento de sua própria
subsistência. Neste contexto de hipossuficiência
surgem questionamentos acerca das responsabi-
lidades do Estado em relação a garantias sociais
mínimas a serem asseguradas a estas pessoas, se-
jam elas migrantes econômicos ou com status de
refugiados.

Não há dúvidas de que o Brasil está comprometido


com a aplicação dos direitos humanos e garantias indivi-
duais mínimas para manutenção da vida de qualquer um
que se encontre em seu território, consequentemente, tem a
obrigação de zelar pela efetivação desses direitos.

CONCLUSÃO
Conclui-se que, o direito internacional dos direitos
humanos não reconhecem o direito humano de migrar entre
países de forma ampla e irrestrita. Isto pode ser deduzido
do próprio texto da Declaração Universal de Direitos Hu-
manos, que admite o direito de deslocamento voluntário,
porém não obriga o Estado a aceitar que um estrangeiro fixe

136
residência em seu território, ou seja, não há um direito de
assentamento.
Por outro lado, qualquer pessoa nacional de um país,
pode se deslocar de forma voluntária e, inclusive, assentar-se
em qualquer território habitável, dentro da extensão territorial
do Estado. Logo, há um direito amplo e irrestrito na perspecti-
va da migração interna, aquela que realizada dentro dos limites
territoriais de um Estado.
No âmbito dos deslocamentos voluntários internacio-
nais, não há uma proteção específica de direitos humanos para
esse grupo de pessoas. Todavia, um Estado não pode tratar um
estrangeiro de forma desumana, devendo, enquanto o migran-
te estiver em seu território, garantir que sejam preservados to-
dos os direitos e garantias fundamentais inerentes aos valores
da dignidade da pessoa humana, mesmo que permaneçam de
forma irregular, isto é, sem visto de permanência.
Tratamento distinto é dispensado aos deslocados força-
dos, pois são pessoas que saem de seus país de forma involun-
tária, justamente porque estão, de alguma forma, sofrendo per-
seguições ou violações aos seus direitos humanos. Preocupada
com esse grupo de pessoas vulneráveis, o direito internacional
reconheceu, apenas para os que se encaixam no conceito de
refugiados, o direito de fixar residência em um país enquanto
não cessar os motivos que os levaram a sair do país de origem.
Contudo, a imprecisão do conceito de refugiado não
abrange todos os tipos de deslocamentos forçados, motivo
pelo qual inúmeras injustiças estão sendo praticadas pelos paí-
ses que fecham às suas portas para esses deslocados, que aca-
bam ficando sem proteção dos seus direitos básicos.

137
O Brasil, com edição da nova lei de migração, deu
exemplo para comunidade internacional com a implemen-
tação do chamado visto humanitário, que tem por finalidade
justamente afastar a rigidez dos conceitos de refugiado, para
acolher todos os migrantes que necessitam de proteção. De
igual forma, no tráfico de pessoas, a vítima traficada para o
Brasil passa a ter o direito de fixar residência fixa no País
como forma de compensação a todo o sofrimento causado
pelos agentes criminosos. A política migratória brasileira
pode ser considerada como um grande avanço na proteção
dos direitos humanos dos migrantes.

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144
MIGRAÇÃO E TRÁFICO DE
PESSOAS NA FRONTEIRA: UMA
ABORDAGEM À LUZ DOS DI-
REITOS HUMANOS42

Cícero Rufino Pereira43


Ana Paula Martins Amaral44

Toda viagem se destina a ultrapassar fronteiras,


tanto dissolvendo-as como recriando-as. Ao mes-
mo tempo que demarca diferenças, singularidades
ou alteridades, demarca semelhanças, continuida
des, ressonâncias. Tanto singulariza como univer-
saliza (A Metáfora da Viagem, de Octávio Ianni,
1996).

42 O presente artigo originou-se de novas reflexões, adequações, apro-


fundamento e ampliação de artigo originalmente publicado nos “Cader-
nos Temáticos sobre Tráfico de Pessoas”, Volume: 4 - tráfico interno no
Brasil; Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria Nacional de Justiça,
Coordenação de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, 2014, p. 28-50;
de autoria de Cícero Rufino Pereira, Kaciane Corrêa Mozichuke, Ana
Paula Martins Amaral e Nathália Eberhardt Ziolkowski. Manteve-se,
na essência, a mesma redação e teor, modificando-se apenas trechos em
que os novos estudos determinaram outras reflexões.
43 Procurador do Trabalho. Mestre em Estudos Fronteiriços pela Uni-
versidade Federal de Mato grosso do Sul (UFMS). Mestrando em
Direitos Humanos pela UFMS. Coordenador do Fórum de Trabalho
Decente e Estudos sobre Tráfico de Pessoas. Autor de livros jurídicos.
zencicero@gmail.com.
44 Pós-doutora em Direito. Professora da Graduação e do Mestrado em
Direitos Humanos da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul). anapaulamartins@yahoo.com.br.

145
INTRODUÇÃO
Objetiva-se, com o presente texto, analisar a corre-
lação entre migração (na sua espécie imigração) e tráfico
internacional de pessoas, na modalidade trabalho escravo,
na fronteira Brasil/Paraguai, no estado de Mato Grosso do
Sul, nas cidades de Porto Murtinho, Bela Vista e Bonito.
Metodologicamente, foram utilizados os procedimentos
de pesquisa e revisão bibliográfica em torno das categorias
conceituais tráfico de pessoas, trabalho escravo, migração,
fronteira e Direitos Humanos.
A relação entre trabalho formal e imigração cons-
titui um desafio ao poder público brasileiro, pois, a mag-
nitude desse fenômeno mostra-se crescente com o passar
dos dias e mais complexo quando é incorporado à lógica da
dominação e exploração advindas do tráfico de pessoas, na
modalidade trabalho escravo. Quando se trata do movimen-
to transfronteiriço, o Brasil, na qualidade de País mercosu-
lino e de larga zona de fronteira, totalizando fronteira com
dez países, é constantemente chamado ao dever de propor
medidas de prevenção, proteção, acolhimento, verificação
e responsabilização das práticas de tráfico internacional de
pessoas, nas zonas de fronteira; sendo imigrantes vítimas
potenciais do crime de tráfico de seres humanos, na acepção
internacional, por ocorrer com estrangeiros.

A PRÁTICA DA MIGRAÇÃO
Dentre os grandes fenômenos, fatos e questões que
preocupam e se destacam no mundo moderno, a migração
tem chamado a atenção, por ser um fato social total (porque

146
determinada região ou país, tanto pode receber, quanto pode
expelir migrantes) que decorre da globalização. Sendo um
fenômeno recorrente e abrangente atingindo praticamente
todos os continentes e também ao Brasil, ainda que num
número não tão expressivo (AMARAL; PEREIRA, 2017,
p. 440), trazendo questões, a exigir políticas públicas e es-
pecial atenção, principalmente na região de fronteira, mor-
mente por ser uma das motivações do tráfico de pessoas, o
qual, ao ocorrer na zona de fronteira (facilitado pelas carac-
terísticas próprias dessa região, em consequência do efeito
fronteira), atrai o caráter internacional.
Migração é um fenômeno social decorrente do des-
locamento temporário ou definitivo de pessoas, quer dentro
de um mesmo território, correspondendo à migração inter-
na, quer de um território ou país, para outro território ou
país, correspondendo à migração externa. Aquele que sai de
um país ou território é o emigrante e aquele que chega a um
país ou território é um imigrante. As migrações podem ser
voluntárias ou forçadas; as migrações voluntárias são oriun-
das de um desejo de mudança e de melhoria da condição de
vida, por parte dos migrantes. Nas migrações forçadas há
a necessidade de abandono de um lugar, como exemplo os
exilados, os desterritorializados, ou os asilados; sendo que
uma modalidade especial de imigrante é o refugiado, o qual
sai de seu país de origem por força de perseguição política,
bem como em decorrência de desastres da natureza.
Com a promulgação da Lei 13.445/2017 (nova lei de
migração), a qual revogou o antigo estatuto do estrangeiro
e explicitou novas determinações, o Brasil adentrou, legal-
mente (apesar que, na prática já havia implementado algu-
mas disposições), a prevalência dos Direitos Humanos, no

147
tema migração, afastando o caráter de política de segurança
nacional que propugnava o citado estatuto do estrangeiro. A
novel legislação, dentre outros predicados, estatui políticas
de atendimento e de valorização do imigrante. Por seu tur-
no, o protocolo e a recomendação de 2014 à Convenção nº
29 da OIT é pródigo em disposições que buscam enfrentar
o trabalho escravo, atentando-se para o enfrentamento (com
políticas públicas) ao tráfico de pessoas.
É de grande gravidade o problema sociológico, an-
tropológico, econômico e jurídico do tráfico de pessoas
através das fronteiras internacionais, pois ocorre total des-
respeito aos mais básicos direitos humanos e à dignidade da
pessoa humana, inclusive do trabalhador em tais situações.
Tratados internacionais procuram fazer frente à questão do
trabalhador estrangeiro, inclusive na fronteira, assim como
buscam a proteção do trabalhador estrangeiro e sua família.
Dentre as causas da migração (inclusive na espécie
imigração) está a globalização, a qual tem como principal
alvo o mercado consumidor, sem maiores preocupações,
com a pessoa humana do trabalhador; podendo este en-
contrar-se em situação irregular no país onde é imigrante,
passando a ser objeto de fácil exploração de sua mão de
obra; sem condições dignas de trabalho e de vida, transfor-
mando-se em trabalhador escravo, na acepção de formas
degradantes de trabalho, ou mesmo jornada exaustiva de
trabalho; sem se falar da exploração sexual ou exploração
da prostituição (note-se que o crime é a “exploração” da
prostituição e não a prostituição em si).
O imigrante ilegal submete-se a degradantes condi-
ções de trabalho, sem reclamar, por medo de ser descober-
to e expulso do país onde presta seus serviços, passando a
148
ser imigrantes indocumentados, sem falar que são também
vítimas de cárcere privado, ameaças e um sem número de
outros crimes ou contravenções que as impedem de sair do
país e sequer contatarem seus familiares (neste caso, até
mesmo por vergonha, por se deixar enganar e ser ludibriada
pelos aliciadores), a teor do artigo 149 do Código Penal
(CP).
Pode-se concluir que o tráfico de pessoas, na moda-
lidade trabalho escravo, também na vertente internacional
(no sentido de ocorrer em face de pessoas estrangeiras), so-
fre influência da migração ilegal; inclusive quando se trata
de ferimento aos direitos humanos fundamentais sociais,
em geral, e também aos direitos humanos fundamentais so-
ciais (no caso, de índole trabalhista), na região fronteiriça.

TRÁFICO DE PESSOAS
Pode-se definir tráfico de pessoas (ou tráfico de se-
res humanos, ou, ainda, tráfico humano) como recrutamen-
to e transporte de pessoas para fins de exploração na forma
de serviços ou abuso sexual, ou ainda trabalho servil ou es-
cravo e para fins de remoção de órgãos, tecidos ou partes do
corpo humano45.
Outra definição de tráfico de pessoas é a trazida pelo
Protocolo de Palermo (Decreto 5017/2004), em seu artigo
3º, “a”, in verbis:

45 (definição adaptada do “Relatório de Sistematização dos Dados e


Fontes de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas” – Produto 01, publi-
cado pela Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da Justiça, em
2012, com redação de Alline Pedra Jorge Birol, p.7).

149
A expressão ‘tráfico de pessoas’ significa o re-
crutamento, o transporte, a transferência, o aloja-
mento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à
ameaça ou uso da força ou outras formas de coa-
ção, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de
autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à
entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios
para obter o consentimento de uma pessoa que
tenha autoridade sobre outra para fins de explora-
ção. A exploração incluirá, no mínimo, a explora-
ção da prostituição de outrem ou outras formas de
exploração sexual, o trabalho ou serviços força-
dos, escravatura ou práticas similares à escravatu-
ra, a servidão ou a remoção de órgãos.

Uma das espécies do tráfico de pessoas é o “trabalho


ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à es-
cravatura, bem como a servidão”. Caso o tráfico de pessoas,
em qualquer uma de suas espécies, ocorra entre Estados (ou
seja, entre países) distintos, será cognominado de tráfico in-
ternacional de pessoas. Por outro lado, o “tráfico interno
de pessoas” é aquele realizado dentro de um mesmo esta-
do-membro da federação, ou de um Estado-membro para
outro, dentro do território nacional (artigo 2º, § 5º, da “Po-
lítica” Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas,
Decreto 5948/2006).
Pela citada Política Nacional de Enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas (o que não é necessariamente, seguido
pela nova lei de tráfico de pessoas, lei 13.344/2016), o con-
sentimento dado pela vítima é irrelevante para configuração
do tráfico de pessoas. Esse entendimento é válido para qual-
quer uma das espécies do gênero tráfico de pessoas, portan-
to também vale para a espécie trabalho escravo, inclusive
na modalidade tráfico internacional de pessoas para fins de
trabalho escravo. Tal se dá com o aliciamento ou recruta-

150
mento de trabalhadores em outro país, principalmente nas
regiões de fronteira, para trabalhar no Brasil.
Não se pode olvidar das disposições da nova lei de
tráfico de pessoas (lei 13.344/2016, a qual estatuiu o novo
artigo 149-A, do CP), unificando em um novo artigo – 149-
A do CP – o tráfico interno e internacional de pessoas, revo-
gando os artigos 231 e 231-A do Código Penal.
Certo é que, o tráfico de pessoas na espécie trabalho
escravo, mormente na região de fronteira, é iniquidade que
fere a honra e a dignidade da pessoa humana, fundamento
da República Federativa do Brasil, em total desrespeito
aos Direitos Humanos (inclusive, mais especificamente os
Direitos Humanos Fundamentais Sociais), dos imigrantes
(no caso, trabalhadores fronteiriços).

A) TRABALHO ESCRAVO
Trabalhadores migrantes estrangeiros, sobretudo em
uma região de fronteira, são vítimas fáceis da exploração do
trabalho escravo. Realmente, é na fronteira (e através dela)
que a concorrência por mão de obra barata e por discussões
acerca da legalidade ou ilegalidade da migração é pano de
fundo para se perpetrar ataques aos direitos humanos, em
prol de aumento de lucros, através da chamada globalização
da economia, ou pela simples busca do “lucro fácil”.
Na região fronteiriça, ante as características próprias
da mesma, o trabalhador imigrante geralmente encontra-se
em situação de vulnerabilidade social e econômica, justifi-
cando seu desejo de migrar em busca de melhores condi-
ções de vida. Aproveitando-se da referida vulnerabilidade,

151
retendo o passaporte e demais documentos pessoais (a par
de outros subterfúgios indicados no artigo 149 do Código
Penal Brasileiro, tratado em outra parte deste trabalho), os
empregadores escravocratas, impedem que os trabalhado-
res aqui retratados possam fugir ou mesmo denunciar suas
condições de trabalho pois temem ser devolvidos ou depor-
tados para seu país de origem.
Apesar da denominação adequada para o fenômeno
ora estudado ser “trabalho em condição análoga à de escra-
vo”, pode-se denominar tal fenômeno “trabalho escravo”.
Estar-se-á utilizando de uma redução da expressão mais
ampla utilizada pela lei (BRITO FILHO, 2004, p. 73), ten-
do-se sempre em mente que ao se usar a expressão trabalho
escravo, estaremos nos referindo ao “trabalho em condi-
ções análogas à de escravo”.
O Código Penal Brasileiro (DL 2.848/40), no seu
artigo 149, com a redação dada pela Lei 10.803/03, traz a
definição legal do crime de redução à condição análoga à
de escravo:
Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga
à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos
forçados ou à jornada exaustiva, quer sujei-
tando-o a condições degradantes de trabalho,
quer restringindo, por qualquer meio, sua lo-
comoção em razão de dívida contraída com o
empregador ou preposto:

Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa,


além da pena correspondente à violência.

§ 1º Nas mesmas penas incorre quem:

152
I – cerceia o uso de qualquer meio de trans-
porte por parte do trabalhador, com fim de
retê-lo no local de trabalho;

II – mantém vigilância ostensiva no local de


trabalho ou se apodera de documentos ou ob-
jetos pessoais do trabalhador, com o fim de
retê-lo no local de trabalho.

§ 2º A pena é aumentada de metade, se o cri-


me é cometido:

I – contra criança ou adolescente;

II – por motivo de preconceito de raça, cor,


etnia, religião ou origem.

Caracteriza-se também como trabalho escravo o ali-


ciamento do trabalhador, no seu local de origem, enganan-
do e fraudando a sua boa-fé, com promessas de condições
dignas de trabalho e garantia de retorno ao seu local de ori-
gem. Situações de tráfico de pessoas, na forma de traba-
lho escravo (trabalho prestado em condições análogas à de
escravo), podem ocorrer no território interno de um país,
na região de fronteira entre dois países, ou ainda através
do limite internacional (o trabalhador é “recrutado” em um
país para trabalhar em outro).
Em maio de 2014, a Organização Internacional do
Trabalho (OIT) apresentou relatório de pesquisa sobre tra-
balho forçado (uma das formas de trabalho escravo), in-
dicando lucro de US$ 150 bilhões (cento e cinquenta bi-
lhões de dólares) no mundo46. Por sua feita, com relação
46 HTTP://www.conjur.com.br/2014-mai-21/empresas-lucram-us-
150-bilhões-ano-trabalho-forcado. Acesso em: 15 julho 2014.

153
ao número de trabalhadores resgatados do trabalho escra-
vo, resultou (de acordo com informação também no mês
de maio de 2014), no total de 46.47847 (este é um número
de casos ocorridos desde 1995 até outubro de 2013). Em
1995, o Brasil se viu obrigado, ante a pressão internacional,
a firmar um acordo, perante a comissão interamericana de
Direitos Humanos, obrigando-se a indenizar o trabalhador
rural José Pereira Ferreira, resgatado em 1999 da Fazenda
Espírito Santo, no sul do Pará, libertado da exploração de
trabalho escravo (condição análoga à de escravo).
Existem profissionais da área do direito do trabalho
que pretendem a partir da nova Emenda Constitucional
81/2014 (que indica a necessidade de ser através de lei a
expropriação de terras, portanto sem qualquer pagamento
de indenização, em que tenha havido a exploração de
trabalho escravo), excluir da tipificação do artigo 149 do
Código Penal, a partir de uma nova lei (conforme indicado
no artigo 246 da CF/88, com a redação da EC 81/2014),
a espécie de condição degradante e jornada exaustiva de
trabalho.
Ora, a condição degradante (ocorre principalmente
no meio rural) e a jornada exaustiva (ocorre principalmente
no meio urbano) de trabalho são as duas modalidades
mais comuns do crime de redução à condição análoga à
de escravo. A exclusão dessas modalidades representará
uma grande e absurda impunidade, sem falar em grande
retrocesso no enfrentamento ao tráfico de pessoas, na
modalidade trabalho escravo; o que vai de encontro a

47 HTTP://g.1.globo.com/economia/noticia/2014/05/brasil-registra-
46-mil-trabalhadores-libertados-em-condicão-de-escravos.html.

154
inúmeros Tratados Internacionais, firmados pelo Brasil.
Ademais haverá o ferimento do Princípio da Prevalência
da Dignidade da Pessoa Humana (artigo 1º, III, da CF/88)
e do Princípio da Proibição do Retrocesso Social (um
dos princípios mais importantes dos Direitos Humanos
Fundamentais).
É fácil perceber que o oposto de trabalho escravo,
sendo uma maneira adequada, legítima e legal de se
enfrentar esta modalidade de tráfico de pessoas, bem como
a discriminação no trabalho, geradora de violência contra
a mulher e o desrespeito à saúde e segurança no trabalho,
é o trabalho decente; o qual é definido pela Organização
Internacional do Trabalho como o adequadamente
remunerado, exercido em condições de liberdade, equidade
e segurança, respeitando-se a dignidade da pessoa humana
dos trabalhadores e das trabalhadoras (PEREIRA, 2014).

FRONTEIRA E SEUS CONCEITOS


A base física e geográfica do Estado-Nação é o ter-
ritório, mas este é também o resultado de relações huma-
nas (sociais, culturais, políticas e jurídicas) sobre um re-
ceptáculo físico e modificável pela sociedade que o habita
(COSTA, 2009, p. 62 apud SILVA e AMÂNCIO, 2009, p.
287). Por sua feita, territorialidade é o uso que as pessoas
fazem do território, usando-se a terra, organizando-se em
sociedade, sendo (a territorialidade) a “expressão geográ-
fica do poder social” (Idem, p. 65). Nos dias que correm, o
território deve ser protagonista, pois a territorialidade cria a
identidade (inclusive cultural) para tal.

155
Atualmente, há uma reconfiguração espacial da
fronteira, com modificação das relações espaço/tempo e um
novo processo de funcionalização do território, revisando o
ritmo das fronteiras; ocorrendo um aumento da população
fronteiriça em todos os países das Américas. No caso da
América do Sul, a complexidade destes lugares faz surgir
uma incompletude aguda (OLIVEIRA, 2005).
Rafestin (1993) fez críticas aos estudos clássicos
acerca da natureza e função das fronteiras internacionais.
Para ele, estas abordagens teriam negligenciado a importân-
cia das concepções de fronteira e de suas funções e efeitos
sobre a organização espacial. Este autor afirma que a fron-
teira constituiu não somente um meio de diferenciação do
território, mas também um meio de diferenciação temporal
(é a visão Marxista de que o tempo histórico é o tempo das
relações sociais). Entende ainda, o referido autor, que novas
abordagens sobre o tema fronteira estão criando um mito
(uma nova ortodoxia) acerca do “fim das fronteiras” (das
fronteiras-limite).
Por sua feita, a migração interna e principalmente
internacional é um fenômeno antigo e que permanece nos
dias atuais com características e especificidades próprias,
com ocorrência global, inclusive sendo um dos reflexos da
globalização. Esse fenômeno relaciona-se, principalmente
na região de fronteira, com outros de igual importância, por
exemplo, o tráfico de pessoas, nomeadamente nas modali-
dades trabalho escravo.
A extensão espacial delimitada, onde um Estado
exerce sua soberania (poder de fazer e exercer direitos coer-
citivamente) caracteriza um território, o qual é “delimitado”
(para a doutrina tradicional) por fronteiras. Sendo que, por
156
sua característica original, o termo fronteira é abrangente e
se refere a uma região ou faixa.
É consenso, entre os estudiosos do tema, que a zona
de fronteira é diferenciada quanto ao modo de ser e de
viver de sua população, de suas cidades, dos organismos
econômicos e políticos, possuindo “identidades” próprias
que a distanciam do restante dos Estados-Nação a que
pertençam político-administrativo e juridicamente.
O fenômeno tráfico de pessoas, em decorrência de
todas as especificidades e características próprias da região
de fronteira internacional, a mesma, permite e “naturaliza”
(ou seja, torna comum e aceito de certa forma pela comu-
nidade local) o fenômeno, que por si só já traz uma grande
carga de invisibilidade, principalmente na modalidade tra-
balho escravo. Por óbvio que, em tais regiões, a migração
de pessoas, notadamente com o intuito de trabalhar, acaba
gerando consequências especificas na ocorrência do crime
de tráfico de pessoas, principalmente na sua modalidade in-
ternacional, no sentido de ter como vítimas pessoas estran-
geiras.
Ao se analisar as características em geral da fron-
teira, têm sido observados os “circuitos da ilegalidade” que
permeiam a questão fronteiriça, Machado (2000), após ob-
servar o crescimento de atividades ilegais, em países pobres
e também nos ricos, propõe linha de argumentação no senti-
do de que o aumento da sensibilidade de estados nacionais e
organismos internacionais em relação às atividades ilegais
deriva da situação duvidosa das leis e normas que regem as
atividades legais.

157
E arremata a festejada autora: “a antiga demarcação
entre legal (bem) e ilegal (mal) transformou-se numa ‘zona
cinzenta’ caracterizada por decisões conflitantes sobre o uso
do estatuto de legalidade/ilegalidade tanto no espaço global
como nos espaços nacionais”. A conclusão a que se chega é
que surgem grandes espaços com fronteiras flutuantes, das
quais emergem fenômenos sociais, em função das proprie-
dades estruturais das redes que se formam e para as quais
o estatuto da legalidade/ilegalidade erigido a partir de cada
Estado não tem validade, exceto por pressão ou negociação
(MACHADO, 2000).
Uma das grandes características da fronteira é que a
mesma é um espaço geográfico, econômico, social e jurídi-
co em que, a par de seus diversos problemas de ilegalidade
latente, sofrendo preconceitos de outras regiões dos países
limítrofes possui, por suas características próprias, o poder
de se reinventar e de ser uma zona de integração e de in-
teração entre as pessoas e as atividades dos dois lados do
espaço fronteiriço; afastando, na prática, as limitações que
as legislações nacionais tentam impor na região.
Exatamente por possuir as características aqui re-
tratadas, é que a fronteira tem sido um local de oportunida-
des para o crescimento econômico dos países vizinhos, mas
acaba atraindo e facilitando fenômenos criminosos como o
tráfico internacional de pessoas, mormente na modalidade
trabalho escravo. A par de seus atributos positivos e vicis-
situdes, a fronteira (seja ela qual for e esteja ela geografi-
camente incrustrada em qualquer local do globo terrestre),
possui um traço característico que pode ser chamado de
efeito fronteira.

158
O efeito fronteira é um fenômeno ligado às intera-
ções fronteiriças, que pode ocorrer nas áreas econômicas
(atividades lícitas e atividades ilícitas), sociais, trabalhistas,
jurídicas, culturais, políticas etc. Trata-se de efeito causado
“pela fronteira (faixa, zona ou limite) sobre a sociedade e
espaço” (MARTINS, 2010, p. 239), havendo necessidade
que “a investigação científica leve ao enfrentamento de sua
complexidade, o cotidiano (a fronteira como lugar e local)
em um raciocínio multiescalar e constextualizador” (MAR-
TINS, 2010, p. 239).
Sendo assim, pode-se falar, então, num “efeito” pró-
prio e específico que a dinâmica da fronteira, por suas ca-
racterísticas próprias, produz, num primeiro momento, ao
longo do limite, da descontinuidade entre dois (ou mais)
territórios nacionais. É o que aqui se está chamando, como
já se disse, de efeito fronteira.
Retomando a questão da legalidade e da ilegalidade
na região fronteiriça, os chamados “circuitos da ilegalida-
de”, observa-se que a zona de fronteira (sem falar na in-
fluência do efeito fronteira) é campo fértil para a ocorrência
do tráfico de pessoas, na espécie trabalho escravo. A análise
de alguns casos de tráfico de pessoas de trabalhadores imi-
grantes, abaixo (em item específico), na modalidade traba-
lho escravo, demonstrará a existência de tráfico de pessoas
na região fronteiriça do Brasil/Paraguai, nos municípios de
Porto Murtinho, Bela Vista e Bonito, a desafiar soluções
baseadas nos Direitos Humanos das vítimas do crime de
tráfico de pessoas, através de políticas públicas oficiais,
bem como da atuação da sociedade civil, principalmente
das Organizações Não-Governamentais (ONGs).

159
DIREITOS HUMANOS E DIREITOS FUNDAMEN-
TAIS (SOCIAIS)
Direitos humanos são aqueles inerentes à pessoa
humana e sem os quais não há que se falar em vida digna e
demais atributos da personalidade; são conjuntos de direitos
atrelados à dignidade do ser humano. Os direitos humanos
podem ser divididos em dimensões, sendo que a primeira
dimensão é a que trata dos direitos civis e políticos, a
segunda dimensão é a que trata dos direitos sociais, culturais
e econômicos, a terceira dimensão trata de preservação
ambiental e proteção aos consumidores e a quarta dimensão
trata do direito à democracia e à informação (PEREIRA,
2007, p. 30).
A Constituição de 1988 privilegiou de forma inédita
os direitos humanos fundamentais, também pela primeira
vez, os direitos sociais passaram a integrar expressamente o
rol de direitos e garantias fundamentais, ao lado dos direitos
e garantias individuais. Desse modo estão assegurados nos
artigos 6°. e 7°, o direito à educação, à saúde, à moradia etc;
está-se falando, aqui, de Direitos Humanos Fundamentais
Sociais (humanos porque estão orbitando em nível interna-
cional; fundamentais, porque também estão internalizados
no ordenamento jurídico brasileiro, no caso, nos artigos 6º e
7º, da CF/88; e, sociais, porque vários desses direitos cons-
tam do rol do citado artigo 6º da indigitada CF/88).
Brito Filho (2004, p. 37) afirma: “definimos Direi-
tos Humanos como o conjunto de direitos necessários à pre-
servação da dignidade da pessoa humana”. Dignidade da
pessoa humana é um conjunto de prerrogativas dessa mes-
ma pessoa, visando garantir-lhe uma existência digna (res-
peitar-se e sentir-se respeitada por seus semelhantes), a qual
160
deve ser preservada, como condição essencial para a justiça
e a paz, tanto no âmbito nacional, quanto internacional.
Por seu turno, direitos fundamentais são aqueles
inerentes à pessoa; são direitos mínimos necessários para
uma vivência digna, e não podem ser negados, e sim devem
ser reconhecidos, respeitados e aplicados pelo cidadão
particular, pela sociedade em geral e pelo Estado (poder
público). A distinção entre Direitos Humanos e Direitos
Fundamentais, é que estes estão internalizados como leis
nos países, e aqueles ainda pairam em âmbito internacional
e não são, ainda, leis que integram o ordenamento jurídico
nacional de cada Estado ou país.
Não é por outro motivo que Piovesan (2010) insiste
na necessidade de reconstrução dos direitos humanos,
como referencial e paradigma ético que aproxime o direito
da moral. Adotando-se a terminologia de Arendt (2008),
direitos humanos são o “direito a ter direitos”, ou seja, o
direito a ser sujeito de direitos.
A Declaração Universal dos Diretos Humanos esta-
belece que todos os seres humanos nascem livres e iguais
em dignidade e direitos. A saúde é, senão o primeiro, um
dos principais componentes da vida, seja como pressuposto
de existência, seja como respaldo para qualidade de vida.
Assim, a saúde se conecta com o direito à vida.
Os Pactos e Tratados Internacionais de Direitos Hu-
manos são remédios sociais, econômicos e principalmente
jurídicos para o enfrentamento ao tráfico internacional de
pessoas, tanto na modalidade trabalho escravo, bastando
que a legislação internacional seja efetivamente aplicada
pelos governos dos Estados (países) que ratificaram esses

161
instrumentos jurídicos; implantando-se e implementando-
se políticas públicas nacionais e internacionais (no caso da
região de fronteira, tendo tais políticas públicas que con-
siderar e atender os municípios limítrofes dos países vizi-
nhos os quais são chamados, em regra de cidades - gêmeas),
com atenção especial às maiores vítimas de violência, tais
como, crianças e adolescentes, idosos, mulheres e comu-
nidade LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros
– transexuais e travestis); e, por óbvio, os trabalhadores e
trabalhadoras vítimas de trabalho escravo.
É cediço na doutrina (e já referido em anteriormente
neste trabalho) que os Direitos Humanos são aqueles que
protegem o ser humano e estão pairando no ordenamento
jurídico internacional, como princípios, mas que não estão
ainda positivados nas leis dos países. Por sua vez, não deve
ser esquecido, que os Direitos Fundamentais são Direitos
Humanos que já estão incluídos (positivados) nas leis inter-
nas dos países. O direito à saúde é um Direito Fundamental
por ser um Direito Humano que já está exigido e defendido
em diversas leis internas dos países.
Então, no caso dos trabalhadores e trabalhadoras
imigrantes, vítimas de tráfico internacional de pessoas, na
modalidade trabalho escravo (consoante, inclusive, o proto-
colo e recomendação de 2014 à Convenção 29 da OIT), na
região de fronteira, os Direitos Humanos Fundamentais So-
ciais devem ser respeitados, mormente a partir de políticas
públicas oficiais e atuação da sociedade civil, com destaque
para as ONGs.

162
ESTUDO DE CASOS DE TRÁFICO DE PESSOAS,
NA MODALIDADE TRABALHO ESCRAVO, NA
FRONTEIRA BRASIL/PARAGUAI, NO ESTADO DE
MATO GROSSO DO SUL
O Fórum de Trabalho Decente e Estudos sobre
Tráfico de Pessoas (FTD-ETP), após participar de visitas
técnicas acompanhando o Ministério Público do Trabalho
(MPT), em diversas CARVOARIAS (EM FAZENDAS
ESPECÍFICAS) da fronteira Brasil/Paraguai (nas cidade
de Porto Murtinho, Bela Vista e Bonito, sendo certo que
essa última cidade foi considera “como fronteira”, a partir
da verificação do fenômeno “efeito fronteira”, conforme já
explicitado em outra parte desse trabalho) efetuou, ao co-
letar provas, em diversos inquéritos civis (ICs), análises de
alguns casos, em que o tráfico de pessoas na modalidade
trabalho escravo pode ser discutido e observado, ou, pelo
menos, ser considerado, para fins de reflexão acerca do
tema tráfico de pessoas de imigrantes, na fronteira Brasil/
Paraguai.
Passe-se, abaixo, a transcrever o teor das análises e
relatórios efetuados, pelo Fórum de Trabalho Decente e Es-
tudos sobre Tráfico de Pessoas (FTD-ETP), em determina-
dos inquéritos civis (presididos e ordenados pelo Ministério
Público do Trabalho em Mato Grosso do Sul). Os nomes
dos investigados e das fazendas onde ocorreram as visitas
técnicas do Ministério Público do Trabalho, acompanhado
pelo Fórum de Trabalho Decente, bem como os números dos
inquéritos civis (ICs) ainda que públicos, serão omitidos,
para todos os fins legais, inclusive por se tratar, o presen-
te estudo, de pesquisa bibliográfica e documental (no caso
baseada nos ditos inquéritos civis, documentos formais e

163
oficiais do Ministério Público do Trabalho, que são a forma
desse ramo do Ministério Público da União investigar, ad-
ministrativamente, as ilegalidades trabalhistas, mormente
trabalho escravo na fronteira, que lhes são trazidas, através
das mais diversas formas de denúncia; podendo servir de
base para ajuizamento de ações civis públicas – ACPs), na
justiça do trabalho.

A) CASO A – IC Nº XXX/XX – PORTO MURTINHO/MS


Os fatos que resultaram das denúncias, investiga-
ções e atuações do Ministério Público do Trabalho-Procu-
radoria Regional do Trabalho 24° Região, no Inquérito Ci-
vil nº XXX/XX simplesmente, é constrangedora em quanto
ao desprezo que a empresa de carvoaria “Fazenda Y” ou
“Z”, de PORTO MURTINHO, teve em relação à legislação
trabalhista e o ser humano trabalhador. Muitas artimanhas
para burlar as normas de funcionamento de uma carvoaria e
aproveitamento indevido da força de trabalho de emprega-
dos, encontram-se no referido processo; tais como: duplica-
ção de nomes, mais de um inquérito civil na investigação e
descumprimento de dois TACs, dentre outras atuações des-
respeitosas do inquirido.
Quando em 14 de agosto 2012 iniciou-se o Inquérito
Civil – IC à que se refere o presente relatório, o Ministério
Público do Trabalho já tinha em autos um IC iniciado em
2011. No âmbito deste inquérito já haviam sido firmados,
nada menos, que dois Termos de Ajustamento de Condu-
ta (TAC XXX/XX) e (TAC XXX/XX). No domínio desse
inquérito (IC nº XXX/XX), embora, os dados do requerido
eram a Fazenda Z e FULANO (PROPRIETÁRIO). E outro

164
dado curioso é que, ainda em agosto de 2012, a denúncia
que motivou o início do outro inquérito (IC XXX/XX) dava
conta de que a carvoaria ainda pertencia à Fazenda Z e que
o patrão seguia sendo FULANO, quando que a realidade,
seria, supostamente, outra. Ao menos é isso o que se des-
prende da denúncia de BELTRANO, um trabalhador oriun-
do de Minas Gerais, que fez a “primeira” denuncia. O termo
da denúncia n° 93, de 14 de agosto de 2012, segundo consta
na folha 04 no IC XXX/XX, diz o seguinte:
Pelo telefone 0800-647-5566, o denunciante (BEL-
TRANO) afirmou que é de Minas Gerais, mas que
está há quase 1 ano na Fazenda Z, como trabalha-
dor rural, fazendo de tudo, inclusive trabalhando
em carvoaria. Afirmou, ainda, que começa a traba-
lhar de madrugada e só para à noite, sem horas ex-
tras, sem equipamento de proteção individual, sem
registro e, inclusive, sem pagamento. Alegou que
quer ir embora para sua terra em Minas Gerais, mas
supostamente o dono da fazenda Z, Sr. FULANO,
fone TAL, não lhe paga os salários porque não quer
que o empregado saia da fazenda. Ao denunciante
foi informado que o MPT atua no âmbito coletivo e
que os direitos individuais poderiam ser requeridos
na Justiça do Trabalho.

Diante da denúncia de BELTRANO, o procurador


do trabalho Leontino Ferreira de Lima Junior, determina
a Portaria N° 0296/2012, mediante a qual se origina a ins-
tauração de IC, para a apuração dos fatos, e ao CODIN
– Coordenadoria dos Interesses Difusos e Coletivos – a
adoção de medidas cabíveis em relação à referida incrimi-
nação. Em 14 de agosto de 2012, a mesma data de abertura
da Representação N° XXX/XX, um informe administrati-
vo do MPT-PRT 24° Região disse que no sistema CODIN
“nada consta em face de Maracujá”. Outro detalhe é que

165
no Inquérito N° XXX/XX não consta licenciamento ou
AAC- Autorização Ambiental para Carvoejamento.

FAZER DE TUDO E COMER TODO O DIA PUCHERO


Na prossecução das investigações, a fim de reunir
mais informações, o MPT contatou com o denunciante,
cujo resultado consta nas páginas 09 e 10 do IC nº XXX/
XX, de 20 de agosto de 2012. Os elementos novos elen-
cados na ocasião mencionam que o denunciante chegou
à fazenda, no Bairro Rural de Porto Murtinho, por conta
própria, no dia 18 de outubro de 2011. E, que os outros 03
trabalhadores que completam o grupo de empregados, che-
garam ao lugar em novembro de 2011. Na rotina dos dias
extenuantes, que começa na madrugada e estendem-se até
a noite, os empregados fazem todo tipo de trabalho, sendo
uma das atividades “puxar lenha”. Sem salário fixo, os tra-
balhadores faziam mesmo de tudo e tinham que trabalhar
até a exaustão para tentar atingir no mês um salário míni-
mo. Em comparação com toda a força de trabalho deixada
na fazenda o dinheiro que sobrava para o patrão era muito.
E, ainda, o salário era retido e sempre ficava a remuneração
atrasada. Em meio já de uma ralação trabalhista degradante,
para piorar, não existiam registros de anotações dos traba-
lhadores na CTPS – Carteira de Trabalho e Providência So-
cial. Denunciou-se que as áreas de vivência eram precárias
e perguntado o denunciante sobre a alimentação respondeu
que o almoço era “sempre puchero”, dando a entender que
sempre era preparado do mesmo jeito. Cabe ressaltar que
o “puchero” é o nome dado a um prato típico do Paraguai;
é uma das bases de alimentação popular no país, porém,
ainda que apareça nas refeições de segunda a sexta, ela é
166
e pode ter diferentes formas de preparo e ingredientes; as-
sim, dificilmente fica enjoativo. Mas, sendo um caldo, cujo
ingrediente principal é carne com osso, e, ao haver queixa
de trabalhadores em relação ao mesmo, é porque vem se
tratar de um puchero simples de “osso com carne” e não
de “carne com osso”. Outras queixas foram em relação ao
único banheiro no local, e sobre a ocorrência de acidentes
de trabalho e falta de prestação de socorro, pois, ademais,
tampouco existia no local kit para primeiros auxílios.
Na prossecução das investigações foram encami-
nhados ofícios, autos, auditorias e outros mecanismos ad-
ministrativos, a fim de tentar desvendar o “mistério” que já
vinha representado o caso da Fazenda Maracujá. Até que,
por fim, em 04 de fevereiro de 2013, outro informe do CO-
DIN-PRT/24° Região certifica que o Auditor Fiscal do Tra-
balho, Sr. Antônio Parron, informou que “a Fazenda Z é em
realidade a Fazenda Y. Ou seja, segundo consta na página
17 da REP (Representação) aqui pesquisada, a Fazenda Z-
FULANO, investigada nos autos do IC nº XXX/XX, é a
mesma fazenda investigadas nos autos IC nº XXX/XX, no
qual foi firmado o Termo de Ajuste de Conduta n° XXX/
XX, pelo senhor FULANO, representante e proprietário da
fazenda”. E que, ainda, agregava o informe, “a ação fis-
cal naquela propriedade já está incluída na programação da
SRTE/MS (Superintendência Regional do Trabalho e Em-
prego) ”.

RELATÓRIO DE AÇÃO FISCAL DE 2013


Sete meses depois da denúncia do empregado que
veio de Minas Gerais, Nilton BELTRANO, o MPT realiza

167
uma ação fiscal in loco na Fazenda Y. Em 06 de fevereiro
de 2013 a inspeção da área comprova as seguintes irregu-
laridades:
(...)
- Constatou-se a indisponibilidade de janelas nos
alojamentos, impossibilitando vedação e segurança ade-
quadas. Conforme inspeção e fotos tiradas, existem apenas
pedaços de lona escoradas com madeira para cobrir as aber-
turas existentes nas paredes dos alojamentos. Capitulação:
art. 13 da Lei n° 5.889/1973, c/c item 31.23.5.1, alínea “c”,
da NR-31, com redação da Portaria n° 86/2005;
(...)
- Constatou-se a indisponibilidade de água limpa
nas instalações sanitárias. Os empregados alojados preci-
sam levar agua no balde para utilizar o banheiro, pois, à
instalação está em reforma e não possui agua encanada. Ca-
pitulação: art. 13 da Lei n° 5.889/1973, c/c item 31.23.3.2,
alínea “d”, da NR-31, com redação da Portaria n° 86/2005;
- Constatou-se a indisponibilidade de chuveiro nas
instalações sanitárias. Conforme inspeção e documen-
to fotográfico, há uma torneira no lugar do chuveiro, que
está fora de uso, pois, a instalação está em reforma e sem
água. Capitulação: art. 13 da Lei n° 5.889/1973, c/c item
31.23.3.1, alínea “d”, da NR-31, com redação da Portaria
n° 86/2005;
- Constatou-se a existência de instalações elétricas
com risco de choque e outros tipos de acidentes; existem
fios pendurados e com emendas expostas no interior dos
alojamentos. Capitulação: art. 13 da Lei n° 5.889/1973,

168
c/c item 31.22.1, da NR-31, com redação da Portaria n°
86/2005;
(...)
- Constatou-se, após análise documental, que os
quatro empregados citados acima não foram submetidos a
exame médico admissional, antes do início de suas ativi-
dades. Capitulação: art. 13 da Lei n° 5.889/1973, c/c item
31.5.1.3.1, alínea “a”, da NR-31, com redação da Portaria
n° 86/2005;
(...)
Vê-se, da análise da transcrição parcial do relatório
do Fórum de trabalho decente, a partir de visita técnica jun-
to com o Ministério Público do Trabalho no Estado de Mato
Grosso do Sul, que as condições degradantes de trabalho
(uma das formas de trabalho escravo, a teor do artigo 149
do Código Penal), na citada carvoaria, localizada na cidade
de Porto Murtinho, fronteira com o Paraguai, restaram pa-
tentes. O que indica a ocorrência de tráfico de pessoas, na
modalidade trabalho escravo na fronteira Brasil/Paraguai,
alcançando, no caso, migrantes internos, inclusive alguns
deles oriundos de Minas Gerais.

B) CASO B – PAJ (PROCEDIMENTO DE ACOMPA-


NHAMENTO JUDICIAL) Nº XXX/XX –SICRANO –
FAZENDA Y – BONITO/MS
Como fonte de pesquisa deste relatório temos a Ação
Civil Pública proposta pelo procurador do trabalho Cícero
Rufino Pereira, no juizado da vara do trabalho de Jardim/

169
MS em 23 de novembro de 2013. A mesma consta na Pro-
curadoria Regional do Trabalho 24° Região/MS, como PAJ
(Procedimento de Acompanhamento Judicial) nº XXX/XX.
O citado procurador coordena também o Fórum do Traba-
lho Decente e Estudo sobre Tráfico de Pessoas (FTD-ETP),
que atua em prol da defesa dos direitos humanos mediante
sua atuação nas fronteiras de Mato Grosso do Sul nos casos
de migração e tráfico de pessoas nas suas diferentes modali-
dades e dinâmicas, sobre todo com fins de trabalho escravo
e exploração sexual.

ESCRAVO E ESCRAVOCRATAS DE OUTROS ESTADOS


No PAJ que se analisa no presente relatório, con-
trariamente, quem é oriundo de outro estado do país é o
empresário, neste caso SICRANO, da cidade de “W”, pro-
prietário da Fazenda Y, localizada na zona rural da cidade
de Bonito/MS.
Dentre os fatos que consta no referido procedimento
contra SICRANO descreve-se que houve uma solicitação
da Procuradoria Regional do Trabalho 24° Região à Supe-
rintendência Regional do Trabalho de Mato Grosso do Sul
(SRTE/MS), sobre fiscalização conjunta que fosse realiza-
da, na época, nos empreendimentos carvoeiros do Estado,
dentre eles à Fazenda Y.
Respondendo ao pedido do MPT/PRT a SRTE re-
mitiu o ofício n° 172/2012 e o relatório da auditoria fis-
cal trabalhista praticada na Fazenda Y, que constataram,
efetivamente, inúmeras irregularidades cometidas contra a
dignidade dos trabalhadores na carvoaria ali em funciona-

170
mento. Em total foram levantadas sete infrações contra a
Lei 5.889/1973 que dispõe sobre as normas reguladoras do
trabalho rural.
SICRANO, residente em Minas Gerais, produtor de
carvão vegetal em Bonito/MS, na Fazenda Y -das quais é
possível deduzir que, além de empresário do carvão é dono
da Fazenda, ou seja; é, também, fazendeiro- enxergou uma
opção, para ele interessante, de desenrijar-se perante qual-
quer responsabilidade trabalhista, ou seja, com trabalhado-
res, seres humanos, que iriam produzir lucro para ele na sua
fazenda. Em soma, o empresário não queria problemas com
a justiça, perante a premeditação exploratória. Para o efeito
chama a MA Terraplanagem, do “empresário individual”
FULANO DE TAL, que atuará como terceirizado para ele,
quem por sua vez vai terceirizar a contratação de trabalha-
dores para o carvoejamento.
Também aqui, dessa feita em carvoaria localizada
em fazenda da cidade de Bonito/MS (segundo destino inter-
nacional no Brasil, ficando atrás apenas da cidade do Rio de
Janeiro), o tráfico de pessoas na espécie trabalho escravo,
na fronteira, envolvendo migrantes restou verificado.

C) CASO C - IC XXX/XX – EMPRESA: NOME FAN-


TASIA LTDA – BELA VISTA/MS
Em 2012, o Ministério Público do Trabalho (Procu-
radoria Regional do Trabalho – 24ª Região) abriu processo
de investigação contra a “CARVOARIA K” Comércio de
Carvão Ltda., cuja atividade de produção de carvão vegetal
era realizada em mais de uma fazenda e mais de um muni-

171
cípio de MS.
A ação contra a “CARVOARIA K”, que teve, ainda
em 2014, vários procedimentos administrativos em função
do Ajustamento de Conduta ao que foi exigida, se amolda
a um visto de 2010 do MPT que veio considerar a “transi-
toriedade das carvoarias”, a “mudança constante de local
em busca de matéria prima” e a “rotatividade de grande nú-
mero de trabalhadores”. No considerando especificava-se
que “a relação das licencias ambientais serão encaminha-
das pela procuradora-chefe para todas as PTM´s, com as
quais serão instaurados procedimentos promocionais, por
empregador [...] Em caso do empregador ter mais de um
empreendimento carvoeiro em município diverso, o procu-
rador ficará prevento, mediante também compensação”. A
Procuradora-chefe Rosimara Delmoura Caldeira ao consi-
derar a decisão dos Procuradores do Trabalho da 24ª Re-
gião determino a abertura de procedimentos promocionais
por empregador, com base nas autorizações ambientais para
carvoejamento emitidas pelo Instituto de Meio Ambiente
de Mato Grosso do Sul- IMASUL.
O relatório da ação fiscal de 13 de dezembro de 2011
sobre a “CARVOARIA K” Comércio de Carvão Ltda., na
Fazenda Y, iniciou-se com a denúncia e constatação das
primeiras irregularidades por parte da Superintendência
Regional do Trabalho e Emprego-SRTE/MS. Foi emitida
a notificação para apresentação de documentos em 17 de
janeiro de 2012, sendo o mandato a regularização de todos
os trabalhadores da carvoaria, que no dia da inspeção fiscal
tinham vínculos irregulares com a empresa. Foram lavrados
Auto de Infração por manter os empregados laborando sem
registro, deixar de depositar mensalmente o porcentual ao

172
FGTS e pela não realização do exame médico admissional.
Em quanto às condições das áreas de vivência, alojamen-
to, instalações sanitárias, lugar de refeições e lavanderia, o
relato fiscal não reportou irregularidades naquela oportuni-
dade. Destaque-se que a licencia ambiental concedida pela
IMASUL à “CARVOARIA K” vai até 22 de julho de 2015,
segundo autorização n° 031/2010. Isto é, para o caso do
imóvel matriculada (há) 727,1434, cuja área de carvoaria
foi declarada de (ha) 1,68.

DESCUMPRIMENTO DO TAC
Durante a inspeção fiscal in loco realizada em 27 e
28 de novembro de 2012 nas fazendas Três Miradas e Nova
Barreiro constatou-se novamente muitas irregularidades na
atitude da empresa “CARVOARIA K”. O MPT atuou em
concordância com sua obrigação na busca da erradicação
do trabalho escravo e degradante e do submetimento de tra-
balhadores a situações vexatórias e antissociais. No caso
da Fazenda Y as irregularidades foram tipificadas como
descumprimento do TAC firmado em setembro de 2012.
Os Autos de Infração referem os tipos de violação que so-
freram os trabalhadores na fazenda Z, todos de naciona-
lidade paraguaia. Ao mesmo tempo os relatórios fiscais
descrevem as leis trabalhistas e normas regulamentadoras
do Ministério do Trabalho que foram violados. Constam
igualmente nos relatórios as funções que cada trabalhador
cumpria: carvoejador, carbonizador, operador de motosser-
ra, trabalhador florestal e cozinheiro. As fotos anexadas ao
relatório fiscal provam que as instalações e áreas de vivên-
cia, nas duas fazendas, são inadequadas e indignas para o
trabalhador e estão em aberta contravenção ao art. 13 da Lei
173
n° 5889/1973 e às normas de procedimentos legais para o
funcionamento de carvoarias em Mato Grosso do Sul.

ENTRE OS FORNOS E AS ÁREAS DE VIVÊNCIA


Outras duas visitas técnicas in loco foram realizadas
em 03 de julho de 2014 e 23 de setembro de 2014, por co-
mitivas periciais encabeçadas pelo procurador do trabalho
Dr. Cícero Rufino Pereira e componentes do Fórum de Tra-
balho Decente e Estudo sobre Tráfico de Pessoas (FTD-E-
TP), na Fazenda Y, Bela Vista/MS. Os objetivos de ambas
as vistorias foram as de “verificar as condições a que estão
sujeitos os trabalhadores, tudo em consonância com a le-
gislação trabalhista vigente, Lei 6.514, de 22 de dezembro
de 1977, regulamentada pela portaria 3.214, de 08 de junho
de 1978, do Ministério do Trabalho e Emprego”. Além das
verificações in situ, das entrevistas aos trabalhadores e com
o empregador da empresa “CARVOARIA K”, os registros
fotográficos representam evidencias inegáveis das condi-
ções de vida e de trabalho de como os trabalhadores para-
guaios, em situação de fronteira, foram vinculados à ativi-
dade de carvoejamento. Os registros de imagens mostram
que as áreas de vivência já são precárias e colidentes com
as leis trabalhistas. Muito mais chocantes são às condições
nas áreas dos fornos, nas que os trabalhadores paraguaios se
vêm obrigados a aguentar as duras condições de trabalho.
A atividade já é por si própria de submetimento da força
de trabalho do ser humano a graus fatigantes ou extenuan-
tes. Porém, convêm assinalar que os registros fotográficos
mostram evidencias das atividades indecentes e análogas
à escravidão, pela inexistência de condições de segurança,

174
salubridade e proteção. Somadas aos salários injustos, a
violação dos direitos humanos e a perda da dignidade dos
trabalhadores estão claramente provadas.
Em relação à Fazenda “X”, município Caracol/MS,
cabe destacar que obteve licencia ambiental para carvoeja-
mento do IMASUL em 05 de novembro de 2008, com dois
anos de validade. Embora, em julho de 2014, em ocasião
da visita técnica realizada na fazenda Y, obedecendo a de-
núncias encaminhadas para o Fórum do Trabalho Decente
e Estudo sobre Tráfico de Pessoas (FTD-ETP), o dono da
carvoaria, “BELTRANO DE TAL”, informou que na Fa-
zenda “X” Caracol/MS não se tem atividade de carvoeja-
mento desde 2008. Na mesma ocasião disse também que
os recrutamentos de trabalhadores paraguaios da cidade
gêmea Bella Vista, lado paraguaio para Bela Vista/MS é
mais fácil “pois a mão de obra brasileira é muito escas-
sa”. Na mesma oportunidade, o empresário manifestou que
“4 trabalhadores (3 paraguaios e 1 brasileiro) responsáveis
pela operação de motosserra estão em curso de 3 dias na
Fazenda “ETC”. (...)
Destaca-se na análise do presente caso, o qual se
refere à carvoaria localizada em fazenda do município de
Bela Vista/MS (fronteira com a cidade-gêmea de Bella Vis-
ta Norte, no lado paraguaio, separadas apenas por uma pon-
te de aproximadamente 100 m de cumprimento, sobre o Rio
Apá), a existência de trabalho escravo (tráfico de pessoas)
envolvendo trabalhadores paraguaios. Portanto é uma mo-
dalidade de tráfico transnacional de pessoas, o qual para ser
coibido exige políticas públicas internacionais comuns ao
Brasil e ao Paraguai, sob pena de não se alcançar efetivida-
de no enfrentamento ao tráfico de pessoas, nessa região de

175
fronteira (o que vale, certamente, para outras zonas frontei-
riças internacionais, diante da peculiaridade que a fronteira,
seja qual for a localização de seu espaço físico geográfico,
possui), vitimando trabalhadores imigrantes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo demonstrou que o tráfico inter-
nacional de pessoas é um crime e uma ofensa aos Direitos
Humanos e Direitos Fundamentais, bem como à dignidade
da pessoa humana.
Nas regiões de fronteira, ante as características e es-
pecificidades próprias e diferenciadas que tais regiões pos-
suem, a migração pode facilitar a ocorrência de trabalho
escravo do imigrante.
Ao se analisar as características em geral da fron-
teira, têm sido observados os “circuitos da ilegalidade” que
permeiam a questão fronteiriça, Machado (2000), após ob-
servar o crescimento de atividades ilegais, em países pobres
e também nos ricos, propõe linha de argumentação no senti-
do de que o aumento da sensibilidade de estados nacionais e
organismos internacionais em relação às atividades ilegais
deriva da situação duvidosa das leis e normas que regem as
atividades legais.
E arremata a festejada autora: “a antiga demarcação
entre legal (bem) e ilegal (mal) transformou-se numa ‘zona
cinzenta’ caracterizada por decisões conflitantes sobre o uso
do estatuto de legalidade/ilegalidade tanto no espaço global
como nos espaços nacionais”. A conclusão a que se chega é
que surgem grandes espaços com fronteiras flutuantes, das

176
quais emergem fenômenos sociais, em função das proprie-
dades estruturais das redes que se formam e para as quais
o estatuto da legalidade/ilegalidade erigido a partir de cada
Estado não tem validade, exceto por pressão ou negociação
(MACHADO, 2000).
O enfrentamento ao tráfico de pessoas, na modalida-
de trabalho escravo, passa, necessariamente, pela cobrança
das entidades públicas e privadas, no sentido que o II Pla-
no Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e o II
Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo sejam
aplicados e replicados, diuturnamente, pelas entidades res-
ponsáveis para tanto.
É muito importante que a implementação efetiva
dos instrumentos de atuação das entidades, a partir da
Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas
seja divulgada e debatida na imprensa escrita, televisiva,
sem esquecer o amplo papel dos programas de rádio, nesta
questão, por terem a capilaridade suficiente para alcançar os
mais longínquos rincões do Brasil.
É de importância capital que todos os governos
estaduais e municipais, com apoio do governo federal, na
região de fronteira, tenham especial cuidado e atenção,
bem como responsabilidade ética e social, para trilhar
o caminho da implantação de equipamentos, pessoal
capacitado e estrutura (inclusive econômica) para que
Postos Humanizados de Atendimento ao Migrante e Postos
Especializados de Documentação Migratória-PEDOM,
principalmente, mas não apenas, para que o documento
de identificação de fronteiriço e/ou permisso, bem como
documento equivalente, que permita a circulação e o
trabalho na fronteira emitido pela Polícia Federal, além do
177
Cadastro de Pessoa Física – CPF - emitido pela Receita
Federal, Carteira de Trabalho e Previdência Social – CTPS
- de Fronteiriço ou equivalente, emitida pelo Ministério do
Trabalho e Emprego, e Cartão Nacional de Saúde – CNS –
emitido pela Secretaria de Saúde de cada município, além
de qualquer outro documento que seja necessário, para o
trabalho fronteiriço, decorrente de legislação internacional,
do MERCOSUL e/ou brasileira.
Em nível de MERCOSUL e Estados associados
deve ser divulgado e utilizado, cotidianamente o Acor-
do de Residência do MERCOSUL e associados (Decreto
6975/2009), sendo que o mesmo tem que ser desburocra-
tizado, excluindo-se as taxas que ali constam sob pena de
que tal valioso instrumento jurídico não tenha efetividade,
pois os imigrantes, principalmente os fronteiriços, não têm
condições de arcar com qualquer tipo de custo econômico.
Toda e qualquer autoridade que de alguma forma
atue ou possa vir a atuar na região de fronteira precisa ser
treinada replicando-se o conhecimento para, ao se deparar
com situações clássicas que possam vir a indicar caso de
tráfico de pessoas, saiba a acionar as entidades públicas e
privadas competentes para o enfrentamento do tráfico hu-
mano.
Nesse diapasão, a implementação da política públi-
ca retratada na nova lei de migração (Lei n 13. 445/2017),
na nova lei do tráfico de pessoas (Lei nº13.344/2016) e no
Protocolo e Recomendação de 2014 à Convenção 29 da
OIT, são imprescindíveis para o enfrentamento ao tráfico de
pessoas, na espécie trabalho escravo, que vitima trabalha-
dores migrantes (inclusive, nos casos estudados, imigrantes
paraguaios), na região de fronteira (sendo objeto, do pre-
178
sente trabalho, a zona de fronteira entre Brasil, cidades de
Mato Grosso do Sul, e Paraguai).

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so Penal), e o Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de
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182
SUBJUGANDO MENTES E IN-
TERCAMBIANDO CORPOS:
BREVES CONSIDERAÇÕES
SOBRE A DINÂMICA DO TRÁ-
FICO DE SERES HUMANOS
NA ATUALIDADE

Valdir Aragão do Nascimento∗


Álvaro Banducci Júnior∗

INTRODUÇÃO
O tráfico e comércio de seres humanos não constitui
novidade na história da humanidade. Entre os gregos e os
romanos, por exemplo, fazer escravos, homens e mulheres,
e negociá-los em praças públicas como bens econômicos
era costume desde o início das guerras. Muitas das incur-
sões guerreiras eram, inclusive, desencadeadas com o obje-
tivo de capturar indivíduos para executar trabalhos braçais,
considerados pouco dignos, principalmente na Grécia anti-
ga, de cidadãos livres (TEIXEIRA; ALMEIDA, 2015).
Fenômeno que vem recrudescendo assustadoramen-
te nas últimas décadas, o tráfico de pessoas para os mais di-
versos fins tem se destacado atualmente pela complexidade
de suas motivações e pela dinâmica de suas ações diretas e
indiretas. A atividade ilícita, imoral e degradante de traficar
seres humanos envolve o deslocamento, sem o consenti-
mento ou conhecimento da vítima e à revelia do controle
estatal, de pessoas entre fronteiras internacionais ou mesmo

183
dentro dos limites de um país – movimentação esta que tem
por objetivo a sujeição e exploração de corpos nas mais di-
versas atividades e para os mais diversos fins.
O aumento do fenômeno social em questão está in-
dissociavelmente relacionado às transformações ocorridas
na sociedade global, notadamente naquelas sociedades em
que a globalização e suas consequências estão mais osten-
sivamente presentes e nas quais os fluxos migratórios são
mais frequentes. Uma constatação em relação à globaliza-
ção é que ela intensifica as relações entre as sociedades em
escala mundial, aproximando e interligando localidades, a
partir de diferentes modalidades de conexões, tornado-as
suscetíveis a influências mútuas (GIDDENS, 1999). A glo-
balização, como tal, engendra e oportuniza as mais diversas
formas de comunicação entre os povos, propiciando a troca
acelerada de informações e de tecnologias e facilitando a
migração de contingentes populacionais expressivos.
O problema, segundo a Organização Internacional
do trabalho (OIT, 2006, p. 17) é que a globalização é causa
principal do aumento do tráfico de pessoas, dada a “desre-
gulamentação do mercado de trabalho” que promove. Tal
fenômeno localiza-se nas transformações havidas na dinâ-
mica da concorrência econômica entre nações, sempre em
disputas por mercados consumidores e por barateamento de
custos de produção de bens e serviços, cenário perfeito para
a exploração de seres humanos, premidos muitas vezes pe-
las inarredáveis e imediatas necessidades de sobrevivência,
mas também por tantas outras necessidades que ultrapas-
sam a questão material e se encontram nas esferas psíquicas
e individuais que geralmente motivam as ações humanas.

184
A liquidez de fronteiras, entendida não como seu fim
ou recrudescimento, mas como a intensificação dos fluxos
que por elas perpassam, trazem inúmeras consequências
de caráter sociocultural, político e econômico para as so-
ciedades envolvidas. Matizados pelo intercâmbio de bens,
pessoas e conhecimentos, os deslocamentos humanos ao
mesmo tempo em que promovem o incremento socioeco-
nômico de algumas sociedades, beneficiadas, entre outros
aspectos, pelo advento da força de trabalho e dos bens de
baixo custo, também segregam e relegam muitos grupos à
miséria absoluta e à exploração desenfreada (BAUMAN,
1999).
Nesses fluxos e travessias de limites territoriais o
que se perde – se é que um dia se teve – é o controle do que
é intercambiado, seja do domínio do material ou do imate-
rial. A bem da verdade, por mais que os Estados queiram
impor seus limites, os territórios fronteiriços não são ou
nunca foram de todo intransponíveis. Estes, de uma manei-
ra ou de outra, são cruzados legal ou ilegalmente através
dos fluxos e capilaridades presentes e inerentes às inúmeras
inter-relações que as nações são obrigadas pelas circunstân-
cias impostas pela globalização a estabelecer entre si, seja
por questões econômicas ou socioculturais.
O incremento do fluxo mundial de bens e pessoas é
seguido – quando não decorre diretamente – do crescimento
alarmante das desigualdades sociais. A mobilidade huma-
na em proporções nunca vistas; o trânsito de refugiados de
guerras, da fome e da inexistência de perspectivas constitui
o testemunho e a condição para o aumento da exploração
dos economicamente vulneráveis pelos economicamente
privilegiados, exploração que assume cada vez mais con-

185
tornos sádicos e perversos em que explorar indiretamente
os corpos dos despossuídos através do trabalho escravo já
não é suficiente.
Tal fato pode ser percebido através dos indicadores
sociais dos países fornecedores de corpos para o consumo e
dos países consumidores. Nessa análise, verificar-se-á que
entre os países que importam e os que exportam seres hu-
manos há uma diferença abissal no que diz respeito ao de-
senvolvimento socioeconômico.
O tráfico de seres humanos está associado em gran-
de medida à exploração da prostituição de mulheres, de tra-
vestis e de transgêneros, além de crianças e de adolescentes
economicamente vulnerabilizados e/ou vítimas de violên-
cia doméstica ou de conflitos familiares para eles incontor-
náveis (LAKY DE SOUSA, 2014; LEAL, 2002). No Brasil,
estudos mostram que a glamourização da vida em países
desenvolvidos e a ideia enganosa de ganhos fáceis fora do
país, inclusive mediante o ingresso e participação em re-
des criminosas, estimulam as pessoas a migrar em busca
de uma vida social e economicamente mais favorável. Do
mesmo modo, não é raro encontrar prostitutas, travestis ou
transgêneros que alimentam o sonho romântico e ingênuo
de se casarem com europeus e poderem desfrutar de even-
tuais benesses e serviços a que têm direito os cidadãos natu-
ralizados, dentre outras motivações (BRASIL, 2011).
No tocante às crianças em particular, os objetivos do
tráfico são ainda mais desumanos e bizarros: o tráfico de ór-
gãos e tecidos humanos. Mas também podem ser aduzidas
razões como adoções ilegais, exploração sexual, trabalho
escravo, trabalho doméstico, mendicância e tráfico de en-
torpecentes. As crianças e adolescentes, dependendo da fai-
186
xa etária, podem ser aliciadas pela internet, negociadas por
pais e responsáveis inescrupulosos ou mesmo raptadas à luz
do dia. Não é por menos que, em Moçambique, crianças
que vivem em bairros rurais próximos à capital, Maputo,
correm a se esconder quando percebem a aproximação de
carros conduzidos por brancos. Elas são orientadas pelos
pais a evitar se aproximarem e a se protegerem de agentes
brancos, comumente aliciadores de crianças para o trabalho
escravo em países vizinhos.
Outra modalidade recentemente percebida de tráfi-
co de pessoas é o tráfico de desporto. Este se caracteriza
pelo aliciamento de jovens de outros países, China e Japão,
por exemplo, para se aventurarem em terras brasileiras em
busca de oportunidades de sucesso na carreira de jogador
profissional de futebol. A tática de ação adotada pelos trafi-
cantes explora a fama do Brasil em relação a essa modalida-
de esportiva, criando a ilusão de que aqui as oportunidades
seriam bem maiores que em outros países, dada a propa-
lada e mítica excelência do país no que tange ao futebol
enquanto esporte, bem como o sucesso que uma carreira
nessa área pode gerar àqueles que conseguem se destacar, a
exemplo de vários profissionais da área oriundos de terras
brasileiras. Os jovens esportistas são trazidos ao Brasil com
a promessa de ganhar dinheiro e fama com o futebol, mas
aqui chegando seus passaportes são retidos pelos aliciado-
res e o dinheiro que suas famílias enviam é confiscado pelos
membros da quadrilha (BRASIL, 2013).
Mas como é a dinâmica do tráfico pelas fronteiras
do Brasil e do mundo? Como ele é possível diante das inú-
meras barreiras legais impostas a todos para sair e/ou entrar
nos territórios de muitos países? Seguramente a entrada ou

187
saída é franqueada por táticas e estratégias exploradas pe-
los traficantes, oportunizadas em sua maioria pela corrup-
ção que se espalha pelas mais diversas instituições do País,
desde os cartórios até as esferas político-econômicas mais
elevadas do Estado e dos governos que o representam.
O presente trabalho buscou apresentar de maneira
sucinta um panorama das táticas e estratégias utilizadas pe-
los traficantes de seres humanos que atuam nas fronteiras
do Brasil, bem como o papel desempenhado por funcioná-
rios públicos e outros representantes oficiais da esfera do
poder estatal na dinâmica do tráfico de pessoas. Para tanto,
foram coligidas e analisadas publicações em artigos, teses,
dissertações e documentos oficiais que tratam do tráfico de
pessoas em terras brasileiras e nos países com que o Brasil
divide limites territoriais.
O estudo tem por referencial teórico autores como
Michel de Certeau (1994), Michel Foucault (1987), James
Scott (1985) – dentre outros – e suas concepções sobre tá-
ticas, estratégias e o poder enquanto instrumento de ação
possível e passível de utilização por agentes sociais, inde-
pendentemente de sua posição na estrutura socioeconômica
de uma dada organização social.

DO PEQUENO PODER ÀS TÁTICAS E ESTRATÉ-


GIAS: CONCEPÇÕES TEÓRICAS
O entendimento a respeito da dinâmica do poder e
suas formas de execução está quase sempre relacionado às
estruturas estatais e aos detentores de capital econômico,
isto é, os ricos e o poder de manipulação e controle social

188
e político que deles emanam pela força do dinheiro. O po-
der, seja qual for sua expressão, é assim concebido como
prerrogativa par excellence de um indivíduo ou grupos or-
ganizados de indivíduos, o que pode ser percebido pelas
expressões classe dirigente, elite dominante, dentre outras
(MILLS, 1982; MOSCA, 1939).
Foucault (1997) desconstrói essa concepção clássica
de poder asseverando que o poder não se concentra em um
único agente, ou ainda em lugares específicos, não constitui
um monopólio; mas tem seu devir processual diluído por
todo o tecido social, circulando por ele e funcionando como
uma reação em cadeia. O poder não é, na concepção fou-
caultiana, algo que possa ser identificado neste ou naquele
lugar, não é prerrogativa de ricos e poderosos, ou mesmo
das instituições que estes controlam.
Assim,dentro do corpus teóricoproposto pelo au-
tor,os indivíduos através das malhas que tecem cotidiana-
mente, manipulam e operacionalizam o poder dentro do
universo de suas possibilidades, mas em contrapartida tam-
bém sofrem as ações do poder que porventura lhes sejam
antagônicas. Todo indivíduo é detentor de certo poder. Em
razão desse fato é veículo e portador de poder, ainda que em
escala diminuta, ainda que pequeno poder (FOUCAULT,
1997).
Inegavelmente, o poder é também uma fonte ines-
gotável de possibilidades de produção do social e do cul-
tural, funcionando muitas vezes como dínamo das relações
que se dão no interior da estrutura dessas categorias. A esse
fenômeno Foucault (1987) denominou de tecnologia do po-
der, em que é engendrada uma maquinaria complexa e mul-
tifacetada através da qual o poder é exercido. É no cerne
189
dessa maquinaria que as táticas às quais se refere De Cer-
teau (1994) são construídas e colocadas a serviço dos então
considerados desprovidos de poder.
As táticas e estratégias podem parecer categorias
sinônimas, mas teoricamente não o são, existindo diferen-
ças significativas entre elas. Nessa perspectiva, De Certeau
(1994) concebe táticas e estratégias de maneira dicotômi-
ca, isto é, num universo em que as forças são divididas e
posicionadas entre fortes e fracos, governantes e governa-
dos, dominantes e dominados. Nessa concepção, táticas e
estratégias não estão isoladas, em que pese à lógica binária
presente na teorização, mas estão intrinsecamente inter-re-
lacionadas, haja vista que se interpenetram na dinâmica
concreta de suas ações.
Para De Certeau (1994), as estratégias têm seu fun-
cionamento expresso a partir da somatória de conexões de
poderes de ação que detêm um determinado sujeito que
“[...] postula um lugar capaz de ser circunscrito como um
próprio e, portanto, capaz de servir de base a uma gestão de
suas relações com uma exterioridade distinta” (DE CER-
TEAU, 1994, p. 46). Uma explicação mais prosaica pode
deixar mais clara a concepção de De Certeau. Suponhamos
que determinado governo queira entrar em guerra contra
outro, convoca um oficial de alta patente e solicita-lhe uma
estratégia de ação. Este militar, antes do confronto propria-
mente dito, se reúne com seus subordinados e planeja sua
ação, sua estratégia. Assim, diante do planejado, espera-se
que os soldados façam tudo como o planejado. Aqui, os
acontecimentos estão pré-determinados e as relações ten-
dem a ser previsíveis. Nesse sentido, o poder se configura
em uma estratégia.

190
O mesmo não ocorre com a tática, ela não dispõe de
uma estrutura, de uma base a partir da qual possa operar,
tendo seu funcionamento dado pelo improviso. A tática é,
assim, totalmente sujeita aos desígnios do tempo e às vicis-
situdes presentes no contexto em que ocorre, sua ação se
dá no campo do imprevisto, da oportunidade inesperada. É
nessa conjuntura que se expressa o pequeno poder, circu-
lando entre os indivíduos e funcionando como uma malha
invisível, não obstante poderosa no que tange ao alcance de
seus objetivos (FOUCAULT, 1997).
Trata-se, na concepção de Foucault (1997, p. 182),
de apreender as emanações do poder nas suas margens mais
longínquas, em suas derradeiras ramificações, isto é, com-
preender o poder “nas suas formas e instituições mais re-
gionais e locais, principalmente no ponto em que ultrapas-
sando as regras de direito que o organizam e delimitam [...].
Em outras palavras, captar o poder na extremidade cada vez
menos jurídica de seu exercício”.
As táticas são conceituadas por De Certeau (1994)
como se fossem ações desviantes, que tenderiam a produzir
efeitos imprevisíveis. Táticas e estratégias são posiciona-
das, aqui, em lugares opostos; enquanto a primeira se carac-
teriza por modos diferenciados de fazer, a segunda se nota-
biliza pelo aspecto da imposição e da produção de sentidos
fixos oriundos das esferas do poder instituído.
Scott (1985), partindo de outra concepção teórica,
entende que as táticas e astúcias empregadas por aqueles
historicamente tidos como alijados de manifestação de po-
der podem ser interpretadas como ardilosos esquemas de
resistência; utilizados amiúde pelos indivíduos pertencen-
tes às categorias desprovidas de meios econômicos como
191
recursos para amenizar a exploração perpetrada pelos de-
tentores do poder. Dessa maneira, essa insubordinação
disfarçada, ou as armas dos fracos, emprega instrumentos
diversos em sua ação, tais como: dissimulação, deserção,
cumprimento falso, roubo, furto, ignorância fingida, calú-
nia, sabotagem, subserviência dissimulada, dentre tantas
outras (SCOTT, 1985, p. 16).
Tanto De Certeau (1994) quanto Scott (1985) con-
cordam com o fato de que os expedientes utilizados por
aqueles alijados do acesso aos mais diversos tipos de bens
e serviços, tanto os materiais quanto os imateriais, são
instrumentos, armas, que facultam o acesso a esses bens
e serviços subvertendo a ordem estabelecida pelos donos
do poder, seja ele econômico, político, social ou cultural.
Desse modo, os indivíduos envolvidos na simbólica disputa
pelo poder circundante acabam produzindo a realidade so-
cial em toda a sua complexidade dialética, atuando a partir
dos espaços de poder aos quais se encontram circunscritos
pelos mesmos instrumentos cognitivos oriundos desses es-
paços (BOURDIEU, 2011). Assim, “[...] a posição ocupada
no espaço social – isto é, na estrutura da distribuição das
diferentes espécies de capital, que são também armas – go-
verna as representações desse espaço e as atitudes adotadas
nas lutas para conservá-lo ou transformá-lo” (BOURDIEU,
2011, p. 27).
As táticas, assim pensadas, são fruto da inventivi-
dade, da agência dos indivíduos diante de um poder basea-
do na composição de leis pré-fixadas, ainda que elaboradas
para dirimir injustiças sociais e coibir crimes de toda sorte.
No caso em apreço, essas táticas têm sua dinâmica marcada
pelo desrespeito e desprezo aos seres humanos, mas não

192
deixam de ser táticas oriundas do cotidiano das manifesta-
ções culturais ordinárias, espaços em que se desenvolvem
os fazeres e as apropriações de poder daqueles histórica e
sociologicamente desprovidos de capacidade de produção.
Desse modo, o funcionamento das táticas tem sua
dinâmica nas brechas estruturais deixadas pelas estratégias.
As táticas contam com o concurso daqueles que detêm o pe-
queno poder para operacionalizar suas ações, de motoristas
de caminhão e ônibus interestaduais até pilotos de avião,
dentre outros grupos de trabalhadores insuspeitos, que po-
dem fazer parte das táticas engendradas pelos traficantes de
toda ordem, inclusive os de seres humanos.
No caso do tráfico de pessoas através das frontei-
ras, o que se tem são as táticas elaboradas pelos trafican-
tes operando no seio da estrutura das estratégias erigidas
pelo Estado brasileiro no que tange ao controle de entrada
e saída dos limites territoriais do País. Desse modo, é per-
feitamente plausível considerar que, em certos casos, tática
e estratégia se configuram pela interdependência, matizada
pela frequente tensão sempre ratificada e remodelada no
universo estrutural das experiências sociais e individual-
mente vividas.

O TRÁFICO DE PESSOAS NO BRASIL: O PRESEN-


TE REPETINDO O PASSADO
A definição de tráfico de seres humanos é bastan-
te complexa e marcada por certa instabilidade no que diz
respeito ao real contingente de indivíduos vitimados pelos
traficantes. Um desses problemas localiza-se na detenção

193
de imigrantes ilegais nas fronteiras, estes, de acordo com
Chapkis (2006), figuram em grande parte dos relatórios ofi-
ciais como se estivessem sendo traficados. No entanto, a
entrada ilegal de pessoas em qualquer território não deve
ser interpretada pura e simplesmente como tráfico de seres
humanos, a julgar pelo fato de que o tráfico de pessoas só se
caracteriza como tal se houver, depois de transpostos os li-
mites fronteiriços, coerção, fraude ou emprego de força que
obriguem os indivíduos a qualquer forma de exploração ou
de abuso (KEMPADOO, 2005; MURRAY, 1998).
Atualmente, a conceituação do que seja o tráfico de
pessoas perpassa por categorias como recrutamento, trans-
porte, transferência, alojamento e/ou o acolhimento de pes-
soas, utilizando ameaças psicológicas e/ou o emprego da
força e da violência física. Somam-se a esses expedientes
o concurso de tantas outras maneiras de coação, a fraude, o
rapto, a condição de vulnerabilidade das vítimas, bem como
o ato de entregar e/ou aceitar pagamento ou qualquer outro
benefício na intenção de obter o consentimento de um de-
terminado indivíduo – que porventura detenha algum tipo
de autoridade sobre outra pessoa – para fins de exploração
(BRASIL, 2011; PALERMO, 2000).
Conforme o texto do Protocolo de Palermo, a explo-
ração tem de incluir, necessariamente, a exploração sexual
de outras pessoas, como a prostituição e/ou formas outras
de se obter vantagem de atividades sexuais por outrem rea-
lizadas com fins lucrativos, além “do trabalho ou serviços
forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a
servidão ou a remoção de órgãos” (PALERMO, 2000, Art.
3º).

194
No Brasil e no mundo existem inúmeras instituições
criminosas que, além do tráfico de entorpecentes e de ar-
mas, também se dedicam ao tráfico de pessoas, tendo em
vista o grande percentual de lucro que a atividade encerra.
São organizações complexas que têm sede e filiais ao redor
do globo, agindo em vários países com o objetivo de ali-
ciar, conduzir, escravizar, “[...] e até ceifar a vida de pessoas
que, na maioria das vezes, desconhecem os riscos a que se
submetem ao aceitar promessas de melhoria de vida traba-
lhando fora de sua comunidade, de sua região e até mesmo
de seu país” (MONGIM, 2013, p. 213).
As vítimas em geral são contatadas em localidades
carentes de recursos e desassistidas pelo Estado, notada-
mente em países em desenvolvimento econômico, dentre
esses o Brasil figura como um dos maiores fornecedores.
Mas a pobreza não explica sozinha toda a dinâmica envol-
vida no processo de tráfico de seres humanos no mundo.
Em verdade, muitas são as causas fundantes do tráfico in-
ternacional de seres humanos no mundo, tais como “[...] a
ausência de direitos, ou a baixa aplicação das regras inter-
nacionais de direitos humanos; a discriminação de gêne-
ro, a violência contra a mulher; a pobreza e a desigualdade
de oportunidades e de renda; a instabilidade econômica, as
guerras, os desastres naturais e a instabilidade política” (JE-
SUS, 2003, p. 19).
No caso do Brasil, soma-se a esses problemas a
questão da grande extensão territorial e as muitas fronteiras
com outros países, o que dificulta sobremaneira o controle
do fluxo de pessoas. A exemplo de outros países, o pro-
blema do tráfico de seres humanos se deve aos seguintes
fatores:

195
[...] a baixa escolaridade do povo, os gritan-
tes níveis de pobreza e o hiato entre os mais
ricos e os mais pobres; a falta de perspectiva
de vida das pessoas pertencentes às classes
menos favorecidas; a facilidade com que os
estrangeiros chegam, se alojam e constituem
seus negócios no país; [...] a utilização do ca-
samento como meio de regularizar a presen-
ça de estrangeiros em nosso território e como
instrumento de captação de confiança da víti-
ma (BRASIL, 2004, p. 16).

Historicamente, o tráfico de seres humanos no terri-


tório brasileiro foi uma constante, desde o tráfico de africa-
nos capturados e trazidos ao país em condições subumanas
para servirem de mão de obra nas lavouras canavieiras até a
recente exploração de bolivianos e outros povos nas indús-
trias têxteis da grande São Paulo (ALENCASTRO, 2000;
TIMÓTEO, 2011). Atualmente, o tráfico de seres humanos
no Brasil constitui uma das mais vantajosas atividades ilíci-
tas a ser explorada pelos traficantes, configurando a tercei-
ra maior fonte de renda desses criminosos – só tem menor
rentabilidade do que o tráfico de armas e drogas (BRASIL,
2011).
O Ministério da Justiça brasileira tornou pública
uma pesquisa em que detalha as principais modalidades e
rotas de tráfico de pessoas no Brasil. O estudo, denomina-
do de Diagnóstico sobre Tráfico de Pessoas nas Áreas de
Fronteira, foi realizado pela Secretaria Nacional de Justi-
ça, órgão do ministério e publicado em 2013. O trabalho
coletou e coligiu uma gama considerável de informações
por meio de investigações empreendidas ao longo de cinco

196
anos por CPI’s em vários parlamentos, inquéritos policiais
e reportagens. Outros métodos de prospecção de dados tam-
bém foram utilizados, tais como entrevistas com membros
de entidadesgovernamentais e não governamentaisque li-
dam cotidianamente com a realidade da exploração de se-
res humanos em todas as suas formas, foram entrevistados
ainda vítimas e seus familiares (BRASIL, 2013).
Nesse trabalho foram feitos levantamentos e diag-
nósticos de identificação sobre as rotas de tráfico de pes-
soas, com o objetivo de distinguir os destinos das vítimas, a
origem, sua trajetória durante o processo de deslocamento
e a modalidade de tráfico ao qual a vítima foi incluída para
ser explorada. No Brasil, identificaram-se tanto itinerários
de entrada de indivíduos vindos do exterior e de cidades do
interior para serem explorados nas grandes cidades, como
trajetos percorridos por brasileiros traficados para outras
nações com o mesmo objetivo.
A pesquisa identificou também novas modalidades
de tráfico de seres humanos, além das classicamente co-
nhecidas e tidas como modalidades mais comuns de trá-
fico - exploração sexual e trabalho em regime análogo à
escravidão, verificadas em praticamente todos os estados
fronteiriços – foram observados casos em que crianças ti-
nham sido adotadas em cidades do interior para servirem de
trabalhadoras domésticas nos estados do Amazonas, Pará,
Rondônia, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Em outros
estados como Roraima, Pará, Amapá, Mato Grosso do Sul,
Rio Grande do Sul e Paraná foram identificados casos em
que pessoas eram utilizadas para servirem de“mulas” para
o tráfico de drogas e outras substâncias proibidas (BRASIL,
2013).

197
Na cidade de Porto Murtinho, Mato Grosso do Sul,
conforme a referida pesquisa, uma modalidade de explora-
ção de pessoas até então desconhecida foi identificada pela
prefeitura local. Nesse caso em particular, crianças indí-
genas da etnia Ayoreo, oriundas do Paraguai, costumavam
atravessar a fronteira para mendigar nas ruas da cidade,
sendo assim exploradas nessa atividade de mendicância por
adultos também indígenas. Denúncias foram verificadas a
respeito de indígenas trabalhando em regime análogo ao es-
cravo nas lavouras da região Norte e Sul do País.
Empresários paranaenses ligados ao ramo de es-
portes, especificamente o futebol, foram denunciados por
explorar atletas adolescentes sul-coreanos, utilizando-se
de expedientes como os expostos anteriormente nesse ca-
pítulo. Na área do esporte, mais propriamente no domínio
do futebol, o Brasil tem se constituído em grande exporta-
dor de atletas, os chamados “pés de obra”, tanto masculi-
nos quanto femininos. O deslocamento desses jovens para
países europeus e para os Estados Unidos ocorre mediante
redes informais, no caso das mulheres (PISANI, 2016), ou
grandes esquemas de importação de talentos (RIAL, 2008).
Mas, o que interessa ressaltar é que, mesmo os jogadores
que circulam no interior dos circuitos organizados, vivem,
no dizer de Rial (2008, p. 59), “[...] em zonas e bolhas ins-
titucionais que os protegem e os controlam, mediando suas
relações com o mundo exterior, [...] onde o local tem um
impacto reduzido em suas vidas”. Os jovens atletas, por
mais que tenham reconhecidos e valorizados seus talentos,
não costumam gozar de autonomia no país de destino, “cru-
zam fronteiras geográficas sem entrarem em países, pois
suas fronteiras são os clubes e não os países” (Idem, p. 59).

198
EXPLORANDO O PEQUENO PODER: MOTIVA-
ÇÕES, TÁTICAS E ESTRATÉGIAS DO TRÁFICO
DE SERES HUMANOS NO BRASIL
Ainda que a motivação do crime de traficar pessoas
ao redor do mundo pareça bastante similar, é necessário en-
fatizar que aqueles países que apresentam maior potencia-
lidade de proliferar essa prática têm razões muitas vezes
bastante peculiares, considerando-se as condicionantes so-
cioculturais de cada região. Não obstante, o dinheiro obti-
do pela atividade é o principal atrativo. São bilhões (US$
150.2 bilhões para sermos exatos) de dólares gerados to-
dos os anos pela indústria do tráfico de seres humanos em
todo o mundo, como observado pela pesquisa levada a cabo
pelo Global Financial Integrity (GFI, 2017) e publicada em
2017.
Esse montante de dinheiro deixa uma pergunta no
ar: como fazem os traficantes para esconder, ou lavar, toda
essa fortuna? A resposta está nos fluxos e intercâmbios
oportunizados e gerenciados pelas táticas a que recorrem os
traficantes para aliciar pessoas-chave dentro das organiza-
ções bancárias e das instituições de fiscalização sob a res-
ponsabilidade dos Estados. Para tanto, a corrupção é uma
das táticas mais usadas pelos traficantes (UNODC, 2016).
No entanto, o Estado brasileiro vem envidando es-
forços no que tange ao combate ao tráfico de seres humanos,
apresentando em seu ordenamento jurídico alguns avanços
em relação à questão. Até 2016, a legislação brasileira só
previa punição aos casos transitados em julgado em que o
tráfico de mulheres tinha como objetivo a exploração sexual,
tipificada como crime pelo Código Penal Brasileiro nos ar-
tigos 218-B, 228 e 229 (GRECO, 2015), não contemplando
199
até então as outras modalidades de tráfico de pessoas como
crime. A situação mudou com a Lei 13.344/2016, sanciona-
da em outubro daquele ano pelo Presidente da República,
com vigência a constar da data de 21 de novembro de 2016
(CUNHA; BATISTA, 2016).
No que diz respeito às penas impingidas àqueles que
incorrem no crime de tráfico de pessoas, a lei supracitada
prevê a reclusão de quatro a oito anos e multa, além das
hipóteses agravantes e/atenuantes, que tendem a majorar e/
ou minorar o tempo de condenação dos apenados, conforme
ilustram os parágrafos 1º e 2º do artigo 149-A do referido
código penal (GRECO, 2017, p. 477):
§ 1o A pena é aumentada de um terço até a
metade se:

I - o crime for cometido por funcionário pú-


blico no exercício de suas funções ou a pre-
texto de exercê-las;

II - o crime for cometido contra criança, ado-


lescente ou pessoa idosa ou com deficiência;

III - o agente se prevalecer de relações de


parentesco, domésticas, de coabitação, de
hospitalidade, de dependência econômica, de
autoridade ou de superioridade hierárquica
inerente ao exercício de emprego, cargo ou
função; ou

IV - a vítima do tráfico de pessoas for retirada


do território nacional.

§ 2o A pena é reduzida de um a dois terços

200
se o agente for primário e não integrar
organização criminosa.

Contudo, diante dessa conjuntura em que os Estados


endurecem suas políticas punitivas e reforçam o controle de
suas fronteiras, o que se vê é o refinamento das táticas dos
traficantes no sentido de subverter as estratégias das nações
no que diz respeito ao tráfico de seres humanos. Essa, por
assim dizer, sofisticação da criminalidade, utiliza-se dos
avanços tecnológicos para viabilizar suas práticas crimi-
nosas. A internet, por meio das redes sociais, tem sido um
dos meios pelos quais os traficantes de pessoas têm aliciado
adolescentes com intenção de explorá-los de diversas for-
mas.
Conforme dados da Fundação Scelles (2012), as re-
des sociais como Facebook e Twitter são as mais utilizadas
pelos traficantes para aliciarem vítimas mais jovens, prin-
cipalmente estudantes que nutrem o sonho de morar fora
do País. A tática geralmente é a mesma, falsas promessas
de trabalho com oportunidades de salário muito acima do
oferecido nos países mais carentes economicamente. As ví-
timas são convencidas a viajarem para os destinos onde se
encontrarão com seus supostos empregadores, lá chegando
se defrontam com uma realidade totalmente diferente.
As pessoas aliciadas pelo tráfico conseguem entrar
nos países de destino através de passaportes falsos e com
visto de turista. As atividades dos traficados são disfar-
çadas com atividades como o agenciamento de modelos,
babás, garçonetes ou dançarinas. Outras vezes se utilizam
de empresas de intercâmbio cultural e/ou ensino de línguas
para justificar a entrada de pessoas em determinados países.
Toda essa dinâmica funciona a partir dos contatos mantidos
201
entre os traficantes e indivíduos que ocupam postos nos sis-
temas legais tanto do Brasil quanto do exterior.
O tráfico de seres humanos guarda em si caracte-
rísticas, fatores e circunstâncias causais. Dentre esses as-
pectos, destacam-se a globalização e a pobreza; a escassez
de empregos; vicissitudes políticas, econômicas e civis em
territórios marcados por conflitos; trânsito de indivíduos in-
documentados; turismo sexual; corrupção de funcionários
públicos; violência doméstica e preconceito em relação ao
gênero. No que se refere a esses dois últimos aspectos, pes-
quisas recentes, que enfatizam a problemática de gênero no
estudo das migrações, têm revelado desde uma inserção di-
ferenciada de homens e mulheres no mercado de trabalho,
até um conjunto complexo e distinto de fatores estimulado-
res da emigração, que extrapolam as tradicionais explica-
ções de ordem econômica nas motivações desse fenômeno.
Em seu estudo sobre migração internacional de mulheres
brasileiras, Assis (2007, p. 751) indica que, para além das
motivações econômicas, mulheres migram “por rompimen-
to com sociedades discriminatórias”, impulsionadas, dentre
outros, por problemas conjugais e a violência física, a dis-
criminação contra grupos femininos ou a ausência de opor-
tunidades para as mulheres.
As táticas dos traficantes para realizar suas ativida-
des perpassam por diversos setores da sociedade brasileira,
principalmente às relacionadas às instâncias legais e aos es-
paços de poder. Assim, os traficantes aliciam funcionários
de cartórios, para obter certidões de nascimento e outros
documentos necessários para comprovar filiação; subornam
policiais das esferas municipais, estaduais e federais; dentre
outros tantos funcionários que podem de alguma maneira

202
auxiliar no processo de traficar pessoas pelas fronteiras do
Brasil.
Explorando a miséria e, em alguns casos, a ambição
de suas vítimas, os traficantes oferecem oportunidades de
trabalho com altos ganhos a meninas e meninos brasilei-
ros economicamente vulneráveis. Para pagar os custos da
viagem, essas pessoas têm de trabalhar um período para o
grupo até juntar o dinheiro necessário para viajar. No caso
do trabalho com prostituição, o tempo dessa contribuição
gira, geralmente, em torno de seis meses, em que 60% da
quantia auferida pela prática são repassadas aos traficantes
de seres humanos (TORRES; COSTA, 2011).
Os aliciadores são indivíduos com aguçada capaci-
dade de perceber e explorar a seu favor as fraquezas huma-
nas, trabalho que fica muito mais fácil em países nos quais
a carência material é a regra. Quando nessas regiões, pro-
curam aqueles locais mais desassistidos pelo poder públi-
co, em que grassam a miséria, a desinformação e sobram
sonhos de sucesso e glamour que geralmente têm seu lu-
gar em terras estrangeiras, paisagens exuberantes e estilo
de vida hedonista. São esses desejos que são alimentados
pelos aliciadores, criando assim a irreal, mas crível, possi-
bilidade de ascensão social e econômica para aqueles que
sabem que de onde estão, as chances são muito pequenas ou
mesmo inexistentes.
O aliciamento se dá de várias formas. No caso das
mulheres, estas são abordadas em festas, ensaios de escola
de samba, concursos de beleza, boates, dentre outros luga-
res. As mulheres são seduzidas por promessas em que fi-
guram a possibilidade de ter uma carreira no ramo da dan-
ça, da moda ou outra ambição pessoal que a vítima deixa
203
entrever nas conversas que o aliciador mantém com elas
antes de começar seu trabalho. Em algumas vezes a viagem
é custeada pela própria vítima, outras a rede de tráfico pro-
videncia tudo, de passagens a passaportes, alegando ser um
investimento inicial nas suas futuras funcionárias ou clien-
tes, como alguns costumam nomear suas vítimas (COSTA,
2012).
Quando chegam ao destino, percebem pouco a pou-
co – ou às vezes de maneira abrupta e contundente – que
foram ludibriadas e se encontram em situação de explora-
ção. O primeiro passo dos traficantes é reter o passaporte de
suas vítimas, que assim ficam impossibilitadas de voltarem
ao seu país de origem. O segundo passo é deixá-las sob
vigilância constante, evitando que entrem em contato com
pessoas falantes do mesmo idioma que porventura frequen-
tem o local em que as mulheres estejam sendo exploradas,
evitando desse modo que possam pedir socorro aos clientes
(SANI, NUNES, CARIDADE, 2015).
Depois de aliciadas e de pagarem a quantia determi-
nada, as vítimas do tráfico de pessoas são embarcadas para a
Europa e outras regiões do mundo. Para tanto, os traficantes
contam com o auxílio de uma rede criminosa que envolve
em suas atividades vários profissionais, geralmente empre-
gados em lugares estratégicos em que existe a possibilidade
de – através de documentos fraudulentos – facultar a saí-
da do país sem problemas burocráticos. Aqui, as táticas se
imiscuem às estratégias erigidas pelo Estado para organizar
a entrada e saída de pessoas nas fronteiras de seu território.
O sistema organizado pelo Estado é subvertido, isto
é, perde sua eficácia em relação ao objetivo proposto em
determinada instância, no caso o controle de corpos e seus
204
movimentos. Assim, a tática consiste em aliciar funcioná-
rios geralmente mal remunerados e/ou descontentes com as
perspectivas futuras de sua carreira, ou mesmo indivíduos
cuja ambição é maior que sua integridade moral. Nisso, as
estratégias dos países são falhas no que diz respeito aos
cuidados em relação à intransponibilidade de seus limites.
Gastam-se milhões com a aquisição de equipamentos sofis-
ticados de segurança, câmeras e treinamento de vigilantes;
todavia se esquecem do instrumento mais importante nessa
estrutura: as pessoas. Estas não são esquecidas pelos tra-
ficantes, que como tática de ação descobrem fraquezas e
exploram desejos de consumo desses indivíduos – desejos
geralmente inalcançáveis pela via do trabalho que execu-
tam cotidianamente.
O traficante funciona assim como um passante, um
atravessador, um contrabandistaque “desafia as fronteiras e
limites estabelecidos”,eatravessa coisas e pessoas. O trafi-
cante de seres humanos é um oportunista e, diante das bre-
chas deixadas pelas estratégias, elabora suas táticas de ação
e convencimento, agindo sempre na contramão da ordem
instituída. É na desordem da ordem, em suas insuspeitadas
fímbriasque, “frente às imposições objetivas colocadas em
seu caminho, ele cria atalhos, desloca certezas e subverte o
status quo” (OHARA, 2012, p. 454).
O tráfico e seus representantes exploram, a bem da
verdade, os pequenos poderes que detêm alguns indivíduos
no cerne das organizações de controle. São guardas, por-
teiros, operadores e auxiliares invisibilizados pela pouca
importância atribuída às suas atividades laborais, mas que
conhecem a fundo a dinâmica das operações nas quais estão
envolvidos, o que lhes faculta a posse do pequeno poder ao

205
qual se refere Foucault (1997) no seu célebre texto Micro-
física do Poder. É esse poder que as táticas dos trafican-
tes buscam cooptar. Um poder que funciona sem alardes,
imperceptível em suas potencialidades, mas extremamente
perigoso em suas ações e consequências.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diversos e diversificados são os aspectos sociocul-
turais, socioeconômicos e históricos, dentre outros, que
compõem a teia em que está enredado o tráfico de seres hu-
manos, tal como este se dá a conhecer atualmente. Outrora
restrito à exploração sexual e do trabalho, hoje se espraia
pelas mais variadas atividades em que os seres humanos
possam se constituir objetivo e objeto, assumindo assim
contornos tão sutis que por vezes se tornam quase indetec-
táveis. A globalização, em que pese os benefícios tecnoló-
gicos que enseja, é fenômeno intrínseco à problemática do
tráfico de seres humanos. São muitos e complexos os des-
dobramentos por que passaram esse tipo de crime ao longo
da História, desembocando no cenário globalizante e mul-
tifacetado da atualidade, cenário esse que faculta o trânsito
de bens, capitais e serviços de forma bastante fluida; o que
facilita sobremaneira o comércio ilegal de seres humanos
em escala mundial.
O tráfico de pessoas pelas fronteiras do Brasil, e do
mundo, é um problema muito mais complexo do que se
imagina. Especificamente no caso das fronteiras brasileiras
existe a noção ingênua de que aparatos policiais e endure-
cimento das medidas legais são estratégias suficientes para
coibir o tráfico na fronteira, seja ele qual for, notadamente

206
diante da enorme extensão territorial do País. Muito mais
que ações militares e políticas de combate à imigração ile-
gal se faz necessário políticas de integração entre as nações
fronteiriças.
Há muito já se provou que barreiras físicas e políti-
cas de contenção de entrada de imigrantes não têm efetivi-
dade no controle do tráfico em todas as suas manifestações.
Países como os Estados Unidos investem bilhões na tenta-
tiva de manter longe de seus territórios imigrantes oriundos
de todas as partes do planeta, mas os números em relação
ao contingente de imigrantes ilegais só aumentam, dando
provas da falência das políticas que privilegiam a constru-
ção de muros, cercas e outras tantas formas paliativas de
contenção (VILA, 2003).
As ações em relação ao combate ao tráfico de seres
humanos devem, sim, ser parte da preocupação dos órgãos
governamentais. As fronteiras têm de ser patrulhadas, vi-
giadas e na medida do possível tornadas intransponíveis pe-
los traficantes e todos aqueles cujas intenções sejam clara-
mente prejudiciais aos interesses das nações. Não obstante,
essas ações têm de ser pensadas de forma conjunta entre os
governos dos países envolvidos. Como evitar que um país
que praticamente vive da produção e distribuição de drogas
para além de suas fronteiras respeite de forma efetiva trata-
dos de cooperação mútua de combate ao tráfico?
A miséria é o principal motivo do aumento do tráfi-
co atualmente, já mencionam as diversas pesquisas realiza-
das por órgãos nacionais e internacionais em todo mundo.
Deixar um país em busca de uma vida melhor é também
uma atitude política, é uma declaração de insatisfação com
as condições de vida oferecidas. É essa miséria que é ex-
207
plorada pelas redes de tráfico de seres humanos ao redor do
globo.
O Brasil se notabilizou entre os países da América do
Sul como aquele que reúne, em que pese às inúmeras maze-
las político-sociais aqui existentes, as melhores condições
econômicas e os melhores índices de desenvolvimento, ob-
viamente se comparado a alguns de seus vizinhos. Portan-
to, caberia a ele procurar elaborar estratégias que pudessem
promover o desenvolvimento econômico desses países eco-
nomicamente mais fragilizados. Se fossem investidos os R$
470 milhões destinados à manutenção do Sistema Integrado
de Monitoramento de Fronteiras (Sisfron) (BRASIL, 2017)
em políticas públicas de desenvolvimento da economia em
faixas de fronteira, talvez se pudesse pensar em diminuição
do tráfico de seres humanos e entorpecentes oriundos de
países vizinhos.
O tráfico de seres humanos é, inegavelmente, um
dos mais sérios problemas da atualidade em todo o mun-
do, exigindo dos poderes constituídos atitudes enérgicas
na tentativa de prevenir e controlar tanto a oferta quanto
a demanda de seres humanos passíveis de exploração, seja
qual for a modalidade. Mas as ações têm também de pas-
sar pela elaboração de políticas que tenham como objetivo
a diminuição das desigualdades sociais e econômicas que
propiciam a existência do tráfico de seres humanos, tendo
em conta que são as fragilidades econômicas e sociais alia-
das à ausência total ou escassez sazonal de oportunidades
as razões causais mais perceptíveis da existência e do recru-
descimento do tráfico internacional de seres humanos.

208
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20 ago. 2017.

215
216
A PROTEÇÃO INTERNACIO-
NAL AOS REFUGIADOS NO
BRASIL: O CASO DO ESTADO
DE MATO GROSSO DO SUL48
César Augusto S. da Silva49

INTRODUÇÃO
Os fluxos migratórios internacionais mais recentes,
particularmente do deslocamento forçado de refugiados50
vêm ganhando centralidade mundial, encontrando-se na
pauta da agenda política das principais nações do sistema
internacional, visto que conforme o ACNUR (o Alto Co-
missariado das Nações Unidas para Refugiados), e seu re-
latório “Tendências Globais” de 2016 há pelo menos 65, 6
milhões de pessoas sendo forçadas a se deslocar no mundo
seja por motivos de guerras, conflitos armados, desastres ou
perseguições de todos os tipos, um número sem precedentes
na história humana recente51.
48 Texto originalmente apresentado no 41º Encontro Anual da ANPOCs, de
23 a 27 de outubro de 2017, em Caxambu-MG. GT- Migrações Internacionais,
Estado, Controle e Fronteiras.
49 Professor da Faculdade de Direito da UFMS e do Mestrado Interdisciplinar
Fronteiras e Direitos Humanos da FADIR-UFGD. Doutor em Ciência Política
pela UFRGS.
50 Pessoas que devido a fundados temores de perseguição encontre-se fora de
seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal
país; ou devido à grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado
a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país (Artigo
1º da Lei 9.474/1997). Lei que incorporou a Convenção de Genebra de 1951,
da Organização das Nações Unidas, e a Declaração de Cartagena de 1984, no
âmbito das Américas.
51 Disponível em http://www.unhcr.org/5943e8a34 . Acesso em 20/08/2017.

217
Nas palavras de Samir Nair (2016, p. 3):
Trata-se da maior catástrofe humanitária des-
de a Segunda Guerra Mundial, colocando
diante das sociedades europeias, os gover-
nos e a consciência ética de todos, questões
essenciais sobre a solidariedade humana, o
respeito aos direitos humanos e a crença nos
princípios e valores da Europa como comuni-
dade civilizada.
Sob qualquer perspectiva, esses números e as ten-
dências globais apontadas pelo relatório desse organismo
da Organização das Nações Unidas são inacreditáveis, evi-
denciando mais do que nunca uma necessidade imperiosa
de respostas e soluções conjuntas na prevenção e na reso-
lução das crises que produzem refugiados no mundo con-
temporâneo. Destaque para a Síria, Afeganistão e Sudão
do Sul, como os países onde mais ocorrem os fluxos migra-
tórios forçados, e com 84% dos deslocados encontrando-se
nos países em desenvolvimento (ACNUR, 2017).
Somente no Brasil conforme os últimos relatórios
do CONARE (o Comitê Nacional para Refugiados) existem
cerca de quase dez mil refugiados, e quase 35 mil pedidos
de solicitantes de refúgio esperando para serem analisados
– fruto do acúmulo dos anos anteriores, gerando um cresci-
mento de 2.868% nas solicitações de refúgios nos últimos
anos. Ainda assim, o país é um daqueles com menores ín-
dices de imigrantes internacionais, incluindo os refugiados,
em todo o planeta, visto que não chegam a 2% da população
integral do Brasil, participando de forma periférica dos mo-
vimentos migratórios internacionais (SILVA, 2015).

218
Conforme a Organização Internacional das Migra-
ções (OIM), as estatísticas e as tendências são semelhantes
às apontadas no relatório do ACNUR: em torno de 1 bilhão
de pessoas são migrantes ao redor do mundo, sendo 1 em
cada 7 pessoas encontrando-se como migrante. Até o final
de 2015, o mundo possuía 14,4 milhões de refugiados sob o
mandato do ACNUR e outros 5 milhões sob administração
da Agência da ONU para Refugiados Palestinos (UNRWA),
perfazendo um total de 19 milhões de refugiados. Sendo
que a Turquia e o Paquistão haviam se tornado os principais
países de destino dos refugiados (OIM, 2015, p.8).
Um fenômeno contemporâneo enquanto conse-
quência de uma sistemática cultura de violência generali-
zada, das violações maciças de direitos humanos, de várias
perseguições ou razões combinadas, praticamente existindo
em todos os lugares do mundo, o que acaba por produzir
refugiados, solicitantes de refúgio e deslocados internos.
Visto que pessoas migram de maneira forçada por diversos
motivos combinados, naquilo que é conhecido por migra-
ções internacionais mistas (SILVA, 2015).
Daqueles refugiados regularmente aceitos pelos
governos dos Estados, apenas 8,4% encontram-se nos paí-
ses do continente europeu. Pois, a maior parte deste con-
tingente de refugiados encontra-se nos países vizinhos da
origem dos grandes fluxos migratórios. Ou seja, nos países
periféricos do sistema internacional, com alguns dos países
mais pobres do mundo recebendo mais da metade dos re-
fugiados do mundo. Em outros termos, África do Sul, Pa-
quistão, Turquia, Palestina, Jordânia e Líbano, em conjunto
recebem mais de 12 milhões de refugiados (56% do total),
enquanto que Alemanha, China, Estados Unidos, França,

219
Japão e Reino Unido, globalmente suportam 2,1 milhões de
refugiados, perfazendo um percentual de 8,88% do total52.
Ou seja, uma distribuição extremamente desigual
dos refugiados entre os países componentes do sistema in-
ternacional, com os países periféricos e de menor potencial
econômico recebendo e integrando a maior parte dos so-
licitantes e refugiados do mundo. A crise internacional de
refugiados parece ter alcançado seu apogeu pelo fato dos
deslocados forçados alcançarem em grande número os paí-
ses europeus e as potências do Ocidente, no entanto ela já
estava presente nos países vizinhos às grandes crises migra-
tórias há muito tempo, conforme revelam os recentes rela-
tórios tanto do ACNUR como da OIM.
No contexto das Américas, a Declaração de Carta-
gena de 1984, que recentemente comemorou 30 anos por
meio de uma reunião comemorativa em Brasília, que aca-
bou por produzir a Declaração do Brasil de 2014, considera
a “violação generalizada dos direitos humanos”, como uma
das hipóteses fundamentais para a solicitação de refúgio.
Logo, com este aumento vertiginoso de refugiados no con-
texto global, percebe-se que em vários Estados nacionais os
direitos de seus cidadãos não são respeitados e se produz
uma sistemática violação, os quais então solicitam proteção
de outros Estados que se disponham a acolhê-los.
E o Brasil é um desses países que vem buscando
destaque, ao aumentar o recebimento e acolhimento pelo
menos no plano dos discursos oficiais53. Por meio de sua
52 Disponível em http://www.projetocolabora.com.br/fotogaleria/geografia-do
-refugio. Acesso em 03.09.2016.
53 Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2016/09/1814695-em
-painel-da-onu-temer-defende-que-paises-nao-criminalizem-a-migracao.shtml
. Acesso em 20/10/2016.

220
legislação específica, ainda ao final do século XX, foi cria-
do o Comitê Nacional para Refugiados (CONARE), um or-
ganismo ligado ao Ministério da Justiça, responsável por
analisar e aprovar as solicitações de refúgio, tendo recebi-
do um considerável aumento nas solicitações entre 2010 e
2016. Além disso, existindo uma grande variedade de or-
ganizações não governamentais espalhadas pelo território
nacional que oferecem uma mínima assistência e proteção
aos migrantes e refugiados, normalmente ligados á Igreja
Católica (IPEA, 2016).
Por ser um país com dimensões continentais, o Bra-
sil acaba por receber uma razoável quantidade de migrantes
internacionais por suas fronteiras secas. E no caso especí-
fico do estado do Mato Grosso do Sul, estes municípios de
entrada são conhecidos como locais de passagem, tais como
as cidades de Ponta Porã, Dourados, Corumbá, Porto Mur-
tinho, Mundo Novo, bem próximos da fronteira com Para-
guai e Bolívia.
Por esse motivo, existe uma dinâmica de mobilida-
de humana nestas cidades advindas da região fronteiriça,
particularmente na fronteira entre Pedro Juan Caballero
(Paraguai) e Ponta Porã (Brasil), e nas cidades de Corumbá
e Dourados, principalmente migrantes da América Latina
(bolivianos, paraguaios e haitianos), e dentre estes se en-
contram potenciais refugiados e solicitantes de refúgio.
Este texto exibe uma breve análise histórica do mo-
vimento de proteção aos refugiados na região latino-ameri-
cana, e a atual situação brasileira neste contexto, e por fim,
centraliza sua análise no caso específico da região Centro
-Oeste e no Estado do Mato Grosso do Sul. O texto tem
como base a política migratória brasileira, com uma abor-
221
dagem normativa e de ciência política. Os resultados apre-
sentados ainda são parciais e buscam expor uma incipiente
política estadual existente para o auxílio e o recebimento
dos imigrantes internacionais, refugiados ou não, particu-
larmente com a recente criação do Comitê para Migrantes,
Refugiados e Apátridas, do Estado (CERMA).
Com essa finalidade, foi realizado um rápido le-
vantamento bibliográfico nacional e internacional, além de
análise de documentos, enquanto consultas e entrevistas ao
recém-formado Comitê Estadual para Migrantes, Refugia-
dos e Apátridas no Estado (CERMA), uma coleta de dados,
com base em documentos oficiais, e uma análise dos resul-
tados alcançados até o presente momento.

O ESTADO DO MATO GROSSO DO SUL: MIGRAN-


TES E REFUGIADOS E A MOBILIDADE HUMANA
O Mato Grosso do Sul possui uma longa faixa de
fronteira com dois outros países da América do Sul, ou seja,
com o Paraguai e a Bolívia, com 44 municípios do Esta-
do situando-se nesta faixa de fronteira (BRASIL, 2011). O
Estado é eleito como destino final para alguns migrantes,
mas, com maior frequência, serve apenas como estado de
passagem para outros em direção a centros econômicos
maiores, tais como São Paulo, Rio de Janeiro ou Curitiba,
em sua maioria de nacionalidade paraguaia ou boliviana e,
em menor escala, para haitianos, colombianos, bengalis e
africanos de forma geral (IPEA, 2015, p. 90).
As tendências e as estatísticas de até metade de
2017, da Polícia Federal, contabilizavam 22. 280 imigran-

222
tes internacionais devidamente inseridos no Sistema Nacio-
nal de Cadastramento e Registro de Estrangeiros (SINCRE)
– não havendo distinção desse número referente aos méto-
dos de entrada utilizados pelos indivíduos -, o que coloca o
estado do Mato Grosso do Sul na sétima posição no ranking
do IBGE que estabelece a quantidade de estrangeiros por
estados no País.
A cidade de Ponta Porã, fronteira com a cidade
paraguaia de Pedro Juan Caballero, formando um único
aglomerado geoeconômico e social, consideradas cidades
gêmeas (ALMEIDA, 2017, p. 33), por exemplo, tem uma
população estrangeira expressiva, com cerca de 3,5% do
total da população da cidade, dos quais em torno de 2.500
são paraguaios. O que reforça o conceito de mobilidade hu-
mana naquela região fronteiriça, evidenciando a flutuação
desta população, e demonstrando que a modernização da
lei brasileira para migração era claramente evidente (Lei
13.445/2017). O município de Ponta Porã possui pouca in-
fraestrutura e, poucas condições de atendimento de saúde
e à educação aos fluxos migratórios advindos do país vi-
zinho, sofrendo de verdadeira sobrecarga de atendimento,
considerando a população fronteiriça de ambos os países
(ALMEIDA, 2017, p. 33).
Aliás, os serviços de saúde e educação na faixa de
fronteira entre Brasil-Paraguai e Brasil-Bolívia não corres-
ponde às regras estritas do direito internacional entre os
países. O relativo livre trânsito de pessoas nos municípios
fronteiriços atrai às unidades de saúde nas cidades de Co-
rumbá e Ponta Porã uma demanda de estrangeiros e tam-
bém de brasileiros não residentes no País. As desigualdades
marcam e condicionam particularmente as ações de saúde

223
e educação, com uma integração da população fronteiriça
dos países vizinhos de forma a sobrecarregar um ou outro
(AMARAL, COIMBRA, 2013, p. 33-35).
A faixa de fronteira naquela região configura-se
como uma das menos desenvolvidas historicamente do
Brasil, quase deixada de lado pelo Estado ao longo do tem-
po, marcada por enormes dificuldades de acesso a bens e
serviços públicos, pela falta de estrutura, pela ausência de
coesão social e questões peculiares da fronteira (FIGUEI-
REDO, 2013, p.41) que acabam afetando aos migrantes.
Essas questões peculiares focam-se no fato de que
é uma das fronteiras mais violentas e perigosas do terri-
tório brasileiro, ocorrendo as maiores apreensões de con-
trabando, de drogas e outras atividades criminosas ligadas
ao narcotráfico, o que marginaliza indistintamente seus ha-
bitantes, estabelecendo estigmas para os fronteiriços (MA-
RIN, VASCONCELOS, 2003, p. 153), e dificultando sobre-
maneira a vida e os serviços aos imigrantes internacionais.
Por outro lado, na fronteira com a Bolívia, estabeleceu-se
um fluxo de bengalis que atravessam o Peru e a Bolívia e
entram no Brasil por Corumbá por meio de “coiotes”, os
atravessadores que exploram a mobilidade humana interna-
cional (SILVA, NICOLAU, 2017).
No final de 2012, uma operação da Polícia Rodo-
viária Federal (PRF) deixou mais de 20 pessoas detidas, as
quais foram levadas à Polícia Federal de Corumbá com a
finalidade de deportação (ENAFRON, 2013, p. 129-130).
Devido à falta de informação, apenas alguns bengalis e, em
menor quantidade, somalis solicitaram o visto humanitário
ou o instituto do refúgio.

224
Informações coletadas pelo Instituto de Migrações
e Direitos Humanos (IMDH) e pelo IPEA nos municípios
de Campo Grande, Ponta Porã, Corumbá e Dourados, iden-
tificaram diversas lacunas nas políticas públicas estaduais,
municipais, falta de estrutura de acolhimento e na ação dos
agentes de fronteira, tais como ausência ou insuficiência de
recursos humanos capacitados para trabalhar com o fluxo
migratório nos órgãos estaduais e municipais, além da falta
de reconhecimento da sociedade civil sobre a problemáti-
ca das migrações internacionais no âmbito estadual e mu-
nicipal. Uma ausência de abordagem pautada nos direitos
humanos por parte de instituições públicas, dificuldade na
compreensão e aplicabilidade de uma “perspectiva de di-
reitos humanos” no tratamento de pessoas em estado vulne-
rável que cruzam as fronteiras (IPEA, 2015).
E é contraditório que não se veja os aspectos positi-
vos que a migração internacional pode trazer para os países
acolhedores. Ainda que em um contexto de crise econômica
e política, o Brasil e, consequentemente, o Mato Grosso do
Sul, poderiam beneficiar-se da presença constante de novos
estrangeiros, migrantes internacionais que trazem suas ex-
periências, sua cultura e sua força de trabalho.
Tanto o país de destino como o país de origem po-
dem simplesmente transformar em fatores de desenvolvi-
mento aos migrantes e suas atividades: remessas de lucros,
diáspora de conhecimentos, associações para o crescimento
(WENDEN, 2013, p. 48). Permitindo assim também trazer
soluções para as necessidades de mão de obra e de cresci-
mento demográfico para as regiões com problemas nesse
sentido. Nas palavras de Wenden (2013, p. 48), trata-se de
“uma estratégia de ganhador-ganhador-ganhador entre os

225
países de destino, os países de origem e os próprios migran-
tes”.
Ou seja, em uma análise mais aprofundada e no lon-
go prazo para questão migratória, pode-se inferir que mi-
grantes e refugiados trazem contribuições substanciais para
a economia e a sociedade local, mesmo enfrentando obstá-
culos de toda ordem no mercado de trabalho, que somente
serão superados através da especialização das instituições
públicas responsáveis (IMF, 2016, p. 16). Para Leah Za-
more,
[...] os refugiados trazem capital humano,
ideias e habilidades que os moradores locais
podem não ter, aceitam trabalhos que locais
não aceitariam. [...] E, quando podem, trazem
consigo dinheiro, recursos e conexões. O Lí-
bano tem um milhão de refugiados sírios – no
país, uma entre quatro pessoas é refugiada –,
e está tendo o maior crescimento econômico
desde 2010. Um estudo recente mostrou que
os salários médios na Turquia aumentaram,
embora dois milhões de refugiados sírios te-
nham entrado no país. [Também] Para países
cujas populações estejam envelhecendo, re-
fugiados podem ampliar a mão de obra dis-
ponível (BBC BRASIL, 2015).
Segundo os dados do IPEA (2015, p. 91) e da Po-
lícia Federal há um recente fluxo de haitianos e africanos
se deslocando dentro do Mato Grosso do Sul em direção a
cidades como Rio Brilhante, Aquidauana, Porto Murtinho,
Dourados, Itaquiraí e Três Lagoas, atraídos pela possibili-
dade de trabalho em carvoarias, frigoríficos, usinas de cana
226
e de álcool, além de subempregos de forma geral. Os efeitos
criados no mercado de trabalho se estabilizam paralelamen-
te à intensificação do processo de integração dos refugiados
com a sociedade local e através da alocação desses refugia-
dos onde suas competências são mais necessárias (OECD,
2015, p. 01), para além da questão humanitária.
A demanda por maior atuação e fiscalização para
combater práticas de exploração de imigrantes em trânsito
culminaria (como já referido), na criação do Comitê Esta-
dual para Refugiados, Migrantes e Apátridas, recentemente
inaugurado, com o objetivo principal de amparar indiví-
duos que cheguem ao estado através de áreas fronteiriças
ou advindos de outros Estados (SILVA, NICOLAU, 2017).
O projeto é encabeçado pela Secretaria Estadual de Direi-
tos Humanos, Assistência Social e Trabalho (SEDHAST) e
pretende delimitar um padrão de atendimento estadual para,
posteriormente, influenciar a criação de comitês locais,
obtendo uma ampla rede especializada de comunicação e
atendimento.
Conforme esta mesma Secretaria54, o Mato Gros-
so do Sul dentre os mais de vinte e dois mil estrangeiros,
apresenta mais de vinte mil dentre refugiados e migrantes
vivendo em todo o Estado, sendo a maioria advinda dos
países vizinhos (Paraguai e Bolívia), além do Japão (a co-
munidade japonesa é significativa), da Síria (refugiados) e
do Haiti, embora um contingente não estimado desses imi-
grantes internacionais, cruzam o território sul-mato-gros-
sense com o objetivo de chegar a outras partes do Brasil.
54 Disponível em: http://www.sedhast.ms.gov.br/grupo de trabalho-aprova-di-
retrizes-para-criação-do-comitê-estadual-do-migrante-e-refugiado. Acesso em
11/04/2016.

227
Conforme os dados da Polícia Federal, cujo sistema
de registro é mais amplo, pois capta também os temporários,
em torno de 2,2% da população do Estado são imigrantes
internacionais, com mais de 60% de todos estes imigrantes
residentes concentrando-se nas cidades de Campo Grande,
Ponta Porã, Corumbá, Dourados e Três Lagoas, com uma
tendência rápida de crescimento. As nacionalidades mais
recorrentes são de paraguaios, bolivianos, japoneses e es-
sencialmente haitianos, como temporários ou residentes.
Como já destacado antes, os haitianos atraídos por ativi-
dades econômicas nos frigoríficos (Dourados e Itaquiraí),
usinas de cana e de álcool, e nas fábricas (Três Lagoas – fá-
bricas ligadas ao grupo Votorantim e a JBS)55.
Por exemplo, os migrantes haitianos moram em gru-
pos, com familiares e amigos, pela baixa condição financei-
ra, e como estratégia para dividir o aluguel. O idioma foi
uma das barreiras a serem superadas, posteriormente ofere-
cidas de forma gratuita pela Universidade Estadual do Mato
Grosso do Sul (em Campo Grande) e pela Universidade Fe-
deral da Grande Dourados (em Dourados).
Essa nacionalidade apresenta de forma geral grande
dificuldade para entender a legislação trabalhista brasileira,
mas trabalham em sua maioria na construção civil, na pavi-
mentação de estradas (em Campo Grande), além de frigorí-
ficos, fábricas e usinas de cana e álcool no interior do Esta-
do (ALMEIDA, 2017, p. 62). O processo decisório para sua
regulamentação no país e integração apresenta/apresentou
grandes dificuldades em termos de documentação e solu

55 Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/reda-


cao/2017/01/10/nordestinos-e-haitianos-buscam-trabalho-e-cidade-do
-ms-dobra-populacao.htm . Acesso em 25.03.2017.

228
ções temporárias para situações urgentes. O que não é mui-
to distinto da situação dos refugiados propriamente ditos,
visto que uma grande parte dos haitianos também solicitou
refúgio no país, assim que chegaram, entrando seja pelas
fronteiras do Norte seja pelas fronteiras do Centro-Oeste.
Visto que conforme o ACNUR, a região Centro-Oes-
te é uma das regiões do país recebe um número expressivo
de solicitações de refúgio, logo atrás do Sudeste e do Sul.
Porém, apesar de sua posição de destaque, os estados que
compõem a região Centro-Oeste não possuíam até pouco
tempo atrás comitês estaduais ou municipais para migran-
tes, apátridas e refugiados. Assim, a importância de uma
recente iniciativa do governo do Estado do Mato Grosso
do Sul, em setembro de 2016 e que passou a funcionar nor-
mativamente em agosto de 2017, de criar um comitê desta
natureza aos moldes de São Paulo, Paraná, Rio Grande do
Sul, Rio de janeiro ou Minas Gerais.
Além desta situação, é possível analisar que dentre
os imigrantes que entram pelo estado de Mato Grosso do
Sul e passam por suas cidades fronteiriças, há um número
evidentemente relevante de potenciais refugiados, que mui-
tas vezes, não são identificados ou sequer passaram pelas
unidades de controle migratório, tendo em vista a “porosi-
dade” das fronteiras (JARDIM, 2017), incluindo haitianos.
Ou seja, as delegacias da Polícia Federal (DELEMIGs),
particularmente em cidades como Corumbá, Dourados ou
Ponta Porã - MS, portas de entrada de grande parte dos mi-
grantes, pois cidades um pouco mais estruturadas na região
fronteiriça.
Devido à falta de organismos estaduais para o aco-
lhimento dos solicitantes de refúgio nessas localidades, o
229
trabalho de assistência se concentra nas mãos de organi-
zações não governamentais, e também nas entidades mu-
nicipais. A cidade de Dourados, por exemplo, está inseri-
da neste contexto, uma vez que a mesma está localizada
à aproximadamente 120 km da fronteira paraguaia, muito
próximo da cidade de Ponta Porã-MS. Como não há uma
instituição estadual específica para este tema no município,
os processos de acolhimento, e de encaminhamento aconte-
cem no âmbito municipal, através de políticas que incluem
o atendimento aos imigrantes de todos os tipos.
Em Dourados-MS, o Centro de Referência Especia-
lizada para População em Situação de Rua, popularmente
conhecido como Centro POP, realiza seus trabalhos desde
julho de 2012, porém seu ponto fixo de atendimento foi
oficialmente inaugurado em maio de 2014. O centro tem
como público os indivíduos em situação de rua, o que in-
clui os moradores de rua da cidade, e também os migrantes
internacionais que passam por Dourados, uma vez que os
mesmos não possuem uma moradia.
Segundo os dados oficiais do Centro, no ano de
2014 foram atendidos em torno de 468 imigrantes pela ins-
tituição, uma média de 68 indivíduos por mês. Os usuários,
em sua grande maioria são homens (429) com idade acima
de 20 anos. E no ano de 2015, em torno de 39 mulheres
passaram pelo Centro. A instituição não trabalha com aten-
dimento para menores desacompanhados (SILVA; MAR-
QUES, 2015, p. 52).
E é importante esclarecer, que os números apre-
sentados englobam todos os tipos de migrações, inclusive
o deslocamento de brasileiros de uma região do país para
outra. As maiorias dos imigrantes recebidos são haitianos,
230
paraguaios, uruguaios, bolivianos, africanos em geral (ge-
ralmente somalis, nigerianos, eritreus) e libaneses (SILVA;
MARQUES, 2015, p. 52).

O COMITÊ ESTADUAL PARA REFUGIADOS, MI-


GRANTES E APÁTRIDAS DO MATO GROSSO DO
SUL
Assim, conectado com estas necessidades, após uma
audiência pública na Assembleia Legislativa realizada em
dezembro de 2015, o governo do Estado do Mato Grosso do
Sul criou o Comitê Estadual para Refugiados, Migrantes e
Apátridas (CERMA-MS) através do Decreto n. 14.558, de
13 de setembro de 2016, no âmbito da Secretaria de Estado
de Direitos Humanos, Assistência Social e Trabalho (SE-
DHAST), com o objetivo de estabelecer políticas públicas
voltadas para esta população presente na região. Uma enti-
dade ativa cujo foco deve ser oferecer orientação e capaci-
tação para os agentes públicos que lidam com este público,
promovendo ações específicas e coordenando iniciativas
de atenção e defesa dos migrantes, apátridas e refugiados
presentes no Mato Grosso do Sul, de modo que encontrem
condições socioculturais mais propícias, de integração,
bem como facilidade para compartilhar suas experiências
com brasileiros e outros estrangeiros.
No resto do Brasil, destaca-se o contato dos demais
comitês estaduais com o poder público federal e municipal,
procurando soluções duradouras e a inclusão desta popula-
ção nas políticas públicas existentes, ou criando específicas.
Assim como a participação em diagnósticos participativos
realizados anualmente pelo ACNUR em que migrantes,

231
refugiados e solicitantes de refúgio trocam experiências e
identificam as necessidades e os desafios para sua prote-
ção, integração e capacidade de autosustentação; bem como
propostas de soluções e melhorias nas ações de proteção e
integração (IPEA, 2016, p. 148).
Sendo assim, as ações deste novo Comitê do Mato
Grosso do Sul deve basear-se em algumas destas diretri-
zes, como as experiências dos demais comitês, em torno
do desenvolvimento de algumas ações práticas específicas,
expostas no recente 1º Colóquio “Desafios e Perspectivas
das Migrações Hoje”, de preparação do CERMA, realiza-
do em 11 de agosto de 2017, em que os representantes do
ACNUR e do Instituto de Migrações e Direitos Humanos
(IMDH), demonstrando o que ocorre na realidade mundial
e nos demais estados brasileiros e as iniciativas em torno
da adoção de políticas públicas56. Uma exposição em tor-
no de questões tais como busca por criação de iniciativas
e projetos que valorizem a diversidade cultural e política
da comunidade migrante e refugiada presente no Estado,
com ênfase para o valor do capital social no marco de uma
cultura de tolerância e de diversidade no estado do Mato
Grosso do Sul.
Além disso, a execução de movimentos de vetor
transversal e vertical sobre o caráter de direitos humanos e
de direito internacional dos refugiados por parte de políticas
de atenção aos migrantes, apátridas e refugiados. Do mes-
mo modo que ampliação do conhecimento e de informação
disponível à população sobre a temática, bem como sobre

56 Disponível em: http://www.ms.gov.br/governo-de-ms-institui-co-


mite-estadual-para-refugiados-migrantes-e-apatridas/ . Acesso em
15/08/2017

232
culturas e realidades experimentadas nos países originários
dos refugiados, migrantes e solicitantes de refúgio.
O desenvolvimento de políticas de registro e de
identificação das regiões do Estado com maior demanda
e um mapeamento completo sobre cidades como Campo
Grande, Três Lagoas, Dourados, Ponta Porã e Corumbá,
onde se concentra uma relativa comunidade haitiana, síria,
paraguaia e boliviana, conforme a própria entidade57. De
modo que se possa garantir o acesso à educação, saúde e
reunião familiar para estas comunidades. A realização de
diagnósticos e prognósticos - como levantar dados de ma-
trículas de alunos migrantes, refugiados e solicitantes de
refúgio nas escolas do Estado do Mato Grosso do Sul, a fim
de identificar os municípios e regiões com maior e menor
concentração, seria uma particular estratégia.
A estratégia do Comitê também deveria buscar o
estabelecimento de diretrizes para a admissão e acesso às
escolas públicas da população migrante e refugiada (crian-
ças e adultos), disseminando-as para as escolas públicas
do Estado. Com a criação de material didático (cartilhas e
panfletos) para professores e diretores de escolas de ensino
médio e fundamental sugerindo temas e abordagens dentro
e fora de sala de aula para a atuação com alunos e com a
temática - baseados nas experiências positivas dos demais
comitês estaduais do país.
A busca por incrementar dinâmicas de trocas de ex-
periências entre a população local e os migrantes e refugia

57 Disponível em: http://www.ms.gov.br/governo-de-ms-institui-co-


mite-estadual-para-refugiados-migrantes-e-apatridas/ . Acesso em
15/08/2017

233
dos nos ambientes educativos. A busca pela autossuficiên-
cia de migrantes e refugiados no domínio do português para
tornarem-se educadores tanto de português como de suas
línguas nativas em classes especiais nas suas comunidades
ou mesmo nas escolas, de modo a qualificar todas as partes.
O fortalecimento de parcerias já estabelecidas com
universidades e centros universitários do Estado do Mato
Grosso do Sul (UFMS, UCDB, UEMS, UFGD) bem como
reconhecer novos potenciais colaboradores, com o objeti-
vo de ampliar a formação universitária dos refugiados, am-
pliando as vagas disponíveis para os refugiados e os esque-
mas de apoio financeiro para a condução e conclusão dos
estudos de graduação, seriam importantes mecanismos de
inclusão na sociedade local, tal como preconiza o governo
federal e o ACNUR (IPEA, 2016, p. 149).
A produção de cartilhas e documentos sobre os di-
reitos e benefícios destinados aos refugiados e solicitantes
de refúgio, incluindo informações sobre a legislação traba-
lhista, serviços de assistência social e previdenciária; bem
como documentos, procedimentos e exigências por eles
requeridos. O que seria também estratégico para o desen-
volvimento da comunidade de imigrantes internacionais
e de refugiados no Estado do Mato Grosso do Sul. Bem
como estabelecimento de programas de acompanhamento
tutorial, preferencialmente com a participação da iniciativa
privada, com a finalidade de apoiar de perto a inserção so-
ciocultural e econômica desses grupos.
A promoção, juntamente com as agências de aco-
lhida, de uma triagem dos refugiados e refugiadas que já
chegam ao país com boa qualificação profissional e promo-
ção de apoio jurídico necessário à validação dos diplomas
234
e apoio institucional para recolocação profissional, que tan-
tos problemas podiam superar no sentido da inclusão dos
estrangeiros no mercado de trabalho. Assim como estimu-
lar a criação de programas de crédito e microcrédito para
migrantes e refugiados, ou facilitar o acesso dos mesmos
aos programas já existentes, com a finalidade de estimular/
apoiar a abertura de novos empreendimentos ou ampliação
de seu negócio.
E finalmente, uma conexão mais próxima com um
pretenso Sistema Nacional de Refúgio, que iniciou sua
construção mais visível a partir do ano de 2015, ao final
do Governo Dilma Rousseff (2010-2016), ainda que hoje
sofra com certa instabilidade política e organizacional, por
conta da mudança de governo, além da sua histórica falta de
estrutura. Também com a Lei 9.474/97 e as especificidades
e direitos desta população, na busca por facilitar este pro-
cesso. Apesar das especificidades da população refugiada,
orientar educadores e instituições de ensino a que busquem
tratar imigrantes, incluídos refugiados, da mesma forma
que a população local.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os resultados da pesquisa ainda são parciais, tendo
em vista que o Comitê Estadual para Refugiados Migrantes
e Apátridas do Mato Grosso do Sul ainda está se implan-
tando, recém tendo sido inaugurado no ano de 2017. No
entanto, pode-se avançar em algumas linhas teóricas.
No contexto internacional de crise de deslocamen-
tos forçados sem precedentes na recente história da mobi-

235
lidade humana, com mais de 65 milhões de pessoas sendo
obrigadas a se deslocarem, a iniciativa do Estado do Mato
Grosso do Sul para constituir e fazer funcionar um Comi-
tê Estadual em consonância com a Lei 9.474/1997 e com
a recente lei de migração, é uma ação política distinta no
sentido de estabelecer políticas públicas para este grupo de
pessoas, presentes no Brasil, e no Estado.
Nesse sentido, há uma necessidade da construção de
um Comitê prospectivo, que tenha ligação com os muni-
cípios, com as autoridades federais e as organizações não
governamentais em prol da acolhida e integração das popu-
lações migrantes e refugiadas que vivam em toda a região,
encontrando meios para recepcionar e integrar os desloca-
dos na sociedade local, com ampla circulação de informa-
ções e propaganda positiva a respeito da temática da migra-
ção internacional e do refúgio, bem como facilidade para
compartilhar suas experiências com brasileiros.
Dentre as nacionalidades migrantes e refugiadas
presentes no Estado do Mato Grosso do Sul destacam-se os
latino-americanos que são os paraguaios, bolivianos (paí-
ses vizinhos do Mato Grosso do Sul), além dos haitianos
e argentinos. Também os japoneses, colombianos e sírios.
Praticamente todos eles se concentrando nas cidades de
Campo Grande (a capital), Ponta Porã e Corumbá (as cida-
des fronteiriças com Paraguai e Bolívia, respectivamente),
além de Dourados (a segunda maior cidade do Mato Grosso
do Sul – e onde se encontram frigoríficos e usinas de cana),
Itaquiraí (frigoríficos) e Três Lagoas (fábricas).
Os haitianos, colombianos e outros latino-america-
nos (além de africanos, em um número bem menor) atraídos
pelas possibilidades de trabalho e emprego em carvoarias,
236
frigoríficos, fábricas, usinas de cana e de álcool, além de
subempregos e de trabalho na economia informal.
Assim, a política estadual do Mato Grosso do Sul
para recepcionar, acolher e integrar esses migrantes e re-
fugiados deve estabelecer estratégias de parceria com en-
tidades governamentais e não governamentais no sentido
de publicização da situação de vulnerabilidade dessas po-
pulações, informação à opinião pública sobre os aspectos
positivos que imigrantes podem trazer as sociedades locais
- particularmente o enriquecimento cultural nas trocas de
experiências, o papel estratégico que podem exercer na
questão demográfica, no mercado de trabalho, na remessa
de lucros.
Nesse sentido, o Comitê Estadual do Estado do MS
pode aprender com os outros comitês estaduais ao redor do
Brasil, adotando semelhantes estratégias e compartilhan-
do experiências para essa questão social. Baseando-se em
diretrizes em torno do desenvolvimento de algumas ações
pragmáticas, tais como expostas no 1º Colóquio “Desafios
e Perspectivas das Migrações Hoje”, em que os represen-
tantes do ACNUR e do Instituto de Migrações e Direitos
Humanos (IMDH), de Brasília, demonstraram as suas ex-
periências e o “passo a passo” no atendimento aos migran-
tes e refugiados no sentido da acolhida e integração local.
Aprendizados quase sempre voltados para solução de pro-
blemas sobre documentação regulamentar, o aprendizado
do idioma local, as oportunidades de trabalho e emprego
nas cidades e no campo, recorrentes na situação de refugia-
dos e migrantes presentes no Brasil.
Os resultados parciais apontam na direção de que
é necessário o fortalecimento institucional e estrutural do
237
CERMA, ainda que o Mato Grosso do Sul não seja um
destino central para os migrantes e refugiados no Brasil.
Conexão com as autoridades federais de fronteira e com
as autoridades municipais, treinamento intensivo de seus
membros, participação pró-ativa da comunidade local e das
organizações não governamentais. Do mesmo modo que
produção de conhecimento especializado a respeito da si-
tuação de vulnerabilidade dos migrantes e refugiados pre-
sentes no Estado.

REFERÊNCIAS
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ção de Cartagena para Refugiados – Cartagena +30. Qui-
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241
242
O TRÁFICO DE PESSOAS E
A ASSISTÊNCIA ÀS VÍTIMAS
NO BRASIL: DO PROTOCO-
LO DE PALERMO À LEI N.º
13.344/201658

Leonardo Chaves de Carvalho59


Luciani Coimbra de Carvalho60

INTRODUÇÃO
Quase um milhão de pessoas são traficadas no mun-
do anualmente, segundo a Organização Internacional do
Trabalho, com a finalidade de exploração sexual, sendo que
98% destes indivíduos são mulheres. O tráfico pode movi-
mentar cerca de 32 bilhões de dólares a cada ano. No Brasil,
as denúncias de tráfico de pessoas entre 2011 e 2013

58 O artigo é resultado parcial do Projeto de pesquisa “Fronteiras Étni-


co-culturais – Análise do tráfico e migração de pessoas nas fronteiras de
MS (financiado pelo CNPq e FUNDECT).
59 Mestrando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul (FADIR/UFMS). Bacharel em Direi-
to pela UFMS. Servidor técnico-administrativo da UFMS/Câmpus de
Paranaíba. Pesquisador no Projeto de pesquisa “Análise do Tráfico e
Migração de Pessoas na Fronteira de Mato Grosso do Sul: Dinâmicas e
Modalidades” com apoio da FUNDECT.
60 Professora Adjunta da UFMS no curso de graduação e no mestrado
em Direito. Mestre e doutora em Direito do Estado pela PUC/SP. Pes-
quisadora e gestora do Projeto de pesquisa “Fronteiras Étnico-culturais
– Análise do tráfico e migração de pessoas nas fronteiras de MS (finan-
ciado pelo CNPq e FUNDECT)” com apoio da FUNDECT.

243
cresceram cerca de 856%, de 32 para 309 casos recebidos
pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da Re-
pública. Os dados descritos são do Relatório Nacional sobre
o tráfico de pessoas de 2013, apresentado pelo Ministério
da Justiça brasileiro, o que demonstra que esse tipo de cri-
me está presente na realidade do país muito mais do que se
imagina, devendo ser combatido pelo Estado.
Neste artigo busca-se analisar o tráfico de pessoas
com o enfoque na proteção às vítimas no Brasil, desde a
ratificação feita em 2004 da Convenção das Nações Unidas
contra o Crime Organizado Transnacional e dos seus Proto-
colos adicionais (Protocolo Adicional à Convenção das Na-
ções Unidas contra o Crime Organizado Transnacional rela-
tivo ao Combate ao Tráfico de Migrantes por Via Terrestre,
Marítima e Aérea; e o Protocolo Adicional à Convenção das
Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional
relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de
Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças), até a Lei n.º
13.344, de 6 de outubro de 2016 dispõe sobre a prevenção,
repressão e atenção às vítimas do tráfico interno e interna-
cional de pessoas.
Para essa análise, no primeiro item é feito um breve
histórico dos referidos documentos internacionais no orde-
namento jurídico brasileiro, traçando as diferenças entre o
tráfico de pessoas e o contrabando de migrantes. No segun-
do ponto do trabalho é feita a apreciação da Política Nacio-
nal de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Decreto n.º
5.948/2006) e dos dois Planos Nacionais de Enfrentamento
ao Tráfico de Pessoas (Decreto n.º 6.347/2008 e Portaria In-
terministerial n.º 634/2013), dando especial atenção à pro-
teção e assistência às vítimas previstas nestes documentos.

244
Por fim, é apresentada a recém-criada Lei n.º
13.344/2016 que trata da prevenção e repressão ao tráfico
interno e internacional de pessoas, e dispõe de medidas de
atenção às vítimas. Sendo que, esta é a primeira lei especí-
fica a tratar desse crime no Brasil, que anteriormente se uti-
lizava da mudança e/ou inclusão de dispositivos de forma
esparsa em sua legislação.

O TRÁFICO DE PESSOAS E O CONTRABANDO DE


MIGRANTES NOS PROTOCOLOS DE PALERMO
Em 15 de novembro de 2000 foi adotada pela As-
sembleia Geral da ONU, em Nova York, a Convenção das
Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional,
estando aberta a assinaturas na cidade de Palermo, na Itália,
entre os dias 12 e 15 de dezembro de 2000, e após esta data,
as assinaturas seriam feitas na sede da ONU.
Juntamente a esta Convenção, foram celebrados
dois protocolos adicionais: o Protocolo Adicional à Con-
venção das Nações Unidas contra o Crime Organizado
Transnacional relativo ao Combate ao Tráfico de Migrantes
por Via Terrestre, Marítima e Aérea; bem como o Protocolo
Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime
Organizado Transnacional relativo à Prevenção, Repressão
e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e
Crianças.
Tanto a Convenção quanto os Protocolos entraram
em vigor internacionalmente em 29 de setembro de 2003,
após o depósito do quadragésimo instrumento de ratifica-
ção. Entretanto, o governo brasileiro depositou o seu instru-

245
mento de ratificação da Convenção e dos Protocolos junto
à Secretaria-Geral da ONU em 29 de janeiro de 2004, en-
trando em vigor para o Brasil em 28 de fevereiro de 2004.
Em 12 de março de 2004 foram promulgados por
decreto presidencial a Convenção (Decreto n.º 5.015), o
Protocolo de Combate ao Tráfico de Migrantes (Decreto n.º
5.016) e o Protocolo referente ao Tráfico de Pessoas (De-
creto n.º 5.017), passando então a surtirem efeitos jurídicos
no território nacional.
Desde a adoção do Protocolo sobre o Tráfico de Pes-
soas, o conceito presente no seu artigo 3º é o mais adotado
quando se busca definir o que seria este tipo de tráfico:
A expressão “tráfico de pessoas” significa o
recrutamento, o transporte, a transferência, o
alojamento ou o acolhimento de pessoas, re-
correndo à ameaça ou uso da força ou a ou-
tras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao
engano, ao abuso de autoridade ou à situação
de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação
de pagamentos ou benefícios para obter o
consentimento de uma pessoa que tenha auto-
ridade sobre outra para fins de exploração. A
exploração incluirá, no mínimo, a exploração
da prostituição de outrem ou outras formas de
exploração sexual, o trabalho ou serviços for-
çados, escravatura ou práticas similares à es-
cravatura, a servidão ou a remoção de órgãos;
Analisando-se o conceito, é possível depreender três
pontos principais que caracterizam o tráfico de pessoas: o
deslocamento de pessoas, ou seja, a migração interna ou

246
internacional sempre estará presente; o emprego de meios
ilícitos; e a exploração. Segundo Damásio de Jesus (2003,
p.XXVI):
Os elementos constitutivos do delito de tráfico de
pessoas, segundo a definição adotada pelo Proto-
colo das Nações Unidas, são: I) A ação, ou seja,
o que é feito: que é o recrutamento, transporte,
transferência, alojamento ou o acolhimento de
pessoas; II) Os meios, ou seja, como é feito: por
meio de ameaça ou uso da força, coerção, rapto,
fraude, engano, abuso de poder ou de vulnerabi-
lidade, ou pagamentos ou benefícios em troca do
controle da vida da vítima. III) Propósito de ex-
ploração, ou seja, o porquê é feito o tráfico. Para
fins de exploração, que inclui prostituição, explo-
ração sexual, trabalhos forçados, escravidão, re-
moção de órgãos e práticas semelhantes.

Os dois Protocolos da Convenção de Palermo se


utilizam do mesmo termo, o “tráfico”, para tratar de proble-
mas distintos. Com a utilização da mesma palavra, pareceu
que os protocolos foram criados apenas para proteger víti-
mas diferentes, e não crimes diversos. O combate ao tráfico
seria objeto de ambos. Por conta desta confusão termino-
lógica, há juristas que preferem a utilização da expressão
“contrabando de migrantes” ao invés de “tráfico de migran-
tes”. Explica-se.
O artigo 3º do Protocolo sobre Migrantes diz:
A expressão “tráfico de migrantes” significa a pro-
moção, com o objetivo de obter, direta ou indire-
tamente, um benefício financeiro ou outro benefí-
cio material, da entrada ilegal de uma pessoa num
Estado Parte do qual essa pessoa não seja nacional
ou residente permanente;

247
Como se pode notar, o referido instrumento objeti-
va prevenir e combater a ação de pessoas que promovam a
entrada irregular de não nacionais no território de um Es-
tado, ou seja, o contrabando de migrantes levará a infração
da legislação migratória de um país, devido à facilitação
da migração irregular auxiliada por terceiros (GERONIMI,
2002, p.11).
Quando se fala em contrabando, este só se realiza
a nível internacional, necessitando o cruzamento das fron-
teiras; já o tráfico poderá ser internamente ou internacio-
nalmente. A relação do indivíduo com o “contrabandista”
finaliza quando se chega ao local de destino final, uma vez
que o pagamento foi feito por este “serviço” em específico;
no tráfico, a relação persiste no destino final com o intuito
exploratório da vítima, sendo esta exploração subsequente
para diversos fins. O lucro das redes de contrabando de mi-
grantes advém das quantias pagas pelo “serviço” de trans-
porte até o país de destino final; no tráfico, o lucro das redes
criminosas advém da subsequente exploração.
Outro elemento distinto entre o tráfico de pessoas e
o contrabando de migrantes é a questão do consentimento.
No tráfico, a alínea “b” do artigo 3º escreve que “será consi-
derado irrelevante” o consentimento da vítima se qualquer
dos meios ilícitos tiver sido utilizado. No contrabando, ge-
ralmente há ato voluntário do migrante ao pagar pelo “ser-
viço” de cruzar as fronteiras de um país.
O professor Damásio de Jesus sintetiza a diferencia-
ção entre tráfico e contrabando:
Imigração ilegal não é tráfico, embora alguns
casos de tráfico de pessoas sejam realizados por
meio das mesmas estratégias utilizadas pela imi-

248
gração ilegal. O contrabando de seres humanos
não deve ser considerado tráfico, embora os trafi-
cantes possam contrabandear as vítimas do tráfico
(JESUS, 2003, p. 17).

Necessário constar que o Protocolo sobre Migrantes


não tem o objetivo de eliminar a imigração irregular, mas
sim o contrabando de migrantes e os crimes a ele conexos,
ou seja, coibir a atividade de grupos criminosos organiza-
dos que lucram com a situação de vulnerabilidade de pes-
soas que desejam migrar. O artigo 5º do Protocolo deixa
evidente que “os migrantes não estarão sujeitos a processos
criminais nos termos do presente Protocolo, pelo fato de
terem sido objeto dos atos enunciados no seu Artigo 6”.
Importante também ressaltar que o objetivo princi-
pal dos dois Protocolos é reprimir as atividades do crime
organizado internacional, portanto, para que haja configu-
rado o contrabando ou tráfico, este deve ser realizado por
um “grupo criminoso organizado”, assim, se tais crimes es-
tiverem sendo cometidos por uma pessoa ou grupo que não
se enquadre na definição do artigo 2º, “a”, da Convenção
de Palermo, não há que se falar em tráfico ou contrabando.
Familiares, amigos ou entidades que auxiliam os
migrantes por questões humanitárias, também não se en-
quadram na Convenção. Assim, é necessária uma harmoni-
zação das legislações penais dos Estados com a Convenção
e os Protocolos de Palermo, para que não haja situações
contraditórias com o propósito da proteção dos direitos hu-
manos.
Tanto a Convenção quanto os seus Protocolos adi-
cionais focam principalmente na questão das medidas de

249
controle, fiscalização e repressão ao crime organizado in-
ternacional. Quando se busca a proteção e assistências às
vítimas deste crime organizado, os dispositivos nos citados
acordos internacionais são poucos ou insuficientes.
Mesmo que “proteger e ajudar as vítimas desse trá-
fico, respeitando plenamente os seus direitos humanos”
(art. 2ª, b) seja um dos objetivos do Protocolo sobre Trá-
fico de Pessoas, tal documento é incisivo ao estabelecer a
necessidade do Estado reforçar “os controles fronteiriços
necessários para prevenir e detectar o tráfico de pessoas”
(art. 11, 1), contudo, quando se trata da permanência das
vítimas em seus territórios, cada Estado parte “considera-
rá a possibilidade de adotar medidas legislativas ou outras
medidas adequadas que permitam às vítimas de tráfico de
pessoas permanecerem no seu território a título temporário
ou permanente, se for caso disso” (art. 7º, 1). Percebe-se o
viés principal do combate ao crime organizado, deixando
a proteção e garantia dos direitos humanos das vítimas em
segundo plano.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos
(CIDH), no parecer consultivo n.º 18, de 17 de setembro
de 2003, solicitado pelo México, afirma que “a qualidade
migratória de uma pessoa não pode constituir, de nenhu-
ma maneira, uma justificativa para privá-la do desfrute e do
exercício de seus direitos humanos”. O status de migrante
irregular, seja qual for a causa (tráfico de pessoas, contra-
bando de migrantes, etc), não é motivo para não se garantir
o respeito à dignidade e aos direitos humanos do indivíduo.
Ainda que a Convenção e os Protocolos de Palermo
não criminalizem a imigração ilegal, a legislação interna
dos Estados pode prever situações que contradizem estes
250
instrumentos internacionais, como por exemplo, caso um
indivíduo ingresse em seu território sem o intermédio de
um terceiro, ele será considerado um criminoso, contudo,
caso ingresse com a “ajuda” de organizações criminosas
internacionais, estará isento de sua responsabilidade penal.
O tráfico de pessoas e o contrabando de migrantes
estão intrinsecamente ligados às políticas migratórias dos
Estados. Não é raro encontrar situações em que, ao com-
bater estes tipos de crimes cometidos por organizações
internacionais, os países acabam adotando políticas mi-
gratórias ainda mais restritivas, o que deve ser repensado,
afinal, quanto maior a restrição migratória, maior o lucro
das organizações criminosas, afinal, o preço dos “serviços”
aumentará.
O Observatório de Imigração de Portugal concluiu
desta forma:
Os processos de fortalecimento da legislação an-
ti-imigração e reforço do controle fronteiriço, e o
processo de crescimento do tráfico de migrantes
por grupos organizados se alimentam mutuamen-
te. Ou seja, por um lado, a crescente dificuldade
em atravessar as fronteiras levou a que os migran-
tes tivessem que recorrer a agentes profissionais e
tornou o fenômeno mais complexo, e, por outro,
o aumento da procura de serviços de tráfico e dos
riscos envolvidos no processo fez com que os pre-
ços, e consequentemente os lucros, também subis-
sem, o que atraiu mais agentes para esta atividade
(PEIXOTO, 2005, p. 24).

251
No parecer consultivo n.º 18, a CIDH se manifestou
no sentido de que:
Os objetivos das políticas migratórias devem ter
presente o respeito pelos direitos humanos. Além
disso, estas políticas migratórias devem ser exe-
cutadas com o respeito e a garantia dos direitos
humanos. Como já se afirmou (pars. 84, 89, 105
e 119 supra), as distinções que os Estados estabe-
leçam devem ser objetivas, proporcionais e razoá-
veis (CIDH, 2003, p.116).

Rossana Rocha Reis escreve sobre a imigração e a


normatização dos Estados:
[...] o estudo da evolução do regime interna-
cional de direitos humanos nos mostra que,
apesar do crescente reconhecimento do indi-
víduo como portador de direitos independen-
tes de sua nacionalidade, a implementação
desses direitos continua basicamente depen-
dente do Estado, e, no caso específico das
migrações internacionais, do Estado receptor.
Vale dizer que o direito de ir e vir no âmbito
internacional – o direito de imigrar – não é re-
conhecido como um direito humano. A maior
parte da legislação internacional diz respeito
somente a situações concretas, em que o imi-
grante já existe (REIS, 2004, p. 159).
Desse modo, mais do que adequar sua legislação migra-
tória e penal para fins de prevenção, repressão e punição tanto
do tráfico de pessoas, quanto do contrabando de migrantes, o
Estado deve promover políticas públicas de acolhimento e rein-
serção social dos indivíduos vítimas destes crimes, afinal, a ga-
rantia e o respeito aos direitos humanos devem ser observados.
252
A PROTEÇÃO ÀS VÍTIMAS NA POLÍTICA NACIO-
NAL E NOS PLANOS NACIONAIS DE ENFRENTA-
MENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS
Neste item iremos tratar das várias modalidades de
proteção às vítimas previstas na política nacional, assim
como nos planos nacionais de enfrentamento ao tráfico de
pessoas.

A) POLÍTICA NACIONAL DE ENFRENTAMENTO


AO TRÁFICO DE PESSOAS
Após a promulgação da Convenção e dos Protoco-
los de Palermo em 2004, fazendo com que seus efeitos ju-
rídicos repercutissem em seu território, o Brasil iniciou um
tímido e esparso processo de enfrentamento ao tráfico de
pessoas, por meio de adequações legislativas e ações gover-
namentais. A princípio não foi criada uma lei em específico,
mas a inserção ou modificações de dispositivos em legisla-
ções existentes.
Cita-se, por exemplo, a Lei n.º 12.850/2013 que tra-
ta das organizações criminosas; e a Lei n.º 12.015/2009,
que deu novas redações aos artigos 231 e 231-A do Código
Penal sobre o tráfico internacional e interno para fins de
exploração sexual.
Contudo, em 26 de outubro de 2006, foi aprovada
por meio do Decreto n.º 5.948, a Política Nacional de En-
frentamento ao Tráfico de Pessoas, a qual “tem por finali-
dade estabelecer princípios, diretrizes e ações de prevenção
e repressão ao tráfico de pessoas e de atendimento às víti-
mas” (art. 1º). A Política Nacional adota em seu art. 2º, a

253
mesma definição de tráfico de pessoas do Protocolo Relati-
vo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas,
em especial Mulheres e Crianças (Decreto n.º 5.017/2004).
Sob a perspectiva de atenção às vítimas deste crime,
destaca-se o princípio norteador estabelecido no inciso III,
do art. 3º da Política Nacional, o qual prevê a “proteção e
assistência integral às vítimas diretas e indiretas, indepen-
dentemente de nacionalidade e de colaboração em proces-
sos judiciais”.
Nas diretrizes gerais da Política Nacional de En-
frentamento ao Tráfico de Pessoas, previstas no art. 4º, a
atenção às vítimas se encontra nos seguintes incisos:
VII - verificação da condição de vítima e res-
pectiva proteção e atendimento, no exterior e
em território nacional, bem como sua reinser-
ção social;
IX - incentivo à formação e à capacitação de
profissionais para a prevenção e repressão ao
tráfico de pessoas, bem como para a verifi-
cação da condição de vítima e para o atendi-
mento e reinserção social das vítimas;
Entretanto, é no art. 7º que a Política Nacional prevê
diretrizes específicas para a atenção às vítimas do tráfico de
pessoas:
Art. 7o   São diretrizes específicas de atenção às
vítimas do tráfico de pessoas: 
I - proteção e assistência jurídica, social e de saúde
às vítimas diretas e indiretas de tráfico de pessoas;

254
II - assistência consular às vítimas diretas e indi-
retas de tráfico de pessoas, independentemente de
sua situação migratória e ocupação;
III - acolhimento e abrigo provisório das vítimas
de tráfico de pessoas;
IV - reinserção social com a garantia de acesso à
educação, cultura, formação profissional e ao tra-
balho às vítimas de tráfico de pessoas;
V - reinserção familiar e comunitária de crianças e
adolescentes vítimas de tráfico de pessoas;
VI - atenção às necessidades específicas das víti-
mas, com especial atenção a questões de gênero,
orientação sexual, origem étnica ou social, proce-
dência, nacionalidade, raça, religião, faixa etária,
situação migratória, atuação profissional ou outro
status;
VII - proteção da intimidade e da identidade das
vítimas de tráfico de pessoas; e
VIII - levantamento, mapeamento, atualização e
divulgação de informações sobre instituições go-
vernamentais e não-governamentais situadas no
Brasil e no exterior que prestam assistência a víti-
mas de tráfico de pessoas.

Para a implementação da Política Nacional, caberá


aos órgãos e entidades públicas desenvolverem ações em
suas respectivas áreas de atuação, como por exemplo, Justi-
ça e Segurança Pública, Relações Exteriores e Saúde:
I - na área de Justiça e Segurança Pública:
a) proporcionar atendimento inicial humanizado
às vítimas de tráfico de pessoas que retornam ao
País na condição de deportadas ou não admitidas
nos aeroportos, portos e pontos de entrada em vias
terrestres;

255
II - na área de Relações Exteriores:
c) inserir no Manual de Serviço Consular e Jurídi-
co do Ministério das Relações Exteriores um capí-
tulo específico de assistência consular às vítimas
de tráfico de pessoas;
h) fortalecer os serviços consulares na defesa e
proteção de vítimas de tráfico de pessoas;
IV - na área de Saúde:
a) garantir atenção integral para as vítimas de trá-
fico de pessoas e potencializar os serviços existen-
tes no âmbito do Sistema Único de Saúde;
b) acompanhar e sistematizar as notificações com-
pulsórias relativas ao tráfico de pessoas sobre sus-
peita ou confirmação de maus-tratos, violência e
agravos por causas externas relacionadas ao tra-
balho;
c) propor a elaboração de protocolos específicos
para a padronização do atendimento às vítimas de
tráfico de pessoas; e
d) capacitar os profissionais de saúde na área de
atendimento às vítimas de tráfico de pessoas;

O mesmo Decreto que aprova a Política Nacional de


Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (5.948/2006), também
instituiu, no âmbito do Ministério da Justiça, o Grupo de
Trabalho Interministerial com o objetivo de elaborar uma
proposta do Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico
de Pessoas – PNETP. O referido grupo teria noventa dias de
prazo, prorrogáveis por mais trinta dias, para a conclusão
dos trabalhos.

256
B) PLANO NACIONAL DE ENFRENTAMENTO AO
TRÁFICO DE PESSOAS – PNETP
Em 8 de janeiro de 2008, foi aprovado por meio do
Decreto n.º 6.347, o Plano Nacional de Enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas – PNETP, o qual objetivava “prevenir e
reprimir o tráfico de pessoas, responsabilizar os seus auto-
res e garantir atenção às vítimas, nos termos da legislação
em vigor e dos instrumentos internacionais de direitos hu-
manos” (art. 1º). Foi estabelecido o prazo de dois anos para
a execução do referido Plano.
O PNETP foi dividido em três grandes eixos: 1)
Prevenção ao Tráfico de Pessoas; 2) Atenção às vítimas; e
3) Repressão ao Tráfico de Pessoas e Responsabilização de
seus Autores. Para cada um destes eixos, ficaram instituídas
atividades e metas concretas a serem cumpridas por cada
um dos órgãos e entidades públicas envolvidas.
Conforme documento do Ministério da Justiça so-
bre o PNETP, “a execução integrada é o motor do Plano. Os
órgãos responsáveis precisam implementar as atividades de
forma agregada, buscando afinidades entre as metas e par-
cerias, para que não haja, inclusive, repetição de esforços”
(BRASIL, 2008, p.10).
Sobre os três eixos, o Ministério da Justiça expõe a
intenção do PNETP:
No âmbito da Prevenção, a intenção é diminuir
a vulnerabilidade de determinados grupos sociais
ao tráfico de pessoas e fomentar seu empodera-
mento, bem como engendrar políticas públicas
voltadas para combater as reais causas estruturais
do problema.

257
Quanto à Atenção às Vítimas, foca-se no trata-
mento justo, seguro e não-discriminatório das
vítimas, além da reinserção social, adequada
assistência consular, proteção especial e acesso
à Justiça. E se entende como vítimas não só os
(as) brasileiros(as), mas também os(as) estrangei-
ros(as) que são traficados(as) para o Brasil, afinal
este é considerado um país de destino, trânsito e
origem para o tráfico.
Sobre o Eixo 3, Repressão e Responsabilização,
o foco está em ações de fiscalização, controle e
investigação, considerando os aspectos penais e
trabalhistas, nacionais e internacionais desse cri-
me (BRASIL, 2008, p.10).

Dentre as várias prioridades do Plano Nacional de


Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, a prioridade n.º 5 re-
laciona-se com a atenção e assistências às vítimas ao pre-
ver: “Articular, estruturar e consolidar, a partir dos servi-
ços e redes existentes, um sistema nacional de referência e
atendimento às vítimas de tráfico”. Nesta prioridade foram
previstas 05 (cinco) ações, com 18 (dezoito) atividades e 22
(vinte e duas) metas a serem atingidas.
Após o prazo de dois anos de execução, conforme
disposto no §1º, do art. 1º do Decreto n.º 6.347/2008, foi
elaborado o Relatório Final de implementação do PNETP.
Sobre este Relatório, escreve Fernanda Alves dos Anjos e
Paulo Abrão:
Passados dois anos da sua implementação, o Re-
latório Final deste I Plano Nacional de Enfren-
tamento ao Tráfico de Pessoas procurou revelar
à sociedade o que foi realizado, salientando a
transversalidade do tema, incluído em diversas
políticas, programas e projetos sob a coordena-
ção de diferentes ministérios e secretarias ligadas

258
à Presidência da República; destacou as metas
estabelecidas e a sua execução pelos órgãos res-
ponsáveis, como a implementação dos Núcleos
de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e Postos
Avançados de Atendimento Humanizado ao Mi-
grante, ação prevista no Programa Nacional de
Segurança Pública com Cidadania; apresentou
ações do Sistema de Segurança Pública e Justiça,
revelando o aumento no número de inquéritos po-
liciais para investigar este crime; registrou as ca-
pacitações realizadas; os serviços de atendimento
às vítimas; e os principais organismos internacio-
nais que firmaram parcerias com o Governo Fede-
ral (ANJOS; ABRÃO, 2013, p. 227).

Logo após a apresentação do Relatório Final no I


Encontro Nacional da Rede de Enfrentamento ao Tráfico
de Pessoas, em novembro de 2010, foi instituído um Grupo
de Trabalho Interministerial (GTI) por meio da Portaria do
Ministério da Justiça n.º 1.239, de 27 de junho de 2011. A
Secretaria Nacional de Justiça liderou o GTI que objetivava
organizar a elaboração do II PNETP e desenvolver meca-
nismos de participação popular na elaboração da proposta
do texto, tudo no prazo de 90 (noventa) dias, prorrogável
por igual período.

C) II PLANO NACIONAL DE ENFRENTAMENTO


AO TRÁFICO DE PESSOAS – II PNETP
Em 4 de fevereiro de 2013, foi instituída por meio do
Decreto n.º 7.901 a Coordenação Tripartite da Política Na-
cional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e o Comitê
Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas – CONA-
TRAP. Revogaram-se os artigos do Decreto n.º 5.948/2006
que tratava do Grupo de Trabalho Interministerial.

259
Esta coordenação tripartite é composta pelo Minis-
tério da Justiça, Secretaria de Políticas para as Mulheres e
Secretaria de Direitos Humanos, ambas da Presidência da
República, e objetiva “coordenar a gestão estratégica e inte-
grada da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas, aprovada pelo Decreto no 5.948, de 26 de outubro
de 2006, e dos Planos Nacionais de Enfrentamento ao Tráfi-
co de Pessoas” (art. 1º do Decreto). O CONATRAP foi cria-
do “para articular a atuação dos órgãos e entidades públicas
e privadas no enfrentamento ao tráfico de pessoas” (art. 4º).
O Decreto 7.901/2013 traz os objetivos do II PNE-
TP, contudo, a aprovação do II Plano se deu por meio da
Portaria Interministerial n.º 634, de 25 de fevereiro de
2013. Com o período de implementação de 2013 a 2016, o
II PNETP está estruturado em 05 (cinco) linhas operativas,
as quais se desdobram em várias atividades e 115 (cento e
quinze) metas, que:
(...) expressam ações concretas, qualitativa e/ou
quantitativamente descritas, de forma a permitir
que o seu monitoramento informe sua real execu-
ção, desde o aperfeiçoamento do marco regulató-
rio, da integração e fortalecimento das políticas
públicas e da rede nacional, de ações de capacita-
ção e produção de conhecimento, até a realização
de campanhas e mobilização da sociedade para o
enfrentamento ao tráfico de pessoas no país. (AN-
JOS; ABRÃO, 2013, p. 229)

Dentre as linhas operativas, destacam-se especifica-


mente aquelas voltadas à assistência e atenção às vítimas do
tráfico de pessoas. A linha operativa 2 trata da “Integração e
fortalecimento das políticas públicas, redes de atendimento,
organizações para prestação de serviços necessários ao enfren-
tamento ao tráfico de pessoas”, sendo prevista a Atividade 2.D:
260
Criar, financiar e implementar estratégias de inte-
gração dos sistemas nacionais para atendimento
e reintegração das vítimas do tráfico de pessoas,
fortalecendo a rede de atendimento, integrando
normativas e procedimentos, articulando as res-
ponsabilidades entre atores da rede, definindo
metodologias e fluxos de atendimento, e disse-
minando material informativo para um adequado
processo de atendimento sob a perspectiva de di-
reitos.

Nesta atividade, estão enumeradas 22 (vinte e duas)


metas a serem alcançadas. A Atividade 2.G, com 07 (sete)
metas elencadas, prevê:
Ampliar o acesso a direitos por parte de vítimas e
grupos vulneráveis ao tráfico de pessoas e a oferta
de serviços e iniciativas públicas, prioritariamente
em municípios e comunidades identificadas como
focos de aliciamento de vítimas de tráfico de pes-
soas, com vistas a diminuir tal vulnerabilidade e
seus impactos.

A Atividade 2.H, propõe “promover a garantia de di-


reitos de cidadãos estrangeiros vítimas do tráfico de pessoas
no Brasil”, por meio de 04 (quatro) metas a serem atingidas.
Sobre o II PNETP, transcrevem-se as palavras de
Inês Virgínia Prado Soares:
O II Plano abraça a ideia de que a construção de
alicerces para o ETP precisa de valores e mecanis-
mos democráticos, bem como de um Estado com-
prometido com o respeito e a promoção de tais
valores, mas principalmente atento para impedir
injustiças sociais, culturais e econômicas, provo-
cadas, inclusive, pelas demandas de mercado ou
por posturas sexistas e preconceituosas em rela-
ção a grupos vulneráveis, como mulheres e ho-
mossexuais. Nesse sentido, muitas das atividades

261
previstas em cada uma das linhas operativas do
II PNETP iluminam as necessidades dos vulnerá-
veis, dos excluídos e dos discriminados, possibi-
litando que as políticas públicas sejam pensadas
e desenhadas de modo participativo, para atender
aos mais frágeis. (SOARES, 2013, p.98)

Interessante mencionar, por fim, a transversalidade


do II PNETP e a atuação dos três níveis federativos.
Ao mesmo tempo, há uma lógica de transversali-
dade e/ ou intersetorialidade na implementação da
política local de enfrentamento que traz boas pers-
pectivas, já que no traçado do II PNETP devem-
se levar em consideração e respeitar as políticas
setoriais já existentes. A partir dessas políticas, as
estratégias específicas para o enfrentamento ao
tráfico de pessoas são desenhadas e executadas.
Outra característica interessante é que ações pre-
vistas no II PNETP dependem da articulação entre
os três níveis do pacto federativo. Desse modo, é
importante que os atores governamentais dos ní-
veis estaduais e municipais desenvolvam as metas
do Plano (SOARES, 2013, p.97).

Em dezembro de 2014 foi apresentada a “Primei-


ra Avaliação externa de progresso do II Plano Nacional de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas”, feita pela Secretaria
Nacional de Justiça, do Ministério da Justiça, em parceria
com o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes
(UNODC). No site do Ministério da Justiça, é feito um re-
sumo desta avaliação:
Importante ressaltar que essa avaliação interme-
diária baseou-se nos quatro primeiros relatórios
de progresso produzidos pelo Grupo Interministe-
rial de Monitoramento e Avaliação do II PNETP,
composto por 17 ministérios, sendo 25 órgãos fe-
derais no total. As 115 metas previstas no II PNE-

262
TP, foram avaliadas em quatro categorias, ou seja,
ótimo, bom, ruim e péssimo.  Assim, segundo os
indicadores de gestão de progresso, 54 metas fo-
ram consideradas com ótimo progresso, 28 metas
com bom progresso, sendo 12 metas considera-
das com um progresso ruim e, somente, 02 com
péssimo progresso. Deste resultado, foi possível,
então, identificar as metas que o governo federal
deve seguir avançando e as que devem receber es-
pecial atenção nos próximos dois anos de vigência
do plano. Por fim, a análise geral das 14 ativida-
des previstas no II PNETP foi positiva e demons-
trou que o II PNETP está com progresso de 81,8%
da média geral, o que equivale a um ótimo e bom
avanço intermediário de implementação do pla-
no (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2016, s/p).

Após descrever a Política Nacional e os Planos Na-


cionais de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, discutir-
se-á no próximo item a nova lei sobre prevenção, repressão
e medidas de atenção às vítimas do tráfico de pessoas no
Brasil.

A LEI N.º 13.344, DE 6 DE OUTUBRO DE 2016


Apesar da ratificação da Convenção e dos Protocolos de
Palermo, bem como a aprovação da Política Nacional e dos dois
Planos Nacionais de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, não
existia no Brasil uma lei que tratava especificamente do tráfico
de pessoas. Conforme exposto anteriormente, alguns dispositi-
vos de leis já existentes foram modificados e outros inseridos na
legislação, entretanto, algumas situações ainda não eram tipifica-
das, como o tráfico de pessoas para fins de comércio de órgãos
e tecidos.

263
O Departamento de Estado Americano, em seu Relatório
sobre o Tráfico de Pessoas divulgado em junho de 2016, ao ana-
lisar o Brasil, descreve que o país não atende plenamente as nor-
mas mínimas para a eliminação do tráfico, contudo, está se esfor-
çando. Acrescenta que a lei brasileira não se alinha com o direito
internacional, dificultando a avaliação dos esforços do governo
na repressão a este crime. Expõe a falta de centralização de dados
sobre o tema e a morosidade da justiça em solucionar os casos.
Sobre a atenção das vítimas, o próprio governo brasileiro admite
que concede serviços especializados a uma parcela pequena das
vítimas e não há financiamento de abrigos especializados (DE-
PARTMENT OF STATE/USA, 2016, p. 104).
Sobre a legislação brasileira referente ao tráfico de pes-
soas, o relatório do governo americano aponta que a falta de uma
lei unificada sobre o tema torna difícil a avaliação da situação do
crime no país. O relatório também aponta que as leis brasileiras
proíbem a maioria dos tipos de tráfico de pessoas. Ademais, o
governo americano escreve que há projeto de lei tramitando des-
de 2014 no Congresso Nacional que harmoniza a definição de
tráfico com o Protocolo de Palermo e aumenta as penas mínimas
para este tipo de crime.
The lack of a unified anti-trafficking law and com-
prehensive data made efforts difficult to evaluate.
Brazilian laws prohibit most forms of trafficking
in persons.
[...]
Draft legislation to harmonize the definition of
trafficking with the 2000 UN TIP Protocol and in-
crease the minimum sentences for antitrafficking
crimes was introduced in 2014, but not approved
by Congress in 2015(DEPARTMENT OF STATE/
USA, 2016, p. 105).

264
Após a publicação desse relatório, em 6 de outubro
de 2016, foi promulgada a Lein.º 13.344, a qual “dispõe so-
bre prevenção e repressão ao tráfico interno e internacional
de pessoas e sobre medidas de atenção às vítimas”, além de
alterar e incluir dispositivos nos Códigos Penal e Processo
Penal e no Estatuto do Estrangeiro. A norma entrará em vi-
gor após 45 dias de sua publicação, ou seja, a partir de 21 de
novembro de 2016. Interessante ressaltar que a Lei dispõe
sobre o tráfico de pessoas cometido “no território nacional
contra vítima brasileira ou estrangeira e no exterior contra
vítima brasileira” (art. 1º).
A Lei n.º 13.344/2016 constitui uma harmonização
ao Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas
contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Pre-
venção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, após
doze anos de sua ratificação. As penalidades ficaram mais
rigorosas e há inclusão de medidas de proteção e atenção
às vítimas.
Será incluído no Código Penal o art. 149-A que tipi-
fica o tráfico de pessoas como sendo as ações de “agenciar,
aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou
acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação,
fraude ou abuso” tendo como finalidade, não só a explo-
ração sexual, mas também a remoção de órgãos, tecidos
e partes do corpo, a submissão à servidão ou trabalho em
condições análogas à de escravo, além da adoção ilegal. A
reclusão é de 04 (quatro) a 08 (oito) anos, podendo chegar a
mais de 10 (dez) anos se praticado mediante circunstâncias
agravantes, como por exemplo, se cometido por funcioná-
rio público no exercício de suas funções; cometido contra
criança, adolescente, idoso ou pessoa com deficiência; pra-

265
ticado por pessoas próximas ou familiares; ou a vítima for
retirada do território nacional.
Art. 13.  O Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de de-
zembro de 1940 (Código Penal), passa a vigorar
acrescido do seguinte art. 149-A: 
“Tráfico de Pessoas 
Art. 149-A.  Agenciar, aliciar, recrutar, transpor-
tar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa,
mediante grave ameaça, violência, coação, fraude
ou abuso, com a finalidade de: 
I - remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo; 
II - submetê-la a trabalho em condições análogas
à de escravo; 
III - submetê-la a qualquer tipo de servidão; 
IV - adoção ilegal; ou 
V - exploração sexual. 
Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e
multa. 
§ 1o A pena é aumentada de um terço até a metade
se: 
I - o crime for cometido por funcionário públi-
co no exercício de suas funções ou a pretexto de
exercê-las; 
II - o crime for cometido contra criança, adoles-
cente ou pessoa idosa ou com deficiência; 
III - o agente se prevalecer de relações de paren-
tesco, domésticas, de coabitação, de hospitalida-
de, de dependência econômica, de autoridade ou
de superioridade hierárquica inerente ao exercício
de emprego, cargo ou função; ou 
IV - a vítima do tráfico de pessoas for retirada do

266
território nacional. 
§ 2o A pena é reduzida de um a dois terços se o
agente for primário e não integrar organização
criminosa”. 

Segunda a nova legislação, o enfrentamento ao trá-


fico de pessoas atenderá alguns princípios, sendo a maioria
deles relacionados aos indivíduos vitimados por este crime:
Art. 2o   O enfrentamento ao tráfico de pessoas
atenderá aos seguintes princípios: 
I - respeito à dignidade da pessoa humana; 
II - promoção e garantia da cidadania e dos direi-
tos humanos; 
III - universalidade, indivisibilidade e interdepen-
dência; 
IV - não discriminação por motivo de gênero,
orientação sexual, origem étnica ou social, proce-
dência, nacionalidade, atuação profissional, raça,
religião, faixa etária, situação migratória ou ou-
tro status; 
V - transversalidade das dimensões de gênero,
orientação sexual, origem étnica ou social, proce-
dência, raça e faixa etária nas políticas públicas; 
VI - atenção integral às vítimas diretas e indiretas,
independentemente de nacionalidade e de colabo-
ração em investigações ou processos judiciais; 
VII - proteção integral da criança e do adolescen-
te. (Grifo nosso)

A proteção e assistência às vítimas estão previstas


em vários dispositivos da Lei n.º 13.344/2016, demonstran-
do a preocupação do Estado brasileiro com tais indivíduos.
O capítulo IV trata especificamente “da proteção e da assis-

267
tência às vítimas”. Nele estão previstas a reinserção social
das vítimas, além de garantir assistência social, à saúde, ao
trabalho e emprego, a assistência jurídica, o atendimento
humanizado, o acolhimento e abrigo provisório, bem como
um atendimento baseado nas necessidades específicas de
cada vítima.
Art. 6o  A proteção e o atendimento à vítima direta
ou indireta do tráfico de pessoas compreendem: 
I - assistência jurídica, social, de trabalho e em-
prego e de saúde; 
II - acolhimento e abrigo provisório; 
III - atenção às suas necessidades específicas,
especialmente em relação a questões de gênero,
orientação sexual, origem étnica ou social, proce-
dência, nacionalidade, raça, religião, faixa etária,
situação migratória, atuação profissional, diversi-
dade cultural, linguagem, laços sociais e familia-
res ou outro status; 
IV - preservação da intimidade e da identidade; 
V - prevenção à revitimização no atendimento e
nos procedimentos investigatórios e judiciais; 
VI - atendimento humanizado; 
VII - informação sobre procedimentos adminis-
trativos e judiciais. 

Se a vítima for brasileira no exterior, a rede consular


brasileira deverá prestar integral assistência, independente-
mente da “situação migratória, ocupação ou outro status” (§
2o, art. 6º). A assistência à saúde deverá compreender os as-
pectos de recuperação física e psicológica (§ 3o, art. 6º).
Outro viés importante que a Lei n.º 13.344/2016 trou-

268
xe, mais precisamente em seu art. 7º, foi a inclusão de artigos
no Estatuto do Estrangeiro (Lei n.º 6.815/1980), os quais per-
mitem a concessão de residência permanente às vítimas de
tráfico de pessoas no Brasil, independentemente de sua situa-
ção migratória ou de colaboração em procedimento adminis-
trativo, policial ou judicial. Além disso, enquanto o pedido
de regularização migratória estiver tramitando, o estrangeiro
estaria em situação regular no Brasil.
Entretanto, com a sanção da Lei n.º 13.445 em 24
de maio de 2017, conhecida como a Nova Lei de Migração
brasileira, o Estatuto do Estrangeiro foi revogado (art. 124,
inciso II, da Lei n.º 13.445/2017), consequentemente, as mo-
dificações trazidas pela Lei n.º 13.344/2016, caíram por terra,
devendo-se observar as regras da nova legislação migratória.
A Lei em estudo também normatiza em seu capítulo
V as questões processuais envolvendo o tráfico de pessoas,
além de instituir o Dia Nacional de Enfrentamento do Tráfi-
co de Pessoas, comemorado anualmente em 30 de julho (art.
14).
Uma crítica à Lei está na omissão quanto ao consen-
timento da vítima, o qual independe para a configuração do
crime de tráfico de pessoas segundo o Protocolo de Palermo.
A nova lei brasileira omite a questão do consentimento, po-
dendo gerar debates e decisões que contrariem o combate a
este crime.
Como pode ser observado, após doze anos de omis-
são legislativa desde a ratificação da Convenção e dos Proto-
colos de Palermo, o Brasil criou legislação específica sobre o
tráfico de pessoas, ampliando a sua tipificação, além de con-
ceder maior atenção e assistência às vítimas.

269
CONCLUSÃO
O tráfico de pessoas é crime que atinge milhares de
indivíduos ao redor do mundo anualmente, movimentando
bilhões de dólares. No Brasil não é diferente, afinal é co-
mum na imprensa e nos órgãos competentes registros de
casos de tráfico de pessoas para exploração sexual e traba-
lho análogo ao de escravo (tipos mais comuns de tráfico de
pessoas).
Mesmo que tenha criado tardiamente uma lei es-
pecífica sobre o tráfico de pessoas, não se pode deixar de
registrar os esforços do Brasil desde a ratificação da Con-
venção e dos Protocolos de Palermo em 2004, em combater
este crime, seja por meio de adequações legislativas espar-
sas, seja por meio da aprovação da Política Nacional e dos
Planos Nacionais de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas.
A Lei n.º 13.344/2016 é um grande avanço na repressão,
prevenção e principalmente na proteção e assistência às ví-
timas do tráfico.
A prevenção e a repressão são importantíssimas,
contudo, o Estado brasileiro não pode deixar de lado o aco-
lhimento e a reinserção social destes indivíduos, sejam eles
nacionais ou estrangeiros. Foi de grande avanço e relevân-
cia as mudanças feitas no Estatuto do Estrangeiro para os
casos das vítimas do tráfico solicitarem a sua regularização
migratória ou residência permanente no território nacional,
afinal, já se encontram em situação de vulnerabilidade e o
medo da situação irregular no país, impediam que buscas-
sem auxílio social, jurídico e governamental.
Tais inserções na então legislação migratória brasi-
leira eram importantes à época da promulgação da lei em

270
análise, uma vez que o Estatuto do Estrangeiro mostrava-
se ultrapassado diante da realidade atual. Todavia, com a
revogação da Lei n.º 6.815/1980, é importante que a nova
Lei de Migração brasileira (Lei n.º 13.445/2017) seja obser-
vada em conjunto com a lei do tráfico de pessoas (Lei n.º
13.344/2016).
Espera-se que o Brasil possa implementar eficaz-
mente todas as medidas previstas nesta nova norma, garan-
tindo celeridade processual nos casos envolvendo o tráfico
de pessoas, bem como promoção das ações de prevenção e
repressão a este crime, sem esquecer das ações de imple-
mentação da proteção e da assistência às vítimas por meio
de políticas públicas. Atendendo ao que a legislação prevê,
certamente os números do tráfico de pessoas no Brasil di-
minuirão consideravelmente.

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275
276
TRÁFICO DE PESSOAS – MI-
RANDO O MUNDO COM OS
PÉS NO CHÃO PLATINO

Estela Márcia Rondina Scandola


Salgo a caminar
Por la cintura cósmica del sur
Piso en la región
Más vegetal del viento y de la luz
Siento al caminar
Toda la piel de América en mi piel
Y anda en mi sangre un río
Que libera en mi vozSu caudal.
Canción con todos
(Armando Tejada Gomez na voz de Mercedes Sosa)

INTRODUÇÃO
O tráfico de pessoas, embora seu enfrentamento es-
teja sendo trazido à pauta das políticas públicas, na contem-
poraneidade a partir dos anos 2000, ocorreu em praticamen-
te todos os tempos e sociedades. Não se trata, portanto, de
uma problemática emergética ou de um modismo temático
para as pesquisas acadêmicas. A reentrada na agenda políti-
ca dos Estados-nação tem sido um processo de pressão tan-
to dos movimentos sociais quanto das acordações multila-
terais do Sistema ONU. No entanto, internamente em cada
país, a relevância que se constitui e a roupagem ideopolítica
tem a ver com as forças do capital e dos movimentos que
estão em confronto ou acordação.
277
Foi a partir do “Protocolo Adicional à Convenção
das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacio-
nal Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico
de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças” (UNODC,
2004), mais conhecido como Protocolo de Palermo61, que
o tráfico de pessoas tem avançado em tratativas nacionais e
internacionais visando ao seu enfrentamento. Pode-se afir-
mar que foi esse o marco legal e político que impulsionou a
reentrada da temática na agenda pública.
As outras acordações mundiais - como a Convenção
sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
contra as Mulheres – Cedaw (CEDAW, 1979) e a Conven-
ção 29 (OIT, 1932) do trabalho forçado -, que também vi-
savam uma atuação mais efetiva por parte dos Estados-Na-
ção, quase sejam sempre citadas nas justificativas, tiveram
importância reduzida. No Brasil, por exemplo, há um hiato
entre o enfrentamento ao tráfico de pessoas, as discrimina-
ções das mulheres e a erradicação do trabalho escravo. Em-
bora sejam realidades também presentes nos outros países,
a separação dessas problemáticas, no Brasil, tem vínculo
direto com o embate entre as forças sociais que estão mais
diretamente ligadas a cada tratativa mundial.
Os Estados-nação têm o compromisso, firmado no
âmbito da Organização das Nações Unidas – ONU, espe-
61 O nome “Protocolo de Palermo” é uma homenagem realizada à ci-
dade de Palermo, na Itália, cujo trabalho contra o crime organizado,
na década de 1980-1990, tornou-se um exemplo para o mundo todo e
amplamente reconhecida pela Organização das Nações Unidas. O Pro-
tocolo é integrante da Convenção das Nações Unidas contra o Crime
Organizado Transnacional. Integram também esta Convenção o Pro-
tocolo Relativo ao Combate ao Tráfico de Migrantes por Via Terrestre,
Marítima e Aérea e o Protocolo contra a fabricação e o tráfico ilícito de
armas de fogo, suas peças e componentes e munições.

278
cialmente no Escritório das Nações Unidas para Drogas e
Crime – UNODC, de enfrentar o tráfico de seres humanos
por meio de políticas públicas internas e da ação internacio-
nal na articulação entre os países. Essas duas exigências se
pautam no contexto em que uma das características centrais
dessa violação dos direitos humanos é o deslocamento de
pessoas de seus territórios62, podendo ocorrer tanto interna-
mente, bem como entrando, saindo, passando e/ou transi-
tando internamente ou pelos diversos países.
Na atualidade, o tráfico de pessoas apresenta-se com
roupagens que por vezes se aproximam das formas antigas
de escravatura e, em outros casos, das modernas formas de
engano e sujeição de humanos a pessoas, grupos e organi-
zações criminosas, tendo como principal fundamento a ne-
cessidade de reduzir o ser social à condição de mercadoria.
No âmbito das Nações Unidas, há a definição do que é o trá-
fico de pessoas a partir das condições, meios e finalidades,
como pode ser observado no Art. 3º. de Palermo:
Por “trata de personas” se entenderá la captación,
el transporte, el traslado, la acogida o la recepción
de personas, recurriendo a la amenaza o al uso de la
fuerza u otras formas de coacción, al rapto, al fraude,
al engaño, al abuso de poder o de una situación de

62 Aqui se trabalhou com o conceito de território de Santos (2008), ou


seja, em um território formado por componentes físicos, simbólicos e
o próprio movimento entre uns e outros, há que se considerar que dife-
rentes problemáticas estão a compor um mesmo espaço. De outra forma
também, uma mesma problemática pode ocupar diferentes territórios
físicos e promover o encontro de territórios simbólicos e de ideias. As-
sim, no mesmo espaço físico, podem-se ter territórios distintos que se
articulam a partir do local e trans-local. Santos afirma que: “na medida
em que se multiplicam as interdependências e cresce o número de ato-
res envolvidos no processo, podemos dizer que não apenas se alarga a
dimensão dos contextos, como aumenta a sua espessura” (2008, p.254).

279
vulnerabilidad o a la concesión o recepción de pagos
o beneficios para obtener el consentimiento de una
persona que tenga autoridad sobre otra, con fines de
explotación. Esa explotación incluirá, como míni-
mo, la explotación de la prostitución ajena y otras
formas de explotación sexual, los trabajos o servi-
cios forzados, la esclavitud o las prácticas análogas
a la esclavitud, la servidumbre o la extracción de
órganos (UNODC, 2004, pp.44-45).

A Lei 13.344/2016, com mais de uma década e meia


de negociações e pressão da sociedade, foi aprovada no
Congresso Nacional com um texto que se assemelha àquele
consensuado mundialmente:
Agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir,
comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave
ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com
a finalidade de: 
I - remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo; 
II - submetê-la a trabalho em condições análogas
à de escravo; 
III - submetê-la a qualquer tipo de servidão; 
IV - adoção ilegal; ou 

V - exploração sexual (BRASIL, 2016)

No entanto, a experiência de quem acompanhou de


perto as negociações e os debates travados no âmbito do
Comitê Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas
(CONATRAP) e dos movimentos sociais, permite observar
duas diferenças significativas no texto nacional. A primeira
é a inclusão do verbo ‘comprar’ no caput do artigo. Essa
introdução põe por terra as tentativas diversas de desconsi-
derar a adoção de crianças mediante paga cuja justificativa

280
não era a exploração, mas a proteção e o afeto. Resolveu-
se no texto uma das saídas utilizadas pelos traficantes de
crianças visando à impunidade jurídica.
O outro aspecto importante do texto da Lei
13.344/2016 é que separou a finalidade do trabalho em con-
dições análogas à de escravo e a servidão da finalidade ‘ex-
ploração sexual’63. Esse texto propõe um diferencial no en-
frentamento das ideias trazidas por CEDAW e Palermo, ou
seja, causa fissura no senso comum tão firmemente escrito
e discursado vinculando a finalidade do tráfico como sen-
do para a “exploração sexual”. Essa terminologia complexa
tem sido mantida e, por vezes, contém a discussão sobre a
prostituição ou se separa dela. Nesse aspecto, especialmen-
te, o texto brasileiro avança na garantia de direitos de crian-
ças e mulheres na medida em que não junta prostituição
com exploração sexual, nem tampouco a prostituição com
o tráfico de pessoas de forma linear.
Sobre o conceito de tráfico, são poucos os exercí-
cios realizados na medida em que necessita de outras ciên-
cias sociais, ou seja, para além das definições jurídicas que
visam tipificar o crime. Nessa perspectiva, Scandola (2016)
afirma que o tráfico de pessoas é:
a ação de pessoas, grupos e/ou organizações que
atuam sobre pessoas ou grupos, considerando-as
reduzidas à condição de mercadoria, auferindo
ganhos materiais e/ou simbólicos, com vistas
à manutenção da produção e reprodução das
diferentes cadeias produtivas, lícitas e∕ou ilícitas.
(SCANDOLA, 2016, p.56)

63 No Brasil, a exploração sexual refere-se a crianças e adolescentes,


ou seja, de acordo com o ECA, a menores de 18 anos.

281
Tal definição está inscrita na perspectiva de que o
tráfico de pessoas existe a serviço da manutenção do capital
que com suas regras de exploração da força de trabalho e da
regra de a tudo e a todos transformar em mercadoria. Não
se trata, dessa forma, de compreender a traficância como
existindo caso a caso, mas no contexto da organização da
produção capitalista mundializada. Conforme afirma Ianni
(2013), a divisão intra e internacional do trabalho determina
os lugares de trabalho na cadeia produtiva e, com isso, a
concentração de riqueza e poder ocorre de forma planejada,
inclusive os lugares que serão inseridos visando à explora-
ção da mão-de-obra e da natureza.
O tráfico de pessoas mundializado no mesmo ras-
tro do capitalismo, exatamente pela contradição inerente a
esse sistema, embora não apareça em alguns países sede da
concentração, ocorre em toda a cadeia produtiva cujo tra-
balho mais aviltado em direitos está localizado nos países
do sul. Por isso, pretende-se, com esse texto, analisar os
dados mundiais disponíveis em órgãos das Nações Unidas,
buscando compreender os câmbios que ocorrem no tráfico
de pessoas e suas relações com as mudanças no modo de
produção capitalista.

282
TENDÊNCIAS MUNDIAIS DO TRÁFICO DE PES-
SOAS E OS TERRITÓRIOS

Sol de alto Perú


Rostro Bolivia, estaño y soledad
Un verde Brasil besa a mi Chile
Cobre y mineral; Subo desde el sur
Hacia la entraña América y total
Pura raíz de un grito
Destinado a crecer y a estallar
Todas las voces, todas
Todas las manos, todas
Toda la sangre puede
Ser canción en el viento

A realidade documentada sobre o tráfico de pes-


soas no mundo, aponta, contrariamente ao senso comum,
que esta violação de direitos, cada vez mais, está vinculada
à finalidade na exploração do trabalho em suas diferentes
perspectivas e (i)licitudes. Essa realidade impõe criticidade
sobre os paradigmas sedimentados até então, como a fina-
lidade para o mercado sexual, os destinos longínquos e as
mulheres vitimizadas quase que na totalidade.
Ao percorrer os diferentes documentos mundiais,
os dados vão apontando que o processo de mundialização
do capital cada vez mais acentua as condições vulnerabili-
zantes, desterritorializando pessoas e empurrando-as para
as redes do tráfico. Cadeias produtivas como a automobi-
lística ou do chocolate, por exemplo, cujo trabalho agrícola
ou de produção de carvão estão na base da sua sustentação,

283
têm a invisibilidade dos não direitos dos trabalhadores do
sul, sendo que, nos países europeus que discursam a não
existência do tráfico de pessoas nos seus territórios, utili-
zam da primarização produtiva escravocrata.
Essa decisão ético-político-teórica exige que se
afirme que, diante da complexidade de análise dos dados
presentes em diversas fontes de informações sobre o qua-
dro quantitativo do tráfico, fazer a opção por este ou aquele
dado já é, em si, uma decisão política. No caso desse artigo,
optou-se pelas fontes oficiais do Sistema ONU.
Na contemporaneidade, está a cargo do Escritório
das Nações Unidas para Drogas e Crime – UNODC, a partir
de 2010, compilar os dados sobre o tráfico de pessoas no
mundo. Três relatórios mundiais foram realizados por essa
organização, como segue:
a) Relatório 2009, referindo-se aos dados de 2003 a
2006, com o registro de 51.864 vítimas (UNODC,
2009);
b) Relatório 2012, referindo-se ao período de 2007
a parte do ano de 2010, com o registro de 43 mil
vítimas (UNODC, 2012) e
c) Relatório 2014, referindo-se ao período de parte
do ano de 2010 a 2012, com o registro de 40.177
vítimas (UNODC, 2014).

Como a própria UNODC constata, os dados foram


coletados, majoritariamente, por organismos governamen-
tais, variando o número de países como também quais en-
viaram, a cada período, os seus dados. Por isso, esses dados
estão longe de espelhar fidedignamente a realidade do trá-
fico, mas se constituem em indicativos sobre os processos
que estão ocorrendo em diferentes regiões do mundo e tam-

284
bém sobre a realidade dos países, no que se refere ao regis-
tro de dados sobre o tráfico de pessoas.
A busca de compreensão da dinâmica do tráfico de
pessoas no mundo levou à divisão dos dados por região,
sendo: 1) América do Norte, Central e Caribe; 2) Améri-
ca do Sul; 3) Oeste e Europa Central; 4) Leste Europeu e
Ásia Central; 5) Sul da Ásia; 6) Leste da Ásia e Pacífico; 7)
Norte e Meio Leste da África e 8) África Subsaariana. O
Relatório 2014 apresenta os dados referentes às ocorrências
de tráfico registradas dentro das regiões, como também as
transpondo. A figura que se segue apresenta tanto a organi-
zação dos dados por região, como também a expressão dos
dados referentes ao tipo de tráfico (regional64 ou transregio-
nal) que ocorre em cada uma delas.
Figura 1: Mapa da detecção de vítimas do tráfico por
sub-região e transregional entre os anos de 2010-2012

Fonte: UNODC, 2012.

64 Regional é a terminologia utilizada para designar um continente


quando se trata de estudo mundial. Quando se trata de estudos conti-
nentais, regional significa países próximos que constituem blocos eco-
nômicos ou políticos e que tem tratados comuns.

285
O tipo de tráfico – doméstico ou nacional, intrarre-
gional ou transregional - também é decisivo na forma de
organização da traficância. Segundo o Relatório de 2014,
existem as pequenas operações locais, médias organizações
regionais e grandes organizações transregionais. Dentre as
características preponderantes nos três âmbitos de ocorrên-
cia do tráfico está o número de vítimas em cada operação e a
quantidade de participantes delas. Agrega-se a esses dados
o volume de financiamento necessário para responder aos
níveis de complexidade que cada operação exige, sobretudo
quando se inserem a falsificação de documentos e a traves-
sia de fronteiras com fiscalização policial ou alfandegária.
Os dados também apontam que o maior volume de
tráfico ocorre internamente nas regiões e está diretamente
ligado às possibilidades de trabalho entre países próximos.
Outro dado que os Relatórios 2012 e 2014 trazem é que o
tráfico de pessoas internamente em cada país existe e inde-
pende do tamanho geográfico do país. Pode ocorrer em lu-
gares com grande extensão e população, como o Brasil e a
Índia, mas também existe em países pequenos em extensão
da Ásia e mesmo da Europa.
A recolocação da discussão do tráfico de pessoas a
partir dos territórios internos nos países e intrarregionalmen-
te nos continentes quebra um paradigma importante presen-
te nos documentos existentes no histórico do enfrentamento
ao tráfico de pessoas. Significa que o tráfico não está fixa-
do na máxima do início das discussões que se referiam às
mulheres com a finalidade de “prostituí-las” no estrangeiro.
Atualmente, há visibilidades maiores e já se registram que
as finalidades e os gêneros são diversos e os deslocamentos
podem ser de curtas distâncias, sem necessariamente trans-

286
por continentes ou fronteiras de nações, como ocorria tanto
nas tratativas legais como nos discursos oficiais.
A ideia predominante de que mulheres que eram
traficadas da Europa para os outros continentes no final no
século XIX e início do século XX e, posteriormente, a ida
das mulheres da Ásia, América Latina e Central e África
para a Europa, compõe uma das possibilidades de tráfico e
não mais as únicas rotas de traficância.
Os dados da traficância intrarregional são díspares
entre regiões, sendo que no Leste europeu e Leste asiático,
América do Sul e África subsaariana o tráfico interno está
acima de 90% do total dos casos. Em contrário, nos USA
junto com América Central e Caribe e Oeste da Europa, o
tráfico inter-regional fica em torno de 40%. O diferencial
de todos os dados é que o tráfico de pessoas do Norte da
África em direção ao continente europeu supera o tráfico
intrarregional chegando a 68% do total de casos. Sugere-se,
com esses dados, que, mesmo com divisão internacional do
trabalho internamente nos continentes, é possível que haja
países com maior chamamento para o trabalho e, por isso,
há uma divisão intra-continental do trabalho e, quando há
profunda escassez de trabalho, tanto pode ocorrer a busca
por melhores condições de vida em países próximos e, na
falta desses, em territórios mais longínquos.
Referente às finalidades para as quais se traficam
pessoas, todos os Relatórios seguem uma linha bastante
parecida e dividem, por exemplo, o ano de 2012, em três
categorias:
(a) Exploiting the prostitution of others or other
forms of sexual exploitation;

287
(b) Forced labour or services, slavery or practices
similar to slavery and servitude;

(c) Removal of organs (UNODC, 2012, p. 34).

Nos dados de 2009, não aparece evidenciado o trá-


fico de órgãos dentre as finalidades da traficância, e em to-
dos os relatórios não aparece a finalidade de adoção ilegal,
como se pode observar no gráfico a seguir:
Figura 2: Gráfico demonstrativo das finalidades para as
quais se traficam pessoas no mundo, em porcentagem,
nos períodos entre 2003-2012.

Fonte: UNODC, 2009; UNODC, 2012 e UNODC, 2014.

No que se refere à exploração sexual, no Relatório


de 2012 foi explicitado o que ocorre tanto na exploração
sexual forçada quanto na exploração sexual legal65. No en-
65 Registre-se que no Relatório da UNODC (2012) não há distinção entre pros-
tituição voluntária de adultas/os e exploração sexual de crianças, não sendo,
portanto, possível compreender a complexidade apresentada pelos dados. Pela
leitura contextual do texto, ou seja, tratar-se de diferentes países com diversi-
dade de legislações, o que se denomina de exploração sexual legal refere-se às
localidades em que a prostituição é regulamentada/legalizada.

288
tanto, não se evidencia, em nenhum Relatório, se a termi-
nologia “exploração sexual” refere-se somente a crianças
ou também a adultos. Tais dificuldades são expostas nos
diferentes documentos, evidenciando que a coleta de dados
é realizada a partir dos dados dos países. Ou seja, diversas
formas de compreensão sobre as finalidades da exploração
são registradas pelos Estados-parte, com possibilidades de
concepções até mesmo antagônicas. No caso do que pode
ocorrer no trabalho no mercado sexual, por exemplo, para
alguns países o trabalho individual é legalizado e para ou-
tros é criminalizado, como também pode ser negada a sua
existência. O fato é que, em todos os Relatórios, a nomen-
clatura utilizada é “exploração sexual”, o que pode denotar,
a princípio, que embora possa haver distinção, no cômputo
geral, a diferenciação não está posta.
O tema da prostituição confundindo-se com o da
exploração sexual abriga as contradições dos próprios mo-
vimentos anti-tráfico. Pode aglutinar de um lado feministas
que consideram todas as formas de organização do mercado
sexual como subjugação das mulheres e, nesse caso, jun-
tam-se com fundamentalistas cristãos e, de outro lado, os
próprios movimentos de trabalhadoras e trabalhadores do
mercado sexual que se juntam com outros movimentos so-
ciais, inclusive feministas que pautam os direitos sexuais e
a garantia de direitos no trabalho sexual. Nos movimentos
estão, portanto, os grupos abolicionistas, regulamentaristas
e os libertários e isso reflete tanto nos relatórios dos países
quanto nos dados mundiais. Em pauta, em todos os docu-
mentos, o trabalho.
Os dados dos três Relatórios evidenciam uma ten-
dência de aumento no percentual de trabalho forçado. Per-

289
cebe-se uma forte influência do tema tráfico para explora-
ção no trabalho na consideração pelas políticas públicas dos
países. Sinaliza a possibilidade de uma maior proximidade
entre as ações contra o trabalho escravo – sobejamente mais
visível no mundo inteiro - realizando as notificações das
situações de tráfico de pessoas e integrando os temas.
Há que também considerar que as situações de trá-
fico de pessoas para fins de exploração no trabalho sexual
ou mesmo exploração sexual de crianças e adolescentes não
ocorrem, geralmente, em cadeias produtivas legalizadas, e
isso dificulta a notificação, segundo os Relatórios da UNO-
DC. Já o dito ‘trabalho escravo’ ocorre majoritariamente
em locais de trabalho lícito, o que facilita a fiscalização e
a demanda de ações por parte das políticas públicas, espe-
cialmente aquelas ligadas ao trabalho. Essa balança ideopo-
lítica calcada em valores da moral sexual patriarcal pode
estar sendo o diferencial na visibilidade do tráfico a partir
da discriminação de gênero.
Uma realidade brasileira, que também pode se con-
figurar em outros países, é o que aparece no Atlas do Tra-
balho Escravo no Brasil (THÉRYet al, 2009), que indica
a presença de homens resgatados em até 50% maior que a
das mulheres. Se, de um lado, isso pode significar que não
havia mulheres vítimas nas operações de resgate, por ou-
tro lado, também pode significar que as atuações de resgate
somente são realizadas em locais de trabalho majoritaria-
mente masculinos, desconsiderando-se as especificidades
do mundo do trabalho em que as mulheres estão inseridas.
Se tal configuração se confirmar, ter-se-ia a discriminação
institucional de gênero.

290
De acordo com a Convenção para Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher – CE-
DAW, a expressão “discriminação contra a mulher” signi-
fica:

toda a distinção, exclusão ou restrição baseada


no sexo e que tenha por objeto ou resultado
prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou
exercício pela mulher, independentemente de seu
estado civil, com base na igualdade do homem
e da mulher, dos direitos humanos e liberdades
fundamentais nos campos político, econômico,
social, cultural e civil ou em qualquer outro
campo (CEDAW, 1979).

A não consideração da escravidão feminina em di-


ferentes setores produtivos, inclusive no mercado sexual,
além da discriminação de gênero e abandono das mulheres
pela política pública, potencializa a visão do senso comum
que considera que os “trabalhadores honestos” estão no tra-
balho escravo e, portanto, masculino. No tráfico de pessoas,
estão as mulheres nas cadeias produtivas ilícitas ou moral-
mente condenáveis, portanto, trabalhadoras do desviante,
do imoral. Quando também as mulheres estão inseridas em
trabalhos domésticos e da esfera da reprodução, ou seja,
fora do mercado formal masculino, há sua invisibilidade
para a política pública e confirma-se, assim, o seu não di-
reito.

291
Figura 3: Gráfico demonstrativo de gênero e geração
das pessoas traficadas no mundo segundo a UNODC.

Fonte: UNODC, 2009; UNODC, 2012 e UNODC, 2014.

Há possibilidade de que as mulheres também es-


tejam inseridas nos dados referentes ao trabalho forçado,
pois quando se analisam os dados referentes a “quem são as
pessoas traficadas” nos Relatórios da UNODC, constata-se
que o somatório de mulheres e meninas supera a finalidade
da exploração sexual, como pode ser observado no gráfico
acima.
Os dados do gráfico acima se referem numericamen-
te a valores diferentes e crescentes em cada Relatório, não
podendo ainda caracterizar que o número de homens trafi-
cados foi mais notificado e, portanto, com mais incidência
nos relatórios nos seus países. No entanto, uma tendência
do registro da UNODC demonstra que há um aumento per-
centual de notificações de homens, meninos e meninas. Nos
dados sobre as finalidades do tráfico, podem estar constan-

292
do notificações mais evidenciadas no mundo do trabalho,
além da caracterização maior de crianças e adolescentes.
Segundo os Relatórios, tanto os casos de exploração sexual
infanto-juvenil podem ter entrado no item trabalho forçado
quanto na finalidade exploração sexual em si. Assim, tam-
bém, a finalidade de casamento servil pode estar nos dois
quesitos66.
Outra fonte de dados sobre o tráfico de pessoas no
mundo é a Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Essa Organização também faz parte do Sistema ONU, tem
seus relatórios publicados regularmente e a temática apro-
ximativa, por que não dizer, integrativa da discussão do trá-
fico de pessoas é o trabalho forçado. Conforme afirma em
seu Relatório de 2013, a discussão entre o trabalho forçado
e o tráfico de pessoas tem sido maximizada a partir do Pro-
tocolo de Palermo (UNODC, 2004), visando promover o
encontro com a Convenção 29 (OIT, 1932).
Via de regra, no encontro desses dois documentos
internacionais – Protocolo de Palermo e Convenção 29 -,
ratificados pelo Brasil há diferenças na sua cobertura dos
tipos de violações de direitos. O Relatório da OIT de 2014
indica que, embora alguns queiram configurar no mesmo
crime, estes são relacionados, mas não idênticos. No tráfi-
co de pessoas, além do trabalho forçado existe também as
66 Os documentos internacionais trabalham com duas ideias quando se
referem a casamento sendo: a) o casamento em que se mantem a mulher
sob suas ordens e a finalidade além do convívio conjugal e filhos, a
mulher é explorada no cuidado de familiares dependentes como idosos
e pessoas com deficiência. b) casamento como estratégia para entrada
e saída de países sendo a finalidade não considera o convívio conjugal,
ou seja, a finalidade é dispor, no local de destino, à exploração. As situa-
ções mais conhecidas são para o mercado sexual em situação análoga
à de escravo.

293
finalidades de tráfico de órgãos e a adoção. Todos os docu-
mentos tratam pouco da discussão do casamento e da ado-
ção, mas os relatos indicam que embora possam se intitular
como casamento e adoção, esses podem ter na sua essência
a finalidade de exploração no trabalho e, no caso da adoção
também pode ser de tráfico de órgãos. Por isso que, às ve-
zes adoção e casamento aparecem como finalidade e outras
como estratégia.
Um dos questionamentos em pauta é a existência
do trabalho forçado sem que tenha ocorrido o tráfico de
pessoas. Assim, a própria OIT registra a necessidade de
compreensão das diferentes realidades do trabalho, visando
explicitar a vinculação ou não do trabalho forçado com o
tráfico de pessoas. Por isso, as discussões sobre escravatu-
ra, trabalho forçado e tráfico de pessoas ainda são objetos
de possibilidades de acordações internacionais, sendo ne-
cessário acelerar o processo, posto que “a maior parte do
tráfico de pessoas resulta em trabalho forçado ou em explo-
ração sexual” (OIT, 2014, p.7).
Dentre as principais discussões que são colocadas
pelo Relatório, o trabalho forçado pode ocorrer também
mediante o contrabando de migrantes. Assim, as condições
aviltantes dos direitos dos migrantes indicam que pode ha-
ver sujeição ao trabalho forçado e, portanto, exploração.
No entanto, o meio utilizado é o contrabando na medida
em que, ao chegar ao território de destino, o trabalhador
é relegado à própria sorte, não caracterizando o tráfico de
pessoas. As condições migratórias – regulares ou irregula-
res – com maior ou menor autonomia e acesso a direitos
nos territórios por onde caminham os migrantes são impor-
tantes na forma de submissão, especialmente na migração

294
irregular e no modo como os países atuam na garantia de
direitos ou na negação dos direitos dos trabalhadores. Por
isso, a linha tênue entre contrabando de migrantes e tráfico
de pessoas.
Mesmo considerando que o trabalho forçado é uma
infração grave em praticamente todos os países, a atuação
dos Estados-nação também pode ter a compreensão de que
a migração irregular é um delito individual e, portanto, pas-
sível de expulsão. Neste caso, o trabalho forçado é pratica-
mente desconsiderado, em face das leis migratórias rígidas
e∕ou restritivas. Ao apresentar os dados sobre trabalho for-
çado no mundo, a própria OIT registra que é preciso consi-
derar as diferenças legislativas e culturais sobre o trabalho,
migração e tráfico de pessoas. Mesmo assim, considerando
que inicialmente as ações incidiram prioritariamente na fi-
nalidade de exploração sexual, “o tráfico para o trabalho
forçado foi adquirindo cada vez mais relevância” (OIT,
2014, p.6).
Nos Relatórios da OIT, percebe-se que não há dis-
tinção entre exploração sexual, prostituição forçada e pros-
tituição voluntária, podendo ser indicadores de situações
com a mesma nomenclatura. Um dos marcos também im-
portantes deste Relatório é o que insere todos os tipos de
trabalho forçado no conjunto de dados e apresenta como
estimativa de trabalho forçado no mundo o total de 22 mi-
lhões e 900 mil pessoas, sendo assim distribuídos:

295
Figura 4: Gráfico demonstrativo do número de pessoas
em trabalho forçado no mundo, por região, no ano de
2012.

Fonte: Relatório da OIT, 2014.

Embora o Relatório não explicite o critério para a


divisão das regiões visando estimar o trabalho forçado, per-
cebe-se que há uma ideia básica sobre o que são as regiões
políticas definidas em outros documentos da OIT. Esses da-
dos podem parecer bastante diversos em termos regionais,
mas, ao se considerar a prevalência, apresenta-se um dado
mais interessante para compreender “onde” o trabalho for-
çado é mais notificado e∕ ou com maior ocorrência.
A quantificação do tráfico de pessoas em cada região,
país ou mesmo continente é sempre parcial e incompleta,
pois se trata de crime. Mesmo ocorrendo em cadeias pro-
dutivas formais, lançar o olhar sobre ele implica compreen-
der a cultura e as legislações locais. O tráfico de pessoas se
transmuta de acordo com o contexto de inserção extensiva
e intensiva dos territórios na acumulação mundial do capi-
tal, e seus impactos nem sempre são visíveis pelo conjunto
296
da sociedade. Como afirma Ianni (2013), no processo de
globalização os sentimentos são diversos e podem ser de
fascínio, medo e curiosidade. Mas, estar inserido na glo-
balização, para muitas comunidades, pode significar uma
elevação de status diante das demais. Isso poderia significar
uma subjugação da localidade à globalização, mesmo que o
preço seja abrir mão de parte de sua riqueza.
Figura 5: Prevalência de trabalho forçado por região,
no mundo, em 2012 ∕1000 habitantes.

Fonte: Relatório da OIT, 2014.

Dados da OIT e UNODC informam que o tráfico


majoritariamente ocorre fora dos países do centro do poder
econômico, ou seja, União Europeia e Estados Unidos. Esta
violação de direitos humanos expressa as fraturas econô-
micas e sociais que ocorrem nos territórios, com base na
divisão intra e internacional do trabalho. Reforça, portanto,
a ideia que é preciso verificar toda a extensão da cadeia
produtiva e não somente os dados focalizados em um dado
país ou região.
Os territórios locais, regionais e mundiais tornam-
se demonstrativos da concretude da intensificação dos pro-
297
cessos de globalização e, por se constituírem em dimen-
são mais econômico-política do que física, não podem ser
delimitados apenas pelo espaço, mas pela conjugação des-
te com o tempo histórico em que está se processando sua
construção no campo das ideias e das relações sociais no
mundo globalizado.
Os dados apresentados por essas duas organizações
do Sistema ONU – UNODC e OIT - conjugam com a ideia
sobre “[...] a desterritorialização e a reterritorialização das
coisas, gentes e ideias” (IANNI, 2013, p.19), mantendo e
aprofundando a alienação sobre as raízes dos problemas e
construindo fascínios e desejos em relação ao ‘mais civili-
zado’, com o exótico. Assim, sedimenta-se o imaginário do
pertencimento ao desenvolvimento global, o que desvia o
olhar do próprio viver local em face de desigualdades pro-
vocadas por esse mesmo modelo.
Segundo o Relatório do UNODC 2012, a região sul
-americana é a que mais relata tráfico para fins de explo-
ração sexual do que para outras formas, como o trabalho
forçado. Esse último tem na situação de bolivianos no Bra-
sil a mais recorrentemente citada nos relatórios. O referido
Relatório também indica que 5 mil pessoas foram identifi-
cadas como estando em situação de escravidão ou trabalho
degradante e, dentre elas, as de nacionalidade boliviana.
A saída de sul-americanos para outras regiões ocor-
re especialmente para a Europa Ocidental e Central, onde
foram identificadas em torno de 6% das vítimas. Brasileiros
e brasileiras vítimas do tráfico foram identificados em 12
países desta região, como também em Israel.
No Relatório de 2014 da UNODC, há duas referên-

298
cias significativas sobre a realidade brasileira. A primeira
relata a ação da justiça brasileira, ao condenar um estran-
geiro que traficou mulher com estratégia de casamento e
a colocou para o trabalho no mercado sexual. Por outro
lado, reforça que o tráfico intrarregional na América La-
tina ocorre de regiões mais pobres para regiões com mais
oferta de trabalho e cita novamente a situação de bolivianos
(já presente no Relatório de 2012), indicando que a saída
deles tem como destino a Argentina, Chile e Brasil. Por ou-
tro lado, a entrada de pessoas traficadas na América Lati-
na indica cerca de 6% de vítimas detectadas, sendo essas
migrantes da Ásia Oriental e, em situações esporádicas, da
América Central e Caribe.
CONSIDERAÇÕES COM VISTAS AO FOGO DA ES-
PERANÇA!

¡Canta conmigo, canta


Latinomericano
Libera tu esperanza
Con un grito en la voz!

Ao buscar a leitura sobre os dados do tráfico de pessoas


no mundo, especialmente no que se refere a todas as formas
de trabalho forçado, é preciso compreender como cada região
está inserida no processo de globalização. Convém entender,
sobretudo, como os países se organizam intranacionalmente e
intrarregionalmente para cumprir as metas de inserção capita-
lista em tempos de mundialização do capital.
Tanto os relatórios sobre o tráfico de pessoas quanto
os referentes ao trabalho forçado não informam quais são os

299
setores econômicos que se beneficiam do tráfico de pessoas.
Isto é, as análises dos dados estão focadas nos dados em si, e
não nos processos produtivos que geraram a demanda e a ofer-
ta na traficância. As condições dos diferentes territórios não
compõem as análises sobre as motivações socioeconômicas
que provocam o tráfico, muito embora sinalizem que há um
aumento desta violação de direitos no mundo.
A Resolução 50/167 de 1994 da ONU (ONU, 1995),
afirma que o tráfico de pessoas beneficia “proxenetas, trafican-
tes e organizações criminosas, assim como outras atividades
ilícitas relacionadas com o tráfico de mulheres, por exemplo,
o trabalho doméstico forçado, os casamentos falsos, os empre-
gos clandestinos e as adoções fraudulentas”. Tais afirmações
oficiais dos documentos internacionais vão construindo uma
ideia de que o lucro com a mercancia de pessoas ocorre na
própria rede traficante, desconsiderando as organizações capi-
talistas lícitas e ilícitas que também se beneficiam dele. Ao ab-
solver a cadeia produtiva global e focalizar a responsabilidade,
aliena-se sobre os grandes beneficiários do tráfico de pessoas.
Os territórios locais, engendrados em uma teia global,
implementam a desregulamentação das garantias do trabalho
e configuram as políticas sociais sob a égide neoliberal, garan-
tindo direitos sociais focais e sob a lógica dos mínimos sociais.
Em outra ponta, o capitalismo, por meio de suas redes comu-
nicacionais, incita a possibilidade de consumo igualitário, in-
clusive, pautando a ideia da migração como possibilidade de
“vencer” a estagnação e a perspectiva de superação das reali-
dades de não direitos em que vive grande parte da humanidade
hoje.
É possível perceber que o tráfico de pessoas se
intensifica de acordo com a inserção dos territórios no
300
processo produtivo mundializado e, assim, o tráfico se põe a
serviço do capital transnacional. O poder econômico e o poder
de decisão, assim como o trabalho com melhores condições,
localizam-se nos países ricos, e o trabalho caracterizado pela
menor proteção ocorre mais expressivamente nas regiões onde
existe a precarização das condições e das relações de trabalho
e o não respeito e/ou ausência de direitos sociais e econômicos.
Os dados sobre o Tráfico de Pessoas disponibilizados
mundialmente no âmbito do UNODC, mesmo que ainda frá-
geis diante da realidade (isso é afirmado pelos próprios respon-
sáveis pelos bancos de dados), informam que há uma mudança
importante na ocorrência da traficância e, por isso, a ideia an-
teriormente predominante como sendo necessário atravessar
mares e fronteiras entre países. A divisão intra e internacional
do trabalho mundializou as desigualdades e, portanto, determi-
nou os lugares de escravidão e da mercancia de pessoas. Ne-
nhuma finalidade do tráfico ocorre isoladamente caso a caso.
Pelo contrário, explorar no trabalho, na adoção ou na comer-
cialização de órgãos estão dentro dos mesmos pressupostos
das desigualdades.
Na América Latina, as análises precisam ser estuda-
das à luz da sua inserção na mundialização concentradora de
poder, dos impactos das políticas conservadoras escravocratas
fetichizadas como liberais-desenvolvimentistas e do seu his-
tórico regional de manutenção das ditaduras, com raros res-
piros democráticos. Essas condições sócio-históricas mantêm
e aprofundam as assimetrias, e as desigualdades de classe são
potencializadas com aquelas de gênero, geração, etnorracial,
origem territorial, orientação afetivo-sexual, deficiências,
dentre outras. Esperançosamente, esse caldo de aviltamento é
também o impulsionador de movimentos de resistência e exer-

301
cícios de humanidades rebeldes que bordam teias permanen-
temente.
Por isso que o desafio é de múltiplas possibilidades de
se construir outras formas de ser e viver no mundo, conside-
rando as diversidades formas e intensidade dos movimentos de
contestação e suas particularidades, tanto nas necessidades de
denúncia, sobretudo no desejo de anúncio de um devir possí-
vel. Não há receitas prontas sobre o enfrentamento ao tráfico
de pessoas - que opera na mercantilização dos humanos – mas
há a direção: combater o próprio sistema que assim nos con-
sidera.
Quaisquer segmentações entre os movimentos preci-
sam ser no sentido de potencializar a democracia das formas
de participar e cativar a esperança. Os movimentos restritivos
de direitos em nome de valores hegemônicos, baseados no
cerceamento das liberdades, não podem compor as fileiras de
gentes alegres que corageiam em direção à utopia.
Há que se juntar temas, gentes e políticas na perspec-
tiva da ação cotidiana, continuada, local, regional e mundial
sem nenhuma hierarquia de importância, mas integrantes da
mesma luta: um mundo sem exploração e alegre de coloridas
esperanças que marcham pelos pés latinos e dançam com seus
próprios sons!

Todas las voces todas


Todas las manos todas
Toda la sangre puede, ser canción en el viento
Canta con migo canta, hermano americano
Libera tu esperanza con un grito en la voz

302
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei 13.344/2016 de 06 de outubro de 2016. Dispo-
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full_report.pdf. Acessado em 22 de set 2017.

304
AUTORES

ÁLVARO BANDUCCI JÚNIOR


Doutorado em Antropologia (USP). Atualmente é docente
do curso de Ciências Sociaise do Programa de Pós-Gradua-
ção em Antropologia Social (UFMS)e na Pós-Graduação
em Antropologia da UFGD. Pesquisador das temáticas:
identidade regional, fronteira, turismo e pantanal. Coor-
denador do Laboratório de Antropologia Visual “Alma do
Brasil” (LAVALMA).

ANA PAULA MARTINS AMARAL


Pós-Doutora em Direito (UFSC). Professora Associada da
UFMS. Professora permanente do Programa de Mestrado
em Direitos Humanos da UFMS. Tem experiência na área
de Direito, com ênfase em Direito Público, atuando prin-
cipalmente nos seguintes temas: Direito Internacional Pú-
blico, Direito Internacional Privado. Direitos Internacional
dos Direitos Humanos, Propriedade Intelectual.

ANDRÉA FLORES
Doutora em Direito (PUC-SP). Atualmente é professora ti-
tular da UCDB e professora concursada da UFMS. Tem ex-
periência na área de Direito, com ênfase em Direito Penal,
atuando principalmente nos seguintes temas: Direito Penal,
Processo penal, Penas, Crimes e Prova.
305
ANDRÉA LÚCIA CAVARARO RODRIGUES
Mestranda em Antropologia Social – PPGAS/UFMS. Especia-
lista em Antropologia História dos Povos Indígenas (UFMS).
Bacharela em Ciências Sociais (UFMS). Pesquisadora da His-
tória dos Povos Indígenas na região de Mato Grosso do Sul.
Membro do Grupo de Pesquisa (CNPq) “Antropologia, Direitos
Humanos e Povos Tradicionais”.

ANTONIO HILÁRIO AGUILERA URQUIZA (ORG.)


Doutorado em Antropologia pela Universidade de Salamanca/
Espanha; atualmente é docente do curso de Ciências Sociais, da
Pós-Graduação em Direitos Humanos da UFMS e do Programa
de Pós-Graduação em Antropologia Social (UFMS) e Professor
colaborador da Pós-Graduação em Educação (UCDB). Pesqui-
sador da temática indígena e líder do Grupo de Pesquisa (CNPq)
“Antropologia, Direitos Humanos e Povos Tradicionais”.

CÉSAR AUGUSTO SILVA DA SILVA


Doutorado em Ciência Política (UFRGS). Possui a Certificação
Acadêmica do Instituto Interamericano de Direitos Humanos
de San Jose da Costa Rica. Atualmente é professor adjunto da
Faculdade de Direito (UFMS), e professor do Mestrado In-
terdisciplinar Fronteiras e Direitos Humanos da Faculdade de
Direito e Relações Internacionais da UFGD. Tem experiência
na área de Direito, com ênfase em Direitos Humanos, atuando
principalmente nos seguintes temas: refugiados, migrações in-
ternacionais, direitos humanos, direito internacional, cidadania
e relações internacionais.

306
CÍCERO RUFINO PEREIRA
Mestre em Estudos Fronteiriços (UFMS). É procurador do Tra-
balho do Ministério Público do Trabalho - MPT (no Estado de
Mato Grosso do Sul). Coordenador do Fórum de Trabalho De-
cente e Estudos sobre Tráfico de Pessoas - FTD-ETP. Professor
de Direito do Trabalho e Direito Previdenciário em graduação,
pós-graduação e em cursinhos preparatórios para concursos pú-
blicos em diversas instituições de ensino de Mato Grosso do Sul.

DOLORES PEREIRA RIBEIRO COUTINHO


Doutora em Ciências Sociais-Sociologia (PUC-SP). Professo-
ra Titular da UCDB. Tem experiência em pesquisa histórica e
social, principalmente nas temáticas: religiosidade, territoria-
lidade, mercado de trabalho, escolarização formal, gênero e
desenvolvimento local. Docente Permanente do Programa de
Mestrado Acadêmico Interdisciplinar em Desenvolvimento Lo-
cal da UCDB.

ESTELA MÁRCIA RONDINA SCANDOLA


Doutora em Serviço Social pelo ISCTE-IUL em co-tutela com
a Universidade Federal de Pernambuco. É professora, e pes-
quisadora da Escola de Saúde Pública de Mato Grosso do Sul,
Tutora da Residência Multiprofissional em Saúde do Hospital
São Julião- HSJ. Membro da Rede Feminista de Saúde, Direitos
Sexuais e Direitos Reprodutivos, atua principalmente nas temá-
ticas de direitos humanos e diversidades, com ênfase na questão
indígena, saúde do trabalhador, tráfico e escravidão de pessoas
e educação popular.

307
JOÃO PAULO CALVEZ
Mestrado em Direito pela Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul (2018). Especialista em Direito Constitucio-
nal Aplicado pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus
- São Paulo/SP (2013). Bacharel em Ciências Jurídicas pela
Universidade Católica Dom Bosco (2011).

LEONARDO CHAVES DE CARVALHO


Mestrado em Direito pela Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul (2018). Pós-Graduado em Direito do Traba-
lho e Processo do Trabalho pela Escola da Magistratura do
Trabalho de Mato Grosso do Sul (EMATRA-MS). Pós-Gra-
duado em Educação em Direitos Humanos pela Faculdade
de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
(FADIR/UFMS).

LEVI MARQUES PEREIRA


Pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade
de São Paulo. Atualmente é professor associado na UFGD,
onde leciona na Faculdade Intercultural Indígena (Licen-
ciatura Intercultural Indígena - Teko Arandu) e participa
dos programas de pós-graduação em Antropologia e Histó-
ria. Tem experiência na área de Antropologia, com ênfase
em Etnologia Sul-americana, atuando principalmente nos
seguintes temas: parentesco e organização social, conheci-
mentos indígenas, antropologia da religião, infância e gêne-
ro, história indígena, terras indígenas e movimento social.

308
LUCIANI COIMBRA DE CARVALHO
Doutorado em Direito (PUC-SP). Atualmente é professo-
ra adjunta da UFMS. Professora do mestrado profissional
PROFIAP e do mestrado acadêmico em direito da UFMS.
Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito
Administrativo e Direitos Humanos, atuando principalmen-
te nos seguintes temas: direito administrativo, licitação e
contratos, serviço público, desenvolvimento sustentável,
direito à saúde, direitos humanos e políticas públicas.

LUMA ALVES FARINA


Acadêmica do curso de Direito da Universidade Católica
Dom Bosco.

MARCO ANTONIO RODRIGUES


Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Direito
da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).
Especialista em Teoria e Filosofia do Direito (PUC-MG).
Bacharel em Direito (UFMS). Pesquisador no Projeto de
pesquisa “Análise do Tráfico e Migração de Pessoas na
Fronteira de Mato Grosso do Sul: Dinâmicas e Modalida-
des” com apoio da FUNDECT e membro do Grupo de Pes-
quisa (CNPq) “Antropologia, Direitos Humanos e Povos
Tradicionais”.

309
MAUCIR PAULETTI
Mestre em Direito Econômico pela Universidade Gama
Filho. Atualmente é professor e supervisor do NUPEJU -
Núcleo de Pesquisa e Monografia do curso de direito da
UCDB. Professor e coordenador do curso Pós-Graduação
em direito do trabalho e processo do trabalho (UCDB),
coordenador da Comissão permanente de investigação e
fiscalização das condições de trabalho de MS e coordena-
dor da COETRAE/MS Comissão estadual de erradicação
do trabalho escravo. Tem experiência na área de Direito,
com ênfase em Direitos Humanos, atuando principalmente
nos seguintes temas: direitos humanos, dano moral, drogas,
responsabilidade civil e constitucionalidade.

ROSA SEBASTIANA COLMAN


Doutorado em Demografia pela UNICAMP. Possui domí-
nio da língua Guarani e tem experiência na área de ensino
de Geografia, com ênfase em Territorialidade, demografia
e Educação Indígena. Atualmente é professora na área de
ciências humanas na Faculdade Intercultural Indígena da
Universidade da Grande Dourados (FAIND/UFGD).

VALDIR ARAGÃO DO NASCIMENTO


Doutorando em Saúde e Desenvolvimento na Região Cen-
tro-Oeste PPGSD/UFMS - (Área de concentração: Saúde e
Sociedade). Tem experiência na área de Antropologia, com
ênfase em Antropologia Urbana, Antropologia da Fronteira
e Sociologia da Cultura.

310

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