Você está na página 1de 342

A editora Marco Teórico considera a publicação de um livro como a mais nobre

forma de intercâmbio cognitivo, associada à oportunidade de expor o resultado


da criação intelectual de profissionais das mais diversas áreas. Por isso,
concentra esforços para oportunizar, a autores selecionados, o mais amplo
acesso ao mercado literário, estimulando iniciativas e conteúdos que fomentam
o desenvolvimento do potencial criativo e promovem a evolução do saber
técnico e científico. Tudo isso, com o escopo de disponibilizar à humanidade as
conquistas obtidas por aqueles cuja principal ferramenta é o
CONHECIMENTO!
ANAIS DO I CONGRESSO DO MIGRAFRON

Apoio Marco Aurélio Machado de Oliveira


Coordenação, Marco Aurélio Machado de Oliveira
edição e revisão
Capa Equipe Marco Teórico
Diagramação Equipe Marco Teórico

Editora Marco Teórico


CNPJ/MF nº 41.239.994/0001-80
Avenida dos Ferreiras, 475, casa 631, Uberlândia – MG
CEP 38.406-136
www.marcoteorico.com.br
Todos os direitos reservados.
Fechamento da edição: 09/2022.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


___________________________________________________________________________________

A532 Anais do I Congresso do Migrafron / Marco Aurélio Machado de Oliveira


2022 [Coordenador]. Uberlândia: Marco Teórico, 2022.
340 p.

Inclui bibliografia.
Obra coletiva. Vários autores.
ISBN: 978-65-998403-5-7

1. Direito Internacional. 2. Migração. 3. Migrafron. Oliveira, Marco Aurélio


Machado de.

CDU: 340/CDD: 341.1


___________________________________________________________________________________
Catalogação na fonte
/

Conselho Editorial
Editora Marco Teórico
http://marcoteorico.com.br/conselho-editorial

ALEXANDRE MAGNO B. PEREIRA SANTOS FRANCISCO ILÍDIO FERREIRA ROCHA


Doutorando em Direito Gestão Pública pela Uni- Doutor em Direito Penal pela PUC-SP. Mestre em
versidade Federal de Uberlândia / UFU. Mestre em Direito pela Universidade de Franca. Professor da
Direito Público pela Universidade Federal de Universidade Federal do Mato Grosso do Sul
Uberlândia / UFU e em Direito Notarial e Registral
pela Universidade Anhanguera – UNIDERP. Pro- GEILSON NUNES
curador Federal (AGU). Doutor em Direito e Mestre em Direito pela Uni-
versidade de Marília – SP. Professor da UNIMAR e
ANTÔNIO SÉRGIO TORRES PENEDO do Curso de Formação de Sargentos e Soldados da
Doutor em Engenharia de Produção pela Universi- PMMG.
dade Federal de São Carlos – UFSCAR. Mestre em
Administração pela Universidade de São Paulo - HELOISA HELENA DE ALMEIDA PORTUGAL
USP. Professor da Universidade Federal de Uber- Doutora em Direito Constitucional pela PUC-SP,
lândia – UFU. Mestre em Direito Negocial pela Universidade Es-
tadual de Londrina. Professora da Universidade
AURÉLIO PASSOS SILVA Federal do Mato Grosso do Sul - UFMS
Doutorando em Direito Administrativo pela
PUC/SP. Mestre em Direito nas Relações Econô- KARLOS ALVES BARBOSA
micas e Sociais pela Faculdade de Direito Milton Mestre em Direito Público pela Universidade Fe-
Campos. Professor efetivo de Direito Administra- deral de Uberlândia. Professor da Universidade Fe-
tivo na Universidade do Estado de Minas Gerais. deral de Uberlândia – UFU.
Procurador do Estado de Minas Gerais.
JOÃO VICTOR ROZATTI LONGHI
CAROLINA LIMA GONÇALVES Pós-Doutor no International Post-doctoral Pro-
Doutoranda em Ciência Política - IPOL/UNB e em gramme in New Technologies and Law do Medi-
Direitos Humanos - UFG. Mestra em Direitos Hu- terranea International Centre for Human Rights
manos pela Universidade Federal de Goiás. Research (MICHR - Università "Mediterranea" di
Reggio Calabria), Itália. Pós-Doutor em Direito
CRISTIANE BETANHO pela UENP. Doutor em Direito do Estado na Facul-
Doutora em Engenharia de Produção pela Univer- dade de Direito da Universidade de São Paulo -
sidade Federal de São Carlos. Professora da Uni- USP. Mestre em Direito Civil pela Universidade do
versidade Federal de Uberlândia – UFU. Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Defensor Público
do Estado do Paraná.
JOSÉ DAVID PINHEIRO SILVÉRIO
Mestre em Políticas Anticorrupção pela Universi- LUIZ CARLOS DE MELO FIGUEIRA
dad de Salamanca. Advogado da União na Advo- Doutor em Direito Administrativo pela Universi-
cacia-Geral da União. dade Federal de Minas Gerais. Professor de Direito
Administrativo da Universidade Federal de Uber-
lândia - UFU.
MARCO AURÉLIO MACHADO DE OLIVEIRA ROSIRIS CERIZZE
Doutor em História Social pela Universidade de Mestre em Direito Empresarial pela Faculdade de
São Paulo. Professor Titular da Universidade Fede- Direito Milton Campos/MG. Mestre em Tributa-
ral de Mato Grosso do Sul. ção Internacional pela Universidade de Lausanne –
UNIL, Suíça. Advogada
MICHEL CANUTO DE SENA
Doutor com ênfase em bullying entre crianças e TALES CALAZA
adolescentes: a questão dos direitos humanos e dos Mestrando em Direito pela UFMG. Advogado.
conflitos escolares (UFMS). Mestre com linha de
pesquisa na Lei nº 11.196/05 - financiamento de TIAGO NUNES
pesquisas pela Universidade Federal de Mato Doutor e Mestre em Direito pela Universidade de
Grosso do Sul – UFMS. Marília-UNIMAR. Professor de Direito Adminis-
trativo na Faculdade ESAMC/Uberlândia.
PHILIPE ANATOLE GONÇALVES TOLENTINO
Mestre em Direitos Humanos pela Universidade VIVIANE RAMONE TAVARES
Federal de Goiás. Advogado e Assessor Jurídico da Mestranda em Compliance pela AMBRA Univer-
Defensoria Pública do Estado de Goiás – DPE/GO. sity. Advogada.

RAFHAELLA CARDOSO WENDEL DE BRITO LEMOS TEIXEIRA


Doutora em Direito Penal pela Faculdade de Di- Mestre em Direito Público pela Universidade Fe-
reito da Universidade de São Paulo - USP. Mestre deral de Uberlândia Professor da Pós-graduação de
em Direito Público pela Universidade Federal de Direito Processual Civil da PUC-MG (Uberlândia).
Uberlândia - UFU. Advogada. Advogado.
Sobre os autores

Coordenador
Marco Aurélio Machado de Oliveira
Professor Titular na UFMS - CPAN, Doutor em História Social pela Universidade de São
Paulo, Docente Permanente do Mestrado em Estudos Fronteiriços (UFMS), Coordenador
do MIGRAFRON (Observatório Fronteiriço das Migrações Internacionais), E-mail:
marco.cpan@gmail.com

Autores
Ana Luísa Prado
Graduanda do 5º semestre do Curso de Direito na Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul; E-mail: ana.prado@ufms.br

Carlo Henrique Golin


Orientador, Professor Doutor – Mestrado em Estudos Fronteiriços, UFMS/CPAN.

Cesar Augusto Silva Da Silva


César Augusto S. da Silva é Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. Possui capacitação em Direito Internacional dos Refugiados pelo Instituto
Internacional de Direito Humanitário, em San Remo (Itália). Professor Adjunto da Facul-
dade de Direito (FADIR) da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), e coor-
denador da Cátedra Sérgio Vieira de Mello (ACNUR/UFMS) na mesma universidade, em
Campo Grande. Além de Professor do Mestrado Interdisciplinar Fronteiras e Direitos Hu-
manos da Faculdade de Direito e Relações Internacionais da UFGD, em Dourados-MS. E-
mail: cesar.a.silva@ufms.br

Daniel Francisco Nagao Menezes


Doutor em Direito Universidade Presbiterina Mackenzie. Professor Universidade

VII
Presbiteriana Mackenzie. nagao.menezes@gmail.com

Daniella Ibarreche de Menezes


Licenciada em Pedagogia pela UFMS – CPAN, Especialista em Educação Infantil pela UFMS
– CPAN, Mestranda do Curso de Pós-Graduação Mestrado em Estudos Fronteiriços da
UFMS – CPAN; E-mail: dani_ibarreche@hotmail.com

Duval Fernandes
Doutor em Demografia. Programa de Pós-Graduação em Geografia – PUC Minas; E-mail:
duval@pucminas.br

Edson Belo Clemente de Souza


Professor Associado da graduação em Geografia e o do Programa de Pós Graduação em Ge-
ografia (PPGEO) da UEPG. E-mail: ebelosozua@uepg.br

Evelyn Flayra Cavalcanti dos Santos


Psicóloga pela UFMS – CPAN, Mestranda do Curso de Pós-graduação Mestrado em Estudos
Fronteiriços da UFMS – CPAN; Email: evelyn_flayra@hotmail.com

Gabriela Brito Moreira


Bacharel em Direito na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. E-mail: gabrielabrito-
moreira.25@gmail.com

Gabrielle Scola Dutra


Doutoranda em Direitos Humanos pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do
Rio Grande do Sul – UNIJUÍ com Bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior - CAPES. Mestre em Direitos Especiais pela Universidade Regional Integrada
do Alto Uruguai e das Missões – URI, campus Santo Ângelo. Especialista em Filosofia na
Contemporaneidade pela URI. Especialista em Direito Penal e Processual prático contem-
porâneo pela Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC. Professora Universitária do Curso
de Direito da Faculdade de Balsas/MA (UNIBALSAS). Integrante do grupo de pesquisa Bi-
opolítica e Direitos Humanos (CNPq). Advogada. E-mail: gabriellescoladutra@gmail.com.

VIII
Gilberto Xavier Loio
Mestrando em Estudos Fronteiriços Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, gilberto-
loio@gmail.com

Isadora Sigarini de Moraes


Enfermeira pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), mestranda em Es-
tudos Fronteiriços pela Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e
membro do Observatório Fronteiriço das Migrações Internacionais pela mesma instituição.
Este trabalho recebeu apoio da FUNDECT (TO 55/2021). E-mail: isadorasigarini@ufms.br

Janaína Machado Sturza


Pós-doutora em Direito pela UNISINOS. Doutora em Direito pela Universidade de Roma
Tre/Itália. Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Especialista
em Demandas Sociais e Políticas Públicas também pela UNISC. Professora na Universidade
Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ, lecionando na Graduação
em Direito e no Programa de Pós-Graduação em Direito - Mestrado e Doutorado. Integrante
da Rede Iberoamericana de Direito Sanitário. Integrante do Comitê Gestor da Rede de Pes-
quisa em Direitos Humanos e Políticas Públicas. Integrante do grupo de pesquisa Biopolítica
e Direitos Humanos (CNPq). Pesquisadora Gaúcha FAPERGS – PqG Edital N° 05/2019.
Pesquisadora Universal CNPq - Chamada CNPq/MCTI/FNDCT N° 18/2021. E-mail: janas-
turza@hotmail.com

João Lucas Zanoni da Silva


Mestre em Fronteiras e Direitos Humanos pela Universidade Federal da Grande Dourados
(UFGD). Especialista em Direito Internacional e Econômico pela Universidade Estadual de
Londrina (UEL). joaolucaszanonidasilva@gmail.com

Júlia Rodrigues Rauber


Bolsista de Iniciação Científica CNPq, junto ao projeto, projeto “Saúde e trabalho: a inclusão
social de migrantes a partir dos marcos legais e das políticas públicas existentes no brasil e
na itália”, financiado pelo Edital Universal CNPq - Chamada CNPq/MCTI/FNDCT N°
18/2021, desenvolvido junto ao programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Dou-
torado, da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ.

IX
Graduanda em Direito pela UNIJUI. Email: juliarodrigues.rauber@gmail.com

Lucas Fina
Bacharel em Direito na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. E-mail: lucas-
fina@gmail.com

Lúcio Flávio Joichi Sunakozawa


Doutor em Direito Universidade de São Paulo. Professor Universidade Estadual do Mato
Grosso do Sul. E-mail: professor.lucioflavio@gmail.com

Marco Aurélio Machado de Oliveira


Professor Titular na UFMS - CPAN, Doutor em História Social pela Universidade de São
Paulo, Docente Permanente do Mestrado em Estudos Fronteiriços (UFMS), Coordenador
do MIGRAFRON (Observatório Fronteiriço das Migrações Internacionais), E-mail:
marco.cpan@gmail.com

Maria Aparecida Webber


Doutoranda do Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Sociedade, Cultura e Fron-
teiras – Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE)/Servidora TAE na Univer-
sidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA). E-mail: webber.cidamaria@hot-
mail.com

Maria Luiza Zimmermann


Graduanda do 3° semestre do Curso de Direito da Universidade Regional do Noroeste do
Estado do Rio Grande do Sul - UNIJUI. Bolsista de Iniciação Científica UNIJUI/CNPq do
Projeto “SER MIGRANTE NO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL: Saúde, Gênero e In-
clusão Social dos Migrantes residentes na Região Noroeste do Estado”. E-mail: maluzim-
merman@gmail.com.

Maurício Soares de Sousa Nogueira


MBA em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas (FGV/SP) e Mestrado em Direito
pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Ex-professor de Direito Tributário da Univer-
sidade Federal de Sergipe e atualmente docente da Estácio/SE. Pós-graduando do Mestrado
X
em Ciências da Religião na UFS e do Doutorado em Direitos Humanos na Universidade Ti-
radentes (UNIT). E-mail: mausoares10@hotmail.com

Lucilene Machado Garcia Arf


Professora titular na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e docente permanente no
Mestrado em Estudos Fronteiriços na mesma Instituição, lucilene.arf@ufms.br

Nádia Pacher Floriani


Assessora jurídica na ONG Casa Latino Americana (CASLA) e Mestranda do Programa de
Pós-Graduação em Geografia (PPGEO) da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG).
E-mail: floriani.nadia@gmail.com

Reginaldo Felix Nascimento


Discente do Bacharelado em Direito do Centro Universitário Estácio de Sergipe. E-mail: fe-
lixreginaldo84@gmail.com

Roberto Balestrim
Mestrando, IMM/ECEME, betoballa@hotmail.com

Rodolfo César de Sousa


Mestrando em Estudo Fronteiriços, UFMS/CPAN. E-mail: roberto.csouza3@gmail.com.

Rodolfo Saldanha da Gama da Câmara e Souza


Mestrando em Estudos Fronteiriços Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, caixado-
rodolfo@gmail.com

Tarissa Marques Rodrigues dos Santos


Doutoranda em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Mestra em Es-
tudos Fronteiriços-MEF- Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: tarissamar-
ques@gmail.com

XI
Tássio Franchi
Professor na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército brasileiro (ECEME), lotado no
Instituto Meira Mattos. Coordenador do Projeto PROCAD (CAPES/MD) Defesa Nacional,
Fronteiras e Migrações: estudos sobre ajuda humanitária e segurança integrada. Doutor em
Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília (UnB). Mestre em História pela
Universidade Estadual Paulista (UNESP) e graduado em História pela Universidade Esta-
dual de Londrina (UEL). Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Orcid: 0000-0003-3434-5560. Lattes:
http://lattes.cnpq.br/1943886460410008. Email: tasfranchi@gmail.com

Tomáz Esposito Neto


Possui graduação em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (2003), mestrado em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(2006) e doutorado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(2012). Atualmente é professor adjunto da Universidade Federal da Grande Dourados. Tem
experiência na área de Ciência Política, com ênfase em Integração Internacional, Conflito,
Guerra e Paz, atuando principalmente nos seguintes temas: política externa brasileira, rela-
ções bilaterais entre o Brasil e o Paraguai. Desde 2014, é membro da REPRI- Rede de Pes-
quisa em Regionalismo e Política Externa (REPRI) que congrega pesquisadores de várias
universidades brasileiras e instituições de pesquisa.

Túlio Pires Barboza


Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME). e-mail: tuliopb84@hotmail.com

XII
Apresentação

Em agosto de 2022 ocorreu o I Congresso do Migrafron, sediado em Corumbá,


fronteira do Brasil com a Bolívia, no Campus do Pantanal na Universidade Federal
de Mato Grosso do Sul. Trata-se de um evento que buscou dar a marcação espacial
da fronteira como palco de centralidades nos processos migratórios internacionais,
servindo de contraponto a uma ideia corrente que a situa exclusivamente como pe-
riférica nesses fluxos. Organizado pelo Observatório Fronteiriço das Migrações In-
ternacionais, que marca sua sigla no nome do evento, este Congresso colheu consi-
deráveis palestras e textos que lhe deram robustez e fôlego para novos eventos. Rea-
lizado de forma remota, principalmente, pela escassez de recursos que eventos jovens
estão sujeitos nesse momento.
Este Congresso teve como nascedouro a própria formulação e concepção do Mi-
grafron, criado em 2020 e instalado em 2021, cujas missões são: realizar leituras aca-
dêmicas sobre os tipos de migração internacional que ocorrem nas fronteiras; e, não
se limitar a observar com a profundidade almejada, mas, sobretudo, promover inser-
ções sociais, especialmente nos ambientes profissionais que atuam com esse grupo.
Partimos de um pressuposto no qual as fronteiras e as migrações internacionais pos-
suem estreitas ligações em seus recantos mais íntimos, promovendo tensões e apro-
ximações típicas das categorias cujas epistemologias são essencialmente embaralha-
das. O Migrafron não conseguirá evoluir enquanto Observatório se não tiver como
premissa a revisão conceitual centrada nas atualizações que ambas as categorias nos
desafiam. E, sobre isso precisamos refletir permanentemente.
As fronteiras e os migrantes internacionais, independente de suas tipologias, car-
regam a política como marca de nascença. E nela se aproximam e distanciam na me-
dida em que as violências e abandonos são manifestos como tentativas de controles
de suas dinâmicas. Por um lado, observamos que aos movimentos migratórios res-
tam insubordinações variadas, por outro, às fronteiras cabem incessantes movimen-
tos de solidariedade e dissociação. Neste imbróglio, os estados, com suas naturezas

XIII
Marco Aurélio Machado de Oliveira
reativas, fixam-se como portadores de mapas onde podem assinalar impermeabili-
dades que lhes convêm. As maneiras como as fronteiras reagem aos fluxos migrató-
rios dizem muito sobre suas contradições, uma vez que, sendo possuidora de centra-
lidades, promovem criativas, e nem sempre agradáveis, soluções para seus impasses,
e, sendo periférica, requer permanentemente que o centro decisório nacional inter-
venha a seu favor.
Diversos intelectuais têm dado ênfase à existência de novas associações políticas
e espacialidades sociais que permitiram aflorar novidades nos estudos migratórios
em fronteira, permitindo que fossem ressaltadas as relações étnicas, de gênero e as
identidades construídas nos diversos movimentos migratórios em fronteira (COR-
DERO; MEZZADRA; VARELA, 2015).
Saskia Sassen (2009), assinala que embora a soberania do estado seja frequente-
mente entendida como o exercício de um monopólio sobre um dado território, isso
tem sofrido mudanças nos últimos tempos. É necessário que entendamos que per-
siste uma contradição encontrada na dualidade entre as transformações advindas da
globalização e a manutenção do estado como controlador das fronteiras. Exemplo
disso é mencionado por Williams (2006), ao observar a força que ainda resiste no
estado como um projeto político, mesmo com todas as inovações na comunicação
global, como fibras óticas e feixes de satélite. Desta forma, o conceito de porosidade,
tão utilizado em discursos políticos, comentários na imprensa e nos estudos acadê-
micos, nos quais ela é verificada como práticas cotidianas e corriqueiras criadas pelas
sociedades fronteiriças, também reivindica atualizações.
Foucher (1989) afirma que os migrantes sabem bem o que os espera na fronteira.
Mas, poderíamos acrescentar que ao contrário também é verdade? Afinal, nos parece
que ela seja possuidora de meios, consolidados ou não, para construir instrumentais
simbólicos ou reais que terminam por dar-lhe estratégias, inclusive para a questão
migratória. Isso tem uma raiz muito profunda e está umbilicalmente naquilo que
Anderson (1994) denomina como a alta e a baixa políticas. Enquanto a primeira está
centrada nas esferas da defesa e diplomacia, a segunda é responsável pelo operacio-
nal, que Machado (2000) assinalou como sendo a ‘intendência’, ou seja, está relaci-
onada aos assuntos rotineiros da administração pública, como policiamento, saúde,
educação, etc. Ocorre que nem a alta política conhece com profundidade o que acon-
tece na fronteira, tampouco a baixa política consegue dialogar a ponto de serem
XIV
Prefácio
compreendidas suas demandas com as esferas mais elevadas do estado. Um dos re-
flexos desses distanciamentos é formação de níveis distintos de autonomias que as
esferas inferiores da política, notadamente na municipalidade, constroem inclusive
no trato da questão migratória. E tal perspectiva termina por estabelecer curiosas in-
tersecções com esses fluxos, uma vez que Mezzadra (2015) assinala que os migrantes
possuem graus variados de autonomias que ampliam ou reduzem suas diversas for-
mas de lidar com o espaço fronteiriço. E ao observar isso, salvo quando ocorrem
aquelas ilusões que estamos sujeitos a acometer, é de se constatar, por parte dos mi-
grantes e dos viventes em fronteira, a existência de muito saber e conhecimento en-
voltos em profundidade e em uma matemática incrivelmente atraente e interessante.
Que os migrantes precisam ser ouvidos não é exatamente uma novidade. Dar vo-
zes a eles tem sido um procedimento adotado já tem um certo tempo. Contudo, é
necessário que outros sujeitos possam verbalizar suas experiências com o processo
migratório, menciono aqui os agentes ligados ao acolhimento, atendimento e enca-
minhamento, sejam eles das esferas públicas ou não. O reconhecimento desses per-
sonagens permite que o entendimento do processo migratório em fronteira seja mais
amplamente entendido e, principalmente, reavaliado quanto às internacionalidade
que ambas as categorias possuem e nas espacialidades que as territorialidades em
fronteira se conjugam com as dos migrantes.
Foi com essa proposta de revisões de metodologias e reconhecimentos espaciais
e territoriais que o I Congresso do Migrafron foi realizado. Contando com pesquisa-
dores de vários grupos de pesquisas do Brasil e da América Latina, sua riqueza foi
ampliada a partir das sessões de comunicações. Essas trouxeram grandes novidades,
profundos debates além de riquíssimas experiências escritas e verbalizadas por auto-
res consagrados e jovens pesquisadores denotando renovações e consolidações.
Estrutura do livro
Fruto das Sessões de Comunicações ocorridas durante a realização do I Congresso
do Migrafron, esta coletânea prima pela riqueza na variedade temática que avivou-
se naquela ocasião. E essa coletânea segue fiel à estrutura que foi definida para as
apresentações.
No Eixo 1, Controle, xenofobia e vida cidadã, o leitor poderá encontrar artigos
que debatem sobre o acesso à cidadania em diversos aspectos, desde as questões

XV
Marco Aurélio Machado de Oliveira
relativas à documentação, incluindo as imensas dificuldades, até as repercussões de
suas presenças, como a xenofobia. Também estarão à disposição leituras, textos sobre
as possíveis estabilidades no controle sobre as fronteiras, bem como os meios que se
encontram funcionando órgãos estatais ligados à documentação naquele espaço, es-
pecialmente na obtenção de títulos eletorais.
No Eixo 2, Saúde, Educação e inclusão social, será possível compreender as diver-
sas dinâmicas, tipicamente fronteiriças, que são construídas para o acesso à educação
e à saúde. Poderá ser averiguado os sofrimentos que acompanham esses sujeitos, seja
na questão laboral ou na busca por aqueles acessos., bem como alguns manejos para
a construção da vida social, como no futebol.
No Eixo 3, Escalas nacionais e continentais da migração e da fronteira, estará dis-
ponível ao leitor importantes observações sobre os impactos e desafios dos fluxos
migratórios internacionais nas elevadas esferas políticas do Brasil e de outros países
ou blocos, como a União Europeia. Revisões conceituais, impasses do Pacto Global
pela Migração, além das permanentes exigências em rever e atualizar as observações
sobre os mais volumosos fluxos em nosso continente, a de haitianos e de venezuela-
nos.
Sintam-se convidados a mergulhar nesse conjunto robusto de reflexões, fruto de
sistemáticas e coerentes pesquisas. O leitor poderá perceber que o debates sobre as
questões migratórias e fronteiriças aguardam seu olhar para ser deflagrado.
Sirvam-se.

Corumbá, MS, setembro de 2022.

Marco Aurélio Machado de Oliveira


Professor Titular na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
Coordenador do Migrafron - Observatório Fronteiriço das Migra-
ções Internacionais

XVI
Sumário

SOBRE OS AUTORES ..................................................................................................... VII

APRESENTAÇÃO .......................................................................................................... XIII

SUMÁRIO ........................................................................................................................... 17

1 | O DIREITO À CIDADE DOS HAITIANOS E HAITIANAS EM CURITIBA-


PARANÁ. ............................................................................................................................ 25
Nádia Pacher Floriani, Edson Belo Clemente de Souza

1. Introdução ................................................................................................................................26
2. Caracterização geral do fenômeno migratório .....................................................................29
3. Tecido urbano e exclusão social em conjunção ao método lefebvriano.............................32
4. Xenofobia, racismo e injúria racial: signos da exclusão social dos migrantes....................34
5. Ocorrências de violências raciais e xenofóbicas na região metropolitana de curitiba ......36
6. Considerações finais ................................................................................................................38
Referências bibliográficas............................................................................................................40

2 REFLEXÕES SOBRE A REGULARIZAÇÃO MIGRATÓRIA DOS


|
VENEZUELANOS NO BRASIL E A RESPEITO DA OPERAÇÃO ACOLHIDA .. 43
João Lucas Zanoni da Silva

1. Introdução ................................................................................................................................44
2. Notas sobre a regularização migartória dos venezuelanos no brasil...................................46
3. Apontamentos sobre a operação acolhida.............................................................................53
4. Considerações finais ................................................................................................................60
Referências bibliográficas............................................................................................................61
17
Nádia Pacher Floriani · Edson Belo Clemente de Souza
3 | A REGULARIZAÇÃO DE DOCUMENTOS PARA IMIGRANTES JUNTO À
POLÍCIA FEDERAL EM CORUMBÁ, FRONTEIRA BRASIL-BOLÍVIA ................ 69
Daniella Ibarreche de Menezes, Evelyn Flayra Cavalcanti dos Santos, Marco Aurélio
Machado de Oliveira

1. Introdução ................................................................................................................................70
2. Fronteira brasil-bolívia............................................................................................................72
3. Polícia federal ...........................................................................................................................73
4. Atendimento ao estrangeiro ...................................................................................................76
5. Considerações finais ................................................................................................................79
referências bibliográficas.............................................................................................................80

4 | OS REFLEXOS SOCIOECONÔMICOS DA PRESENÇA MILITAR NA REGIÃO


DE FRONTEIRA SOB RESPONSABILIDADE DA 4ª BRIGADA DE CAVALARIA
MECANIZADA .................................................................................................................. 83
Roberto Balestrim, Tássio Franchi, Tiago de Castro Nogueira Borges Morais, Tomáz
Esposito Neto

1. Introdução ................................................................................................................................84
2. Teorias e métodos ....................................................................................................................88
2.1 referencial teórico ..................................................................................................................88
2.2 referencial metodológico ......................................................................................................91
3. Dados dos reflexos socioeconômicos oriundos da 4ª bda c mec .........................................92
4. Discussão dos dados socioeconômicos..................................................................................98
5. Conclusão ...............................................................................................................................102
Referências Bibliográficas .........................................................................................................103

5 | XENOFOBIA CONTRA REFUGIADOS NO BRASIL E O PAPEL DA


EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS ..................................................................109
Reginaldo Felix Nascimento, Maurício Soares de Sousa Nogueira

1. Introdução ..............................................................................................................................110
2. Desenvolvimento ...................................................................................................................111
3. Conclusão ...............................................................................................................................118
Referências bibliográficas..........................................................................................................118

18
O direito à cidade dos haitianos e haitianas em Curitiba-Paraná.
6 | ROTINAS E DESAFIOS DA JUSTIÇA ELEITORAL NA FRONTEIRA: UM
ESTUDO DE CASO EM CORUMBÁ, MS, BRASIL..................................................121
Gilberto Xavier Loio, Rodolfo César de Sousa, Marco Aurélio Machado de Oliveira,
Lucilene Machado Garcia Arf

1. Apresentação ..........................................................................................................................122
2. Metodologia ...........................................................................................................................124
3. Identificação do cotidiano profissional ...............................................................................126
4. Análise do grupo sobre os principais aspectos encontrados .............................................128
5. Averiguação de domicílio eleitoral ......................................................................................129
6. Análise do corpus ...................................................................................................................130
Referências bibliográficas..........................................................................................................133
Anexo I .......................................................................................................................................135
Questionário utilizado...............................................................................................................135

7 | A TORCIDA DO CORUMBAENSE FUTEBOL CLUBE E SUAS ATIVIDADES


SOCIAIS NA REGIÃO FRONTEIRIÇA BRASIL-BOLÍVIA ....................................139
Roberto César de Souza, Carlo Henrique Golin

1. Introdução ..............................................................................................................................140
2. Atividades sociais da torcida do cfc na região fronteriça brasil-bolívia ...........................142
3. Considerações finais ..............................................................................................................150
Referências Bibliográficas .........................................................................................................151

8 | TRAJETÓRIAS E VIVÊNCIAS DE PRAZER E SOFRIMENTO DE


TRABALHADORES INFORMAIS NA FRONTEIRA BRASIL-BOLÍVIA .............155
Marco Aurelio Machado de Oliveira, Isadora Sigarini de Moraes

1. Introdução ..............................................................................................................................156
2. Objetivos.................................................................................................................................159
3. Metodologia ...........................................................................................................................159
4. Desenvolvimento ...................................................................................................................160
4.1 psicodinâmica do trabalho no trabalho informal .............................................................160
5. Considerações Finais .............................................................................................................168
Referências bibliográficas..........................................................................................................171

19
Nádia Pacher Floriani · Edson Belo Clemente de Souza
9 | CRUZANDO FRONTEIRAS EM BUSCA DA FORMAÇÃO MÉDICA ........177
Maria Aparecida Webber

1. Introdução ..............................................................................................................................178
2. Contexto fronteiriço: as três fronteiras ar-br-py ................................................................180
3. Instituições privadas de medicina – cde py .........................................................................183
4. Considerações finais ..............................................................................................................189
Referências bibliográficas..........................................................................................................189

10 | SAÚDE E TRABALHO: POSSIBILIDADES DE INCLUSÃO SOCIAL PARA OS


MIGRANTES ....................................................................................................................191
Júlia Rodrigues Rauber, Janaína Machado Sturza

1. Introdução ..............................................................................................................................192
2. Metodologia ...........................................................................................................................193
3. Objetivos.................................................................................................................................193
4. Desenvolvimento ...................................................................................................................194
5. Considerações finais ..............................................................................................................202
Referências bibliográficas..........................................................................................................202

11 | OS FLUXOS MIGRATÓRIOS NO RIO GRANDE DO SUL : QUESTÃO DE


SAÚDE, GÊNERO E INCLUSÃO SOCIAL ................................................................205
Maria Luiza Zimmermann, Gabrielle Scola Dutra, Janaína Machado Sturza

1. Introdução ..............................................................................................................................206
2. Metodologia ...........................................................................................................................207
3. Objetivos.................................................................................................................................208
4. Resultados e discussão...........................................................................................................211
5. Considerações finais ..............................................................................................................214
Referências bibliográficas..........................................................................................................215

20
O direito à cidade dos haitianos e haitianas em Curitiba-Paraná.
12 | LITERATURA INFANTIL NA FRONTEIRA BRASIL-BOLÍVIA: PEQUENOS
LEITORES FRONTEIRIÇOS..........................................................................................217
Tarissa Marques Rodrigues dos Santos

1. Introdução ..............................................................................................................................218
2. Metodologia ...........................................................................................................................219
3. Vivência literária: pequeños lectores fronterizos................................................................220
4. Interculturalidade e literatura...............................................................................................223
5. Algumas considerações .........................................................................................................228
Referências .................................................................................................................................229

13 | AS DUAS FRONTEIRAS: MIGRAÇÃO HAITIANA E MIGRAÇÃO


VENEZUELANA – NOTAS PRELIMINARES ...........................................................233
Duval Fernandes

1. Introdução ..............................................................................................................................234
2. A migração haitiana...............................................................................................................235
3. A migração venezuelana .......................................................................................................239
4. A acolhida ...............................................................................................................................242
Referências bibliográficas..........................................................................................................243

14 | A INTEGRAÇÃO DOS MIGRANTES E REFUGIADOS NO MERCADO DE


TRABALHO EUROPEU .................................................................................................249
Rodolfo Saldanha da Gama da Câmara e Souza

1. Introdução ..............................................................................................................................250
2. O envelhecimento da população europeia ..........................................................................251
3. Quem vai pagar a conta pelo envelhecimento da população?...........................................253
4. A solução bate à porta: migrantes e refugiados...................................................................256
5. Correlação entre integração social e economia...................................................................257
6. Teoria da reserva do possível e os recursos do Fundo Social Europeu .............................259
7. Conclusão ...............................................................................................................................264
Referências bibliográficas..........................................................................................................265

21
Nádia Pacher Floriani · Edson Belo Clemente de Souza
15 | A OPERAÇÃO ACOLHIDA E A SEGURANÇA HUMANA DOS
IMIGRANTES VENEZUELANOS ................................................................................269
Túlio Pires Barboza

1. A crise na Venezuela e a Operação Acolhida ......................................................................270


2. A evolução dos estudos de segurança e a segurança humana ...........................................276
3. A segurança humana e a Operação Acolhida......................................................................279
4. Considerações finais ..............................................................................................................290
Referências bibliográficas..........................................................................................................292

16 | PACTO GLOBAL PELA MIGRAÇÃO DE 2018 NAS AMÉRICAS ................295


Gabriela Brito Moreira, Lucas Fina, Ana Luísa Prado, Cesar Augusto Silva Da Silva

1. Introdução ..............................................................................................................................296
2. Fluxos migratórios atuais ......................................................................................................298
3. Conteúdo do pacto ................................................................................................................301
3.1 princípio da resposabilidade compartilhada .....................................................................302
4. Posicionamento dos países ...................................................................................................306
4.1. A saída do brasil do pacto ..................................................................................................309
5. Conclusão ...............................................................................................................................312
Referências bibliográficas..........................................................................................................313

17 | UMA TEORIA DA MIGRAÇÃO: O FRAMEWORK DAS ASPIRAÇÕES-


CAPACIDADES ...............................................................................................................319
Daniel Francisco Nagao Menezes, Lúcio Flávio Joichi Sunakozawa

1. Introdução - teoria da migração: qual é o problema? ........................................................320


2. Classificação paradigmática das teorias migratórias ..........................................................324
2.1 limitações das teorias funcionalistas e histórico-estruturais ...........................................325
2.2 exclusivismo teórico versus ecletismo conceitual.............................................................331
3. Conclusão ...............................................................................................................................334
Referências bibliográficas..........................................................................................................337

22
EIXO 1
CONTROLE, XENOFOBIA E
VIDA CIDADÃ

23
O DIREITO À CIDADE DOS HAITIANOS E
HAITIANAS EM CURITIBA-PARANÁ.

1
Nádia Pacher Floriani
Edson Belo Clemente de Souza

RESUMO:
O presente texto tem como objetivo analisar alguns aspectos das injustiças sociais
sofridas pelos imigrantes haitianos e haitianas no espaço urbano de Curitiba. À luz
de teorias jurídica e geográfica, busca-se revelar tais problemáticas com estudos de
casos atendidos no âmbito da ONG Casa Latino Americana (CASLA), bem como de
matérias veiculadas nos meios de comunicação. O método lefebvriano da tríade da
produção do espaço, ou seja, o concebido, o percebido e o vivido nos auxilia a com-
preender a realidade dos casos de xenofobia, racismo e injúria racial registrados, além
de nos exigir um posicionamento na busca por justiça e pela formulação de políticas
públicas migratórias eficazes. Enquanto resultado imediato, o texto tem um caráter
técnico-científico de denúnica das brutalidades sofridas pelos haitianos e haitianas
em Curitiba.

PALAVRAS-CHAVE:
Imigrantes haitianos e haitianas; Segregação socioespacial; Injustiça social.

RESUMEN:
Este artículo tiene como objetivo analizar algunos aspectos de las injusticias sociales
25
Nádia Pacher Floriani · Edson Belo Clemente de Souza
sufridas por inmigrantes haitianos e haitianas en el espacio urbano de Curitiba. De
acuerdo con las teorías jurídicas y geográficas, tratamos de develar tales problemas con
estudios de casos atendidos en el ámbito de la ONG Casa Latino Americana (CASLA),
así como con artículos publicados en medios de comunicación. El método lefebvriano
de la tríada de la producción espacial, es decir, lo concebido, lo percibido y lo vivido,
nos ayuda a comprender la realidad de los casos registrados de xenofobia, racismo y
difamación racial, además de reclamar una posición en la búsqueda por justicia y para
la formulación de políticas públicas migratorias efectivas. Como resultado inmediato,
el texto tiene un carácter técnico-científico de denuncia de las brutalidades sufridas
por haitianos y haitianas en Curitiba.

PALABRAS-CLAVE:
Inmigrantes haitianos e haitianas; Segregación socioespacial; Injusticia social.

1. INTRODUÇÃO
Trata o presente texto de uma abordagem sobre a realidade e os desafios do pro-
cesso migratório vivenciado por imigrantes na sociedade brasileira, sobretudo haiti-
anos e haitianas que vivem na Região Metropolitana de Curitiba (RMC), enfocando
questões relativas à inserção social no espaço urbano, exclusão social, choque cultu-
ral, obstáculos derivados das condições histórico-sociais da sociedade brasileira, ca-
sos de discriminações raciais e étnicas.
Dentre os fluxos migratórios recentes que tiveram o Brasil como destino, a che-
gada de migrantes haitianos ganhou destaque dadas as suas peculiaridades. O Brasil
entrou na rota da diáspora haitiana e precisou dar respostas rápidas ao movimento
que teve início em 2010 com o advento do terremoto e se intensificou com o passar
dos anos.
Antes de chegar ao território brasileiro, os haitianos seguem rota que passa por
Equador, Peru e Bolívia. O ingresso em território nacional ocorre por duas cidades:
Brasiléia (fronteira com a Bolívia) e Assis Brasil (fronteira peruana). Após ingresso
por essas duas aduanas, os imigrantes seguem para Epitaciolândia, cidade vizinha a

26
O direito à cidade dos haitianos e haitianas em Curitiba-Paraná.
Brasiléia, onde há um posto da Polícia Federal. O trajeto é feito por ônibus ou táxi,
dependendo da condição financeira de cada um e de como são orientados pelos agen-
ciadores e coiotes. Nesses casos, os imigrantes ficam entregues à própria sorte. Há
relatos de problemas com a polícia, extorsão, espancamento e violência sexual.
Na agência da Polícia Federal devem fazer uma solicitação formal de refúgio. Uma
vez feito o pedido junto a Polícia Federal, o imigrante fica autorizado a fixar residên-
cia, até decisão final do processo, a cargo do Comitê Nacional para os Refugiados
(CONARE), órgão vinculado ao Ministério da Justiça. Fica autorizada, também, a
emissão do número do cadastro de pessoa física (CPF) e Carteira de Trabalho e Pre-
vidência Social (CTPS).
As despesas com a viagem podem chegar até o montante de US$ 5 mil, por isso é
comum a prática de tomar empréstimos com agiotas. Quando já estabelecidos em
território nacional, os recém chegados devem dividir o salário recebido para seu sus-
tento com o pagamento da dívida contraída e remessas para a família.
No início da referida migração forçada, pós terremoto de 2010, os haitianos eram
denominados “imigrantes econômicos” ou “refugiados ambientais”, pois o Estatuto
do Estrangeiro (Lei 6.815/1980), legislação até então vigente em 2010, não permitia
que imigrantes em busca de emprego ficassem no país, a não ser que fossem refugi-
ados. Neste sentido, a criação do visto por acolhida humanitária para os imigrantes
haitianos e, posteriormente, para sírios e venezuelanos pode ser descrita como a mais
emblemática resposta a situações emergenciais com a introdução de alterações na
legislação que vão ao encontro do reconhecimento dos direitos dos imigrantes.
Após o terremoto de 2010 no Haiti, na tentativa de facilitar a entrada de haitianos
no Brasil, em janeiro de 2012, em caráter especial, o governo brasileiro, por meio da
Resolução Normativa 97 do Conselho Nacional de Imigração (CNIg) criou o Visto
Humanitário. Essa modalidade de Visto foi depois prorrogada pela Resolução 106 de
outubro de 2013 e finalmente, concedido o direito de residência pela Nova Lei de
Migração – 13.345/2017, regulamentada pelo Decreto 9.199 de 20/11/2017, especi-
almente nos artigos 142, item c e artigo 145, corroborada pela Portaria Interministe-
rial n] 13 de 21/12/2020.
Com a situação caótica que vive a população do Haiti, desde o primeiro terremoto
de janeiro de 2010 e recentemente com um novo desastre ambiental em 17 de agosto

27
Nádia Pacher Floriani · Edson Belo Clemente de Souza
de 2021, o número de mortes por doenças tem aumentado, obrigando a saída emer-
gencial de muitos cidadãos.
Uma década após o terremoto de 12 de janeiro de 2010, onde centenas de milha-
res de haitianos e haitianas ficaram sem casas, onde quase todos os hospitais, escolas,
universidades, supermercados ruíram, o acesso aos serviços básicos e a fome conti-
nuam a assolar o país. Um milhão e meio de haitianos e haitianas vivem hoje em
situação de emergência alimentar. Considerado o país mais pobre do Hemisfério
Ocidental, atrás da Nicarágua, o Haiti possui hoje 60% da sua população abaixo do
nível da pobreza. Com históricos de corrupção, instabilidade política e após o homi-
cídio do presidente Jovenel Moïse em 07 de julho de 2021, o país está sitiado por
gangues armadas que espalham terror, mortes, sequestros, estupros.
Alguns aspectos centrais são apresentados na perspectiva teórica sobre o fenô-
meno das migrações internacionais, quer seja sob o ponto de vista jurídico, como
também geográfico. São apresentados autores que discutem os aspectos da globali-
zação (SASSEN, 2010); os mecanismos do processo migratório (RAVENSTEIN,
1980); as diferenças de poder entre as nações, em decorrência das assimetrias oriun-
das do passado colonial (MBEMBE, 2022); a relação de identidade e alteridade
(HARVEY, 1996), o tecido urbano de Lefebvre (2004); e a intolerância frente a dife-
rença (ECO, 1998).
Metodologicamente, ainda, serão indicados alguns conceitos reveladores da rea-
lidade existente enquanto estratégia, quais sejam, tecido urbano e a segregação soci-
oespacial dos imigrantes haitianos e haitianas. O método de Henri Lefebvre, refe-
rente a tríade da produção do Espaço, quer seja: Concebido, Percebido e Vivido, que
representam dimensões espaciais indissociáveis, incentiva-nos a pensar a problemá-
tica aqui apresentada, pois, enquanto método investigativo tem a força da explicabi-
lidade, que revela e identifica as ações dos atores sociais pelas disputas territoriais nos
espaços urbanos.
São apresentados também alguns casos ilustrativos relativos aos tipos de violência
sofridos pelos imigrantes haitianos e haitianas no espaço urbano da RMC, a partir de
depoimentos colhidos na ONG Casa Latino Americana (CASLA), assim como da
imprensa em geral.
Portanto, estruturalmente, o trabalho está organizado da seguinte maneira: além

28
O direito à cidade dos haitianos e haitianas em Curitiba-Paraná.
desta breve introdução, apresenta-se uma caracterização do fenômeno migratório,
indicando as várias origens do processo. Em seguida uma abordagem da segregação
socioespacial a partir do significado de tecido urbano. O tópico tipificado de xenofo-
bia, racismo e injúria social aborda os casos de injustiça social, comumente pratica-
dos no espaço urbano. O próximo item traz relatos ocorridos na RMC. E, por fim, as
Considerações Finais.

2. CARACTERIZAÇÃO GERAL DO FENÔMENO MIGRATÓRIO


Por vários motivos as pessoas migram. Essas vão desde aspectos demográficos,
violações aos direitos humanos, influência de fatores socioeconômicos, questões re-
ligiosas, étnicas, perseguições políticas e alterações climáticas.
Com o advento da globalização observa-se um novo curso migratório. Por defi-
nição, a globalização é o fluxo em larga escala de capitais, mercadorias e serviços, de
tecnologia e pessoal para além das fronteiras nacionais. Dessa maneira, a globaliza-
ção explicita com maior evidência os fatores de ordem econômica, mas expressa tam-
bém a combinação de outros, tais como as guerras, a fome, questões políticas e reli-
giosas, entre outras.
As transformações geradas pela globalização têm tido um grande impacto sobre
os fluxos migratórios. As relações com a economia global aprofundam as assimetrias
promovendo desigualdades crescentes entre os países. Com o neoliberalismo, apoi-
ado em sua crença de que o mercado resolve os problemas das sociedades, assiste-se
a desregulamentação dos contratos e acordos políticos de defesa das condições de
seguridade e proteção social aos trabalhadores, decorrendo dessa nova orientação
política uma alteração nas relações de trabalho, obrigando a uma maior mobilidade
de trabalhadores no espaço internacional.
A respeito, Sassen (2010) resume o funcionamento das dinâmicas mais amplas
dos atuais processos migratórios na globalização:
Três tipos de condições sociais facilitam a decisão de migrar e induzem os indivíduos
a tomar tal decisão. Um primeiro conjunto de condições estruturais amplas tem a ver
com os tipos de conexões criadas pela internacionalização econômica em suas tantas
materializações: formas coloniais antigas e formas neocoloniais mais recentes e tipos
específicos de conexões criados pelas formas atuais de globalização econômica. Um
29
Nádia Pacher Floriani · Edson Belo Clemente de Souza
segundo conjunto de condições envolve o recrutamento direto de trabalhadores imi-
grantes por empregadores, por governos em nome dos empregadores ou pela rede de
imigrantes. Um terceiro e último conjunto de condições envolve a exportação e o trá-
fico organizados, cada vez mais ilegais, de homens, mulheres e crianças. Essas ativi-
dades criam maneiras novas de conectar países exportadores e importadores de mão
de obra, além das velhas conexões econômicas coloniais ou das novas conexões eco-
nômicas globais (SASSEN, 2010, p. 137).
Dentro da teoria das migrações, observam-se três fatores de repulsão e atração,
segundo o geógrafo alemão, Ernst Georg Ravenstein: fatores sociopolíticos, fatores
demográficos e econômicos e fatores ambientais. Os fatores sociopolíticos estão re-
lacionados aos impactos diretamente ocasionados por violações aos direitos huma-
nos, perseguições políticas, étnicas, religiosas, de gênero, conflitos armados e guer-
ras. Os fatores demográficos e econômicos estão associados ao crescimento popula-
cional, à economia de um país, crescimento econômico, normas laborais e desem-
prego. Por último, os fatores ambientais associados aos fenômenos climáticos extre-
mos, tais como, terremotos, inundações, furacões, entre outras catástrofes naturais.
Considera-se que as novas migrações no Brasil, desde o início do novo milênio
respondem a processos oriundos de uma nova configuração do sistema socioeconô-
mico mundial, isto é, do quadro e das dinâmicas de crise do capitalismo em escala
global, com diferentes impactos sobre continentes, regiões e países, não apenas loca-
lizados na periferia do sistema capitalista, mas atingindo inclusive países do centro,
embora com maior intensidade aqueles que não são os de maior riqueza e poder ge-
oeconômico e político, como por exemplo, é o caso de Portugal, Espanha, Itália e
Grécia na União Europeia (EU).
Nos períodos recentes e mais agudos da crise social brasileira (décadas de 1980 e
1990), os fluxos migratórios se caracterizavam pelo maior saldo de saída da popula-
ção brasileira em relação à entrada de migrantes de outras nacionalidades, na busca
por melhores condições de vida. O destino desses fluxos era fundamentalmente para
os países capitalistas do norte (EUA, Canadá e Europa Central, principalmente). A
partir da última década, observa-se uma inversão na direção das migrações, notando-
se um intenso fluxo norte-sul (países da Europa cuja população sofreu profundos
efeitos da crise, especialmente a população jovem que enfrenta dificuldades na busca
por emprego). Mas há ocorrência também de fluxos migratórios sul-sul, tanto no
30
O direito à cidade dos haitianos e haitianas em Curitiba-Paraná.
contexto das migrações latino-americanas, como africanas e do Oriente Médio, em
função da instabilidade política que vem assolando a região, desde o fenômeno da
Primavera Árabe e mais recentemente com a guerra civil na Síria.
É neste sentido que se pode chamar de “novas migrações” a esse fenômeno da
última década em que o Brasil vem recebendo novos contingentes populacionais,
atraídos por certa expansão do crescimento econômico e pela consequente demanda
por mão de obra especializada, semi-especializada e não qualificada.
O fenômeno migratório contém múltiplos aspectos que exige uma análise multi-
disciplinar perpassando por diferentes áreas, tais como, área jurídica, econômica, ge-
opolítica, cultural e sócio antropológica.
No tocante à legislação migratória brasileira, até recentemente, o país conviveu
com uma legislação ultrapassada, elaborada durante o final do período autoritário
(1980) e concebida ainda sob a ótica da Lei de Segurança Nacional, cuja interpretação
se assentava no primado de que o estrangeiro era potencialmente alguém que poderia
colocar em risco a segurança do país, uma vez que a ideologia imperante no Estado
era a da Guerra Fria, em que se identificava o perigo da subversão e do socialismo
como o principal inimigo do sistema de poder norte-americano.
O novo debate sobre direitos humanos ocorrido no contexto do processo de re-
democratização do país e da América Latina tem favorecido um entendimento dife-
rente, com outro tipo de interpretação do fenômeno migratório. Neste sentido, o fe-
nômeno recente das migrações vem recebendo diferentes tipos de interpretação,
mais abertos e plurais. Com esse novo viés, foi aprovada a nova Lei de Migra-
ção (LM), vigente desde 21/11/2017. Essa nova Lei 13.445/2017 revogou o Estatuto
do Estrangeiro (Lei 6.815/1980) e a Lei da Nacionalidade (Lei 818/1949).
No contexto migratório, há que se considerar, nas dimensões humanas, as histó-
rias particulares de vida, suas percepções e sofrimentos, a tensão e violência do pro-
cesso de erradicação de suas raízes culturais e de novas tentativas de enraizamento
em contextos nem sempre amigáveis de recepção desses novos chegados.
Ao considerar as diferentes experiências do (a)s migrantes no processo de inser-
ção social, em especial no caso do Brasil, nota-se a existência de entraves jurídico-
culturais bem como sérios problemas de ordem socioeconômica decorrentes de as-
pectos estruturais que merecem ser identificados e analisados de forma cuidadosa.

31
Nádia Pacher Floriani · Edson Belo Clemente de Souza
3. TECIDO URBANO E EXCLUSÃO SOCIAL EM CONJUNÇÃO AO
MÉTODO LEFEBVRIANO
Nas metrópoles e cidades do capitalismo periférico, o fenômeno da segregação
socioespacial assume uma dimensão crucial, cujos efeitos recaem principalmente so-
bre setores subalternos dentre os quais, podem-se localizar o (a)s migrantes.
Para Lefebvre (2004), o tecido urbano é um sistema complexo feito de economia,
objetos, valores e práticas sócio-cultrurais da cidade, ao qual se agregam ilhas de ru-
ralidades mais ou menos residuais, conforme as situações e os aspectos geoculturais.
Neste sentido, observa-se que a expansão do tecido urbano inclui o surgimento
das periferias, subúrbios e favelas identificadas por meio de um movimento de im-
plosão. A teoria do espaço urbano (ou produção do espaço urbano) para Henri Lefe-
bvre é a expressão da formação social capitalista no contexto histórico do processo
de industrialização com as contradições de classe que lhe é inerente, ou seja, conflito
entre capital e trabalho.
O método lefebvriano com base na tríade da produção do espaço pode ser uma
ferramenta útil para captar as percepções, as vivências e os usos do espaço urbano
pelos migrantes. Neste sentido, o que vale ressaltar é o modo de vida como expressão
da contradição percebida por essa população migrante. Dentro dessa percepção dos
haitianos e haitianas, pode-se indagar se tais sujeitos se reconhecem como cidadãos
portadores de direitos.
Para explicar as inúmeras contradições da realidade urbana, Lefebvre utiliza-se da
relação trinitária que se expressam no tempo e no espaço, nos quais se configuram
os conflitos sociais de classe. A tríade da produção do espaço é definida pelo espaço
percebido (a prática espacial), pelo vivido (os espaços de representação) e pelo con-
cebido (as representações do espaço).
Recém chegados os haitianos e haitianas buscam por condições de vida digna,
justiça social, política, cultural e espacial, pelo direito de se apropriar coletivamente
dos espaços públicos, pelo direito à cidade.
Nesse processo de construção da prática ao direito à cidade, na conquista do es-
paço, nas experiências vividas nesse espaço, encontram-se sentimentos e anseios em
comum, qual seja o desejo de uma vida melhor para além da questão da

32
O direito à cidade dos haitianos e haitianas em Curitiba-Paraná.
sobrevivência. É o direito à cidade levada ao exercício da cidadania.
Diante da vulnerabilidade referente à violência a que estão submetidos, da discri-
minação sofrida por sua condição de haitianos e haitianas, da privação do urbano,
nos espaços por eles e por elas ocupados, observa-se o despertar da solidariedade em
um sentido coletivo, onde se constituem em redes para melhor enfrentar esses e ou-
tros conflitos e desafios cotidianos. O compartilhamento dessas vivências e experi-
ências permite fortalecer os vínculos sociais e ao mesmo tempo proporciona um sen-
timento ou sensação de apoio e segurança.
Essas estratégias de ação e mobilização, as resistências vividas no espaço urbano
são signos da efetivação do direito à cidade, entendidas enquanto práticas espaciais,
revelando sujeitos que vão sendo forjados cotidianamente como potencial de uma
práxis emancipatória. A práxis e a poíesis enquanto um nível da realidade social (LE-
FEBVRE, 1991), traduz a possibilidade de apropriação (valor de uso, sonhos, afetivi-
dade), entendida como “[...] produção real e concreta do espaço, que ilumina a ati-
vidade do sujeito da ação e da consciência que orienta essa ação” (CARLOS,
2011:48).
No interior da tríade, portanto, a constituição em redes como categoria de análise
do espaço vivido, espaço da imediaticidade, relaciona-se com as ações de resistência
urbana no âmbito do espaço percebido pelas práticas espaciais do(a)s migrantes e ten-
siona a concepção da cidade planejada, o espaço concebido sob o mito da moderni-
dade que cria discursos sobre o novo, mas se concretiza por meio de velhas práticas
de controle e segregação socioespacial.
Essas estratégias de mobilização podem ser consideradas boas respostas ao en-
frentamento às estruturas de poder que engendram as injustiças socioespaciais vivi-
das nesses espaços. O modelo de cidade posto no cenário da política neoliberal pri-
vatiza espaços e áreas públicas e gerencia a cidade sob o discurso e a prática do em-
preendedorismo urbano e não sob os preceitos dos direitos sociais. O espaço conce-
bido, no interior da tríade de Lefebvre (2004) está alicerçado num Estado moderno
capitalista que cumpre sua função por meio da legislação e dos planos urbanísticos,
tendo sido o urbanismo uma ferramenta estratégica para acumulação do capital. Isso
aponta para uma realidade em que a cidade, o solo urbano, sua imagem e represen-
tação passam a ser concebidas enquanto um grande negócio no qual a questão

33
Nádia Pacher Floriani · Edson Belo Clemente de Souza
fundiária, os usos e ocupação do solo, a especulação imobiliária e a não democrati-
zação dos direitos acentuam a precarização da vida e produzem sérias violações aos
direitos humanos.

4. XENOFOBIA, RACISMO E INJÚRIA RACIAL: SIGNOS DA EXCLUSÃO


SOCIAL DOS MIGRANTES
Na história das sociedades humanas pratica-se e sofre-se intolerância religiosa,
étnica, racial, política, cultural, discriminações de todas as formas, discursos de ódio,
violências, torturas e, no limite, genocídio. Tudo isso em razão do desrespeito ao “di-
ferente”, em razão da impossibilidade da escuta do “outro”.
O diálogo com o “outro”, o respeito, o reconhecimento é um processo pelo qual
a comunidade humana ainda não atingiu níveis suficientes de desenvolvimento que
garantam a paz. O que justifica esses comportamentos discriminatórios? Por que um
grupo de pessoas exclui o “outro”? De que forma esse comportamento agressivo em
face do “outro” consegue sustentação?
De acordo a Harvey (1996), o respeito pela identidade e alteridade deve ser rela-
tivizado pelo reconhecimento de que ainda que todos os outros possam ser outros,
alguns o são mais que outros, respondendo aos princípios de exclusão existentes em
qualquer sociedade.
A xenofobia se manifesta de forma mais acentuada contra determinados grupos
de nacionais. Na Europa, por exemplo, os árabes e muçulmanos têm sido alvo de
ataques xenofóbicos, assim como os mexicanos e latinos, em geral, nos Estados Uni-
dos.
Injúria racial é definida pelo artigo 140 do Código Penal. A injúria consiste em
ofender a honra de alguém se referindo a elementos de raça, cor, etnia, religião ou
origem, com pena de um a três anos e multa, o crime de racismo atinge um grupo de
indivíduos, discriminando a integralidade de uma raça, é inafiançável e imprescrití-
vel. O crime de racismo é definido pela Lei Federal 7.716/89, pena varia de um a cinco
anos.
Numa perspectiva histórica, o preconceito racial tem sua origem, no Brasil, com
a colonização portuguesa, culminando com o genocídio dos povos indígenas que

34
O direito à cidade dos haitianos e haitianas em Curitiba-Paraná.
aqui habitavam. Em sequência, ainda no Brasil-colônia, houve o período de escravi-
zação dos povos africanos, arrancados de suas terras e obrigados a servir ao longo de
mais de 300 anos, sob a repressão escravista dos trabalhos forçados, castigos, torturas
e humilhações perpetrada por uma minoria branca de origem europeia.
Uma visão etnocêntrica, construída socialmente ao longo dos tempos é o que jus-
tificou a exploração de povos africanos, latino-americanos, asiáticos e povos árabes
considerados raças inferiores. Os europeus formularam diversas teorias de suprema-
cia racial, apontando que a raça branca seria superior, dotada de maior capacidade
intelectual diante das demais.
O racismo, a discriminação racial, o colonialismo e o apartheid continuam cau-
sando estragos no mundo sob formas sempre renovadas. No Brasil, as estruturas de
poder se mantêm, o que provoca enormes desigualdades sociais, afetando o desen-
volvimento do país. Estruturas que se prolongam no tempo por meio de mecanismos
de concentração e conservação do poder, separando uma pequena minoria que dela
se beneficia, de uma grande maioria desfavorecida de proteção.
O sujeito migrante recebe a mesma referência identitária da pessoa sem-teto, dos
racialmente oprimidos, dos economicamente deserdados, da mulher vítima de vio-
lência, do sujeito colonial, a partir de determinadas condições enraizadas no processo
social, condições de ordem material, discursiva, psicológicas, entre outras.
A intolerância é um forte fator de discriminação frente ao “outro”. Neste sentido,
Eco (1998) apresenta a seguinte reflexão:
A intolerância é algo bem mais profundo, que está na raiz de todos os fenômenos que
considerei até aqui. Fundamentalismo, integrismo, racismo pseudocientífico são po-
sições que pressupõem uma doutrina. A intolerância coloca-se antes de qualquer
doutrina. Nesse sentido, a intolerância tem raízes biológicas, manifesta-se entre os
animais como territorialidade, baseia-se em relações emotivas muitas vezes superfi-
ciais -- não suportamos os que são diferentes de nós porque têm a pele de cor dife-
rente, porque falam uma língua que não compreendemos, porque comem rãs, cães,
macacos, porcos, alho, porque se fazem tatuar... A intolerância em relação ao dife-
rente ou ao desconhecido é natural na criança, tanto quanto o instinto de se apossar
de tudo quanto deseja. A criança é educada para a tolerância pouco a pouco, assim
como é educada para o respeito à propriedade alheia e antes mesmo do controle do
próprio esfíncter. Infelizmente, se todos chegam ao controle do próprio corpo, a

35
Nádia Pacher Floriani · Edson Belo Clemente de Souza
tolerância permanece um problema de educação permanente dos adultos, pois na
vida cotidiana estamos sempre expostos ao trauma da diferença (ECO, 1998: 128).
Na perspectiva do pensamento decolonial, é importante assinalar a questão apon-
tada pelo historiador africano Mbembe (2022), que diferencia as relações de troca da
questão do poder, quando aborda as assimetrias das nações decorrentes do passado
colonial:
(...) a diferença tem que ser reconhecida, aceita e ao mesmo tempo transcendida. (...)
A diferença é um problema apenas se acreditarmos que a uniformidade é o estado
normal das coisas. A diferença se tornou um problema político e cultural no mo-
mento em que o contato violento entre povos, por meio da conquista, do colonialismo
e do racismo, levou alguns a acreditarem que eram melhores que outros. No mo-
mento em que começamos a fazer classificações, institucionalizar hierarquias em
nome da diferença, como se as diferenças fossem naturais e não construídas, acredi-
tando que são imutáveis e, portanto legítimas (MBEMBE, 2022:96).
Ao destacar os aspectos estruturantes e históricos das desigualdades entre as na-
ções, fundadas no colonialismo, os citados autores permitem entender melhor o qua-
dro de violência sofrida pelos imigrantes oriundos de países com passado colonial,
como é o caso do Haiti e dos referidos exemplos de intolerância e racismo que serão
apresentados na sequência.

5. OCORRÊNCIAS DE VIOLÊNCIAS RACIAIS E XENOFÓBICAS NA


REGIÃO METROPOLITANA DE CURITIBA

"Eu falava pra eles: ‘Você é meu irmão. Sou humano igual a você, criado pelo mesmo
Deus’. Mas me bateram, bateram e ninguém separou" (Maurice*, migrante haitiano
de 26 anos, morador de Curitiba).

Casos de racismo, injúria racial e xenofobia têm crescido de forma alarmante na


Região Metropolitana de Curitiba (RMC). Atualmente os discursos de ódio ultrapas-
sam limites e se convertem em atos de violência física. Os relatos das vítimas são de
xingamentos, humilhações e espancamentos por parte de colegas de trabalho

36
O direito à cidade dos haitianos e haitianas em Curitiba-Paraná.
curitibanos ou por parte de vizinhos curitibanos.
O Ministério Público do Trabalho, assim como algumas organizações da socie-
dade civil acompanham as denúncias referentes aos haitianos e haitianas que traba-
lham na construção civil, em bares, restaurantes, hotéis etc.
As agressões têm ocorrido única e exclusivamente em razão da raça e etnia. Eles
e elas sofrem duplo preconceito por serem imigrantes e negros. No caso das mulhe-
res, o preconceito é triplo, em razão do gênero.
Um desses exemplos foi relatado pelo imigrante haitiano Maurice1 que trabalhava
em uma cerealista na RMC. Era chamado de macaco e crioulo todos os dias pelos
colegas de trabalho. Era tratado como escravo, sendo obrigado a carregar mais peso
que os demais. Alguns funcionários jogavam cascas de banana em sua direção e ati-
ravam grãos de arroz em seus olhos. Certo dia foi covardemente espancado por três
colegas de trabalho que diziam: “Você está apanhando por ser negro e haitiano”.
Referido relato foi veiculado pelo jornal Gazeta do Povo, em 19 de outubro de
2014:
Os ferimentos que sofreu por colegas de trabalho (brasileiros) constatados por seis
laudos médicos afastaram Maurice do trabalho por cinco dias. Quando retornou à
cerealista, teve uma surpresa: foi demitido por justa causa. Maurice foi jogado ao
chão, recebeu inúmeros pontapés na cabeça e nas costas, teve o dedo cortado com um
objeto contundente e, ao invés de protegê-lo, o patrão o demitiu. Por mais de um mês,
foi chamado diariamente de "escravo" e de "macaco", aguentava colegas que lhe atira-
vam bananas, como forma de ofendê-lo (ANIBAL, 2014).
Outro relato sobre agressões sofridas por imigrante haitiano, em ambiente de tra-
balho foi veiculado, também, pelo jornal Gazeta do Povo, em 21 de outubro de 2014:
O haitiano Jean2 é uma das vítimas recentes da xenofobia. Auxiliar em uma rede de
restaurantes, ele foi espancado pelo chefe de cozinha no ambiente de trabalho e no
alojamento da empresa. O rapaz acredita que tenha sido agredido por ser negro e imi-
grante. "Eu acho que quem faz isso é quem não tem um nível intelectual. Quem estu-
dou não vai fazer uma coisa dessas, porque sabe que julgar pela cor é errado", diz

1 Nome fictício.
2 Idem.
37
Nádia Pacher Floriani · Edson Belo Clemente de Souza
(ANIBAL, 2014).
Denúncias de imigrantes haitianos que estariam sendo vítimas de agressões físicas
e psicológicas em seus locais de trabalho chegaram ao conhecimento do Ministério
Público do Trabalho. O relato foi publicado no jornal Bem Paraná em 21 de outubro
de 2014:
Em audiência realizada ontem, 20, o Ministério Público do Trabalho no Paraná
(MPT-PR) recebeu denúncias de imigrantes haitianos que estariam sendo vítimas de
agressões físicas e psicológicas em seus locais de trabalho. Notícias veiculadas na im-
prensa dão conta que nos últimos dois meses, 13 haitianos foram espancados na ci-
dade de Curitiba, alguns em seus locais de trabalho.
Participaram da reunião o Sindicato dos Trabalhadores na Construção Civil (Sintra-
con), Federação dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção e do Mobiliário do
Estado do Paraná (Fetraconspar), o Centro de Referência em Direitos Humanos Dom
Helder Câmara (Caritas), a Comissão de Refugiados e Imigrantes da Casa Latino
Americana (Casla), e integrantes da Comissão de Igualdade Racial da OAB-PR e do
Ministério do Trabalho e Emprego. Também ofereceram depoimento dois haitianos.
O objetivo foi apurar recentes denúncias veiculadas pela imprensa a respeito de xe-
nofobia que haitianos estariam sofrendo em seus empregos. A representante da Casla
comprometeu-se a enviar ao MPT-PR informações complementares a respeito dos
fatos veiculados na imprensa de forma a embasar as investigações.
Os relatos racistas e xenofóbicos sofridos por imigrantes haitianos e haitianas na
RMC são apenas algumas amostras da condição de vida em que estão submetidos,
pois nos seus cotidianos há muito mais violações dos seus direitos, não apenas como
cidadãos, mas também como seres humanos. Os espaços concebidos, sob o ponto de
vista institucional, os espaços percebidos, sob a relação entre a realidade cotidiana e
a realidade urbana, estão muitas vezes além dos espaços verdadeiramente vividos da
prática cotidiana.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mediante os elementos teórico-metodológicos apresentados ao longo do texto,
revelou-se que o fenômeno das migrações internacionais responde às dinâmicas do
processo de globalização, compreendendo faces que a internacionalização
38
O direito à cidade dos haitianos e haitianas em Curitiba-Paraná.
econômica agrava os mecanismos neocoloniais mais recentes, o que significa apro-
fundar crises do capitalismo nas sociedades periféricas, tais como, o desemprego, su-
bemprego, mudanças climáticas e os impactos ao meio ambiente, ameaças à segu-
rança alimentar e outros fatores que obrigam à mobilidade humana. Um fator adici-
onal está associado com a exportação e tráfico organizados de homens, mulheres e
crianças.
O referencial teórico sintetizado a partir dos pressupostos da obra de Henri Lefe-
bvre, em especial das categorias apoiadas na tríade dos espaços, permite aplicá-lo em
estudos concretos diretamente com o (a)s migrantes e refugiado (a)s. Verifica-se em
que medida os obstáculos para sua inserção como sujeitos de direitos na sociedade
receptora operam efetivamente pró ou contra ele(a)s. Além disso, vale verificar igual-
mente o elenco de fatores sócio-políticos e culturais que estão na origem desses obs-
táculos.
Em decorrência dos fatores apontados pelos autores no texto, os temas da intole-
rância ao diferente, discriminações raciais e étnicas, as violações aos direitos huma-
nos são agravadas pelas assimetrias existentes entre as diversas nações de acordo ao
pensamento decolonial.
Foram apresentados casos de racismo, injúria racial e xenofobia no espaço urbano
da RMC que têm crescido de forma alarmante. Atualmente os discursos de ódio ul-
trapassam limites e se convertem em atos de violência física.
Os relatos das vítimas são de xingamentos, humilhações e espancamentos por
parte de colegas de trabalho curitibanos ou por parte de vizinhos curitibanos. As
agressões têm ocorrido única e exclusivamente em razão da raça e etnia.
O conjunto dos elementos analisados ao longo do texto permitem constatar que
os problemas decorrentes dos obstáculos enfrentados pelos imigrantes haitianos e
haitianas no processo de inserção social se apresentam como desafio para o Estado e
sociedade em termos de propostas de políticas públicas migratórias e de um pro-
grama educacional voltado à defesa e garantia dos direitos humanos.
A realidade desses haitianos e haitianas na Região Metropolitana de Curitiba, re-
conhecida a partir de suas chegadas nos anos da década de 2010, demonstram um
triste período histórico na realidade dessa região, ou seja, numa ordem tempo-espa-
cial os agentes ou atores sociais, vividos pelos imigrantes haitianos e haitianas,

39
Nádia Pacher Floriani · Edson Belo Clemente de Souza
tornaram-se vítimas de uma parcela da sociedade que reproduz o ódio, a injustiça
social, o preconceito, a alteridade...

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANÍBAL, Felippe. Gazeta do Povo, 19/10/2014. Disponível em: https://www.gazeta-
dopovo.com.br/vida-e-cidadania/xenofobia-se-converte-em-agressoes-contra-
imigrantes-haitianos-ef4atki1925lz2d0e34rtiudq/. Acesso em 13 de maio de 2022
ANÍBAL, Felippe. Gazeta do Povo, 21/10/2014. Disponível em: https://www.gazeta-
dopovo.com.br/vida-e-cidadania/curitibano-tem-restricoes-a-imigrantes-
ef5y39we97iy7bmkexrwkz0we/ Acesso em 13 de maio de 2022
BRASIL. Lei nº 818,de 18 de setembro de 1949. Regula a aquisição, a perda e a rea-
quisição da nacionalidade e a perda dos direitos políticos. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l0818.htm. Acesso em 18 de maio de
2022
BRASIL. Lei 6.815,de 19 de agosto de 1980. Define a situação jurídica do estrangeiro
no Brasil, cria o Conselho Nacional de Imigração. Disponível
em:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6815.htm. Acesso em 18 de maio
de 2022
BRASIL. Lei 7.716,de 05 de janeiro de 1989.Define os crimes resultantes de precon-
ceito de raça ou de cor.Disponível em:http://www.planalto.gov.br/cci-
vil_03/LEIS/L7716.htm. Acesso em 18 de maio de 2022
BRASIL. Lei 13.445, de 24 de maio de 2017. Institui a Lei de Migração. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13445.
htm>, Acesso em 18 de maio de 2022
BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial
da União, Rio de Janeiro, 31 dez. 1940.
CARLOS, A. F. A. A condição espacial. São Paulo: Contexto, 2011.
ECO, Umberto. Cinco escritos morais. Rio de Janeiro: Editora Record, 2002.
HARVEY, David. Condição Pós-Moderna: uma pesquisa sobre as origens da

40
O direito à cidade dos haitianos e haitianas em Curitiba-Paraná.
mudança cultural, 6ª.edição. São Paulo: Loyola, 1996.
KOMARCHESQUI, Bruna. Bem Paraná, 21/10/2014. Disponível em:
https://www.bemparana.com.br/justica/mpt-pr-recebe-denuncias-de-violencia-
contra-haitianos/ Acesso em 13 de maio de 2022
LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, p.33-50,
2004.
LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Editora Ática,
1991.
MBEMBE, Achile - “Por que julgamos que a diferença seja um problema?” Entre-
vista publicada no Portal Geledés, em 22/12/2016. https://www.gele-
des.org.br/por-que-julgamos-que-diferenca-seja-um-problema/ . Acesso em
19/07/2022.
RAVENSTEIN, E. G. As leis da migração. In: MOURA, H. A. (Org.). Migração in-
terna, textos selecionados: teorias e modelos de análise. Fortaleza: BNB, 1980. p.
19-88.
SASSEN, Saskia. Sociologia da Globalização. Porto Alegre: Artmed, 2010.

__________________________________________________
Nádia Pacher, FLORIANI; SOUZA, Edson Belo Clemente de. O direito à
cidade dos haitianos e haitianas em Curitiba-Paraná. In: Marco Aurélio
Machado de; (Org.). Anais do I Congresso do Migrafron. Uberlândia:
Marco Teórico, 2022. pp. 25-41.
__________________________________________________

41
REFLEXÕES SOBRE A REGULARIZAÇÃO
MIGRATÓRIA DOS VENEZUELANOS NO
BRASIL E A RESPEITO DA
OPERAÇÃO ACOLHIDA

2
João Lucas Zanoni da Silva

RESUMO:
O Brasil figura como o quinto maior receptor sul-americano de imigrantes venezue-
lanos e como o exemplo a ser seguido pelos demais Estados da região, no tocante ao
reconhecimento do status jurídico de refugiado desses imigrantes e na criação de
uma Força-Tarefa Logística Humanitária para acolhe-los, a qual foi denominada de
Operação Acolhida. Nesse sentido, se objetiva refletir sobre as medidas de regulari-
zação migratória brasileiras destinadas aos venezuelanos e a respeito das ações e fra-
gilidades da Operação Acolhida. Para tanto, utiliza-se o método dedutivo, em uma
abordagem qualitativa, numa pesquisa básica, de referencial bibliográfico e docu-
mental, sob a ótica do Direito. Por derradeiro, assevera-se ser necessário considerar
as implicações trazidas aos venezuelanos com status migratório regularizado pelas
autorizações de residência temporária e corrigir as fragilidades da Operação Aco-
lhida, com vistas ao beneficiamento da população migrante e não-migrante.

43
João Lucas Zanoni da Silva
PALAVRAS-CHAVE:
Imigrantes venezuelanos. Regularização migratória. Operação Acolhida.

RESUMEN:
Brazil figures as the fifth largest South American recipient of Venezuelan immigrants
and as an example to be followed by other states in the region, regarding the recogni-
tion of the legal refugee status of these immigrants and the creation of a Humanitarian
Logistics Task Force to welcome them, which was called Operation Shelter. In this
sense, this research aims to reflect on the Brazilian migratory regularization measures
aimed at Venezuelans and on the actions and weaknesses of Operação Acolhida. For
this, the deductive method is used, in a qualitative approach, in a basic research, of
bibliographic and documentary reference, from the perspective of Law. Finally, it is
asserted that it is necessary to consider the implications brought to Venezuelans with
migratory status regularized by temporary residence permits and to correct the
weaknesses of Operartion Shelter, with a view to benefiting the migrant and non-mi-
grant population.

KEY-WORDS:
Venezuelan immigrants. Migration regularization. Operation Shelter.

1. INTRODUÇÃO
Contemporaneamente a República Bolivariana da Venezuela tem sido afetada por
uma crise humanitária tridimensional, compreendida como o resultado da depaupe-
ração de sua situação econômica, política e social e como o motivo principal para o
movimento emigratório de mais de 6 milhões de nacionais venezuelanos para outros
Estados, cujos principais receptores em âmbito sul-americano são a Colômbia, o
Peru, o Equador, o Chile e o Brasil (R4V, 2022).
A República Federativa do Brasil já recebeu mais de 351 mil imigrantes venezue-
lanos, os quais têm ingressado em seu território, majoritariamente, pelo estado de
Roraima e permanecido, principalmente nos municípios roraimenses de Pacaraima
44
Reflexões sobre a regularização migratória dos venezuelanos no Brasil e...
e Boa Vista. Apesar da chegada desse fluxo migratório ter se iniciado em 2015, so-
mente em 2018 o Governo Federal brasileiro adotou medidas mais incisivas para ge-
rencia-lo, as quais resultaram na criação da Força-Tarefa Logística Humanitária em
Roraima, conhecida como Operação Acolhida, cuja atuação se desenvolve em três
áreas, quais sejam: a) ordenamento da fronteira; b) abrigamento e; c) interiorização
– processo que consiste na realocação voluntária e assistida de imigrantes venezue-
lanos para outros estados federativos brasileiros que ocorre em cinco modalidades
distintas e é vislumbrado como a solução preferencial e exclusivista para auxiliar tais
indivíduos.
Diante desse contexto, busca-se responder os seguintes questionamentos: As me-
didas adotadas pelo Brasil para propiciar a regularização migratória dos venezuela-
nos em território nacional se coadunam com as previsões legislativas? A forma como
a Operação Acolhida foi institucionalizada e tem sido desenvolvida considera a ne-
cessidade do legado a ser deixado para as entidades federativas roraimenses?
Assim, esta pesquisa objetiva refletir sobre as medidas de regularização migratória
brasileiras destinadas aos venezuelanos e a respeito das ações e fragilidades da Ope-
ração Acolhida. Nesse sentido, o estudo é divido em duas seções além desta introdu-
ção e das considerações finais. Na primeira seção se analisa os dois posicionamentos
adotados pelo Brasil para regularizar os venezuelanos, ao lhes atribuir dois rótulos
migratórios distintos, o primeiro de migrantes forçados e o segundo de refugiados, a
parir de 13 de junho de 2019. Já na segunda seção se apresenta o contexto de criação
da Operação Acolhida, seus três eixos de atuação e algumas reflexões quanto à sua
forma de criação com lapso curto de vigência, provisoriedade, ausência de envolvi-
mento dos atores públicos roraimenses e de preocupação quanto ao legado estrutural
e aprendizados sobre gestão de fluxos migratórios serem deixados para o estado de
Roraima.
A pesquisa se justifica por oportunizar a discussão sobre o tratamento migratório
concedido aos venezuelanos advindos ao Brasil a partir de 2015, assim como a res-
peito da melhora de lacunas existentes nas ações da Operação Acolhida. Para tal mis-
ter, utiliza-se o método dedutivo, em uma abordagem qualitativa, numa pesquisa bá-
sica de referencial bibliográfico e documental, sob a perspectiva do Direito.

45
João Lucas Zanoni da Silva
2. NOTAS SOBRE A REGULARIZAÇÃO MIGARTÓRIA DOS
VENEZUELANOS NO BRASIL
Atualmente a Venezuela tem sido acometida por uma crise humanitária tridi-
mensional, em virtude da junção de problemas econômicos, políticos e sociais que já
conturbavam o viver cotidiano da população venezuelana desde 2013 (MOREIRA,
2018, p. 394). Devido ao agravamento dessas circunstâncias, principalmente, pela
submissão da população à fome, à miséria e à escassez de alimentos e medicamentos
(HRW, 2016, p. 6) os venezuelanos têm se deslocado forçadamente para outros Es-
tados em busca de melhores condições de sobrevivência.
Com efeito, é evidente que a era moderna, desde os seus primórdios, tenha sido
acompanhada pela migração massiva, pois o modo de vida moderno inclui a produ-
ção de “pessoas redundantes”, “localmente inúteis”, excessivas e não empregáveis,
em virtude do progresso econômico, ou localmente intoleráveis, rejeitadas por con-
flitos causados por lutas pelo poder e por transformações políticas e sociais (BAU-
MAN, 2017, p. 9).
Assim, a migração venezuelana tem ocorrido devido aos deslocamentos involun-
tários, motivados pela impossibilidade de as pessoas continuarem a viver em seu Es-
tado de origem (CIDH, 2017, p. 48). O número de venezuelanos que já deixaram o
país perfez 6,15 milhões, cujos principais Estados receptores sul-americanos são a
Colômbia (1,84 milhões), o Peru (1, 29 milhões), o Equador (513,9 mil) o Chile
(448,1 mil) e o Brasil (351 mil) (R4V, 2022a).
Em âmbito brasileiro, a partir de 2015 houve a intensificação da mobilidade fron-
teiriça nos limites entre o Brasil e a Venezuela, em um contingente significativo para
a região. Em geral, observava-se um equilíbrio entre os movimentos de ingresso e
saída pela fronteira seca entre o município de Pacaraima, localizado no estado de
Roraima e o município de Santa Helena do Uairén, situado no estado de Bolívar, na
Venezuela, e, por vezes, um saldo maior de brasileiros se deslocando para o Estado
vizinho do que de venezuelanos para o Brasil. Em um contexto reverso dessa tendên-
cia histórica, o saldo migratório de ingresso de venezuelanos no Brasil, em 2015, pas-
sou a ser de 3 mil pessoas (OIM, 2018).
Saldo esse que aumentou sobremaneira em 2017, em virtude do agravamento da
crise venezuelana, pois cada vez mais venezuelanos começaram a ingressar e a

46
Reflexões sobre a regularização migratória dos venezuelanos no Brasil e...
permanecer no território brasileiro em uma situação de extrema vulnerabilidade,
tentando usufruir dos serviços públicos de saúde e de educação já deficitários e ine-
ficientes de Pacaraima e de Boa Vista – capital do estado de Roraima (SILVA; SILVA,
2019, p. 242), totalizado mais de 35 mil indivíduos em território brasileiro (OIM,
2018). Tal tendência de crescimento só foi interrompida em março de 2020, em razão
da adoção de medidas restritivas de ingresso adotadas pelo Governo Federal brasi-
leiro nas fronteiras terrestres para evitar a disseminação da Pandemia de Covid-19.
A fim de conseguirem regularizar a sua condição migratória, acessarem os servi-
ços públicos locais e terem documentos brasileiros (Cadastro de Pessoas Físicas
(CPF), Cartão do Sistema Único de Saúde (Cartão SUS), Registro Nacional de Es-
trangeiro (RNE), atual Registro nacional Migratório (RNM) e a Carteira de Trabalho
e Previdência Social (CTPS)) gratuitamente e de forma mais célere muitos desses ve-
nezuelanos solicitaram o reconhecimento da condição jurídica de refugiado, pois na
época ainda vigorava a Lei nº 6.815/1980 – o antigo estatuto do Estrangeiro, que não
dispunha sobre qualquer hipótese de vistos na qual tais indivíduos pudessem serem
enquadrados.
Em função disso, ocorreu um crescimento exponencial do número de solicitações
de refúgio feitas por venezuelanos em âmbito brasileiro, as quais até 29 junho de 2022
totalizavam 92.596 solicitações ativas (R4V, 2022b). Entretanto, em um primeiro
momento os nacionais venezuelanos foram tratados pelo Governo Federal brasileiro
como migrantes forçados (SILVA, 2020, p. 73), os quais segundo Zetter (2015, p. 2)
configurariam uma categoria mais ampla de pessoas para as quais não há uma defi-
nição simples e designação oficial. Havendo, portanto, uma diferenciação entre estas
e os refugiados e apátridas, pois estes têm uma definição mais restrita reconhecida
legalmente em instrumentos jurídicos internacionais. Desse modo, observa-se que a
categoria de migrantes forçados é genérica e residual comparativamente com a dos
refugiados e apátridas.
Esse tratamento concedido aos imigrantes venezuelanos configura-se como o
processo de labelling (rotulação) de migrantes, que conforme o autor citado trata-se
de uma estratégia utilizada pelos Estados-nacionais para gerenciarem os fluxos mi-
gratórios advindos aos seus respectivos territórios, por meio do enquadramento dos
migrantes em rótulos, ou seja, em classificações burocráticas migratórias. Tais rótu-
los podem estar respaldados em bases legais distintas, garantem diferentes
47
João Lucas Zanoni da Silva
possibilidades de acesso à direitos e são mobilizados conforme as orientações de po-
lítica interna e externa dos Estados-nacionais. Devido a disso, cria-se uma hierarquia
entre os distintos rótulos, uma vez que alguns são priorizados em detrimento de ou-
tros, como, por exemplo, o “rótulo do refúgio” que na contemporaneidade tem se
tornado um dos mais difíceis de ser conseguido pelos migrantes, pois cada vez mais
os Estados têm optado pela adoção de medidas de proteção complementares, ao in-
vés de incluir os migrantes na proteção conferida pelo refúgio. Consequentemente,
os migrantes são obrigados a transitar entre diferentes classificações para conseguir
sua regularização migratória nos Estados de acolhida (ZETTER, 2007).
Em resposta ao aumento dessas solicitações de refúgio e às pressões exercidas pela
sociedade civil o Conselho Nacional de Imigração (CNIg) editou a Resolução Nor-
mativa nº 126/2017, por meio da qual se concedeu a residência temporária, pelo
prazo de até dois anos, aos nacionais de países fronteiriços que ainda não pudessem
desfrutar do Acordo de Residência do Mercado Comum do Sul (MERCOSUL), não
prevendo o reconhecimento da qualidade jurídica de refúgio aos venezuelanos. Essa
Resolução expirou em março de 2018 e a situação migratória de tais migrantes foi,
então, disciplinada pelas Portarias Interministeriais nº 9/2018, 15/2018, 2/2019 e
19/2021 (SILVA, 2020, p. 126).
A esse contexto é profícuo aplicar a crítica de Hannah Arendt (2012), feita à de-
terioração da terminologia aplicada aos apátridas durante o período entre guerras na
Europa, a qual também pode ser relacionada ao caso da regularização migratória dos
venezuelanos, em um primeiro momento, no Brasil. De acordo com a autora, a ex-
pressão “Povos sem Estado”, utilizada para designar as pessoas que perdiam a sua
nacionalidade, ao menos reconhecia a circunstância de que elas haviam perdido a
proteção dos respectivos governos e que, por isso, era necessária a formalização de
acordos internacionais para salvaguardarem sua condição legal. Distintamente, a ex-
pressão displaced persons (pessoas deslocadas) foi inventada durante a guerra com a
finalidade de liquidar o problema dos apátridas para sempre, por meio do expediente
de ignorar a sua existência (ARENDT, 2012, p. 383) e trata-los como um problema
de segurança internacional.
Sob uma análise do contexto migratório brasileiro, à luz dos pressupostos teóricos
de Arendt (2012), evidencia-se que embora essas três Portarias Interministeriais ci-
tadas tenham sido criadas como a primeira resposta para lidar com a regularização
48
Reflexões sobre a regularização migratória dos venezuelanos no Brasil e...
migratória do fluxo de venezuelanos, elas têm como objetivo “atender a interesses de
política migratória nacional”, como preleciona o art. 33, inciso III, do Decreto nº
9.199/2017 que regulamenta a Lei nº 13.445/2017 – nova Lei de Migração. Logo, não
se trata de uma residência pautada na “acolhida humanitária”, como consta no artigo
36, do referido Decreto, ou no artigo 14, inciso III, alínea c, da Lei nº 13.445/2017.
Apesar de a Lei nº 9.474/1997 – o Estatuto do Refugiados ter previsto, em seu
artigo 1º, inciso III, a possibilidade do reconhecimento do refúgio devido à instaura-
ção de uma grave e generalizada situação de violação de direitos humanos no estado
de origem ou de residência habitual do migrante, o Estado brasileiro optou mais uma
vez por interpretar de modo restritivo a aplicação de sua própria legislação até o dia
13 de junho de 2019 e não reconhecer o status jurídico de refugiado dos venezuela-
nos, com base na hipótese inspirada na conclusão terceira da seção III da Declaração
de Cartagena de 1984.
Assim, o Brasil utilizou uma medida de proteção complementar para formalizar
a atribuição do rótulo de migrantes forçados aos venezuelanos com a finalidade de
regularizar sua condição migratória em território nacional, de lhes conferir o acesso
aos direitos humanos, porém sem um tratamento diferenciado em atenção à sua iso-
nomia substancial, e para se desonerar de suas obrigações para com a maioria de tais
indivíduos. Ao não serem reconhecidos como refugiados, em um primeiro mo-
mento, os venezuelanos foram relegados à um limbo jurídico e tratados como um
problema de segurança internacional, já que a autorização de residência temporária
a eles concedida visa atender aos interesses de uma política migratória inexistente.
Ou seja, os 229.218 venezuelanos que regularizaram sua condição migratória por
meio das autorizações de residência temporária (R4V, 2022c) não têm um status ju-
rídico definido e assegurado legalmente e, consequentemente, recebem um trata-
mento inferior ao dispensado aos imigrantes haitianos, os quais, também em uma
primeira ocasião, puderam se regularizar no Brasil, após a adoção de uma medida de
proteção complementar, que consistiu na criação do visto humanitário pela Resolu-
ção Normativa nº 97/2012 do CNIg, legalmente regulamentado desde novembro de
2017 pela Lei nº 13.445/2017.
Desse modo, ao se comparar a chegada do fluxo migratório haitiano, a partir de
2010, com o ingresso dos imigrantes venezuelanos em território nacional, a parir de

49
João Lucas Zanoni da Silva
2015, verifica-se que a cada novo fluxo migratório expressivo que chega ao território
brasileiro, o Governo Federal busca enquadrar essas pessoas em rótulos migratórios
distintos, com vistas à transferir suas responsabilidades para com o auxílio delas para
a sociedade civil, contribuindo para a existência de níveis de “invisibilidade” entre
os migrantes, devido aos diferentes rótulos migratórios criados, e para o aumento de
vulnerabilidades.
Além disso, verifica-se que o reconhecimento da Venezuela como um Estado sub-
merso em uma “grave e generalizada violação de direitos humanos”, em 13 de junho
de 2019, ocorreu por meio da edição da Nota Técnica nº 03/2019 com base no estudo
de Caso do País de Origem, produzida pela coordenação do Comitê Nacional para
Refugiados (CONARE), na qual se defendeu considerar a situação venezuelana como
grave e generalizada violação de direitos humanos. Essa Nota Técnica tinha validade
de doze meses, podendo ser prorrogada ou revista a qualquer momento, a depender
das conjunturas do Estado venezuelano. Por meio dela, ainda, foi possibilitada a ado-
ção de procedimentos simplificados para a tramitação de processos de reconheci-
mento do refúgio de venezuelanos. Porém, não houve a dispensa dos solicitantes de
refúgio venezuelanos da entrevista de elegibilidade, a qual passou a ocorrer de ma-
neira simplificada (BRASIL, 2019a; DELFIN, 2019).
A decisão pela aplicabilidade da conclusão terceira da seção III da Declaração de
Cartagena de 1984 foi celebrada por diferentes instituições da sociedade civil, sendo
recomendada pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (AC-
NUR) como o posicionamento a ser seguido por outros Estados latino-americanos
(ACNUR, 2019), principalmente, por ser compreendida como uma política migra-
tória mais definitiva (JUBILUT; FERNANDES, 2018). Como refugiados, os imigran-
tes venezuelanos, além de usufruírem da proteção especial reconhecida pelo Brasil,
passariam também a desfrutarem de uma estrutura mais complexa de proteção e in-
tegração social, o que facilitaria o acesso à regularização, à assistência, a equipamen-
tos públicos, à isenção de algumas taxas e à participação de alguns programas e edi-
tais públicos específicos (PEREIRA, 2020). Além disso, como refugiados formal-
mente reconhecidos os venezuelanos têm direito à reunificação familiar e à proteção

50
Reflexões sobre a regularização migratória dos venezuelanos no Brasil e...
pelo princípio do non refoulement1, o qual não é assegurado em nenhuma outra mo-
dalidade migratória.
Posteriormente, em 3 de dezembro de 2019, o CONARE publicou um aditamento
à citada Nota Técnica com o escopo de divulgar a adoção do procedimento prima
facie para a determinação do reconhecimento do refúgio aos venezuelanos (BRASIL,
2019b). Esse procedimento prevê decisões coletivas diante da impossibilidade de
processamento da elegibilidade individualizada, em virtude da urgência na assistên-
cia. Assim, o CONARE optou pelo cruzamento de banco de dados da Polícia Federal
(PF), do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) e de antecedentes crimi-
nais dos solicitantes para analisar uma gama de casos similares selecionados pelo ci-
tado Comitê (GRILLO, 2019). Com efeito, priorizou-se os venezuelanos que já esta-
vam no território brasileiro e que ainda não tinham conseguido a autorização de re-
sidência por meio de outra condição migratória.
Até a presente data o CONARE já reconheceu formalmente de 48.789 venezuela-
nos como refugiados (BRASIL, 2022). Todavia, enfatiza-se que a aplicação de tal de-
cisão do CONARE ocorre somente nas solicitações de refúgio em tramitação e nas
novas solicitações feitas por migrantes venezuelanos, a partir de 13 de junho de 2019.
Isto é, essa decisão não é aplicada de modo retroativo (com efeitos ex tunc) às solici-
tações de refúgio indeferidas e àquelas trocadas por autorizações de residência tem-
porária. Tal circunstância denota que um número significativo de venezuelanos con-
tinuará enquadrado no rótulo de migrantes forçados, inserido num limbo jurídico e
sujeito à falta de proteção estatal e à níveis de invisibilidade e de vulnerabilidade
(SILVA, 2020, p. 128).
Ademais, essa mudança de posicionamento do CONARE se mostra singular, pois
teve como pano de fundo a chegada de Jair Messias Bolsonaro à Presidência da Re-
pública, em janeiro de 2019 e a adoção de diversas medidas que expressaram a reto-
mada de uma visão majoritariamente securitária de migração, como a denúncia do
país ao Pacto Mundial para a Migração Segura, Ordenada e Regular de 2018, as

1 O princípio do non refoulement está previsto expressamente no artigo 33 da Convenção de Ge-


nebra de 1951 Relativa ao Estatuto dos Refugiados e, em termos práticos, significa que os Estados
signatários de tal documento jurídico internacional estão proibidos de devolver um refugiado para
um território no qual ela possa ser vítima de qualquer tipo de perseguição odiosa.
51
João Lucas Zanoni da Silva
publicações das Portarias nº 666/2019 e nº 777/2019, que tratam do impedimento de
regresso, repatriação e a deportação de “pessoa perigosa” e a cessação do status jurí-
dico de três refugiados paraguaios que tinham sido perseguidos em seu Estado de
origem por motivos políticos (MENDES; MENEZES, 2019; SOUZA, 2019).
Mediante ao exposto, assevera-se que os motivos que levaram o Brasil ao reco-
nhecimento dos venezuelanos como refugiados não foram questões exclusivamente
objetivas examinadas caso a caso, e transcendem a pressão exercida pelo ACNUR e
pela sociedade civil organizada. Isto é, a principal razão parece ter sido política-ide-
ológica e remete à uma mudança da política externa brasileira após eleição de Bolso-
naro, atrelada a um alinhamento com os Estados Unidos, durante o governo de Do-
nald Trump, o qual via Nicolás Maduro como um inimigo comum. Desse modo, o
reconhecimento facilitado e acelerado dos venezuelanos como refugiados foi utili-
zado para enfatizar o discurso político de polarização ideológica em detrimento da
Venezuela, ao invés do uso da diplomacia multilateral para se construir uma área de
paz e estabilidade no continente (ARCARAZZO; SARTORETTO, 2020, p. 8-9).
Inobstante tais assertivas, observa-se que embora o estado de Roraima tivesse de-
cretado Estado de Emergência no dia 7 de setembro de 2016 e que o Governo Federal
brasileiro tivesse plena ciência desse fato e da chegada diária de um número crescente
de venezuelanos ao território roraimense desde 2015, ele só adotou medidas mais
eficazes para gerenciar tal fluxo migratório a partir de fevereiro de 2018. Tais medi-
das foram tomadas após a edição dos Decretos n° 9.285/2018 e nº 9.286/2018 e do
início da Força-Tarefa Logística Humanitária em Roraima, coordenada pela Casa Ci-
vil da Presidência da República em conjunto com o Exército Brasileiro.
Porém, à luz das críticas das autoridades locais e da sociedade civil, a resposta do
Governo Federal foi letárgica e insuficiente, diante da magnitude das demandas, e
isso ocorreu pelo fato de no Brasil inexistirem mecanismos de gestão de crises hu-
manitárias, assim como de políticas públicas para a integração de refugiados e mi-
grantes (MILESI; COURY, 2018, p. 77), atrelado à incapacidade de gestão dos órgãos
governamentais locais em políticas de acolhimento (LEVEL; JAROCHINSKI SILVA,
2019). Razão pela qual a partir de 2017 já se percebia a atuação das agências da ONU
em Roraima, as quais contribuíram para a realização de mudanças importantes afetas
à matéria na localidade, além de fomentarem a prática de ações governamentais pon-
tuais com vistas a suprir algumas de demandas, o que mais tarde culminou na criação
52
Reflexões sobre a regularização migratória dos venezuelanos no Brasil e...
da Força-Tarefa Logística Humanitária em Roraima, conhecida por “Operação Aco-
lhida”, analisada na próxima seção.
3. APONTAMENTOS SOBRE A OPERAÇÃO ACOLHIDA
Inicialmente o posicionamento do Governo Federal brasileiro foi no sentido de
não propor políticas migratórias centradas na integração local2 dos venezuelanos na
nova sociedade de acolhida. Assim, privilegiou-se soluções temporárias específicas
como resposta humanitária ao fluxo migratório citado, pois houve a utilização do
recurso estratégico da militarização, por meio do Ministério da Defesa (MD), propi-
ciando a centralização do poder e a distribuição de estratégias de atuação de modo
vertical. Desse modo, concedeu-se um papel de destaque para as Forças Armadas
dentro das ações pensadas para lidar com a mobilidade venezuelana, pois elas repre-
sentavam o ente estatal mais apto em matéria de logística e de presença para atuar
em tal zona fronteiriça (JAROCHINSKI SILVA; ALBUQUERQUE, 2021, p. 49-51),
marcada pelo diminuto desenvolvimento econômico e historicamente abandonada
pelo Estado brasileiro (BRASIL, 2009, p. 6).
Desse modo, em 1º de março de 2018, o Estado Maior Conjunto das Forças Ar-
madas deliberou que o Exército Brasileiro estabelecesse a Operação Acolhida no es-
tado de Roraima, cuja autuação ocorreria em três áreas, quais sejam: a) ordenamento
da fronteira, b) abrigamento e, c) interiorização dos imigrantes. Essa Operação tem
por missão cooperar com o Governo Federal na assistência aos imigrantes vulnerá-
veis, através do apoio logístico em transporte, alimentação (preparação e distribui-
ção), saúde, identificação, imunização, construção e ampliação de abrigos e suporte
para o processo de interiorização (KANNAN; TÁSSIO, SIDIMAR, 2018, p. 68).
Assim, em 16 de março de 2018, a Operação Acolhida se iniciou efetivamente
com a junção de esforços de distintos níveis (político, estratégico, operacional e tá-
tico) de pessoas, autoridades, entidades religiosas, organizações internacionais como
o ACNUR, a Organização Internacional para as Migrações (OIM), organizações não-
governamentais de ajuda humanitária, como o Instituto Migrações e Direitos

2 Conforme Castles et. al. (2002, p. 116) a integração é compreendida como um processo bidireci-
onal, no qual tanto há modificações de valores, regras e comportamentos dos imigrantes quanto
da sociedade de acolhida.
53
João Lucas Zanoni da Silva
Humanos (IMDH), entre outras (SILVA; SILVA; 2019, p. 244).
No tocante à tríade de atuação da citada Operação, observa-se que o ordenamento
da fronteira é efetuado pelo Exército Brasileiro com as demais Forças Armadas e
agências parceiras, por meio do controle do fluxo migratório, da provisão de assis-
tência aos imigrantes desde o seu ingresso no Brasil até estarem aptos a serem inse-
ridos no sistema de ensino e no mercado de trabalho local, participarem do processo
de interiorização ou regressarem voluntariamente para a Venezuela. Após ingressar
no Brasil o imigrante é atendido no Posto de Recepção e Identificação, sendo orien-
tado e imunizado e, depois, é encaminhado para o Posto de Triagem, no qual se pro-
videncia toda a sua documentação para a sua regularização migratória (KANNAN;
TÁSSIO; SIDMAR, 2018, p. 244).
Com relação ao abrigamento a Operação visa propiciar um local de estadia
temporária para o imigrante em situação de vulnerabilidade, com a finalidade de evi-
tar que ele fique em situação de rua e em condições de extrema vulnerabilidade. Re-
sumidamente, os abrigos oferecerem um espaço seguro e protegido, no qual as pes-
soas possam ter acesso a itens de primeira necessidade para que soluções de natureza
duradoura sejam posteriormente viabilizadas (MATTOS, 2018, p. 204). Com a cria-
ção da Operação Acolhida foram estabelecidas estruturas amplas, porém insuficien-
tes para atenderem a todos os imigrantes, devido ao crescente número de indivíduos
que ingressam diariamente no Brasil (cerca de 550) (SILVA, 2020, p. 133).
Em Pacaraima, para ordenar a fronteira, foi construído um Posto de Identificação
(controle migratório), um Posto de Triagem, um módulo de Hospital de Campanha
e um espaço de apoio para os membros da Operação Acolhida e das demais agências
atuantes. Ademais, houve a criação de dois abrigos o BV8, um alojamento misto (de
acolhimento e transição) para imigrantes venezuelanos não indígenas, com capaci-
dade para 2.000 pessoas e o Janokoida, um alojamento exclusivo para imigrantes ve-
nezuelanos indígenas, com capacidade de 400 pessoas (BRASIL, 2022a).
Já em Boa Vista, foi criado um Posto de Triagem para o fornecimento de distintos
serviços aos imigrantes, entre os quais se destacam: regularização de documentação
(Protocolo de Solicitação de Refúgio ou Autorização de Residência Temporária,
CTPS, Cartão SUS, CPF, RNE ou RNM) vacinação, espaço para as crianças, atendi-
mento de proteção às mulheres, ligações telefônicas para a Venezuela e cadastro para

54
Reflexões sobre a regularização migratória dos venezuelanos no Brasil e...
a participação do processo de interiorização voluntária, com a possibilidade de rea-
lização de entrevistas virtuais com os possíveis empregadores de todo o território
nacional (KANNAN; TÁSSIO; SIDMAR, 2018, p. 69).
Ainda, ocorreu a reforma de dois abrigos em Boa Vista, quais sejam: o abrigo Hé-
lio Campos e o abrigo no ginásio do Bairro Pintolândia, exclusivamente destinado
para atender aos imigrantes indígenas, e a construção de mais nove abrigos. Em tais
abrigos se ofertam aos venezuelanos três refeições diárias, assistência médica, kits de
higiene e limpeza, assim como são desenvolvidas atividades sociais e, também, há a
possibilidade deles se comunicarem com os seus familiares que estão na Venezuela
(MATOS, 2018, p. 204).
Todavia, como dito supra, a construção de tais estruturas é insuficiente, razão pela
qual até maio de 2022 existiam 2.053 venezuelanos residindo fora dos abrigos de Pa-
caraima (1714 em espaços públicos ocupados, 110 em espaços privados ocupados e
229 em situação de rua) e até abril de 2022 haviam 1.757 morando fora dos abrigos
de Boa Vista (396 em espaços públicos ocupados, 428 em espaços privados ocupados,
758 no Posto de Recepção e Apoio da Operação Acolhida e 175 em situação de rua)
(OIM, 2022a; OIM, 2022b).
Por derradeiro, o processo de interiorização consiste na realocação voluntária e
assistida dos venezuelanos em outros estados federativos brasileiros, o qual é com-
preendido como como uma das formas de se aliviar a pressão sobre a prestação de
serviços públicos em Roraima e como a principal resposta governamental para esse
fluxo migratório. O desenvolvimento de tal processo conta com a colaboração de di-
ferentes atores, como as Forças Armadas brasileiras, o ACNUR, a OIM, instituições
civis e empresários que trabalham conjuntamente para recepcionarem e acolherem
os venezuelanos nos distintos estados brasileiros (OTERO; TORELLY; RODRI-
GUES, 2018 p. 43; KANNAN; TÁSSIO; SIDMAR, 2018 p. 70).
Para que ocorra a interiorização o ACNUR identifica os venezuelanos que estejam
interessados em participar e cruza as informações com as vagas disponíveis e o perfil
dos participantes. Essa organização assegura que os participantes estejam regular-
mente documentados e as vezes provê melhorias de infraestrutura nos espaços de
acolhimento. Por seu turno, a OIM orienta os imigrantes, previamente ao embarque,
para que eles possam decidir, informada e conscientemente, sempre de maneira

55
João Lucas Zanoni da Silva
voluntária, se realmente desejam ser interiorizados. Ademais, os representantes do
ACNUR ou da OIM acompanham os beneficiários da interiorização durante todo o
percurso até o destino final (SILVA, 2018, p. 211-212).
Hodiernamente, há cinco modalidades de interiorização, dentre as quais há ações
não coordenadas pelo Subcomitê Federal de Interiorização, quais sejam: a) interiori-
zação “abrigo a abrigo” facilitada pelo Ministério do Desenvolvimento Social (MDS)
conjuntamente com quatro agências do sistema ONU, seus parceiros implementa-
dores e a Força Aérea Brasileira (FAB); b) interiorização por reunificação familiar
com a assistência da OIM e da FAB (desde que existam vagas disponíveis em seus
voos); c) interiorização por oferta de emprego sinalizada realizada pelo Exército Bra-
sileiro com a ajuda da FAB, do ACNUR e da OIM; d) os distintos modelos de deslo-
camento auxiliados por diferentes organizações da sociedade civil brasileira e enti-
dades religiosas, com variadas fontes de recursos (SAMPAIO; SILVA, 2018, p. 393);
e) interiorização por reunião social, realizada pelo Exército Brasileiro com o auxílio
da FAB, do ACNUR e da OIM (SILVA, 2020, p 135).
Teoricamente, observa-se que as responsabilidades quanto ao monitoramento
das pessoas interiorizadas são dividas da seguinte forma: a) interiorização “abrigo a
abrigo” a cargo do ACNUR; b) interiorização por reunificação familiar sob as dire-
trizes da OIM e; c) interiorização por oferta de emprego sinaliza e interiorização por
reunião social sob o comando do Exército Brasileiro (SILVA, 2020, p. 135). Até maio
de 2022 já haviam sido formalmente interiorizados 76.398 venezuelanos, cujos prin-
cipais municípios receptores são Manaus (5.287), Curitiba (5.084), São Paulo
(4.196), Dourados (3.237) e Chapecó (2.636) (BRASIL, 2022b).
Ressalta-se, ainda, a interiorização espontânea de inúmeros venezuelanos, desde
o início da chegada do fluxo em 2015. Contudo, se por um lado o processo de interi-
orização objetiva mitigar as tensões locais, evitando a concentração de imigrantes na
faixa fronteiriça e em Boa Vista, por outro lado, tal processo esbarra na morosidade
em função da diminuta disponibilidade dos municípios brasileiros para recepciona-
los, sobretudo depois da instauração de um cenário de crise econômica e de elevados
índices de desemprego (13,2%) (ALVARENGA, 2021), devido ao avanço da Pande-
mia de Covid-19 no Brasil, a partir de março de 2020, e da adoção das medidas de
fechamento das fronteiras nacionais ao ingresso de venezuelanos e de nacionais de

56
Reflexões sobre a regularização migratória dos venezuelanos no Brasil e...
outros Estados e de restrições à circulação.
Assim, depreende-se que o principal obstáculo para a interiorização dos venezu-
elanos é sua inserção no mercado de trabalho, o qual é compreendido como principal
elemento para lhes assegurar a autonomia econômica (SILVA, 2018, p. 211).
Embora a Operação Acolhida seja uma iniciativa inédita, com relação às práticas
migratórias adotadas pelo Brasil, observa-se que ela surgiu como fruto de um cenário
que reivindicava a atuação do Governo Federal em dois aspectos. Sob a perspectiva
do aspecto internacional em virtude da presença das Agências da ONU antes mesmo
da criação da própria Operação e pelo ensejo diplomático da manutenção das estra-
tégias de acolhimento como um ativo político. A luz do aspecto interno em função
das pressões exercidas pelos atores políticos em um ano eleitoral. Acrescido a tal con-
texto, ressalta-se a diminuta participação das autoridades roraimenses na elaboração
de uma resposta para atender o fluxo migratório em comento, o que obstaculizou o
maior engajamento destas com as autoridades federais, ligadas aos órgãos de defesa
(JAROCHINSKI SILVA; ALBUQUERQUE, 2021, p. 66). Com efeito, faz-se algumas
reflexões.
A primeira delas se refere à necessidade de promoção de um maior envolvimento
dos atores locais, corroborando, inclusive, para a melhoria da visibilidade da Opera-
ção Acolhida ao se enfatizarem os seus benefícios diretos para os venezuelanos e in-
diretos para a população roraimense, com ênfase no acolhimento, compreendido
como um paradigma de civilidade, e na possibilidade de crescimento econômico tra-
zido ao estado pelos imigrantes e refugiados venezuelanos. Portanto, a melhor solu-
ção é o diálogo, o intercâmbio de informação entre as autoridades públicas dos dife-
rentes níveis federativos e o aumento do engajamento dessas em prol à causa, con-
tribuindo para o atendimento mais eficaz da população.
A segunda reflexão diz respeito à carência do reconhecimento de que um quanti-
tativo expressivo desses imigrantes prefere permanecer no estado de Roraima, os
quais, têm tentado acessar livremente e em igualdade de condições com os brasileiros
a prestação de serviços públicos, programas e benefícios sociais, bens públicos, assis-
tência jurídica gratuita, trabalho e moradia, mas encontrando alguns obstáculos. Di-
ante disso, afirma-se que as demandas oriundas desse fluxo migratório podem e de-
vem ser revertidas em prol da comunidade local, cabendo aos gestores públicos

57
João Lucas Zanoni da Silva
atuarem de maneira proativa e inteligente no reconhecimento dos direitos desses in-
divíduos de continuarem nesse estado federativo e na captação de recursos, das mais
variadas fontes, para aprimorar e expandir as suas políticas públicas setoriais, com a
finalidade de atender ao aumento populacional (SAMPAIO; SILVA, 2018. p. 392).
Já a terceira reflexão é relacionada ao prazo de duração da Operação Acolhida,
que inicialmente era de doze meses e vem sofrendo sucessivas prorrogações por igual
período, com mudanças no seu modelo de financiamento. Nesse sentido, indaga-se
o que poderá acontecer com esses imigrantes caso tal Operação se encerre e o fluxo
migratório se mantenha, pois é cediço que os venezuelanos continuarão a chegar,
mesmo em menor intensidade, em razão da constante e proeminente deterioração
das condições econômicas, políticas e sociais da Venezuela? (SILVA, 2018, p. 215).
Em atenção a tal contexto e ao curto prazo de duração inicial da Operação Acolhida,
é perceptível a aplicação da crítica de Arendt (2012, p. 308) feita à comunidade in-
ternacional no século XX com relação à proteção dos refugiados e apátridas, pois os
estados nacionais naquela época os consideravam “descartáveis” e esperavam que a
Liga das Nações conseguisse solucionar o problema de forma rápida, sob um viés
securitário.
Ou seja, o Brasil parece seguir o mesmo raciocínio da comunidade internacional
daquele período histórico, pois além de rotular os imigrantes venezuelanos, primei-
ramente, como migrantes forçados e sujeita-los a um limbo jurídico tratados priori-
tariamente como uma questão de segurança, age tardiamente para gerenciar esse
fluxo migratório advindo ao seu território a partir de 2015. E mesmo tendo ciência
do agravamento da crise humanitária venezuelana, propôs uma resposta com dimi-
nuto prazo de vigência para auxiliar os venezuelanos, crendo que o problema seria
solucionado de forma rápida.
Por seu turno, a quarta reflexão se refere ao caráter emergencial, improvisado e
temporário da própria Operação Acolhida, já que a maior parte de suas estruturas
não são permanentes e não deixarão nenhum legado para a população roraimense e
para os imigrantes e refugiados venezuelanos que permanecerem em Roraima. Isto
é, o próprio comando militarizado e securitizado da Operação ratifica a concepção
de que se trata de uma missão com um prazo para se encerrar, inexistindo uma pre-
ocupação mais significativa com os resultados a longo prazo, como, por exemplo, a
consolidação de estruturas estatais mais adequadas em Roraima. Afinal, não é
58
Reflexões sobre a regularização migratória dos venezuelanos no Brasil e...
defensável que após a elaboração e implementação de uma operação do porte da
Operação Acolhida, que os municípios de Pacaraima e Boa Vista voltem a contar
com uma estrutura estatal precária e deficitária. Por isso, a experiência e os conheci-
mentos adquiridos na gestão desse fluxo migratório devem ser objeto de um processo
de apropriação no tocante ao futuro do contexto em comento, como, também, em
outros que possam ocorrer em diferentes localidades brasileiras (JAROCHINSKI
SILVA; ALBUQUERQUE, 2021, p. 66).
Por fim, a quinta reflexão concerne à ausência de mecanismos formais de acom-
panhamento e monitoramento dos beneficiários da interiorização, com vistas à cor-
reção de lacunas no processo de interiorização e à maior inserção de tais indivíduos
em vagas de emprego formais condizentes com sua qualificação profissional no mer-
cado de trabalho brasileiro, o que poderia ser auxiliado por meio da implementação
de uma política de revalidação de títulos de graduação e de pós-graduação efetiva.
Fatos esses que têm contribuído para que uma parcela expressiva dos venezuelanos
interiorizados por oferta de emprego sinalizada seja submetida à condições degra-
dantes de trabalho, como às observadas em diferentes localidades brasileiras, a exem-
plo do município de Dourados – MS, em que a Empresa Seara Alimentos Ltda sub-
meteu seus empregados, inclusive os venezuelanos, à maior propensão de contami-
nação e adoecimento pelo vírus Sars-CoV-2 por não adotar todas as medidas de pro-
teção necessárias contidas na Portaria Conjunta nº 19, de 18 de junho de 2020, do
Ministério da Economia e da Secretaria Especial de Previdência e Trabalho para im-
pedir e diminuir a contaminação pela Covid-19 e por negligenciar o princípio da
prevenção previsto no artigo 225, caput, da Constituição Federal de 1988, conforme
a Ação Civil Pública nº 00246-45.2020.5.24.0022.
Embora seja notável o avanço do Brasil em matéria de legislação migratória e no
acúmulo de saberes ao longo de todo o processo de criação da Lei nº 13.445/2017,
esperava-se que o Governo Federal ofertasse respostas mais complexas e integradas
para atender as características desse fluxo migratório, o que não retira os méritos já
alcançados pela Operação Acolhida. O que se visa é refletir sobre a contradição do
rótulo migratório de migrantes forçados atribuído primeiramente aos venezuelanos
pelo Governo Federal e suas implicações futuras no cotidiano de tais pessoas e a res-
peito dos elementos da citada Operação que carecem de melhora para o futuro, so-
bretudo, pelo fato de no campo prático a resposta duradoura definida pelo Subcomitê
59
João Lucas Zanoni da Silva
Federal de Interiorização, criado pelo Comitê Federal de Assistência Emergencial,
com o auxílio do ACNUR, da OIM, do UNFPA, ainda consistir na interiorização dos
venezuelanos sem se conferir uma maior previsibilidade ao contexto de grande mo-
bilidade de pessoas na fronteira entre Brasil e Venezuela que deverá permanecer à
curto e médio prazo.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mediante ao exposto, verificou-se que o deslocamento involuntário e massivo dos
venezuelanos de seu Estado de origem tem ocorrido em virtude da instauração de
crise humanitária tridimensional que tem obstaculizado a continuidade da vida hu-
mana. Também se observou a circunstância de o Brasil ser o quinto Estado sul-ame-
ricano que mais recebeu venezuelanos, os quais ingressam em seu território, majori-
tariamente, pela região norte.
Ainda, evidenciou-se, em 2017, o aumento significativo do número de ingressos
de venezuelanos e de solicitações de refúgio feitas por eles no Brasil. Contudo, apesar
de haver a possibilidade legal de lhes reconhecer a qualidade jurídica de refugiado, o
Estado brasileiro, preferiu, em um primeiro momento, não seguir tal posiciona-
mento, com vistas a se desonerar de responsabilidades de nível internacional e de
tratar esse fluxo migratório como um problema de segurança internacional.
Isto é, o Brasil, primeiramente, conferiu aos venezuelanos o rótulo de migrantes
forçados e, consequentemente, adotou uma medida complementar de proteção para
lhes assegurar a regularização migratória em território nacional, a qual consistiu na
criação da autorização de residência temporária já utilizada por 229.218 imigrantes
e na sujeição deles à um limbo jurídico e à níveis de invisibilidade e de vulnerabili-
dade. Posicionamento esse que, em função de uma mudança na política externa bra-
sileira, foi modificado a partir de 13 de junho de 2019, porém, não de modo retroa-
tivo.
Igualmente, constatou-se a ação tardia do Governo Federal na adoção de medidas
mais incisivas para auxiliar esses imigrantes e o despreparo dos órgãos públicos mu-
nicipais e estaduais roraimenses para lidar com a temática do acolhimento e auxílio
desse público. A principal medida de nível federal foi a criação da Operação Aco-
lhida, em 2018, sob uma perspectiva militarizada e securitizada cuja atuação é
60
Reflexões sobre a regularização migratória dos venezuelanos no Brasil e...
pautada tríade ordenamento da fronteira, abrigamento e interiorização e que não
consegue atender a todos os imigrantes devido à insuficiência de suas estruturas.
Percebeu-se, ainda, o fato de a interiorização voluntária e assistida dos venezue-
lanos, ser, em suas cinco modalidades, a resposta duradoura e exclusiva proposta
para auxiliar tais indivíduos pelo Subcomitê Federal de Interiorização, expressando
a carência de uma política migratória nos três níveis federativos e algumas reflexões
que precisam ser consideradas para que o processo de interiorização não seja a única
opção para o público em comento, concretizando-se somente como a transferência
de pessoas em situação de vulnerabilidade extrema de uma região brasileira para ou-
tra sem qualquer tipo de monitoramento institucionalizado à curto e médio prazo de
seus beneficiários. Por derradeiro, preconizou-se a necessidade de um maior envol-
vimento dos atores roraimenses na Operação Acolhida, de se considerar os venezu-
elanos como sujeitos de direitos e também partícipes dessa Operação, de se pensar
sobre o legado a ser deixado pela Operação Acolhida para o estado de Roraima, tendo
em vista a precariedade das estruturas públicas locais e a provisoriedade das estrutu-
ras de tal Operação, o que não ofusca os méritos já alcançados por ela.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ACNUR, Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados. Declaração de
Cartagena de 1984. Disponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/Documen-
tos/ portugues/BD_Legal/Instrumentos_Internacionais/Declaracao_de_Carta-
gena.pdf. Acesso em 10 jul. 2022.
ACNUR, Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados. ACNUR para-
beniza Brasil por reconhecer milhares de venezuelanos como refugiados. Dispo-
nível em: https://www.acnur.org/portugues/2019/12/06/acnur-parabeniza-bra-
sil-por-reconhecer- milhares-de-venezuelanos-como-refugiados. Acesso em: 10
jul. 2022.
ALVARENGA. Darlan. Brasil tem a 4ª maior taxa de desemprego do mundo,
aponta ranking com 44 países. 2021 G1. Disponível em:
https://g1.globo.com/economia/noticia/2021/11/22/brasil-tem-a-4a-maior-
taxa-de-desemprego-do-mundo-aponta-ranking-com-44-paises.ghtml. Acesso

61
João Lucas Zanoni da Silva
em; 10 jul. 2022.
ARCARAZO, Diego Acosta.; SARTORETTO, Laura Madrid. ¿Migrantes o Refugia-
dos? La Declaración de Cartagena y los Venezolanos em Brasil. Análisis Carolina,
n. 9, mar. 2020.
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras,
2012.
BAUMAN, Zygmunt. (2017). Estranhos à nossa porta. Trad. Carlos Alberto Medei-
ros. Rio de Janeiro: Zahar.
BRASIL. Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980. define a situação jurídica do estran-
geiro no Brasil, cria o Conselho Nacional de Imigração. Estatuto do Estrangeiro.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/cc vil_03/leis/l6815.htm. Acesso em
10 jul. 2022.
BRASIL. Lei nº. 9.474, de 22 julho de 1997. Define mecanismos para a implemen-
tação do Estatuto dos Refugiados de 1951, e determina outras providências. Dis-
ponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9474.htm. Acesso em 10
jul. 2022.
BRASIL. Conselho Nacional de Imigração. Resolução Normativa nº 97, de 12 de ja-
neiro de 2012. Dispõe sobre a concessão do visto permanente previsto no art. 16
da Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980, aos nacionais do Haiti. Disponível em:
https://dspace.mj.gov.br/bitstream/1/1541/1/REN_CNIG_2012_97.pdf. Acesso
em 10 jul. 2022.
BRASIL. Resolução Normativa nº 126, de 02 de março de 2017. Dispõe sobre a con-
cessão de residência temporária a nacional de país fronteiriço. Disponível em:
https://www.legisweb.com.br/ legislacao/?id=338243. Acesso em 10 jul. 2022.
BRASIL. Lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017. Institui a Lei de Migração. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13445.htm.
Acesso em 13 jul. 2022.
BRASIL. Decreto nº 9.199, de 20 de novembro de 2017. Regulamenta a Lei nº 13.445,
de 20 de maio de 2017 que institui a Lei de Migração. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/decreto/d9199.htm.
Acesso em 10 jul. 2022.
62
Reflexões sobre a regularização migratória dos venezuelanos no Brasil e...
BRASIL. Decreto nº 9.285, de 15 de fevereiro de 2018. Reconhece a situação de vul-
nerabilidade decorrente de fluxo migratório provocado por crise humanitária na
República Bolivariana da Venezuela. Disponível em: http://www.pla-
nalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/decreto/D9285.htm. Aceso em 13
jul. 2022.
BRASIL. Decreto nº 9.286, de 15 de fevereiro de 2018. Define a composição, as com-
petências e as normas de funcionamento do Comitê Federal de Assistência Emer-
gencial para acolhimento a pessoas em situação de vulnerabilidade decorrente de
fluxo migratório provocado por crise humanitária. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/decreto/D9286.htm.
Acesso em: 10 jul. 2022
BRASIL. Portaria Interministerial Nº 9, de 14 de março de 2018. Dispõe sobre a
concessão de autorização de residência ao imigrante que esteja em território bra-
sileiro e seja nacional de país fronteiriço, onde não esteja em vigor o Acordo de
Residência para Nacionais dos Estados Partes do MERCOSUL e países associa-
dos, a fim atender a interesses da política migratória nacional. Disponível em:
https://www.refworld. org.es/topic,57f504723c,5aaaac654,0.html. Acesso em 10
jul. 2022.
BRASIL. Portaria Interministerial no 15, de 27 de agosto de 2018. Obtido de
https://portaldeimigracao.mj.gov.br/images/portarias/PORTARIA%20INTER-
MINISTERIAL %20N%C2%BA%2015,%20DE%2027%20DE%20AGOSTO%20
DE%202018.pdf
Brasil. Portaria Interministerial no 2, de 15 de maio de 2019. Disponível em:
http://www.in.gov.br/web/dou/-/portaria-interministerial-n-2-de-15-de-maio-
de-2019- 145560854. Acesso em 10 jul. 2022.
BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Nota Técnica nº 3/2019a. CO-
NARE_Administrativo/CONARE/DEMIG/SENAJUS/MJ PROCESS ON
08018.001832/2018-01 INTERESSADO COMITÊNACIONAL PARA OS REFU-
GIADOS - CONARE ESTUDO DE PÁIS DE ORIGEM - VENEZUELA -
13.06.2019. Disponível em: https://www.justica.gov.br/news/collective-nitf-con-
tent-1564080197.57/sei_mj-8757617-estudo-de-pais-de-origem-venezu-
ela.pdf/@@download/file. Acesso em 13 jul.2022.
63
João Lucas Zanoni da Silva
BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Nota Técnica nº 12/2019b. CO-
NARE_Administrativo/CONARE/DEMIG/SENAJUS/MJ PROCESSO N
08018.001832/2018-01 INTERESSADO: COMITÊ NACIONAL PARA OS RE-
FUGIADOS - CONARE - ESTUDO DE PÁIS DE ORIGEM - VENEZUELA -
ADITAMENTO. Disponível em: https://www.refworld.org.es/pdfid/5e349d7
74.pdf.%20%20Acesso%20em%2022%20jan.2022. Acesso em 13 jul. 2022.
BRASIL. Operação Acolhida. Perfil dos Abrigos em Roraima, 2022a. Disponível em:
https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiZTRhOWVlOTg-
tYTk2MS00YmY3LWEyY2YtMGM1Y2MzODFjMmVjIi-
widCI6ImU1YzM3OTgxLTY2NjQtNDEzNC04YTBjLTY1NDNkMmFmODBi-
ZSIsImMiOjh9&pageName=ReportSection2f742043b456c18852a1. Acesso em
22 jun.2022.
BRASIL. Operação Acolhida. Informe de Deslocamentos Assistidos de Venezuela-
nos - Maio./2022b. Disponível em: https://www.r4v.info/pt/document/informe-
de-interiorizacao-maio2022. Acesso em 13 jul. 2022.
BRASIL. Ministério da Integração Nacional. Programa de Promoção do Desenvol-
vimento da Faixa de Fronteira – PDFF, 2009. Disponível em: http://www.inte-
gracao.gov.br/cartilha-pdff. Acesso em: 13 jul. 2022.
CASTLES, Stephen; KORAC, Maja; VASTA, Ellie; VERTOVEC, Steven. Integration:
mapping the field. London: Home Office Immigration Research and Statistics
Service, 2002.
DELFIN, Rodrigo Borges. Brasil tem 161 mil solicitações de refúgio aguardando
análise. Disponível em: https://migramundo.com/brasil-tem-161-mil-solicita-
coes-de-refugio- aguardando-analise/. Acesso em: 21 jul. 2022.
GRILLO, Marco (2019) Governo brasileiro concede status de refugiado para mais de
21 mil venezuelanos. O Globo, 05.12.2019. Disponível em:
https://oglobo.globo.com/mundo/governo-brasileiro-concede-status-de-refu-
giado-para-mais-de-21- mil-venezuelanos-24120213. Acesso em: 22 jul. 2022.
HRW, Human Rights Watch. Crisis humantitaria en Venezuela: la inadequada e re-
pressiva respuesta del gobierno ante grave escassez de medicinas, insumos y ali-
mentos. Nova Iorque: Human Rights Watch, 2016.

64
Reflexões sobre a regularização migratória dos venezuelanos no Brasil e...
LEVEL, Beatriz. Patrícia de Lima; JAROCHINSKI, João Carlos. Venezuelanos no
Brasil e o atendimento humanitário. In: JUBILUT, Lilina Lyra (Org.) [et al.]. Di-
reitos Humanos e Vulnerabilidade e o Direito Humanitário. Boa Vista: UFRR.
2019, p. 823-843.
JAROCHINSKI SILVA, João Carlos. ALBUQUERQUE, Élyson Bruno Fontenelle de.
Operação Acolhida: avanços e desafios. Caderno de debates refúgio, migrações e
cidadania, v. 1, p. 47-72, 2021.
JUBILUT, Liliana. Lyra.; FERNANDES, Ananda Pórpora. A atual proteção dos des-
locados forçados da Venezuela pelos país da América Latina. In: BAENINGER,
Rosana; SILVA, João Carlos Jarochinski (coords.). Migrações Venezuelanas.
Campinas - SP: Núcleo de Estudos de População "Elza Berquó" - Nepo/Unicamp,
2ª ed., 2018, p. 164-177.
KANNAN, Cel; TÁSSIO, Maj; SIDMAR, 2º Ten.. As Ações do Exército Brasileiro na
ajuda humanitária aos imigrantes venezuelanos. In: BAENINGER, Rosana;
SILVA, João Carlos Jarochinski (coords.). Migrações Venezuelanas. Campinas -
SP: Núcleo de Estudos de População "Elza Berquó" - Nepo/Unicamp, 2ª ed., 2018,
p. 68-71.
MATTOS, Pablo. A Atuação do ACNUR na resposta ao fluxo de venezuelanos em
Roraima. In: BAENINGER, Rosana; SILVA, João Carlos Jarochinski (coords.).
Migrações Venezuelanas. Campinas - SP: Núcleo de Estudos de População "Elza
Berquó" - Nepo/Unicamp, 2ª ed., 2018, p. 203-205.
MENDES, José Aurivaldo Sacchetta Ramos; MENEZES, Fábio Bensabath Bezerra de
Menezes. Política migratória no Brasil de Jair Bolsonaro: “perigo estrangeiro” e
retorno à ideologia de segurança nacional. Cadernos do creas. Revista Crítica de
Humanidades, Salvador, n. 247, maio/ago. 2019, p. 302-321.
MILESI, Rosita.; COURY, Paula. Acolhida, proteção e integração de venezuelanos
no Brasil: a atuação do Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH). In: BA-
ENINGER, Rosana; SILVA, João Carlos Jarochinski (coords.). Migrações Vene-
zuelanas. Campinas - SP: Núcleo de Estudos de População "Elza Berquó" -
Nepo/Unicamp, 2ª ed., 2018, p. 72-78.
MOREIRA, Thiago Oliveira. A (Necessária) Proteção dos Direitos Humanos dos

65
João Lucas Zanoni da Silva
Migrantes Venezuelanos pela Jurisdição Brasileira. In: BAENINGER, Rosana;
CANALES, Alejandro (coord.). Migrações Fronteiriças, Campinas – SP: Núcleo
de Estudos de População “Elza Berquó” – Nepo/Unicamp, 2018, p. 394-403.
OIM, Organização Internacional para as Migrações. Informe sobre a população ve-
nezuelana refugiada e migrante fora dos abrigos de Pacaraima - Maio/2022a.
Disponível em https://www.r4v.info/pt/document/informe-de-populacao-refu-
giada-e-migrante-fora-de-abrigos-em-pacaraima-jan2022. Acesso 21 jan.2022.
OIM, Organização Internacional para as Migrações. Informe sobre a população ve-
nezuelana refugiada e migrante fora dos abrigos de Boa Vista – Abr./2022b. Dis-
ponível em https://www.r4v.info/pt/document/informe-de-populacao-refugi-
ada-e-migrante-fora-de-abrigos-em-boa-vista-jan2022. Acesso 21 jan. 2022.
OIM. Organização Internacional para as Migrações. Informe Migratorio Sudameri-
cano. BuenosAires:OficinaRegionaldelaOIM para América del Sur, sep. 2018, 16
p. Disponível em: <https://robuenosaires.iom.i nt/sites/robuenosaires/files/In-
formes/Tendencias_Migratorias_Nacionales_en_ Americas__Venezuela-Septi-
embre_2018.pdf>. Acesso em: 16 abr. 2022.
ONU, Organização das Nações Unidas. Convenção de Genebra de 1951 Relativa ao
Estatuto dos Refugiados. Disponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/Do-
cumentos/portugues/BDL/Convencao_relativa_ao_Estatuto_dos_Refugia-
dos.pdf. Acesso em: 16 abr. 2022.
OTERO, Guilherme.; TORELLY, Marcelo.; RODRIGUES, Yssyssay. A atuação da
Organização Internacional para as Migrações no apoio à gestão do fluxo migra-
tório venezuelano. In: BAENINGER, Rosana; SILVA, João Carlos Jarochinski
(coords.). Migrações Venezuelanas. Campinas - SP: Núcleo de Estudos de Popu-
lação "Elza Berquó" - Nepo/Unicamp, 2ª ed., 2018, p. 38-44.
PEREIRA, Alexandre Branco. Os usos e abusos político do refúgio. Nexo Jornal,
15.02.2020. Disponível em https://www.nexojornal.com.br/ensaio/2020/Os-
usos-e-abusos-pol%C3%ADticos-do-ref%C3%BAgio. Acesso em: 21 jan.2022
R4V. Plataforma de Coordenação Interagencial para Refugiados e migrantes da Ve-
nezuela. R4V América Latina e Caribe, Refugiados e Migrantes Venezuelanos na
Região - Julho 2022. Disponível em: https://www.r4v.info/en/document/r4v-

66
Reflexões sobre a regularização migratória dos venezuelanos no Brasil e...
latin-america-and-caribbean-venezuelan-refugees-and-migrants-region-jul-
2022. Acesso em 14 jul. 2022.
R4V. Plataforma de Coordenação Interagencial para Refugiados e migrantes da Ve-
nezuela. Solicitações Pendentes da Condição Jurídica de Refúgiado por País - Ju-
lho 2022. Disponível em: https://www.r4v.info/es/solicitudes Acesso em 14 jul.
2022.
SAMPAIO, C.; Silva, J. C. J. Complexidade x singularidade - a necessidade de outras
soluções duradouras. In: BAENINGER, Rosana; SILVA, João Carlos Jarochinski
(coords.). Migrações Venezuelanas. Campinas - SP: Núcleo de Estudos de Popu-
lação "Elza Berquó" - Nepo/Unicamp, 2ª ed., 2018, p. 391-394.
SILVA, Sidney. (2018). Políticas de abrigamento a imigrantes venezuelanos em Boa
Vista e Manaus. In: BAENINGER, Rosana; SILVA, João Carlos Jarochinski (co-
ords.) Migrações Venezuelanas. Campinas - SP: Núcleo de Estudos de População
"Elza Berquó" - Nepo/Unicamp, 2ª ed. 2018, p. 206-216.
SILVA, João Lucas Zanoni da; SILVA, César Augusto Silva da. (2019). A diáspora
venezuelana para o Brasil: a experiência do Projeto Acolhida de Dourados - MS.
Em A. A. M. Contini; C. P. Carneiro Filho; G. S. Preussler. Fronteiras e direitos
humanos em perspectiva. Curitiba: Editora Íthala, 2019, p. 239-254..
SILVA, J. L. Z. (2020). A Imigração Venezuelana para o Brasil: do ingresso em Pa-
caraima – RR ao início da interiorização em Dourando- MS. Dissertação (Mes-
trado) – Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), Faculdade de Di-
reito e Relações e Internacionais, Programa de Pós-Graduação em Fronteiras e
Direitos Humanos. Dourados – MS. Disponível em: https://files.ufgd.edu.br/ar-
quivos/arquivos/78/MESTRADO-FRONTEIRAS/Jo%C3%A3oLucasZanonida-
Silva%20%20disserta%C3%A7%C3%A3o.pdf.pdf. Acesso em 10 jul. 2022.
ZETTER, Roger. Protection in Crisis: forced migration and protection in a global
era. Washington, DC: Migration Policy Institute, 2015
ZETTER, Roger. More labels, fewer refugees: remaking the refugee label in an era of

67
João Lucas Zanoni da Silva
globalization. Journal of Refugee Studies, Oxford, v. 20, n. 2, p. 172-192, 2007.

__________________________________________________
SILVA, João Lucas Zanoni da. Reflexões sobre a regularização migratória
dos venezuelanos no brasil e a respeito da operação acolhida. In: OLI-
VEIRA, Marco Aurélio Machado de; (Org.). Anais do I Congresso do Mi-
grafron. Uberlândia: Marco Teórico, 2022. pp. 43-68.
__________________________________________________

68
A REGULARIZAÇÃO DE DOCUMENTOS
PARA IMIGRANTES JUNTO À POLÍCIA
FEDERAL EM CORUMBÁ, FRONTEIRA
BRASIL-BOLÍVIA

3
Daniella Ibarreche de Menezes
Evelyn Flayra Cavalcanti dos Santos
Marco Aurélio Machado de Oliveira

RESUMO:
Esta pesquisa surgiu a partir de uma atividade na disciplina Documentação e Cida-
dania na Fronteira, do MEF, UFMS-CPAN, em Corumbá. O município é limítrofe
com a Bolívia. Nesta região de fronteira, o fluxo de pessoas de outras nacionalidades
é intenso. O objetivo deste estudo é compreender como funciona o atendimento ao
estrangeiro na Delegacia de Polícia Federal de Corumbá, quais serviços são ofertados
pelo órgão para esse público e de que forma os agentes públicos percebem a fronteira.
Trata-se de uma pesquisa de campo. A revisão bibliográfica foi um dos procedimen-
tos metodológicos utilizados para elucidar temáticas sobre documentação e fron-
teira. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com os policiais federais. A ob-
servação sistemática do setor de Atendimento ao Estrangeiro foi fundamental para
entender todo o processo de regularização e emissão de documentos para imigrantes
no município de Corumbá, fronteira com a Bolívia.

69
Daniella Ibarreche de Menezes · Evelyn F. Cavalcanti dos Santos · Marco Aurélio M. Oliveira
PALAVRAS-CHAVE:
Documentação; Polícia Federal; Fronteira.

RESUMEN:
Esta investigación surgió de una actividad en la disciplina Documentación y Ciuda-
danía en la Frontera, del MEF, UFMS-CPAN, en Corumbá. El municipio limita con
Bolivia. En esta región fronteriza, el flujo de personas de otras nacionalidades es in-
tenso. El objetivo de este estudio es comprender cómo funciona el servicio a los extran-
jeros en la Comisaría de la Policía Federal de Corumbá, qué servicios ofrece la agencia
para este público y cómo los agentes públicos perciben la frontera. Esta es una encuesta
de campo. La revisión bibliográfica fue uno de los procedimientos metodológicos utili-
zados para dilucidar cuestiones sobre documentación y fronteras. Se realizaron entre-
vistas semiestructuradas con policías federales. La observación sistemática del sector
del Servicio Exterior fue fundamental para comprender todo el proceso de regulari-
zación y expedición de documentos para inmigrantes en el municipio de Corumbá, en
la frontera con Bolivia.

PALABRAS-CLAVE:
Inmigrantes haitianos e haitianas; Segregación socioespacial; Injusticia social.

1. INTRODUÇÃO
Este estudo surgiu da experiência de prática em observação em um dos órgãos
federais responsáveis pela regularização de imigrantes no município de Corumbá,
fronteira com a Bolívia.
Durante a disciplina optativa Documentação e Cidadania na Fronteira do curso
de pós-graduação Mestrado em Estudos Fronteiriços, da Universidade Federal de
Mato Grosso do Sul – Campus Pantanal, a turma foi dividida em vários grupos e uma
das atividades propostas aos mestrandos foi realizar uma observação. Cada grupo foi
direcionado para um órgão específico, sendo eles: Receita Federal, SEMED (Secreta-
ria Municipal de Educação de Corumbá), Cartório de Registro Civil, Justiça Eleitoral
70
A regularização de documentos para imigrantes junto à polícia federal em Corumbá...
e Polícia Federal.
Esta pesquisa apresenta uma abordagem feita através de observações sistemáticas
realizadas na Delegacia de Polícia Federal de Corumbá-MS, fronteira Brasil-Bolívia.
Por ser uma localidade limítrofe com outro país, existe também um segundo Posto
de Atendimento ao Imigrante, intitulado ‘Posto de Migração Terrestre de Corumbá’,
localizado próximo a delimitação dos dois países. Funciona todos os dias da semana
(inclusive sábado, domingo e feriados) das 8h às 18h. Nesta localidade ocorre a fis-
calização e permissão para o ingresso ou saída do Brasil.
A pouca distância que separa as duas nações (cerca de 7km) é um dos motivos da
grande movimentação de entrada e saída em ambos os países. Esse deslocamento é
ocasionado por diversas motivações, como comércio, trabalho, estudo, compras,
passeios, visita a familiares e amigos, acompanhamento médico, dentre outros.
O objetivo dessa observação é perceber como funciona o atendimento ao estran-
geiro na Delegacia de Polícia Federal de Corumbá, quais serviços são ofertados pelo
órgão para esse público e de que forma os agentes públicos percebem a fronteira.
O recorte temporal é o mês de junho de 2022, período do primeiro semestre da
Turma do MEF (Mestrado em Estudos Fronteiriços) / 2022, e que foi desenvolvida a
disciplina sobre documentação na fronteira.
Trata-se de uma pesquisa de campo, considerando que as mestrandas precisam
estar inseridas no contexto em que ocorre a investigação, para desenvolver a pes-
quisa. Foi elaborado um roteiro de entrevista semiestruturada, com alguns assuntos
de interesse desse estudo, podendo abranger novos temas surgidos durante os episó-
dios de observação.
Sobre a observação, Richardson (2012) afirma que
[...] a observação é a base de toda investigação no campo social, podendo ser utilizada
em trabalho científico de qualquer nível, desde os mais simples estágios, até os mais
avançados. [...] A observação torna-se uma técnica científica a medida que serve a um
objetivo formulado de pesquisa, é sistematicamente planejada, sistematicamente re-
gistrada e ligada a proposições mais gerais e, em vez de ser apresentada como con-
junto de curiosidades interessantes, é submetida a verificações e controles de validade
e precisão. (RICHARDSON, 2012, p. 259)
É uma pesquisa bibliográfica, dado que são utilizados textos estudados durante a
71
Daniella Ibarreche de Menezes · Evelyn F. Cavalcanti dos Santos · Marco Aurélio M. Oliveira
disciplina Documentação e Cidadania na Fronteira para fundamentar as questões
manifestadas nessa investigação; também é uma pesquisa documental uma vez que
utilizará documentos normativos como leis, decretos e outros que se relacionam à
migração e estrangeiros. E relaciona-se com a pesquisa eletrônica, em razão da ne-
cessidade de utilizar a página da Polícia Federal para conhecer o processo de solici-
tação de documentos e agendamento através do site do órgão.
É um estudo qualitativo, fundamentalmente interpretativo. Para Creswell (2007)
A pesquisa qualitativa ocorre em um cenário natural. O pesquisador qualitativo sem-
pre vai ao local (casa, escritório) onde está o participante para conduzir a pesquisa.
Isso permite ao pesquisador desenvolver um nível de detalhes sobre a pessoa ou sobre
o local e estar altamente envolvido nas experiências reais dos participantes. [...] bus-
cam o envolvimento dos participantes na coleta de dados e tentam estabelecer har-
monia e credibilidade com as pessoas no estudo. Eles não perturbam o local mais que
o necessário. (CRESWELL, 2007, p. 186)
Portanto, neste escrito, pretende-se esclarecer como ocorre procedimento de so-
licitação de emissão de documentação para imigrantes junto a Polícia Federal, desde
o momento em que o cidadão acessa a página para agendar o atendimento presencial
na Delegacia, pagamentos de guias, listagem de documentos e entrevista no órgão
competente.

2. FRONTEIRA BRASIL-BOLÍVIA
Corumbá localiza-se no Estado de Mato Grosso do Sul. Foi fundada em 21 de
setembro de 1778, e aos poucos, sendo povoada por imigrantes que chegavam à re-
gião, atraídos pelo desenvolvimento que a cidade apresentava devido a grande mo-
vimentação em seu Porto.
É um município que faz fronteira com a Bolívia. Apenas uma ponte separa os dois
países. Os municípios bolivianos mais próximos do território brasileiro são Puerto
Quijarro e Puerto Suarez, que fazem parte da Província de Gèrman Bush, Departa-
mento de Santa Cruz.
Para Costa (2013), este espaço específico onde se localizam as duas nações são
[...] bandas territoriais, uma de cada Estado nacional, articuladas numa contiguidade

72
A regularização de documentos para imigrantes junto à polícia federal em Corumbá...
territorial que, controlada e confrontada por diferentes forças e relações de poder,
forma as fronteiras. Essas áreas são passíveis de passagens de diversas ordens: econô-
mica, social, cultural, animal, de vetores de doença, de circulação atmosférica, dentre
outras. (COSTA, 2013, p.65)
E é justamente neste espaço que ocorre um grande fluxo de pessoas, motivadas
por inúmeros propósitos, como turismo, lazer, trabalho, estudo, tratamento médico,
comércio, e muitos outros. Corumbá recebe diariamente um expressivo número de
pessoas de outras nacionalidades. Algumas fixam residência e outras utilizam a ci-
dade apenas como local de passagem. Os imigrantes são pessoas provenientes de ou-
tro país e que desejam morar em Corumbá. Oliveira (2016) define o imigrante como
um ser portador de transformações, seja na sociedade que ele deixa para trás seja na
que o recebe. Nesse sentido, entendemos que tais transformações são ligadas, por um
lado, às relações sociais, ou seja, os círculos de amizade, casamentos, interações esco-
lares e laborais; economia e comércio e, por outro lado, às relações políticas, incluindo
as estatais, que buscam soluções e entendimentos, uma para aclarar os motivos de
saída e outra para explicar as permissões ou interdições para a entrada. (OLIVEIRA,
2016, p. 16)
Um estrangeiro, que deseja residir no Brasil, precisa estar regularmente docu-
mentado, e assim ter acesso a educação, saúde e previdência social. Alguns desistem
por não possuírem condições financeiras para pagar as taxas referentes a emissão da
documentação. Outros, pela burocracia que envolve o processo de regularização.

3. POLÍCIA FEDERAL
Conforme o Portal do Governo Brasileiro
a Polícia Federal do Brasil (PF), ou Departamento de Polícia Federal (DPF), é uma
instituição policial brasileira, subordinada ao Ministério da Justiça e Segurança Pú-
blica, que, de acordo com a Constituição de 1988, exerce com exclusividade as fun-
ções de polícia judiciária da União. Atua também na segurança pública para a preser-
vação da ordem pública e da incolumidade das pessoas, bem como dos bens e inte-
resses da União, exercendo atividades de polícia marítima, aeroportuária e de fron-
teiras, repressão ao tráfico de entorpecentes, contrabando e descaminho. A sede fica
situada em Brasília, no Distrito Federal, havendo unidades descentralizadas

73
Daniella Ibarreche de Menezes · Evelyn F. Cavalcanti dos Santos · Marco Aurélio M. Oliveira
(superintendências regionais) em todas as capitais dos estados da federação, bem
como delegacias e postos avançados em diversas cidades do país. (Sobre - Polícia Fe-
deral - Organizações - Portal Brasileiro de Dados Abertos)
Fazendo um recorte para a cidade de Corumbá, onde foi desenvolvida esta pes-
quisa, a observação foi realizada na Delegacia de Polícia Federal de Corumbá, locali-
zada no seguinte endereço: Praça da República, 51 - Centro, Corumbá - MS, CEP
79301-140.
No espaço observado funcionam cinco setores: Emissão de Passaportes; Registro
de Armas de Fogo e Concessão de Porte de Arma de Fogo; Controle e Fiscalização
de Produtos Químicos; Controle e Fiscalização de Segurança Privada e Atendimento
aos Estrangeiros. Dentre todos esses, o enfoque desse estudo é no Atendimento ao
Estrangeiro.
Nesses cinco setores trabalham três agentes da Polícia Federal e uma funcionária
contratada por uma empresa terceirizada. Os dois agentes, que estavam presentes
nos dias em que foram realizadas as observações, estão apenas há seis meses atuando
na cidade. Um possui formação em administração (Agente 1 – natural de Minas Ge-
rais) e o outro é engenheiro agrônomo (Agente 2 – natural do Espírito Santo). O
terceiro agente (Agente 3), conforme relato dos colegas, estava numa missão em
Campo Grande. A funcionária terceirizada está terminando a graduação em direito
e é corumbaense. Esse grupo trabalha semanalmente em horário comercial, não ha-
vendo plantões nos finais de semana ou feriados. O atendimento ocorre das 8h às
11h, e das 13:30h às 16h. O Agente 2 é o Chefe do setor de Atendimento aos Estran-
geiros e Emissão de Passaportes.
O edifício da Polícia Federal fica na região central de Corumbá e é de fácil locali-
zação física. Funciona em uma construção tombada pelo Patrimônio Histórico Na-
cional. (Página - IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), e
por esse motivo não é possível realizar modificações na estrutura original, pois o
imóvel não pode ser descaracterizado.
O local não possui acessibilidade para cadeirantes, ou pessoas com limitações de
locomoção, visto que o atendimento ocorre num recinto onde possui escadas, não
há uma rampa para acesso. Durante o período da pesquisa, presenciou-se a dificul-
dade em acessar o prédio por uma pessoa que utiliza cadeira de rodas. O portão da

74
A regularização de documentos para imigrantes junto à polícia federal em Corumbá...
garagem foi aberto, e só assim o cidadão pôde ser atendido no balcão. Na entrada da
Delegacia existe uma escada, conforme a Figura 1.

Figura 1 – Prédio Da Delegacia de Polícia Federal de Corumbá


Fonte: GoogleMaps

Sobre o ambiente físico e digital da sala onde funciona o setor observado, há uma
mesa para cada agente e uma para a funcionária terceirizada. Existem quatro com-
putadores de mesa, impressoras, dois equipamentos que realizam foto e impressão
digital para confecção de passaportes e documentação de imigrantes. Todos funcio-
nam perfeitamente. O local tem ar-condicionado e um vidro que separa os funcio-
nários para o atendimento ao público. A sala também possui um banheiro interno e
um pequeno espaço onde ficam uma cafeteira, copos pessoais, garrafas de água e al-
guns biscoitos.
Para o público externo, são disponibilizadas cadeiras longarinas (juntas) que fi-
cam do lado de fora da sala. Há um bebedouro e poucos copos de plástico disponíveis
para uso. Esse ambiente não possui ar-condicionado, e durante os dias de observa-
ção, o ventilador de parede estava desligado.

75
Daniella Ibarreche de Menezes · Evelyn F. Cavalcanti dos Santos · Marco Aurélio M. Oliveira

4. ATENDIMENTO AO ESTRANGEIRO
O ambiente de atendimento ao imigrante e aos estrangeiros é hostil. O tratamento
destinado a essas pessoas pelos agentes públicos é frio e grosseiro. Conforme as falas
produzidas, o imigrante boliviano não é visto com bons olhos pelos policiais, pois

76
A regularização de documentos para imigrantes junto à polícia federal em Corumbá...
“eles tentam burlar a lei utilizando comprovantes de residência de terceiros para con-
seguir o documento RNM. Os bolivianos não querem morar no Brasil, apenas dese-
jam ter acesso aos benefícios que esse documento pode trazer como previdência so-
cial, educação e saúde.” (Agente 1, 2022).
Para conseguir o RNM (Registro Nacional Migratório), de acordo com a legisla-
ção vigente, o imigrante precisa ter residência fixa no país. (Decreto nº 9.199, de 20
de novembro de 2017 que instituiu a Lei de Migração – Lei, nº 13.445, de 24 de maio
de 2017. Pelos dados extraoficiais obtidos, sem mensurar um número exato, grande
parte dos imigrantes que solicitam o RNM são bolivianos, que moram na Bolívia
(Puerto Suarez ou Puerto Quijarro), e pedem para algum conhecido / amigo / despa-
chante ‘emprestar’ o comprovante de residência, e assim demonstrar que residem no
Brasil.
O agendamento para o atendimento presencial é feito pelo Portal da Polícia Fe-
deral (Portal da Polícia Federal — Português (Brasil) (www.gov.br), no link ‘’Servi-
ços Para o Cidadão’. São feitos quatro agendamentos para o período matutino (con-
fecção de passaporte) e quatro para o período vespertino (atendimento aos estran-
geiros, emissão de documentos – RNM, Residente Fronteiriço, Vistos, Permanências
etc.).
Uma vez que o agendamento é realizado no site, os formulários são preenchidos
pelo requerente, são geradas guias com taxas referentes a autorização de residência,
no valor de R$ 168,13 reais e a taxa de emissão de CRNM (Carteira de Registro Na-
cional Migratório), no valor de R$ 204,77. Os valores diferem, e variam de acordo
com o tipo de documentação solicitada. Após o pagamento dessas taxas, e em posse
dos documentos listados, o imigrante comparece na Delegacia de Polícia Federal, no
dia e horário agendados.
Vale salientar a diferença entre CRNM e RNM. CRNM é a Carteira de Registro
Nacional Migratório, ou seja, é o documento físico, contendo foto, impressão digital
e o número desse documento. Já o RNM é o número de registro da CRNM, ou seja,
o número que contêm na carteira, e que é formado por uma sequência de letras e
números.
Na fala do Agente 2, sobre os atendimentos, “das 20 entrevistas realizadas sema-
nalmente de bolivianos que requerem o documento, apenas 1 se concretiza, ou seja,

77
Daniella Ibarreche de Menezes · Evelyn F. Cavalcanti dos Santos · Marco Aurélio M. Oliveira
apenas um consegue comprovar que reside em Corumbá e obtém o documento”
(Agente 2, 2022)
O Agente 1 completou que quando o Agente 3 está na cidade, é possível realizar
a verificação do endereço do requerente quando são apresentados os documentos na
delegacia. O cidadão vai, junto com os agentes, na viatura policial, até o endereço
fornecido para comprovar que aquela localidade corresponde ao seu endereço de
morada. “Muitos desistem do documento no momento da entrevista, pois acabem
se contradizendo sobre o endereço que comunicam à polícia” (Agente 1, 2022) En-
tão, essa diligência de verificação da moradia ocorre quando existem dúvidas sobre
os dados apresentados pelos requerentes.
Segundo relatado pelo Agente 1, no primeiro semestre de 2022, um supervisor
regional do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) esteve em Corumbá para ve-
rificar junto a Polícia Federal, o motivo do aumento expressivo de solicitações de
benefícios da previdência social por imigrantes.
Outro dado importante é sobre as nacionalidades que realizam pedidos de auto-
rização de residência no município de Corumbá. De acordo com a declaração dos
agentes, 95% das solicitações provêm de bolivianos. Machado e De Mello Loio (2019)
corroboram que em Corumbá “ocorrem as maiores procuras, tanto laborais como
relacionadas às demandas de serviços de saúde e educação” (MACHADO E DE
MELLO LOIO, 2019, p. 4).
Para os agentes federais, o ambiente fronteiriço é traz aborrecimentos. É evidente
a resistência no atendimento ao imigrante boliviano por parte dos policiais federais,
visto que há uma maior incidência nas declarações falsas, no que tange ao compro-
vante de residência. Para Figueiredo (2013)
[...] a fronteira ainda é vista de forma generalizada e como espaço problema, associada
à violência, ao narcotráfico, ao contrabando e regularmente caracterizada como
campo de conflitos e embates. Embora questões de segurança nacional sejam relevan-
tes para a soberania de um país, a fronteira não pode ser vista somente sob esse as-
pecto [...] (Figueiredo, 2013, p.2)
Oliveira (2016) acrescenta que “são muito análogas as condições do imigrante e
da fronteira. Portadores de internacionalidades, repositórios de alegações sobre ile-
galidades e tensas pautas nas conversas e deliberações nas mais variadas esferas

78
A regularização de documentos para imigrantes junto à polícia federal em Corumbá...
governamentais, a fronteira e o imigrante, mesmo sendo assimétricos, guardam mui-
tas conjunções.” (OLIVEIRA, 2013, p. 17)
Sobre a equipe que trabalha no ambiente observado: é uma equipe pequena para
o atendimento nos cinco setores existentes na sala onde foi realizada a pesquisa. Não
existe uma formação para esses servidores, no atendimento ao público estrangeiro /
imigrante. Apenas um agente domina algumas palavras em espanhol.
Os agentes federais presentes nos dias de observação pontuaram que não escolhe-
ram vir para uma localidade de fronteira. Isso decorreu da pontuação obtida por eles
no certame da Polícia Federal, e que Corumbá, dentre as outras opções existentes,
ficava mais próxima da terra natal.
Outro ponto importante é a falta de experiência e informação dos próprios servi-
dores, dos serviços ofertados pelo órgão. Além do despreparo da equipe voltada para
o atendimento ao público de outras nacionalidades, quando enviados para o setor de
migração, segundo relatado pelos próprios agentes, “aprendemos na prática como
emitir os documentos solicitados no balcão” (Agente 2).
O outro documento disponibilizado para os imigrantes é o de Residente Frontei-
riço, porém este quase nunca é solicitado, pois com o CRNM o imigrante tem a pos-
sibilidade de estar em qualquer parte do território brasileiro. Já o Residente Frontei-
riço é válido apenas na região da fronteira, ou seja, o imigrante só poderá circular nos
municípios fronteiriços.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta pesquisa, além de trazer novos conhecimentos acerca dos procedimentos da
Polícia Federal relacionados ao atendimento ao estrangeiro / imigrante para os mes-
trandos do curso MEF / 2022, possibilitou vivências extraordinárias para as alunas
participantes da observação.
Esta região de fronteira é aberta e o fluxo é intenso. E com isso as demandas se
tornam maiores. O convívio é pacífico, entretanto, observa-se que há uma resistência
nos atendimentos aos imigrantes e estrangeiros de nacionalidade boliviana em razão
da alta incidência de documentações inconsistentes.
Cada região fronteiriça possui suas singularidades, que são contextualizadas no

79
Daniella Ibarreche de Menezes · Evelyn F. Cavalcanti dos Santos · Marco Aurélio M. Oliveira
cotidiano, nas vivências e na história local. Este trabalho buscou elucidar algumas
questões relacionadas ao órgão observado, aos imigrantes e a fronteira, e provocar o
interesse por futuras pesquisas na fronteira Brasil-Bolívia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Lei nº 13455, de 24 de maio de 2017. Institui a Lei de Migração. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13445.htm
Acesso em 06 jul 2022.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presi-
dência da República, [2016]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/cci-
vil_03/Constituicao/ Constituicao.htm Acesso em 8 jul 2022.
CRESWELL, John w. Projeto de Pesquisa: Métodos Qualitativo, Quantitativo e Misto;
tradução Luciana de Oliveira da Rocha. 2 ed. Porto Alegre: Artmed, 2007.
DA COSTA, Edgar Aparecido. Mobilidade e Fronteira: as territorialidades dos jo-
vens de Corumbá, Brasil. Revista Transporte y Territorio, n. 9, p. 65-86, 2013.
FIGUEIREDO, Luíza Vieira Sá de. Cidadania Transfronteiriça. Artigo adaptado da
Monografia do Curso de Pós-Doutoramento em Democracia e Direitos Huma-
nos. Universidade de Coimbra, 2013.
OLIVEIRA, Marco Aurélio Machado; DE MELO LOIO, Joanna Amorim. Migração
internacional pendular em fronteira: em busca de qualificações espaciais. Revista
Videre, v. 11, n. 21, p. 54-67, 2019.
OLIVEIRA, Marco Aurélio Machado. O ambiente fronteiriço: traços intangíveis e
realidades sinuosas. Revista GeoPantanal, v. 11, n. 21, p. 13-22, 2016.
RICHARDSON, Roberto Jarry. Pesquisa Social: Métodos e Técnicas / Roberto Jarry
Richardson; colaboradores José Augusto de Souza Peres ... (et al). 3ª ed. São Paulo:
Atlas, 2012.
Portal da Polícia Federal — Português (Brasil) (www.gov.br) Acesso em 08 jul 2022
Página - IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional Acesso em
07 jul 2022
Sobre - Polícia Federal - Organizações - Portal Brasileiro de Dados Abertos Acesso
80
A regularização de documentos para imigrantes junto à polícia federal em Corumbá...
em 10 jul 2022.
google maps foto polícia federal corumbá - Pesquisa Google Acesso em 11 jul 2022

__________________________________________________
MENEZES, Daniella Ibarreche de; SANTOS; Evelyn Flayra Cavalcanti
dos; OLIVEIRA, Marco Aurélio Machado de. A regularização de docu-
mentos para imigrantes junto à polícia federal em Corumbá, fronteira Bra-
sil-Bolívia. In: OLIVEIRA, Marco Aurélio Machado de; (Org.). Anais do I
Congresso do Migrafron. Uberlândia: Marco Teórico, 2022. pp. 69-81.
__________________________________________________

81
OS REFLEXOS SOCIOECONÔMICOS DA
PRESENÇA MILITAR NA REGIÃO DE
FRONTEIRA SOB RESPONSABILIDADE DA
4ª BRIGADA DE CAVALARIA MECANIZADA

4
Roberto Balestrim
Tássio Franchi
Tiago de Castro Nogueira Borges Morais
Tomáz Esposito Neto

RESUMO:
O Estado do Mato Grosso do Sul possuí 79 (setenta e nove) municípios, sendo 09
(nove) destes localizados na faixa de fronteira e na área de influência direta da 4ª
Brigada de Cavalaria Mecanizada (4ª Bda C Mec). Em geral, são regiões pouco povo-
adas, com uma média demográfica baixa, 14,8 hab/km², apresentam terreno plano,
firme e de fácil acesso, localizadas junto à fronteira Brasil-Paraguai. Entender quais
são as contribuições socioeconômicas das Organizações Militares (OM) da 4ª Bda C
Mec para os municípios da região é importante para o desenho e execução de políti-
cas públicas. O presente artigo se propõe a realizar um estudo de caso da presença e
contribuições das OM do Exército Brasileiro, sob responsabilidade da 4ª Bda C Mec,
a fim de responder ao seguinte questionamento: de que forma as Organizações Mili-
tares da 4ª Bda C Mec contribuem para desenvolvimento local e agregam renda aos
municípios? Nesse contexto, a pesquisa tem como método a análise de indicadores
83
Roberto Balestrim · Tássio Franchi · Tiago de Castro N. Borges Morais · Tomáz Esposito Neto
socioeconômicos que colaboram com a composição do PIB municipal. O trabalho
está baseado em pesquisas bibliográficas, em dados e documentos governamentais.

PALAVRAS-CHAVE:
4ª Bda C Mec, Defesa, Desenvolvimento, Fronteiras, Socioeconômico.

RESUMEN:
El Estado de Mato Grosso do Sul posee 79 (setenta y nueve) municipios, de los cuales
45 (cuarenta y cinco) están ubicados en la zona de frontera, y de estos, 09 (nueve) están
en el área de influencia directa del Brigada de Caballería Mecanizada IV (4ª Bda C
Mec). En general, son regiones escasamente pobladas, con un promedio demográfico
bajo, 14,8 hab /km², con terreno llano, firme y de fácil acceso, ubicadas a lo largo de la
frontera Brasil-Paraguay . Comprender los aportes socioeconómicos de los Organismos
Militares (OM) de la 4ª Bda C Mec a los municipios de la región es importante para el
diseño y ejecución de políticas públicas. Este artículo se propone realizar un estudio de
caso sobre la presencia y las contribuciones de los OM del Ejército Brasileño, bajo la
responsabilidad de la 4ª Bda C Mec, con el fin de responder a la siguiente pregunta:
¿cómo funcionan las Organizaciones Militares de la 4ª Bda C ? ¿Mec contribuir al de-
sarrollo local y sumar ingresos a los municipios? En este contexto, la investigación tiene
como método el análisis de indicadores socioeconómicos que colaboran con la compo-
sición del PIB municipal. El trabajo se basa en investigaciones bibliográficas, datos y
documentos gubernamentales
PALABRAS-CLAVE:
4ª Bda C Mec, Defensa, Desarrollo, Fronteras, Socioeconómico.

1. INTRODUÇÃO
A Faixa de Fronteira do Brasil foi criada em 1974, e corresponde à 150 km da
fronteira internacional, respeitando o contorno das cidades. A criação deste territó-
rio foi feita sob a ótica da segurança nacional, e atualmente apresenta políticas públi-
cas deficitárias na promoção do desenvolvimento socioeconômico da região
84
Os reflexos socioeconômicos da presença militar na região de fronteira sob...
(MACHADO, 2005).
A região fronteiriça do Arco Central do Brasil (figura 02), sob responsabilidade
da 4ª Bda C Mec, possui um importante papel nas políticas socioeconômicas e de
defesa do país, pois essa área apresenta um grande envolvimento de organizações
criminosas e de redes internacionais de ilícitos (COSTA, 2017). Os municípios dessa
região possuem em comum a localização junto à fronteira da República do Paraguai
e uma influência cultural e econômica com aquela nação. (GOVERNO, 2015).
A homogeneidade regional se traduz na identidade entre os bens econômicos produ-
zidos, com forte dependência econômica ligada à produção rural. Em 2013, os muni-
cípios que compõem a região, produziram aproximadamente 3,0 milhões de tonela-
das de grãos em uma área de 819 mil hectares. As culturas de maior importância são:
a soja e o milho. (GOVERNO, 2015).
Nos locais onde o solo não é favorável ao cultivo agrícola, a pecuária de corte se
apresenta como atividade importante, com um rebanho estimado em 1,17 milhão de
cabeças. Enquanto a atividade industrial é pouco expressiva, gerando apenas 12,2%
da riqueza regional, de acordo com os dados do PIB de 2012 (GOVERNO, 2015).
Há a necessidade de estabelecer estratégias e ações voltadas ao desenvolvimento
regional, a fim de gerar emprego e renda à população da Sub-região de Dourados e
Cone Sul-matogrossense (BRASIL, 2005).
O Cone Sul-matogrossense conta com três cidades-gêmeas de variados tamanhos ao
longo da fronteira paraguaia, (Bela Vista/Bella Vista; Ponta Porã/Pedro Juan Cabal-
lero; Coronel Sapucaia/Capitán Bado), além da conurbação entre Paranhos e o povo-
ado de Ypejú (Paraguai), e a Tríplice Fronteira bi-nacional no extremo Sudeste da
região, formada por Mundo Novo/MS, Guaíra/PR e a cidade paraguaia de Salto del
Guairá. Embora muitas delas tenham surgido na época da erva-mate, o processo que
as transformou em pequenas cidades está relacionado com interações conjunturais
mais recentes, vinculadas ao comércio (sacoleiros, turismo de compras), ao tráfico de
Cannabis sativa e à “fronteira móvel” dos brasiguaios no país vizinho (BRASIL,
2005).
A fim de mitigar essa problemática, o Programa de Desenvolvimento da Faixa de
Fronteira (PDFF) 2009, do Ministério de Integração Nacional, tem por desafio anga-
riar novos projetos de políticas públicas nas regiões fronteiriças, para que estas

85
Roberto Balestrim · Tássio Franchi · Tiago de Castro N. Borges Morais · Tomáz Esposito Neto
deixem de ser vistas como áreas longínquas e isoladas, e passem a ser entendidas
como uma região importante para se estimular processos de desenvolvimento e de
integração regional. “Para o governo brasileiro, o desenvolvimento da faixa de fron-
teira configura-se como importante diretriz da política nacional e internacional”
(CARTILHA, 2019).
As ações propostas devem possibilitar a criação de maiores oportunidades de tra-
balho, a fim de priorizar os jovens, que são o grupo mais vulnerável frente ao alicia-
mento das redes criminosas transnacionais (MEDEIROS FILHO, 2020).
Segundo dados divulgados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
Contínua - PNAD, cerca de 25,7% dos jovens entre 18 e 24 anos estão na faixa de
desocupação. Considerando que a idade média para a prestação do Serviço Militar
Obrigatório (SMO) está entre 19 e 20 anos, não é difícil concluir que se o Estado
aproveitasse melhor esse contingente de jovens, estaria contribuindo de forma mais
efetiva para a redução da taxa de desocupados, seja de forma direta, aproveitado pela
própria força, ou de forma indireta, através de convênios públicos ou parcerias com
a iniciativa privada (DANIEL, 2019).
A Brigada Guaicurus (4ª Bda C Mec), com sede em Dourados – MS e subordinada
ao Comando Militar do Oeste (CMO), possui suas Unidades desdobradas na faixa de
fronteira com o Paraguai, com exceção do 20º Regimento de Cavalaria Blindado (20º
RCB) e da 3ª Bateria Antiaérea (3ª Bia AAAe), sediados em Campo Grande - MS e
Três Lagoas – MS, respectivamente, compreendendo uma frente de mais de 600 km
no Estado do Mato Grosso do Sul (SISFRON, 2014).
Nesse contexto, as OM da 4ª Bda C Mec despontam como importantes geradoras
de empregos aos jovens locais, caracterizando-se um vetor de desenvolvimento eco-
nômico. Enfatiza-se o caráter cívico militar do recrutamento obrigatório, especial-
mente para famílias de baixa renda localizadas nas áreas mais pobres do país (RO-
CHA, 2014, p. 95).
Devido à dificuldade de inserção dos jovens no mercado de trabalho, por falta de
experiência e qualificação, o SMO muitas vezes acaba sendo a única forma de inser-
ção desses jovens no mercado de trabalho competitivo e exigente (DANIEL, 2019).
Os jovens, em idade do serviço militar, também vislumbram nas Forças Armadas
uma oportunidade de emprego e de uma carreira, a fim de minimizar seus problemas

86
Os reflexos socioeconômicos da presença militar na região de fronteira sob...
econômicos e financeiros, dando-lhes esperança de um futuro melhor (DANIEL,
2019).
Contemplando essas expectativas, criou-se o Projeto Soldado Cidadão (PSC), que
visa proporcionar a esses jovens brasileiros cursos de qualificação profissional, que
ofereçam capacitação técnico-profissional básica, complementando a formação cí-
vica e melhorando as condições de entrada no mercado de trabalho, o que contribui
para o desenvolvimento socioeconômico do país (BRASIL, 2004).
A presença das Forças Armadas em determinado território é capaz de gerar demanda
derivada, devido ao aumento do consumo de setores que estão atrás da cadeia de pro-
dução e a presença de OM podem gerar renda e emprego, promovendo comércio e o
aumento da prestação de serviços locais (CARVALHO et al., 2019).
No entanto, as questões relacionadas à economia de defesa vão além dos debates
sobre a estreita relação entre guerra e soberania nacional, poder e riqueza. Deve-se
considerar como os gastos com defesa podem contribuir para o desenvolvimento e o
crescimento econômico, especialmente em certas áreas de um país (RIBEIRO et. al,
2018).
O presente artigo se propõe a realizar um estudo de caso da presença e contribui-
ção das OM do Exército Brasileiro, sob responsabilidade da 4ª Bda C Mec, tendo por
objetivo geral apresentar as contribuições socioeconômicas para as cidades que se-
diam alguma dessas OM na faixa de fronteira. E por objetivos específicos analisar os
impactos do soldo dos militares, dos empenhos de compras realizados pelas OM e da
geração de empregos para economia local.
A seguir serão apresentados os fundamentos teóricos e metodológicos para a pre-
sente pesquisa. Na sequência, seguirá uma apresentação dos dados socioeconômicos
da região de fronteira Brasil-Paraguai, sob responsabilidade da 4ª Bda C Mec. Para
finalizar, esses dados serão discutidos, gerando a conclusão do estudo, que busca res-
ponder a seguinte pergunta: de que forma as Organizações Militares da 4ª Bda C Mec
contribuem para desenvolvimento local e agregam renda aos municípios?

87
Roberto Balestrim · Tássio Franchi · Tiago de Castro N. Borges Morais · Tomáz Esposito Neto
2. TEORIAS E MÉTODOS
2.1 REFERENCIAL TEÓRICO
O presente estudo dialoga com os trabalhos de Matos (2015), Gala (2017), Am-
bros (2017) e Santos (2018), cujos apontamentos desses autores serão de grande valia
para o entendimento da dinâmica da economia de defesa na região do Arco Central
sob responsabilidade da 4ª Bda C Mec.
Segundo Santos (2018), a área de defesa constitui um tema transversal e interdis-
ciplinar na Ciência Econômica. Ela conta com contribuições da Economia das Rela-
ções Internacionais, dos Estudos Estratégicos, das Ciências Sociais e da Engenharia.
O desenvolvimento de novas teorias econômicas e o aumento do interesse nessa área
inaugura uma nova linha de pesquisa conhecida por Economia de Defesa.
Para Mesa (2012), é justamente essa interdisciplinaridade que explica em parte o
desinteresse dos economistas para a Economia de Defesa, uma vez que eles olham
para ela como uma área de estudo que está fora do mundo econômico propriamente
dito. Além disso, o fato sociológico do desinteresse gerado por aspectos relacionados
à segurança, proteção e defesa, somado a falta de oferta de possibilidades de treina-
mento e pesquisa, contribuem para o desinteresse acerca do tema.
Ademais, outro fator relacionado a Economia de Defesa é a dificuldade de se rea-
lizar a análise do retorno econômico dos seus investimentos. “Cabe destacar que cal-
cular o gasto com defesa não se trata de uma questão meramente contábil, pois é
necessário entender as burocracias institucionais responsáveis pelo gasto que variam
muito de país para país” (SANTOS, 2018, p. 549). Essa análise é extremamente difícil
pois envolve fatores econômicos, políticos, estratégicos, psicológicos, culturais e até
mesmo morais (AMBROS, 2017).
Apesar dessa complexidade, foram desenvolvidas teorias que buscavam associar
os gastos com defesa e o crescimento econômico de uma nação, como a do econo-
mista britânico Keynes. “A teoria Keynesiana do crescimento econômico reflete o
delicado período da economia internacional das décadas de 1920 e 1930, introdu-
zindo pela primeira vez no debate conceitos macroeconômicos” (AMBROS, 2017, p.
139).
Para Ambros (2017), e de acordo com a teoria de Keynes que defende um Estado

88
Os reflexos socioeconômicos da presença militar na região de fronteira sob...
intervencionista e proativo, os gastos militares poderiam ser utilizados para aumen-
tar o produto a partir de efeitos multiplicadores quando a demanda agregada é ine-
ficiente. Além disso, se a demanda agregada é relativamente baixa em relação à oferta
potencial, os aumentos dos gastos podem levar ao aumento da capacidade produtiva
utilizada, aumentando lucros e, portanto, aumentar investimentos e crescimento
econômico.
Entretanto, segundo Ambros (2017), os gastos militares envolvem um conceito
mais amplo. O pagamento e o suporte operacional dos militares que servem as Forças
Armadas, aliado a aquisição de equipamentos de defesa e serviços de P&D, compõe
os gastos em defesa.
Santos (2018) ressalta que em países em desenvolvimento, a maior parte dos gas-
tos é utilizada para atender às necessidades de consumo dos militares e para a cons-
trução de infraestrutura para o país.
Para Gala (2017), os gastos de defesa podem ser diferenciados quanto ao valor
agregado das atividades produtivas. Assim, atividades com grande inovação tecno-
lógica e elevado conteúdo de pesquisa e desenvolvimento são caracterizadas pelo seu
alto valor agregado. Elas se contrapõem às atividades de baixo valor agregado, que
possuem baixa complexidade econômica. Produtos como os commodities entram
nessa segunda classificação e são considerados bens não complexos.
Nesse sentido, Bárbara e Medeiros Filho (2021) destacam a necessidade de desen-
volver áreas periféricas do Brasil, diminuindo as vulnerabilidades do país, no campo
geopolítico ou no campo securitário. O maior país da América do Sul apresenta cerca
de dezessete mil quilômetros de fronteira, distribuídos entre nove nações sul-ameri-
canas e um departamento ultramarino da França. Além disso, apresenta um extenso
litoral, com aproximadamente sete mil quilômetros. Nesse escopo, apesar da sua a
grande extensão territorial e de todo o esforço para a ocupação do Oeste do país, a
distribuição populacional brasileira concentra-se na faixa litorânea, uma vez que
cerca de metade da população brasileira se concentra em uma porção do terreno que
dista até duzentos quilômetros da costa. Tal fato ressalta a necessidade de ocupação
da região fronteiriça do arco central brasileiro.
A figura abaixo mostra a concentração populacional brasileira na região litorânea:

89
Roberto Balestrim · Tássio Franchi · Tiago de Castro N. Borges Morais · Tomáz Esposito Neto
Figura 01- Concentração demográfica brasileira

Fonte: MEDEIROS; BÁRBARA, 2021.

Ainda segundo Bárbara e Medeiros Filho (2021), a presença do Exército Brasileiro


na faixa de fronteira faz parte do processo de consolidação dos limites o Estado na-
cional e busca, de forma indissociável, o desenvolvimento, a segurança e a integração
do território.
A faixa de fronteira é uma das regiões abarcadas pela estratégia da presença do
EB. A Lei nº 6.635, de 2 de maio de 1979, regula a porção do território nacional abran-
gida por essa faixa:
“Art. 1º - É considerada área indispensável à Segurança Nacional a faixa interna de
150 Km (cento e cinquenta quilômetros) de largura, paralela à linha divisória terrestre
do território nacional, que será designada como Faixa de Fronteira” (BRASIL, 1979).
Nesse sentido, a Lei complementar Nº 136, de 25 de agosto de 2010, que dispõe
sobre as normas gerais para a organização, o preparo e o emprego das Forças Arma-
das, normatiza a atuação das Forças Armadas na Faixa de Fronteira, legitimando e
legalizando-as.

90
Os reflexos socioeconômicos da presença militar na região de fronteira sob...
2.2 REFERENCIAL METODOLÓGICO
A metodologia aplicada na presente pesquisa é de um estudo de caso. Segundo
Yin (2001), essa metodologia contribui para a compreensão de fenômenos organiza-
cionais e sociais. Além disso, permite uma investigação para se preservar as caracte-
rísticas abrangentes e significativas da realidade, como processos organizacionais e
administrativos, bem como mudanças ocorridas em regiões urbanas e a maturação
de alguns setores.
Ainda segundo Yin (2001), o estudo de caso se diferencia de outras estratégias de
pesquisa no momento que busca responder questões do tipo “como” e “por que”.
Ademais, esse tipo de metodologia é indicado para o exame de acontecimentos con-
temporâneos em que não é possível ao pesquisador manipular comportamentos re-
levantes. Nesse contexto, a observação direta é a principal fontes de dados do estudo
de caso.
Nesse escopo, o presente artigo selecionou a região abarcada pelas OM da 4ª Bda
C Mec para figurar nesse estudo de caso não por se tratar de uma simples “unidade
de amostragem” (YIN, 2001, p. 54). Ademais, essa publicação procura entender
como a presença de Organizações Militares subordinadas à 4ª Bda C Mec contribui
para o desenvolvimento socioeconômico dos municípios do Mato Grosso do Sul. Ela
também explora como e por que os quartéis dessa brigada contribuem para a ocupa-
ção e para o desenvolvimento do arco central da faixa de fronteira, local cuja densi-
dade populacional é reduzida. Para responder a esses questionamentos, são utilizadas
informações obtidas por meio da observação direta da atuação da 4ª Bda C Mec na
região, eventos contemporâneos que não permitem ao pesquisador a manipulação
de comportamentos.
Nos moldes da referida metodologia, será levantada como variante teórica (de-
pendente) o campo socioeconômico da sociedade das cidades que possuem OM da
4ª Bda C Mec, analisando algumas variantes operacionais (independente) que influ-
enciam naquele campo, como o PIB municipal, a taxa de emprego formal e a contri-
buição para o comércio local.

91
Roberto Balestrim · Tássio Franchi · Tiago de Castro N. Borges Morais · Tomáz Esposito Neto
3. DADOS DOS REFLEXOS SOCIOECONÔMICOS ORIUNDOS DA 4ª BDA
C MEC
Em 15 de dezembro de 1982, em acordo com o Decreto nº 87.500, de 23 de agosto
de 1982, o Comando da 4ª Bda C Mec instalou-se na cidade de Dourados, uma loca-
lização estratégica e central da sua área de responsabilidade, permitindo ao Quartel
General da Brigada a proximidade de suas OM, desdobradas ao longo da fronteira
Brasil-Paraguai (4ª BRIGADA DE CAVALARIA MECANIZADA MEMORIAL
HISTÓRICO, 2021).

Figura 02- Arcos e sub-regiões da Faixa de Fronteira

Fonte: Ministério da Integração Nacional, 2009.

92
Os reflexos socioeconômicos da presença militar na região de fronteira sob...
Atualmente, a 4ª Bda C Mec é constituída pelo Comando da 4ª Bda C Mec, Es-
quadrão de Comando, 4º Pelotão de Polícia do Exército, 28º Batalhão Logístico, 14ª
Companhia de Comunicações Mecanizada, 4ª Companhia de Engenharia de Com-
bate Mecanizada, 3ª Bateria Antiaérea, 9º Grupo de Artilharia de Campanha, 10º Re-
gimento de Cavalaria Mecanizado, 11º Regimento de Cavalaria Mecanizado, 17º Re-
gimento de Cavalaria Mecanizado e 20º Regimento de Cavalaria Blindado, conforme
a figura 03.

Figura 03 – Organograma da 4ª Bda C Mec

Fonte: Estrutura Organizacional do Comando Militar do Oeste, 2021.


Elaborado pelo autor

A 4ª Bda C Mec possui 12 (doze) Organizações Militares, em 11 (onze) municí-


pios do Mato Grosso do Sul, sendo 09 (nove) na região fronteiriça, totalizando um
efetivo aproximado de 3.667 (três mil seiscentos e sessenta e sete) militares na faixa
de fronteira, conforme demonstrado na Tabela 01.

93
Roberto Balestrim · Tássio Franchi · Tiago de Castro N. Borges Morais · Tomáz Esposito Neto
Tabela 01 – OM da 4ª Bda C Mec na Faixa de Fronteira

OM Município Efetivo
Cmdo 4ª Bda C Mec Dourados 375
Esqd C/4ª Bda C Mec
4º Pel PE
28º B Log 460
14ª Cia Com Mec 152
4ª Cia E Cmb Mec Jardim 262
9º GAC Nioaque 394
10º R C Mec Bela Vista 615
11º R C Mec Ponta Porã 569
Pel Dst/11º R C Mec Caracol 70
17º R C Mec Amambai 560
Pel Dst/17º R C Mec Iguatemi 70
Pel Dst/17º R C Mec Mundo Novo 70
Total 3.597

Fonte: Estrutura Organizacional do Comando Militar do Oeste, 2021.


Elaborado pelo autor

94
Os reflexos socioeconômicos da presença militar na região de fronteira sob...
Figura 04- Distribuição geográfica das OM/4ª Bda C Mec

Fonte: Elaborado pelo autor

Em geral, os efetivos de cabos e soldados são ocupados por cidadãos na situação


de serviço militar obrigatório, conforme o Art. 143 da Constituição Federal (BRASIL,
1988). Essa condição perdura por cerca de 01 (um) ano, e permite, aos então militares
de núcleo variável, a possibilidade de permanecerem como integrantes do núcleo
base do EB, por até 08 (oito) anos, na prestação do serviço militar.
Portanto, a soma dos efetivos de cabos e soldados das OM da 4ª Bda C Mec, loca-
lizadas na faixa de fronteira, totaliza cerca de 2.731 (dois mil setecentos e trinta e um)
militares. Estes, geralmente, são cidadãos que residem nos municípios sede de OM
da 4ª Bda C Mec, e contribuem significativamente para o quantitativo de pessoas
ocupadas desses municípios, conforme Tabela 02.

95
Roberto Balestrim · Tássio Franchi · Tiago de Castro N. Borges Morais · Tomáz Esposito Neto
Tabela 02
População Ocupada por município e percentual de contribuição de militares

Empregos gerados % de militares na Pop


Município Pop Ocupada
pelas OM Ocupada do município
Amambai 5.594 520 9,30
Bela Vista 2.534 500 19,73
Caracol 487 56 11,49
Dourados 70.905 619 0,87
Iguatemi 2.213 56 2,53
Jardim 3.983 183 4,59
Mundo Novo 3.065 56 1,83
Nioaque 1.200 280 23,33
Ponta Porã 15.537 461 2,97
Fonte: IBGE, 2019. Elaborado pelo autor

São cerca de 2.731 (dois mil setecentos e trinta e um) empregos gerados na região,
o que equivale a uma média de 8,52% da população empregada nos municípios sedes
de OM da 4ª Bda C Mec, com destaque para as cidades de Bela Vista e Nioaque onde
os militares equivalem a aproximadamente 20% da população empregada.
Esses militares também contribuem para a manutenção dos índices da média sa-
larial do município. Esses dados constam na tabela 03, e estão divididos por cidade,
média salarial municipal, média dos soldos dos militares das OM e média do soldo
dos militares naturais daquele município.

96
Os reflexos socioeconômicos da presença militar na região de fronteira sob...
Tabela 03 – Média salarial em relação ao salário mínimo1

Méd. Salarial Méd. Salarial Méd. Salarial (CB,


Município
Município (OM) SD NB e SD EV)
Amambai 2,1 3,26 2,08
Bela Vista 2,1 3,29 2,05
Caracol 2,1 3,30 2,44
Dourados 2,5 3,73 1,93
Iguatemi 2 3,30 2,44
Jardim 2 3,68 2,05
Mundo Novo 2,1 3,30 2,44
Nioaque 1,9 3,39 1,95
Ponta Porã 2 3,39 2,06
Total 2,1 3,41 2,16

Fonte: IBGE, 2019. Elaborado pelo autor

Sobre o desenvolvimento econômico da região fronteiriça abarcada pela 4ª Bda C


Mec, as Organizações Militares contratam serviços locais e adquirem materiais em
empresas da região, empenhando recursos na economia local. Soma-se a isso a re-
muneração dos militares que trabalham nas OM da 4ª Bda C Mec, conforme a Tabela
04.

1 Salário mínimo no valor de R$ 1.100,00 (um mil e cem reais), conforme Medida Provisória nº
1.021, de 30 de dezembro de 2020. Disponível em https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/medida-
provisoria-n-1.021-de-30-de-dezembro-de-2020-297208167
97
Roberto Balestrim · Tássio Franchi · Tiago de Castro N. Borges Morais · Tomáz Esposito Neto
Tabela 04 – PIB do município e contribuição da OM

% Recursos da
Receita Gerada
Município PIB municipal OM no PIB do
pela OM
município
Amambai R$ 120.972.970,00 R$ 3.698.213,04 3,06
Bela Vista R$ 70.063.170,00 R$ 3.682.328,78 5,26
Caracol R$ 27.969.420,00 R$ 250.418,88 0,90
Dourados R$ 816.975.030,00 R$ 14.517.732,08 1,78
Iguatemi R$ 48.630.160,00 R$ 230.572,13 0,47
Jardim R$ 78.467.500,00 R$ 1.407.948,36 1,79
Mundo Novo R$ 62.432.180,00 R$ 279.246,32 0,45
Nioaque R$ 44.471.960,00 R$ 1.614.793,28 3,63
Ponta Porã R$ 281.189.940,00 R$ 4.707.355,57 1,67
Total R$ 1.551.172.330,00 R$ 30.388.608,44 2,00

Fonte: IBGE; Portal da Transparência, 2017. Elaborado pelo autor

A seguir, serão discutidos os reflexos socioeconômicos proporcionados pela 4ª


Bda C Mec no âmbito da sua área de responsabilidade, na fronteira Brasil-Paraguai.

4. DISCUSSÃO DOS DADOS SOCIOECONÔMICOS


A área fronteiriça sob responsabilidade da 4ª Bda C Mec compreende uma frente
de mais de 600 km no Estado do Mato Grosso do Sul (SISFRON, 2014). Possui nesta
frente 09 (nove) OM, totalizando, segundo o Departamento-Geral do Pessoal (DGP),
um efetivo aproximado de 3.597 (três mil quinhentos e noventa e sete) militares na
faixa de fronteira.
Diante desse dado, e somado as informações da Tabela 01, pode-se inferir que o
efetivo dessas OM é em sua maioria composto por cabos e soldados, cidadãos natu-
rais dos municípios da região da fronteira do Arco Central.
98
Os reflexos socioeconômicos da presença militar na região de fronteira sob...
Gráfico 01 – Proporção de Oficiais/Sargentos e Cabos e Soldados das OM da
fronteira sob responsabilidade da 4ª Bda C Mec.

26%

74%

Of/ST/Sgt Cb/Sd

Fonte: Elaborado pelo autor.

Cerca de 2.731 (dois mil setecentos e trinta e um) são jovens “locais” nas gradua-
ções de cabo e soldado, destes, aproximadamente 770 (setecentos e setenta) compõe
o núcleo variável das OM, que é renovado anualmente, configurando 7,4% da popu-
lação jovem (entre 15 e 19 anos) masculina dos municípios da área sob responsabi-
lidade da 4ª Bda C Mec (IBGE, 2021), que prestarão o serviço militar.
Segundo Nunes (2017), entre as estratégias utilizadas pelo crime organizado estão
a fixação em pequenas cidades fronteiriças, onde as atividades criminosas são desen-
volvidas, em sua maioria, por jovens que são aliciados pelos criminosos. Portanto,
cresce a importância da presença de OM nas regiões de fronteira, a fim de absorver
o máximo de jovens possível, transmitindo valores morais, empregando-os e pro-
porcionando uma oportunidade de crescimento profissional, reduzindo o número
de jovens envolvidos com os crimes transfronteiriços.
Além disso, segundo os dados da Tabela 02 (IBGE 2019), as OM acabam contri-
buindo para o aumento do grau de formalização do trabalho das pessoas ocupadas.
Em algumas cidades esse número corresponde a mais de 10% da população ocupada
do município, chegando aos expressivos 23,33% na cidade de Nioaque, o que

99
Roberto Balestrim · Tássio Franchi · Tiago de Castro N. Borges Morais · Tomáz Esposito Neto
demonstra um aumento de trabalho formalizado, seja por carteira de trabalho assi-
nada, ou por funcionalismo público (IBGE, 2021).
Segundo Ternus (2017), com relação as despesas com pessoal, a faixa salarial dos
funcionários da Defesa é mais expressiva do que a média da economia nacional e a
média da administração pública brasileira.
Esse aspecto é importante para se compreender o impacto econômico da presença
dos quartéis da 4ª Bda C Mec, que por meio dos efetivos militares e suas famílias,
gera renda ao município, oportunidades de trabalho e aquece o setor de comércio e
de serviços nessa parte da fronteira. Conforme as características apresentadas (Ta-
bela 03), em muitos municípios a renda média da população é de aproximadamente
2,1 salários mínimos e boa parte dos habitantes não tem renda fixa. (MATO
GROSSO DO SUL, 2017).
Conforme a Tabela 03, considerando a média salarial de 3,41 salários mínimos,
dos militares da 4ª Bda C Mec, verificamos que os militares possuem um grande po-
tencial aquisitivo, superando em mais de um salário mínimo a população regional.
Além disso o efetivo de cabos e soldados, composto por cidadão locais, possui uma
média salarial equivalente ao do município, 2,16 salários mínimos, o que proporci-
ona uma boa qualidade de vida e torna ainda mais atrativo o Serviço Militar Obriga-
tório.
Não obstante, espera-se uma maior movimentação econômica na cidade com o
consumo dos militares e das suas famílias. Apesar das dificuldades em se mensurar
esses gastos, certamente uma parcela desses vencimentos será utilizada na manuten-
ção de itens básicos e serviços no mercado local, impulsionando a economia desses
municípios.

100
Os reflexos socioeconômicos da presença militar na região de fronteira sob...
Gráfico 02 – Média salarial em relação ao salário mínimo na área de responsabili-
dade da 4ª Bda C Mec.

Média Salarial

0 0,5 1 1,5 2 2,5 3 3,5 4


salários mínimos

Cb/Sd OM Município

Fonte: Elaborado pelo autor.

Segundo Dias (2013), em cidades como Bela Vista - MS a economia gira em


torno do 10º R C Mec, que contribui com mais de 5% do valor do PIB municipal
(Tabela 04), e que tem grande influência no setor de comércio e serviços, além de
gerar empregos para muitos jovens, contribuindo para amenizar a limitação de vagas
de emprego no município. (SILVA, 2019).
De acordo com a Tabela 04, o PIB dos municípios fronteiriços, sede das OM da
4ª Bda C Mec, é entorno de R$ 1.551.172.330,00 (um bilhão quinhentos e cinquenta
e um milhões cento e setenta e dois mil e trezentos e trinta), e a receita gerada pelas
OM da 4ª Bda C Mec nessas cidades é de R$ 30.388.608,44 (trinta milhões trezentos
e oitenta e oito mil seiscentos e oito e quarenta e quatro centavos), valor composto
pelo soldo dos militares e pelos gastos das OM da 4ª Bda C Mec, o que corresponde
aproximadamente a 2% do PIB dos municípios. Isso sem considerar investimentos
do governo federal em grandes projetos, como o SISFRON, que segundo Espósito
(2021, p. 465) tem por um dos objetivos “promover o desenvolvimento socioeconô-
mico na faixa de fronteira) e na reforma do aeroporto da cidade de Dourados,
101
Roberto Balestrim · Tássio Franchi · Tiago de Castro N. Borges Morais · Tomáz Esposito Neto
orçados em cerca de 1 (um) bilhão e 20 (vinte) milhões de reais, respectivamente.
Isso demonstra que a presença das OM tem influência no desenvolvimento eco-
nômico regional, incentivando o comércio local e o cidadão economicamente ativo
a permanecer na cidade, além de aumentar a presença de instituições de Estado na
região fronteiriça do Arco Central. Existem outros estudos sobre a contribuições so-
cioeconômicas de OM na faixa de fronteira que reforçam as ideias deste a trabalho, a
exemplo de Morais (2021 e 2022).

5. CONCLUSÃO
Esse trabalho buscou responder como uma OM contribui no desenvolvimento local
e como essa presença pode agregar renda ao município. A análise específica do caso
contemporâneo da 4ª Bda C Mec, na região fronteiriça do Arco Central, clareou en-
tendimentos sobre algumas variantes socioeconômicas ligadas a geração de emprego
e aplicação de renda na região.
A presença da 4ª Bda C Mec no Arco Central da faixa de fronteira do Brasil pro-
porciona contribuições para a economia da região. Apesar da dificuldade de se reali-
zar a análise econômica dos gastos com defesa, é possível observar ganhos com a
presença do EB na região. Os gastos destinados ao pagamento e ao suporte operaci-
onal dos militares pertencentes à 4ª Bda C Mec compõe parte dos gastos de defesa do
governo brasileiro. Esses recursos, em sua maioria, se revertem em atividades econô-
micas de baixo valor agregado e na aquisição de bens e serviços não complexos.
Pode-se afirmar também que as OM do EB presentes na área colaboram para a
geração de emprego, e para a capacitação de mão de obra para o mercado de trabalho
local. Isso é muito relevante para os municípios cuja estrutura de ensino têm baixa
capacidade de formação de mão de obra qualificada.
Por fim, a 4ª Bda C Mec além de aumentar a presença do Estado na região fron-
teiriça do Arco Central, contribui para o desenvolvimento do pensamento de defesa
e integra a sociedade civil ao braço militar. A 4ª Bda C Mec proporciona a injeção de
capital local, seja pelos soldos dos militares, seja pelos gastos públicos, visando aten-
der a demanda das atividades operacionais da OM. Tudo isso fomenta o comércio,
gera empregos, integra a região fronteiriça ao restante do país e, consequentemente,
desenvolve a região.
102
Os reflexos socioeconômicos da presença militar na região de fronteira sob...
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
4ª BRIGADA DE CAVALARIA MECANIZADA MEMORIAL HISTÓRICO. 4ª Bri-
gada de Cavalaria Mecanizada, 2021. Disponível em: https://www.4bdac-
mec.eb.mil.br /index.php/pt/historico. Acesso em: 20 out. de 2021.
AMBROS, C. C. ‘Indústria de Defesa e Desenvolvimento: controvérsias teóricas e
implicações em política industrial’. Austral: Revista Brasileira de Estratégia e Re-
lações Internacionais, v.6, n.11, 2017.
BÁRBARA, Marcelo de Jesus Santa; MEDEIROS FILHO, OSCAR MEDEIROS. O
papel trinitário do Exército Brasileiro: Bases de uma força “multitarefas”. Coleção
Meira Mattos. v. 15, n. 53, 2021.
BRASIL. Decreto n⁰ 6.703, de 18 de dezembro de 2008. Aprova a Estratégia Nacional
de Defesa, e dá outras providências. Diário Oficial da República Federativa do
Brasil, Brasília, DF, 19 dez. 2008. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/cci-
vil_03 /_ato20072010/2008/decreto/d6703.htm. Acesso em: 04 jun. 2018.
_______. Decreto 8903, de 16 de novembro de 2016. Institui o Programa de Prote-
ção Integrada de Fronteiras e organiza a atuação de unidades da administração
pública federal para sua execução. Diário Oficial da República Federativa do Bra-
sil, Brasília, DF, 17 nov. 2016. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/cci-
vil_03/_Ato2015-018/2016/Decreto/D8903.htm. Acesso em: 12 abr. 2019.
_______. Lei n. 6.634, de 2 de maio de 1979. Dispõe sobre a Faixa de Fronteira, altera
o Decreto-lei n. 1.135, de 3 de dezembro de 1970, e dá outras providências. Diário
Oficial da União, Brasília, DF, 11 maio 1979. Disponível em: http://www.pla-
nalto.gov.br /ccivil_03/leis/L6634.htm Acesso em: 25 out. 2021.
________. Lei Complementar n⁰ 97, de 09 de junho de 1999. Dispõe sobre as normas
gerais para a organização, o preparo e o emprego das Forças Armadas. Diário
Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 10 jun. 1999; Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LCP/Lcp97.htm. Acesso em: 05
jun. 2018.
________. Lei Complementar n. 136, de 25 de agosto de 2010. Altera a Lei Comple-
mentar no 97, de 9 de junho de 1999, que “dispõe sobre as normas gerais para a
organização, o preparo e o emprego das Forças Armadas”, para criar o Estado-
103
Roberto Balestrim · Tássio Franchi · Tiago de Castro N. Borges Morais · Tomáz Esposito Neto
Maior Conjunto das Forças Armadas e disciplinar as atribuições do Ministro de
Estado da Defesa. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 26 out. 2010. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/Lcp136.htm#ar t2. Acesso em:
25 out. 2021.
_____. Ministério da Integração Nacional. Faixa de Fronteira: Programa de Promo-
ção do Desenvolvimento da Faixa de Fronteira – PDFF, Brasília, DF, 2009.
_____. Ministério da Integração Nacional. Secretaria de Programas Regionais. Pro-
grama de Desenvolvimento da Faixa de Fronteira: proposta de Reestruturação
do Programa de Desenvolvimento da Faixa de Fronteira – Brasília: Ministério da
Integração Nacional, 2005.
______. Portaria Normativa nº 1.259-MD, de 19 de outubro de 2004. Dispõe sobre
o Programa de Assistência e Cooperação das Forças Armadas à Sociedade Ci-
vil/Soldado Cidadão e institui o seu Comitê Gestor. Disponível em:
http://www.sgex.eb.mil.br/sistemas/be/copiar.php?codarquivo=212&act=bre.
Acessado em: 09 Jan 2020.
BOLETIM Regional, Urbano e Ambiental. IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada, 2017. Disponível em: http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream
/11058/7934/1/BRU_n16_Dinamicas.pdf. Acesso em: 23 out. 2021.
CARTILHA do Programa de Desenvolvimento da Faixa de Fronteira (PDFF). Mi-
nistério do Desenvolvimento Regional, 2019. Disponível em: https://an-
tigo.mdr.gov.br/desenvolvimento-regional-e-urbano/publicacoes/121-secreta-
ria-nacional-de-programas-urbanos/6114-cartilha-do-programa-de-desenvolvi-
mento-da-faixa-de-fronteira-pdff. Acesso em: 22 out. 2021.
CARVALHO, A. B.; SANTOS, T.; RIBEIRO, E. A. Sea Defense Economy: An
analysis from the Brazilian IOMSea. Proceeding of 23rd International Confer-
ence on Economics and Security (ICES), Madrid, Spain, 2019.
CONHEÇA Cidades e Estados do Brasil. IBGE, 2021. Disponível em: https://cida-
des.ibge.gov.br/. Acesso em 20 out. 2021.
Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF:
Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
COSTA, Maurício Kenyatta Barros da. Políticas de segurança e defesa da fronteira
104
Os reflexos socioeconômicos da presença militar na região de fronteira sob...
brasileira no contexto de integração regional: os casos das fronteiras Brasil-Pa-
raguai e Brasil-Uruguai. 2017.
DANIEL Souza Nogueira. O serviço militar obrigatório como ferramenta na forma-
ção do cidadão brasileiro, 2019. Disponível em: https://danielnogueirarj2012
.jusbrasil.com.br/artigos/833310700/o-servico-militar-obrigatorio-como-ferra-
menta-na-formacao-do-cidadao-brasileiro. Acesso em: 24 out. 2021.
DIAS, Aliny Mary. Na fronteira, Exército gera empregos e salva economia de uma
cidade. Campo Grande News, Bela Vista, 31 ago. 2013. Disponível em:
https://www.campograndenews.com.br/cidades/interior/na-fronteira-exercito-
gera empregos-e-salva-economia-de-uma-cidade. Acesso em: 07 dez. 2018.
ESPÓSITO NETO, T.; FRANCHI, T. As múltiplas visões sobre o Sistema Integrado
de Monitoramento de Fronteiras (SISFRON). Monções: Revista de Relações In-
ternacionais da UFGD, [S. l.], v. 10, n. 20, p. 458–479, 2022.
ESTRUTURA Organizacional do Comando Militar do Oeste. Comando Militar do
Oeste, 2021. Disponível em: https://www.cmo.eb.mil.br/index.php/historico-do-
cmo/57-institucional/79-organograma-exercito. Acesso em: 20 out. 2021.
FREITAS, Jorge Manuel da Costa. A Escola Geopolítica Brasileira: Golbery do
Couto e Silva, Carlos de Meira Mattos e Therezinha de Castro. Rio de Janeiro:
Biblioteca do Exército, 2004.
GALA, Paulo. Complexidade econômica: uma nova perspectiva para entender a an-
tiga questão da riqueza das nações. Rio de Janeiro: Contraponto, v. 20, 2017.
GOVERNO do Estado de Mato Grosso do Sul - Secretaria de Estado de Meio Ambi-
ente e Desenvolvimento Econômico. Estudo da Dimensão Territorial do Estado
de Mato Grosso do Sul: Regiões de Planejamento, 2015.
MACHADO, Lia Osório et al. Bases de uma política integrada de desenvolvimento
regional para a faixa de fronteira. Brasília, DF: Ministério da Integração Nacio-
nal, 2005.
MATO GROSSO DO SUL (Estado). Secretaria de Estado de Meio Ambiente,
Desenvolvimento Econômico, Produção e Agricultura Familiar. In: Perfis Esta-
tísticos do MS e Municípios. Dados Estatísticos dos Municípios de MS. 2017. Dis-
ponível em: http://www.semagro.ms.gov.br/perfis-socioeconomicos-do-ms-e-
105
Roberto Balestrim · Tássio Franchi · Tiago de Castro N. Borges Morais · Tomáz Esposito Neto
municipios/. Acesso em: 30 jul. 2018.
MATTOS, Patrícia. Implicações econômicas na guerra e no poder militar. Tensões
Mundiais, v. 11, n. 20, 2015.
MEDEIROS FILHO, Oscar. Desafios do Exército Brasileiro nas fronteiras amazôni-
cas. Coleção Meira Mattos: revista das ciências militares, v. 14, n. 49, p. 77-97,
2020.
MORAES, Carlos Henrique Arantes de. A influência da estratégia da presença mili-
tar para a atual ocupação da Faixa de Fronteira da região da amazônica brasi-
leira. 2021.
MORAES, Carlos Henrique Arantes de; PEREIRA, Dan Milli; FRANCHI, Tássio. O
reflexo socioeconômico da presença militar em um município da fronteira norte.
Coleção Meira Mattos: revista das ciências militares, v. 16, n. 55, p. 107-132,
2022.
NUNES, Maria. Dinâmicas transfronteiriças e o avanço da violência na fronteira
sul-mato-grossense, 2017. Disponível em: http://reposito-
rio.ipea.gov.br/bitstream/11058 /7934/1/BRU_n16_Dinamicas.pdf. Acesso em:
25 out. 2021.
RECEBIMENTO de recursos por favorecido. Portal da Transparência, 2021. Dispo-
nível em: https://www.portaltransparencia.gov.br/despesas/recursos-recebi-
dos?ordenarPor=mesAno&direcao=asc. Acesso em: 15 out. 2021.
RIBEIRO, Erika Almeida; TERNUS, Cassia; CAMOÇA, Alana. A inter-relação entre
Economia do Mar e Economia da Defesa: uma análise para municípios brasilei-
ros. Disponível em: https://brsa.org.br/wp-content/uploads/wpcf7-submissi-
ons/2741/Erika_Ribeiro_a-inter-rela%C3%A7%C3%A3o-da-economia-do-
mar-e-da-economia-da-defesa.pdf. Acesso em: 24 out. 2021.
RIBEIRO, E.C.B.A, RIBEIRO, F.S. 2018. Os gastos em defesa e o crescimento econô-
mico dos municípios brasileiros. In: XVII Encontro Nacional da Associação Bra-
sileira de Estudos Regionais e Urbanos - XVII ENABER, Aracaju.
ROCHA, Tiago dos Reis. O serviço militar no Exército brasileiro na Nova Repú-
blica: a flexibilização de sua obrigatoriedade e os interesses da força terrestre no
sistema de recrutamento vigente, 2014. Disponível em:
106
Os reflexos socioeconômicos da presença militar na região de fronteira sob...
http://ppgest.uff.br/images/Disserta/2014/Tiago_Rocha.pdf. Acesso em: 18 dez.
2019.
SANTOS, Thauan. Economia de Defesa como uma categoria geral de análise nas Ci-
ências Econômicas. Revista da Escola de Guerra Naval, n 24, 2018.
SILVA, Marcos Cícero Barros da. A importância da presença do Exército para o de-
senvolvimento econômico das Regiões Sudoeste e Sul da Fronteira Sul-Mato-
Grossense, 2019. Disponível em:
https://bdex.eb.mil.br/jspui/bitstream/123456789
/4044/1/CGAEM_2019.1_25.TCC_TC_Cicero.pdfAcesso em: 25 out. 2021.
SISFRON - Ativado Projeto-Piloto. Defesa Net, 2014. Disponível em:
https://www.defesanet.com.br/fronteiras/noticia/17427/SISFRON---Ativado-
Projeto-Piloto. Acesso em: 23 out. 2021.
TERNUS, C.H. 2017. “Matriz de Impactos Intersetoriais em Economia da Defesa
no Brasil”. Dissertação de Mestrado, Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul. Porto Alegre, 2017.

__________________________________________________
BALESTRIM, Roberto; FRANCHI, Tássio; MORAIS, Tiago de Castro No-
gueira Borges; ESPOSITO NETO, Tomáz. Os reflexos socioeconômicos da
presença militar na região de fronteira sob responsabilidade da 4ª brigada
de cavalaria mecanizada. In: OLIVEIRA, Marco Aurélio Machado de;
(Org.). Anais do I Congresso do Migrafron. Uberlândia: Marco Teórico,
2022. pp. 83-108.
__________________________________________________

107
XENOFOBIA CONTRA REFUGIADOS NO
BRASIL E O PAPEL DA EDUCAÇÃO EM
DIREITOS HUMANOS

5
Reginaldo Felix Nascimento
Maurício Soares de Sousa Nogueira

RESUMO:
A xenofobia é um fato horrendo da nossa sociedade, especialmente quando cometida
contra refugiados, pessoas que já chegam no território nacional com tantas outras
vulnerabilidades. Dito isso, surge a educação em direitos humanos como fator crucial
na transformação dessas realidades. De modo geral, objetiva-se tratar da xenofobia
contra refugiados no Brasil e ver soluções na Educação em Direitos Humanos. Espe-
cificamente, objetiva-se esmiuçar os referidos objetivos gerais através da compreen-
são trazida pela legislação nacional e internacional, bem como os elementos materi-
ais da prática preconceituosa, com a composição biopolítica do fenômeno. O método
utilizando é o bibliográfico documental, ou seja, utilização de livros, doutrinas, legis-
lações e noticiários para o alcance dos objetivos supracitados. Em conclusão, a xeno-
fobia é uma prática biopolítica e a educação em direitos humanos é fundamental no
processo de transformação desses cenários.

PALAVRAS-CHAVE:
Educação; Xenofobia; Refugiados.

109
Reginaldo Felix Nascimento · Maurício Soares de Sousa Nogueira
ABSTRACT:
Xenophobia is a horrendous fact of our society, especially when committed against re-
fugees, people who already arrive in the national territory with so many other vulne-
rabilities. That said, education in human rights emerges as a crucial factor in the trans-
formation of these realities. In general, the objective is to deal with xenophobia against
refugees in Brazil and to see solutions in Human Rights Education. Specifically, the
objective is to scrutinize these general objectives through the understanding brought
by national and international legislation, as well as the material elements of the pre-
judiced practice, with the biopolitical composition of the phenomenon. The method
used is the documentary bibliography, that is, the use of books, doctrines, legislation,
and news to achieve the objectives. In conclusion, xenophobia is a biopolitical practice
and human rights education is fundamental in the process of transforming these sce-
narios.

KEYWORDS:

Education; Xenophobia; Refugees.

1. INTRODUÇÃO
O Brasil é um país que partilha fronteira com diversos outros países da América
do Sul. Nesse aspecto, assume um papel significativo de responsabilidade nos fluxos
transnacionais. Atrelado a esse fator, a xenofobia se destaca como fenômeno preo-
cupante, merecendo tratamento atencioso quando o preconceito é direcionado con-
tra pessoas em situações específicas de vulnerabilidades, sendo este o caso dos refu-
giados.
Por conseguinte, depois de identificado o problema, a fim de ajustá-lo, é demasi-
ado indispensável vislumbrar as soluções prováveis para as imbricações constatadas.
Doravante, sustenta-se a Educação em Direitos Humanos eficaz para garantir vários
outros direitos, dentre estes, a dignidade da pessoa humana. Outrossim, possível
conceber a Educação em Direitos Humanos enquanto elemento preventivo no com-
bate à xenofobia.

110
Rotinas e desafios da Justiça leitoral na fronteira: um estudo de caso em corumbá, ms, brasil
De modo geral, a presente pesquisa objetiva analisar a xenofobia no Brasil e apre-
sentar a educação em direitos humanos como uma possibilidade de combate ade-
quado destas práticas preconceituosas. Especificamente, objetivou-se a delimitar de-
talhes da xenofobia no Brasil, bem como seus aspectos legais de direito nacional e
internacional, até os seus elementos materiais, através de dados geográficos e narra-
tivas políticas, considerando a utilização da xenofobia como prática biopolítica e
tendo a Educação em Direitos Humanos seu papel determinante no combate à essa
espécie de preconceito.
O método de pesquisa é o bibliográfico e documental, significando a utilização de
livros, revistas, artigos, notícias entre outros enquanto principais fontes de desenvol-
vimento teórico para, assim, constatar proposições críticas relacionadas à prática de
xenofobia contra os refugiados no Brasil, entrelaçando-se a necessidade de uma edu-
cação em direitos humanos como prática emancipatória.
O trabalho justifica-se imprescindível para a compreensão das vivências sociais,
ao combate à xenofobia, para diminuição da conflituosidade através do conjunto
preventivo e para a paz e a justiça sociais, buscando asserções importantes às ciências
humanas e sociais aplicadas no seu contexto acadêmico.

2. DESENVOLVIMENTO
Junto às recorrentes crises humanitárias, emergem corriqueiras as narrativas de
como combater a xenofobia, intolerância e o racismo, pois com o aumento dos fluxos
transnacionais, tais práticas constituem-se oniscientes no cotidiano brasileiro. Ipso
facto, diversos pesquisadores das ciências humanas e sociais aplicadas se debruçam
no tema a fim de mensurar as soluções para a alta destas patologias sociais (FARAH,
2017).
O aumento da mobilidade coexiste, portanto, com problemas de integração e de con-
vivência entre povos diferentes. Dessa forma, há um aumento de casos de discrimi-
nação e xenofobia, cujas causas se relacionam com as dinâmicas sociais e políticas, o
que contribui para a complexidade do problema e das formas de combatê-lo. (PEI-
XOTO; CAVALCANTI; SENA, p. 02, 2021)
Quando se fala em recebimento de refugiados no Brasil, costuma-se abordar hu-
manização de tratamento pelas políticas estatais. Lado outro, também não é
111
Reginaldo Felix Nascimento · Maurício Soares de Sousa Nogueira
incomum concebermos que a população destinatária tem um papel determinante
neste acolhimento. De fato, é imprescindível exercitar estas concepções e suas res-
pectivas resoluções, principalmente, não descartando do debate o estabelecimento
de medidas preventivas (FARAH, 2017).
O art. 13, inciso 2, da Declaração Universal de Direitos Humanos imperativa que
toda pessoa tem o direito de abandonar o país em que se encontra e de regressar ao
mesmo. Outrossim, o art. 14, inciso 1, do mesmo diploma internacional, destaca que
toda pessoa que sofre perseguição tem o direito de procurar e se beneficiar de asilo
noutros países (ONU, 1948).
A Lei nº 9.459/97 (BRASIL, 1997) insere no ordenamento jurídico brasileiro a
xenofobia como prática criminosa. Lado outro, constata-se dificultoso provar a ocor-
rência dessas condutas, precipuamente a identificação desta pela vítima, incorrendo
em mais subnotificações. Em se tratando de refugiados, pelo próprio desconheci-
mento das leis brasileiras, do idioma ou medo de enfrentar mais retaliações pelas au-
toridades brasileiras, ressaltando que parte dos refugiados que possuem seus corpos
não legalizados tem como última alternativa acionar as autoridades, já que não pre-
tendem ser notados em razão do medo de deportações.
Segundo preleciona o art. 50 da Lei de Migração, ‘’a deportação é medida decor-
rente de procedimento administrativo que consiste na retirada compulsória de pes-
soa que se encontre em situação migratória irregular em território nacional’’ (BRA-
SIL, 2017).
No ano de 2015, a Secretaria de Direitos Humanos do Governo Federal demons-
trou dados acerca das denúncias de violações de Direitos Humanos. À vista disso, em
relação ao ano anterior, relativamente às práticas de xenofobia e intolerância religi-
osa, notou-se um aumento exponencial de violações contra migrantes que totaliza-
vam um crescimento de 633%1. Ainda, é preciso mencionar que os dados formais
não representam os casos de subnotificação, cabendo supor que a situação é (ou foi)

1 XAVIER, Renan. Denúncias de Xenofobia no Disque 100 Crescem 633% em 2015. O Globo. Dis-
ponível em:< https://oglobo.globo.com/politica/denuncias-de-xenofobia-no-disque-100-cres-
cem-633-em-2015-18554954 >. Acesso em 05 de jun. de 2022.
112
Rotinas e desafios da Justiça leitoral na fronteira: um estudo de caso em corumbá, ms, brasil
ainda mais grave.
No ano de 2018, de acordo com os dados do Comitê Nacional para Refugiados
(CONARE), ocorreram 79.921 solicitações de refúgio. Neste ângulo, diante da sua
responsabilidade, sobrexalta-se o papel expressivo do Brasil na América do Sul
quanto às políticas públicas para refugiados. Dentre as solicitações, a maioria é de
pessoas originadas da Venezuela, formando o cômputo de 61.618 humanos (PEI-
XOTO; CAVALCANTI; SENA, 2021).
Claro resta que, diferente das razões que levam a conduta humana a fazer imigra-
ções, no caso dos refugiados, estes fluxos migratórios são desprovidos de qualquer
planejamento financeiro, vez que a sua motivação gira em torno de uma fuga, deveras
uma fuga de diversas violações de direitos humanos, compreendidas como conse-
quências de guerras, violências truculentas, genocídios, perseguições entre outros.
Daí que o refugiado, em função de uma emergência, inicia sua jornada buscando
melhores condições de vida noutros lugares.
César Candiotto (2020), citando Alexandre Betts, elenca que os deslocamentos
involuntários podem ser alçados à asserção de migrações de sobrevivência, não obs-
tante parte dos migrantes de sobrevivência não serem considerados refugiados, todos
os refugiados são considerados migrantes de sobrevivência.
Por isso que é ainda mais agressivo o tratamento preconceituoso internamente,
pois relata mais uma violação de direitos humanos somatizada a outras tantas come-
tidas previamente aos indivíduos, perfaz uma total via crúcis o transcurso das suas
existências e culmina na intensificação das suas vulnerabilidades.
É elementar que a xenofobia seja entendida por meio de um espectro de intersec-
cionalidades, porque a origem do refugiado influencia no seu tratamento dentro do
território nacional, tendo em vista que
diferentes fatores devem ser levados em consideração ao analisar a xenofobia contra
determinado grupo, já que características como origem geográfica, cultura, gênero,
cor, etnia, classe social e religião afetam a recepção desses estrangeiros nos países de
destino (PEIXOTO; CAVALCANTI; SENA, p. 07, 2021).
À exemplo, distintamente dos discursos de ódio dirigidos massivamente aos ve-
nezuelanos e pessoas originadas de outras nacionalidades, os ucranianos, na condi-
ção de europeus, foram mais bem recepcionados no Brasil e em outros países do
113
Reginaldo Felix Nascimento · Maurício Soares de Sousa Nogueira
mundo, ressumando-se uma certa seletividade da moral humanitária brasileira e
mundial (e das políticas institucionais)2.
A xenofobia é multifatorial e no Brasil também encontra o seu fundamento na
mantida moral colonialista, entre aqueles que devem ser benquistos socialmente e
aqueles que devem ser marginalizados. Quanto mais afastado do padrão eurocên-
trico (colonizador), mais distante dos padrões mínimos do exercício da dignidade da
pessoa humana. Ou seja, desta maneira nasceram as relações de poder no Brasil e
assim determinados setores da sociedade esquematizam mantê-las ou atualizá-las.
Nesse diapasão, se concebe a percepção do sujeito nacional, que se estabelece no
que talvez seria: ‘’nós’’; o ‘’outro’’; ‘’nós’’ que está no ‘’outro’’ e vice-versa; e o ‘’ou-
tro’’ que não está em ‘’nós’’. Melhor dizendo, a dimensão do sujeito nacional é en-
tabulada nos saberes de determinada sociedade, consagrados majoritariamente pela
moralidade moldada pelos interesses políticos dominantes.
Na estranheza do ‘’outro que não está em nós’’, habita a xenofobia, moram os
limites territoriais, as ressalvas, as exceções excludentes, começam a existir barreiras,
delimitação conceitual de povo entre outros, visto que, no Brasil, para a psiquê social
dominante o padrão eurocêntrico é universal, é o nós, o outro e o outro que está em
nós, pois existe uma estrutura de poder colonialista da forma com a qual a população
se concebe que, a depender, ‘’identitariza’’ o tratamento para com o ‘’outro’’.
Michel Foucault (2008), ao relacionar segurança, território e população, destacou
que a finalidade da segurança nos séculos XVII e XVIII não era a mesma. No pri-
meiro, a concepção de segurança se fundava na defesa do território e seu líder res-
pectivo, quando no segundo o interesse se voltava ao controle da circulação de indi-
víduos (CANDIOTTO, 2020), o que ocorreu com a utilização de instrumentos bio-
políticos. Doravante,
se há uma biopolítica circunscrita pela análise do dispositivo da sexualidade, se há
outra que pode ser delimitada pela ênfase no racismo estatal (e, em certo sentido, estas
duas biopolíticas, embora distintas, cruzam-se entre si), não seria forçoso acenar para

2 PINOTTI, Fernanda. Como a Europa Trata de Forma Diferente Refugiados da Ucrânia e do Ori-
ente Médio. CNN Brasil. Disponível em: < https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/como-a-
europa-trata-de-forma-diferente-refugiados-da-ucrania-e-do-oriente-medio/>. Acesso em 05 de
jun. de 2022.
114
Rotinas e desafios da Justiça leitoral na fronteira: um estudo de caso em corumbá, ms, brasil
uma terceira modalidade de biopolítica em 1978, associada ao deslocamento de uma
população em busca de subsistência material. A esta terceira modalidade, podemos
designá-la como governamentalidade biopolítica (CANDIOTTO, p. 326, 2020).
Se propõe, no caso, entender a xenofobia como um elemento fora de uma simples
e inadequada reação do indivíduo nacional a um dito impacto cultural defronte a
sujeitos determinados, porém como mais um fragmento das práticas de poder – não
se estranha o ‘’outro’’ meramente por ser ‘’diferente’’, se estranha o outro em função
dos fatores de poder –, porque a estrutura social sujeitante consome a xenofobia para
manter-se inalterada.
Nos últimos decênios, deslocados pobres e politicamente vulneráveis em busca de so-
corro veem-se submetidos a novos processos de regulação e sujeição nos países onde
pretendem ser acolhidos ou, ao menos, residir por algum tempo (CANDIOTTO, p.
331, 2020).
Importa significar que os ideais patriotas do Brasil, no que prevalece a sua noção
de povo, considerando que o patriotismo brasileiro atrai acepções do nacionalismo
quando exalta a sobreposição dos ‘’valores nacionais’’, age como elemento deslegi-
timante do direito humano de migrar, uma vez que delimita ‘’o outro que não está
em nós’’, crivando universalizações despluralizantes que potencialmente aumentam
as possibilidades de controle biopolítico dos fluxos transnacionais por intermédio da
repressão xenofóbica.
Jargões universais como ‘’Brasil acima de tudo’’ e ‘’’Deus acima de todos’’ leva-
nos à seguinte reflexão: quais são os conjuntos ‘’Tudo’’ e ‘’Todos’’? Se ‘’tudo’’ é uma
totalidade de coisas e ‘’todos’’ é uma totalidade de pessoas, elevam-se os entes de
coisas e pessoas do Brasil a constituírem um tom de superioridade à venezuelanos,
senegaleses, sírios entre outros, pois impetariva-se o contraste de povo (brasileiro),
valor (moral religiosa cristã e a moralidade que dela deriva) e território (Brasil).
Coincidentemente, a disseminação e fortalecimento destas universais desplurali-
zantes também é acompanhada de discursos criminalizantes da defesa pelos direitos
humanos, demonstrando duas vias deslegitimantes destes, a primeira intersubjetiva-
subjacente e a segunda explícita. Quer dizer, são condutas também utilizadas como
instrumentos biopolíticos.
Com frequência, a população dos migrantes de sobrevivência está associada às figuras

115
Reginaldo Felix Nascimento · Maurício Soares de Sousa Nogueira
da ilegalidade, da clandestinidade e da imoralidade, reconfigurando a objetivação do
indivíduo perigoso à Nação ou à comunidade (CANDIOTTO, p. 331, 2020).
Dentro do Brasil, estes indivíduos ingressam num processo de dessubjetivação,
pois além de não estarem posicionados dentro da sociedade da qual possuem laços
originários, a estes são impostos os valores nacionais sujeitantes, tornando seus cor-
pos expostos às intempéries sociais (sendo importante as noções de interseccionali-
dade), precipuamente a ser vítima de xenofobia.
Para Candiotto (2020), Michel Foucault aborda dois principais questionamentos:
‘’como ser sujeito sem ser sujeitado?’’ e ‘’o que podemos fazer de nós mesmos a par-
tir daquilo que fizeram de nós?’’. Nesses aspectos, aparecem questões imprescindí-
veis a serem explanadas dentro da proposição crítica da dimensão da educação em
direitos humanos como uma solução para a xenofobia cometida contra refugiados.
Doravante, reformulando as indagações foucaultianas, como a educação em Di-
reitos Humanos pode nos tornar um sujeito sem ser sujeitado ou como a educação
em Direitos Humanos auxilia a fazer de nós mesmos algo melhor a partir daquilo que
fizeram de nós?
No que concerne ao questionamento primeiro, sublinha-se que a educação em
direitos humanos deve ser dotada de uma criticidade simétrica às pautas da socie-
dade em que o indivíduo está inserido (SILVA; TAVARES, 2013).
A demonstração das relações de poder de determinada sociedade e da importân-
cia do tratamento igualitário e fraterno, possibilitando a identificação dos compor-
tamentos discriminatórios aos agentes envolvidos, são fatores que marcham em prol
da autodeterminação do indivíduo a ponto de consubstanciar uma potencial solução
para a supracitada indagação.
Tais questões são facilmente expressadas pela educação em direitos humanos, fa-
zendo com que a educação seja progenitora da garantia de diversos outros direitos
caros à dignidade da pessoa humana, construindo uma moral que conheça o sujeito
e não o contrário. Para tanto, as referidas informações precisam constar essencial-
mente na educação básica do Brasil, pois é um dos principais meios de formação in-
telectual da sociedade, não sendo menos importante a veiculação de publicidades e
propagandas acerca da xenofobia para os indivíduos fora deste conjunto.
Relativamente ao segundo questionamento, que relata como podemos fazer de
116
Rotinas e desafios da Justiça leitoral na fronteira: um estudo de caso em corumbá, ms, brasil
nós mesmos algo melhor a partir daquilo que fizeram de nós, utilizando como ele-
mento de composição a educação em direitos humanos, passa-se para questões mais
delicadas.
A reflexão é traduzível no seguinte sentido: o que podemos fazer dos assujeitado-
res algo melhor a partir da sua organização assujeitadora? Pois bem. Observa-se que
somos esta estrutura assujeitadora, deveras sustentadora de uma moral da qual não
importa o sujeito. Nesse sentido, elementar imaginarmos que o poder é uma roda em
constante movimento e quando, a partir do momento em que, dentro dessa roda,
utilizamos a institucionalidade para produzir subjetividades, é clarividente que a
roda perderá a sua velocidade.
Logo, constata-se que a educação em direitos humanos, passando a ser ofertada
de forma intensificada e independente, culminará numa ruptura das relações de po-
der, principalmente das práticas de xenofobia, vez que a educação passará a ter um
papel produtivo de subjetividades e da moral que da qual o sujeito importa, garan-
tindo o respeito mútuo entre os humanos. A sociedade assujeitadora que produz
educação em direitos humanos, é uma sociedade assujeitadora que produz subjetivi-
dades.
Disto isso, cumpre salientar que para o PNEDH (Projeto Nacional de Educação
em Direitos Humanos), a educação em direitos humanos é concebida
como um processo sistemático e multidimensional que orienta a formação do sujeito
de direitos, articulando as seguintes dimensões: apreensão de conhecimentos histori-
camente construídos sobre direitos humanos e a sua relação com os contextos inter-
nacional, nacional e local; afirmação de valores, atitudes e práticas sociais que expres-
sem a cultura dos direitos humanos em todos os espaços da sociedade; formação de
uma consciência cidadã capaz de se fazer presente em níveis cognitivo, social, ético e
político; desenvolvimento de processos metodológicos participativos e de construção
coletiva, utilizando linguagens e materiais didáticos contextualizados; fortalecimento
de práticas individuais e sociais que gerem ações e instrumentos em favor da promo-
ção, da proteção e da defesa dos direitos humanos, bem como da reparação das vio-
lações (BRASIL, p. 2018, p. 12).
A educação em direitos humanos precisa alcançar a todos, porque para atingir

117
Reginaldo Felix Nascimento · Maurício Soares de Sousa Nogueira
seus fins emancipatórios é necessário movimento conjunto da sociedade.
Por fim, incorporar a prática dos direitos humanos ao âmbito da educação sistemática
tem como finalidade alcançar maciçamente a população de todas as faixas etárias e
em todas as áreas de formação. A escola e cada um de seus agentes não podem exi-
mir-se do seu papel formador de princípios e valores, que igualmente estão
ligados aos direitos humanos, pois, no cotidiano de suas ações, transmitem mais do
que os conteúdos do currículo; imprimem exemplos e condutas (SILVA;TAVARES,
p. 53, 2013).
Compreendo que a educação em direitos humanos constrói um cotidiano de no-
vas condutas e perspectivas, sendo que estas respeitam as subjetividades e produzem
subjetividades, é possível através dela diminuir a xenofobia e alterar a visão naturali-
zada (ou neutralizada) destas práticas de poder.

3. CONCLUSÃO
Deve ser feito um finalíssimo diagnóstico do que foi destacado nos parágrafos an-
teriores, compreendendo a xenofobia no Brasil e a Educação em Direitos Humanos
ao tecer breves análises. Portanto, observar-se-á que a cognição da biopolítica e o seu
instrumento de repressão xenofóbica contra refugiados são constatações importan-
tes para entender o valor da educação em direitos humanos no processo emancipa-
tório dos sujeitos. Nesse ínterim, tal educação deve ser garantida pelo Estado, seja na
educação básica ou na veiculação de informações através de publicidade e propagan-
das no combate à xenofobia, pois há necessidade do alcance à todas as faixas etárias,
visto que, dessa forma, passaremos a construir, respeitar e dialogar com as subjetivi-
dades, fazendo existir uma sociedade diversa e fraterna, cuja qual respeite e conheça
o sujeito.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Lei Federal nº 9.459, de 13 de Maio de 1997. Dispõe Sobre os Crimes Re-
sultantes de Preconceito de Raça ou de Cor. Disponível em: <http://www.pla-
nalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9459.htm#:~:text=LEI%20N%C2%
BA%209.459%2C%20DE%2013,7%20de%20dezembro%20de%201940.> Acesso

118
Rotinas e desafios da Justiça leitoral na fronteira: um estudo de caso em corumbá, ms, brasil
em: 05 de jun. de 2022;
BRASIL. Lei Federal nº 13.445, de 24 de Maio de 2017. Dispõe sobre a Lei de Migra-
ção. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
2018/2017/lei/l13445.htm>. Acesso em: 05 de jun. de 2022;
BRASIL. Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos. Plano Nacional de
Educação em Direitos Humanos: 2018. Brasília: Ministério dos Direitos Huma-
nos, 2018;
CANDIOTTO, César. Sujeição, Subjetivação e Migração: Reconfigurações da Go-
vernamentalidade Biopolítica. Revista Kriterion, [S. l.], v. 61, n. 146, 2020. Dis-
ponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/kriterion/article/view/25745.
Acesso em: 5 jun. 2022;
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS. Rio de Janeiro: UNIC,
2009 [1948]. Disponível em: <https://www.ohchr.org/sites/default/fi-
les/UDHR/Documents/UDHR_Translations/por.pdf>. Acesso em: 25 de jun.
2022;
FARAH, Paulo Daniel. Combates à Xenofobia, ao Racismo e à Intolerância. Revista
USP, São Paulo, n. 114, p. 11-30, julho/agosto/setembro, 2017;
FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População. 1ª Ed. Editora Martins
Fontes, 2008;
FREIRE, Paulo. Direitos Humanos e Educação Libertadora. 4ª Ed. Editora Paz &
Terra, 2019;
PEIXOTO, Arnelle Rolim; CAVALCANTI, Camila Martins; SENA, Kananda Beatriz
Pinto de. A Presença dos Refugiados do Século XXI no Brasil: Uma Leitura da
Xenofobia a Partir do Discurso da Crise Econômica. PUC/Rio. Revista Direito,
Estado e Sociedade;
PINOTTI, Fernanda. Como a Europa Trata de Forma Diferente Refugiados da
Ucrânia e do Oriente Médio. CNN Brasil. Disponível em: < https://www.cnnbra-
sil.com.br/internacional/como-a-europa-trata-de-forma-diferente-refugiados-
da-ucrania-e-do-oriente-medio/>. Acesso em 05 de jun. de 2022;
SILVA, A. M. M.; TAVARES, C. Educação em direitos humanos no Brasil: contexto,
processo de desenvolvimento, conquistas e limites. Educação, v. 36, n. 1, 15 fev.
119
Reginaldo Felix Nascimento · Maurício Soares de Sousa Nogueira
2013;
XAVIER, Renan. Denúncias de Xenofobia no Disque 100 Crescem 633% em 2015.
O Globo. Disponível em:< https://oglobo.globo.com/politica/denuncias-de-xe-
nofobia-no-disque-100-crescem-633-em-2015-18554954 >. Acesso em 05 de
jun. de 2022.

__________________________________________________
NASCIMENTO, Reginaldo Felix; NOGUEIRA, Maurício Soares de Sousa.
Xenofobia contra refugiados no brasil e o papel da educação em direitos
humanos. In: OLIVEIRA, Marco Aurélio Machado de; (Org.). Anais do I
Congresso do Migrafron. Uberlândia: Marco Teórico, 2022. pp. 109-120.
__________________________________________________

120
ROTINAS E DESAFIOS DA JUSTIÇA
ELEITORAL NA FRONTEIRA: UM ESTUDO
DE CASO EM CORUMBÁ, MS, BRASIL

6
Gilberto Xavier Loio
Rodolfo César de Sousa
Marco Aurélio Machado de Oliveira
Lucilene Machado Garcia Arf

RESUMO:
Dentro do contexto de ser cidadão de um país está o papel de atuar diretamente na
escolha de governantes. É por isso que a Justiça Eleitoral é um importante instru-
mento para se exercer a cidadania. No território transfronteiriço, esse assunto ganha
contornos e nuances particulares, responsáveis por criar desafios a um órgão público
como a Justiça Eleitoral e, ao mesmo tempo, atrair o interesse político de partidos e
cidadãos que se tornam brasileiros. Notoriamente há interesses, tensões e interde-
pendência de documentação nessas relações, dependendo do ator envolvido. O que
aflora dessa realidade está sendo retratada no presente artigo, com lupa sobre a região
entre Brasil e Bolívia, especificamente em Corumbá e Ladário. O trabalho procura
traçar um panorama geral da realidade da Justiça Eleitoral em Corumbá e Ladário e
auxiliar no levantamento de questionamentos e gerar discussão em torno do tema.

121
Gilberto X. Loio · Rodolfo César de Sousa · Marco Aurélio M. de Oliveira · Lucilene M. Garcia Arf
PALAVRAS-CHAVE:
Justiça Eleitoral; Eleição em região de fronteira; Política na fronteira.

ABSTRACT:
Regarding been a citizen of a nation it is a right to act straight in the choosen of the
governments. Due to, the Electoral Justice is an important tool to the citizenship. In a
trans-border territory, this subject has its own nuances that is responsible to built chal-
lenges for the public sector as the Electoral Justice and, in the same time, been matters
that envolves political parties interesting and also for citizens that become brazilians.
Notoriously all thoses subjects have its tension, depending on the actors envolved, also
there is interdependece of documentation. All of matters that have turns out regarding
this context are been discussing in this article, with focus on the region between Brazil
and Bolívia, specifically in Corumbá and Ladário. This workpaper tries to recall what
is the reality of the Electoral Justice in Corumbá and Ladário e and support discussion
for this subject.

KEYWORDS:

Electoral Justice; Election in a border region; Border politics

1. APRESENTAÇÃO
Os órgãos analisados neste relatório foram os Cartórios Eleitorais das cidades de
Corumbá (112.669 habitantes, IBGE Cidades) e Ladário (24.040 habitantes, IBGE
Cidades). Em âmbito de organização eleitoral, elas estão divididas em duas zonas
eleitorais, tendo a rua Frei Mariano como referência para esta divisão. Ao lado leste
daquela rua está a 7ª Zona Eleitoral (com 189 seções, em 35 locais, e 44 mil eleitores)
e para o lado oposto, incluindo a cidade de Ladário, está a 50ª Zona Eleitoral (18
locais de votação, 99 seções, e 14.971 eleitores).
O cartório eleitoral é o primeiro contato do cidadão com a Justiça Eleitoral.
É nele que o cidadão deve se apresentar para se inscrever e se qualificar como eleitor,
exercendo o direito de escolher os administradores e legisladores de uma cidade, de
122
Rotinas e desafios da Justiça Eleitoral na fronteira: um estudo de caso em Corumbá, MS, Brasil
um estado e de um país. Além de analisar e realizar a inscrição do cidadão no cadas-
tro eleitoral nacional, os cartórios eleitorais atuam na parte administrativa da zona
eleitoral e na escrivania eleitoral, ou seção judicial (TSE, 2022). No âmbito adminis-
trativo, funções inerentes constam como alistamento eleitoral, transferência de do-
micílio eleitoral e medidas para impedir a prática de propaganda eleitoral irregular,
bem como de alistamento eleitoral irregular.
Por conta dessas características, os cartórios realizam, principalmente, atendi-
mentos ao público em geral, uma vez que integram o primeiro grau jurisdicional
dentro da Justiça Eleitoral. Acrescenta-se aqui mais um detalhamento para explicitar
o grau de importância que a Justiça Eleitoral tem para uma nação, por conseguinte o
cartório eleitoral constitui parte desse contexto, principalmente por ser um acesso
direto do cidadão.
A Justiça Eleitoral é um órgão de jurisdição especializada que integra o Poder Judici-
ário e cuida da organização do processo eleitoral (alistamento eleitoral, votação, apu-
ração dos votos, diplomação dos eleitos, etc). Logo, trabalha para garantir o respeito
à soberania popular e à cidadania. DIAS (2022).
No escopo de análise da Justiça Eleitoral, é válido apresentar aqui que o voto no
Brasil é obrigatório para todo cidadão, desde que este seja nato ou naturalizado, alfa-
betizado, com idade entre 18 e 70 anos. Cidadãos com idade entre 16 e 17 anos e
acima de 70 anos têm o voto facultativo, o mesmo valendo para analfabetos.
Para o presente artigo, analisamos o funcionamento dos cartórios eleitorais em
ambientes de fronteira, verificando, a partir da realidade fronteiriça, a necessidade
de atendimento diferenciado por se tratar de uma singularidade geográfica, que tem
repercussão em outros territórios da ciência, tais como a Sociologia, Relações Inter-
nacionais, o Direito, a História. Foi desenvolvido a partir da disciplina Documenta-
ção e Cidadania na Fronteira, ofertada no Programa de Mestrado em Estudos Fron-
teiriços da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Conforme Michel Foucher
(2013) destacou, “a fronteira é um objeto geopolítico por excelência. As suas funções
clássicas são múltiplas - política (soberania), legal (direito), fiscal (alfângeda), policial
(controle), militar (defesa) - (...)”.
É preciso salientar que para analisar os dados coletados, houve um impor-
tante trabalho de multidisciplinaridade. A formação interdisciplinar do grupo que

123
Gilberto X. Loio · Rodolfo César de Sousa · Marco Aurélio M. de Oliveira · Lucilene M. Garcia Arf
promoveu o estudo aqui apresentado contribuiu para atender as múltiplas questões
que surgem no ambiente da Justiça Eleitoral inserido em território transfronteiriço.

2. METODOLOGIA
Quanto à metodologia utilizada, optou-se pela revisão bibliográfica e entrevistas
semiestruturadas com os servidores dos órgãos analisados. Os autores do referido
estudo buscaram também realizar a visitação no prédio da Justiça Eleitoral para ob-
servação no fluxo de atendimento. É necessário situar que essa visita ocorreu em ju-
nho de 2022, fora do período de regularização de título de eleitor. Por conta dessa
condição, não houve a presença de cidadão buscando serviço ou tirando dúvidas.
Mesmo assim, houve entrevista semiestruturada com os chefes dos cartórios para
apurar condições de atendimento e demandas.
A partir da observação no local, ainda houve avaliação sobre a estrutura do pré-
dio, sinalização tanto interna como externa e análise com relação ao serviço de trans-
porte público que atende a região onde está o prédio da Justiça Eleitoral em Co-
rumbá.
Vale aqui mencionar que para a realização das entrevistas, houve o agendamento
com os chefes de cartório a partir de envio de e-mail para os mesmos. A solicitação
foi prontamente respondida, sem empecilhos para ser agendada e realizada, bem
como todas as perguntas foram respondidas. Os entrevistados atenderam no próprio
cartório, em área de atendimento ao público e contaram com apoio de servidores
terceirizados para oferecerem algumas informações pontuais.
Os autores do artigo fizeram anotações das respostas concedidas na entrevista e
ainda houve conferência de informações após a realização da primeira conversa. Essa
conferência serviu para reunir mais dados que não puderam ser repassados no dia da
entrevista. Para realizar essa etapa, houve o contato com os chefes de cartório por
meio do aplicativo whatsapp para proceder com a solicitação.
Os dois cartórios eleitorais possuem o mesmo endereço e compartilham da
mesma infraestrutura. O prédio, único, possui um longo corredor ao centro, indo da
recepção (entrada do prédio) até o depósito (nos fundos desta edificação). Assim
como a divisão que ocorre entre as seções eleitorais de cada zona tendo como refe-
rência a rua Frei Mariano, tal divisão se repete no prédio, com o corredor dividindo
124
Rotinas e desafios da Justiça Eleitoral na fronteira: um estudo de caso em Corumbá, MS, Brasil
os cartórios. Esse compartilhamento se limita somente ao prédio. Cada cartório pos-
sui a sua equipe e, pelo observado, algumas práticas de trabalho próprias.
Conforme observação em lócus, o prédio é relativamente novo e bem cui-
dado. Recentemente passou por uma revitalização interna, o que é visível já na re-
cepção. Sua localização é de fácil acesso, distante aproximadamente 2,5km do centro
da cidade. Localizado na rua Duque de Caxias, 45, bairro Nossa Senhora de Fátima,
em Corumbá, o acesso ao local pode ser feito por carro próprio ou em coletivo a
partir de quatro linhas de ônibus (linha 103 - Popular Nova via Dom Bosco, linha
104/105 - Guatós via Guanabara, linha 104 - Guanabara, linha 105 - Guatós).
Conta com boa acessibilidade, ambiente limpo e climatizado, móveis em ex-
celente estado de conservação. A recepção é espaçosa e possui uma quantidade ge-
nerosa de assentos. O quantitativo de atendentes pareceu ser suficiente para a de-
manda do cotidiano. Vale relembrar que no período do recadastramento - o mais
recente antes desse estudo finalizou em 4 de maio de 2022, esse quantitativo de aten-
dentes não foi suficiente, com isso o cartório contou com auxílio de servidores de
outros órgãos, como o Exército, por exemplo.
No ambiente digital, acessível pelo endereço eletrônico: https://www.tre-
ms.jus.br/, também podemos observar a boa acessibilidade e preocupação com a in-
clusão social e digital. O site é intuitivo e responsivo. Na parte superior, há um menu
de serviços disponíveis que em 9 de julho de 2022 constavam as abas: Eleitor e elei-
ções, Partidos, Comunicação; Jurisprudência, Legislação, Serviços Judiciais, O TRE.
Exceto a aba Comunicação, todas as demais abrem diversas opções quando há clique
nelas.
Nessa pesquisa, houve visita específica à aba Eleitor e Eleições, Serviços Judiciais
e O TRE, por conta do direcionamento do trabalho. Foi utilizado sistema Windows
10 Pro e as páginas que não abriram corretamente foram “Eleitor no exterior”, “De-
núncias eleitorais” e links disponíveis na sessão “Carta de Serviços ao Usuário”. A
mensagem apresentada foi: “Atenção! Página temporariamente indisponível: Por fa-
vor, tente novamente mais tarde, e logo da Justiça Eleitoral”.
O portal do Tribunal Regional Eleitoral de Mato Grosso do Sul conta com um
software que oferece, em tempo real, o áudio de textos em língua portuguesa, bem
como a tradução desses textos para a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS), BRASIL

125
Gilberto X. Loio · Rodolfo César de Sousa · Marco Aurélio M. de Oliveira · Lucilene M. Garcia Arf
(2022). No entanto, pudemos observar que o site está todo em língua portuguesa,
sem opção nativa de tradução para outro idioma.

3. IDENTIFICAÇÃO DO COTIDIANO PROFISSIONAL


Além de pesquisas bibliográficas, realizamos, também, entrevistas com os servi-
dores que atuam em ambos os cartórios. Sendo partes significativas das falas as que
foram obtidas com os chefes dos cartórios da 7ª Zona Eleitoral e 50ª Zona Eleitoral.
Para a obtenção do título de eleitor, é necessário ser brasileiro(a) nato(a) ou na-
turalizado(a), comprovar vínculo com o município, seja ele: residencial, patrimonial,
estudantil, profissional, político ou até mesmo afetivo. Para os homens, entre 18 e 45,
ainda é requerido o certificado de alistamento militar.
De acordo com Dupas:
O Brasil é o único país da América do Sul que não garante o voto ao estrangeiro em
alguma esfera: municipal, estadual ou federal. As Constituições do Chile, Venezu-
ela, Paraguai, Uruguai, Argentina, Bolívia, Colômbia, Equador e Peru possuem
artigos que autorizam o voto do estrangeiro em alguma das três esferas de poder. To-
das estas Magnas Cartas autorizam o voto do estrangeiro nas eleições munici-
pais, contudo, a maioria ainda restringe o voto nas eleições nacionais, Dupas (2019,
p.?).
O prazo para solicitação do título de eleitor e outros serviços, como a regulariza-
ção, transferência do município de domicílio eleitoral, a mudança de local de votação
e a retificação de dados pessoais, com a inclusão do nome social, terminou no dia 4
de maio de 2022. De acordo com a legislação, o registro de eleitoras e eleitores, a
transferência de domicílio eleitoral e a revisão são encerrados 150 dias antes do pleito
para que a Justiça Eleitoral possa organizar a votação em todo o país, BRASIL (2022).
Por este motivo, não conseguimos observar o cotidiano dos atendimentos aos usuá-
rios no cartório.
Em razão da necessidade de manutenção do distanciamento social, em razão
da pandemia da covid-19, e visando preservar a saúde do eleitorado e de quem tra-
balha nas eleições, a Justiça Eleitoral disponibilizou o serviço digital Título Net. Neste
serviço, é possível requerer serviços como: a primeira via do título eleitoral, a

126
Rotinas e desafios da Justiça Eleitoral na fronteira: um estudo de caso em Corumbá, MS, Brasil
mudança de município, alteração de dados pessoais e alteração de local de votação,
BRASIL (2022).
Grande parte das solicitações de títulos de eleitor via Título Net não chega-
ram a ser concluídas. O motivo com maior incidência observado pelos servidores dos
cartórios foi o fato dos solicitantes não anexarem os documentos solicitados. Não
houve levantamento qualitativo das zonas eleitorais que abrangem Corumbá e Ladá-
rio para possível identificação se os cidadãos não conseguiram os documentos ne-
cessários para concluir o procedimento ou se houve outros entraves relacionados a
essa etapa.
A lista de documentos necessários para se tirar o título de eleitor ou a se-
gunda via pode conter até oito itens, dependendo se o cidadão é indígena ou brasi-
leiro naturalizado, a saber (BRASIL, 2022):
• Carteira de identidade ou carteira profissional emitida pelos órgãos criados
por lei federal;
• Certidão de nascimento ou de casamento expedida no Brasil ou registrada
em repartição diplomática brasileira;
• Documento público que informe que pessoa requerente tem no mínimo 15
anos, e do qual constem os demais elementos necessários à qualificação;
• Documento similar ao registro civil expedido pela Fundação Nacional do Ín-
dio (Funai);
• Documento por meio do qual é possível concluir que a pessoa tem a nacio-
nalidade brasileira, originária ou adquirida;
• Publicação oficial da Portaria do ministro da Justiça e o documento de iden-
tidade de que tratam os artigos 22 do Decreto nº 3.927/2001 e 5º da Lei nº
7.116/1983, para as pessoas portuguesas com direitos políticos no Brasil;
• Para as pessoas do sexo masculino que pertençam à classe dos conscritos,
documento que comprove a quitação com o serviço militar. Conscritos são
os brasileiros nascidos entre 1º de janeiro e 31 de dezembro do ano em que
completarem 19 anos de idade, que compõem a classe chamada para a sele-
ção para prestação do Serviço Militar inicial;
• Comprovante de domicílio eleitoral: um ou mais documentos que atestem a

127
Gilberto X. Loio · Rodolfo César de Sousa · Marco Aurélio M. de Oliveira · Lucilene M. Garcia Arf
existência de vínculo residencial, afetivo, familiar, profissional, comunitário
ou de outra natureza que justifique a escolha do município pela pessoa para
nele exercer seus direitos políticos (Resolução TSE nº 23.659/ 2021, art. 23).

4. ANÁLISE DO GRUPO SOBRE OS PRINCIPAIS ASPECTOS


ENCONTRADOS
A partir do serviço disponível Título Net, os procedimentos para solicitação do
documento passaram a ser prioritariamente eletrônicos. Esse advento de digitaliza-
ção de atendimento ocorreu também em outros órgãos federais, como Receita Fede-
ral e Junta Militar/Exército. Como há interdependência de documentos, as barreiras
virtuais geraram dificuldade para migrantes internacionais. Com isso, uma demanda
específica foi gerada nos cartórios eleitorais de Corumbá e Ladário, região de fron-
teira com as cidades de Puerto Quijarro e Puerto Suarez, ambas na Bolívia.
Antes, com o atendimento presencial, servidores conseguiam dirimir questões
pontuais, como falta de documentos que são interdependentes. Desta forma, abria-
se uma ressalva para apresentação posterior de algum desse documento. No proce-
dimento eletrônico, a falta de anexo gera impedimento para concluir a solicitação.
Essa interdependência de documentos ocorre para se retirar o CPF, na Receita Fede-
ral, e o Alistamento Militar. Para brasileiros naturalizados acima dos 18 anos, era
necessário apresentar o título de eleitor ou uma certidão de situação regular na Jus-
tiça Eleitoral. Quem era migrante internacional corria o risco de não ter esses docu-
mentos, com isso não conseguia dar andamento as outras solicitações.
Em outros casos, para conseguir regularizar-se na Justiça Eleitoral era necessário
o Alistamento Militar - para homens, maiores de 18 anos -, e em algumas situações
os migrantes internacionais não possuíam esse alistamento. Ao mesmo tempo, para
obter o Alistamento Militar era preciso estar regularizado na Justiça Eleitoral, que era
uma demanda pendente. Criava-se um círculo que não se fechava para haver a con-
clusão das solicitações.
Diante dessa condição, os cartórios que atendem Corumbá e Ladário criaram uma
certidão que não constava em resolução do TSE ou do TRE. Foi preciso formatar
uma certidão de não alistamento eleitoral para brasileiros naturalizados, que

128
Rotinas e desafios da Justiça Eleitoral na fronteira: um estudo de caso em Corumbá, MS, Brasil
permitia ser enviada para os demais órgãos federais.
Outra alteração em procedimento de rotina que o sistema eletrônico gerou foi o
fim da análise presencial de possível apresentação de documentos falsos para se soli-
citar o título de eleitor. Durante conversas com servidores dos cartórios eleitorais da
7ª Zona Eleitoral e 50ª Zona Eleitoral, uma orientação interna que foi gerada era de
dar “maior atenção” para conferência de documentos de cidadãos que fossem às uni-
dades e apresentassem sotaque não-brasileiro. Quando o cidadão que fosse solicitar
regularização eleitoral ou emissão do título pela primeira vez e apresentasse caracte-
rística oral de não ser brasileiro nato, havia uma maior cobrança de documento que
comprovasse a sua naturalização. O perfil ainda incluía para esses casos cidadãos
acima dos 18 anos. Julgaram pela aparência?
Nessas condições, a apresentação do comprovante de domicílio eleitoral era o tipo
de documento mais frágil para ser falsificado. Em geral, um mesmo documento era
distribuído para mais de um cidadão. No Brasil, está previsto no Código Penal, artigo
299, a falsidade ideológica, que envolve entregar declaração falsa. Essa situação de
possível prática de crime era reforçada ao cidadão, quando este tentava apresentar
documentos que o servidor suspeitava da idoneidade, diante do perfil do solicitante.
No caso do cartório da 7ª Zona Eleitoral, ainda houve relato de um caso em que
no período de regularização de título em 2022, um documento que se assemelhava a
um Registro Geral (emitido por Estados, Forças Armadas, entidades de classe) foi
usado por uma mulher com mais de 40 anos para emitir o título de eleitor, em ano
anterior. Porém, quando esta foi buscar regularização em 2022, ao se enquadrar no
perfil relatado acima, servidores fizeram averiguação minuciosa e identificaram que
o documento que constava no registro da Justiça Eleitoral não comprovava que a
cidadã era brasileira naturalizada. Havia descrição nesse registro geral, que fora emi-
tido pelas Forças Armadas e vinculado a um familiar da cidadã, que ela tinha nacio-
nalidade boliviana. Ela chegou a ser orientada a apresentar uma certidão de natura-
lização brasileira, porém não entregou a mesma e teve o título de eleitor cancelado.
Não houve representação criminal contra ela.

5. AVERIGUAÇÃO DE DOMICÍLIO ELEITORAL


O documento de domicílio eleitoral foi apontado por servidores dos cartórios
129
Gilberto X. Loio · Rodolfo César de Sousa · Marco Aurélio M. de Oliveira · Lucilene M. Garcia Arf
eleitorais de Corumbá e Ladário como sendo o documento mais frágil e passível de
falsificação. Ele precisa atestar vínculo residencial, ou patrimonial, ou afetivo, ou
profissional ou estudantil.
Dentro do Manual de Práticas Cartorárias, no item 238, há especificação que:
“Quando subsistir dúvidas sobre as informações referentes ao domicílio eleitoral do
requerente, o juiz poderá determinar a realização de diligências para averiguar sua
exatidão”. No processo de regularização eleitoral feito entre 2021 e 2022, o cartório
da 50ª Zona Eleitoral registrou apenas um caso de verificação a partir de diligência
de oficial de Justiça. Na 7ª Zona Eleitoral, essas constatações de endereço foram feitas
21 vezes.

6. ANÁLISE DO CORPUS
A questão documental no ambiente fronteiriço, e aqui com lupa sobre o título de
eleitor, segue uma regra característica dessa região: não existe somente uma realidade
que abrange os cidadãos transfronteiriços porque a “cidadania transnacional (...) não
observa fronteiras e Estados específicos”, (DUPAS, 2019). Nessa realidade de trans-
posição de critérios geográficos e legais, os direitos humanos, a proteção à dignidade
humana, enfim, o que precisa ser levando em consideração como fator primordial é
uma cidadania que não está apenas vinculada a uma nacionalidade, mas na busca por
garantias de proteger seres humanos.
Em face dessa complexidade geopolítica, sociológica e de direitos, nota-se que a
legislação eleitoral e seus procedimentos para aplicação dos processos administrati-
vos dependem de uma reavaliação contínua para dar conta da demanda. Não só isso,
regras gerais especificadas por legisladores, técnicos e ministros, dentro de gabinetes,
encontram conflitos de aplicação massiva, principalmente no que tange ao procedi-
mento administrativo.
É válido, dentro desse campo de observação, pontuar que há regulamentação
quanto à cena política, porém as contendas são perenes e diversas (Foucher, 2013).
E para citar aqui um exemplo de que dentro de organizações públicas é necessário
nessas regiões fronteiriças ter um olhar para o ser humano, e suplantar apenas o ter-
reno legal do conjunto de leis, cabe mencionar a criação de uma certidão de não alis-
tamento eleitoral, que não consta em resoluções ou manuais da Justiça Eleitoral, mas
130
Rotinas e desafios da Justiça Eleitoral na fronteira: um estudo de caso em Corumbá, MS, Brasil
que acabou sendo formatada no âmbito dos cartórios eleitorais que abrangem Co-
rumbá e Ladário. A possibilidade de locomoção horizontal das regras de procedi-
mento nesses cartórios, conforme o caso citado, parece dar conta de contendas que
acabam sendo criadas de forma específica diante da necessidade de documentação
que vai conferir direito à dignidade de migrantes internacionais.
Destaca-se aqui a importante representação que essa iniciativa de criar essa certi-
dão representou em termos de cidadania, ao ir de encontro ao artigo XXI, da Decla-
ração Universal dos Direitos Humanos:
1. Todo ser humano tem o direito de fazer parte no governo de seu país diretamente
ou por intermédio de representantes livremente escolhidos.
2. Todo ser humano tem igual direito de acesso ao serviço público do seu país.
3. (...) (1948).
Vale ainda pontuar que essa sensibilidade para tratar de casos específicos encon-
trados na fronteira Brasil-Bolívia dentro do conjunto legislativo eleitoral apresenta-
se frágil em termos institucionais. Não existe no âmbito do Tribunal Regional Elei-
toral de Mato Grosso do Sul (TRE-MS) treinamento específico para servidores que
vão atuar em área de fronteira, mesmo havendo a condição geográfica de a unidade
federativa ter limites territoriais com Paraguai e Bolívia. A afirmação partiu dos che-
fes cartoriais, que estão no serviço público federal há mais de quatro anos. Os mes-
mos pontuaram desconhecer esse tipo de capacitação em âmbito nacional, cabendo
a prática diária e a postura individual dos servidores agirem para casos específicos.
Ou seja, mesmo em Corumbá e Ladário, esse tipo de procedimento pode ser parali-
sado com a transferência de servidores que executam a medida.
Sobre a abordagem de interligação de documentação para conferir direitos plenos
a migrantes internacionais, apesar da necessidade dessa lista envolver uma série de
itens, os órgãos responsáveis por emitir tais documentos ainda não se conectam. A
Receita Federal tem sua própria base de dados que não dialoga com o sistema da Jus-
tiça Eleitoral, que, por usa vez, não está vinculado à Junta Militar. E todos esses ór-
gãos federais estão menos ainda conectados com bases estaduais, como da Secretaria
de Segurança Pública, que emite o Registro Geral. Esse desencontro institucional
pode facilitar a falsificação de documentos, ao mesmo tempo burocratiza emissões.

131
Gilberto X. Loio · Rodolfo César de Sousa · Marco Aurélio M. de Oliveira · Lucilene M. Garcia Arf
Nessa condição, uma dinâmica burocrática em demasia para procedimentos de
documentação pode permitir o surgimento de “coiotes” que oferecem “atalhos” e
acabam gerando problemas legais e criminais, envolvendo migrantes internacionais
não documentados. Além disso, a necessidade de servidores melhores treinados para
encarar os desafios que a realidade transfronteiriça apresenta pode permitir melhor
orientação e facilidade para que a documentação seja solicitada e expedida em menor
tempo e sem o favorecimento de atravessadores que podem tentar se beneficiar pelos
arcabouços legais para atuarem como “despachantes” de serviços que, na prática,
poderiam ser solicitados diretamente nos órgãos, sem cobranças indevidas ou dema-
siadamente altas.
O processo burocrático em demasia cria regras confusas e, em certo ponto, exclu-
dentes em determinado ponto. Nesse momento de barreiras institucionais, as fron-
teiras podem ser “produtos e produtoras de vidas marginais”, (Domenech e Dias,
2020).
Conforme audiência pública Imigrantes Internacionais e Refugiados em MS: di-
reitos, acolhida e assistência, promovida pela Comissão de Direitos dos Imigrantes e
Refugiados, da OAB Mato Grosso do Sul, em junho de 2022, em Campo Grande
(MS), o período para um migrante internacional obter documentação completa para
poder trabalhar e exercer seus direitos como cidadão brasileiro demora em torno de
10 meses. Até esse prazo ser concluído, significa que essa pessoa fica suscetível a não
conseguir atendimento de saúde pública por falta de CPF, ou trabalho formal pela
ausência de carteira de trabalho, ainda com dificuldade para alugar uma residência
por não ter documentos a serem apresentados.
Por fim, deve-se registrar que dentro da questão do título de eleitor há um valor
grande em termos políticos e de governança para uma eleição municipal. Não há da-
dos oficiais sobre o número de eleitores brasileiros que vivem em Puerto Quijarro e
Puerto Suárez porque a Justiça Eleitoral permite o eleitor viver em qualquer lugar do
mundo e manter seu domicílio eleitoral em uma cidade específica, mas estimativas
de partidos políticos que atuam na região apontam para até 3 mil pessoas. Número
suficiente para se eleger mais de vereador em Corumbá e quase um prefeito em La-
dário. Em 2020, o vereador mais votado recebeu 1.633 votos em Corumbá. Em La-
dário, o prefeito foi eleito com 3.148 votos, enquanto o vereador mais votado recebeu
344 votos.
132
Rotinas e desafios da Justiça Eleitoral na fronteira: um estudo de caso em Corumbá, MS, Brasil
Conforme servidores dos cartórios, em período prévio de eleição municipal em
Ladário e em Corumbá, existe um fluxo mais intenso de pessoas acima dos 18 anos
que procuram tirar o título de eleitor e que seguem características consideradas de
alerta para os cartórios em termos de possível falsificação de documentos: cidadãos
com sotaque carregado de espanhol, nem sempre com documentação de cidadão
brasileiro naturalizado em dia. A flutuação de total de eleitores também existe, já que
no recadastramento de 2019, a 7a Zona Eleitoral perdeu por volta de 6 mil eleitores.
Esse quantitativo retornou em 2021-2022, com a campanha que o Tribunal Superior
Eleitoral promoveu para reafirmar a importância do período de eleição.
Este trabalho sinaliza, ainda, a necessidade de estudos mais profundos e exclusi-
vos para tratar a dinâmica eleitoral na fronteira entre Brasil e Bolívia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Atendimento a distância pelo Título Net. Disponível em:
<https://www.tse.jus.br/eleitor/titulo-de-eleitor/pre-atendimento-eleitoral-ti-
tulo-net/pre-atendimento-eleitoral-titulo-net/ >. Acesso em: 06 jul. 2022.
BRASIL. 90 anos da Justiça Eleitoral: confira como é o trabalho em um cartório elei-
toral. Disponível em: <https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2022/Feve-
reiro/90-anos-da-justica-eleitoral-confira-como-e-o-trabalho-em-um-cartorio-
eleitoral>. Acesso em: 06 jul. 2022.
BRASIL. Acessibilidades. Disponível em: <https://www.tre-ms.jus.br/acessibilida-
des-tre-ms>. Acesso em 07 jul. 2022.
BRASIL. Eleições 2022: regularize o título até 4 de maio e fique apto a votar. Dispo-
nível em: https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2022/Janeiro/eleicoes-
2022-regularize-o-titulo-ate-4-de-maio-e-fique-apto-a-votar. Acesso em 09 jul.
2022.
BRASIL. Faq-eleições. Disponível em: https://www.justicaeleitoral.jus.br/faq-elei-
coes-2022/. Acesso em 09 jul. 2022.
BRASIL. Glossário eleitoral. Disponível em: https://www.tse.jus.br/eleitor/glossario/
glossario-eleitoral. Acesso em 09 jul. 2022.
BRASIL, Ordem dos Advogados, sub-seção Mato Grosso do Sul. Audiência pública
133
Gilberto X. Loio · Rodolfo César de Sousa · Marco Aurélio M. de Oliveira · Lucilene M. Garcia Arf
– Imigrantes Intermacionais e Refugiados em MS: direitos, acolhida e assistência,
21 de junho de 2022. Disponível em: https://www.you-
tube.com/watch?v=9rkaW_DdPiM
BRASIL. Resultados eleições municipais 2020. Disponível em: https://resulta-
dos.tse.jus.br/oficial/#/eleicao;e=e426;uf=ms;mu=91030/resultados. Acesso em
09 jul. 2022.
DIAS, Gustavo. Mobilidade migratória: uma leitura crítica para além de metáforas
hidráulicas. REMHU - Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, v. 27, p.
61-78, 2019.
DIAS, Renata Livia Arruda de Bessa. Justiça eleitoral: composição, competências e
funções. Revista eletrônica EJE, n. 1, ano 4. Disponível em:
https://www.tse.jus.br/o-tse/escola-judiciaria-eleitoral/publicacoes/revistas-da-
eje/artigos/revista-eletronica-eje-n.-1-ano-4/justica-eleitoral-composicao-com-
petencias-e-funcoes. Acesso em: 9 de jul. 2022.
DOMENECH, Eduardo; Dias, Gustavo. Regimes de fronteira e “ilegalidade” mi-
grante na América Latina e Caribe. Dossiê Sociologias 22, n. 55, p. 40-73, set-dez
2020. DOI: 10.1590/15174522-108928. Disponível em: https://www.sci-
elo.br/j/soc/a/t4fsJQgwWTJZLchwfJqJMtp/?lang=pt&format=pdf. Acesso em: 9
jul. 2022.
DUPAS, E.; CARVALHO, L. C. de; CARVALHO, L. C. de. Para além das fronteiras:
cidadania transnacional. Revista Videre, [S. l.], v. 11, n. 21, p. 105–120, 2019. DOI:
10.30612/videre.v11i21.9580. Disponível em: https://ojs.ufgd.edu.br/in-
dex.php/videre/article/view/9580. Acesso em: 9 jul. 2022.
FOUCHER, Michel. Considerações geopolíticas sobre ss fronteiras contemporâneas.
Revista GeoPantanal, n. 15, p. 23-35, ju./dez. 2013. Disponível em: https://perio-
dicos.ufms.br/index.php/revgeo/article/view/289/327
MOOVIT, Viação Cidade Corumbá. Disponível em: https://moovitapp.com/in-
dex/pt-br/transporte_p%C3%BAblico-lines-Corumba-3561-856881. Acesso em:
9 jul. 2022.
ONU, Assembleia Geral. Declaração Universal dos Direitos Humanos. (217 [III] A.),
Paris, 1948.

134
Rotinas e desafios da Justiça Eleitoral na fronteira: um estudo de caso em Corumbá, MS, Brasil
ANEXO I
QUESTIONÁRIO UTILIZADO
1) O imigrante pode tirar título de eleitor?
- Se sim, quais os requisitos e documentações necessárias (ser residente, temporá-
rio…)
2) O cartório faz algum tipo de atendimento a imigrantes?
- Se sim, quais?
3) Quantas nacionalidades são conhecidas pelo cartório?
4) O que difere este cartório dos demais cartórios do estado, pelo fato de se encontrar
na fronteira?
5) Tem algum protocolo diferenciado dos demais?
6) O órgão está preparado para atender os imigrantes?
- E quanto aos agentes, esses têm algum tipo de capacitação?
7) O cartório sabe a quantidade de eleitores que não moram no Brasil?
- Esses eleitores são brasileiros?
- Esses eleitores são bolivanos ou de outra nacionalidade?
8) Tem alguma ferramenta para esse controle (estatística)?
9) Qual o interesse em se tirar o título de eleitor para os que não moram em Co-
rumbá?
- Qual seria a vantagem?
- Seria para exercer o direito de cidadania? Mas sem morar no município?
10) No recadastramento dos títulos foi detectada alguma discrepância?
- Relativo a endereço de residência, por exemplo?
11) O cartório realiza atendimento digital?
- Sem sim, tem acessibilidade? Quantos idiomas? É responsívo?

135
Gilberto X. Loio · Rodolfo César de Sousa · Marco Aurélio M. de Oliveira · Lucilene M. Garcia Arf
__________________________________________________
LOIO, Gilberto Xavier; SOUSA, Rodolfo César de; OLIVEIRA, Marco Au-
rélio Machado de. ARF, Lucilene Machado Garcia. Rotinas e desafios da
justiça eleitoral na fronteira: um estudo de caso em corumbá, MS, Brasil.
In: OLIVEIRA, Marco Aurélio Machado de; (Org.). Anais do I Congresso
do Migrafron. Uberlândia: Marco Teórico, 2022. pp. 121-136.
__________________________________________________

136
EIXO 2
SAÚDE, EDUCAÇÃO E
INCLUSÃO SOCIAL

137
A TORCIDA DO CORUMBAENSE FUTEBOL
CLUBE E SUAS ATIVIDADES SOCIAIS NA
REGIÃO FRONTEIRIÇA BRASIL-BOLÍVIA

7
Roberto César de Souza
Carlo Henrique Golin

RESUMO:
Este artigo tem como objetivo abordar o tema da torcida de futebol, analisando, prin-
cipalmente, matérias jornalísticas sobre o Corumbaense Futebol Clube (CFC) e os
trabalhos que tratam do assunto, descrevendo algumas ações sociais voltadas para
pessoas vulneráveis durante o período da pandemia da Covid-19. Assim, procura-
mos observar e descrever as possíveis atividades sociais advindas da torcida do CFC,
time estabelecido na cidade de Corumbá-MS, região fronteiriça Brasil-Bolívia. Res-
saltamos que a pandemia impactou, significativamente, a sociedade no mundo, im-
pondo diferentes formas de relações entre as pessoas devido às restrições vividas, o
que inclui a mudança na dinâmica dos jogos de futebol em diferentes locais, sobre-
tudo porque eles foram paralisados num primeiro momento e depois reativados com
protocolos de biossegurança. Portanto, procuramos demostrar como se desenvolve-
ram, durante esse período restritivo da pandemia, as ações realizadas pela torcida do
CFC, relatando as suas mobilizações e engajamentos sociais na região. O principal
resultado encontrado foi a cooperação mútua dos torcedores nas mobilizações reali-
zadas, tais como doação de roupas e distribuição de alimentos. Por fim, observamos
que a torcida do CFC conseguiu realizar as atividades sociais voltadas para pessoas
139
Roberto César de Souza · Carlo Henrique Golin
em situação de vulnerabilidade, mesmo diante dos desafios vividos na pandemia.

PALAVRAS-CHAVE:
Torcida; Futebol; Vulnerabilidade Social; Fronteira.

RESUMEN:
El objetivo del presente artículo es abordar el tema de las hinchadas de fútbol mediante
el análisis de materiales periodísticos acerca del Corumbaense Futebol Clube (CFC) y
trabajos que abordan el tema, describiendo acciones sociales dirigidas a personas en
situación de vulnerabilidade social durante el período de la pandemia de Covid-19.
Por lo tanto, buscamos observar y describir las posibles acciones sociales realizadas por
la hinchada de CFC, un equipo de fútbol establecido en la ciudad de Corumbá-MS,
región de la frontera Brasil-Bolivia. Destacamos que la pandemia impactó significati-
vamente a la sociedad en el mundo, imponiendo diferentes formas de relación entre
las personas debido a las restricciones impuestas, lo que incluye el cambio en la diná-
mica de los partidos de fútbol en diferentes sedes, sobre todo porque inicialmente se
paralizaron los partidos y luego se reactivaron con protocolos de bioseguridad. Por
consiguiente, buscamos demonstrar como se desarollaron las acciones sociales realiza-
das por los hinchas del CFC durante el período restrictivo de la pandemia, relatando
sus movilizaciones y compromiso social en la región. El principal resultado encontrado
fue la cooperación mutua entre los hinchas en las acciones sociales realizadas, como
donación de ropa y distribución de alimentos. Por fin, observamos que los hinchas de
CFC lograron cumplir su compromiso social a través de acciones dirigidas a personas
en situación de vulnerabilidad, aún frente a los desafíos impuestos por la pandemia.

PALABRAS-CLAVE:
Hinchada; Fútbol; Vulnerabilidad Social; Frontera.

1. INTRODUÇÃO
O presente artigo retrata o momento que a torcida do Corumbaense Futebol
Clube (CFC) vivenciou durante o ciclo da pandemia da Covid-19, especialmente
140
A torcida do corumbaense futebol clube e suas atividades sociais....
com o advento dos movimentos restritivos, iniciado em março de 2020, após a de-
claração da Organização Mundial da Saúde (OMS). Nesse período, o esporte, de
forma geral, deparou-se com diferentes impactos oriundos da pandemia, sendo que
os principais campeonatos de futebol acabaram suspensos ou canceladas, tanto no
Brasil quanto em outros países, deixando as torcidas longe dos estádios.
Assim, torcer neste período da pandemia modificou-se, sendo que uma das for-
mas de manter o sentimento pelo seu time de futebol passou a acontecer mais evi-
dentemente por meio de mobilizações e atividades sociais voltadas para pessoas em
situação de vulnerabilidade. Vasconcelos (2021, p. 197) afirma que isso é algo natu-
ral, inclusive diz que o “[...] torcedor necessita estar próximo a determinado clube,
como fã e componente de uma comunhão de sentimento”. Esse pertencimento, sen-
timento e ação social são vistos como algo salutar da torcida, sobretudo ao olharmos
as suas mobilizações sociais durante a pandemia voltadas para pessoas vulneráveis,
algo que houve grande engajamento por parte das torcidas de clubes brasileiros de
futebol. Em uma reportagem, Castro (2020) ressalta que houve várias mobilizações
de clubes com notória relevância no Brasil, tais como Vasco, Bahia e Corinthians,
sendo que eles viraram importantes agentes de atividades para a sociedade no perí-
odo desta pandemia da Covid-19.
Inserido nesse processo, notamos que a torcida do CFC, por exemplo, foi uma
das que realizaram diversas atividades sociais na região que está estabelecida na fron-
teira de Brasil e Bolívia. Assim, nosso estudo visa a abordar algumas matérias jorna-
lísticas sobre a torcida do CFC e também os trabalhos científicos que abordam a par-
ticipação da torcida em atividades sociais, especialmente direcionadas para pessoas
em situação de vulnerabilidade social durante o período da pandemia.
Ressaltamos que nossa motivação em abordar o tema foi o de demonstrar e en-
tender melhor as principais atividades sociais que a torcida organizada do CFC rea-
lizou no período da última pandemia, buscando compreender a sua presença e con-
tribuição social na região, algo que vai além das paixões pelo rendimento e/ou de-
sempenho clubista/esportivo. Assim, relatamos algumas das mobilizações realizadas
pela torcida do CFC, equipe fronteiriça que tem sede na cidade de Corumbá, no es-
tado de Mato Grosso do Sul (MS), time que já disputou partidas oficiais pelo campe-
onato estadual de futebol (MS) e também representou a região em competições na-
cionais.
141
Roberto César de Souza · Carlo Henrique Golin
2. ATIVIDADES SOCIAIS DA TORCIDA DO CFC NA REGIÃO
FRONTERIÇA BRASIL-BOLÍVIA
A região fronteiriça, aqui destacada, é formada pelas cidades sul-mato-grossenses
de Ladário e Corumbá, no Brasil, e Puerto Quijarro e Puerto Suárez, na Bolívia. Ao
destacarmos a região, necessitamos entender melhor o termo fronteira, que, concei-
tualmente, Santana (2018) esclarece que ela pode ser entendida como um lugar com-
plexo e dinâmico, que não é caracterizada pela rigidez, mas pela sua questão “po-
rosa”, visto que as interações, trocas e conflitos presentes na sociedade local geram
trocas e recriações recíprocas, ocorrendo uma espécie de “hibridismo cultural”.
Desta forma, a questão da fronteira apresenta-nos diversos elementos, tais como
a convivência, o pertencimento e a identidade, sendo que sobre esse aspecto, No-
gueira (2007, p. 32) entende que
[...] ‘ser da fronteira’ é o dado primordial para a discussão que queremos fazer. Ser de
algum lugar implica, também, uma relação de pertencimento e/ou identificação com
o lugar. Desse modo, deixa-se evidente a necessidade de pensar a fronteira como um
lugar, um lugar que como qualquer outro possui seu dado particular. O dado particu-
lar fundamental da fronteira é justamente o fato da convivência, regra geral aproxi-
mada, com o outro, com a diferença nacional, que remete aos símbolos próprios a
cada nação, a história, a cultura, ao nacionalismo.
Por isso, entendemos a importância da existência de uma “fronteira viva”, dinâ-
mica, que não exclui o limite internacional, mas que dela se constitui, aquela que
corre no cotidiano da comunidade fronteiriça. Parafraseando Machado (1998), po-
demos dizer que a fronteira aqui apresentada diferencia-se de limites internacionais,
na concepção de que a primeira é palco de vivências, experiências, conflitos e trocas;
já o limite denota-se que é uma linha que divide, que separa, resultante de acordos
internacionais. Assim, considerando que a fronteira é palco de múltiplas vivências,
sentimos a necessidade de inserir um debate em relação à torcida organizada do CFC
e entender sua contribuição na região fronteiriça aqui destacada. Haja vista que o
CFC apresenta uma torcida que acompanha seus jogos oficiais e contribui para a re-
alização de atividades voltadas para questões sociais.
Ressaltamos que o Clube, por estar em uma região fronteiriça, pode colaborar
com a realização de atividades sociais voltadas para pessoas vulneráveis. Nesse

142
A torcida do corumbaense futebol clube e suas atividades sociais....
sentido, vale lembrar que a zona fronteiriça apresenta diversos fluxos de mobilidade,
sendo um deles o movimento pendular de pessoas que vão e vêm entre os dois terri-
tórios nacionais (Brasil-Bolívia), tanto de brasileiros quanto de bolivianos. Outro
ponto é que a cidade de Corumbá-MS acaba exercendo certa centralidade desses mo-
vimentos, sendo ela um ponto importante de atração na região fronteiriça em estudo
(OLIVEIRA; LOIO, 2019).

Figura 1 – Localização da fronteira na região de Ladário/Corumbá (Brasil) e Pu-


erto Quijarro/Puerto Suárez (Bolívia)

Fonte: Google Earth (2018)

A facilidade da pendularidade na região pode ser visualizada pela Figura 1, que,


de certa forma, resume a proximidade das cidades que se localizam na fronteira, na
qual observamos um agrupamento de quatro cidades, sendo Ladário-MS e Co-
rumbá-MS (Brasil), Puerto Quijarro e Puerto Suarez (Bolívia). Dessa forma, enten-
der a presença da torcida organizada como elemento integrante da vida fronteiriça é
o propósito do estudo, algo que pode contribuir para produção de novos trabalhos
sobre atividades sociais voltadas para pessoas em situação de vulnerabilidade na
143
Roberto César de Souza · Carlo Henrique Golin
fronteira Brasil-Bolívia.
Segundo Zunino (2006), até mesmo torcedores são sujeitos que se auto identifi-
cam como simpatizantes, espectadores e/ou incentivadores de um determinado es-
porte, independentemente da condição de que este indivíduo pratique esta identifi-
cação como torcedor. Logo, é comum que os esportes mais populares tornem-se mais
atrativos para uma determinada cultura, como, por exemplo, no Brasil, onde o fute-
bol acaba atingindo diferentes camadas sociais. Para Neto, Campos e Silva (2020),
torcer tem grande significação entre os vários elementos que envolvem o universo
futebolístico. Por isso, podemos dizer, pegando emprestadas as palavras de Giulia-
notti (2002), que o “[...] futebol é uma das mais importantes entidades culturais,
como a educação e os meios de comunicação, que constituem e simbolizam identi-
dades nacionais”.
Podemos afirmar que esse “fenômeno da identidade”, de acordo com Neto, Cam-
pos e Silva (2020), sofreu com o período da pandemia, algo que afetou de maneira
significativa as vivências das torcidas de diferentes esportes no mundo, o que impac-
tou o ato de torcer por um clube de futebol. Sobre este tema, Vasconcelos (2021, p.
196) diz que as disputas “[...] que geralmente aglomeravam milhares de pessoas a
cada jogo de futebol, com a chegada da pandemia, se deparou com o silêncio”.
Portanto, torcedores pelo mundo tiveram que se reestruturar, já que, antes, por
exemplo, cantavam para incentivar seus clubes de coração nos complexos esportivos,
e passaram a desenvolver outras configurações de torcer e apoiar seu time, demons-
trando os seus sentimentos e suas paixões de outras formas. Assim, no contexto das
restrições, diferentes segmentos de torcidas no Brasil procuraram, diante das distin-
tas necessidades para realizar atividades sociais aos seus membros e/ou à comuni-
dade geral, ajudar na questão da vulnerabilidade social, com arrecadações, distribui-
ção de alimentos e de materiais de higiene, entre outros, e contribuir para amenizar
os impactos vividos nesse período pandêmico.
Mascari (2020) descreve que membros das torcidas organizadas de grandes clu-
bes do Brasil mobilizaram-se durante a pandemia de forma orgânica para ajudar al-
guns segmentos da sociedade, apesar da suspensão de campeonatos de futebol no
País. Desta forma, apesar do torcedor não poder gritar gol na arquibancada, o obje-
tivo principal foi o de se unir e propor atividades sociais, distribuindo alimentos,

144
A torcida do corumbaense futebol clube e suas atividades sociais....
itens de higiene e cobertores (MASCARI, 2020). Essas inúmeras ações demonstram
a importância dessas torcidas nas diferentes mobilizações de cunho social, indicando
que elas não foram criadas somente para ir aos estádios torcerem pelo seu time de
coração, mas também para uma interação sociocultural e comunitária. Ressaltamos
que, ao proporem, fomentarem e se mobilizarem para essas atividades sociais, cola-
boraram para um novo olhar sobre o torcedor, deixando de lado o estigma de que
uma torcida seria só estar presente em dias de jogos e provocar violência, passando a
desviar-se dos seus objetivos, sendo muitas vezes chamadas por adjetivos pejorativos,
sobretudo relacionados às torcidas organizadas.
Podemos notar que as atividades sociais foram uma das vias encontradas para
manter a identificação com o Clube, construída ao longo do tempo, não deixando a
torcida de estar presente e envolvida com o seu time. Rezende e Coelho (2010) rela-
tam que o sentimento é expresso para dar sentido a si mesmo; sendo assim, buscam
elementos para dar sentido à vida, logo o “pertencimento” a um determinado clube
e/ou torcida organizada acaba fazendo sentindo para a vida dessas pessoas.
Nesse aspecto de identidade e pertencimento, a participação dos torcedores do
CFC foi significativa na sua região, pois compreenderam a necessidade de realiza-
rem-se atividades sociais durante a pandemia, mobilizando ações locais e que envol-
viam a população vulnerável da fronteira Brasil-Bolívia. Evidenciamos que a torcida
organizada do CFC apresenta-se participativa em todas as atividades do Clube, sem-
pre expressando seus sentimentos e paixões. Temos como exemplo os dias de jogos
do time, que geralmente têm o maior público em partidas pelo campeonato estadual
de futebol de Mato Grosso do Sul, conforme Albertoni (2016, n.p.) descreve em uma
ocasião histórica do CFC:
A média de torcedores nos jogos em casa do alvinegro pantaneiro na primeira fase do
Estadual deste ano é de 1.937 torcedores. Em 2015 foi de 1.753 nos cinco jogos da
primeira fase no estádio Arthur Marinho. Em um comparativo feito pelo Diário Co-
rumbaense com a Capital, faltando um jogo para o fim da penúltima rodada da com-
petição, as estatísticas mostram que o Carijó da Avenida levou mais pessoas ao Arthur
Marinho que todas as três equipes de Campo Grande juntas. O público presente nos
5 jogos realizados no estádio corumbaense foi de 9.689 pessoas, enquanto na Capital
foi de 7.381 nas 14 partidas realizadas no Jacques da Luz.
Por isso, entendemos que, ao estudar a força de uma torcida organizada que está
145
Roberto César de Souza · Carlo Henrique Golin
sempre presente apoiando em todas as partidas, a identificação com o Clube em cada
jogo e as ações sociais realizadas levaram o seu torcedor a se sentir como membro
integrante daquela comunidade específica, o sentimento de fazer parte do time, do
Clube. Assim sendo, o aspecto passional acaba aflorando, criando uma relação forte
de fidelidade entre o torcedor e o clube (SOUZA, 2004).
Teixeira (2000, p. 108) colabora dizendo que atributos que determinam o com-
portamento do “ser torcedor”, a paixão e a fidelidade estão relacionadas no mo-
mento de fazer a escolha para torcer por um determinado clube, passando a “[...]
amá-lo, segui-lo, defendê-lo, vibrar com suas conquistas, afligir-se com seus fracas-
sos”. Portanto, podemos aqui relacionar estes estudos sobre a torcida organizada do
CFC na região como algo que se apresenta como a fidelidade em apoiar o Clube, seja
antes, seja durante os seus jogos oficiais.

Figura 2 – Torcida em dia de jogo do CFC no Estádio Arthur Marinho

Fonte: Ricardo Albertoni (http://www.diarionline.com.br/?=noticia&id=83970)

Para ilustrar, podemos ver na Figura 2 o volume de torcedores participando de


um jogo oficial do CFC em 2017. Este momento retrata, em parte, a paixão que o

146
A torcida do corumbaense futebol clube e suas atividades sociais....
torcedor da região tem pelo time do CFC, bem como descreve certa nostalgia quanto
ao futebol do interior, sendo aquele local um espaço de estádio pequeno, com torce-
dores nos alambrados, a presença do pipoqueiro e de outros ambulantes, algo que,
em dia de jogo, proporciona o sentimento de pertencimento local, característico em
diferentes rincões brasileiros.
No Brasil, de acordo com Salles (1998), o futebol é uma referência de lazer na vida
das pessoas, inclusive para as mais variadas classes sociais, seja em sua prática como
torcedor, seja como jogador. Na atual sociedade, torcer, tanto para os times regionais
quanto para as seleções nacionais, simboliza, culturalmente, uma forma de se expres-
sar e, logo, uma identificação social (WACHELKE et al., 2008).
Nessa perspectiva, um verdadeiro “torcedor” no Brasil, palavra que deriva do
verbo “torcer”, resultante da representação corporal de se “retorcer”, “entortar”
(DA MATTA, 1994), é empregada, não raramente, como sinônimo de “sofredor”,
sendo que, ao torcer, sua identificação aflora-se e criam-se laços de sentimentos com
o clube para o qual escolheu torcer. Contudo, é a partir deste “sofrimento” que o
torcedor passa a vivenciar o cotidiano do seu time, agora de “coração”, algo que
acaba inserido nas suas atividades cotidianas que são relacionadas ao time.
Retornando, ao falarmos do ato de torcer e de ter uma identificação com o Clube,
seja em dias de jogos, seja nas atividades sociais, a torcida do CFC também se orga-
nizou e demonstrou seu sentimento de pertencimento ao Clube, realizando ativida-
des voltadas ao enfrentamento dos impactos sociais da pandemia na comunidade lo-
cal. Desta forma, as mobilizações fraternas na região de fronteira foram determinan-
tes para auxiliar as pessoas em situação de vulnerabilidade social durante o período
da pandemia da Covid-19.

147
Roberto César de Souza · Carlo Henrique Golin
Figura 3 – Membros da Torcida Jovem Corumbá (TJC) em ações sociais

Ação antes da pandemia Ação durante a pandemia

Fonte: Facebook da Torcida Jovem Corumbá (TJC)

É importante considerar que essa preocupação social, na região, por parte da Tor-
cida do CFC, denominada Torcida Jovem Corumbaense (TJC), vinha sendo reali-
zada bem antes do período pandêmico, proporcionando arrecadação de alimentos e
roupas para serem doados aos necessitados. Inclusive, houve o apoio de um grupo
de escoteiros para ajudar na coleta e distribuição dos materiais que levam alento aos
mais necessitados. Já no período da pandemia, também foram realizadas atividades
sociais logo após o início da vacinação, como podemos observar na Figura 3 à direita,
na qual apenas o padre usa máscara, e um dos integrantes com a camisa da torcida
distribui sacolas de São Cosme e Damião, ofertadas para crianças da região frontei-
riça.
Essas ações possibilitam a torcida em ser um instrumento utilizado para estimular
e agregar atividades sociais por agremiações de futebol, contribuindo com o acesso a
sujeitos vulneráveis. A motivação de cada membro também contribui nessas ativida-
des sociais, nas quais cada participante envolve-se, estimula-se a ajudar e acaba de-
monstrando o pertencimento ao seu time. Nesse sentido, a motivação em ajudar
acaba por retratar a satisfação pessoal em fazer a tarefa proposta e demonstra sensa-
ções oriundas da própria atividade realizada (WEINBERG; GOULD, 2001).
O pertencer clubístico é uma particularidade identitária própria e muito presente
na esfera do futebol, cuja ligação e fidelidade ao time são tidas como “[...] um valor
148
A torcida do corumbaense futebol clube e suas atividades sociais....
incorporado à cultura futebolística que atravessa fronteiras geográficas e sociais”
(DAMO, 2005, p. 61). Sendo assim, esse elo de pertencimento, uma vez constituído,
torna-se, na maioria das vezes, inalterável para o torcedor que se propõe a ajudar o
seu clube em todos os momentos. Essa noção coletiva e de pertencimento pôde ser
vista durante a pandemia, em que as torcidas propuseram-se a buscar formas de
apoiar seu time – torcer – e, ao mesmo tempo, realizar ações sociais nas quais o seu
Clube estava inserido.
Ressaltam Neto, Campos e Silva (2020) que, nesse período da pandemia, houve
prejuízos financeiros imensos, principalmente para os clubes que não puderam ter
mais a renda da bilheteria. Gargalo que foi sentido e vivido pelo próprio CFC, que
teve suas finanças afetadas por causa da pandemia, além dos problemas internos, o
que o afastou por completo do campeonato de futebol sul-mato-grossense de 2020.
Cabral (2020, n.p.) relata, em matéria jornalística feita com a entrevista do diretor de
futebol do CFC, que
[...] a questão financeira é o motivo da desistência da próxima fase do campeonato,
que foi paralisado há cerca de oito meses por causa da pandemia do novo coronavírus
[...]. O diretor de futebol profissional disse que tudo foi feito para manter o Corum-
baense na disputa. ‘A pandemia prejudicou os principais parceiros e o clube não con-
seguiu manter um bom patrocinador que bancasse o salário, estadia e alimentação
dos jogadores. Resolvemos recuar nesse momento para que, no ano que vem, possa-
mos tentar viabilizar um futebol de qualidade’, justificou.
Igualmente, como o “Carijó da Avenida”, outros clubes de futebol também aca-
baram sendo prejudicados em níveis e contextos diferentes, inclusive não só no lado
financeiro, envolvendo os patrocinadores, mas também da renda de bilheteria, que é
uma das fontes de recursos para o clube fazer pagamentos de atletas e funcionários,
bem como outros compromissos firmados antes e durante o campeonato. Por outro
lado, o torcedor, diante desse cenário, não deixou de estar presente na vida do Clube,
apesar das “novas” formas de torcer, inclusive ao se envolverem nas mobilizações
que foram feitas com o intuito de proporcionar ajuda às pessoas que sofreram com a
pandemia da Covid-19, haja vista que alimentos foram distribuídos durante esse pe-
ríodo, possibilitando também captar novos torcedores, com o intuito de até possibi-
litar que se firmassem como membros ativos dentro do Clube. Podemos dizer que
isso foi observado nas redes sociais da torcida, em sua página oficial, na qual houve
149
Roberto César de Souza · Carlo Henrique Golin
diferentes engajamentos dos torcedores. Por isso, ao analisarmos os impactos, com-
preendemos que as atividades da torcida organizada do CFC foram importantes, algo
que talvez necessite ser mais estimulado e apoiado por diferentes segmentos sociais
para que possam ser constantes na região fronteiriça Brasil-Bolívia.
Diante dessas perspectivas, o estudo prévio aqui apresentado sobre as mobiliza-
ções e atividades sociais das torcidas frente à pandemia poderá servir como orienta-
ção de propostas para mais engajamentos sociais para além dos torcedores do CFC,
envolvendo outros agentes sociais.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
As mobilizações realizadas apontam e reafirmam a importância assumida pela
torcida de futebol na sociedade contemporânea, uma vez que, mesmo diante de uma
pandemia, a vulnerabilidade de pessoas que perderam seus empregos e/ou tiveram
outros problemas sociais que afetaram suas vidas tornou-se preocupação para os
membros de diferentes torcidas no Brasil. Portanto, as atividades sociais das torcidas
organizadas brasileiras de futebol para o sujeito vulnerável, em tempo de pandemia,
trouxeram novas formas de se vivenciarem as experiências como torcedor, propor-
cionando um envolvimento maior com a comunidade e, ainda, possibilitaram des-
mitificar o entendimento sobre a torcida pela sociedade, de uma forma geral, como
algo que vai além de simplesmente torcer, ou identificada com atitudes de agressão
e violência.
Com base na realização do presente estudo sobre as atividades sociais voltadas
para pessoas vulneráveis realizada pela torcida organizada do CFC, identificamos
que, dentre as matérias e estudos abordados, a participação e o engajamento pelos
seus membros em atividades sociais foram efetuados de forma salutar. Mesmo que,
vale ressaltar, sendo encontrado pouco material documental sobre a torcida em re-
gião de fronteira, em especial sobre o CFC.
Outro ponto é que, quando falamos em torcida organizada, logo associamos à vi-
olência que rotineiramente acontece e que é noticiada em partidas de futebol pelo
Brasil. Porém não devemos apenas absorver o que vemos negativamente. Devemos
entender que muitas torcidas são estigmatizadas pelas atitudes de membros que rom-
pem com o verdadeiro sentido de ser um torcedor, algo que acaba sendo evidenciado
150
A torcida do corumbaense futebol clube e suas atividades sociais....
negativamente pela sociedade, ficando muitas vezes apagada a sua importância
quando desenvolve as suas atividades sociais nas comunidades.
Nesse contexto, devemos sempre transmitir à sociedade que as torcidas organiza-
das também se mobilizam para proporcionar atividades sociais em prol da sua co-
munidade. Por isso, a título de exemplo local, podemos colocar a torcida organizada
do CFC e seus integrantes, que se mobilizaram para efetuar atividades sociais, como
a doação de roupas e a distribuição de alimentos para crianças na região fronteiriça
Brasil-Bolívia, como algo que causou impacto positivo na sua região.
Ressaltamos que, mesmo em um cenário extremamente grave que a pandemia
gerou na sociedade, as mobilizações das torcidas, sejam elas de clubes considerados
de grande poder aquisitivo, seja nos de menor investimento, trouxeram alento, com
importantes inciativas voltadas para uma parcela da sociedade que foi prejudicada
nesse período. Por fim, fica evidente que o processo de ser membro de uma torcida
organizada e, principalmente, por participar das atividades dela, possibilitou a efeti-
vação das mobilizações sociais na região, com as ações de torcedores do CFC, e que
continuam se organizando para propor meios de mitigar os impactos sociais para as
pessoas vulneráveis na região.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALBERTONI, Ricardo. Estadual: Corumbaense leva mais torcedores ao estádio que
os três times da Capital juntos. Diário Corumbaense, Corumbá, 30/3/2016. Dis-
ponível em: https://www.diarionline.com.br/?s=noticia&id=83970. Acesso em: 4
jun. 2022.
ALBERTONI, Ricardo. Três ônibus vão levar parte dos torcedores do Corumbaense
para final do Estadual. Diário Corumbaense, Corumbá, 30/3/2016. Disponível
em: https://www.diarionline.com.br/?s=noticia&id=101441. Acesso em: 5 jun.
2022.
CABRAL, Leonardo. Corumbaense desiste das quartas de final do Estadual de 2020
por problemas financeiros. Diário Corumbaense, Corumbá, 26/11/2020. Dispo-
nível em: https://www.diarionline.com.br/?s=noticia&id=121138. Acesso em: 21

151
Roberto César de Souza · Carlo Henrique Golin
jun. 2022.
CASTRO, Helton de. Futebol x Covid-19: como gigantes mobilizam as torcidas em
causas sociais em tempos de pandemia. GE, Recife, 8/4/2020. Disponível em:
https://ge.globo.com/pe/futebol/noticia/futebol-x-covid-19-como-gigantes-mo-
bilizam-as-torcidas-em-causas-sociais-em-tempos-de-pandemia.ghtml. Acesso
em: 28 jun. 2022.
DA MATTA, Roberto. Antropologia do óbvio: notas em torno do significado social
do futebol brasileiro. Revista USP. São Paulo, v. 22, jun./ago., p. 10-17, 1994.
DAMO, Arlei Sander. Do dom à profissão – Uma etnografia do futebol de espetá-
culo a partir da formação de jogadores no Brasil e na França. Tese de Doutorado.
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Instituto de Filosofia e Ciências Hu-
manas. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social) – Porto Alegre,
2005.
GIULIANOTTI, Richard. Sociologia do futebol: dimensões históricas e sociocultu-
rais do esporte das multidões. São Paulo: Nova Alexandria, 2002.
MACHADO, Lia Osório. Limites, fronteira, redes, In: STROHAECKER, Tânia Mar-
ques, et al. (Orgs.). Fronteira e espaço global. Porto Alegre: AGB-Porto Ale-
gre,1998, p. 41-43.
MASCARI, Felipe. Torcidas organizadas promovem ações sociais durante a pande-
mia. Rede Brasil Atual, São Paulo, 2/6/2020. Disponível em: https://www.rede-
brasilatual.com.br/cidadania/2020/06/torcidas-orgaizadas-doações/. Acesso em:
28 jun. 2022.
NETO, Georgino Jorge de Souza; CAMPOS, Priscila Augusta Ferreira; SILVA, Silvio
Ricardo. Reflexões acerca do torcer a partir da pandemia do novo coronavírus.
Revista do Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Estudos do Lazer –
UFMG. Belo Horizonte, v. 23, n. 4, dez. 2020.
NOGUEIRA, Ricardo José Batista. Fronteira: espaço de referência identitária?
Ateliê Geográfico, Goiana-GO, v. 1, n. 2, p. 32, dez. 2007.
OLIVEIRA, Marco Aurélio Machado de; LOIO, Joanna Amorim de Melo Souza. Mi-
gração internacional pendular em fronteira: em busca de qualificações espaciais.
Revista Videre, Dourados, MS, v. 11, n. 21, p. 54-67, jan./jun. 2019. Disponível
152
A torcida do corumbaense futebol clube e suas atividades sociais....
em: https://ojs.ufgd.edu.br/index.php/videre/article/view/9069/5159. Acesso em:
27 jun. 2022.
REZENDE, Claudia Barcellos; COELHO, Maria Claudia Pereira. Antropologia das
emoções. FGV de Bolso – Série Sociedade & Cultura. Rio de Janeiro: Editora FGV,
2010.
SALLES, José Geraldo do Carmo. Futebol – Um lazer mágico da cultura brasileira.
Motus Corporis, v. 5, n. 1, p. 42-56, maio 1998.
SANTANA, Maria Luzia da Silva. Práticas pedagógicas na região de fronteira: um
olhar a partir de escolas de Ponta Porã. Educação, v. 43, n. 1, p. 75-88, 2018. Dis-
ponível em: https://www.redalyc.org/journal/1171/117157483007/html/. Acesso
em: 28 jun. 2022.
SOUZA, Carlos Alberto Gil de. A atividade de relações públicas no futebol brasi-
leiro. Monografia (Escola de Comunicações e Artes Departamento de Relações
Públicas, Propaganda e Turismo – Curso de Pós-Graduação Especialização em
Gestão Estratégica em Comunicação Organizacional e Relações Públicas). Uni-
versidade de São Paulo. São Paulo, 2004.
TEIXEIRA, Rosana da Câmara. Torcidas Jovens: paixão, amizade e aventura. In: AL-
VIM, Rosilene; GOUVEIA, Patrícia (Orgs.). Juventude anos 90: conceitos, ima-
gens, contextos. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2000.
VASCONCELOS, Pedro. Estádios vazios: o torcer em pandemia. Revista Acta Se-
miotica, Revistas PUC-SP. 5 dez. 2021. Disponível em: https://revis-
tas.pucsp.br/index.php/actasemiotica/article/view/54175. Acesso em: 28 jun.
2022.
WEINBERG, Robert S.; GOULD, Daniel. Fundamentos da psicologia do esporte e
do exercício. 2.ª ed. Porto Alegre: Artmed, 2001.
WACHELKE, João Fernando Rech et al. Mensuração da identificação com times de
futebol: evidências de validade fatorial e consistência interna de duas escalas. Ar-
quivos Brasileiros de Psicologia, v. 60, p. 96-111, 2008.
ZUNINO, Rafael. Comportamento de compra de torcedores de clubes de futebol: um
estudo da aquisição de produtos dos patrocinadores. II EMA – Encontro de Mar-
keting da Anpad, Rio de Janeiro-RJ, 3 a 5 de maio de 2006, Rio de Janeiro. Anais
153
Roberto César de Souza · Carlo Henrique Golin
II EMA, Brasília: Anpad, 2006.

__________________________________________________
SOUZA, Roberto César de; GOLIN, Carlo Henrique. A torcida do corum-
baense futebol clube e suas atividades sociais na região fronteiriça brasil-
bolívia. In: OLIVEIRA, Marco Aurélio Machado de; (Org.). Anais do I
Congresso do Migrafron. Uberlândia: Marco Teórico, 2022. pp. 139-154.
__________________________________________________

154
TRAJETÓRIAS E VIVÊNCIAS DE PRAZER E
SOFRIMENTO DE TRABALHADORES
INFORMAIS NA FRONTEIRA BRASIL-BOLÍVIA

8
Marco Aurelio Machado de Oliveira
Isadora Sigarini de Moraes

RESUMO:
Este estudo é uma reflexão acerca da polissemia da fronteira e surgiu do desejo dos
autores por aprofundar conhecimentos acerca da atividade laboral de trabalhadores
informais de origem boliviana, que trabalham do lado brasileiro da fronteira e são
migrantes pendulares que transitam diariamente neste espaço fronteiriço. O objetivo
é compreender as vivências de prazer e sofrimento de trabalhadores informais na
cidade fronteiriça de Corumbá-MS, caracterizar o processo de trabalho informal re-
lativos à organização do trabalho, condições materiais e relações socioprofissionais
estabelecidas em um espaço permeado pela fronteira, identificar aspectos e sinais de
sofrimento patogênico nos trabalhadores informais. Metodologicamente foi explo-
rada a revisão bibliográfica. A partir desse estudo é possível dar visibilidade a esses
indivíduos que estão à margem da formalidade do trabalho e invisíveis ao poder pú-
blico. Conclui-se que é importante iluminar a percepção no que tange transforma-
ções decorrentes dos acontecimentos atuais no mundo do trabalho.

155
Marco Aurelio Machado de Oliveira · Isadora Sigarini de Moraes
PALAVRAS-CHAVE:
Fronteira. Trabalhadores informais. Sofrimento.

RESUMEN:
Este estudio es una reflexión sobre la polisemia de la frontera y surgió del deseo de los
autores de profundizar en el conocimiento sobre la actividad laboral de los trabajado-
res informales de origen boliviano, que trabajan en el lado brasileño de la frontera y
son viajeros que transitan diariamente en esta frontera. espacio. El objetivo es com-
prender las experiencias de placer y sufrimiento de los trabajadores informales en la
ciudad fronteriza de Corumbá-MS, para caracterizar el proceso de trabajo informal
relacionado con la organización del trabajo, las condiciones materiales y las relaciones
socioprofesionales establecidas en un espacio permeado por la frontera, para identifi-
car aspectos y signos de sufrimiento patógeno en trabajadores informales. Metodológi-
camente, se exploró la revisión de la literatura. A partir de este estudio es posible dar
visibilidad a aquellos individuos que se encuentran al margen de la formalidad del
trabajo e invisibles ante el poder público. Se concluye que es importante iluminar la
percepción acerca de los cambios resultantes de la actualidad en el mundo del trabajo.

PALABRAS-CLAVE:
Frontera. trabajadores informales. Sufrimiento.

1. INTRODUÇÃO
A fronteira seca e a proximidade geográfica dos municípios fronteiriços de Co-
rumbá e Puerto Quijarro possibilitam significativo fluxo de pessoas e as cidades com-
partilham entre si atividades cotidianas e constantes relativas à comercialização de
produtos alimentícios e de bens de consumo, possibilitando trocas culturais e sociais.
(ARAÚJO; JULIANO; SILVA, 2017).
O espaço fronteiriço abriga a pluralidade sociocultural (PEITER, 2005) e o vo-
lume de interações que coexiste nesse ambiente cria forma ao agregar elementos a
partir da mistura entre as nacionalidades dos países envolvidos (MACHADO et al.,
156
Trajetórias e vivências de prazer e sofrimento de trabalhadores informais...
2005), embora nem sempre haja unificação harmônica dessas partes. (SANTOS,
1998).
Dessa maneira, observa-se a necessidade de pensar a fronteira interpretada atra-
vés da compreensão que seus habitantes possuem (NOGUEIRA; DAL PRA; FERMI-
ANO, 2007), sendo que é um ambiente de mutação transnacional, nutrida na susten-
tabilidade da economia informal, mas funcional, com possibilidades ao desenvolvi-
mento de atividades binacionais fundamentado em um sistema de redes de coopera-
ção local e regional. (LOIO, 2018).
A informalidade segue atrelada à condição de trabalho precário, pois mescla prá-
ticas legais e ilegais, baixa proteção social, rápida adaptação do sujeito às oportuni-
dades do mercado, flexibilidade nos processos de trabalho e formas de remuneração,
falta de garantias e geralmente são constituídas como alternativa para se gerar renda
diante do desemprego. (MORRONE; MENDES, 2003).
De acordo com Dejours (1992), as relações no ambiente de trabalho envolvem
todos os laços construídos nesse espaço, que podem ser agradáveis ou desagradáveis,
afetando o indivíduo e gerando sofrimento, pois a realidade fere o psiquismo hu-
mano. (MORAES; SILVA, 2015).
O contexto do trabalho envolve aspectos pessoais, organizacionais e sociais, que
repercutem na vida dos trabalhadores informais. As mudanças e a flexibilização no
processo produtivo incrementaram a precarização nas relações contratuais e o de-
semprego, atingindo a subjetividade do sujeito contemporâneo, já que a configura-
ção do mundo do trabalho é marcada pela necessidade do indivíduo se manter em-
pregado, o que faz cada vez mais pessoas assumirem postos de trabalho não regula-
mentados. Com isso, as pessoas devem apresentar características de competitividade
e aceitar baixos salários para se verem inseridas no mundo do trabalho. (VASCON-
CELLOS, 2017).
Segundo Carmo et al. (2021), a ideia do empreendedorismo, que está por trás dos
pequenos comerciantes informais, consiste em uma ideologia neoliberal que flexibi-
liza regras e direitos trabalhistas, transformando seres humanos em instrumentos e
resultados, operacionalizada pelo autogerenciamento. Contemporaneamente, o co-
tidiano de mudanças rápidas e concorrências acirradas corrobora para que se sintam

157
Marco Aurelio Machado de Oliveira · Isadora Sigarini de Moraes
acuados e defasados em relação ao mercado de trabalho. (MORAES; SILVA, 2015).
Nesse contexto, a pressão organizacional pode levar o trabalhador ao sofrimento
psíquico, o que afeta suas relações no trabalho e fora dele, ou seja, sua a qualidade de
vida, já que o fenômeno da informalidade, segundo Uchôa-de-Oliveira (2020) se
avoluma e aos trabalhadores são impostos os ideias liberais, em que a integração
individual no mercado de trabalho é predominante e para sua inserção adequada
nesse ideal de perfeição, o trabalhador deve aprender a se autogerir, empreender,
competir, tornar-se empregável, investir em si mesmo, estar em constante formação
e tomar para si todos os riscos de seu trabalho.
Permeado a tal concepção, doenças ocupacionais encontram meio adequado para
instalação, o sofrimento psíquico implica luta do sujeito contra forças em direção à
doença mental. Ao instalar-se o conflito entre a organização do trabalho e o funcio-
namento mental emerge o sofrimento patogênico. (DEJOURS, 2000).
A organização do trabalho, distribuição de responsabilidades, hierarquia, co-
mando e controle, incide no funcionamento psíquico. Dessa maneira o estudo da
saúde mental em trabalhadores informais desta área fronteiriça se faz importante, a
qualidade e expectativa de vida dos cidadãos da fronteira precisa ser cuidado, haja
vista a grande quantidade de trabalhadores em situação de precariedade, sem víncu-
los nem direitos trabalhistas.
Para além da própria situação já bem complicada, a pandemia do COVID-19 adi-
cionou novos fatores ao cenário de incertezas (MOURA; FURTADO; SOBRAL,
2020), criou desafios únicos para os trabalhadores em todo o mundo, que se arriscam
e ficam expostos ao vírus, mas principalmente na contemporaneidade da desinfor-
mação e hostilidade é necessário reconhecer as áreas fronteiriças como espaço de ur-
gência nas configurações políticas e colocá-la em pauta humanitária, descriminali-
zada e acolhedora. (OLIVEIRA, 2019).
Desse modo, é importante destacar que ao se tratar de populações vulneráveis em
crises humanitárias, somente diretrizes baseadas em evidências não são suficientes,
necessita-se inventividade enxergando a fronteira como lugar heterogêneo, onde pa-
drões não são bem-vindos (BERGER et al., 2020). Utiliza-se Sayad (1998) para com-
preender o cidadão transfronteiriço enquanto sujeito que é tratado como “problema
social” advindo de discursos impostos sobre ele a partir de sua condição de moradia,

158
Trajetórias e vivências de prazer e sofrimento de trabalhadores informais...
emprego, vagas nas escolas, acesso à saúde e segurança pública.
A condição de trabalho informal na qual estão inseridos estes cidadãos segundo
Bernardino e Andrade (2015) gera insatisfação e pouco retorno financeiro, condi-
ções que dificultam o acesso à saúde, educação, boa alimentação, e assim diminui a
qualidade de vida do indivíduo. Portanto, é necessário demarcar o conjunto de fato-
res e vivências que podem desencadear o sofrimento psíquico e que se fazem presen-
tes na realidade desse cidadão transfronteiriço que faz do trabalho informal o seu
sustento, bem como a correlação, desses desencadeantes com a área fronteiriça que
envolve tanto aspectos simbólicos da realidade ocupacional que afetam a vivência em
geral. (LIMA, 2007).

2. OBJETIVOS
Geral:
Compreender as vivências de prazer e sofrimento de trabalhadores informais na
cidade fronteiriça de Corumbá-MS.

Específicos:
● Caracterizar o processo de trabalho informal nos aspectos relativos à orga-
nização do trabalho, às condições materiais e relações socioprofissionais es-
tabelecidas em um espaço permeado pela fronteira.
● Identificar aspectos e sinais de sofrimento patogênico nos trabalhadores in-
formais.

3. METODOLOGIA
A revisão bibliográfica é um dos procedimentos mais relevantes nesta pesquisa.
Para tentar dar conta dessa etapa algumas categorias necessitarão pautar nossos es-
tudos, como: migração internacional, fronteira e trabalho informal nesse contexto
social e espacial. Autores como Machado (2005), Porto (2019), Loio (2018), Lima

159
Marco Aurelio Machado de Oliveira · Isadora Sigarini de Moraes
(2004), serão muito importantes nesse procedimento metodológico.

4. DESENVOLVIMENTO
4.1 PSICODINÂMICA DO TRABALHO NO TRABALHO INFORMAL
Entender o trabalho auto empreendedor dos migrantes e como o auto empreen-
dedorismo se relaciona aos valores neoliberais de ser auto gestor do seu corpo e sua
mente para dar conta do que é exigido no mundo do trabalho frente a precarização
de não ter um trabalho formal e de como isso assola a subjetividade no sentido de
não permitir a constituição de uma categoria de profissionais que seja alcançado por
políticas públicas e pela justiça. Refletindo sobre o contexto do mundo do trabalho
no Brasil e as diversas maneiras de ser expresso, pensar a informalidade e as precari-
edades que os trabalhadores desta modalidade experienciam, fazer um breve histó-
rico a fim de entender a panorama da informalidade no contexto do trabalho.
O fenômeno da informalidade no contexto do trabalho, impacta na saúde dos su-
jeitos que vivem essa forma de trabalho que reflete sobre aspectos da saúde mental,
devido a relação que há entre a cultura e o mundo psíquico, já que este pode transferir
informações ao mundo externo. (MARTINS-BORGES, 2013).
A recente crise global nos faz presenciar no contexto do trabalho, o desperdício
da força e inteligência humana, bem como, a corrosão do trabalho contratado e re-
gulamentado. Vive-se agora a ampliação de grandes contingentes que se precarizam
ou perdem seu emprego e o surgimento de novos modos de sobretabalho, paralela-
mente a expansão de profissionais capazes de operar o maquinário avançado e pra-
ticar atividades dotadas de maiores qualificações que ativa e efetivamente agrega va-
lor. Percebe-se que na contemporaneidade do trabalho todos os espaços existentes
precisam ser convertidos em geradores de mais-valor. (ANTUNES, 2014).
O Brasil encontra-se sob um regime democrático em que se supõe que há entre as
pessoas equidade e liberdade, nesse sistema, o reconhecimento do sofrimento requer
pensar que é possível sentir empatia pela experiência que o outro ser humano viven-
cia. Dessa forma, na perspectiva da psicossociologia do trabalho, para a escuta ativa
e efetiva do sofrimento do outro precisasse reconhecer o próprio, implicando assim,
um duplo movimento. Necessita-se tomar em conta o conjunto dos atravessamentos

160
Trajetórias e vivências de prazer e sofrimento de trabalhadores informais...
que afetam esse processo, e aqui nesse ensaio vamos considerar o contexto situacio-
nal. (CARRETEIRO, 2014).
A escuta na perspectiva clínica é um dispositivo central na psicodinâmica do tra-
balho, analisando o espaço, o tempo, as condições e os limites de possibilidades pre-
sentes nas organizações e instituições onde ocorrem. Escutar é poder permitir os des-
dobramentos na dualidade do trabalho no campo laboral, o prescrito e o real. (CAR-
RETEIRO, 2014).
O trabalho real se deixa conhecer por aquele que trabalha por sua resistência aos
procedimentos, técnicas e prescrições. O mundo real confronta o sujeito levando-o
ao fracasso e provocando uma experiência dolorosa, desagradável, com sentimentos
de impotência ou angústia, até mesmo de irritação, raiva, decepção ou desânimo.
Dessa forma, entende-se que é sempre afetivamente que o real do mundo se mani-
festa para o sujeito. (DEJOURS, 2012).
“A princípio, portanto, trabalhar é fracassar, trabalhar é sofrer. E a solução é um
produto direto do sofrimento no trabalho” (DEJOURS, 2009, p. 51), visto que é a
partir do sofrimento que surge a intuição, o progresso possível. Se trabalhar é fracas-
sar, isso significa que no trabalho a normalidade supõe sempre a existência de sofri-
mento. No entanto, a normalidade não implica ausência de sofrimento. No entanto,
esse sofrimento afetivo do encontro com o real não é uma última consequência, mas
o ponto de partida. É um meio para o sujeito transformar o sofrimento encontrando
formas de superação da resistência do real. (DEJOURS, 2007).
Assim, o sofrimento sob esta abordagem, é fruto da organização do trabalho e
sempre estará presente, o que diferencia é saber escutar se o sofrimento é patológico
ou não, e para tanto é imprescindível em contextos laborais identificar os mecanis-
mos de defesas coletivas que podem estar presentes para a manutenção da organiza-
ção de trabalho, ressaltando que para poder ser escutado não deve ser abstraído das
condições organizacionais que o engendraram e sustentam. (CARRETEIRO, 2014).
O que se deve ressaltar é que ultimamente as mudanças sociais são aceleradas e
dessa forma, são também fortes e velozes as decorrentes transformações no contexto
do trabalho, as modificações nas atividades laborais têm atingido todo e qualquer
trabalhador, além de contribuir para a construção de ambientes favoráveis ao

161
Marco Aurelio Machado de Oliveira · Isadora Sigarini de Moraes
sofrimento. (CARRETEIRO, 2014).
Na era da hipermodernidade, em que vivemos hoje atravessadas pelo excesso nas
questões do trabalho, devido ao contexto contemporâneo em que o mundo do tra-
balho está inserido, no qual submete o trabalhador a uma série de exigências que
demonstram consequências na subjetividade dos trabalhadores. (CARRETEIRO,
2014).
O conceito de temporalidade ganha posição de destaque na hipermodernidade,
pois realizar tarefas em menor tempo compõe uma das exigências sobre os trabalha-
dores. A produtividade, para tornar os trabalhadores mais rentáveis, está associada.
Assim, a flexibilidade do tempo, dos trabalhos e maior e melhor rentabilidade são
características tão poderosas que exercem cada vez mais uma pressão crescente sobre
os trabalhadores. Ainda se observa, atualmente, o elemento especulativo, que assu-
miu uma enorme presença. Assim, a lógica de que capital gera capital acarreta o mo-
delo, em que tudo é pensado em termos mercadológicos, o mercado é o grande dita-
dor, diminuindo à mediação da produção de mercadorias. Afinal o ideário neolibe-
ral, nesta contemporaneidade, prega que é necessário ser um sujeito empreendedor
em todos os níveis da vida. (CARRETEIRO, 2014).
Nesse conjunto, a excelência ainda é outra exigência que o trabalhador precisa
cumprir, para sempre ser melhor, se superar, cumprir as indicações da organização
onde trabalha. Já que o ideal é que se alcance sempre mais. Junto a estes fatores, no
contexto do trabalho pode-se observar que o individualismo, adquiriu local de pres-
tígio e o indivíduo experimenta posições fragmentadas e isoladas, em decorrência da
competitividade acirrada e incorporada aos moldes empresariais. Aspecto que é
grandemente corroborado pelas novas ideologias de gestão que promovem o traba-
lho por tarefas, nas quais o indivíduo deve se apoiar, cada vez mais, sobre si próprio,
se pode resolver tudo a todo momento. (CARRETEIRO, 2014).
Observa-se então, a fragilização nos coletivos de trabalho, dando lugar a um mo-
delo de gestão que não prioriza a equipe e destaca o individualismo, valoriza as metas
e desempenhos individuais, enfatiza valores de excelência, permanente avaliação por
desempenho e dessa forma, os trabalhadores sentem continuamente os efeitos da
avaliação sobre as atividades que realizam.
A virtualidade que dá a sensação de que espaço e tempo se comprimiram, se

162
Trajetórias e vivências de prazer e sofrimento de trabalhadores informais...
obtém o conhecimento imediato do que acontece mundialmente o todo tempo.
Nessa lógica, aos trabalhadores não se permite tempo para descanso mental e físico,
o que causa estresse e todas as patologias que rondam a saúde do trabalhador. A in-
venção contínua de novas e modernas tecnologias incidem sobre a perspectiva tem-
poral, já que os sujeitos vivem em um presente contínuo, o que Hamraoui (2013),
denomina de presenteísmo.
Agrega-se, a todo este conjunto de fatores, que podem desencadear um ambiente
mental hostil, a ideia da expansão contínua da subjetividade, já que as modernas tec-
nologias favorecem estar virtualmente em vários lugares e realizar várias atividades
simultaneamente, o que coopera para trabalhadores muito mais exigidos pois devem
poder realizar mais. (BARNES-HOLMES, D. et al. (2001).
Segundo a psicodinâmica do trabalho, o sofrimento não pode ser visto fora do
contexto onde as atividades de trabalho ocorrem, Dominique Lhuilier, (2006) deno-
mina a psicossociologia do trabalho e distingue três formas de sofrimento, sendo elas
as patologias da atividade aprisionada ou impedida, patologias da solidão e patolo-
gias dos maus tratos e da violência.
O trabalho é um meio para o equilíbrio da estrutura psíquica do homem, possui
a função de construção do reconhecimento social, o ato de produzir, permite um
reconhecimento de si como alguém que existe e tem importância. Assim, como ati-
vidade aprisionada, Lhuilier (2006) define que, há um excesso, uma sobrecarga física
e mental dificilmente tolerada pelo trabalhador.
O desejo de lidar com o excesso o afasta da impotência em relação ao trabalho e
aos seus contextos, dessa forma, os indivíduos são movidos por uma aliança com o
ideal do mundo do trabalho. Porém, este elo ao se romper torna a carga de trabalho
insuportável, a impotência e o sofrimento emergem. Este sofrimento pode ser de vá-
rias modalidades, paralisando o trabalhador física e/ou psiquicamente, ademais de
ter um componente psíquico como a depressão. Ou o contexto de trabalho impede
que o sujeito realize suas atividades ou não tem atividade, o que cria um vazio de
significação. Interioriza-se a ausência trabalho como desvalorização da posição so-
cial e esses se aproximam do "imaginário da inutilidade", sentindo o peso de estarem
distantes dos grandes ideais sociais, em que o trabalho é um forte suporte. Tal pers-
pectiva faz com que os trabalhadores sejam atravessados pelo fantasma da inclusão e

163
Marco Aurelio Machado de Oliveira · Isadora Sigarini de Moraes
eliminação que acompanha a vida dos trabalhadores e impossibilita evoluções a
longo prazo. (CARRETEIRO, 2003).
A outra figura do sofrimento que Lhuilier (2006) assinala é a dos maus-tratos e
violência, esta contida nas diversas formas de humilhação, situações em que o traba-
lhador encontra pouco ou nenhum suporte de resistência a medida que apoios orga-
nizacionais se mostram quase inexistentes e na maioria das vezes é o seu corpo que
funciona como anteparo dessa violência. (GAULEJAC, 2005).
Diante de todo o exposto, compreender o contemporâneo contexto do trabalho é
importante, pois atualmente se evidencia que os trabalhadores são pensados como
máquinas de produção que devem se superar para não serem descartáveis, situações
que engendram sofrimentos. A escuta nas situações de trabalho deve simultanea-
mente considerar o contexto, a organização onde o trabalho ocorre, as defesas cole-
tivas e a capacidade de agir dos trabalhadores. (CARRETEIRO, 2014).
Desse modo pode-se observar a configuração de um universo caracterizado pelos
mais distintos e diversificados modos de informalidade, como a uberização, a tercei-
rizados, o cooperativismo, o empreendedorismo, ampliando dessa forma, o invisibi-
lizado. Mas que ao mesmo tempo potencializa mecanismos geradores do valor, ainda
que sob a aparência do não-valor, utilizando-se assim da autoexploração do trabalho.
(CARRETEIRO, 2014).
A informalidade acentua como os trabalhadores estão sendo submetidos cada vez
mais, a sucessivos contratos temporários, sem estabilidade ou registro em carteira,
trabalhando dentro ou fora do espaço produtivo, em atividades mais instáveis ou
temporárias. A informalidade do trabalho resulta na ruptura com os laços formais de
contratação e regulação da força de trabalho, apresentando dessa forma um meca-
nismo similar a condição de precarização, já que as formas de trabalho se tornam
desprovidas de direitos. Ademais de que o mecanismo central do capital para ampliar
a intensificação dos ritmos e movimentos do trabalho e ampliar o seu processo de
valorização, desencadeia importante elemento propulsor da precarização estrutural
do trabalho. (ANTUNES, 2014).
Desumanamente, existem jornadas de trabalho que atingem dezessete horas, ou
mais, por dia na indústria de confecções, por exemplo, situação absurdamente favo-
recida pelos movimentos migratórios atuais, como os refugiados ou imigrantes que

164
Trajetórias e vivências de prazer e sofrimento de trabalhadores informais...
são contratados informalmente, majoritariamente imigrantes bolivianos ou perua-
nos, controlados por patrões frequentemente coreanos ou chineses. Exemplificando,
os trabalhadores africanos que atuam no ensacamento e embalagem, alicerçam-se no
trabalho extenuante e profundamente manual. (ANTUNES, 2014).
No agronegócio, se constata a burla dos direitos humanos e do trabalho, os "boias-
frias", trabalhadores rurais, precisam cortar mais de dez toneladas de cana por dia,
para a produção do etanol, do qual muitos, se não todos os trabalhadores nem se
utilizam. No Japão há o exemplo recente dos cyber-refugiado, trabalhador jovem,
mas, da periferia que se utilizam dos cybercafés para repousar, usar a internet e bus-
car trabalho. Estes espaços cobram preços baixos para os trabalhadores pobres, sem
habitação fixa, para que possam passar suas noites oscilando entre o uso da internet,
um breve repouso e uma busca virtual de novos trabalhos contingentes. Existem tam-
bém os operários que migrando em busca de trabalho nas cidades, se encontram sem
residências fixas, e por isso, necessitam dormir em cápsulas de vidro, habitação de
baixo custo e configura o mundo dos operários encapsulados. (ANTUNES, 2006).
A situação dos imigrantes é a ponta mais visível do iceberg no que concerne a
precarização das condições de trabalho no capitalismo atual. O trabalhado imigrante
encontra nas indústrias, construtoras, supermercados, distribuidoras de hortifrutí-
colas, agricultura, hotéis, restaurantes, hospitais, empresas de limpeza, espaços prin-
cipais de trabalho, percebendo os salários sempre mais depauperados. Os trabalha-
dores imigrantes têm, em geral, os horários mais desconfortáveis, como jornadas no-
turnas e nos finais de semana, combinando superexploração com discriminação.
Esta classe é, por isso, simultaneamente, a mais precarizada e a mais globalizada.
(BASSO, 2010).
O exemplo dos imigrantes talvez seja o mais escandaloso, e mesmo assim invisi-
bilizado pela tendência estrutural à precarização do trabalho, eles são o subproletari-
ado informal. Falci, Souza e Scatolin (2020), explicam que o trabalho, no que tange a
problemática da migração, pode ser visto como uma ferramenta para a ressignifica-
ção de sua identidade e de seu sentimento de pertencimento no mundo.
Boa parte destas pessoas está exposta a condições laborais precárias, em que há
uma superexploração do trabalhador estrangeiro, fazendo com que ele precise traba-
lhar, até mesmo, em condições análogas à escravidão. Portanto, é essencial

165
Marco Aurelio Machado de Oliveira · Isadora Sigarini de Moraes
compreender como as vivências de trabalho podem influenciar a saúde mental.
Ao dilapidar as condições de remuneração e dos trabalhadores, erodindo direitos
e aumentando os níveis de exploração de força de trabalho, o empreendedorismo,
cada vez mais se configura como forma oculta de trabalho assalariado, proliferando
as distintas formas de flexibilização salarial, de horário, funcional ou organizativa;
degradação ainda mais intensa do trabalho imigrante em escala global. Os capitais
globais estão exigindo o desmonte da legislação social protetora do trabalho, em vá-
rias partes do mundo, ampliando a destruição dos direitos sociais que foram ardua-
mente conquistados pela classe trabalhadora. (ANTUNES, 2014).
A partir disso, coloca-se a necessidade de aprofundamento na análise sobre a in-
terface entre saúde mental e trabalho no contexto migratório, especialmente em um
cenário de pandemia. Assim, por ser uma teoria embasada tanto na Psicanálise
quanto na Teoria Social, a Psicodinâmica do Trabalho permite o estudo das relações
laborais e como estas se associam a saúde mental dos trabalhadores. Visto que “a
relação com o trabalho nunca é neutra no que se refere à saúde mental” (DEJOURS,
2017, p.15), podendo produzir saúde ou a sua degradação.
Aliado a esse conceito, estão as vivências laborais, que podem ser de prazer ou
sofrimento, que segundo o olhar psicodinâmico é um sentimento inerente ao traba-
lho, fazendo-se presente porque há o confronto com a realidade que se apresenta.
Porém, o sofrimento não é sinônimo de adoecimento já que, pode se tornar criativo,
que possibilita a transformação daquilo que causa incômodo. Ademais, se o sofri-
mento estiver conectado a estratégias eficazes, pode ser um potente agente contra
impactos neoliberais ante a precarização do trabalho. Mas, por conseguinte, quando
surge de forma que a ressignificação não é possível, torna-se patogênico, provocando
adoecimentos psíquicos. (MENDES, 2007; FERREIRA, MACÊDO, MARTINS,
2015; VON BOROWSKI et al, 2017).
Em contrapartida, as vivências de prazer laborais surgem a medida que há enga-
jamento no trabalho e mobilizações que busquem ressignificar o sofrimento, trans-
formando-o. Compreende-se que o prazer deve ser considerado um indicador de
saúde, visto constituir de uma maneira saudável a subjetividade do trabalhador.
Pode-se entender que o processo de ressignificação do sofrimento passa pelas estra-
tégias de mediação, que podem ser individuais e coletivas, mas que surgem conforme

166
Trajetórias e vivências de prazer e sofrimento de trabalhadores informais...
o contexto. As estratégias defensivas se caracterizam pela tentativa de minimização
do sofrimento através da recusa dele, sendo frequentemente mais atreladas a um pos-
sível adoecimento, enquanto os de enfrentamento agem como mobilizadoras para a
mudança, sendo percebidas como possibilidades de promoção de saúde mental.
(MENDES, 2007; FREITAS et al., 2014; VON BOROWSKI et al., 2017).
Dessa maneira, a perenidade de um trabalho, que possui espaço cada vez
mais reduzido, intensificado em seus ritmos e desprovido de direitos, precarizados e
informalizados, coloca no topo da pirâmide social do mundo do trabalho, os ultra-
qualificados que atuam no âmbito informacional e cognitivo, na base, amplia-se a
informalidade, a precarização e o desemprego, todos estruturais e no meio, encontra-
se a hibridez que pode desaparecer ou erodir em decorrência das alterações tempo-
rais e espaciais. (ANTUNES, 2014).
Conforma-se, então, uma nova forma de organização e controle do trabalho com
ênfase no envolvimento qualitativo dos trabalhadores em sua dimensão cognitiva,
procurando reduzir ou mesmo eliminar os espaços de trabalho improdutivo, que não
criam valor. Gerando desse modo, o lean production, team work, eliminação de pos-
tos de trabalho, buscando o aumento da produtividade, qualidade total, metas irreais,
competências, parceiros e colaboradores. São partes constitutivas do ideário e da
pragmática cotidiana da empresa moderna. (ANTUNES, 2014).
Nesse sentido, Ratner (2008, p. 19) afirma que esses fatores estruturam a forma e
o conteúdo dos fenômenos psicológicos estruturado pelos locais de trabalho, como
estruturas externas que exigem certos processos de pensamento, motivação emocio-
nal, autoconceito, memória e percepção, bem como o uso de ferramentas que as pes-
soas internalizam da cultura e usam como meios para construir seu comportamento.
Sendo que os indivíduos, portanto, produto de seu próprio produto.
Conclui-se que sem o trabalho na vida do homem, não possui autoestima, o que
não significa que a presença dele determinará a existência da mesma, pois depen-
dendo do tipo de trabalho que se tem, ele pode, também, diminuí-la ou até negá-la,
como coloca Wautier (2012, p. 149), “o trabalho e (ou) sua falta torna-se objetos de
insatisfação, até mesmo de sofrimento”.
Pesquisas apontam problemas de saúde mental em trabalhadores migrantes,
como casos de depressão ocasionados pela solidão aliada à longa e exaustiva jornada

167
Marco Aurelio Machado de Oliveira · Isadora Sigarini de Moraes
de trabalho, silêncio sobre o adoecer e o medo de perder o emprego e não conseguir
se manter longe de casa. (LEÃO; et al, 2017).
O contexto laboral atual procura aglutinar o menor contingente de trabalho vivo
e concentra o maior volume de trabalho morto corporificado no maquinário infor-
macional-digital, o que gera maiores índices de produtividade e lucratividade, en-
gendrando novos e mais complexificados mecanismos de interiorização, de personi-
ficação do trabalho, incentivando o exercício de uma subjetividade marcada pela
inautenticidade. Visto que a subjetividade emerge nas esferas produtivas contempo-
râneas expressada na existência inautêntica e estranhada. Ocorre maior participação
nos projetos que nascem das discussões, com maior envolvimento dos trabalhares,
dessa forma, a subjetividade que se manifesta encontra-se estranhada em relação ao
que se produz e para quem se produz. (ANTUNES, 2010).

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os países se compõem e congregam de divergências socioculturais e a fronteira
abriga a conversa dessas diferenças (PEITER, 2005), porém o volume de interações
que coexistem, nesse espaço, cria forma agregando elementos de ambos (MA-
CHADO et al., 2005), mas apesar de ocorrerem misturas de aspectos entre as nacio-
nalidades e em ambas encontrarmos características do outro, é comum não ocorrer
a unificação dessas partes (SANTOS, 1998). Portanto, faz-se necessário pensar a
fronteira interpretada através da compreensão que seus habitantes possuem (NO-
GUEIRA; DAL PRA; FERMIANO, 2007).
Visto que a fronteira seca e a proximidade geográfica dos municípios fronteiriços
vizinhos de Corumbá e Puerto Quijarro, possibilitam significativo fluxo econômico
e de pessoas, verifica-se que as cidades, compartilham atividades do cotidiano das
populações, devido à constância e facilidade de comercialização de produtos alimen-
tícios e de consumo, deslocamento, trocas culturais e relações sociais (ARAÚJO; JU-
LIANO; SILVA, 2017), sendo a fronteira, ambiente de mutação transnacional que é
nutrida na sustentabilidade da economia informal, mas funcional, com possibilida-
des ao desenvolvimento de atividades binacionais fundamentado em um sistema de
redes de cooperação local e regional (LOIO, 2018).
Portanto, é necessário demarcar o conjunto de estressores presentes na realidade
168
Trajetórias e vivências de prazer e sofrimento de trabalhadores informais...
desse trabalho e sua correlação, principalmente na área fronteiriça, ao desencadea-
mento do sofrimento patológico, distúrbio emocional, exaustão extrema, estresse e
esgotamento físico resultantes de situações laborais desgastantes, acarretada pelas
frustrações diárias no ambiente laboral, compreende três dimensões (exaustão, ci-
nismo e ineficácia), envolve tanto aspectos sociais quanto não sociais da realidade
ocupacional que afetam a vivência em geral. (LIMA, 2007).
Exacerbando os indutores de estresse já existentes, a pandemia do COVID-19 adi-
cionou novos fatores ao cenário de incertezas (MOURA, FURTADO, SOBRAL,
2020), criou desafios únicos para os trabalhadores em todo o mundo, que se arriscam
e ficam expostos ao vírus além de enfrentarem o risco de desenvolver um sofrimento
patológico, mas principalmente na contemporaneidade da desinformação e hostili-
dade é necessário reconhecer as migrações internacionais como tema de urgência
nas configurações políticas e colocá-la em pauta humanitária, descriminalizada e
acolhedora. (OLIVERA, 2019).
Desse modo, é importante destacar que ao se tratar de populações vulneráveis em
crises humanitárias, somente diretrizes baseadas em evidências não são suficientes,
necessita-se adaptações enxergando a fronteira como lugar heterogêneo, onde pa-
drões não são bem-vindos (BERGER et al., 2020), o fechamento das fronteiras, me-
didas que dificultem movimentações, principalmente em meio a pandemia são per-
versas, evidencia uma expressão de soberania e seria mais útil implementar medidas
coordenadas de cooperação dentro dos blocos regionais ou conjuntos de países vizi-
nhos (HAN, 2020). Para isso, o envolvimento da comunidade afetada e o diálogo
com os líderes locais é essencial. (POOLE et al., 2020).
Pois a burocratização do fluxo não é uma resposta para a prevenção ou tratamento
de doenças infecciosas, que não se limitam às atos médicos, mas à integração de ações
de saúde como promoção e prevenção (SMITH; JUDD, 2020), visto que a pandemia
atingiu a sociedade como um todo, mas os impactos são sentidos de formas diversas
pelos diferentes grupos etários e sociais, sendo emergencial que medidas sejam apli-
cadas em atenção às populações mais vulneráveis (FANG, KARAKIULAKIS E
ROTH, 2020) e as ações a serem tomadas devem considerar que estas populações
serão impactadas desproporcionalmente (HEYMANN; SHINDO, 2020).
Utiliza-se Sayad (1998), para compreender o imigrante enquanto sujeito que é

169
Marco Aurelio Machado de Oliveira · Isadora Sigarini de Moraes
tratado como “problema social” advindo de discursos impostos sobre ele a partir de
sua condição de moradia, emprego, vagas nas escolas, acesso à saúde e segurança
pública. Assim, são necessárias, intervenções sob medida para as necessidades das
populações vulneráveis (POOLE et al., 2020) já que as consequências sociais e emo-
cionais a curto e longo prazo dessas medidas burocráticas de controle ao fluxo são
catastróficas e além de regredir politicamente, mirra os relacionamentos, desenvol-
vimentos sociais e econômicos, marginaliza-se ainda mais uma região já periférica,
desumaniza-se o imigrante e mingua as relações na área fronteiriça, em meio a tanto
desamor e preconceito, perceber a real causa da problemática das políticas públicas
na fronteira, destacando-se a saúde e saber como resolvê-los é imperativo.
A partir desse estudo é possível dar visibilidade a esses indivíduos que estão à
margem da formalidade do trabalho e muitas vezes invisíveis ao poder público. Pos-
sibilitar o diálogo com e entre os trabalhadores, bem como orientá-los e informá-los
a respeito de seus direitos poderá proporcionar para esses trabalhadores entendi-
mento acerca um direito social básico de proteção e assim melhorar a qualidade de
vida desses cidadãos transfronteiriços.
Observa-se um comportamento de omissão do poder público local em questões
ligadas a qualidade de vida do trabalhador informal nesta área de fronteira, situação
que demonstra a necessidade imperativa e rápida de parceria e integração Bolívia e
Brasil.
Visto que a fronteira é um espaço marcado pela internacionalização, onde ocorre
importantes intersecções culturais e econômicas (FOUCHER, 1991), houve, se-
gundo Costa et al. (2006) no presente século, uma mudança no paradigma geopolí-
tico e a integração entre as nações passou a ser vista como prioritária por configurar
área estratégica, meio de fortalecimento político e econômico frente uma globaliza-
ção assimétrica. Porém, os objetivos pregressos não contemplaram o desenvolvi-
mento sustentável, qualidade de vida e promoção de cidadania e dessa forma, esta
negligência compõe a região esmagada por questões diplomáticas peculiares a terri-
tórios contíguos.
É necessário que reconheçamos as migrações internacionais no início do século
XXI como sendo tema de urgência nas configurações políticas (OLIVERA, 2019) e
colocada em uma pauta humanitária, descriminalizada e acolhedora (UNITED

170
Trajetórias e vivências de prazer e sofrimento de trabalhadores informais...
NATIONS, 2018). Dessa forma, conclui-se que é importante iluminar uma nova per-
cepção no que tange transformações decorrentes dos acontecimentos atuais no
mundo do trabalho, trazendo á tona e fortemente a proteção dos direitos sociais dos
trabalhadores aderida. O Brasil e a Bolívia, bem como todos os países fronteiriços
precisam caminhar juntos para a efetivar a proteção do direito fundamental social ao
trabalho e dos trabalhadores. (VILLARONE; QUETES, 2016).
As opções pelo trabalho por conta própria ou pelo empreendimento de baixo re-
torno financeiro, sinalizam a dificuldade desse segmento em acessar o mercado de
trabalho formal. Ainda, vale destacar a presença de jornadas de trabalho excessivas,
sinal de que há algum grau de superexploração da força de trabalho imigrante.
Essa constatação reforça a necessidade de políticas públicas que busquem o me-
lhor aproveitamento desse segmento, dado que boa parte da mão de obra qualificada
que se pretende atrair, muito provavelmente, já se encontra em território brasileiro.
Mecanismos legais, como o do reconhecimento da formação acadêmica obtida no
exterior, estão previstos na legislação migratória vigente, basta, portanto, que sejam
implementados.
O presente estudo se mostrou promissor em abrir a possibilidade de
se ampliar a investigação sobre a inserção da força de trabalho imigrante no país,
incorporando análises comparativas entre os segmentos formal e informal.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANTUNES, R. Desenhando a nova morfologia do trabalho e suas principais mani-
festações. In: MENDES, A.M.B.; MORAES, R.D.; MERLO, A.R.C. (Orgs.) Traba-
lho e sofrimento. Práticas clínicas e políticas. Curitiba: Juruá. 2014. P. 25-43.
_________. Adeus ao trabalho. 15.ed. São Paulo: Cortez, 2010.
_________. Os sentidos do trabalho. 12.ed. São Paulo: Boitempo, 2010a.
ARAÚJO, L. T. R.; JULIANO, R. S.; SILVA, W. A. Região fronteiriça e epidemiologia:
estudo da esporotricose e sua relação na dinâmica da fronteira Brasil-Bolívia.

171
Marco Aurelio Machado de Oliveira · Isadora Sigarini de Moraes
Revista Geo Pantanal, v.12, p.97-105, 2017.
BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.
BERNARD, H. R. Research methods in anthropology: qualitative and quantitative
approaches. Lanham, MD: AltaMira Press, 2005.
BERNARDINO, D. C. A. M.; ANDRADE, M. O trabalho informal e as repercussões
para a saúde do trabalhador: Uma revisão integrativa. Revista de Enfermagem
Referência, v. 4, n. 7, p. 149-158, 2015.
BARNES-HOLMES, D. et al. (2001). Understanding and verbal regulation. In S. C.
Hayes, D. Barnes-Holmes, & B. Roche (Eds.), Relational frame theory: A post-
skinnerian account of human language and cognition (pp. 103-117). New York:
Kluwer Academic Publishers.
BIRMAN, J. Arquivos do mal-estar e da resistência. Rio de Janeiro: Civilização Bra-
sileira, 2006.
BERGER, Z. et al. Covid-19: Control measures must be equitable and inclusive. The
BMJ, v. 368, n. 1141, 2020.
BRASIL. Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 510, de 7 de abril de 2016. Diá-
rio Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 24 de maio de 2016. Seção 1,
n. 98, p. 44-46. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudele-
gis/cns/2016/res0510_07_04_2016.html. Acesso em: 4 mar. 2021.
BRASIL. Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012.
Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 13 de junho de 2013. Seção
1, n. 12, p. 59. Disponível em: https://conselho.saude.gov.br/resolu-
coes/2012/Reso466.pdf. Acesso em: 4 mai. 2021.
CARMO, L. J. O. et al. O empreendedorismo como uma ideologia neoliberal. Cad.
EBAPE.BR, v. 19, n. 1, Rio de Janeiro, jan./mar. 2021. Disponível em:
https://doi.org/10.1590/1679-395120200043. Acesso em: ago. 2021.
CARRETEIRO, T. Sociais em debate. Revista de Psicologia da USP, 2003, 57-72.
_____________. A ética da escuta do sofrimento em diferentes contextos instituci-
onais. In: MENDES, A.M.B.; MORAES, R.D.; MERLO, A.R.C. (Orgs.) Trabalho

172
Trajetórias e vivências de prazer e sofrimento de trabalhadores informais...
e sofrimento. Práticas clínicas e políticas. Curitiba: Juruá. 2014. P. 103-114.
DEJOURS, C. (2007). Banalização da Injustiça Social. Rio de Janeiro: Editora FGV.
_________. Entre o desespero e a esperança: como reencantar o trabalho. Revista
CULT, 139(12), (2009), 49-53.
_________. Trabalho Vivo: Sexualidade e trabalho (Vol.1). 2012. Brasília, DF: Pa-
ralelo 15.
DEJOURS, C. A. Loucura do Trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. 5ª ed.
São Paulo: Cortez, 1992.
DEJOURS, C. A. A banalização da injustiça social. Rio de Janeiro: Editora FGV,
2000.
FALCI, G.X.S.; SOUZA, N.B.; SCATOLIN, H.G. Imigrantes e refugiados no mer-
cado de trabalho brasileiro: Uma revisão bibliográfica a partir das contribuições
da Psicologia do Trabalho. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhe-
cimento. Ano 05, Ed. 11, Vol. 22, pp. 135-151. 2020. ISSN: 2448-0959. Acesso em
20 de jun de 2022. Disponível em: https://www.nucleodoconheci-
mento.com.br/psicologia/imigrantes-e-refugiados
FANG, G., KARAKIULAKIS, G.; ROTH, M. Are patients with hypertension and di-
abetes mellitus at increased risk for COVID-19? Lancet Respir Med., v. 8, 2020.
Disponível em: https://www.thelancet.com/action/showPdf?pii=S2213-
2600%2820%2930116-8. Acesso em: abr. 2021.
HAN, B. C. O coronavírus de hoje e o mundo de amanhã, segundo o filósofo Byung-
Chul Han. El País Brasil, 22 mar. 2020. Disponível em: https://brasil.el-
pais.com/ideas/2020-03-22/o-coronavirus-de-hoje-e-o-mundo-de-amanha-se-
gundo-o-filosofo-byung-chul-han.html. Acesso em: abr. 2021.
HEYMANN, D.; SHINDO, N. COVID-19: what is next for public health? Lancet, v.
395, n. 10224, p. 542-5, 2020.
LIMA, F. D. et al. Síndrome de Burnout em Residentes da Universidade Federal de
Uberlândia – 2004. Revista Brasileira De Educação Médica, v. 31, n. 2, p. 137-
146, 2007. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbem/v31n2/03.pdf. Acesso

173
Marco Aurelio Machado de Oliveira · Isadora Sigarini de Moraes
em: ago. 2020.
LOIO, J. A. M. S. Dinâmica laboral, pendularidade e situação documental em fron-
teira na perspectiva da criação e implantação do núcleo cidadania imigrante:
mulheres bolivianas nas feiras livres de Corumbá, MS. 117 p. 2018. Dissertação
(Mestrado em Estudos Fronteiriços) - Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul, Corumbá, MS.
MACHADO, L. O. et al. O desenvolvimento da faixa de fronteira: uma proposta con-
ceitual-metodológica. Em: OLIVEIRA, T. C. M. de (Org.). Território, população
e desenvolvimento. Campo Grande: UFMS, 2005. p. 51-76. Disponível em:
http://www.retis.igeo.ufrj.br/wp-content/uploads/2011/07/2005-Desenvolvi-
mento-faixa-de-fronteira-Retis.pdf. Acesso em: 27 ago. 2020.
MORRONE, C. F; MENDES, A. M. A resignificação do sofrimento psíquico no tra-
balho informal. Rev. Psicol., Organ. Trab., Florianópolis, v. 3, n. 2, p. 91-
118, dez. 2003. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/sci-
elo.php?script=sci_arttext&pid=S1984-66572003000200005&lng=pt&nrm=iso.
Acesso em: ago. 2021.
MOURA, E. C.; FURTADO, L.; SOBRAL, F. Epidemia de burnout durante a pande-
mia de covid-19: o papel da LMX na redução do burnout dos médicos. Rev. adm.
empres., São Paulo, v. 60, n. 6, p. 426-436, dez. 2020. Acesso em: maio 2021. Dis-
ponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-
75902020000600426&lng=en&nrm=iso.

MORAES, M. C. F.; SILVA, N. P. Saúde mental e as relações de trabalho: como a


ansiedade influencia o comportamento humano no ambiente de trabalho. Inter-
face de Saberes, v. 14, n. 1, p. 11-16, 2015. Disponível em: https://interfacesdesa-
beres.fafica-pe.edu.br/index.php/import1/article/view/533/274. Acesso em: 22
ago. 2021.
NOGUEIRA, V. M. R.; DAL PRA, K. R.; FERMIANO, S. A diversidade ética e política
na garantia e fruição do direito à saúde nos municípios brasileiros da linha da
fronteira do MERCOSUL. Cadernos de Saúde Pública [online], v. 23, supl. 2,
2007. Doi:10.1590/S0102-311X20070 01400 012. Disponível em:

174
Trajetórias e vivências de prazer e sofrimento de trabalhadores informais...
https://www.scielo.br/j/csp/a/LndN8bPLvcDDPgjKMP4Kj8K/abs-
tract/?lang=pt. Acesso em 03 jul. 2020.
OLIVEIRA, J. C. Espacialidades fronteiriças e práticas solidárias: bolivianas em re-
lações de vizinhança e de comércio em Corumbá, MS. Corumbá – MS, 2019. Dis-
sertação apresentada ao programa de pós-graduação mestrado em estudos fron-
teiriços da Universidade Federal de Mato Grosso Do Sul. Disponível em:
https://ppgefcpan.ufms.br/files/2019/11/DISSERTAÇÃO-JÉSSICA-CANA-
VARRO.pdf. Acesso em: 06 mai. 2021.
PEITER, P. C. Geografia da saúde na faixa da fronteira continental do Brasil na pas-
sagem do milênio. 2005. Tese (Doutorado em Geografia). Instituto de Geociên-
cias, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005.
POOLE, D. N. et al. Resposta à pandemia do COVID-19 em crises humanitárias
complexas. Int J Equity Health, v. 19, n. 41, 2020.
RAMALHO JUNIOR, A. L. R.; OLIVEIRA, M. A. M. Proximidades e estranhezas nas
relações fronteiriças: preconceito, solidariedade e imigrante. In: XVI Encontro
Nacional dos Geógrafos. Porto Alegre, 25 a 31 de julho de 2010. Disponível em:
http://www.propp.ufms.br/gestor/titan.php?target=openFile&fileId=528.
Acesso em: 20 jul. 2021.
SANTOS, M. O retorno do território. In: SANTOS, M.; SOUZA, M. A.; SILVEIRA,
M. L. (Org.). Território: globalização e fragmentação. 4. ed. São Paulo: Hucitec:
ANPUR, 1998. p. 15-20.
SAYAD, A. A imigração. Os paradoxos da alteridade. Trad. de Cristina Murachco.
São Paulo: Edusp, 1998.
SMITH, J. A.; JUDD, J. Covid-19: vulnerability and the power of privilege in a pan-
demic. Health Promotion Journal of Australia, p. 31(2): 158–160. Disponível em:
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7165578/. Acesso em 08 jul
2021.
UCHÔA-DE-OLIVEIRA, F. M. Saúde do trabalhador e o aprofundamento da ube-
rização do trabalho em tempos de pandemia. Revista Brasileira de Saúde Ocupa-
cional, v. 45, n. e22, 2020. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/2317-

175
Marco Aurelio Machado de Oliveira · Isadora Sigarini de Moraes
6369000012520. Acesso em: 20 ago. 2021.
VINUTO, J. A amostragem em bola de neve na pesquisa qualitativa: um debate em
aberto. Temáticas, Campinas, v. 22, n. 44, p. 203-220, ago/dez. 2014. Disponível
em: www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/tematicas/article/download/2144/1637
Acesso em 20 out. 2021.

__________________________________________________
OLIVEIRA, Marco Aurelio Machado de Oliveira; MORAES, Isadora Siga-
rini de Moraes. Trajetórias e vivências de prazer e sofrimento de trabalha-
dores informais na fronteira Brasil-Bolívia. In: OLIVEIRA, Marco Aurélio
Machado de; (Org.). Anais do I Congresso do Migrafron. Uberlândia:
Marco Teórico, 2022. pp. 155-176.
__________________________________________________

176
CRUZANDO FRONTEIRAS EM BUSCA
DA FORMAÇÃO MÉDICA∗

9
Maria Aparecida Webber

RESUMO:
A mobilidade na fronteira Brasil - Paraguai, entre as cidades de Foz do Iguaçu e Ciu-
dad del Este, é um fenômeno vivenciado e observado por diversos grupos (moradores
locais, turistas, pesquisadores e pesquisadoras). Esse contexto fronteiriço tão singu-
lar foi tema de inúmeros trabalhos, sobretudo centrados nos tópicos relacionados ao
comércio, contrabando e descaminho. Entretanto, outros fluxos vêm ganhando es-
paço no cruce cotidiano da Ponte da Amizade. Milhares de brasileiros e brasileiras
encontram no Paraguai a possibilidade de continuar seus estudos regulares em nível
superior, principalmente na busca pela formação médica em instituições de ensino
privadas. O presente trabalho contextualiza essa fronteira tão singular e apresenta o
cenário da educação superior em medicina atual na região.

PALAVRAS-CHAVE:
Fronteira; Educação Superior; Medicina.

∗ Uma versão atualizada deste capítulo foi publicada na Revista GeoPantanal, Universidade Federal
do Mato Grosso do SUL (UFMS) – Corumbá/MS, Número 32, p. 117-127, janeiro - junho/2022.
Disponível em: https://seer.ufms.br/index.php/revgeo/article/ view/16481.
177
Maria Aparecida Webber
RESUMEN:
La movilidad en la frontera Brasil-Paraguay, entre las ciudades de Foz do Iguaçu y
Ciudad del Este, es un fenómeno experimentado y observado por varios grupos (perso-
nas locales, turistas, investigadores). Este singular contexto fronterizo ha sido objeto
de numerosos trabajos, principalmente enfocados en temas relacionados con el comer-
cio, contrabando y desfalco. Sin embargo, otros flujos han ido ganando terreno en el
eje cotidiano del Puente de la Amistad. Miles de brasileños encuentran en Paraguay la
posibilidad de continuar sus estudios regulares en nivel superior, principalmente en la
búsqueda de formación médica en instituciones educativas privadas. El presente tra-
bajo contextualiza esta frontera única y presenta el escenario actual de la educación
superior en medicina en la región.

PALABRAS-CLAVE:
Frontera; Educación Superior; Medicina.

1. INTRODUÇÃO
Estudar as fronteiras requer um constante aprimorar do olhar de pesquisadora, a
fim de apreender suas dinâmicas e mudanças. Em 2016, recém-ingressante no Mes-
trado em Antropologia da UFPR, minhas intenções de pesquisa sobre a fronteira es-
tavam ligadas às relações entre brasileiros e paraguaios, em como a fronteira figurava
na construção dessas relações entre diferentes nacionais. Ao iniciar as incursões pré-
campo, para melhor definição dos caminhos etnográficos a serem tomados, deparei-
me com um movimento novo: um fluxo em direção ao Paraguai pela formação em
Medicina.
Na fila do mercado, nos comércios, no transporte coletivo, na mesa ao lado no
restaurante, na conversa com os vizinhos - o assunto era o volume de brasileiros que
chegavam para se tornar estudantes de Medicina. Entendi nesse momento, a impor-
tância de estar nessa fronteira, de ouvi-la. Desde então, acompanho presencial e vir-
tualmente os inúmeros desdobramentos que esse fenômeno infere, trazendo à refle-
xão acadêmica a realidade experenciada por esses grupos e também por mim,

178
Cruzando fronteiras em busca da formação médica
enquanto moradora da fronteira e pesquisadora.
É notável ressaltar que os anos de 2020 e 2021 foram especialmente desafiadores
para a pesquisa, em razão das questões sanitárias decorrentes da Pandemia de Covid-
19. Diferentes protocolos foram adotados ao longo do tempo e, por 7 meses1, tivemos
inclusive o fechamento total da Ponte da Amizade, que liga Brasil e Paraguai sobre o
rio Paraná. Como pontuam Mascarenhas & Klauck (2021), o fechamento da ponte é
um fato recorrente com cunho de manifestação e organização de algum segmento da
população, porém com características de menor tempo de duração dos bloqueios e
produto de uma demanda específica de negociação, em geral entre Estado e manifes-
tantes. No ano de 2020, contudo, a decisão de bloqueio total estendeu-se por um pe-
ríodo nunca antes visto, na tentativa de conter a disseminação do coronavírus e re-
duzir o fluxo de pessoas transitando entre os dois países. Na época, observamos por
um lado um grande movimento de brasileiros deixando o Paraguai, sobretudo nessa
região, os estudantes das faculdades de Medicina que retornavam às suas casas no
Brasil; por outro lado um grande volume de paraguaios que, vindos de São Paulo e
de outros centros urbanos, buscavam entrar de volta no país e regressar às suas famí-
lias no Paraguai. Silva & Dorfman (2020) ressaltam a discordância dos atores locais
mediante o tipo de medida restritiva de controle adotada.
Durante esse período de fronteiras fechadas, e depois, até a vacinação da maior
parte da população e o decréscimo dos números de casos de Covid-19, as faculdades
pesquisadas adotaram o ensino remoto ou híbrido como estratégia educacional de
continuidade das atividades. As turmas de períodos iniciais, com maior carga horária
teórica, mantiveram as aulas totalmente em ambiente virtual; já turmas de semestres
mais avançados do curso, adotaram escalonamento ou esquema rotativo no sistema
híbrido de aprendizagem (parte presencial e parte remoto), para cumprimento de
carga horária em laboratórios e hospitais.
O fato extraordinário do fechamento das fronteiras, juntamente com a crise sani-
tária que se desdobrou em dificuldades financeiras e perdas familiares, parece a prin-
cípio causar somente dificuldades e evasão. Contudo, constatei junto aos estudantes
uma facilitação de acesso a novos alunos que se encontravam fisicamente distante

1 Oficialmente, o bloqueio da fronteira paraguaia foi decretado em 18/03/2020, pelo presidente do


Paraguai Mario Abdo Benítez. Sua reabertura, acordada bilateralmente, deu-se em 15/10/2020.
179
Maria Aparecida Webber
dessa fronteira, e que cursaram os primeiros semestres desde suas cidades de origem
(no Brasil), para somente agora em 2022, com a retomada das aulas majoritariamente
presenciais, deslocarem-se e de fato, migrarem a essa região fronteiriça para conti-
nuidade do curso de medicina.
Dentre as estudantes e os estudantes que hoje residem nessa fronteira e se dedi-
cam ao estudo superior em medicina no Paraguai, há uma diversidade de perfis, faixa
etária, nível escolar, condição socioeconômica. Esse grande volume e variedade estão
conectados a uma grande oferta de vagas em diferentes faculdades privadas. Neste
trabalho, busco compartilhar alguns apontamentos sobre esse espaço fronteiriço tão
singular, bem como apresentar dados relevantes sobre as Instituições de Ensino pri-
vadas que disponibilizam vagas para o curso superior em medicina na região.

2. CONTEXTO FRONTEIRIÇO: AS TRÊS FRONTEIRAS AR-BR-PY


Longe do mar, mas cercada de potentes rios, a região das 3 fronteiras está locali-
zada em uma área de rica vegetação e diversidade biológica, sendo casa do Parque
Nacional do Iguaçu. Comporta ainda, a maior hidrelétrica em geração de energia do
Mundo, a ITAIPU Binacional; e serve de destino turístico a milhões de pessoas anu-
almente.

Figura 1 - Mapa amplo: localização da região das três fronteiras (AR-BR-PY)

Fonte: Google Maps. Consulta em 12/07/2022.


180
Cruzando fronteiras em busca da formação médica

A oeste do Brasil, no Estado do Paraná, a cidade de Foz do Iguaçu comporta a


margem brasileira dessa fronteira. Com uma população estimada em 257.9712 pes-
soas, a cidade é conhecida pelos atrativos turísticos, alguns já citados, mas também
vem se tornando referência como polo educacional. Possui uma Universidade Fede-
ral, a UNILA (Universidade Federal da Integração Latino-americana); uma Univer-
sidade Estadual, a UNIOESTE (Universidade Estadual do Oeste do Paraná); um Ins-
tituto Federal de Educação, o IFPR; além de várias faculdades privadas. É residência,
portanto, de um grande público estudantil local, vindos de diferentes cidades e paí-
ses, que se somam aos brasileiros e brasileiras que estudam do outro lado da fronteira
e vivem em Foz do Iguaçu.
A leste do Paraguai está Ciudad del Este (CDE), antes chamada de Puerto Presi-
dente Strossner, e antes ainda chamada de Puerto Flor de Lis. Presenciou as diferen-
tes etapas do desenvolvimento econômico paraguaio, e uma importante porta de en-
trada nos fluxos migratórios Brasil – Paraguai. Segundo informações do site oficial
do Departamento3 de Alto Paraná:
Por su población y por su desarrollo económico, es la segunda ciudad más importante
del Paraguay, contando con 312 652 habitantes, y su área metropolitana con más de
800 000 habitantes (si se incluye la ciudad de Foz de Iguazú) y superior a 500 000 ha-
bitantes si se habla sólo dentro del departamento4. (PY, 2022)
Na região nordeste Argentina, Puerto Iguazú figura como uma das mais impor-
tantes cidades da Província5 de Misiones, cuja capital é Posadas. Com uma população
estimada em 74 mil habitantes, pelos dados INDEC de 2010, é a menor cidade das
três fronteiras. Apesar de um histórico importante do fluxo de estudantes brasileiros
que buscam a formação médica na Argentina, principalmente a partir da primeira
década dos anos 2000, essa presença ocorre na capital Buenos Aires, nas cidades de

2 Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Disponível em: https://cida-


des.ibge.gov.br/brasil/pr/foz-do-iguacu/panorama. Consulta em 14/07/2022.
3 Departamento, no Paraguai, refere-se a unidade federativa equivalente ao estado, no Brasil.
4 Site do Departamento de Alto Paraná. Disponível em: http://www.altoparana.gov.py/v0/ in-
dex.php/ciudad-del-este. Consulta em 14/07/2022.
5 Província, na Argentina, refere-se a unidade federativa equivalente ao estado, no Brasil.
181
Maria Aparecida Webber
La Plata, Rosario, entre outras; porém não em Puerto Iguazú.
A dinâmica e sistema de funcionamento do ensino superior na Argentina são di-
ferentes do Paraguai e Brasil, com características específicas de ensino. Apesar de
existirem faculdades privadas, a grande busca por parte dos brasileiros é no acesso às
IES públicas localizadas nas cidades citadas. A cidade argentina de Puerto Iguazú,
portanto, não figura diretamente como ator nesse cenário educacional fronteiriço,
porém certamente contribui no contexto ampliado das possibilidades e característi-
cas regionais das três fronteiras. Os deslocamentos para a cidade de Puerto Iguazú
têm “caráter festivo” (SILVA, 2013, p. 12), para utilização da rede de serviços – res-
taurantes e bares, e compra de artigos importados – como vinhos, roupas, apesar do
rígido controle de fronteira, havendo parada e identificação obrigatória tanto na en-
trada quanto na saída do país.

Figura 2 - Mapa da região das três fronteiras (AR-BR-PY)

Fonte: Google Maps. Consulta em 12/07/2022.


182
Cruzando fronteiras em busca da formação médica
Afunilando geograficamente o olhar à região das três fronteiras, percebemos uma
composição mista entre fronteiras terrestres e fluviais. Temos duas pontes figurando
como importantes caminhos de integração entre os países. A Ponte Internacional da
Amizade, inaugurada em 1965, liga Foz do Iguaçu (BR) a Ciudad del Este (PY) sobre
o rio Paraná; já a Ponte Internacional da Fraternidade (também chamada de Ponte
Tancredo Neves), une os municípios de Foz do Iguaçu (BR) e Puerto Iguazú (AR),
sobre o rio Iguaçu. Argentina e Paraguai estão conectados também por terra, porém
o trânsito principal entre os países se dá também pelas pontes, passando por Foz do
Iguaçu.
Muitas pesquisas já tomaram a região como locus de análise, porém ainda há
muito a ser problematizado e estudado no campo de estudo de fronteiras, principal-
mente nas relações entre países latino-americanos. Segundo Albuquerque (2010)
Faltam estudos que analisem as relações de poder e as diferenças econômicas, políti-
cas e culturais entre as nações da América Latina. Novos trabalhos sobre imigrações
fronteiriças podem se constituir num caminho profícuo de reflexão sobre o Brasil e
sua tensa relação com os países vizinhos. (Ibid, p.244)
O cenário estudantil dessa fronteira, pois, configura-se como um universo com-
plexo e extremamente frutífero de pesquisa para diversas áreas do conhecimento. Os
reflexos da migração em direção a essa fronteira, na busca pelo acesso à formação
superior em Medicina no Paraguai, são sentidos em seus aspectos econômicos e so-
ciais.
O valor dos aluguéis passou por um aumento significativo nos últimos anos, tanto
em Foz do Iguaçu quanto em CDE. A oferta de serviços, produtos, aumentou consi-
deravelmente para atender a esse público. Junto com esse movimento, ou gerando
esse movimento, há uma grande oferta de vagas e abertura de novas instituições de
ensino superior privadas com oferta de medicina na região, que será tratado com
maior detalhamento na sequência do texto.

3. INSTITUIÇÕES PRIVADAS DE MEDICINA – CDE PY


De acordo com dados coletados ao longo da pesquisa de campo, desde 2014 nota-
se um aumento expressivo do fluxo de estudantes na região, majoritariamente em

183
Maria Aparecida Webber
busca da formação médica. Também há oferta de outros cursos superiores, em nível
de graduação e pós-graduação, porém com menor expressividade numérica. No pri-
meiro semestre do ano de 2017, contabilizei por meio de dados de campo quase 8 mil
estudantes, sendo a maioria brasileiros (WEBBER, 2018). Segundo fontes jornalísti-
cas, em 2019 (período pré-pandemia) existiriam entre 15 e 20 mil estudantes brasi-
leiros matriculados em cursos de Medicina no Paraguai, somente nesta fronteira6. É
importante destacar que outras localidades, como a fronteira Pedro Juan Caballero
(PY)/Ponta Porã (MS), a capital Asunción, e também outras cidades paraguaias, são
destinos educacionais semelhantes. Não foi possível, até o momento, ter acesso a ne-
nhum relatório específico expedido pelas instâncias de controle migratório ou órgãos
de controle da educação superior, que de fato precisassem o número de estudantes
brasileiros matriculados no curso de Medicina em 2022 ou em anos anteriores.
As evidências, contudo, demonstram o grande volume e o aumento exponencial
dessa presença. No ano de 2017, eram 5 Universidades privadas com oferta do curso
de medicina na região fronteiriça de Ciudad del Este (considerando também a cidade
de Presidente Franco e Hernandarias). Em 2022, são 10 instituições de educação su-
perior (IES) que ofertam o curso, conforme tabela abaixo:

Tabela 1 – IES Privadas PY que ofertam Medicina na fronteira CDE – FOZ

NOME DA IES SIGLA LOCALIZAÇÃO


Universidad Autónoma del Sur UNASUR Ciudad del Este – KM 4

Universidad Católica Nuestra Señora USCA Campus Alto Paraná - Sede


de Asunción Hernandarias
Universidad Central del Paraguay UCP Ciudad del Este
Sede II
Universidad Internacional Tres UNINTER
Sede Ciudad del Este
Fronteras

6 Jornal La Clave: https://www.laclave.com.py/2019/11/14/piden-convertir-a-cde-en-ciudad-uni-


versitaria-por-la-gran-cantidad-de-estudiantes-brasilenos/. Acesso em 15/07/2022.
184
Cruzando fronteiras em busca da formação médica

Universidad de la Integración de las UNIDA


Sede Ciudad del Este
Américas
MARIA SE-
Universidad Maria Serrana Sede Ciudad del Este
RRANA
Universidad Politécnica y artística UPAP
Sede Ciudad del Este
del PY
UPE CDE
Universidad Privada del Este Sede Ciudad del Este

UPE FRANCO
Universidad Privada del Este Sede Presidente Franco

Universidad del Sol UNADES Ciudad del Este

Fonte: Elaboração da Autora, 2022.

Várias dessas universidades possuem sede em mais de uma cidade, e algumas tem
vocação exclusiva para Medicina. A infraestrutura dessas IES busca atender aos re-
quisitos dos órgãos regulatórios, como o Consejo Nacional de Educación Superior -
CONES7 e da Agencia Nacional de Evaluacion y Acreditacion – ANEAS8, para apro-
vação do curso e certificação dos selos de qualidade.

7 Site oficial CONES: http://www.cones.gov.py/.


8 Site oficial ANEAES: http://www.aneaes.gov.py/.
185
Maria Aparecida Webber
Imagem 1 – Sede de universidade em CDE(PY)

Fonte: Arquivo de campo da autora, 2022.

Algumas universidades possuem convênios com hospitais e consultórios locais


para a residência médica dos alunos, e outras ainda contam com estruturas próprias
de atendimento, como hospitais universitários e clínicas.
Uma das universidades visitadas possui uma clínica médica em um bairro perifé-
rico de Ciudad del Este (PY). Os estudantes fazem o período de rotação nas especia-
lidades médicas (Ginecologia, Pediatria, Emergência, entre outras), com supervisão
de equipe médica habilitada, e acompanham os procedimentos e consultas no local.
O atendimento é gratuito e funciona com agendamento. Dependendo da especifici-
dade e gravidade do atendimento, eles também interagem diretamente com os paci-
entes. Segundo relatos da comunidade atendida, a clínica supre uma defasagem nos
sistemas públicos de saúde ofertados na região.

186
Cruzando fronteiras em busca da formação médica

Imagem 2 - Clínica Médica Universitária no bairro Remansito – CDE(PY)

Fonte: Arquivo de campo da autora, 2022.

Duas outras instituições de ensino possuem prédios em construção que serão des-
tinados a hospitais universitários. Segundo informações das IES, as estruturas
187
Maria Aparecida Webber
contarão com diversas salas de atendimento, ampliando a complexidade e quanti-
dade de atendimentos realizados pelos estudantes e equipe médica.

Imagem 3 – Hospital Escuela em construção CDE(PY)

Fonte: Arquivo de campo da autora, 2022.

Além das instituições de ensino privadas, a região ainda conta com a presença de
2 Instituições Públicas de Ensino Superior que ofertam Medicina (UNE – PY e
UNILA – BR). A UNE9 (Universidad Nacional del Este) está localizada na cidade
paraguaia de Minga Guazú, KM 16, e oferta uma pequena porcentagem de vagas aos
brasileiros, por meio de acordos bilaterais (WEBBER & SILVA, 2022). A Universi-
dade Federal da Integração Latino Americana – UNILA oferece o curso de

9 UNE Medicina: http://www.une.edu.py/web/index.php/carreras/356-medicina.


188
Cruzando fronteiras em busca da formação médica
Medicina10 desde o ano de 2014 e possui processo seletivo de entrada para brasileiros
e outros latino-americanos, incluindo paraguaios.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
As motivações para deslocamento podem estar atreladas a uma série de fatores,
em geral visando uma melhoria da condição de vida (às vezes inclusive a sobrevivên-
cia) e realização de projetos pessoais. O que observamos nessa fronteira é uma es-
treita relação entre os projetos educacionais dos dois países e o estabelecimento de
um fluxo migratório para acesso a esses espaços, com duração de permanência finita,
ou seja, enquanto durar o processo educacional (concluído ou não).
A própria condição de fronteira é ressignificada no movimento diário dessas tra-
vessias. Como aponta Albuquerque, “as fronteiras nacionais são lugares de controle
e de travessia, lugares de movimento de pessoas que cruzam os limites territoriais e
configuram outras fronteiras” (2010, p. 34).
Os dados aqui apresentados são uma pequena parte do complexo universo con-
textual de pesquisa. A cada reflexão e a cada trabalho, vão sendo amadurecidos os
interrogantes da tese, em diálogo com o trabalho de campo junto aos espaços de in-
teração e vivência desses estudantes. O elevado número de instituições de ensino pri-
vadas, que ofertam o curso de medicina nessa fronteira, aponta para a relevância do
tema e a importância da continuidade de investigação deste tão singular espaço fron-
teiriço.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALBUQUERQUE, José Lindomar C. A dinâmica das fronteiras: Os brasiguaios na
fronteira entre o Brasil e o Paraguai. São Paulo: Annablume, 2010.
MASCARENHAS, M. C.; KLAUCK, S. COVID 19 e o fechamento da Ponte Interna-
cional da Amizade. RELACult - Revista Latino-Americana de Estudos em Cul-
tura e Sociedade, [S. l.], v. 6, n. 3, 2021. DOI: 10.23899/relacult.v6i3.2030. Dispo-
nível em: https://periodicos.claec.org/index.php/relacult/article/view/2030.

10 UNILA Medicina: https://portal.unila.edu.br/graduacao/medicina.


189
Maria Aparecida Webber
Acesso em: 12 jul. 2022.
SILVA, Regina Coeli Machado. Vidas, nações e Estados se fazendo nas Fronteiras
entre Brasil, Paraguai, Argentina. Ideação – Revista do Centro de Educação, Le-
tras e Saúde da UNIOESTE, Campus Foz do Iguaçu, vol. 15, nº 2, 2013 (p. 10-32).
SILVA, Regina Coeli Machado; DORFMAN, Adriana. “Border Control (Brazil, Pa-
raguay, Argentina) and Local Inventiveness in Times of COVID-19”. Borders in
Globalization Review, Volume 2, Issue 1, Fall/Winter, 2020.
WEBBER, Maria Aparecida. Estudantes brasileiros de Medicina em Presidente
Franco (PY): motivações e tensões de um fluxo universitário transfronteiriço.
(Dissertação) Programa de Pós-Graduação em Antropologia. Curitiba: Universi-
dade Federal do Paraná - UFPR, 2018.
WEBBER, Maria Aparecida; SILVA, Regina Coeli Machado. Entre pontes e livros:
Educação superior em medicina na fronteira Brasil-Paraguai. In: Fronteiras, des-
locamentos e suas dinâmicas sociais. Eric Gustavo Cardin e Lindomar C. Albu-
querque (orgs.). Uberlândia: EDUFU, 2022.

__________________________________________________
WEBBER, Maria Aparecida. Cruzando fronteiras em busca da formação
médica In: OLIVEIRA, Marco Aurélio Machado de; (Org.). Anais do I
Congresso do Migrafron. Uberlândia: Marco Teórico, 2022. pp. 177-190.
__________________________________________________

190
SAÚDE E TRABALHO: POSSIBILIDADES DE
INCLUSÃO SOCIAL PARA OS MIGRANTES∗

10
Júlia Rodrigues Rauber
Janaína Machado Sturza

RESUMO:
Os desafios apresentados pelo século XXI, no sentido de promover políticas públicas
e efetivar os direitos humanos dos migrantes, são motivo de inúmeras interlocuções
nos âmbitos econômico, cultural, político e, especialmente, social e jurídico. A partir
disso, a presente pesquisa é norteada por dois eixos de investigação acerca dos mar-
cos legais e das políticas públicas de inclusão social dos migrantes: saúde e trabalho.
Nesse sentido, busca-se averiguar em que medida as legislações e as políticas públicas
estão adequadas aos princípios e às garantias fundamentais estabelecidas nos docu-
mentos de Direitos Humanos. Seguindo este ideário, o presente trabalho tem por
objetivo proporcionar uma visão geral e aproximativa acerca do tema das políticas
públicas de inclusão social voltadas ao acesso à saúde e ao mercado formal de traba-
lho.

∗ Excerto elaborado a partir do projeto “SAÚDE E TRABALHO: A INCLUSÃO SOCIAL DE MI-


GRANTES A PARTIR DOS MARCOS LEGAIS E DAS POLÍTICAS PÚBLICAS EXISTENTES
NO BRASIL E NA ITÁLIA”, financiado pelo Edital Universal CNPq - Chamada
CNPq/MCTI/FNDCT N° 18/2021, desenvolvido junto ao programa de Pós-Graduação em Di-
reito – Mestrado e Doutorado, da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande
do Sul – UNIJUÍ.
191
Júlia Rodrigues Rauber · Janaína Machado Sturza
PALAVRAS-CHAVE:
Direito à saúde; Políticas públicas; Trabalho.

ABSTRACT:
The challenges presented by the 21st century, in the sense of rights to promote public
and effective policies, are the reason for numerous dialogues in the economic, cultural,
political and, especially, social and legal spheres. Based on this, the present research is
guided by two axes of investigation concerning the legal frameworks and public policies
for the social inclusion of migrants: health and work. In this sense, we seek to find out
how public policies and human rights are primordial to fundamental human rights,
we seek in the documents of public guarantees and in that sense. Following the ideal
work, the present work aims to provide an overview and approach of public policies for
social inclusion and issues of access to health to the formal labor market.

KEYWORDS:
Right to health; Public policy; Work

1. INTRODUÇÃO
A mobilidade humana é um fato indiscutivelmente histórico e que se agravou nos
últimos anos devido aos efeitos da globalização. De acordo com o relatório “Interna-
tional Migration 2020 Highlights” elaborado pelo departamento de assuntos econô-
micos e sociais das Nações Unidas, o número de pessoas que vivem fora de seu país
de cidadania atingiu, em 2020, 281 milhões. Diante deste cenário, é necessário com-
preender os marcos legais e as políticas públicas para migrantes, bem como o papel
do Estado receptor acerca do tema e a garantia de direitos dos migrantes principal-
mente no que tange a saúde e trabalho. Visando proporcionar uma visão mais apro-
ximativa a respeito do assunto, o presente trabalho, realizado a partir do projeto Sa-
úde e trabalho: a inclusão social de migrantes a partir dos marcos legais e das políticas
públicas existentes no Brasil e na Itália, buscou contextualizar as migrações com foco
nos movimentos e na regulação. Para alcançar esse objetivo, apresenta-se a seguinte
192
Saúde e trabalho: possibilidades de inclusão social para os migrantes
estrutura: A primeira parte irá tratar sobre a história das migrações e suas principais
características, com atenção especial para a contextualização das migrações no século
XXI e no andamento do projeto serão abordadas questões de mapeamento e a con-
solidação dos dados acerca das legislações e respectivas políticas públicas de inclusão
social para migrantes, especialmente nos eixos saúde e trabalho.

2. METODOLOGIA
Inicialmente, trata-se de uma pesquisa do tipo exploratória - qualitativa e quanti-
tativa, com o objetivo de proporcionar uma visão geral e aproximativa acerca do
tema das políticas públicas de inclusão social para migrantes, sob o enfoque saúde e
trabalho.
Será incorporado como método de pesquisa o fenomenológico, compreendido
como interpretação ou hermenêutica universal, considerando-se que a pesquisa fe-
nomenológica parte do cotidiano e não de definições e conceitos, como ocorre nas
pesquisas desenvolvidas segundo a abordagem positivista, o método fenomenoló-
gico mostra-se pertinente. Quanto à técnica de pesquisa, se dará pelo emprego de
pesquisa bibliográfica e documental, utilizando-se documentos bibliográficos a par-
tir da técnica de análise de conteúdo.
Ademais, será realizada pesquisa documental, mapeando as políticas públicas
existentes, especialmente vinculadas à saúde e à promoção do trabalho formal, além
do levantamento de legislações, utilizando-se como método de abordagem o compa-
rativo.

3. OBJETIVOS
A pesquisa tem por objetivo geral mapear e consolidar dados acerca dos mar-
cos legais e das políticas públicas de inclusão social de migrantes no que tange a saúde
e trabalho.
Inicialmente, objetiva-se, em razão de obter maior compreensão sobre o assunto,
a realização de estudo do tipo exploratório, abordando a história das migrações e suas
principais características, com atenção especial para a contextualização das

193
Júlia Rodrigues Rauber · Janaína Machado Sturza
migrações no século XXI.
Seguindo este ideário, após a conclusão de pesquisas acerca de legislações e polí-
ticas públicas, será realizado um aprofundamento em assuntos que tangem a saúde e
o trabalho dos migrantes e avaliar o processo de inclusão social dessa parcela da po-
pulação, a partir de marcadores como acesso ao mercado de trabalho, à saúde e os
direitos que eles possuem acerca desses temas expostos.

4. DESENVOLVIMENTO
Migrar está relacionada ao próprio desenvolvimento da humanidade, sem a mi-
gração a espécie humana não teria sobrevivido e se desenvolvido. A ação de migrar é
inerente ao ser humano e acontece em conformidade com a sua época, ou seja, influ-
enciada pelas características de seu tempo, sendo parte do resultado desse processo.
Nesse sentido, é válido contextualizar, as migrações e suas principais característi-
cas, com atenção especial para a contextualização das migrações no século XXI. Se-
gundo o glossário sobre migrações, migração é o processo no qual ocorre o atraves-
samento de uma fronteira internacional ou de um Estado. Compreende o movi-
mento populacional independente da motivação. Entretanto, pode adquirir caracte-
rísticas específicas como: migração assistida; migração circular; migração clandes-
tina; migração de retorno; migração em massa/coletiva; migração espontânea; mi-
gração forçada; migração ilegal; migração individual; migração interna; migração in-
ternacional; migração laboral; migração líquida/migração total; migração ordenada;
migração regular; migração secundária. (OIM, 2009, p.40-43). A migração é um fe-
nômeno complexo, que pode adquirir diversas formas e características e na atuali-
dade, é difícil, ou praticamente impossível, caracterizá-la como simples e exata.
A importância que a migração possui na história e na construção das sociedades
pode ser exemplificada e reforçada, tendo em vista que: “A história da humanidade
poderia ser contada tendo como fio condutor as migrações e os desdobramentos que
elas provocaram” (RADIN 2020, p. 13). Outrossim, o processo de migração faz parte
do surgimento da espécie humana, é universal e trans histórico, é forma pela qual o
ser humano se dispersou globalmente. A formação histórica da América é composta
por migrações transcontinentais que assumiram diversas formas desde o povoa-
mento paleolítico, conquista e colonialismo, escravidão, movimentos massivos livres
194
Saúde e trabalho: possibilidades de inclusão social para os migrantes
e diásporas mercantis (MOYA, 2018, p. 25-26; 61). Destaca-se que a imigração in-
ternacional é um dos fatores mais importantes na mudança global, fenômeno que é
influenciado pelo movimento de mercadorias, capitais e ideais e vice-e-versa (CAS-
TLES, HASS, MILLER, 2014, p. 7). Além disso, três situações que envolvem as mi-
grações internacionais no século XXI devem ser destacadas: “o aumento da popula-
ção e a migração internacional, a relação entre urbanização e as migrações e, por úl-
timo, as mudanças climáticas” (WENDEN, 2016, p. 25).
A história da América Latina envolvida em mais de cinco séculos de transforma-
ções que envolveram migrações que acompanharam as mudanças globais de poder.
Primeiro com a vinda de europeus, principalmente espanhóis e portugueses. Poste-
riormente, no século XIX, novos movimentos de europeus contribuíram para a for-
mação dos Estados-nação e da nova economia. E a partir de 1970, a globalização ne-
oliberal e a concentração de riqueza e poder nos “países desenvolvidos” resultando
em fluxos invertidos, latinos-americanos migram para Europa, Japão ou EUA,
ocorre também a fuga de cérebros para os países ricos e trabalhadores menos quali-
ficados migram frequentemente de forma irregular, insegura e suscetível de explora-
ção (CASTLES. 2010, p. 13-14).
As grandes migrações características da segunda metade do século XIX e início
do século XX desenvolveram papel importante para o desenvolvimento do capita-
lismo, inclusive, em escala mundial, considerando que “[...] transição demográfica,
expansão capitalista (e uma revolução tecnológica na navegação) e grandes migra-
ções são processos interligados igualmente no espaço”. Além disso, a transferência
populacional caracterizada pela repulsão da Europa e atração de imigrantes na Amé-
rica, local onde se construía uma nova sociedade onde o imigrante era necessário,
não ocorreu de forma fortuita, mas sim, correspondente a uma divisão internacional
do trabalho (NADALIN, 2018, p. 2-4).
Apesar das migrações não serem novidade, a partir da segunda metade do século
XIX elas assumiram importância no cenário internacional, acompanhando o desen-
volvimento do capitalismo. O primeiro padrão que vai da segunda metade do século
XIX até a Primeira Guerra Mundial é marcada pela migração da população europeia
para os Estados Unidos, Canadá, Argentina, Brasil e a Austrália, fluxo impulsionado
pela reestruturação produtiva do capitalismo na indústria e na agricultura. O se-
gundo padrão acontece entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, mesmo que as
195
Júlia Rodrigues Rauber · Janaína Machado Sturza
migrações internacionais tenham diminuído nesse período, o fluxo foi marcado pela
mobilidade forçada gerada pelos regimes totalitários e pelo contexto bélico. O ter-
ceiro padrão ocorre após a Segunda Guerra Mundial, sendo marcada pela migração
da população dos países pobres para os países desenvolvidos, esse ciclo se encerra
nos anos 70. O quarto padrão, que acontece no contexto da Terceira Revolução In-
dustrial, é marcado pelos conflitos sociais, políticos e éticos derivados da presença
dos imigrantes nos países desenvolvidos. Esses padrões não são excludentes e podem
coexistir (BRITO, 2017 p. 810-817).
No século XXI as migrações internacionais alcançaram dimensões sem preceden-
tes. As migrações têm se globalizado nos últimos anos, processo que deve continuar
tendo em vista que os fatores dessa mobilidade são estruturais: diferenças nos níveis
de desenvolvimento humanos; crises políticas e ambientais; redução no custo de
transportes, falta de esperança em países pobres, a mídia e as mudanças climáticas.
De forma diferente que do passado, os movimentos migratórios atuais não são for-
mados majoritariamente por europeus, mas de diferentes grupos (WENDEN, 2016,
p. 18).
Situações econômicas influenciam a migração, por exemplo, a crise econômica
do ano de 2008 promoveu alterações nos fluxos da migração internacional. Regiões
que até então atraíram migrantes, localizadas sobretudo no Hemisfério Norte, deixa-
ram de ser atrativas e até mesmo promoveram a expulsão de mão de obra, migrantes
fizeram a viagem de retorno, e nacionais dos países ricos, migraram principalmente
a países emergentes que necessitavam de mão-de-obra qualificada, a exemplo do
Brasil. Estima-se que a migração de retorno tenha reduzido em mais de 35% o nú-
mero de brasileiros vivendo no exterior. (FERNANDES, 2015, p. 22-23).
Questões políticas e de soberania também influenciam na migração e vice-versa.
O discurso político enfrenta as migrações como um problema a ser resolvida com
leis, a repressão é o controle fronteiriço, porém, por uma perspectiva mais liberal,
deve-se enfrentar as causas da migração para que as pessoas não precisem migrar,
enfrentar por exemplo, a pobreza a violência nos países de origem. Todavia, a migra-
ção é vista como ameaçadora e disfuncional. Os governantes tendem a compreender
a migração como um problema a ser resolvido, buscando maneiras para que os mi-
grantes não deixem suas terras de origem, todavia, não compreendem que a imigra-
ção faz parte do desenvolvimento humano (CASTLES, 2010, p. 14-16).
196
Saúde e trabalho: possibilidades de inclusão social para os migrantes
Pode-se pontuar também que, diferente das migrações do passado as quais tinha
como objetivo alimentar a família e melhorar as condições de vida, na atualidade
passa-se por uma mudança de objetivo, sendo que, a migração ganha espaço com um
enfoque individualista, para realizar um projeto de vida (WENDEN, 2016, p. 25).
Salienta-se que, a migração por melhores condições de vida e com o objetivo de ali-
mentar a família continuam, todavia, surgem outras possibilidades, objetivos e mo-
dalidades de migração. Existem diferente fluxos migratórios, compostos por realida-
des totalmente diferentes. Deve-se analisar cada situação.
A migração em massa acompanha a Era Moderna desde o seu início, mudando e
revertendo a direção, tendo em vista que “o modo de vida moderno” produz “pes-
soas redundantes” (excessivas ou não empregáveis, ou intoleráveis) (BAUMAN,
2017, p. 9). Diante do cenário do século XXI, Castles, Hass e Miller (2014, p. 16)
pontuam algumas tendências gerais para as migrações: a) globalização da migração,
a tendência de cada vez mais países serem afetados pela migração internacional; b)
mudança de direção dos fluxos migratório, tendo em vista que no passado os euro-
peus eram os migrantes e na atualidade surgem outros fluxos mais números, tendo a
Europa se tornado um local de destino; c) diferenciação da migração, a tendência é
que os países recebem migrantes de diferente fluxos e tipologias; d) transição migra-
tório, quando locais de emigração se tornam de imigração ou vice-e-versa; e) femi-
nização da migração laboral; f) crescente politização da migração.
Diante dos diferentes movimentos migratórios optou-se em direcionar maior
atenção ao fluxo Sul-Sul, fluxo migratório composto por pessoas dos países do Sul
(países em desenvolvimento) que migram para outros países do Sul. As noções de
Sul e Norte Global, divisão criada após o fim da Guerra Fria (então estava relacionada
a Leste/socialista e Oeste/capitalista) está relacionada à ideia de desenvolvimento,
sendo o Norte associado ao desenvolvimento e à riqueza e o Sul à pobreza (SANTOS,
ROSSINI, 2018, p. 277).
A delimitação para o fluxo Sul-Sul se justifica em razão do Brasil ser um país do
“Sul” e o fluxo analisado na pesquisa de campo ser composto por pessoas vinda de
países do “Sul”. Não interessando para essa pesquisa o movimento migratório
“Norte-Sul”.
Conforme relatório da ONU sobre migrações, atualmente, mais migrantes

197
Júlia Rodrigues Rauber · Janaína Machado Sturza
internacionais do Sul residem no Sul do que no Norte, o aumento da migração Sul-
Sul vem ocorrendo desde 2005. Em 2019, 39 por cento dos migrantes internacionais
nasceram em um país das regiões menos desenvolvidas e residiam em outro país em
desenvolvimento ("migrantes Sul-Sul"). 35 por cento nasceram no Sul, mas residiam
no Norte (“Migrantes Sul- Norte”). Em torno de um em cada cinco migrantes inter-
nacionais nasceu no Norte e residia no Norte (“migrantes Norte-Norte”), enquanto
5 por cento nasceu no Norte, mas residia no Sul (“migrantes Norte-Sul”) (ONU,
2019).
Os movimentos migratórios podem ser constantes ou passageiros, depende do
contexto do país emissor e do receptor. Se verifica no Brasil a partir de 2015 o au-
mento da imigração latino- americana como principal lugar de origem dos imigran-
tes, muito influenciada pela imigração de haitianos e venezuelanos, o que difere do
período 2010-2015, marcado por outros importantes fluxos do Sul Global (por exem-
plo: sul-americanos, haitianos, senegaleses, congoleses, guineenses, bengalis, gane-
ses, paquistaneses, entre outros). No primeiro semestre de 2020, por exemplo, as
principais nacionalidades com maiores movimentações no mercado de trabalho bra-
sileiro são todas latino-americanas (haitianos, venezuelanos, paraguaios, argentinos
e bolivianos), mas isso não significa que não ocorram outros fluxos migratórios. As-
sim, imigrantes de diferentes partes do hemisfério sul no primeiro quinquênio da
década e, especialmente, latino-americanos nos últimos anos caracterizaram o perí-
odo de chegada de novos fluxos migratórios ao país. A estruturação econômica tam-
bém influencia na distribuição de migrantes internamente. O Brasil meridional (re-
gião sul e São Paulo) e o final da cadeia produtiva do agronegócio (frigorífico – abates
de suínos, aves), se destacaram na empregabilidade dos imigrantes e refugiados entre
os anos 2010 e 2019 (CAVALCANTIN; OLIVEIRA, 2020, p.9-10).
A ampliação e fortalecimento das relações do Brasil com os demais países do Sul,
como na relação com os países do Mercosul e alguns países africanos, de forma es-
pecial na década de 2000, resultaram na construção de uma imagem positiva do Bra-
sil no exterior, entretanto, mais recentemente, essa imagem parece sofrer abalos.
(SANTOS, ROSSINI, 2018, p. 292).
Diante dos diversos movimentos migracionais internacionais contemporâneos, o
Brasil assume, analisando como exemplo a migração haitiana, um “Norte alterna-
tivo” e um “Norte temporário”, tendo em vista que, o Norte Global almejado é de
198
Saúde e trabalho: possibilidades de inclusão social para os migrantes
difícil acesso e o Brasil acaba se tornando destino atrativo para trabalhar, ter experi-
ência profissional, formação acadêmica, como uma forma de adquirir esses capitais
para retornar para o Haiti ou outro destino. Todavia, mesmo que às vezes o objetivo
seja temporariedade da estadia no Brasil, esta acaba se prolongando (DIEME, TO-
NHATI, PEREDA, 2020, p. 143-144).
A imigração no Brasil iniciou-se com os portugueses no contexto da colonização,
e para o complexo econômico da colônia foi necessária a importação de mão de obra
que resultou no movimento migratório forçado de africanos que perdurou mais de
três séculos. No início do século XIX, o movimento começou a se diversificar com a
experiência de migrações livres também dirigida para não portugueses (PATARRA
e FERNANDES, 2011, p. 68). A formação do povo brasileiro é resultado de: “Surgi-
mos da confluência, do entrechoque e do caldeamento do invasor português com
índios silvícolas e campineiros e com negros africanos, uns e outros aliciados como
escravos” e de modo especial, parte da região Sul do Brasil como “ A terceira confi-
guração histórica-cultural da região sulina é constituída pelos brasileiros de origem
germânica, italiana, polonesa, japonesa, libanesa e várias outras, introduzidos como
imigrantes do século passado, principalmente nas últimas décadas” (RIBEIRO, 2015,
p.17; 318).
Desta forma, pode-se concluir que a migração faz parte da história e da formação
do povo brasileiro. Todavia, será dada atenção para as características e regulações das
migrações a partir do século XIX, excluindo a migração de ocupação do território e
colonização realizada principalmente pelos portugueses e a migração de mão de obra
africana destinada para o trabalho escravo.
O Brasil do século XIX sofria com a carência de mão de obra e a solução encon-
trada foi a imigração europeia. A imigração européia já havia ocorrido com a criação
de algumas colônias pelo governo imperial, mas elas não contribuem para o supri-
mento de mão de obra, esse modelo de imigração tinha como um dos fundamentos
a crença na superioridade inata do trabalhador europeu. A classe cafeeira necessi-
tando de mão de obra para as lavouras e reconhecendo que a política de colonização
do governo imperial não solucionaria o problema da mão de obra, os fazendeiros
começaram a preocupar-se diretamente com o problema, optando por fomentar a
imigração europeia (FURTADO, 2005, p. 124-130). A crise do trabalho escravo fez
surgir a preocupação de quem seria a massa trabalhadora nesse novo cenário de
199
Júlia Rodrigues Rauber · Janaína Machado Sturza
transição, protelou-se o fim da escravidão e promovia-se a entrada de imigrantes,
entretanto, por razões culturais restringia-se a entrada a alguns grupos como de afri-
canos, chineses ou asiáticos (RADIN, 2020, p. 38).
Aspectos econômicos internos e externos contribuíram para a migração, a vinda
de tantos imigrantes tem relação com as transformações que estavam acontecendo
na Europa e no Brasil. As mudanças sociodemográficas, a expansão do capitalismo e
a mecanização das atividades agrícolas contribuíram para a saída de muitas pessoas
da Europa. O transporte marítimo foi facilitado pelos baixos custos, tendo em vista
que se poderiam transportar grande número de migrantes. E em contrapartida, no
Brasil, havia a necessidade de mão de obra, principalmente após a abolição da escra-
vatura (SOLÉ; CAVALCANTI; PARELLA, 2011, p. 27).
A imigração europeia estava envolta por interesses racista e de eugenia, incenti-
vada por interesses econômicos. A questão racial e o objetivo de diversificar a agri-
cultura brasileira estavam presentes desde os projetos imigrantistas de 1818 com a
fundação de Nova Friburgo (1819). A imigração passou a ser representada como
parte de um processo civilizatório e como forma para ocupação das terras devolutas.
O pressuposto da superioridade branca foi utilizado para um modelo de colonização
com pequena propriedade familiar baseado na vinda de imigrantes europeus, bus-
cava ainda o povoamento do território, direcionando-o principalmente para as terras
devolutas da região Sul. Para a escolha dos migrantes foi dada preferência para as
nacionalidades que eles consideram com maiores habilidades agrícolas, como os ale-
mães e italianos, o bom imigrante deveria ter “[...] amor ao trabalho e à família e
respeito às autoridades, além de ser sóbrio, perseverante, morigerado, resignado, ha-
bilidoso, etc.” (SEYFERTH, 2002, p. 118-120)
A imigração de trabalhadores europeus não foi apenas uma importação de mão
de obra para substituir escravos ou para ocupar o território livre, tratou-se também
de um projeto que pretendia a reorganização social do Brasil, direcionando o eixo
para o Sul, criando propriedades de pequeno e médio porte, visando transformar o
Brasil em um país moderno e competitivo (ROMANATO, 2020, p. 12)3. Além disso,
via-se na imigração a possibilidade de branqueamento da população, todavia, por
outro lado, parte da elite intelectual preocupa-se com a possibilidade de a miscige-
nação degradar o branco, pois, considerava o mestiço "incivilizadas e degenerado”
(RADIN, 2020, p. 40-41).
200
Saúde e trabalho: possibilidades de inclusão social para os migrantes
Para o pensamento imigrantista do século XIX a escravidão não era imoral ou
ilegítimo, mas um modelo retrógrado, arcaico, que poderia impedir a imigração, um
empecilho para os projetos de modernização, produzindo uma imagem negativa do
país na Europa (SEYFERTH, 2002, p. 120). Todavia, a inserção de imigrantes no ce-
nário econômico brasileiro ocupando espaço como mão de obra, substituindo o lu-
gar do cativo, contribuiu para a marginalização dos ex-escravos, indígenas e cabo-
clos. Além disso, aos imigrantes estavam previstos benefícios, tais como, concessão
de terras, ferramentas, sementes e subsídios, situação oposta aos dos ex-escravos, ca-
boclos e indígenas que não recebem incentivos de inserção no sistema produtivo
(RADIN, 2020, p. 39).
Os conceitos soberania, segurança, proteção do trabalhador nacional, interesse
nacional, direitos humanos e dignidade transitam nas discussões sobre migrações em
perspectivas nacionais e internacionais. Em que pese a ação de migrar não é nova e
como aponta Jardim (2017, p.17) “Não precisamos buscar na arqueologia a desco-
berta de nosso nomadismo. Ao contrário, mais esforços precisamos fazer para expli-
car a formação do que é fixo, tais como os limites fronteiriços”, cumpre na atualidade
ordenar da melhor maneira possível a ação de migrar em um contexto influenciado
pela globalização. As organizações humanas em sociedade, seja em tribos, cidades-
estados, feudos ou em Estados como concebemos hoje, delimitam cada qual à sua
maneira os que são parte do grupo e os que são considerados estranhos, os forastei-
ros, os de fora. O Estado nacional moderno que tem na normatividade da lei o seu
instrumento de sua manutenção e regulação, organiza a questão migratória a partir
de instrumentos legislativos que variam conforme o momento histórico-político em
que é concebido.
A migração tem uma relação estrita com os direitos humanos. Pode-se apontar os
direitos humanos como a “[...] a luta do ser humano para ver cumpridos seus desejos
e necessidades nos contextos vitais em que está situado” (FLORES, 2009, p.20).
Acrescenta-se ainda dentro do processo de efetivação dos direitos humanos, a rela-
ção entre estes, democracia e paz, é muito estreita, tendo em vista que sem direitos
humanos reconhecidos e efetivados não existe democracia e sem democracia não há
como condições de solucionar conflitos de forma pacífica entre indivíduos, grupos,
coletividades e o Estado (BOBBIO, 2004, p. 203)

201
Júlia Rodrigues Rauber · Janaína Machado Sturza
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com base nas informações coletadas e analisadas até o momento, por meio deste
artigo e do projeto de pesquisa que ainda está em execução, busca-se entender quais
os aspectos históricos dos fluxos migratórios, como se caracteriza esse fenômeno e
quais os marcos legais que amparam os migrantes, em especial, no que tange a saúde
e o trabalho. Reforça-se a importância de investigar, analisar e encontrar uma solu-
ção para os desafios encontrados pelos migrantes, especialmente em áreas que con-
tribuem para uma vida mais digna em sociedade.
Neste primeiro momento, para que houvesse um embasamento de fundamenta-
ção teórica, o artigo focou na história das migrações e suas principais características,
com um adendo para a contextualização das migrações no século XXI. É visível que
as migrações são berços de inovações e transformações, visto posto que a formação
populacional no Brasil é historicamente composta pelas migrações de diversos países
e os Brasileiros em sua vasta maioria, têm pais, avós ou bisavós migrantes; e muitos
de nós, também, migramos.
Com o andamento deste projeto, o enfoque será na consolidação dos dados
acerca das legislações e respectivas políticas públicas de inclusão social para migran-
tes, especialmente nos eixos saúde e trabalho, um tema extremamente importante e
que se desenrolará através de pesquisas do tipo exploratória, com o objetivo de pro-
porcionar uma visão geral e aproximativa acerca do tema das políticas públicas de
inclusão social para migrantes
O projeto tem em sua essência a necessidade de dar visibilidade a indivíduos que
não são compreendidos, sendo considerados como um “problema” pelo Poder Pú-
blico e pela sociedade como um todo. Nesse sentido, ao se aprofundar mais nos as-
pectos históricos, marcos legais e políticas públicas, é possível trazer á tona as viven-
cias desses sujeitos e assim, contribuir para a ascensão deste assunto, construindo
uma rede de apoio e acompanhamento dos migrantes no acesso aos seus direitos,
principalmente no que tange a saúde e trabalho.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAUMAN, Zygmunt. Estranhos à nossa porta. Tradução Carlos Alberto Medeiros.

202
Saúde e trabalho: possibilidades de inclusão social para os migrantes
Rio de Janeiro, Zahar, 2017.
BRITO, Fausto. In: CAVALCANTI, Leonardo; BOTEGA,Túlia; TONHATI, Tânia;
ARAÚJO, Dina (orgs.). Dicionário crítico de migrações internacionais (recurso
eletrônico). Brasília: Editora UnB, 2017.
CASTLES, Stephen, HASS, Hein de; MILLER, Mark J. The age of migration: inter-
national population movements in the modern world. 5 ed. Londres: Palgrave
Macmillan, 2014.
CASTLES. Stephen. Entendendo a migração global. Uma perspectiva desde a trans-
formação social. Revista Internacional de Mobilidade Humana. Ano XVIII. n.
35, p. 11-43, jul./dez. 2010. Disponível em: < http://remhu.csem.org.br/in-
dex.php/remhu/article/view/227/210>.
DIEME, Kassoum; TONHATI, Tânia; PEREDA, Lorena. A migração haitiana e a
construção de seus “Nortes’: Brasil um “Norte” alternativo e temporário. Revista
da sociedade brasileira de sociologia. v. 8, n. 19, p.126-146, mai/ago, 2020.
FERNANDES, Duval. O Brasil e a migração internacional no século XXI – Notas
introdutórias. In: PRADO, Erlan José Peixoto do; COELHO, Renata (orgs.). Mi-
grações e trabalho. Brasília: Ministério Público do Trabalho, 2015.
FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. 32. ed. (recurso eletrônico). São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 2005. Disponível em: < http://www.afoicee-
omartelo.com.br/posfsa/Autores/Furtado,%20Celso/Celso%20Furtado%20-
%20Forma%C3%A7%C3%A3o%20Econ%C3%B4mica%20do%20Brasil.pdf>.
MOYA, José. Migração e Formação Histórica da América. Revista Sociologias, Porto
Alegre, vol. 20, n. 49, p. 24-68, set/dez, 2018.
NADALIN, Sergio Odilon. Rumo à América: passageiros da rota Hamburgo – São
Francisco do Sul na segunda metade dos oitocentos. Revista brasileira de estudos
de população. vol. 35, p. 1-14, maio, 2018.
OIM – ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL PARA AS MIGRAÇÕES. Migrantes
internacionais somam 272 milhões, 3,5% da população global, aponta relatório
da OIM. 2019. Disponível em: < https://brazil.iom.int/news/migrantes-interna-
cionais-somam-272-milh%C3%B5es-35-da-popula%C3%A7%C3%A3o-global-

203
Júlia Rodrigues Rauber · Janaína Machado Sturza
aponta-relat%C3%B3rio-da-oim>. Acesso em: Jun de 2022.
OLIVEIRA, Antonio Tadeu Ribeiro de. A transição na legislação migratória: um es-
tudo empírico para o período 1980-2019. In: CAVALCANTI, L; OLIVEIRA, T.;
MACEDO, M., Imigração e Refúgio no Brasil. Relatório Anual 2020. Série Mi-
grações. Observatório das Migrações Internacionais; Ministério da Justiça e Segu-
rança Pública/ Conselho Nacional de Imigração e Coordenação Geral de Imigra-
ção Laboral. Brasília, DF: OBMigra, 2020.
PATARRA, Neide Lopes; FERNANDES, Duval. Revista internacional em língua
portuguesa. III série. n.24, 2011. Disponível em: http://aulp.org/wp-con-
tent/uploads/2019/01/RILP24.pdf#page=360.
RADIN, José Carlos. Imigração italiana em Santa Catarina e no Paraná: fontes di-
plomáticas italianas (1875-1927). Chapecó: Ed. UFFS, 2020.
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: formação e o sentido do Brasil. 3.ed.5 reim. São
Paulo: Global, 2015.
SANTOS, Aline Lima; ROSSINI, Rosa Ester. Reflexões geográficas sobre migrações,
desenvolvimento e gênero no Brasil. In: BAENINGER, Rosana et al (orgs.). Mi-
grações sul-sul. 2.ed. Campinas, São Paulo: Núcleo de Estudos de População
“Elza Berquó” – Nepo/Unicamp, 2018. P.277-295.
WENDEN, Catherine Wihtol de. Las nuevas migracionais. Dossier Sur sobre migra-
ción y derechos humanos. v. 13. n. 23, p. 17-28, 2016. Disponível em:
<https://sur.conectas.org/wp-content/uploads/2016/09/1-sur-23-espanhol-ca-
therine-wihtol-de-wenden.pdf>. Acesso em Jun de 2022.

__________________________________________________
RAUBER, Júlia Rodrigues; STURZA, Janaína Machado. Saúde e trabalho:
possibilidades de inclusão social para os migrantes in: oliveira, Marco Au-
rélio Machado de; (Org.). Anais do I Congresso do Migrafron. Uberlân-
dia: Marco Teórico, 2022. pp. 191-204.
__________________________________________________

204
OS FLUXOS MIGRATÓRIOS NO RIO GRANDE
DO SUL : QUESTÃO DE SAÚDE, GÊNERO
E INCLUSÃO SOCIAL∗

11
Maria Luiza Zimmermann
Gabrielle Scola Dutra
Janaína Machado Sturza

RESUMO:
O objetivo geral desta pesquisa é mapear e consolidar dados acerca dos fluxos migra-
tórios na região noroeste do estado do Rio Grande do Sul, destacando-se os municí-
pios de Santo Ângelo, Ijuí, Santa Rosa e Três Passos. O objetivo específico é analisar,
através das interlocuções entre saúde, gênero e inclusão social, as repercussões rela-
tivas ao processo migratório e as relações construídas pelos migrantes com a popu-
lação autóctone. A pesquisa caracteriza-se como um estudo de caso, pois busca veri-
ficar como o migrante é acolhido na Região Noroeste do Estado do RS, principal-
mente, no que se refere à consolidação de seus direitos.

∗ Artigo elaborado a partir do projeto “SER MIGRANTE” NO ESTADO DO RIO GRANDE DO


SUL: saúde, gênero e inclusão social dos migrantes residentes na Região Noroeste do Estado, fi-
nanciado pela FAPERGS – Edital PqG 05/2019, desenvolvido junto ao programa de Pós-Gradua-
ção em Direito – Mestrado e Doutorado, da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio
Grande do Sul – UNIJUÍ.
205
Maria Luiza Zimmermann · Gabrielle Scola Dutra · Janaína Machado Sturza
PALAVRAS-CHAVE:
Inclusão Social; Migrações; Saúde.

ABSTRACT:
The general objective of this research is to map and consolidate data relating to the
migratory flows in the northwestern region of the state of Rio Grande do Sul, with em-
phasis on the cities of Santo Ângelo, Ijuí, Santa Rosa and Três Passos. The specific ob-
jective is to analyze, through the intersections between health, gender and social inclu-
sion, the repercussions relative to the migratory process and the relationships built by
the migrants with the native populace. This research is characterized as a case study,
since it observes how the migrant is welcomed and accommodated in the northwestern
region of Rio Grande do Sul, more specifically, in relation to the consolidation of their
rights.

PALABRAS-CLAVE:
Healyh; Migrations; Social Inclusion.

1. INTRODUÇÃO
Na última década, de acordo com estimativas da OIM – International Organiza-
tion for Migration, o Brasil experienciou uma grande mudança de paradigma com
relação à questão das migrações, pois passou de um país produtor de imigrantes para
um país receptor de imigrantes. Em sua grande maioria, os migrantes que são rece-
bidos em nosso país são provenientes do Sul Global (haitianos, venezuelanos, bolivi-
anos, etc.), dando origem a um complexo cruzamento de pluralidades existenciais
que constituem diferentes tipos de relações sociais com a população autóctone.
Ademais, conforme o relatório “International Migration 2020 Highlights” articu-
lado pelo Departamento de Assuntos Econômicos e publicado pela Organização das
Nações Unidas (ONU) no ano de 2020, acredita-se que o número global de migran-
tes internacionais tenha chegado a 281 milhões. No cenário brasileiro, de acordo com
o Relatório Anual desenvolvido pelo Observatório das Migrações Internacionais
206
Os fluxos migratórios no Rio Grande do Sul: questão de saúde, gênero e inclusão social
(OBMigra), entre os anos de 2011 a 2019 foram registrados no país 1.085.673 imi-
grantes, número reflexivo de como a situação migratória global foi definitiva para
orientar a diversidade dos fluxos migratórios para o Brasil
No entanto, apesar de a imigração ter ganhado peso no Brasil, o país ainda possui
um volume muito baixo de imigrantes, que é de menos de 1% da população, e conti-
nuaria baixo mesmo se levados em consideração os imigrantes irregulares, não exce-
dendo 2% da população. Mesmo assim, a efetivação dos Direitos Humanos dos mi-
grantes no país tem encontrado inúmeros percalços.
E diante desse crescente número de imigrantes chegando ao Brasil, articulam-se
múltiplas formas de operacionalização da integração de desses migrantes ao tecido
social brasileiro, sendo imprescindível a implementação/execução de políticas públi-
cas que sanem os déficits estruturais existentes na estrutura social do país.
Portanto, a pesquisa em questão apresenta interlocuções entre saúde, gênero e
inclusão social dos migrantes residentes na Região Noroeste do Estado do RS, a partir
do projeto de pesquisa financiado pelo Edital Pesquisador Gaúcho – PqG – Faixa A,
FAPERGS 05/2019. O objetivo geral da pesquisa é mapear e consolidar dados acerca
dos fluxos migratórios com destino à Região Noroeste do Estado do Rio Grande do
Sul, evidenciando-se os municípios de Santo Ângelo, Ijuí, Santa Rosa e Três Passos.
A pesquisa se propõe em identificar e analisar as repercussões relativas ao processo
migratório do ser que migra e sua relação com a população autóctone, com o intuito
de compilar dados que darão suporte na otimização/criação de políticas públicas
para migrantes pelos Municípios da Região.

2. METODOLOGIA
Inicialmente, serão coletados dados quantitativos relacionados à idade, gênero,
nacionalidade e formação profissional dos migrantes que aportam na região, e, após,
investigar o impacto dessas migrações na região, tendo por base de reflexão os três
eixos já apontados como norteadores da pesquisa: acesso à saúde, questões de gênero
e inclusão social.
Quanto ao método de abordagem, de procedimentos e à técnica de pesquisa, se-
rão utilizados o método hipotético-dedutivo, o analítico e a documentação indireta
(pesquisa documental e bibliográfica) e direta (entrevistas e questionários),
207
Maria Luiza Zimmermann · Gabrielle Scola Dutra · Janaína Machado Sturza
respectivamente. Isso quer dizer que, a partir de hipóteses concebidas por meio de
levantamento bibliográfico e legislativo, além de observações e interlocuções na/com
a realidade empírica, será possível perceber de que modo as teorias podem ser estu-
dadas, aplicadas, modificadas e recriadas, no sentido de contribuir na construção de
conhecimento a partir de realidades locais.
Metodologicamente, a pesquisa caracteriza-se como um estudo de caso porque
observa como o migrante é acolhido na aludida Região, principalmente, no que tange
à consolidação de seus direitos, a partir de três eixos: saúde, gênero e inclusão social.

3. OBJETIVOS
O projeto tem por objetivo geral mapear e consolidar dados acerca dos fluxos mi-
gratórios na região noroeste do estado do Rio Grande do Sul, localizada mais ao Sul
do Brasil. Tal região abrange 77 municípios que integram os Conselhos Regionais de
Desenvolvimento (Coredes) do Noroeste Colonial, Missões, Fronteira Noroeste e
Celeiro, abrangendo uma população aproximada de 656 mil pessoas, com 4 municí-
pios que se destacam, quais sejam: Ijuí, que é o principal dos 11 municípios do Co-
rede Noroeste Colonial; Santo Ângelo, dos 25 municípios do Corede Missões; Santa
Rosa, dos 20 municípios do Corede Fronteira Noroeste; e Três Passos, no Corede
Celeiro, que possui 21 municípios.

Fonte: http://avemissoes.blogspot.com/p/regiao-das-missoes.html
208
Os fluxos migratórios no Rio Grande do Sul: questão de saúde, gênero e inclusão social

Objetiva-se, inicialmente, em razão da escassez de pesquisas sobre o assunto, con-


solidar dados quantitativos relacionados à idade, gênero, nacionalidade e formação
profissional dos migrantes que aportam na região, com especial foco nos municípios
de Santo Ângelo, Ijuí, Santa Rosa e Três Passos. Uma vez levantados esses dados,
buscar-se-á investigar o impacto das migrações na região a partir de três eixos bási-
cos: acesso à saúde, questões de gênero e inclusão social que envolvem a vida dos
migrantes.
No primeiro eixo, o objetivo maior é avaliar como a população constituída pelos
migrantes de diferentes nacionalidades têm sido atendida pelos serviços básicos de
saúde dos municípios da Região Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, com des-
taque para as políticas públicas e as estratégias utilizadas para garantir o acesso à sa-
úde para a população migrante, em especial para as mulheres. E, por fim, averiguar
o impacto orçamentário no atendimento às demandas de saúde da população local,
em detrimento da população migrante e fazer um comparativo entre as duas.
No segundo eixo, pretende-se verificar como as questões de gênero têm se apre-
sentado entre os migrantes de diferentes nacionalidades que residem na região de
estudo e a população autóctone. Assim, na interseção entre migração e gênero, pre-
tende-se pesquisar questões específicas acerca da constituição familiar destes grupos,
da orientação sexual e identidade de gênero, e sobre as condições das mulheres mi-
grantes e sujeitos LGBTQIA+, com relação à maternidade, à efetivação dos direitos
reprodutivos e às violências específicas de gênero a qual estão sujeitos. O objetivo,
portanto, é verificar de que modo as diversas construções de gênero – tanto dos paí-
ses de origem, quanto dos países receptores – impactam na condição de migrante e
na sua adaptação às comunidades locais.
Por fim, no terceiro eixo, pretende-se avaliar o processo de inclusão social dos
migrantes na Região Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, a partir de marcado-
res como acesso ao mercado de trabalho, políticas públicas locais e números relacio-
nados às ocorrências policiais envolvendo migrantes. A intenção é aferir em que me-
dida as políticas voltadas a estes sujeitos, quando existentes, estão adequadas aos
princípios e às garantias fundamentais estabelecidas nos documentos nacionais e in-
ternacionais de Direitos Humanos, essenciais para uma efetiva integração e

209
Maria Luiza Zimmermann · Gabrielle Scola Dutra · Janaína Machado Sturza
acolhimento desses migrantes.
A partir deste cenário, a presente pesquisa caracterizar-se-á como um estudo de
caso, posto que pretende investigar como o migrante é acolhido na Região Noroeste
do Estado do RS. Este projeto de pesquisa, portanto, não se propõe a estudar somente
os instrumentos formais do direito, mas também os instrumentos econômicos e, so-
bretudo, os sociais e políticos, com os quais as sociedades locais se organizam e esta-
belecem interlocuções diretas e fundamentais, tais como: Secretarias Municipais da
Saúde; Secretarias Municipais de Educação; Secretarias Municipais de Assistência
Social; Órgãos Municipais de Direitos da Mulher; Conselho Tutelar; Sistema Nacio-
nal de Emprego/Sine; Coordenadoria Regional da Saúde; Coordenadoria Regional
de Educação; Coredes (Noroeste Colonial, Celeiro, Missões e Fronteira Noroeste);
Polícia Militar; Polícia Civil; Poder Judiciário; Ministério Público; Defensoria Pú-
blica; Procuradorias jurídicas municipais, Polícia Federal.
Por representar extrema relevância, o tema abordado nesta pesquisa – fenômeno
migratório e o seu alcance geográfico na Região Noroeste do Estado do Rio Grande
do Sul – intenta-se que a sua realização produza impactos especialmente no que
tange à:
a) Produção de conhecimento acadêmico-científico sobre o tema, o qual
impactará na produção de Monografias de Conclusão de Curso, Disser-
tações de Mestrado e Teses de Doutorado sobre o tema, seja no Curso de
Graduação em Direito ou no Programa de Pós-graduação Stricto Sensu
em Direito da Unijuí, e de demais instituições de ensino regionais; no for-
talecimento de grupos e de projetos de pesquisa voltadas para o estudo do
fenômeno migratório na região, no Estado e no Brasil; na realização de
eventos e publicações científicas – artigos científicos, livros e capítulos de
livros – acerca da temática; na construção de subsídios empíricos e teóri-
cos para a investigações em nível de Pós-graduação em Direito e áreas
afins.
b) Capacidade de inserção e diálogo com a comunidade regional por parte
da Unijuí, na medida em que aborda as migrações internacionais a partir
da sua situação local, proporcionando subsídios para a solidificação de
compromissos e vínculos comunitário da IES que, por sua vez, se

210
Os fluxos migratórios no Rio Grande do Sul: questão de saúde, gênero e inclusão social
constitui em uma Universidade Comunitária, possuindo campus em qua-
tro municípios – Ijuí, Santa Rosa, Panambi e Três Passos, nos quais atua
com ênfase para a promoção do desenvolvimento regional.
c) Visibilidade do tema e, consequentemente dos sujeitos envolvidos – mi-
grantes – diante da comunidade regional. Neste aspecto, por tratar-se de
um tema praticamente invisível à comunidade local, a realização da pes-
quisa produzirá impactos: no aumento de circulação de informações
acerca da migração na região; na produção e veiculação de notícias acerca
do tema através de rádio, televisão, sites e mídias sociais; e na intensifica-
ção do interesse da comunidade no debate, pautado pelo viés dos direitos
humanos.
d) Qualificação do marco regulatório da migração no âmbito nacional, esta-
dual e municipal. Neste aspecto, pretende-se que a pesquisa produza sub-
sídios técnico-científicos capazes de promover reflexões, adequações e, se
necessário, alterações no marco regulatório das políticas de migração
municipais, estadual e brasileira.
e) Criação e/ou qualificação de políticas públicas acerca da temática, e na
melhoria da atuação dos órgãos dos poderes públicos municipais e esta-
duais em relação à migração local. Neste aspecto, a pesquisa produzirá
subsídios e promoverá diálogos institucionais capazes de promover a cri-
ação ou a qualificação das políticas públicas existentes no âmbito muni-
cipal e estadual, auxiliando, desta forma, os poderes públicos municipais
e estadual a atuarem qualificadamente no cumprimento das disposições
legais já previstas no complexo legislativo brasileiro acerca do tema.
f) A partir da realização de sua realização, por fim, objetiva-se que esta pes-
quisa promova impactos significativos na promoção da melhoria da qua-
lidade de vida, da inclusão social e do acesso a direitos humanos dos mi-
grantes residentes na Região Noroeste do Rio Grande do Sul.

4. RESULTADOS E DISCUSSÃO
É necessário ressaltar que a atual pesquisa ainda encontra-se em andamento, por-
tanto, constitui reflexões parciais sobre uma pesquisa que ainda se encontra em fase
211
Maria Luiza Zimmermann · Gabrielle Scola Dutra · Janaína Machado Sturza
de coleta e organização de dados, não possuindo, até então, resultados conclusivos
sobre nossos objetivos.
Ainda assim, a partir da análise bibliográfica que está sendo realizada durante o
desenvolvimento da pesquisa, realiza-se também uma análise da nota técnica nº 40
de 24 de junho de 2021 publicada pela Secretaria de Planejamento, Governança e
Gestão, Subsecretaria de Planejamento Departamento de Economia e Estatística do
Estado do Rio Grande do Sul que trata sobre o perfil dos imigrantes no Rio Grande
do Sul a partir das seguintes bases de dados : o Sistema de Registro Nacional Migra-
tório (Sismigra), a Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) e o Cadastro Único
(CadÚnico).
Com relação ao número total de imigrantes que entraram no Rio Grande do Sul,
na base do Sismigra, de 2018 a 2020, temos 29.357 mil registros de imigrantes no Rio
Grande do Sul. Na RAIS, de 2019, 16.987 e no Cadastro Único, de janeiro de 2021,
19.007.
No que concerne ao país de proveniência, destaca-se o Haiti que ultrapassa um
quarto dos imigrantes em cada uma das três bases analisadas e, aproximadamente,
45,3%, dos imigrantes registrados na base da RAIS. Em outras palavras, os imigrantes
haitianos compõem a maioria dos trabalhadores formais. O Sismigra registra um
percentual de 29,3% de migrantes provenientes do Uruguai. No CadÚnico, a Vene-
zuela detém 25,6% dos registros. De acordo com os registros coletados pela RAIS e
pelo Sismigra, o Senegal é o país de origem de, aproximadamente, 7% dos imigrantes.
A Argentina detém 5% dos imigrantes em cada uma das três bases observadas. Sobre
o município de residência, Porto Alegre aparece como líder com maior percentual
de imigrantes registrados na RAIS, no Sismigra e no Cadastro Único.
Nos registros relativos ao fluxo de entrada e tipo de visto, a Nota Técnica consta-
tou que no ano de 2020, devido à conjuntura da Transpandemia em operacionaliza-
ção, os dados catalogados no Sismigra demonstram uma diminuição dos cadastros
se comparados aos anos de 2018 e 2019, muito provavelmente em razão do isola-
mento social. Nesse sentido, em 2020, uma parcela de imigrantes que realizaram o
cadastro para a obtenção do Registro Nacional Migratório (RNM) podem ter ingres-
sado no Brasil anos antes, porém, realizaram o registro apenas no ano de 2020, por
alguma razão. Analisando os anos de 2018, 2019 e 2020, totaliza-se o percentual de

212
Os fluxos migratórios no Rio Grande do Sul: questão de saúde, gênero e inclusão social
56,4% dos imigrantes que são registrados com visto temporário, motivo pelo qual
este tipo de visto é reconhecido como o mais comum. 41,2% são registrados com
visto de residência. 0,1% são registrados com visto provisório e 2,3% com visto fron-
teiriço. Mais especificamente, no ano de 2020, 64,7% foram registrados com visto
provisório. 36,2% com visto temporário. 26,7% com visto fronteiriço e 14,4% com
visto de residência.
Os dados relativos ao sexo dos imigrantes no RS evidenciam que do número total
catalogado pelo Sismigra, há 11.415 imigrantes mulheres, o equivalente a 38,9% e
17.934 imigrantes homens, o equivalente a 61,1%. A base da RAIS contempla o per-
centual de 67,8% de imigrantes homens e 32,3% de imigrantes mulheres com em-
pregos formais. Esses números destacam a dinâmica da desigualdade de gênero no
mercado laboral em detrimento das mulheres. Doutro modo, no CadÚnico, dá-se
prioridade para mulheres que são protagonistas no núcleo familiar, tendo em vista a
operacionalização do Programa Bolsa Família. Sabe-se que a proporção de mulheres
imigrantes incluídas no núcleo familiar é menor, predominando os imigrantes ho-
mens. Sobre a faixa etária, os dados estabelecem idades entre 15 e 39 anos entre os
imigrantes, delineando um perfil jovem.
A partir de uma análise sobre o nível de escolaridade, demonstra-se que os imi-
grantes incluídos no mercado formal têm escolaridade menor quando comparados à
totalidade de trabalhadores do Estado abarcados pela RAIS. No entanto, o CadÚnico
demonstra que os imigrantes registrados para obtenção de assistência social, a esco-
laridade dos imigrantes é superior à escolaridade da população autóctone, evidenci-
ando-se, principalmente, a proporção de imigrantes com ensino médio completo e o
com superior incompleto ou mais. Sobretudo, estima-se que “o acesso ao mercado
formal de trabalho é mais difícil para os imigrantes que têm maior escolaridade, po-
dendo decorrer de problemas de validação de diploma ou expectativas salariais, por
exemplo”.
Os dados relativos à raça/cor contidos no CadÚnico estabelecem que predomina
um número maior de imigrantes pretos e pardos quando comparados aos não imi-
grantes. Seguindo a catalogação, a RAIS identifica uma maior porcentagem de imi-
grantes pretos, mais especificadamente, o equivalente a 44,6%. A Nota técnica tam-
bém consolida dados sobre o estado civil dos imigrantes no Estado, constatando a
partir do Sismigra que no ano de 2020, 67,9% dos imigrantes era solteiro e um quarto
213
Maria Luiza Zimmermann · Gabrielle Scola Dutra · Janaína Machado Sturza
era casado. No que se refere à composição familiar distribuída por 418 municípios,
31.811 pessoas integram as famílias de imigrantes, ao passo que de tal número,
19.007 são nascidos em outro país e integram 12.309 famílias. Revela-se que a com-
posição familiar é formada por “mais cônjuges ou companheiros(as), mães ou pais,
irmãos ou irmãs, outros parentes e não parentes”. No CadÚnico, foi percebido que
mesmo não havendo laço parentesco, se houver divisão de renda e de despesas na
mesma residência, os imigrantes se reconhecem como família. Sobretudo, a média
de pessoas por família de imigrantes é de três integrantes.
Há de se ressaltar que estes dados não correspondem à totalidade da experiência
do imigrante no Rio Grande do Sul, mas que estamos os utilizando para tentar carac-
terizar esse fenômeno da melhor maneira possível. Mesmo que os dados supracita-
dos também não representam a vivência específica da população imigrante do no-
roeste do Rio Grande do Sul, é importante olhar para as informações sobre a migra-
ção em nível estatal, para assim termos uma ideia do contexto do qual o fenômeno
migratório regional é derivado.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com base nas informações coletadas e analisadas até então, por meio deste artigo
e do projeto de pesquisa que ainda está em execução, busca-se entender quais os
principais impactos causados pelos fluxos migratórios que vem se direcionando à
Região Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, como se caracteriza esse fenômeno
e como a pluralidade cultural, étnica, social e econômica dos imigrantes afeta as re-
lações sociais construídas entre eles e a população local. Reforça-se a necessidade de
investigar e buscar a correção desses desafios encontrados pelos migrantes, especial-
mente nas áreas da saúde, gênero e inclusão social, que formam a base de uma vida
digna em sociedade.
Reforçando, constata-se que no primeiro eixo (Saúde), as discussões consolidam-
se pela demonstração de alternativas de perfectibilização do acesso ao direito à saúde
pelos migrantes. No segundo eixo (Gênero), as discussões salientam a relevância de
um olhar acerca das especificidades de gênero e da pluralidade humana atreladas ao
fenômeno migratório. No terceiro eixo (Inclusão Social), as discussões analisam
como tem se dado o processo de inclusão social dos migrantes, averiguando-se a
214
Os fluxos migratórios no Rio Grande do Sul: questão de saúde, gênero e inclusão social
(in)existência de políticas públicas adequadas aos princípios e às garantias funda-
mentais de Direitos Humanos.
O projeto busca dar visibilidade a sujeitos que são compreendidos como um “pro-
blema social”, seja pelo Poder Público, seja pela sociedade civil, e até mesmo pela
Universidade. Neste sentido, ao identificar, dar nomes e trazer à tona as vivências
desses sujeitos, o projeto objetiva contribuir para a consolidação de uma articulação
entre políticas públicas e sociedade civil nos municípios pesquisados que constituem
a Região Noroeste, para a construção de uma rede de amparo, recepção e acompa-
nhamento dos migrantes que aqui chegarem, no que tange ao acesso aos direitos e a
sua inclusão social.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Ministério da Cidadania. Tabulador do Cadastro Único. CECAD 2.0. Bra-
sília, DF: Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação,2021a https://docs.go-
ogle.com/document/d/1Lk3Ht5rfV03UuT1DjYYmJjwPW1QO7JbqdzYi0heZ-
CM/edit?usp=sharing.
BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Base de dados harmonizadas
CTPS/RAIS/CAGED: 2019. Brasília, DF: Ministério da Justiça e Segurança Pú-
blica, 2021b. Disponível em: https://portaldeimigracao.mj.gov.br/pt/dados/mi-
crodados/ 1733-obmigra/dados/microdados/401201-base-de-dados-harmoniza-
das-ctpsrais-caged.
BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. SISMIGRA: 2020. Brasília, DF:
Ministério da Justiça e Segurança Pública, 2021c. Disponível em: https://portal-
deimigracao.mj.gov.br/pt/dados/microdados/1733-obmigra/dados/microda-
dos/401205-sismigra
OBSERVATÓRIO DAS MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS (OBMigra). Imigração
e Refúgio no Brasil. Relatório Anual 2020. Série Migrações. Ministério da Justiça
e Segurança Pública/ Conselho Nacional de Imigração e Coordenação Geral de
Imigração Laboral. Brasília, DF: OBMigra, 2020. Disponível em: https://portal-
deimigracao.mj.gov.br/images/dados/relatorio-

215
Maria Luiza Zimmermann · Gabrielle Scola Dutra · Janaína Machado Sturza
anual/2020/OBMigra_RELAT%C3%93RIO_ANUAL_2020.pdf.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). International Migration 2020
Highlights. 2020. Disponível em: https://news.un.org/pt/.
RIO GRANDE DO SUL. Secretaria de Planejamento, Governança e Gestão Subse-
cretaria de Planejamento Departamento de Economia e Estatística. Nota Técnica
nº 40 de 24 de junho de 2021: O perfil dos imigrantes no RS segundo o Sismigra,
a RAIS e o Cadastro Único. 2021b. Disponível em: https://estado.rs.gov.br/
upload/arquivos//nota-tecnica-perfil-dos-imigrantes-do-rs.pdf.

__________________________________________________
ZIMMERMANN, Maria Luiza; DUTRA, Gabrielle Scola; STURZA, Jana-
ína Machado Os fluxos migratórios no Rio Grande do Sul: questão de sa-
úde, gênero e inclusão social In: OLIVEIRA, Marco Aurélio Machado de;
(Org.). Anais do I Congresso do Migrafron. Uberlândia: Marco Teórico,
2022. pp. 205-216.
__________________________________________________

216
LITERATURA INFANTIL NA FRONTEIRA
BRASIL-BOLÍVIA: PEQUENOS
LEITORES FRONTEIRIÇOS

12
Tarissa Marques Rodrigues dos Santos

RESUMO:
Este artigo é um relato das atividades práticas de literatura infantil, que estão inseri-
das em um projeto mais amplo de intervenção em uma Escola de Educação Integral
Rural situada no Assentamento Tamarineiro I na região do Jacadigo, a 15 km do pe-
rímetro urbano em Corumbá-MS, na fronteira Brasil-Bolívia. Trata-se de uma vivên-
cia literária com crianças entre 7 e 10 anos que se objetivou através da literatura in-
fantil boliviana, estimular a criatividade, indagações, fantasias, realidade no sentir-se
fronteiriço, enfatizando a perspectiva humanizadora da literatura. Caminhando
nesse elo: fronteira, leitura, poder da literatura e construção da identidade, é que se
procurou, nesta intervenção, conceituar os temas de maneira interligada, pontuando
questões empíricas através da vivência literária com as obras infantis boliviana “Ho-
racio y sus amigos” e Juanito y los frijoles mágicos”.

PALAVRAS-CHAVE:
Literatura, fronteira, criança.

217
Tarissa Marques Rodrigues dos Santos
RESUMEN:
Este artículo es un relato de las actividades prácticas de literatura infantil, que forman
parte de un proyecto de intervención más amplio en una Escuela Rural de Educación
Integral ubicada en el Asentamiento Tamarineiro I en la región de Jacadigo, a 15 km
del perímetro urbano en Corumbá-MS, en la frontera entre Brasil y Bolivia. Es una
experiencia literaria con niños de 7 a 10 años que tuvo como objetivo, a través de la
literatura infantil boliviana, estimular la creatividad, las preguntas, las fantasías, la
realidad en el sentimiento límite, enfatizando la perspectiva humanizadora de la lite-
ratura. Caminando en este vínculo: frontera, lectura, poder de la literatura y construc-
ción de identidad, es que esta intervención buscó conceptualizar los temas de manera
interconectada, puntuando cuestiones empíricas a través de la experiencia literaria
con las obras infantiles bolivianas "Horacio y sus amigos" y Juanito y los frijoles mági-
cos”.

PALABRAS-CLAVE:
Literatura, frontera, niño.

1. INTRODUÇÃO
Sabemos que leitura é um tipo específico de comunicação, é uma forma de en-
contro entre o homem e a realidade sociocultural. A leitura perpassa todas as áreas
do conhecimento e a vida do ser humano, sendo uma forma de o homem se situar
no mundo, dinamizando-o.
O livro permanece ainda hoje como a forma mais importante para a criação,
transmissão e transformação da cultura. Apresento este trabalho a partir das experi-
ências literárias com crianças entre 7 e 10 anos na Escola Municipal Rural de Educa-
ção Integral “Eutrópia Gomes Pedroso”, situada no Assentamento Tamarineiro I na
região do Jacadigo, a 15 km do perímetro urbano em Corumbá-MS, na fronteira Bra-
sil-Bolívia.
Quando se discute fronteira, precisa-se delimitar de que fronteira está se falando,
pois a mesma tem um poder polissêmico. Aqui ela é entendida como uma fronteira

218
Literatura infantil na fronteira Brasil-Bolívia: pequenos leitores fronteiriços
vivida com significado e significação do olhar de quem vive na fronteira (NO-
GUEIRA, 2005).
Os fronteiriços olham a fronteira como a sua morada, onde acontece o seu coti-
diano, seu ritmo, suas relações de afetividade, emergindo de tal forma o seu lugar.
Conforme Pereira (2003) as pessoas que vivem nas fronteiras não partilham apenas
o território, mas toda uma cultura, elas deixam de pertencer a um ou outro país e
passam a construir uma identidade fronteiriça.

2. METODOLOGIA
Para a realização deste trabalho utilizamos a observação participante,
assim denominada por André (2000, p. 28) que diz: “parte do princípio de que o
pesquisador tem sempre um grau de interação com a situação estudada, afetando-a
e sendo por ela afetado”. A observação participante ocorreu em dois momentos, or-
ganizados em função dos seguintes eixos: a) acesso ao livro e leitura livre do acervo
literário boliviano; b) acesso ao texto literário (livro) via mediação do pesquisador.
Nessa perspectiva, optamos pelas estratégias de favorecer o acesso ao acervo literário
para melhor compreensão dos modos/formas expressas pelas crianças sobre as obras,
pelo fato dos textos literários estarem na língua espanhola. Sendo estes sujeitos cri-
anças, assumimos o pressuposto de dar-lhes vez e voz, focalizando suas ações e falas
mediante ao contato com as obras. Destacamos que o segundo momento da obser-
vação participante foi mais dirigida, uma vez a mediação foi iniciada desde a escolha
dos títulos que foram lidos em “Sessões de leitura”. Durante o processo de coleta de
dados, o desafio foi fazer o diálogo entre a observação e a interação das crianças com
as obras literárias bolivianas, uma vez que, além de observar as atitudes de leitura das
crianças, também se indagava a respeito dos “porquês” na perspectiva de que expli-
cassem escolhas de títulos, modos de ler, inferências feitas, colocando em evidencia
o lugar da criança lendo, interagindo com o livro, a leitura, os seus pares e o adulto.
Alunos e pais assinaram o termo de Assentimento Livre e Esclarecido para partici-
pação nas atividades e uso de imagem para fins de pesquisa.

219
Tarissa Marques Rodrigues dos Santos
3. VIVÊNCIA LITERÁRIA: PEQUEÑOS LECTORES FRONTERIZOS
Na fronteira, a vida é tecida por relações, e o fortalecimento dessas, deve ser com-
preendido como uma necessidade no cotidiano. Corumbá tem o viver da cidade
fronteiriça, com as multiplicidades dos sentidos de pertença, nesta perspectiva que a
literatura é de grande importância para compreensão da realidade social, pois nela
estão as verdades de uma mesma condição humana, o que possibilita ao homem, ao
ver seus costumes retratados, uma reavaliação da postura que assume.
A Escola Municipal Rural de Educação Integral “Eutrópia Gomes Pedroso, car-
rega duas particularidades: ser escola rural e abrigar um número significativo de alu-
nos residentes no país vizinho. Primeiramente, cabe esclarecer que o aluno boliviano
só pode estudar no Brasil com a permissão da Policia Federal, que expedirá um do-
cumento para tal, Constituição Federal Brasileira, lei n. 6.815, 19 de agosto de 1980
(BRASIL, 1998).
Outro fato importante a pontuar é corrigir aquilo que foi estereotipado nesses
alunos, até mesmo por pesquisadores: bolivianos que estudam no Brasil. Uma vez
que todos, ou a maioria deles, são documentados, com registro de nascimento no
Brasil o qual lhes garantem a nacionalidade brasileira.
Assim, muitos estudantes chamados bolivianos, na verdade, pelo documento, são
brasileiros residentes na Bolívia, chamados também como imigrantes na condição de
pendulares como aqueles que habitam em região de fronteira, morando na Bolívia e
estudando no Brasil, e retornando aos seus lares, dando a esse movimento, conotação
de cotidiano. Participaram dessa atividade 30 crianças entre 7 a 10 anos matriculados
do 1º ao 3º ano do Ensino Fundamental dentre a esse número de alunos, 23 são
imigrantes pendulares, residentes na Bolívia.
Com a proposta de inserir a literatura infantil boliviana no contexto escolar dos
alunos dessa escola de fronteira, o acervo composto por diversas obras literárias bo-
livianas infantis nacionais e estrangeiras, foram colocados em uma mesa, estratégia
pensada para que as crianças tivessem vontade de ir a escolha de um livro. As obras
por estarem na língua espanhola foram motivos de olhares, seguidos de manuseio
para ver as figuras e invenção de histórias, sempre iniciadas pela expressão “era uma
vez”. Outras iniciativas foram observadas, indo do simples folhear, ao partilhar pal-
pites; risos provocados pelas imagens, rememorações por já conhecer a história.
220
Literatura infantil na fronteira Brasil-Bolívia: pequenos leitores fronteiriços
Observações pertinentes durante as atividades de leitura:
[...] Uma criança pediu que lêssemos a história “ Ollantay” história sobre uma prin-
cesa Inca, demonstrando suas curiosidades pelo diferente, haja vista que no acervo
tinham bastante obras tradicionais de princesas. A leitura atraiu outras crianças que
se aproximaram para escutá-la.
[..]. As crianças que não entendiam o espanhol procuravam as outras que compreen-
diam para que explicassem o significado de alguma palavra, ou até mesmo para ler a
história.
Ler é criar consciência do que somos, é examinar o mundo em que vivemos para
transformá-lo no mundo em que gostaríamos de viver. Zilberman (1990, p. 19) as-
segura que “o texto literário introduz um universo que, por mais distanciado do co-
tidiano, leva o leitor a refletir sobre sua rotina e a incorporar novas experiências”.
Logo após as sessões de leitura, o “Pequeno Leitor Fronteriço” era convidado a
conversar sobre, sem fins didático-pedagógica, considerando que a leitura tem valor
em si mesma, e não necessita desenvolver atividades maçantes e repetitivas depois de
cada leitura, é muito bom ler apenas pelo prazer de ler e compartilhar, quando se
quer, com os colegas as emoções da leitura. E algumas crianças decidiram ampliar
esse prazer do conhecimento da literatura infantil do país vizinho através de dese-
nhos:

Figura 07- História: “Juanito y los frijoles mágicos”

Fonte: Autor, setembro de 2019.


221
Tarissa Marques Rodrigues dos Santos

Figura 08- “Horacio y sus amigos”

Fonte: Autor, setembro de 2019.

Figura 09- Produções livres da obra Horacio y sus amigos.

Fonte: Autor, setembro de 2019.

Os desenhos retratados acima trazem em seu conteúdo a expressão do pensar e


do sentir dessas crianças fronteiriças, percebe-se a utilização das cores da bandeira
da Bolívia, presente em quase todos os desenhos, a escrita do nome do livro em

222
Literatura infantil na fronteira Brasil-Bolívia: pequenos leitores fronteiriços
espanhol, bem como algumas idades retratadas na língua espanhola “7 años”. O de-
senho como uma expressão livre, permite à criança retratar as diferentes dimensões,
suas experiências pessoais em busca da sua própria identidade. Desenhando, a cri-
ança pode apresentar de que forma vê o mundo, nas palavras de Adriana Friedmann
(2020, p. 90) “[...]devemos deixar as crianças criarem suas próprias histórias, es-
crevê-las, desenhá-las, representá-las, brincá-las [...]
Após as leituras, os Pequenos Leitores Fronteiriços, registraram esse mo-
mento com os livros que mais se identificaram:

Figura 10– “Os Pequenos Leitores Fronteiriços”

Fonte: Autor, setembro de 2019

4. INTERCULTURALIDADE E LITERATURA
Em um contexto repleto de línguas, raças, religiões, dialetos, costumes, crenças
como é a fronteira envolvendo Brasil/Bolívia, especificamente Corumbá/Puerto Qui-
jarro, não se pode negar a existência da heterogeneidade cultural e naturalmente um
arcabouço de culturas que transforma esse espaço em um lugar de experiência ímpa-
res para um extenso e variado campo de pesquisa. Essa complexidade vem
223
Tarissa Marques Rodrigues dos Santos
acompanhada de questões que brotam em ambos os lados do território e que se apre-
sentam como interculturais.
A interculturalidade é compreendida como uma relação de alteridade entre pes-
soas que são diferentes por sua cultura, gênero, religião etc. Essas relações são posi-
tivas se uns e outros aceitam seu modo diferente de ser. (XAVIER, 2005, p. 48)
É preciso entender que neste espaço fronteiriço existem diversas práticas sociais,
econômicas e culturais. Tanto que Albuquerque (2006) já destacou que as fronteiras
são fluxos, misturas e separações, obstáculos, integrações e conflitos, domínios e su-
bordinações por que “representam espaços de poder, de conflitos variados e de dis-
tintas formas de integração cultural.” (2006, p.5) É nesse lugar que se estabelece a
integração ou não entre os indivíduos dos dois países. Embora as crianças, neste es-
paço, possam sofrer a inclusão ou exclusão, a cultura do outro contamina sem pedir
licença ou se preocupar com os aspectos legais.
E a ideia da interculturalidade pode contribuir para a convivência igualitária
entre os diferentes. Pela própria natureza de sua origem, a educação intercultural as-
sumiu a finalidade de promover a integração entre culturas, a superação de velhos e
novos racismos, o acolhimento dos estrangeiros e, particularmente, dos filhos dos
imigrantes na escola. O enfoque da educação intercultural pode enfatizar a relação
entre culturas diferentes como fator pedagógico importante. (FLEURI, 2003, p.21)
As contribuições entre os dois países para a educação dizem respeito a troca de
experiências, costumes e valores. Cada povo com suas experiências históricas e dife-
rentes abordagens. Para os professores bolivianos, os alunos são como pequenas pe-
dras que precisam ser “lapidadas” por seus professores.
Uma relação de interculturalidade é qualquer uma que acontece entre pessoas de
culturas diferentes, e as atitudes dessas pessoas podem ser denominadas de ações in-
terculturais. Na fronteira, vivida como um território de muitas identidades, esse en-
contro de culturas faz parte de todo sistema educativo. Os alunos desta região fron-
teiriça podem usar essa riqueza a favor do alargamento de mentalidades e desenvol-
vimento de valores que confrontam a intolerância e o preconceito relativos às dife-
renças e semelhanças em um contexto de afastamento, indiferenças, visto que esta-
rão expostos às questões culturais de uma ou outra forma e sem qualquer orientação
ou direcionamento, podendo atuar de acordo com seus propósitos particulares. E

224
Literatura infantil na fronteira Brasil-Bolívia: pequenos leitores fronteiriços
uma das ferramentas que contribui para implementar um ensino mais eficaz nesse
espaço é a literatura.
A literatura infantil, em si, não tem uma finalidade específica, não pode ser
escrita a pedido e nem com intenção didática, moralista, muito menos doutrinária,
ela tem que nascer de um espírito livre, pronto para andar descalço e sem medo, e
pode ser um espaço para encontros interculturais, mostrando as diferenças e identi-
ficações de uma sociedade, no caso de Corumbá e Puerto Quijarro, como instru-
mento para as crianças reinventarem uma história diferente, dar e receber sem pre-
conceitos, sem complexos de inferioridade ou superioridade, possibilitando trocas,
encontros e tolerância para com o diferente e aceitação do plural. Talvez a literatura
infantil traga uma nova maneira de sonhar com um mundo mais humanizado. Os
textos literários quando apresentados no contexto escolar intercultural, os sujeitos
que fazem parte dessa comunidade têm a possibilidade de se reconhecerem, de ques-
tionarem ao seu redor, tornando o espaço escolar um ambiente de respeito à diver-
sidade e a sensibilização para conviver com o outro. Segundo Yunes:
A leitura tem um privilégio que é o de apresentar o mundo do desnudado das velhas
escritas, das ideologias marcadas na sua produção, desnudado da letra morta, da es-
crita paralisante, determinada por uma razão exterior e estranha à pessoa, até que esta
possa trazê-la a vida com seu próprio sangue, seu próprio vigor. (YUNES, 2003, p.48)
Quando uma criança é submetida a uma situação de leitura literária, ela apreende
e incorpora vivências e sensações até então despercebidas ou mesmo desconhecidas,
Zilberman (2012, p.47), assinala que o tipo de relação construída entre o texto e o
leitor só implica uma aprendizagem significativa se o texto for aceito como alteridade
no qual o leitor dialoga com os personagens e se coloca no lugar do outro, a ponto de
vivenciar um encantamento e identificar-se com a história.
Expor livros e deixar a criança manusear é uma experiência que Zilberman
(2012), coloca como uma competência literária, pois a criança apropria-se do texto
como em uma forma ritualizada:
[...] ele apalpa a obra, sentindo-se de modo táctil e explicitando a natureza carnal do
livro. Depois, procura as figuras, detendo-se nas imagens visuais, para só mergulhar
nas letras, que os conduzem a universos fantásticos, distantes no tempo, no espaço,
nas ideias, mas próximo dele, dada a materialidade do livro, para onde o leitor,

225
Tarissa Marques Rodrigues dos Santos
apaixonado, sempre retorna. (ZILBERMAN, 2012, p. 47)
Assim, podemos compreender que quando o “Pequeno Leitor Fronteiriço”1 se
encontra nos reflexos da sua própria existência em um texto literário e os identificam
com o outro culturalmente, ele conseguiu desenvolver uma competência literária.
O conceito de competência pode, em nosso entender, assumir delineações polis-
sémicas, na medida em que se aplica a diversos campos do conhecimento com vários
sentidos, tornando-se, assim, complicado, atribuir o seu significado. No contexto
desta pesquisa, utilizamos o que parametrizou Chomsky (1965), como o conheci-
mento da língua, em que o indivíduo interioriza as estruturas e regras, aplicando-as
em situações concretas, não se preocupando com a função social daquela. O desen-
volvimento de competências ajuda na construção mental, e para que tal processo
ocorra, o professor deve selecionar textos literários que motivem os sujeitos. Nos
anos iniciais, considera-se fundamental que o professor saiba levar ao contexto pe-
dagógico uma diversidade de obras literárias que promovam uma experiência cogni-
tiva e afetiva, de forma a assegurar um compromisso do sujeito com a leitura e a lite-
ratura, que o levem ao desenvolvimento de competências várias nomeadamente na
aquisição e desenvolvimento da linguagem.
Colomer e Camps (2002, p. 175) consideram que a diversidade de textos existen-
tes para crianças pode gerar novas linguagens, desde que, pela capacidade de trans-
formação, aqueles sirvam de incentivadores semióticos, integrando-se estes no de-
signado cânone literário para a infância. A criança recontextualiza a história perten-
cente ao património de uma memória coletiva e, sem deteriorar a comunicação sub-
jacente, perpetua-se no tempo. A sua competência literária desenvolve-se ao nível
dos conceitos e dos valores implícitos do texto, como o bem/mal, triunfo/derrota,
amor/ódio, esperança/desespero, igualdade/desigualdade, justiça/injustiça, entre
outros aspetos que poderíamos enumerar. Também o atingir da capacidade de per-
cepção do Outro, respeitando e aceitando a sua diferença, permite ao leitor perceber
o quanto alarga os seus horizontes, num crescendo diálogo com outras culturas, ou-
tros valores, outras etnias, fatores preponderantes à compreensão das diferenças e

1 Nomenclatura usada na pesquisa quando se trata das crianças das escolas na fronteira Brasil/Bo-
lívia.
226
Literatura infantil na fronteira Brasil-Bolívia: pequenos leitores fronteiriços
maneiras de estar na sociedade, ajudando a perceber como se relacionam os outros e
aprendendo a agir em diferentes contextos sociais.
A escola de fronteira tem como um dos principais papéis formar os alunos, filhos
de imigrantes, bons cidadãos, respeitadores das leis institucionalizadas no país de
acolhimento. As minorias religiosas, linguísticas e nacionais, viram-se, muitas vezes,
obrigadas a adquirir uma nova identidade e a tomarem uma nova consciência naci-
onal.
Pois, quando esse aluno boliviano adentra o espaço escolar brasileiro, muitos ti-
veram que abdicar da sua cultura, da sua língua, das suas tradições face às novas exi-
gências jurídicas e educativas do país hospitaleiro. Sendo assim, nessa pesquisa pro-
pomos algumas obras literárias infantis como constructo social na fronteira Bra-
sil/Bolívia no auxílio do desenvolvimento das competências literárias com os Peque-
nos Leitores Fronteiriços.
As obras publicadas no “Catálogo de Literatura Infantil-Pequenos Leitores Fron-
teiriços”2 foram selecionadas considerando as diversidades de funções que um livro
carrega e suas relações com os Pequenos Leitores Fronteiriços a fim de possibilitar
diversificadas experiências literárias, dentro de uma perspectiva histórica- cultural.
Nessa perspectiva da pluralidade cultural, a obra “A kantuta tricolor e outras his-
tórias da Bolívia” de Susana Ventura, apresenta um mundo novo à espera do leitor
pois são fábulas refinadas, contos de pura magia, histórias de amor, mostrando um
modo de ver o mundo e a vida que desafia e faz pensar. No livro, a Bolívia se revela
em doze diferentes faces, para serem vistas e interpretadas, por crianças fronteiriças
país tão próximo do nosso, mas ao mesmo tempo tão distante.
Outra obra interessante para tratar das questões culturais é o livro “Todo mundo
é misturado” da autora Beth Cardoso, que apresenta a vida escolar do menino boli-
viano Pablo, que logo faz amizade com uma simpática menina chamada Júlia, e os
dois enfrentam a discriminação em sala de aula, pelo fato de sua nacionalidade, e
uma série de mal-entendidos e palavras trocadas em português e espanhol armam

2 SANTOS, Tarissa Marques Rodrigues. Catálogo de Literatura Infantil Pequenos Leitores Frontei-
riços fronteira Brasil-Bolívia. Coordenação: Lucilene Machado Garcia Arf. Ilustrações: Vitor
Hugo Souza. Corumbá, MS: Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Programa de Pós-gra-
duação em Estudos Fronteiriços. Corumbá, 2021. ISBN: 978-65-00-15768-0.
227
Tarissa Marques Rodrigues dos Santos
um cenário nada amigável para Pablo. Mas no fim tudo acaba resolvido e a turma
compreende que todos somos juntos e misturados.
Já o livro “Mitos, Contos e Lendas da América Latina e do Caribe” publicado em
2008 em uma coletânea de vários autores, apresenta uma seleção contos orais que
envolvem variados temas, fantasmas, seres fantásticos, lendas de amor, e lugares
encantados, com personagens do folclore latino.
Outro livro da Susana Ventura: “Um lençol de infinito fios”, conta a história de
Maria, uma garota boliviana que vive em São Paulo com sua família. Ela tem um
caderno onde escreve histórias e pensamentos, pois pensa em ser escritora um dia.
Com seus amigos Juan, Manoela e Jun, vive o dia a dia da grande cidade e prepara
um trabalho para a escola sobre os países da América Latina. Num dia de pesquisa
na Biblioteca Mário de Andrade, os amigos conhecem Ludmi, uma jovem haitiana
que está na cidade em busca de seu pai. Um lençol de infinitos fios é uma delicada
narrativa sobre o valor da amizade e a descoberta do poder e da solidariedade.
Ainda nessa perspectiva de imigração a obra “A menina que abraça o vento” da
autora Fernanda Paraguassu conta, a história de Mersene, uma garotinha que teve
que se separar de parte da família para fugir do triste conflito vivido na República
Democrática do Congo. Enquanto se adapta à nova vida no Brasil, ela cria uma brin-
cadeira para driblar a saudade.
Enfim, a realidade social e cultural que essas obras trazem pode enriquecer e for-
talecer o multiculturalismo presente no espaço escolar fronteiriço.

5. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Considera-se a escola como um espaço de práticas de alteridade com função in-
tegradora que lhe é fundante quanto à constituição identitárias de crianças e jovens.
A literatura infantil é a principal porta de acesso ao mundo da leitura, como podemos
perceber a criança e a literatura infantil compartilham da mesma natureza ambas são
lúdicas, mágicas e questionadoras e tais afinidades fazem com que a literatura seja o
mais poderoso aliado do professor e da criança pela vida afora na busca da compre-
ensão do mundo e do ser humano.
Abordar a literatura como aproximação de culturas, é expressar o subjetivo do ser

228
Literatura infantil na fronteira Brasil-Bolívia: pequenos leitores fronteiriços
fronteiriço, ir além de limites geográficos e diferenças culturais, que são frutos de
fluxos constantes dos que as atravessam, para desvendar os personagens, muitas ve-
zes, derivadas de conflitos de classe, e de tensões étnicas presentes no território la-
tino, pois os que vivem na fronteira não partilham somente o território, más sim o
pertencimento de culturas e assim o constructo da identidade fronteiriça no panta-
nal.

REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE, José Lindomar. As línguas nacionais na fronteira Paraguai-Bra-
sil. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL FRONTEIRAS ÉTNICO-CULTURAIS
E FRONTEIRAS DA EXCLUSÃO. O desafio da Interculturalidade e da equidade:
a etnicidade no contexto de uma sociedade intercultural, v. 3, p. 1, 2006.
ANDRÉ, M,E.D. Etnografia da prática escolar. Campinas: Papirus, 1995.
CANDIDO, A. A literatura e a formação do homem. In: Ciência e cultura. SBPC,
v.24, n.9, set.1972.
CHOMSKY, N. Aspects of the theory of sintax. Nova York: Massachusetts Institute
of Tecnology, 1965.
COLOMER, Teresa.; CAMPS, Anna. Ensinar a ler, ensinar a compreender. Tradu-
ção de: MURAD, Fátima.1ª ed. Porto Alegre: Artmed, 2002.
FLEURI, Reinaldo Matias. Intercultura e educação. Revista Brasileira de Educação.
n.23 Rio de Janeiro, ago. 2003, p. 16-35.
FRIEDMANN, Adriana. A vez e a voz das crianças: escutas antropológicas e poéti-
cas das infâncias. São Paulo: Panda educação, 2020
NOGUEIRA, R.J.B. Fronteira: Espaço de referência identitária. Ateliê Geográfico,
Goiânia-GO, v.1, n.2, dez-2007.
PEREIRA, J. H. do V. Fronteiras étnico-cultural e geográfica: Indagações para edu-
cação sobre a (re) construção identitária de sujeitos migrantes. Grupo de Estu-
dos Afro-brasileiros e Educação, n° 21. UFMS/CAPES, 2003, p. 1-15.
SANTOS, Tarissa Marques Rodrigues. Catálogo de Literatura Infantil Pequenos
Leitores Fronteiriços fronteira Brasil-Bolívia. Coordenação: Lucilene Machado

229
Tarissa Marques Rodrigues dos Santos
Garcia Arf. Ilustrações: Vitor Hugo Souza. Corumbá, MS: Universidade Federal
de Mato Grosso do Sul. Programa de Pós-graduação em Estudos Fronteiriços.
Corumbá, 2021. ISBN: 978-65-00-15768-0.
XAVIER ALBÓ, SJ. Cultura, interculturalidade, inculturação. São Paulo: Edições Lo-
yola, 2005.
YUNES, Eliana; OSWALD, Maria Luiza (Orgs.). A experiência da leitura. São Paulo:
Loyola, 2003.
ZILBERMAN, R; SILVA, E, da. (Org.). Literatura e pedagogia: Ponto e Contra-
ponto. Série Confrontos. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1990.
ZILBERMAN, Regina. A leitura e o ensino da literatura. São Paulo: Intersaberes,
2012.

__________________________________________________
SANTOS, Tarissa Marques Rodrigues dos Literatura infantil na fronteira
Brasil-Bolívia: pequenos leitores fronteiriços. In: OLIVEIRA, Marco Au-
rélio Machado de; (Org.). Anais do I Congresso do Migrafron. Uberlân-
dia: Marco Teórico, 2022. pp. 217-230.
__________________________________________________

230
EIXO 3
ESCALAS NACIONAIS E
CONTINENTAIS DA
MIGRAÇÃO E DA
FRONTEIRA

231
As duas fronteiras: migração haitiana e
migração venezuelana –
notas preliminares

13
Duval Fernandes

RESUMO:
O Brasil está incluído no sistema mundial da migração internacional como um país
de imigração, emigração e trânsito. Nos últimos dez anos, houve profundas altera-
ções no campo legal com a implantação de uma nova lei de migração que permitiu
aperfeiçoar o processo de acolhida daqueles que chegam ao país em situação de vul-
nerabilidade e buscam se inserir no campo social e laboral. Este trabalho, ainda se-
minal, busca trazer luz à situação de dois coletivos de imigrantes, haitianos e vene-
zuelanos, que, apesar de contar com instrumentos legais de acolhida criados para
atendimento específico, têm situações de inserção na sociedade brasileira bem dis-
tintas, sociedade essa que em vez de reduzir barreiras, cria situações que podem ser
definidas como duas fronteiras, uma que acolhe em processo integral e outra que não
avança nesse processo.

PALAVRAS-CHAVE:
Migração haitiana. Migração venezuelana. Políticas migratórias.

233
Duval Fernandes
RESUMEN:
Brasil está incluido en el sistema mundial de migración internacional como país de
inmigración, emigración y tránsito. En los últimos diez años se han producido profun-
dos cambios en el campo legal con la implementación de una nueva ley migratoria que
permitió mejorar el proceso de recepción de quienes llegan al país en situación de vul-
nerabilidad y buscan insertarse en el ámbito social y laboral. Este trabajo, aún semi-
nal, busca arrojar luz sobre la situación de dos colectivos de inmigrantes, haitianos y
venezolanos, que, a pesar de contar con instrumentos legales de acogida creados para
una asistencia específica, tienen situaciones de inserción muy diferentes en la sociedad
brasileña, sociedad que en lugar de reduciendo barreras, crea situaciones que se pue-
den definir como dos fronteras, una que acoge un proceso integral y otra que no avanza
en este proceso.

PALABRAS-CLAVE:
migración internacional; nueva ley migratoria; asistencia específica.

1. INTRODUÇÃO
A última década foi, em termos da mobilidade humana internacional, talvez a
mais distinta da história do Pós-Guerra. Ao mesmo tempo em que o volume de re-
fugiados no mundo cresceu de forma exponencial, fruto de conflitos e de situações
de profundas crises políticas institucionais, os movimentos migratórios se intensifi-
caram em diversas direções, trazendo novos atores em novos percursos.
Se, em passado recente, o Brasil podia ser reconhecido como um país de fluxos
migratórios predominantes, como foi, no início do século XX, o país de imigração,
e, após a década de 1970, o país da emigração, nas primeiras décadas do século atual,
o país entra no sistema mundial da migração internacional. E enquanto se mantém
como importante ponto de partida para o exterior, também recebe aqueles que ele-
gem o país como destino para longa ou permanente residência e os que fazem dessa
migração uma etapa de um projeto para outro destino. Breve, transforma-se, ao
mesmo tempo, em país de emigração, imigração e trânsito.

234
As duas fronteiras: migração haitiana e migração venezuelana –notas preliminares
Nesse contexto, a partir de 2010, por diversas razões, imigrantes de várias nacio-
nalidades que não tinham experiência anterior de migração para o Brasil começam a
chegar ao país, muitos fugindo de situações de extrema pobreza, outros buscando
novas oportunidades diante da crise econômica iniciada em 2008, que mostrava, no
início da nova década, os seus resultados perversos. Por outro lado, a economia do
país passava por um ciclo virtuoso, estimulado por investimentos de infraestrutura
para os grandes eventos esportivos previstos para aquele momento, o que a colocava
em destaque perante a recessão econômica mundial.
No grupo dos que aqui chegavam, vale destacar, em um primeiro momento, os
haitianos, e, na segunda metade da década, os venezuelanos. Esses dois coletivos têm
características distintas, mas, em termos numéricos, na década de 2010, têm com-
portamento semelhante. No entanto, há diferenças marcantes no processo de recep-
ção dessas duas comunidades, de tal sorte que, para uns, há facilidades, e, para outros,
cabe a vala comum de uma acolhida na qual entraves de toda sorte dificultam a sua
integração, de tal forma que podemos indicar que existem duas “fronteiras” distin-
tas, uma reservada aos haitianos e outra aos venezuelanos.
Há também de se considerar que a década de 2010 foi a mais importante em ter-
mos de avanços na legislação migratória, com a promulgação da Lei nº 13.445, a nova
Lei de Migração, em 2017, que substituiu a Lei nº 6.815, o Estatuto dos Estrangeiros,
de 1980. O documento aporta ao universo legal brasileiro um novo olhar sobre a
questão migratória, gerando mecanismos que irão contribuir para a inserção social e
laboral dos imigrantes. Mesmo esses avanços não conseguem reduzir as desigualda-
des no tratamento a imigrantes que chegam ao Brasil em situação de extrema vulne-
rabilidade. O que se propõe neste texto é iniciar uma discussão sobre as duas visões
que se têm desse processo utilizando informações disponibilizadas nas atas do Con-
selho Nacional de Imigração – CNIg no momento de chegada dessas duas comuni-
dades de imigrantes ao Brasil.

2. A MIGRAÇÃO HAITIANA
Diversos autores (BAENINGER et all, 2016; ANDRESSA, 2012; MONACÉ,2021)
já trabalharam sobre as características da migração haitiana para o Brasil, desta-
cando, dentre outros pontos, as dificuldades na acolhida, os percalços do não
235
Duval Fernandes
conhecimento do idioma e as dificuldades para a obtenção de documentação.
Se, até 2009, a presença dos haitianos no Brasil contava-se em dezenas, em 2010,
os registros do Ministério da Justiça, como apresentado na Tabela 1, indicam 111
pessoas, valor esse que avança para 480 em 2011, chegando a mais de 4.000 registros
em 2012, ano da edição da Resolução Normativa nº 971, do Conselho Nacional de
Imigração – CNIg. A partir desse ano, a presença dos haitianos no Brasil se fez cres-
cente até chegar, em 2022, a mais de 150 mil registros ativos.
As discussões sobre a migração haitiana no CNIg se iniciam de forma tímida e, na
I Reunião Ordinária CNIg, em 10/2/2010, é registrada a fala do presidente do Con-
selho:
“Em relação ao terremoto no Haiti, mencionou que a situação calamitosa que dele
resultou vem provocando um movimento, em vários países, no sentido de anistiar os
haitianos que neles se encontram em situação irregular, no ensejo de evitar deportá-
los de volta ao país que, hoje, encontra-se desestruturado. A esse respeito, o Sr. Luci-
ano Pestana informou que a comunidade haitiana no Brasil é pequena, inferior a qua-
trocentos indivíduos. Destacou também que não se tem verificado, após o terremoto,
um afluxo de haitianos em direção ao território brasileiro, o que se deve, em sua opi-
nião, provavelmente, à falta de condições deles de deixarem seu país” (linha 65 a 77).
Durante 2010, em alguns momentos, chegaram ao CNIg solicitações de autoriza-
ção de residência para haitianos que partiram do Comitê Nacional para Refugiados
– Conare e foram deferidas. Nesses casos, eram solicitantes de refúgio que não teriam
seu pedido aceito, mas, como forma de contornar a situação de irregularidade, o que
levaria à expedição de uma ordem de partida destes do território nacional, recorria-
se ao CNIg para regularizar a residência desses indivíduos no país. No entanto, foi
durante à IX Reunião Ordinária, em novembro daquele ano, que a situação dos imi-
grantes haitianos que chegavam ao país foi discutida, em razão da situação relatada
em documento do Conare que indicava a existência de mais de 400 solicitações de
refúgio em análise. Solicitações essas de haitianos que estavam em Tabatinga e Ma-
naus. A situação de vulnerabilidade desses imigrantes também está relatada em ata.

1 “RESOLUÇÃO NORMATIVA Nº 97, DE 12 DE JANEIRO DE 2012. Dispõe sobre a concessão


do visto permanente previsto no art. 16 da Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980, a nacionais do
Haiti”.
236
As duas fronteiras: migração haitiana e migração venezuelana –notas preliminares
Nessa reunião, foi criado o grupo de trabalho sobre a migração haitiana – GT Migra-
ção Haitiana ( CNIg-2010. Ata IX). Acordou-se também que a partir da IX Reunião,
as solicitações de concessão de autorização de residência de haitianos ficariam sus-
pensas. Essas análises só retornariam em março de 2011.
A ata da primeira reunião de 2011 (Ata I, Reunião Ordinária 2011) já traz relatos
sobre a chegada, no estado do Acre, de imigrantes haitianos em situação de vulnera-
bilidade e de processos de assistência a esse grupo por parte dos governos estadual e
locais nas cidades de Basileia e Epitaciolândia. O presidente do CNIg relatou que o
tema da migração haitiana passaria a ser preocupação do governo, e que a Casa Civil
estava coordenando um grupo interministerial formado pelos ministérios da Justiça
e da Saúde e pelo Itamaraty para tratar do tema. Foi também informado nessa reu-
nião que havia 400 solicitações de refúgio de imigrantes haitianos em trâmite no Co-
nare, e que 189 delas seriam enviadas ao CNIg. No entanto, as falas ainda são de cau-
tela, tratando esse fluxo migratório para o Brasil mais como um processo de trânsito
para a Guiana Francesa e não efetivamente como um fluxo migratório para o Brasil.
Nessa mesma reunião, o representante do Itamaraty informava que estavam sendo
propostas iniciativas aos governos do Equador e Peru no sentido de aumentar o con-
trole sobre a migração de haitianos, uma vez que esses países não exigiam visto de
nacionais do Haiti. Como a chegada à fronteira brasileira se dava, principalmente,
por esses dois países (vide mapa no Anexo I), seria importante ter a cooperação tri-
lateral no sentido de controlar o fluxo.
Na II Reunião Ordinária do Conselho, em março de 2011, foram levados a plená-
rio 199 processos de solicitação de refúgio encaminhados ao CNIg pelo Conare, e,
após discussão, foi acordado pelos conselheiros que esses imigrantes receberiam a
autorização de residência humanitária, e, no futuro, essa concessão poderia ser rea-
lizada ad referendum pelo plenário do Conselho em casos que apresentassem as mes-
mas características dos que haviam sido analisados naquela sessão.
Esse procedimento, como única forma de regularização da situação migratória
dos haitianos que se dirigiam ao Brasil, passou a ser utilizado até a edição da RN nº
97, aprovada na reunião extraordinária de janeiro de 2012, quando foi criada a pos-
sibilidade de concessão de visto humanitário para nacionais do Haiti.
Com a nova resolução, se, de um lado, o governo oferecia a oportunidade da

237
Duval Fernandes
obtenção do visto humanitário na representação diplomática brasileira em Porto
Príncipe, de outro, a limitação do número de vistos (1.200 por ano) contribuía para
a ampliação do número de imigrantes que chegavam à fronteira norte, principal-
mente nos estados do Acre e do Amazonas, uma vez que se entendia o gesto do go-
verno como uma possibilidade de acolhimento (SEIXAS, 2014). Uma vez chegando
à fronteira e sem um visto, ao imigrante cabia a única possibilidade oferecida para
entrar de forma regular no país, que era a solicitação de refúgio, mecanismo que
permitia a obtenção de documentos para a inserção no mercado de trabalho, en-
quanto a demanda feita ao Conare era analisada. Nesse sentido, entre 2010 e 2015,
mais de 45 mil haitianos apresentaram solicitação de refúgio ao Conare, o que repre-
sentou mais da metade do volume de imigrantes dessa nacionalidade que chegaram
ao Brasil naquele momento (vide Tabela 1).
Essa situação causou, na prática, uma crise humanitária na fronteira norte, mais
precisamente no estado do Acre, que, em determinado momento, estava acolhendo
várias centenas de imigrantes haitianos sem uma estrutura adequada.
Mesmo após suspender a limitação do número de vistos a serem concedidos por
ano e implantar o Centro de Solicitação de Vistos para o Brasil – BVAC, em parceria
com a Organização Internacional para Migrações – OIM, em Porto Príncipe, o nú-
mero dos que chegavam à fronteira ainda permanecia elevado e só conheceu uma
redução após o Equador impor aos haitianos em viagem para o país, em 2016, a ne-
cessidade da solicitação prévia de autorização de viagem.
O número de haitianos que recebeu refúgio no Brasil é reduzido e nem aparece
em destaque nas estatísticas oficiais2, apesar de ser o segundo coletivo de imigrantes
em termos de número de solicitações de refúgio.
Ao se analisar o amparo legal predominante nos registros ativos dos imigrantes
haitianos a partir de 2015, há a indicação da RN nº 97 e as outras resoluções e porta-
rias interministeriais que a sucederam para garantir a continuidade da concessão do
visto humanitário, como também, até a introdução da Lei 13.445 de 2017, encontra-
se como amparo legal a RN nº 27, que permitia ao CNIg acatar a indicação do Conare
para a concessão de autorização de residência por razões humanitárias àqueles

2 Refúgio em números
238
As duas fronteiras: migração haitiana e migração venezuelana –notas preliminares
solicitantes de refúgio que poderiam não ter o pedido acatado.

Tabela 1 – Número de imigrantes haitianos com registro ativo e solicitantes de


refúgio no Brasil de 2010 a 2021

Valor absoluto
Ano Nº registro Nº Solic. Ref
2010 111 442
2011 480 2.549
2012 4.278 3.310
2013 5.602 11.690
2014 10.669 16.779
2015 14.487 14.465
2016 42.423 648
2017 14.711 2.362
2018 14.214 7.030
2019 19.860 16.610
2020 23.629 6.613
2021 17.002 794

Fonte: OBMigra Microdados. Refúgio em Números – MJ

3. A MIGRAÇÃO VENEZUELANA
Vários são os estudos sobre a migração venezuelana para o Brasil em diversas
áreas do conhecimento, constituindo ainda hoje um campo de estudos que conta
com diversos autores (BAENINGER et alli, 2018(I); BAENINGER et ali 2018(II);
BAENINGER e SILVA, 2018). Em busca no repositório da Coordenação de Aperfei-
çoamento de Pessoal de Nível Superior – Capes para o termo “venezuelana/venezu-
elano”, na área de Humanas e Sociais Aplicadas, são indicadas 144 teses ou
239
Duval Fernandes
dissertações, sendo 68,7% delas produzidas entre 2015 e 2022.
Por serem originários de um país que tem fronteira com o Brasil, a presença de
venezuelanos é uma situação distinta da de outros coletivos, por exemplo, dos hai-
tianos. Ao mesmo tempo, as trocas fronteiriças seguem o curso de ciclos econômicos
que tornam mais vantajosos os fluxos em uma ou outra direção.
Com a precarização da situação política, social e econômica na Venezuela, em
meados da década de 2010, o fluxo de imigrantes em direção ao Brasil começa a se
ampliar, mas as autoridades federais só irão tomar conhecimento da situação em
2016, como registrado em ata do CNIg, quando, na reunião de setembro de 2016, a
presença de venezuelanos em Roraima é citada pela primeira vez e indicado o nú-
mero de 1.247 solicitações de refúgio recebidas pela Polícia Federal em Pacaraima
(Ata da VII Reunião, linhas 129 e 130). Ao final de 2016, na X Reunião Ordinária,
após uma missão do CNIg ao estado de Roraima, a avaliação do Conselho era outra,
mas ainda considerando uma permanência dos imigrantes na fronteira, como regis-
trado em ata.
“De acordo com o Sr. Presidente, Paulo Sergio de Almeida, o venezuelanos não de-
monstram intenção de sair de Roraima com destino a outros estados do Brasil, dife-
rente do caso dos haitianos, que vinham de um país distante e utilizavam a fronteira
norte apenas como passagem.” (Ata CNIg X Reunião, linhas 75 a 77)
Nesse mesmo documento, é informado que o número de solicitantes de refúgio
já seria da ordem de 4.000 pessoas, cuja metade teria recebido o protocolo de registro
da situação. Além desses, havia os que entraram no Brasil com visto de turista, que
permitia a permanência por 90 dias, mas esse montante era desconhecido.
A percepção dessa situação pelo Conselho, somada às medidas tomadas no âm-
bito do governo do estado de Roraima, com a decretação de situação de emergência
na área de saúde em Pacaraima e Boa Vista, e, sobretudo, com a preocupação da Casa
Civil com o fluxo migratório de venezuelanos para o Brasil, levou o CNIg a aprovar,
na reunião de fevereiro, a primeira de 2017, a RN nº 126, que estendia aos nacionais
de países fronteiriços não signatários do acordo de livre trânsito de pessoas do Mer-
cosul a possibilidade de obtenção de visto temporário de residência por dois anos.
Se a intenção inicial era facilitar a entrada e a permanência de venezuelanos no
país, as exigências para a obtenção dessa autorização e seu custo continuaram a
240
As duas fronteiras: migração haitiana e migração venezuelana –notas preliminares
estimular a solicitação de refúgio, que cresce de forma exponencial, como indicado
na Tabela 2.

Tabela 2 – Número de imigrantes venezuelanos com registro ativo, solicitantes


de refúgio e refugiados no Brasil de 2010 a 2021

Valor absoluto
Ano Nº registro Nº Solic. Ref. Nº Refug.
2010 678 4
2011 894 4
2012 956 1
2013 935 43
2014 1.111 201
2015 965 822
2016 943 3.375
2017 6.894 17.865
2018 32.245 61.681 5
2019 89.828 53.713 20.902
2020 40.251 17.385 24.030
2021 102.534 22.856 160

Fonte: OBMigra Microdados. Refúgio em Números – MJ

A aprovação da nova Lei de Migração, em 2017, permitiu agilizar a regularização


e a permanência dos imigrantes e refugiados venezuelanos. Em relação a esse último
grupo, a partir de 2019, após aprovação do Conare, na sua 145ª reunião, em 5 de
dezembro de 2019, de processo que dispensava de entrevista os solicitantes de refú-
gio venezuelanos que cumprissem algumas exigências, o número de venezuelanos
reconhecidos como refugiados passou a crescer de tal forma que essa nacionalidade

241
Duval Fernandes
tornou-se a mais numerosa entre aqueles que têm status de refugiado no Brasil. Nessa
reunião, também foram aprovadas 21.432 solicitações de refúgio de imigrantes ve-
nezuelanos.
Com essa resolução, o amparo legal dos imigrantes venezuelanos com registro
ativo no país que indicava, além da presença do visto temporário, via extensão do
acordo do Mercosul, a reunião familiar, passa a agregar também, como segundo am-
paro legal mais importante, a condição de refugiado.

4. A ACOLHIDA
Mesmo que, sob o aspecto da criação de instrumentos legais para a acolhida dos
imigrantes das duas nacionalidades em análise, haitianos e venezuelanos, os cami-
nhos adotados tenham sido diversos, o fato de ter criado excepcionalidades pode, à
primeira vista, indicar que a acolhida tenha acontecido de forma semelhante.
Na verdade, as situações são bem distintas, mesmo que os dois países de origem
dos imigrantes tenham conhecido graves situações de descontinuidade política, eco-
nômica e social. Ao mesmo tempo, tanto no Haiti como na Venezuela, há graves e
contínuos desrespeitos aos direitos humanos.
A primeira grande diferença que pode ser indicada é a condição de país frontei-
riço de um, Venezuela, e a distância que separa o Brasil do outro, Haiti. Isso exige
processos distintos para a execução de projetos migratórios, tanto em termos de dis-
tância como dos obstáculos a serem vencidos. Por exemplo, em última instância, há
a possibilidade de obtenção de um visto de turista para venezuelanos na fronteira, o
que não seria possível para um haitiano, que teria, para esse mesmo visto, de enfren-
tar todo um demorado e custoso processo no consulado brasileiro em Porto Príncipe.
Outro ponto que chama a atenção é o apoio recebido de organismos internacio-
nais e de organizações da sociedade civil brasileiras e estrangeiras. No caso dos hai-
tianos, a participação dos organismos internacionais foi diminuta e pontual, ficando
a assistência a esses imigrantes nas mãos das organizações da sociedade civil, na mai-
oria dos casos, de entidades confessionais, e com pouca participação de autoridades
governamentais. Autoridades essas que, em sua maior parte, se engajavam no pro-
cesso em virtude de demandas e pressões das organizações sociais. Mesmo no âmbito
dos governos estaduais, as diferenças foram gritantes. De um lado, ficou patente a
242
As duas fronteiras: migração haitiana e migração venezuelana –notas preliminares
falta de comprometimento do governo do estado do Amazonas no apoio a esses imi-
grantes, e, de outro, o envolvimento do governo do estado do Acre, que se preocupou
em criar condições para a reduzir a vulnerabilidade dos imigrantes.
Ao se tratar da acolhida na fronteira aos imigrantes venezuelanos, surgem como
protagonistas maiores os organismos internacionais, principalmente as agências das
Nações Unidas, que passam a ter um papel fundamental na definição das políticas de
acolhida. Agências governamentais de cooperação bilateral de diversos países tam-
bém estão presentes nesse processo de acolhida, seguidas pelas organizações da soci-
edade civil brasileiras e estrangeiras. Como se não bastasse esse mosaico de entida-
des, há, da parte do governo federal, um real comprometimento com a criação de
mecanismos especiais para a acolhida, por meio da Operação Acolhida3, e também
a criação de um processo de interiorização dos imigrantes venezuelanos com regras
restritas4, o que transformou a distribuição espacial da migração internacional no
Brasil, como indicado nos anexos II e III.
Esses aspectos institucionais criam facilidades para alguns e barreiras para outros
ao tratar de forma distinta comunidades de imigrantes com vulnerabilidades seme-
lhantes nos países de origem, criando-se duas portas de entrada. Em uma, há uma
participação efetiva da sociedade, incluindo o governo federal, que busca criar con-
dições propícias para a permanência do imigrante. Na outra porta, apesar da criação
de mecanismos legais para o processo de entrada, a acolhida não favorece a perma-
nência, criando-se, assim, dois caminhos, ou mesmo duas fronteiras em um mesmo
território.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAENINGER, Rosana et ali(org). Migração haitiana no Brasil. Paco Editorial.

3 Criada pela Medida Provisória nº 820, de 15 de fevereiro de 2018, e pelos decretos nº 9.285 e 9.286,
ambos de 15 de fevereiro de 2018, posteriormente convertidos na Lei nº 13.684/18.
4 Para participar do processo de interiorização, o imigrante venezuelano, que fez sua entrada pela
fronteira terrestre, deve cumprir uma série de exigências, dentre elas estar em um dos abrigos
oficiais nas cidades de Boa Vista. Assim, imigrantes em situação de rua não são elegíveis para a
interiorização.
243
Duval Fernandes
Jundiaí. 2016. p. 684.
BAENINGER, Rosana et alli(org). Migrações fronteiriças. Nepo/Unicamp. Campi-
nas. 2018. p. 680.
BAENINGER, Rosana et ali(org). Migrações Sul-Sul. Nepo/Unicamp. Campinas.
2018. p. 976.
BAENINGER, Rosana e SILVA, João. Migração venezuelana para o Brasil.
Nepo/Unicamp. Campinas 2018. p. 400
Comitê Nacional para os Refugiados – Conare Ata da 145ª Reunião Ordinária 05-
12-2019 (https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/seus-direitos/refugio/instituci-
onal/arquivos-atas/sei_mj_ata_145.pdf) consulta 05/07/2022
Conselho Nacional de Imigração – CNIg. Ata da I Reunião Ordinária 10-01-2010.
(https://portaldeimigracao.mj.gov.br/images/atas_cnig/2010/I_Reuniao_Or-
din%C3%A1ria_-_Fevereiro_-_2010.pdf) Consulta 05/07/2022
Conselho Nacional de Imigração – CNIg Ata IX Reunião 10/11/2022 (https://portal-
deimigracao.mj.gov.br/images/atas_cnig/2010/IX_Reuni%C3%A3o_Or-
din%C3%A1ria_-_Novembro_-_2010.pdf) Consulta 05/07/2022
Conselho Nacional de Imigração – CNIg. Ata da I Reunião Ordinária 09-02-2011
(https://portaldeimigracao.mj.gov.br/ima-
ges/atas_cnig/2011/I_Reuni%C3%A3o_Ordin%C3%A1ria_-_fevereiro_-
_2011.pdf) Consulta 09/07/2022
Conselho Nacional de Imigração – CNIg. Ata da II Reunião Ordinária 16-03-2011
https://portaldeimigracao.mj.gov.br/ima-
ges/atas_cnig/2011/II_Reuni%C3%A3o_Ordin%C3%A1ria_-_mar%C3%A7o_-
_2011.pdf Consulta 05/07/2022
Conselho Nacional de Imigração – CNIg. Ata da VII Reunião Ordinária 13-09-2016.
(https://portaldeimigracao.mj.gov.br/ima-
ges/atas_cnig/2016/VII_REUNI%C3%83O_ORDIN%C3%81RIA_-_setembro_-
_2016.pdf) Consulta 05/07/2022
Conselho Nacional de Imigração – CNIg. Ata da X Reunião Ordinária 13-12-2016.

244
As duas fronteiras: migração haitiana e migração venezuelana –notas preliminares
(https://portaldeimigracao.mj.gov.br/ima-
ges/atas_cnig/2016/X_REUNI%C3%83O_ORDIN%C3%81RIA_-_dezembro_-
_2016.pdf) Consulta 05/07/2022
FARIAS, Andressa. Diáspora Haitina para o Brasil: novo fluxo migratório (2010 a
2012) Dissertação de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Geografia da
PUC Minas – 2012 (http://www.biblioteca.pucminas.br/teses/TratInfEspa-
cial_FariaAV_1.pdf) consultado 08/07/2022.
MONACÉ, Jhon-Kelly Dyaspora haitianos no Brasil, voye KOB e famílias no Haiti:
vínculos sociais, múltiplas estratégias de reprodução e dyasporização. Tese de
doutorado Programa em Desenvolvimento Regional Universidade Federla de To-
cantins. 2021
SEIXAS, Raimundo. Soberania Hobbesiana e hospitalidade em Derrida: estudo de
caso da política migratória federal para fluxo de haitianos pelo Acre. Dissertação
de mestrado Centro Universitário Euro-Americano. Brasília. 2014.

245
Duval Fernandes
ANEXO 1

Fonte FARIAS (2012)


246
As duas fronteiras: migração haitiana e migração venezuelana –notas preliminares
ANEXO II

247
Duval Fernandes
ANEXO III

__________________________________________________
FERNANDES, Duval. As duas fronteiras: migração haitiana e migração
venezuelana – notas preliminares. In: OLIVEIRA, Marco Aurélio Ma-
chado de; (Org.). Anais do I Congresso do Migrafron. Uberlândia: Marco
Teórico, 2022. pp. 233-248.
__________________________________________________

248
A integração dos migrantes e refugiados
no mercado de trabalho europeu

14
Rodolfo Saldanha da Gama da Câmara e Souza

RESUMO:
Pretende-se demonstrar a importância da incorporação da mão-de-obra migrante
para a manutenção do desenvolvimento econômico sustentável do continente euro-
peu. Os migrantes são necessários à Europa tanto porque sua população está enco-
lhendo como para gerar divisas, seja auxiliando a sustentação da previdência social
ou produzindo riquezas para os países que os acolhem. O fato é que a União Europeia
e os demais países europeus não sobreviverão num futuro próximo sem integrarem
os imigrantes as suas sociedades. Eis o desafio deste paper: demonstrar os equívocos
da UE na integração dos imigrantes ante a sua dependência dos mesmos para conti-
nuar a sobreviver.

PALAVRAS-CHAVE:
Migração. Imigrantes. Refugiados. Mercado de trabalho. União Europeia.

ABSTRACT:
The aim is to demonstrate the importance of the incorporation of the migrant labor
force in order to maintain the sustainable economic development of the European con-
tinent. Migrants are needed by Europe both because its population is shrinking and
also to generate foreign exchange, either by helping to sustain social security or by
249
Rodolfo Saldanha da Gama da Câmara e Souza
producing wealth for the host countries. The fact is that the European Union and other
European countries will not survive in the near future without integrating immigrants
into their societies. Here is the challenge of this paper: to demonstrate the misunders-
tandings of the EU in the integration of immigrants faced with their dependence on
them to continue to survive.

KEYWORDS:
Migration. Immigrants. Refugees. Job market. European Union.

1. INTRODUÇÃO
Importante frisar que mesmo o autor sendo defensor incondicional dos Direitos
Humanos, pugna pela razoabilidade na adoção de toda e qualquer política pública,
incluindo-se a de aceitação e integração de migrantes e refugiados. Assume que os
direitos de migrantes e refugiados devem ser reconhecidos e aplicados de forma equi-
librada e consensual, a fim de gerar empatia e, ao menos, minimizar radicalismos e
xenofobia na sociedade receptora. Deste modo, acho que deve-se observar atenta-
mente o que a doutrina alemã convencionou chamar de “reserva do possível” (Vor-
behalt des Möglichen)1.
Neste diapasão, o artigo busca orientar o leitor para a observação de dados obje-
tivos, estatísticos, quantificáveis e de fontes íntegras, sem o apelo emocional comu-
mente visto na mídia em geral sobre os mais variados temas relacionados às migra-
ções, especialmente em relação a propalada “crise migratória” vivida pela União Eu-
ropeia, especialmente a partir de 2015.
A drástica alteração demográfica por que passarão os países europeus os tornam
reféns de aceitarem a idéia de abrirem as suas fronteiras para os migrantes dos quatro
cantos do mundo. A população europeia envelhece ano após ano, sem que se tenha
a devida reposição de jovens a sustentar a pirâmide populacional. Este fenômeno tem
fortes repercussões previdenciárias, econômicas e estratégicas, como se verá.

1 Reserva do possível: Origem, conceito e ordens (Stiborski, 2015)


250
A integração dos migrantes e refugiados no mercado de trabalho europeu
A imigração é a única forma de a Europa se reabastecer de seres humanos. Isto é
fato. O que se procura demonstrar neste trabalho é a forma equivocada como o fe-
nômeno tem sido encarado pelas autoridades públicas do Velho Continente, bem
como quais seriam, na visão do autor, as premissas a serem adotadas para a concer-
tação de uma nova legislação acerca do tema.

2. O ENVELHECIMENTO DA POPULAÇÃO EUROPEIA


Os quadros a seguir, extraídos do site da Eurostats, demonstram inequivocamente
o rápido envelhecimento da população no âmbito da União Europeia. Observem
como a metade inferior das pirâmides etárias vem encolhendo quase na mesma pro-
porção em que a metade superior se expande. Isso quer dizer que à medida que a
população ganha mais idosos não tem havido na mesma proporção a reposição nas
faixas etárias mais jovens, causando o fenômeno de envelhecimento da população e
pondo em risco a própria subsistência dos países. Como se verá adiante, a taxa de
natalidade na Europa como um todo, que há muito tempo é baixa, vem diminuindo
ainda mais. Portanto, a falta de jovens implicará em uma severa instabilidade econô-
mica por conta dos elevados gastos estatais com idosos tanto na área da saúde como
na da previdência social.

Figura 1 – pirâmide etária 2001-2016

251
Rodolfo Saldanha da Gama da Câmara e Souza
Figura 2 - pirâmide etária 2016-2080

Corroborando o acima afirmado, a Eurofound2 atesta que:


“Europe faces stark demographic challenges in the years ahead. The proportion of
people aged 65 and over will rise from 17% to 30% of the EU population by 2060,
while at the same time the working age population will decline. The European
Commission estimates that most of the increase in public spending in the EU over the
next 50 years will be on pensions, long-term care and healthcare.”
Portanto, trazer gente de fora para suprir a redução populacional parece ser uma
boa solução, uma vez que a juventude europeia não vem conseguindo aumentar a
sua taxa de natalidade. Embora este não seja um fenômeno novo na Europa, vem se
acentuando cada vez mais com os anos. A tabela a seguir, também extraída do site da
Eurostats, demonstra que, geralmente, as mulheres migrantes possuem taxas de na-
talidade superiores às de suas congêneres nacionais.

2 Intergenerational solidarity needed to face Europe’s long-term challenges, 2017.


252
A integração dos migrantes e refugiados no mercado de trabalho europeu
Figura 3 - taxas de natalidade

Dessa forma, a população de um determinado país membro aumentaria tanto


pela imigração como pela maior taxa de natalidade dos migrantes.

3. QUEM VAI PAGAR A CONTA PELO ENVELHECIMENTO DA


POPULAÇÃO?
Ao longo da vida o modo como consumimos e produzimos varia bastante. Cri-
anças e idosos costumam consumir mais do que produzem, enquanto os adultos pro-
duzem bem mais do que consomem. Essa dinâmica é especialmente importante ser
observada para entendermos melhor quais serão as consequências do envelheci-
mento acelerado da população, bem como os desequilíbrios fiscais a serem acarreta-
dos.
Mais pessoas chegando a terceira idade importa em mais concessões de pensões
e aposentadorias. Nesta idade os gastos com saúde são nitidamente superiores em
relação as outras faixas etárias, o que impõe aos Estados membros maiores gastos
nesta área.
Notem que a média de trabalhador ativo por aposentado vem se reduzindo ao
longo dos anos. Atualmente, quatro trabalhadores ativos financiam uma

253
Rodolfo Saldanha da Gama da Câmara e Souza
aposentadoria. Nos próximos anos esta média cairá pela metade, ou seja, haverá so-
mente dois trabalhadores ativos para cada aposentado, o que importa em um tre-
mendo desequilíbrio fiscal. O remédio para estas distorções fiscais é bem conhecido
do público europeu. Políticas de austeridade da escola alemã preconizam cortes de
toda a sorte em benefícios sociais, inclusive nas aposentadorias, e não raro acompa-
nhadas de aumento do tempo de contribuição e de idade somadas a regras para des-
contos para quem se aposentar antes da hora pelas novas regras. A Grécia que o diga,
pois em função da crise financeira internacional chegou a diminuir para até 40% os
valores anteriormente pagos a título de aposentadoria3. Eis a importância em se man-
ter o equilíbrio atuarial entre trabalhadores ativos e aposentados e pensionistas. E já
que os jovens europeus se reproduzem a uma taxa muito baixa, não há outra opção
a não ser importar gente para o continente. Observem o próximo gráfico do Parla-
mento Europeu4.

Figura 4 - relação de dependência entre ativos e aposentados

3 The Greek Pension Reform Strategy (2010-2016).


4 Ageing population: projections 2010 - 2060 for the EU27 (2013).
254
A integração dos migrantes e refugiados no mercado de trabalho europeu
No caso da previdência, o Parlamento Europeu5 já fez a contas. A saber:

Figura 5 – aumento custo previdenciário

Esses dados preliminares são apenas para ilustrar bem a real situação de envelhe-
cimento da população da UE e suas consequências imediatas. Agora resta-nos saber
qual seria a curto e médio prazo a solução a ser adotada, torcendo para que progra-
mas de estímulo à natalidade gerem bons resultados no longo prazo.
Desse modo, pouco importa se o cidadão é ou não nacional originário de

5 Ageing population: projections 2010 - 2060 for the EU27 (2013)


255
Rodolfo Saldanha da Gama da Câmara e Souza
determinado Estado-membro, o aumento dos gastos públicos decorrentes do enve-
lhecimento da população será repartido por todos, igualmente, tornando ainda mais
urgente o aumento da massa etária em idade laboral (20-64 anos), a fim de financia-
rem a previdência pública, uma vez que os aposentados e pensionistas, via de regra,
não contribuem mais para a previdência social.

4. A SOLUÇÃO BATE À PORTA: MIGRANTES E REFUGIADOS


Países como Canadá, Austrália, Estados Unidos, Nova Zelândia, entre outros, são
notórios pelos seus programas de imigração qualificada. A UE também tem progra-
mas neste sentido (p. ex. Blue Card6). Contudo, veremos, não basta atrair migrantes
de bom nível intelectual/educacional e até mesmo social, é preciso mais gente para
fazer face ao envelhecimento acelerado da população europeia, até porque, os pri-
meiros países citados costumam atrair um contingente enorme de estudantes que
também querem imigrar para o país que os recebeu na universidade, dividindo ainda
mais o número de migrantes qualificados disponíveis. Além disso, não serão estes
migrantes qualificados quem trabalharão nos empregos de menor qualificação pro-
fissional, embora sejam tão importantes como os demais (lixeiros, coveiros, jardinei-
ros, limpadores de bueiros, condutores de táxis e ônibus, garçons, atendentes, cons-
trução civil, etc).
Há décadas a Europa experimenta um contínuo e crescente fluxo migratório, no-
tadamente de países do norte de África e do Oriente Médio. Contudo, o problema na
administração deste fluxo de pessoas sempre foi a sua integração à família europeia.
Há muitos artigos e relatórios a tratar do assunto. Isto é um fato, a UE ainda não
descobriu como integrar adequadamente os seus imigrantes da mesma forma que
países como Canadá, Austrália e EUA o fazem. Se as primeiras gerações de imigran-
tes destes últimos sentiam-se à margem da sociedade e discriminados, isto já não
costuma ocorrer, ao menos com a mesma intensidade, com a segunda e terceira ge-
rações. É exatamente o oposto do que ocorre no âmbito da Europa em geral. Os des-
cendentes de migrantes, geralmente, continuam a ser tratados pela população em ge-
ral como migrantes, ao invés de experimentarem o sentimento de pertencimento ao

6 Portal de Imigração da UE.


256
A integração dos migrantes e refugiados no mercado de trabalho europeu
país que acolheu seus pais e/ou avós. Transbordam exemplos de Argelinos e Tunisi-
anos em França, Marroquinos na Espanha, Turcos na Alemanha, dentre vários ou-
tros, que vivem em condições de guetização, como se fossem uma sociedade paralela.
O problema europeu para com a imigração está no processo de integração. De
certo que as autoridades europeias sabem como realizar a integração. Basta olharmos
para os inúmeros textos, artigos, relatórios expedidos pelos infindáveis órgãos da es-
trutura da União Europeia7. Há vários programas e ações exitosos na integração dos
migrantes, porém, ainda são em número insuficiente. O problema não reside na falta
de expertise, mas sim na falta de vontade política. A minha opinião fica ainda mais
convicta quando me deparo com afirmações em sites oficiais da UE do tipo: “Migra-
tion represents an essential resource and an opportunity, both for migrants and Eu-
rope, in EU labour markets. This is even more true in a context where the continent
is facing a severe demographic decline and skills shortages in key sectors.”8. Assim,
faz-se um discurso, mas na prática ocorre diferente.

5. CORRELAÇÃO ENTRE INTEGRAÇÃO SOCIAL E ECONOMIA


Sem precisar ser um expert no assunto, basta imaginarmos como seria acaso fos-
semos viver noutro país para logo notarmos quais seriam nossas necessidades bási-
cas. Primeiramente, aprender o idioma do país para o qual se está a mudar. Segundo,
obter um emprego, afinal, sem dinheiro não se pagam as contas, para dizer o mínimo.

7 Resolução 2015/2321 do Parlamento Europeu:


6. Destaca o facto de que, para facilitar a inclusão social e a integração dos refugiados no mercado de
trabalho, é necessário desenvolver uma abordagem que preveja uma adaptação adequada e que
pressuponha a colaboração, e dar resposta a uma série de questões sérias e multifacetadas, tais
como: todas as formas de discriminação; as barreiras linguísticas, que constituem o primeiro obs-
táculo à integração; a validação de competências; diversos contextos culturais, socioeconómicos e
educacionais; a habitação; os cuidados de saúde, entre os quais o apoio psicossocial e pós-traumá-
tico; o reagrupamento familiar; e a percentagem significativa de grupos desfavorecidos entre os
refugiados, em particular, o número preocupante de crianças, parte das quais não acompanhadas,
pessoas com deficiência, idosos e mulheres(11) , todas estas pessoas necessitando de respostas
adaptadas às suas problemáticas específicas;
8 European Dialogue on Skills and Migration.
257
Rodolfo Saldanha da Gama da Câmara e Souza
Assim, vemos de início duas grandes dificuldades enfrentadas pelos migrantes que
aportam à Europa. Certamente, educação, residência, saúde, aceitação social, liber-
dade de culto, viriam a seguir, mas creio que aprender o idioma e ter reconhecidas
suas qualificações profissionais, a fim de poder ingressar no mercado de trabalho lo-
cal, são as premissas básicas para os demais aspectos da vida civil.
Se os Estados-membros e a UE não estão a propiciar programas de estudo do idi-
oma nacional e a desenvolver políticas públicas no sentido de colocar no mercado de
trabalho local os migrantes, como o continente, que depende enormemente de pes-
soas para se autofinanciar, espera que eles consigam fazer a sua parte?
Explico. Migrantes bem integrados contribuem na mesma proporção que os ci-
dadãos nacionais para o desenvolvimento econômico local e, mais ainda, contribuem
com seus países de origem em razão das remessas de dinheiro para as famílias que lá
ficaram. A título exemplificativo, a consultoria McKinsey9 avalia que em 2014 estas
remessas perfizeram o montante de U$ 580 bilhões. Caso fosse um país, este mon-
tante representaria a 21ª economia do planeta, de acordo com o ranking mundial de
PIB’s do Banco Mundial10.
Segundo este estudo da consultoria McKinsey, os migrantes ao redor do mundo
produzem U$ 6,9 trilhões, equivalente a 9,4% do PIB mundial, sendo que deste mon-
tante a Europa ocidental se beneficiaria com U$ 2,3 trilhões. Apenas para se ter uma
idéia do que este valor representa, novamente nos valemos do GDP Ranking do
Banco Mundial de 2016. Caso fosse um país, este PIB seria equivalente à 7ª economia
mundial, à frente de Índia, Itália, Brasil e Canadá, por exemplo. No âmbito europeu,
este montante seria equivalente à 4ª força econômica, atrás apenas dos três grandes
(Alemanha, Reino Unido e França). Como se vê, é muito dinheiro gerado pela mão-
de-obra migrante no âmbito da UE para ser desprezado, tanto por razões humanís-
ticas como econômicas.
Outro dado que chama a atenção no estudo citado é o fato de que a mão-de-obra
migrante recebe menos 20% a 30% do que os cidadãos nativos e que se esta diferença
fosse reduzida para um intervalo entre 5% e 10%, o valor a mais gerado seria da

9 People on the move: global migration’s impact and opportunity, 2016.


10 GDP Ranking, 2016.
258
A integração dos migrantes e refugiados no mercado de trabalho europeu
ordem de U$ 800 bilhões a U$ 1 trilhão por ano ao PIB mundial.
Atualmente, espera-se passado os piores momentos da pandemia de COVID-19,
a riqueza produzida pelos migrantes volta a ser destaque, conforme a seguir é desta-
cado pelo Banco Mundial11:
“In 2021, we expect remittance flows to low- and middle-income countries
(LMICs) to reach $589 billion in 2021, a 7.3 percent increase over 2020. Remittances
now stand more than threefold above official development assistance and, excluding
China, more than 50 percent higher than foreign direct investment.”
As vantagens em aceitar migrantes, de todos os níveis de escolaridade, são imen-
sas e deixar de aproveitá-las em nome do preconceito ou da xenofobia é algo que
viola frontalmente os pilares europeus de hospitalidade e solidariedade, previstas em
seus tratados fundantes, sem falar nos inúmeros compromissos internacionalmente
assumidos no âmbito dos Direitos Humanos.

6. TEORIA DA RESERVA DO POSSÍVEL E OS RECURSOS DO FUNDO


SOCIAL EUROPEU
O relatório “The Centrality of Employment in Immigrant Integration in Europe”
do think tank Migration Policy Institute12, escrito antes da eclosão da crise migrató-
ria iniciada em 2015, afirma que o problema da integração dos migrantes na UE não
é a cultura, mas sim o emprego, ou seja, a questão a ser dirimida cingir-se-ia ao as-
pecto econômico ao invés do cultural. Neste ponto, ouso discordar em parte. Acho
que ambos os vieses devem caminhar juntos. Após quatro décadas de migração com
gerações de filhos e netos de migrantes nascidos europeus, percebe-se que houve a
integração econômica, embora a cultural ainda esteja longe do ideal. O novo desafio,
contudo, é realizar ambos para os novos migrantes (refugiados e solicitantes de asilo)
que compõe a atual crise migratória tanto na vertente mediterrânica como na dos
balcãs e em muito menos tempo.
A teoria da reserva do possível não depende de recursos para ser aplicada. Muito
pelo contrário, deve ser observada justamente para impor aos Estados que arrumem

11 Global Remittance Flows in 2021: A Year of Recovery and Surprises.


12 The Centrality of Employment in Immigrant Integration in Europe, 2012.
259
Rodolfo Saldanha da Gama da Câmara e Souza
os recursos necessários para as demandas postas. No caso da EU, verifica-se facil-
mente que não há falta de recursos a serem empregados para programas de integra-
ção dos migrantes, o que há é o excesso de gastos previstos para determinadas inici-
ativas consideradas de maior prioridade. E é neste contexto que a teoria da reserva
do possível deve subsidiar os Direitos Humanos e as políticas de integração dos mi-
grantes.
A teoria da reserva do possível parte de duas premissas básicas, segundo a dou-
trina alemã: razoabilidade e proporcionalidade. É indiscutível a razoabilidade em
pleitearmos mais recursos para os programas de integração e para a assistência geral
aos refugiados, especialmente quando estes estão sendo empregados para outros fins.
A proporcionalidade é evidente, já que o continente depende dos processos de inte-
gração para que os migrantes se sintam parte da sociedade europeia e possam assim
produzir melhor e estarem a auxiliar a financiar os Estados-membros que os recebe-
ram. É incompatível querer estipular verbas entre projetos de infraestrutura ou de
inovação ante os programas de integração. Há que determinar as prioridades. De
novo, repito o já acima dito, a UE tem feito um discurso que não se verifica na prática,
quando o assunto é imigração.
Sabemos que a estrutura administrativa da União Europeia é complexa e é mais
ainda descobrir as fontes dos recursos que financiam os seus projetos. Estudando os
fundos e a aplicação de seus recursos foi possível descobrir alguns desequilíbrios. Um
deles se refere ao fato de que o montante destinado à gerenciar a atual crise migrató-
ria é inferior aos gastos necessários para custear a máquina burocrática da UE.
Observou-se o orçamento plurianual, conhecido como Multiannual Financial
Framework13, que prevê os gastos entre os anos 2014 e 2020, conforme abaixo.

13 Comissão Europeia. Budget (em linha). Bruxelas: EC, Multiannual Financial Framework adjusted
for 2018, 2017 (acesso em 5 nov. 2017). Disponível em http://ec.europa.eu/budget/mff/figures/in-
dex_en.cfm#simplification
260
A integração dos migrantes e refugiados no mercado de trabalho europeu
Figura 6 – Plano Plurianual 2014-2020

No próximo gráfico observaremos a distribuição destes gastos por grupos de po-


líticas públicas em comparação com a versão anterior 2007-2013. Esta comparação
nos permitirá extrair importantes conclusões e constatarmos o quão ínfimo vem
sendo o gasto da UE na questão humanitária em relação a diversos outros estipêndios
previstos em seu orçamento plurianual.

Figura 7 – comparação entre os planos plurianuais

261
Rodolfo Saldanha da Gama da Câmara e Souza
Notem que a linha 3, Segurança e Cidadania, é a menor fonte de gastos do orça-
mento, além das despesas com Compensações (alínea 6). Até mesmo as despesas
com Administração (alínea 5) irão consumir mais recursos financeiros. E o que exa-
tamente isto quer dizer? Em uma análise ainda muito preliminar e, portanto, super-
ficial, poderia nos indicar que a União Europeia teria como remanejar mais recursos
de outras áreas para investir no enfrentamento da crise humanitária, inclusive em
programas de geração de emprego e renda para os migrantes.
Na mesma linha, o European Social Fund também sofreu redução orçamentária,
como se verifica da página oficial do mesmo:
“The role of the ESF has been reinforced for the 2014-2020 period through the intro-
duction of a legally binding minimum share of 23.1% of total cohesion funding. With
an overall allocation of EUR 74 billion (compared with the planned sum of
EUR 75 billion for the 2007-2013 period), the ESF co-finances national or regional
operational programmes which run for the seven-year duration of the multiannual
financial framework and are proposed by the Member States and approved by a
Commission decision.”14
Percebe-se, pois, que a UE tem um discurso politicamente correto em seus comu-
nicados oficiais que destoa na prática. O discurso da importância da integração dos
migrantes, de prover maior assistência aos refugiados, a criação de instrumentos que
integrem jovens ante o envelhecimento generalizado da população e etc não se coa-
duna com cortes orçamentários, especialmente num período em que o bloco euro-
peu experimenta crescimento econômico15 (dados coletados de períodos anteriores
à pandemia de COVID-19).
Outra questão recorrente se refere à falta de transparência fiscal nas contas dos
fundos financiadores da UE. Percebam acima as discrepâncias destes valores, o que
é um nítido indicativo de que basta mudar de site e/ou órgão da UE para que as in-
formações não se confirmem na íntegra. Os dados financeiros deveriam estar dispos-
tos num site central e de forma didaticamente exposta para quem quer que tenha
interesse nas contas públicas da UE os possa acessar sem complicações, como no

14 European Social Fund, 2017.


15 Spring 2017 Economic Forecast
262
A integração dos migrantes e refugiados no mercado de trabalho europeu
Brasil tem sido feito através do Portal da Transparência.
Aliás, neste último ponto, não estamos sós. No sentido de confirmar o dado de
que o orçamento comunitário representaria “apenas” 1% do orçamento previsto
para todos os 28 Estados-membros da União Europeia (antes do BREXIT), deparei-
me com interessante estudo do britânico Institute for Fiscal Studies16 que, além de
explicar como funciona o orçamento da EU, também reclama logo em suas linhas
iniciais da falta de transparência sobre o assunto:
“Here we instead focus on describing and explaining the way the EU’s budget works,
where it derives its revenues from and how it allocates spending. In doing so we hope
to shed some light on an issue which is complex and rather poorly documented – and
which therefore is less than transparent.”
Felizmente, na sessão de 30 de novembro de 201717, o Parlamento Europeu parece
ter começado a olhar de forma mais objetiva para as ações concretas que, realmente,
teriam o condão de mudarem o curso do mercado de trabalho no continente e rever-
teu a pretensão do Comitê de Conciliação, que importava no corte de € 750 milhões
da área de Crescimento e Emprego, e, indo além, reforçou esta rubrica orçamentária
em mais €116 milhões para financiar programas de incentivo ao emprego para os
jovens. Esperamos que dentre os “jovens” estejam também a ser considerados os mi-
grantes. De toda a sorte, para o orçamento 2018 os programas para fomentar o em-
prego dos jovens contou com cerca de € 300 milhões, o que significou um avanço no
entendimento de que era preciso, de fato, tirar do papel as boas intenções e avançar
no campo prático, a fim de garantir em concreto que o cenário atual fosse revertido.
Como citado pelo site do Parlamento Europeu, o orçamento comunitário repre-
senta 1% do orçamento previsto para a região da UE, ou seja, 99% do PIB está nas
mãos dos Estados-membros. Então, não é só a UE remanejar recursos de uma rubrica
orçamentária para a outra, são os Estados-membros que devem empenhar nos seus
próprios ordenamentos jurídicos despesas orçamentárias que atendam aos progra-
mas capazes de criar empregos, integrar os migrantes, combater o preconceito,

16 The budget of European Union: a guide.


17 Parlamento Europeu aprova orçamento da UE para 2018

263
Rodolfo Saldanha da Gama da Câmara e Souza
estimular a inovação, dentre outras políticas a serem implementadas. Portanto, não
basta a EU trabalhar sozinha, há que funcionar a concertação entre os Estados-mem-
bros e direcionar de modo conjunto as ações, caso contrário serão gastos valiosos
recursos humanos e financeiros sem que se consiga atingir os objetivos almejados.
Nas palavras do Institute for Fiscal Studies, os gastos com Cidadania e Segurança,
onde se incluem os programas com migração, estão entre os menores do orçamento
da UE, de modo que estas ações devem ser complementadas pelos orçamentados dos
Estados-membros, como dito acima. Citamos:
“This is a relatively small area of the EU budget, with spending of Around 1.7 billion
overall in 2014. As with the Other relatively small budget heading, this reflects the fact
that national governments are responsible for far larger amounts of spending in these
areas.”

7. CONCLUSÃO
Ante o envelhecimento de sua população a Europa e, especialmente, a região da
União Europeia assistirá nas próximas décadas a um grande desequilíbrio fiscal em
suas contas públicas, caso não consiga compor a base da população em idade ativa
de trabalho.
No curto e médio prazo, sendo otimista, a solução passa pela imigração, já que
historicamente as taxas de natalidade na EU sempre foram baixas e continuam a di-
minuir. Portanto, não há no horizonte outra solução para recompor a sua população
mais jovem, senão “importando” gente de outras regiões do planeta.
A atual crise migratória, embora imponha um desafio sem precedentes aos órgãos
administrativos da UE, se apresenta também como rara oportunidade para esta re-
composição demográfica. A questão da escolaridade dos migrantes deve ser vista
como secundária, embora não menos importante, e a ONU, através do ACNUR e
OIM poderia auxiliar no sentido de realocar noutros países o contingente excedente
de migrantes e/ou refugiados de baixa escolaridade, sempre respeitando seus direitos
como, p. ex., o de reunião familiar.
Creio que falta melhor concertação entre os Estados-membros da EU com a
ONU, outros países possíveis destinatários de migrantes e, em especial, com os países

264
A integração dos migrantes e refugiados no mercado de trabalho europeu
de onde estão saindo os migrantes, notadamente Turquia e Líbia. A tarefa, todos sa-
bem, é hercúlea e deveras dificultosa ante todos os interesses e diferenças culturais
envolvidas. Contudo, o mundo já passou por situações conflituosas em que se pode
chegar a um bom termo, melhorando as condições de vida dos envolvidos em com-
paração ao período anterior.
A UE tem os recursos, embora estejamos a considerar apenas os valores previstos
no orçamento comunitário que, como visto, representa 1% do PIB de todos os Esta-
dos-membros.
Os Estados-membros tem a oportunidade de investirem nos migrantes de forma
estratégica e, em alguns casos, até seletiva, desde que isto não represente discrimina-
ção.
O processo de integração dos migrantes que já residem na UE deve ser ampliada
e dos migrantes e refugiados que estão chegando desde 2014/15 na atual crise migra-
tória deve ser acelerado e expandido. Como vimos, recursos não faltam, o que falta é
uma melhor compreensão do processo por que passa a população europeia e a forma
como esta questão pode ser resolvida, devendo-se deixar de lado preconceitos de to-
dos os matizes.
Exigir melhor adequação ao orçamento comunitário é razoável e proporcional em
relação ao último plano plurianual, permitindo que se possa enfrentar a questão mi-
gratória e do envelhecimento da população de modo conjunto, sem antagonismos.
Sendo assim, entende-se que ao agir em conformidade com os preceitos legais
internacionais, a União Europeia poderá dispor de mais recursos para os programas
de atendimento aos migrantes e refugiados, avançando com a sua integração no mer-
cado de trabalho, respeitando os Direitos Humanos, a propiciar o aumento de sua
população de forma harmônica.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Comissão Europeia. EUROSTATS꞉ Population structure and aging (em linha). Lu-
xemburgo, 2017a (acesso em 30 nov 2017). Disponível em: http://ec.eu-
ropa.eu/eurostat/statistics-explained/index.php/Population_structure_and_age

265
Rodolfo Saldanha da Gama da Câmara e Souza
ing
Comissão Europeia. EUROSTATS꞉ Population structure and aging (em linha). Lu-
xemburgo, 2017b (acesso em 30 nov 2017). Disponível em: http://ec.eu-
ropa.eu/eurostat/statistics-explained/index.php/Population_structure_and_age
ing
Comissão Europeia. Portal de Imigração da EU (em linha). Bruxelas: Blue Card, 2017
(acesso em 29 nov 2017). Disponível em: ec.europa.eu/immigration/bluecard_en.
Comissão Europeia. Integration in the labour market of legally residing third-
country nationals (em linha). Bruxelas: European Dialogue on Skills and Migra-
tion, 2017 (26 nov 2017). Disponível em: https://ec.europa.eu/home-af-
fairs/what-we-do/policies/legal-migration/european-dialogue-skills-and-migra-
tion_en.
European Foundation for the Improvement of Living and Working Conditions. In-
tergenerational solidarity needed to face Europe’s long-term challenges (em li-
nha). Bruxelas: Eurofound, 2017 (acesso em 29 nov 2017). Disponível em:
https://www.eurofound.europa.eu/news/news-articles/intergenerational-solida-
rity-needed-to-face-europes-long-term-challenges
European Commission. Budget (em linha). Bruxelas: EC, Multiannual Financial Fra-
mework adjusted for 2018, 2017 (acesso em 5 nov. 2017). Disponível em
http://ec.europa.eu/budget/mff/figures/index_en.cfm#simplification.
European Commission. Spring 2017 Economic Forecast (em linha). Bruxelas: EC,
2017 (20 nov 2017). Disponível em: https://ec.europa.eu/info/business-eco-
nomy-euro/economic-performance-and-forecasts/economic-forecasts/spring-
2017-economic-forecast_en.
European Parliament. EU budget 2018 approved: support for youth, growth, security
(em linha). Bruxelas: European Parliament, 2017 (23 nov 2018). Disponível em:
http://www.europarl.europa.eu/news/en/press-room/20171127IPR88936/eu-
budget-2018-approved-support-for-youth-growth-security.
Institute for Fiscal Studies. The budget of European Union: a guide (em linha). Lon-
don: IFS Briefing Note BN181, 2016 (22 nov 2017). Disponível em:

266
A integração dos migrantes e refugiados no mercado de trabalho europeu
https://www.ifs.org.uk/uploads/publications/bns/BN181.pdf
McKinsey Global Institute. Global migration’s impact and opportunity (em linha).
Mundo: Report, 2016 (28 nov 2017). Disponível em: https://www.mckin-
sey.com/global-themes/employment-and-growth/global-migrations-impact-
and-opportunity.
Migration Policy Institute. The Centrality of Employment in Immigrant Integration
in Europe (em linha). Toronto: Transatlantic Council of Migration, 2012 ( 25 nov
2017). Disponível em: https://www.migrationpolicy.org/pubs/Integration-Han-
sen.pdf.
Parlamento Europeu. Ageing population: projections 2010 - 2060 for the EU27 (em
linha). Bruxelas: Parlamento Europeu, 2013a (acesso em 27 nov 2017). Disponível
em: http://www.europarl.europa.eu/thinktank/en/document.html?refe-
rence=LDM_STS(2013)130690
Parlamento Europeu. Ageing population: projections 2010 - 2060 for the EU27 (em
linha). Bruxelas: Parlamento Europeu, 2013b (acesso em 27 nov 2017). Disponí-
vel em: http://www.europarl.europa.eu/thinktank/en/document.html?refe-
rence=LDM_STS(2013)130690
Parlamento Europeu. Fundo Europeu Social (em linha). Bruxelas: Parlamento Euro-
peu, 2017 (29 nov 2017). Disponível em: http://www.europarl.eu-
ropa.eu/ftu/pdf/en/FTU_2.3.2.pdf
RATHA, Dilip. Global Remittance Flows in 2021: A Year of Recovery and Surprises
(em linha). Washington, DC: World Bank, November 17, 2021 (consult. 15 jul.
2022). Disponível em: https:// blogs.worldbank.org/peoplemove/global-remit-
tance-flows-2021-year-recovery-and-surprises.
STIBORSKI, Bruno P. Reserva do possível: Origem, conceito e ordens (em linha). Sal-
vador, Abril, 2014 (acesso em 27 nov 2017). Disponível em: https://bstiborski.jus-
brasil.com.br/artigos/197458820/reserva-do-possivel-origem-conceito-e-or-
dens.
SYMEONIDIS, Georgios. The Greek Pension Reform Strategy 2010-2016 (em linha).
Washington, DC: World Bank, November 17, 2021 (consult. 15 jul. 2022). Dis-
ponível em:

267
Rodolfo Saldanha da Gama da Câmara e Souza
https://documents1.worldbank.org/cura-
ted/en/491431468178146012/pdf/105821-REVISED-PUBLIC-1601.pdf
The World Bank. GDP Ranking (em linha). Washington, DC: Data, 2017 (26 nov
2017). Disponível em https://data.worldbank.org/data-catalog/GDP-ranking-ta-
ble.

__________________________________________________
SOUZA, Rodolfo Saldanha da Gama da Câmara e. A integração dos mi-
grantes e refugiados no mercado de trabalho europeu. In: OLIVEIRA,
Marco Aurélio Machado de; (Org.). Anais do I Congresso do Migrafron.
Uberlândia: Marco Teórico, 2022. pp. 249-268.
__________________________________________________

268
A OPERAÇÃO ACOLHIDA E A SEGURANÇA
HUMANA DOS IMIGRANTES
VENEZUELANOS

15
Túlio Pires Barboza

RESUMO:
O presente texto relaciona as ações desenvolvidas na Operação Acolhida, no estado
de Roraima, no primeiro semestre de 2021, conforme o relatório semestral do Co-
mitê Federal de Assistência Emergencial (CFAE), ao conceito de segurança humana
do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Nesse contexto,
foram realizadas as caracterizações da Operação Acolhida e do processo de evolução
dos estudos de segurança, com vistas a identificar a relação entre ambos. Na sequên-
cia, são apresentados os sete aspectos da segurança humana, conforme descritos no
Relatório de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas, identificando indicado-
res que caracterizem o provimento da segurança humana em cada aspecto. Na se-
quência, foi realizada uma análise do relatório do primeiro semestre de 2021 para
identificar e categorizar as ações realizadas no escopo da operação dentro cada um
dos sete aspectos. Por fim, foi apresentada uma crítica quanto ao atendimento da
Acolhida nos aspectos da segurança humana dos imigrantes.

PALAVRAS-CHAVE:
Operação Acolhida; segurança humana; refugiado; migração.

269
Túlio Pires Barboza
ABSTRACT:
This text relates the actions developed in the Acolhida Operation, in the state of Ro-
raima, in the first half of 2021, according to the Federal Committee of Emergency As-
sistance (CFAE)’s half-yearly report, to the Program of the United Nations for Devel-
opment (UNDP)’s concept of human security. In this context, it was developed char-
acterizations of the Acolhida Operation and the security studies’ evolution process,
wich was aimed to identify the relationship between these two elements. In sequence,
the seven aspects of human security are presented, as described in the United Nations’
Human Developments report, by identifying indicators that characterize the provision
of human security in every aspect. In sequence, an analysis of the report for the first
half of 2021 was carried out to identify and categorize the actions performed within
the scope of the operation within each of the seven aspects. Finally, a criticism was
presented regarding the service provided by the Acolhida aspects of the human security
of immigrants.

KEYWORDS:
Human Security. Immigrants. Acolhida Operation.

1. A CRISE NA VENEZUELA E A OPERAÇÃO ACOLHIDA


A Venezuela é um caso bastante peculiar no cenário internacional, cujas caracte-
rísticas se relacionam com os motivos da crise migratória existente. O país vinha
apresentando indicadores socioeconômicos superiores aos seus vizinhos na última
década do século XX, índices que se mantiveram superiores no início do século XXI,
de acordo com o Anuário de Estatísticas das Nações Unidas (2017). Por muitos anos,
o petróleo garantiu a boa situação econômica do país, projetando-o no cenário inter-
nacional, ao ponto de a Venezuela ser um dos países fundadores da Organização dos
Países Produtores de Petróleo (OPEP). Segundo Franchi (2019), a crise está assen-
tada em fatores políticos, econômicos e sociais, tornando-se a grande fonte de repul-
são do povo.
A causa política está associada à subida de um governo de viés socialista que

270
A operação acolhida e a segurança humana dos imigrantes venezuelanos
impede a sua fiscalização pelos outros poderes do Estado. Gerou-se um desequilíbrio
de poder e os mandos e desmandos do executivo impactaram negativamente todo o
conjunto da sociedade local. A causa econômica foi gerada pelos impactos da desva-
lorização do barril de petróleo que ocasionou a perda do poder aquisitivo do país.
Soma-se a isso a inviabilidade financeira na aquisição de gêneros básicos à popula-
ção, haja vista a dependência que tem de produtos importados. A crise social é uma
consequência direta das anteriores. Os rumos errôneos tomados pela classe política,
aliados à incapacidade em fornecer alimentos, remédios e serviços básicos de quali-
dade à sua população, levaram a um estado de turbulência que elevou a níveis alar-
mantes a violência e a pobreza (FRANCHI, 2019).
A porta de entrada mais utilizada pelos venezuelanos que adentram o Brasil é a
cidade de Pacaraima, em Roraima. Pacaraima dista 213 km de Boa Vista, a capital do
Estado, que por sua vez está, aproximadamente, a 750 km de Manaus. A cidade sem-
pre funcionou como um entreposto comercial entre os países e existe um movimento
pendular, tanto de brasileiros como de venezuelanos.
Por ali passa a BR-174, um eixo rodoviário que adentra o território brasileiro e
leva até Manaus, no Amazonas. A BR-174 é a entrada oficial da região. Ela é asfaltada
e oferece boas condições de deslocamento. Nela estão situados postos da Polícia Fe-
deral, da Receita Federal e da Polícia Militar, além do Pelotão Especial de Fronteira
do Exército Brasileiro. No território venezuelano, a BR-174 se transforma na Ruta 10
e segue até o Caribe.
O estado de Roraima é estratégico para a Defesa Nacional e possui cerca de 1920
quilômetros de fronteira com três países, sendo 964 destes com a Venezuela. As ca-
racterísticas geográficas oferecem permeabilidade à região. A vegetação de lavrado e
o relevo levemente ondulado dão a porosidade que facilita a entrada de ilegais e difi-
culta o monitoramento dos órgãos competentes (SILVA, SILVA, et al., 2020). A ci-
dade venezuelana mais próxima é Santa Elena de Uiarén, que dista 15 km de Paca-
raima e possui, aproximadamente, 30 mil habitantes.
A cidade de Pacaraima, já deficiente em sua estrutura de serviços básicos, sofreu
ainda mais com o aumento do fluxo migratório, sobretudo após o ano de 2016. Além
da saturação dos serviços de saúde e segurança, os assaltos, furtos e homicídios tor-
naram-se mais frequentes (CHAVES, 2018).

271
Túlio Pires Barboza
Outro impacto visível foi o aumento das aglomerações de pessoas nas ruas, fruto
da desordem na entrada de imigrantes. Pessoas amontoaram-se no centro da pe-
quena cidade fronteiriça em busca dos mantimentos em falta no seu país (FRANCHI,
2019).
A entrada de indígenas venezuelanos foi outro reflexo da crise que se formava. A
formação de grupos de índios da etnia Warao mendigando nos semáforos de Boa
Vista era frequente. Destaque-se que essa etnia é de origem caribenha não habita o
território brasileiro. Outra atividade frequentemente realizada pelas mulheres indí-
genas, mesmo as menores de idade, é a prostituição, e suas presenças nas ruas dos
bairros periféricos da capital roraimense era parte da paisagem noturna (MA-
CHADO, 2017).
A cidade de Boa Vista viu seus logradouros públicos tomados por imigrantes de-
sabrigados. A Praça Simón Bolívar, uma das principais da cidade, virou um acampa-
mento a céu aberto. Os índices de violência e prostituição dispararam. O serviço de
saúde colapsou (FRANCHI, 2019).
Os abrigos organizados pelo governo estadual antes da intervenção federal, por
meio do emprego das Forças Armadas, não atenderam à quantidade de desalojados.
Bolsões de violência e pobreza foram se formando nas periferias e os abrigos, sem
qualquer tipo de controle de acesso, viraram refúgio de criminosos. Os imigrantes
passaram a ser vistos como grandes causadores da queda da qualidade de vida local.
A situação de desequilíbrio socioeconômico precisava ser contida (FRANCHI,
2019).
A insegurança por que passa a população venezuelana é a manifestação da crise
instalada naquele país. A dignidade humana foi afetada pela falta de condições em
adquirir o mínimo para a sua subsistência. O instinto de sobrevivência acirrou anta-
gonismos na briga por suprimentos. A incapacidade governamental criou um ambi-
ente de disputa territorial que instigou a formação de grupos armados que buscam
garantir a sua defesa, impondo a lei do mais forte e subjugando os mais vulneráveis.
Devido a essas peculiaridades, houve a federalização da resposta humanitária bra-
sileira, materializada pela Operação Acolhida.
O Decreto Presidencial nº 9.285, de 15 de fevereiro de 2018, foi o reconhecimento
do Governo Federal à crise do país vizinho (BRASIL, 2018). Foi criado, por meio do

272
A operação acolhida e a segurança humana dos imigrantes venezuelanos
Decreto Presidencial nº 9.286, de mesma data, um Comitê Federal de Assistência
Emergencial para acolher as pessoas vulneráveis decorrentes do fluxo migratório,
contando com representantes de diversos órgãos governamentais e ministérios, em
um esforço que alinhou as esferas da administração federal, estadual e municipal
(BRASIL, 2018).
As Diretrizes Ministeriais nº 03 e 04 são resultados dos decretos supracitados e
estabelecem os parâmetros para o estabelecimento das Operações Acolhida e Con-
trole.
A Operação Acolhida é uma ajuda humanitária no Estado de Roraima. Destina-
se a aliviar o sofrimento humano, mitigar ameaças à vida ou riscos às pessoas, e em-
prega meios militares em complemento às iniciativas dos governos e das organiza-
ções não-governamentais (BRASIL, 2014). Merece ser destacado que utilizar forças
militares em operações humanitárias é uma característica dos exércitos pós-moder-
nos (MOSKOS, WILLIAMS e SEGAL, 2000).
Nesse contexto,
A natureza multidimensional do tema migratório envolve questões de documenta-
ção, saúde, proteção social, acesso ao trabalho e à qualificação profissional, educação,
segurança pública, dentre outros, exigindo o envolvimento e articulação de vários se-
tores governamentais, agências das Nações Unidas, sociedade civil e iniciativa pri-
vada. Além da necessidade de integração horizontal, entre distintas áreas temáticas,
há também necessidade de articulação vertical, entre unidades federativas (BRASIL,
2021, p. 5).
A estrutura montada está em funcionamento desde junho de 2018 e está confor-
mada de acordo com a Figura 1.

273
Túlio Pires Barboza
Figura 1: Esboço das estruturas montadas para ordenar o
fluxo migratório venezuelano

Fonte: OLIVEIRA (2018)

A Operação Acolhida está estruturada em três eixos de atuação:

Quadro 1 – Eixos de atuação da Operação Acolhida

Fonte: COMITÊ FEDERAL DE ASSISTÊNCIA EMERGENCIAL/ CFAE (2021b)

O ordenamento de fronteira pode ser entendido como a organização do fluxo mi-


gratório venezuelano, desde a chegada do imigrante à fronteira em Pacaraima. O

274
A operação acolhida e a segurança humana dos imigrantes venezuelanos
plano para ordenamento da fronteira brasileira previu a montagem de estruturas
para assegurar a recepção, identificação, fiscalização sanitária, regularização mi-
gratória e triagem dos imigrantes a partir da entrada no país (COMITÊ FEDERAL
DE ASSISTÊNCIA EMERGENCIAL/ CFAE, 2018).
O segundo pilar chama-se abrigamento, e engloba as tarefas de ofertar aloja-
mento, alimentação e apoio médico dignos aos venezuelanos desassistidos. Essa ta-
refa reflete em proporcionar segurança ao indivíduo, em vários aspectos, reduzindo
a sua vulnerabilidade e as chances de que essas pessoas se tornem fatores de desequi-
líbrio para a comunidade local (COMITÊ FEDERAL DE ASSISTÊNCIA EMER-
GENCIAL/ CFAE, 2018).
O terceiro pilar é a interiorização, que é uma estratégia para diminuir a pressão
sobre os serviços públicos do estado de Roraima, provocada pelo aumento exponen-
cial do fluxo migratório resultante da crise humanitária na Venezuela, e para promo-
ver a inclusão socioeconômica imigrantes venezuelanos na sociedade brasileira
(BRASIL, 2022).
De acordo com o Guia de Deslocamento Voluntário de Migrantes e Refugiados
(2021), a Estratégia de Interiorização consiste
no deslocamento voluntário, seguro, ordenado de refugiados e migrantes oriundos
da Venezuela, em situação de vulnerabilidade, localizados nos estados do Amazonas
e Roraima para outras cidades do Brasil. Seu objetivo é permitir que as pessoas bene-
ficiadas tenham melhores opções de inserção no mercado de trabalho, acesso a ser-
viços públicos e inclusão em redes de acolhimento nos estados e municípios de des-
tino, ampliando assim suas possibilidades de integração social, econômica e cultural.
Ao mesmo tempo, o deslocamento voluntário de parte da população refugiada e mi-
grante de ambos os Estados permitem reduzir a pressão sobre os serviços públicos
atualmente existente em Roraima, principalmente (p. 10).
Sendo assim, a Operação Acolhida consagra o valor humanitário do povo brasi-
leiro e evidencia uma sinergia entre os organismos envolvidos, proporcionando
atendimento e dignidade aos imigrantes e refugiados venezuelanos que chegam em
estado de vulnerabilidade. Ademais, ordena e controla o fluxo de pessoas no estado
de Roraima para evitar o colapso dos serviços públicos e o agravamento da crise hu-
manitária na região.

275
Túlio Pires Barboza
2. A EVOLUÇÃO DOS ESTUDOS DE SEGURANÇA E A SEGURANÇA
HUMANA
O Estudo de Segurança Internacional (ESI) foi fundado durante a Guerra Fria e
permaneceu intimamente ligado às capacidades militares dos países. Isso quer dizer
que, quando se falava em “segurança nacional” nos ESI, esse conceito era estrita-
mente relacionado à segurança militar. Todavia, já se falava da necessidade de incor-
porar outros elementos que impactavam no “uso, ameaça e controle da força”, e por
consequência, na segurança militar. Dessa forma, aspectos como economia, estabili-
dade do governo, fornecimento de energia, ciência e tecnologia, alimentos e recursos
naturais eram levados em conta não por sua importância per si, mas por sua relação
com a segurança nacional (BUZAN e HANSEN, 2009).
Ao longo da década de 1980, começou-se a dar importância para as necessidades
humanas básicas, e os desafios à segurança militar começaram a ser incorporados ao
ESI, enquanto acadêmicos lutavam pela incorporação de outros aspectos. Fruto dessa
ampliação do entendimento de segurança, houve a inclusão de aspectos societais,
econômicos, ambientais, sanitários, de desenvolvimento e gênero (BUZAN e HAN-
SEN, 2009).
Em vez de esforços nucleares e de controle de armas, as estratégias de segurança
buscaram novas ferramentas para evitar a guerra. Simultaneamente, os direitos hu-
manos e a intervenção humanitária foram aceitos como parte das necessidades de
segurança (TADJBAKHSH e CHENOY, 2007)
Essa ampliação de conceito transformou a lógica da segurança. Esta deixou de ser
centrada na defesa territorial, interesses nacionais e detenção nuclear e passou a in-
cluir “preocupações universais”, a prevenção de conflitos e, também, uma crucial
cooperação global no esforço de erradicação da pobreza e subdesenvolvimento (BU-
ZAN e HANSEN, 2009).
A preocupação em como as pessoas vivem e interagem numa sociedade, quão li-
vres elas exercem as suas escolhas, bem como quanto acesso ao livre mercado e opor-
tunidades sociais possuem caracterizam a transição do foco nos estados-nação para
o foco nas pessoas. Inclui-se, também, o estudo se as pessoas estão vivendo em paz
ou em guerra. Em consequência, diversas ameaças e setores foram “securitizados”,
tais como alimentação, saúde, meio ambiente, crescimento populacional,

276
A operação acolhida e a segurança humana dos imigrantes venezuelanos
desigualdade social, tráfico de drogas, terrorismo e imigração (BUZAN e HANSEN,
2009), esse último diretamente relacionado com o presente trabalho.
Nasce aí o conceito de segurança humana, que se dedica à visão de que os seres
humanos deveriam ser os objetos de referência primordiais da segurança e que, por-
tanto, os ESI deveriam incluir questões como pobreza, subdesenvolvimento, fome e
outros ataques à integridade e ao potencial humano. Esse conceito busca integrar as
agendas dos ESI e dos Estudos de Desenvolvimento (BUZAN e HANSEN, 2009).
O Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) de 1994 ressalta que devem
sempre existir dois componentes: as pessoas devem ser livres do medo (freedom from
fear) causado pelas ameaças que afetam os seus direitos e a sua vida, bem como de
crimes e guerras e outros fatores causadores de violência física. O outro componente
concerne à liberdade de necessidades (freedom from want), de acesso à saúde, de
acesso econômico e ao ambiente estável.
Baseado nessa abordagem, o relatório da UNDP define sete aspectos basilares
para tratar a questão: a segurança econômica, a segurança alimentar, a segurança sa-
nitária, a segurança ambiental, a segurança pessoal, a segurança comunitária e a se-
gurança política.
A segurança econômica tem como requisito “uma renda básica assegurada, ge-
ralmente fruto de trabalho produtivo e remuneratório, ou em último caso de uma
rede pública de financiamento segura” (tradução do autor). As causas dessa insegu-
rança são identificadas na existência de uma pobreza persistente, do desemprego, na
ausência de acesso a crédito e a outras oportunidades econômicas (UNITED NATI-
ONS, 2016).
Mas o desemprego é a pior face dessa insegurança, acompanhado pelo subempre-
gado. A escassez de renda dá baixas condições de sobrevivência, incapacidade apoiar
a família ou a comunidade. Como consequência, os não empregados acabam acei-
tando qualquer tipo de trabalho, por mais improdutivo ou mal pago que possa ser. A
outra opção que sobra é o trabalho por conta própria, mas essa via se mostra, na mai-
oria dos casos, incapaz face às despesas (UNDP, 1994).
“Segurança alimentar significa que todas as pessoas, em todas as horas, têm acesso
físico e econômico à alimentação básica” (UNDP, 1994). Não basta haver comida
disponível, as pessoas devem ter como acessá-la, ter direito a ela, seja

277
Túlio Pires Barboza
economicamente, por meio de medidas governamentais de distribuição ou produ-
zindo-a por si mesmas.
A disponibilidade de alimentos é, portanto, uma condição necessária de segu-
rança - mas não suficiente. A prova está nas mortes por fome mesmo quando há co-
mida suficiente disponível.
Apesar de várias iniciativas existentes (FAO, 2022), o acesso aos alimentos tem
relação com o acesso a ativos, trabalho e renda garantida. Dessa forma, a segurança
econômica deve ser tratada para que as iniciativas relativas à segurança alimentar
possam ser mais eficientes (UNITED NATIONS, 2016).
Em relação à segurança sanitária, ela é obtida por meio da prevenção a epidemias,
contenção da desnutrição, implementação de boas condições de saneamento básico
e provisão do acesso ao tratamento de saúde (UNITED NATIONS, 2016). O RDH
da UNDP de 1994 afirma que, tanto em países ricos quanto nos pobres ou em desen-
volvimento, esse tipo de insegurança afetas as populações mais pobres e vulneráveis.
Tal fato é bastante observado em populações de migrantes que saem em busca de
melhores padrões de vida.
A segurança ambiental presume que as pessoas devem viver em um ambiente fi-
sicamente saudável, em que qualquer dano causado ao meio em que se vive retornará
às pessoas (UNDP, 1994). Enchentes, secas, ciclones e terremotos vêm alterando a
dinâmica das pessoas, que em muitos casos migram para proteger-se desses fenôme-
nos. Ademais, o crescimento populacional e a urbanização acelerada e desordenada
também afetam os ecossistemas locais, gerando grandes impactos ambientais que
causam insegurança aos habitantes locais (UNDP, 1994).
No que concerne à segurança pessoal, o RDH da UNDP diz que “talvez não haja
outro aspecto tão vital para as pessoas do que a sua segurança contra violência física”.
O relatório elenca algumas formas de ameaças causadoras de violência às pessoas,
tais como a guerra e a tortura física por parte dos estados; a tensão étnica por parte
de grupos de pessoas; os crimes e a violência nas ruas por parte de indivíduos ou
gangues; o estupro e a violência doméstica dirigidas contra as mulheres; o abuso in-
fantil baseado na vulnerabilidade e dependência das crianças; e as ameaças a si
mesmo, como o suicídio, ou ouso de drogas.
Passando para a segurança comunitária, o RDH de 1994 afirma que, para muitas

278
A operação acolhida e a segurança humana dos imigrantes venezuelanos
pessoas, a segurança advém do pertencimento a um grupo, a uma família, a uma or-
ganização, a um grupo étnico ou racial, que fornece a elas identidade cultural e asse-
gura-lhes valores. Esse sistema familiar estendido provê proteção aos mais fracos e
vulneráveis, justiça de acordo com as leis grupais e uma organização própria ade-
quada às características culturais. No entanto, as comunidades tradicionais também
podem perpetuar práticas opressivas: empregar mão-de-obra escrava e tratar as mu-
lheres de forma degradante (UNDP, 1994)
Definida pelo UNDP como um dos principais aspectos da segurança humana
(1994), a segurança política garante que as pessoas vivam em uma sociedade que
prima por seus direitos humanos. Além da violação dos direitos humanos, a repres-
são política, a ausência do império da lei e de justiça são outras fontes causadoras da
insegurança política (United Nations, 2016).
Percebe-se que há relação entre os sete elementos da segurança humana. Con-
forme o próprio RDH constata, “uma ameaça a um elemento de segurança humana
é provável que viaje como um tufão furioso para todas as formas de segurança hu-
mana” (UNDP, 1994, p. 33).
Desta forma, a segurança vai além da garantia da segurança física, tradicional-
mente conhecida, bem como à garantia de uma segurança social às pessoas, com vis-
tas a identificar ameaças, evitá-las e mitigar os seus efeitos sempre que possível (RO-
CHA, 2017).

3. A SEGURANÇA HUMANA E A OPERAÇÃO ACOLHIDA


Como apresentado, anteriormente, a segurança humana oferece uma nova abor-
dagem sobre como o mundo irá enfrentar os desafios do século XXI. O conceito cen-
tra no bem-estar e desenvolvimento das pessoas e apresenta a perspectiva de que uma
vida estável, livre de medos e completa em suas necessidades básicas contribui para
a segurança mundial.
Nesse contexto, há sete aspectos considerados para avaliar a segurança humana.
São eles: econômico, alimentar, de saúde, ambiental, pessoal, comunitário e político
(UNDP, 1994). Na sequência, será apresentada uma definição sucinta de cada tipo
de segurança e abordado como a Operação Acolhida se relaciona com cada um dos
aspectos apregoados pela Organização das Nações Unidas.
279
Quadro 2 – Definições dos sete aspectos, segundo o PNUD

Aspecto da segurança humana Definições, segundo as Nações Unidas

Tem como requisito “uma renda básica assegurada – geralmente fruto de trabalho pro-
dutivo e remuneratório, ou em último caso de uma rede pública de financiamento se-
Segurança econômica gura” (tradução do autor). As causas dessa insegurança são identificadas na existência
de uma pobreza persistente, do desemprego, na ausência de acesso a crédito e a outras
oportunidades econômicas
Segurança alimentar significa que todas as pessoas, em todas as horas, têm acesso físico
e econômico à alimentação básica”. Não basta haver comida disponível, as pessoas de-
Segurança alimentar
vem ter como acessá-la, ter direito a ela, seja economicamente, por meio de medidas
governamentais de distribuição ou produzindo-a por si mesmas.
É obtida por meio da prevenção a epidemias, contenção da desnutrição, implementação
Segurança sanitária
de boas condições de saneamento básico e provisão do acesso ao tratamento de saúde.
A segurança ambiental presume que as pessoas devem viver em um ambiente fisica-
mente saudável, em que qualquer dano causado ao meio em que se vive retornará às
Segurança ambiental
pessoas. Por isso, atitudes que contribuam para a degradação ambiental, para a dilapi-
dação das fontes naturais e que concorram para a ocorrência de desastres naturais

280
A operação acolhida e a segurança humana dos imigrantes venezuelanos
devem ser prevenidos e corrigidos.
Quanto à segurança pessoal, o RDH da UNDP diz que “talvez não haja outro aspecto
tão vital para as pessoas do que a sua segurança contra violência física”. Dentre as di-
Segurança pessoal
versas formas de violência, destaca-se a do Estado contra as pessoas, a de grupos crimi-
nosos contra a população, a de razões étnicas e aquela contra as mulheres.
Em se tratando de comunidade, o relatório afirma que para muitas pessoas a segurança
Segurança comunitária advém do pertencimento a um grupo, a uma família, a uma organização, a um grupo
étnico ou racial, que fornece a elas identidade cultural e assegura-lhes valores.
Definida pelo UNDP como um dos principais aspectos da segurança humana, a segu-
rança política garante que as pessoas vivam em uma sociedade que prima por seus di-
Segurança política
reitos humanos. Além da violação dos direitos humanos, a repressão política, a ausência
do império da lei e de justiça são outras fontes causadoras da insegurança política.

Fonte – UNDP (1994) elaborado pelo autor

Uma vez abordadas as definições dos aspectos da segurança humana preconizados pelas Nações Unidas, a tabela 2 apresenta
estratégias para se aumentar a proteção em cada um destes aspectos. Tais estratégias servirão como indicadores, auxiliando na cate-
gorização das ações da Operação Acolhida.

281
Quadro 3 – Estratégias para aumentar a segurança humana

Componentes de segurança humana Estratégias para aumentar a segurança humana


Acesso assegurado à renda básica;
Emprego do setor público e privado, salário, trabalho autônomo;
Segurança econômica
Financiamento da seguridade social; e
Diversificar a agricultura e a economia.
Direito aos alimentos, cultivando-os eles mesmos, tendo a capacidade de com-
Segurança alimentar
prá-lo ou através de um sistema público de distribuição de alimentos.
Acesso aos serviços básicos de saúde;
Acordos de compartilhamento de riscos que agrupam fundos de adesão e pro-
Segurança sanitária movem esquemas de seguros baseados na comunidade; e
Sistemas de vigilância interligados para identificar surtos de doenças em todos os
níveis.
Práticas sustentáveis que levem em conta recursos naturais e degradação ambi-
ental (desmatamento, desertificação); e
Segurança ambiental
Mecanismos de alerta e resposta precoces para riscos naturais e/ou desastres fei-
tos pelo homem em todos os níveis.

282
A operação acolhida e a segurança humana dos imigrantes venezuelanos
Estado de direito; e
Segurança pessoal
Proteção explícita e forçada de direitos humanos e liberdades civis.
Proteção explícita e forçada de grupos étnicos e identidade comunitária; e
Segurança comunitária Proteção contra práticas opressivas, tratamento severo para as mulheres, ou dis-
criminação contra grupos étnicos/ indígenas/ refugiados.
Proteção dos direitos humanos; e
Segurança política Proteção contra repressão política ou estatal, tortura, maus tratos, detenção ilegal
e prisão.

Fonte – adaptado do Human Security Unit – OCHA (2009), elaborado pelo autor

Estando a segurança humana definida e os indicadores estabelecidos, foi realizada a análise do relatório semestral (janeiro a junho
de 2021) da Operação Acolhida divulgado pelo Comitê Federal de Assistência Regional (BRASIL, 2021). No relatório são publicadas
as ações desenvolvidas pelos órgãos no escopo da operação. O objetivo do relatório é dar maior transparência e publicidade a todo
o empenho feito pelo Governo Federal na missão de receber os imigrantes.

283
Quadro 4 – Ações realizadas no 1º semestre de 2021

Aspecto da segurança humana Ações realizadas no 1º semestre de 2021


Capacitação laboral de imigrantes;
Busca de vagas de emprego;
Validação de diploma acadêmico;
Emprego para venezuelanos na área do magistério;
Apoio na produção e vendas de artesanato produzido pelas refugiadas e migrantes
indígenas artesãs;
Espaço marcenaria no Abrigo Nova Canaã dedicado para dar aulas e cursos para todos
Segurança econômica os abrigos;
“Caminhando Juntos”: iniciativa para permitir o ingresso no mercado de trabalho bra-
sileiro;
Realização de atividade socioeconômica com produção de máscaras de prevenção Co-
vid-19 no abrigo Tancredo Neves;
Contratação em processos apoiados por organizações parceiras do ACNUR;
Validação das carteiras de motoristas (categorias C e D) dos profissionais do transporte
de passageiros e de carga. No total, 40 pessoas foram beneficiadas com a atividade;

284
A operação acolhida e a segurança humana dos imigrantes venezuelanos
Interiorização por meio da modalidade Vagas de Emprego Sinalizada (VES), em que há
oferta na cidade de destino.
Projeto de Alimentação Saudável para Crianças de 0 a 24 meses;
Segurança alimentar Suplementação alimentar para crianças;
Suplementação alimentar para gestantes e lactantes;
Vacinação segundo o Plano Nacional de Vacinação e específica contra a Covid-19;
Vacinação da população idosa dentro dos abrigos;
Atendimentos médicos e equipe psicossocial no abrigo Jonokoida;
Doação de itens para prevenção ao COVID19 para as pessoas que estão sendo interio-
rizadas, como kits (mochila) cobertores, roupas de frio e kits de cozinha;
Atendimento e desenvolvimento de atividades de Saúde Mental e Atenção Psicossocial;
Segurança sanitária Atendimentos odontológicos;
Fornecimento de material de proteção para a saúde própria;
Produção de vídeo em Warao sobre os cuidados coletivos de prevenção à Covid-19 para
atender indígenas dessa etnia;
Atendimento em saúde mental e psicossocial a crianças e adolescentes;
Apoio de pedagogos, socioeducadores psicólogos e assistentes sociais para atendimento
de crianças desacompanhadas em abrigos;
285
Atendimento em saúde básica nos abrigos indígenas;
Contratação de nutricionistas, técnicos de enfermagem e monitores de saúde para atu-
arem na atenção básica diretamente em 11 Unidades Básicas de Saúde (UBS) em Boa
Vista e 1 em Pacaraima;
Avaliações nutricionais para crianças;
Suplementação alimentar para crianças;
Suplementação alimentar para gestantes e lactantes;
Espaço Agroecológico: organização e conscientização ambiental;
Segurança ambiental Em parceria com a SESAI (Secretaria de Saúde indígena) foi elaborado um plano de
gestão de resíduos produzidos nesses locais;
Disponibilidade de vagas para cursos;
Doação de computadores aos abrigos para a educação;
Facilitação do acesso de crianças ao sistema escolar;
Curso online EaD;
Segurança pessoal
Orientação para acesso aos programas governamentais;
Aulas de português do SENAC;
Projeto Crescer: oferta de cursos profissionalizantes, refeições e uma bolsa de R$ 180,00;
Atendimentos individuais e grupais sobre os pré-requisitos para a inserção no
286
A operação acolhida e a segurança humana dos imigrantes venezuelanos
Programa Social Bolsa Família;
Confecção de currículos pela AVSI Brasil;
Realização de atividade socioeconômica com produção de máscaras de prevenção Co-
vid-19 no abrigo Tancredo Neves;
Ampliação da capacidade de abrigos;
Capacitação para aprender temas úteis ao processo de interiorização, como Consolida-
ção das Leis do Trabalho, Planejamento Financeiro, Saúde, Educação e o Apoio à Inte-
riorização;
Venezuelanos motoristas de caminhão receberam a CNH brasileira;
Workshop sobre gestão de finanças;
Projeto “Passaporte para a Educação”: objetivo de informar às famílias de refugiados e
migrantes sobre seus direitos e acesso à educação no Brasil;
Ação de fiscalização de exploração laboral nos municípios de Amaraji e Cantá, onde,
no segundo, foram constatadas irregularidades trabalhistas de migrantes;
Reativação de abrigos para acolher a população indígena;
Interiorização de mulheres para Vagas de Emprego Sinalizadas (VES);
Segurança comunitária
Aprimoramento do processo de refúgio de indígenas;
Conscientização sobre gravidez e educação familiar;

287
Capacitação laboral de mulheres e comunidade LGBTQIA+;
Mobilização para a inclusão de pessoas LGBTQIA+ no mercado de trabalho
Curso de Liderança para indígenas Aidamos;
Primeiro Encontro de Mulheres Refugiadas e Migrantes do Norte para conscientização
de grupos minoritários;
Empoderando Refugiadas: para formar mulheres e inseri-las no mercado formal;
Treinamento sobre Interculturalidade e as especificidades do trabalho com população
indígena;
Desenvolvimento de materiais informativos em línguas indígenas e sessões informati-
vas sobre regularização migratória para esta população;
Produção de vídeo em Warao sobre os cuidados coletivos de prevenção à Covid-19 para
atender indígenas dessa etnia;
Identificação e suporte de serviços especializados para 2.077 crianças e adolescentes in-
documentados, desacompanhados e separados;
Estabelecimento de rede de proteção que beneficiou 714 meninas e mulheres contra
violência baseada no gênero;
Emissão de documentos para regularizar o fluxo migratório;
Segurança política
Orientação para acesso aos programas governamentais;

288
A operação acolhida e a segurança humana dos imigrantes venezuelanos
Treinamento sobre Interculturalidade e as especificidades do trabalho com população
indígena;
Assistência financeira a interiorizados;
Acompanhamento da OIM à atividade do Grupo móvel de fiscalização (Ministério da
Economia), prestando assistência às migrantes vítimas de exploração no estado de Ro-
raima;

Fonte: (COMITÊ FEDERAL DE ASSISTÊNCIA EMERGENCIAL/ CFAE, 2021a), elaborado pelo autor

289
Túlio Pires Barboza
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A crise na Venezuela se apresentou como um grande desafio ao Brasil. Ela trouxe
uma situação inédita inserida em uma região de valor estratégico na fronteira norte.
A resposta da Operação Acolhida foi a medida necessária para fazer frente à escalada
da crise observada à época.
A segurança humana vai além do conceito de segurança física no sentido tradici-
onal, uma vez que abrange a perspectiva de que a vida das pessoas deve ser garantida
através de “segurança social” contra distúrbios repentinos (TADJBAKHSH, 2005).
Esse entendimento se encaixa no contexto da operação, uma vez que, apesar de situ-
ada na linha de fronteira em uma importante região para a defesa e manutenção da
soberania, o atendimento ao imigrante não foi negligenciado, na tentativa de mini-
mizar o seu sofrimento e sua vulnerabilidade.
Dessa forma, toda a dinâmica da Operação Acolhida mostra evidências de que
muito esforço foi envidado no apoio aos venezuelanos. O caráter multidimensional,
com a presença de muitos atores nacionais e internacionais, materializa a integração
em prol do sucesso da operação.
Verifica-se, também, que, considerando os sete aspectos que compõem a segu-
rança humana, o amplo espectro da Acolhida consegue produzir iniciativas em todos
eles, produzindo melhorias nas condições dos imigrantes.
No que tange à segurança econômica, muito tem sido feito na área da capacitação
profissional dos imigrantes. Tem-se buscado, também, validar a formação profissio-
nal segundo os parâmetros brasileiros de forma a aproveitar a sua mão-de-obra es-
pecializada no país. A relação entre empresas que oferecem vagas de emprego e os
órgãos da Acolhida é uma excelente iniciativa para que haja uma interiorização de
sucesso, na qual o imigrante venezuelano muda de região com uma perspectiva de
estabelecer-se economicamente no seu destino.
Quanto à segurança alimentar, pouco tem sido feito. Iniciativas pontuais ganha-
ram destaque, como projetos de alimentação de bebês ou de mulheres gestantes ou
lactantes. Não foram identificadas, no período, iniciativas em que se estabeleçam o
cultivo de alimentos para o consumo comunitário.
No campo da segurança sanitária, é inegável que a pandemia do Covid-19 afetou
o andamento das atividades. A pandemia tornou-se uma preocupação a mais a ser
290
A operação acolhida e a segurança humana dos imigrantes venezuelanos
gerenciada. Entretanto, muitas iniciativas foram desencadeadas. O destaque vai para
o uso de equipes volante de atendimento nos abrigos, evitando que o abrigado se
dirija à rede de saúde local, sobrecarregando-a. Ademais, a constituição de equipes
interdisciplinares de assistentes sociais, psicólogos e pedagogos é válida para prover
atendimento específico aos necessitados.
Na segurança ambiental, poucas iniciativas foram identificadas. Há que se verifi-
car o que mais pode ser feito para ampliá-las nesse importante campo de atuação.
Quanto à segurança pessoal, há o entendimento de que tudo que garanta que o
imigrante possa exercer um direito básico relaciona-se com esse aspecto. Dessa
forma, iniciativas como capacitação laboral, que facilita o seu ingresso no mercado
de trabalho; cursos teóricos; campanhas de conscientização; campanhas informati-
vas; ingressos em programas governamentais ou disponibilidade de documentações
diversas estão enquadradas nesse campo. Dessa forma, pode-se dizer que há diversas
ações no aspecto da redução da insegurança humana e que, de maneira geral, estas
fortalecem o reconhecimento dos imigrantes como pertencentes à sociedade brasi-
leira.
Na segurança comunitária, a exemplo da segurança pessoal, há muitas iniciativas
de proteção dos grupos minoritários. Tais iniciativas são importantes para evitar que
estes não se tornem um subgrupo totalmente excluído dentro um grupo que já sofre
preconceito. Nesse sentido, as iniciativas são válidas e devem ser ampliadas para que
não só as minorias tenham acesso aos seus direitos, como para que a sociedade apoie
a sua inclusão.
No quesito segurança política, há um ponto interessante que merece ser abor-
dado. Por definição, ela trata do abuso do estado contra as pessoas. No caso da Aco-
lhida, esta é uma iniciativa do Governo Federal que se intitulou responsável por aco-
lher os venezuelanos e mitigar a sua situação de vulnerabilidade. Dessa forma, acaba
se tornando, de certa forma, inconcebível que, a despeito de toda a estrutura estatal
mobilizada na operação, o Brasil protagonize casos de agressão política aos venezu-
elanos. À parte dessa consideração, há importantes iniciativas que contribuem para
que os imigrantes sejam vistos pelo governo, ampliando os seus direitos e garantindo
benefícios que são importantes para que vençam as barreiras do progresso. A emis-
são de documentos brasileiros é uma medida muito eficaz para que os venezuelanos

291
Gabriela Brito Moreira ·Lucas Fina · Ana Luísa Prado · Cesar Augusto Silva Da Silva
sejam tratados igualmente aos nacionais brasileiros, com quase todos os direitos ga-
rantidos. O acesso aos benefícios governamentais também contribui para que os imi-
grantes entrem no banco de dados do governo, recebam apoio e reduzam a sua situ-
ação de vulnerabilidade.
Por fim, a Operação Acolhida é uma grande ação que merece ser estudada com
vistas a que se colham o máximo de ensinamentos. Como não há, no curto prazo,
uma previsão de resolução na crise do país vizinho, é importante que ela seja cons-
tantemente aperfeiçoada, de forma que se mantenha dando a resposta que se destina
cada vez melhor e mais eficiente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AFFAIRS, U. N. D. O. E. A. S. Statistical Yearbook 2017 edition Sixtieth issue. New
York: [s.n.], 2017.
BRASIL. Nota de Coordenação Doutrinária Nr 01/2014. Operações de Ajuda Hu-
manitária, Brasília, DF, 20 mar 2014.
BRASIL. Nota de Coordenação Doutrinária Nr 01/2014 - C Dout Ex/ EME. Opera-
ções de Ajuda Humanitária, Brasília/ DF, 10 abril 2014.
BRASIL. Decreto nº 9.285, de 15 de fevereiro de 2018. Reconhece a situação de vul-
nerabilidade decorrente de fluxo migratório provocado por crise humanitária
na República Bolivariana da Venezuela, Brasília, DF, fev 2018a.
BRASIL. Decreto nº 9.286, de 15 de fevereiro de 2018. Define a composição, as com-
petências e as normas de funcionamento do Comitê Federal de Assistência
Emergencial para acolhimento a pessoas em situação de vulnerabilidade decor-
rente de fluxo migratório provocado por crise humanitária., Brasília, DF, fev
2018b.
BRASIL. Guia do Deslocamento voluntário de refugiados e migrantes. Brasília/ DF:
Ministério da Cidadania/ OIM, 2021a.
BRASIL. Sobre a Operação Acolhida. gov.br, 2022. Disponível em:
<https://www.gov.br/casacivil/pt-br/acolhida/copy_of_sobre-a-operacao-aco-
lhida-2/sobre-a-operacao-acolhida-1>. Acesso em: 2022 setembro 3.

292
A operação acolhida e a segurança humana dos imigrantes venezuelanos
BUZAN, B.; HANSEN, L. The Evolution of Internation Security Studies. Nova Ior-
que: Cambridge University Press, 2009.
CHAVES, A. Prefeito de Pacaraima, RR, estuda decretar situação de calamidade por
conta da imigração venezuelana. G1, 2018. Disponível em:
<https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/prefeito-de-pacaraima-rr-estuda-de-
cretar-situacao-de-calamidade-por-conta-da-imigracao-venezuelana.ghtml>.
Acesso em: 28 jul 2021.
COMITÊ FEDERAL DE ASSISTÊNCIA EMERGENCIAL/ CFAE. Segundo Relató-
rio Trimestral. Governo Federal. Brasília/ DF. 2018.
COMITÊ FEDERAL DE ASSISTÊNCIA EMERGENCIAL/ CFAE. Relatório Semes-
tral: Janeiro a Junho de 2021. Governo Federal. Brasília-DF. 2021a.
COMITÊ FEDERAL DE ASSISTÊNCIA EMERGENCIAL/ CFAE. Relatório Semes-
tral: Julho a Dezembro de 2021. Governo Federal. Brasília-DF. 2021b.
FAO. The state of food security and nutrition in the world 2021. fao.org, 2022. Dis-
ponível em: <https://www.fao.org/3/cb4474en/online/cb4474en.html>. Acesso
em: 5 fevereiro 2022.
FRANCHI, T. Operação Acolhida: A atuação das Forças Armadas Brasileiras no su-
porte aos deslocados venezuelanos. Military Review, Janeiro 2019. Disponível
em: <https://www.armyupress.army.mil/Journals/Edicao-Brasileira/Artigos-Ex-
clusivamente-On-line/Artigos-Exclusivamente-On-line-de-2019/Operacao-
Acolhida/>.
MACHADO, L. Índios venezuelanos se espalham pelo Norte e autoridades suspei-
tam de exploração por brasileiros. G1 Globo, 2017. Disponível em:
<https://g1.globo.com/pa/para/noticia/indios-venezuelanos-se-espalham-pelo-
norte-e-autoridades-suspeitam-de-exploracao-por-brasileiros.ghtml>. Acesso
em: 28 jul 2021.
MOSKOS, C. C.; WILLIAMS, J. A.; SEGAL, D. R. The postmodern military: Armed
forces after the Cold War. [S.l.]: Oxford University Press on Demand, 2000.
OLIVEIRA, G. A. G. D. A utilização do componente militar brasileiro frente à crise
migratória venezuela, Novembro 2018. Disponível em: <https://www.armyupre
ss.army.mil/journals/edicao-brasileira/artigos-exclusivamente-on-line/artigos-
293
Gabriela Brito Moreira ·Lucas Fina · Ana Luísa Prado · Cesar Augusto Silva Da Silva
exclusivamente-on-line-de-2018/a-utilizacao-do-componente-militar-brasi-
leiro-frente-a-crise-migratoria/>.
ROCHA, R. M. D. A. O histórico da segurança humana e o (des) encontro das agen-
das de desenvolvimento e segurança. Revista Carta Internacional, Belo Hori-
zonte, 12, 2017. 104-129.
SILVA, M. I. D. C. et al. A Atuação das Forças Armadas na Resposta à Crise Mi-
gratória Venezuelana no Estado de Roraima, 2020. Disponível em:
<https://www.gov.br/defesa/pt-br/arquivos/ensino_e_pesquisa/defesa_acade-
mia/cadn/artigos/xvi_cadn/aa_atuaaoa_dasa_forasa_armadasa_naa_respos-
taa_aa_crisea_migratoriaa_venezuelana.pdf>. Acesso em: 28 jul 2021.
TADJBAKHSH, S. Human Security: Concepts and Implications with an application
to Post-Intervention Challenges in Afghanistan, 2005. Disponível em:
<http://www.sciencespo.fr/ceri/sites/sciencespo. fr.ceri/files/etude117_118.pdf>.
Acesso em: 17 dez 2021.
TADJBAKHSH, S.; CHENOY, A. M. Human Security Concepts and Implications.
Abingdon: Routledge, 2007.
UNDP. Human Development Report. An Agenda for the Social Summit. Oxford
University Press. Nova Iorque. 1994.
UNITED NATIONS. HUMAN SECURITY HANDBOOK: An integrated approach
for the realization of the Sustainable Development Goals and the priority areas of
the international community and the United Nations system. Nova Iorque: Hu-
man Security Unit, 2016.

__________________________________________________
BARBOZA, Túlio Pires. A operação acolhida e a segurança humana dos
imigrantes venezuelanos. In: OLIVEIRA, Marco Aurélio Machado de;
(Org.). Anais do I Congresso do Migrafron. Uberlândia: Marco Teórico,
2022. pp. 269-294.
__________________________________________________

294
PACTO GLOBAL PELA MIGRAÇÃO
DE 2018 NAS AMÉRICAS

16
Gabriela Brito Moreira
Lucas Fina
Ana Luísa Prado
Cesar Augusto Silva Da Silva

RESUMO:
O presente trabalho avalia a relevância do Pacto Global pela Migração de 2018 na
garantia dos direitos dos migrantes e refugiados no continente americano. O texto,
assinado por 160 países, baseia-se nos valores de soberania do Estado, no comparti-
lhamento de responsabilidades e na não-discriminação dos direitos humanos. Ainda,
traz vinte três objetivos para a cooperação internacional na migração internacional.
A pesquisa visa ressaltar o contexto social da elaboração do Pacto, tratando inclusive
da ausência do Brasil e dos EUA entre os signatários. Ademais, visa compreender o
Princípio da Responsabilidade Compartilhada à luz dos princípios do Direito Inter-
nacional dos Refugiados. Para se alcançar os objetivos propostos, foram utilizados o
método dedutivo e a técnica da pesquisa bibliográfica, com ênfase aos dados divul-
gados pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) e pela
Organização Internacional das Migrações (OIM) em seus estudos mais recentes.

PALAVRAS-CHAVE:

295
Gabriela Brito Moreira ·Lucas Fina · Ana Luísa Prado · Cesar Augusto Silva Da Silva
Migração. Refugiados. Pacto Global pela Migração.

ABSTRACT:
The present work analyzes the relevance of the 2018 Global Compact for Migration to
guarantee the rights of migrants and refugees in the American continent. The text sig-
ned by 160 countries is a non-binding document, based on the values of State sove-
reignty, on the sharing of responsibilities, and non-discrimination of human rights,
and brings twenty-three objectives for international cooperation in international mi-
gration. The research is based on the foundations of International Refugee Law to un-
derstand the Principle of Shared Responsibility and the need to address the issue of
migration in a collaborative way between States. In addition, the social context for its
elaboration will be addressed, also dealing with the absence of Brazil and the United
States among the countries adhering to the Pact. To achieve the proposed objectives,
the deductive method and the technique of bibliographic research must be used, analy-
zing the data released by the United Nations High Commissioner for Refugees
(UNHCR) and the International Organization for Migration (IOM).

KEYWORDS:
Migration. Refugees. Global Compact for Migration.

1. INTRODUÇÃO
O Pacto Global pela Migração Segura e Ordenada de 2018 é documento interna-
cional não vinculativo juridicamente, ratificado inicialmente por 164 países no ano
de 2018. Ele faz parte de um conjunto de medidas que visam encorajar a cooperação
internacional, o desenvolvimento sustentável e o resguardo aos Direitos Humanos.
O presente artigo utilizou-se de método dedutivo, fazendo uso de pesquisa bibli-
ográfica e estudo de legislações e doutrinas relacionadas ao tema para tratar da im-
portância que esse documento tem para o contexto das migrações.
Inicialmente, serão observados os fluxos migratório atuais, no período pós pan-
dêmico, abordando a diminuição nos números de pedido de asilo, refúgio e até
296
Uma teoria da migração: o framework das aspirações-capacidades
mesmo nas migrações, sendo que os três principais países de origem dos pedidos de
asilo são: Venezuela, Afeganistão e Síria.
No que diz respeito ao conteúdo do Pacto, o documento sinaliza vinte e três ob-
jetivos para a cooperação internacional em relação à imigração, dentre eles fortalecer
a própria cooperação internacional e as parcerias globais, garantir a segurança, orde-
nação e migração regular, capacitar os migrantes e as sociedades para a plena inclu-
são e coesão social, eliminar todas as formas de discriminação e promover o discurso
público baseado em evidências para moldar percepções da migração internacional.
Sua elaboração possui como marco inicial a Declaração de Nova York, na qual,
pela primeira vez, líderes de Estado e de Governo se reuniram para discutir em nível
global, durante a Assembleia Geral da ONU, problemas relacionados à migração e
ao refúgio. É o anexo II desta declaração que culmina, após debate e planejamento,
no Pacto Global pela Migração de 2018.
Dentre as inovações trazidas pelo Pacto, destaca-se o princípio da responsabili-
dade compartilhada, que sinaliza a necessidade de uma abordagem cooperativa para
otimizar os benefícios da imigração, além de mitigar riscos a que estão expostos in-
divíduos e comunidades nos países de origem, de trânsito e de destino.
Por último, aborda-se o posicionamento de diversos países quanto à carta num
âmbito geral. Nas Américas, notável a ausência de Brasil e Estados Unidos como sig-
natários. O posicionamento de ambos se deu em razão das crenças dos chefes de es-
tado das nações à época da ratificação do Pacto, vez que entendem que as disposições
do documento ferem a soberania nacional.
No caso do Brasil, o país chegou a assinar o documento, mas, em 2019, o Presi-
dente da República, Jair Bolsonaro, retirou o Brasil do Pacto Global para Migrações.
O ministro das Relações Exteriores do período se posicionou afirmando que a imi-
gração não deve ser tratada como um assunto global, mas conforme a realidade e
soberania de cada país.
Vale ressaltar a contradição entre os pronunciamentos do governo e as recentes
inovações legislativas em âmbito nacional, vez que o Estatuto dos Refugiados de
2017, lei brasileira que trata da matéria de refúgio, apresenta diversas semelhanças
com o regrado pelo Pacto.

297
Gabriela Brito Moreira ·Lucas Fina · Ana Luísa Prado · Cesar Augusto Silva Da Silva
2. FLUXOS MIGRATÓRIOS ATUAIS
Os fluxos migratórios atuais desenvolvem-se pela distribuição desigual dos terri-
tórios conduzida pela economia global estabelecida, e a tendência mais recente de-
monstra sua redução. Os fluxos migratórios permanentes sofreram diminuição de
mais de 30% em 2020, ano da crise pandêmica, totalizando cerca de 3,7 milhões de
pessoas, o nível mais baixo desde 2003.1
O 45º relatório do Sistema Contínuo de Relatórios da OCDE sobre Migração, que
discrimina as categorias de migração, relata recuo no ano de 2020 nas mais diversas
áreas, com destaque para a migração familiar, com tendência de declínio de mais de
35%2. Por sua vez, "a migração laboral temporária também diminuiu drasticamente
em 2020: a quantidade de trabalhadores sazonais no setor turístico caiu, em média,
58%, e as transferências entre empresas, 53%, enquanto o fluxo desses trabalhadores
na agricultura diminuiu apenas 9%", de acordo com o relatório.3 Por sua vez, os pe-
didos de asilo das transmigrações atuais diminuiram em 31%, "a queda mais acen-
tuada desde o fim da crise dos Balcãs no início dos anos 90".
Em síntese, o documento registra um “impacto muito forte’’ da crise pandêmica
nos programas de recolocação e reinstalação de refugiados que, de 2010 para 2019,
permitiram o acesso de mais de 1 milhão de pessoas que precisavam de proteção in-
ternacional e, em razão disso, foram transferidas para um dos 38 países da OCDE.4
Em 2020, "Apenas 34,4 mil refugiados foram reinstalados (...), dois terços a menos
do que em 2019, o número mais baixo já registrado". É esse o tamanho medido do
impacto da pandemia nas migrações.5
Contudo, em que pese o enfraquecimento da fenômeno da migração em razão

1 OCDE. 45º relatório do Sistema Contínuo de Relatórios da OCDE sobre Migração. OCDE
Library: Edição 45º, 2021. Disponível em: <https://www.oecd- ilibrary.org/si-
tes/29f23e9d-en/1/2/2/index.html?itemId=/content/publication/29f23e9d-
en&_csp_=a9da7d4f182770aaa63ad86232529333&itemIGO=oecd&itemContentType=
book> Acesso em: 18 de dezembro de 2021.
2 Idem.
3 Idem.
4 Idem.
5 Idem.
298
Uma teoria da migração: o framework das aspirações-capacidades
das consequências da pandemia de COVID-19, diversos fluxos constantes passam
longe de perder relevância.6 De acordo com o relatório, a Venezuela é o principal país
de origem dos pedidos de asilo, seguido pelo Afeganistão e pela Síria. É o segundo
ano consecutivo que a nação sulamericana encabeça a lista.7
O relatório expõe que os Estados Unidos, que permanecem como o principal des-
tino das migrações, registraram queda de 44% no recebimento de migrantes em com-
paração a 2019, com apenas 576.000 chegadas em 2020. Já na Colômbia, os migrantes
venezuelanos representam 93% do total dos migrantes recebidos, enquanto na Espa-
nha - com uma população estrangeira em torno de 15% do total - marroquinos, ro-
menos, colombianos e venezuelanos representam sua maioria8. Vê-se que dentre os
cinco principais países de destino da OCDE, a França foi quem registrou a queda
menos sensível (-21%), com 230.000 "novos imigrantes", segundo os dados da orga-
nização9.
Segundo as Nações Unidas10, hoje cerca de três milhões de venezuelanos vivem
no exterior. Destes, 2,3 milhões emigraram a partir de 2015, fugindo da grave crise
econômica, política e social que atravessa o país. Deste total, 260 mil venezuelanos
vivem atualmente no Brasil11. Sua plena integração é dificultada pelas barreiras rela-
cionadas ao idioma, pelo preconceito e pelos encargos na validação de documentos
escolares e nas confirmações das capacidades profissionais.
A Agência da ONU para Refugiados, inclusive, estimula o Governo do Brasil a
continuar com a implementação de políticas públicas que respondam às dificuldades
dos refugiados e migrantes venezuelanos com a interiorização. Do total de

6 Idem.
7 Idem.
8 Idem.
9 Idem.
10 Idem.
11 Políticas Públicas do Brasil impulsionam inclusão de refugiados e migrantes da Ve-
nezuela, mas desafios permanecem. UNHCR, ACNUR, por ACNUR/Banco Mundial,
2021. Disponível em: <https://www.acnur.org/portugues/2021/05/17/politicas-publicas-
do-brasil-impulsionam-inclusao-de-refugiados-e-migrantes-da-venezuela-mas-desafios-
permanecem/>. Acesso em: 24 de junho de 2022.
299
Gabriela Brito Moreira ·Lucas Fina · Ana Luísa Prado · Cesar Augusto Silva Da Silva
venezuelanos no país, cerca de 47 mil foram reconhecidos como refugiados pelo go-
verno brasileiro, enquanto outros 145 mil receberam vistos de residência temporá-
ria12.
Se levados em conta a importância socioeconômica do Brasil no continente e a
dimensão do êxodo venezuelano, é notável quão proporcionalmente baixo é o rece-
bimento desses migrantes pelo principal país da região. E isto se dá em razão do po-
sicionamento do atual governo brasileiro frente ao fenômeno da migração, o que será
melhor abordado mais a frente neste trabalho.
Isto posto, vale ressaltar que há também grande movimentação de haitianos e me-
xicanos no continente. Quanto ao êxodo dos haitianos, este se iniciou com o terre-
moto de 2010 que arrasou o país, e se mantém intenso desde então. Esses migrantes
buscam mormente refúgio nos vizinhos Colômbia e Panamá, tendo nos últimos tem-
pos se intensificado a busca dos migrantes haitinanos pelo México e pelos Estados
Unidos.13
Quanto a sempre conturbada situação da migração do México para os Estados
Unidos, esta se agravou recentemente com a ordem do ex-presidente estadunidense
Donand Trump de que os migrantes deveriam aguardar em território mexicano a
resposta aos seus pedidos de asilo. Nesse contexto, frisa-se que dentre os 190.000 mi-
grantes detectados pelas autoridades mexicanas entre janeiros e setembro de 2021,
74.300 foram deportados ao atravessar a fronteira para o norte. Ademais, esse é um
fluxo que ano após ano apenas apresenta expansão: o número de migrantes mexica-
nos buscando o trajeto em 2021 foi cerca de três vezes maior do que no ano de 202014.
Pelo exposto, vale adiantar uma constatação que será melhor trabalhada posteri-
ormente: o princípio da responsabilidade compartilhada é a principal inovação do

12 Idem.
13 O êxodo silencioso dos haitianos na América Latina. Revista El País, 2021. Disponível
em: <https://brasil.elpais.com/internacional/2021-08-10/o-exodo-silencioso-dos-haitia-
nos-na-america-latina.html>. Acesso em: 24 de junho de 2022.
14 México e Estados Unidos concordam em retomar programa de imigração de Trump.
Correio Braziliense, 2021. Disponível em: <https://www.correiobrazili-
ense.com.br/mundo/2021/12/4967699-mexico-e-estados-unidos-concordam-em-retomar-
programa-de-imigracao-de-trump.html>. Acesso em: 24 de junho de 2022.
300
Uma teoria da migração: o framework das aspirações-capacidades
Pacto. Os fluxos destinam-se mais a alguns países do que a outros, e, partindo disso,
o princípio parece ser mais eficaz na solução de problemáticas que as tradicionais
“soluções duradouras”, produtos de contexto ultrapassado.

3. CONTEÚDO DO PACTO
O Pacto Global para Migração Segura, Ordenada e Regular, descendendo da co-
operação multilateral entre os 160 países membros das Nações Unidas, não possui
uma configuração de vínculo jurídico. O objetivo primordial do documento é acres-
centar alguns princípios já interiorizados no Direito Internacional, assim, criando
noções específicas para garantir a seguridade, legalidade e regularidade do processo
de migração internacional. O conteúdo do pacto tem como bases principais de sus-
tentação: a proteção dos Direitos Humanos das pessoas em condição de migrante e
as promoções de auxílio às nações que recebem, acolhem e integram migrantes, ga-
rantindo a preservação da soberania dos países que adentrarem no acordo.
Em seu preâmbulo, é ressaltada a ligação do documento com a Declaração de
Nova Iorque para Refugiados e Migrantes, e a enorme importância de embasamento
do arquivo para a elaboração. Além disso, é evidenciada a diferenciação necessária
entre refugiados e migrantes – já que ambos os termos eram trabalhados e estudados
simultaneamente na Declaração de Nova Iorque. Acrescentado a isso, o documento
destaca que as relações de migrações devem ser vistas pelos Estados não como em-
pecilhos, mas como a configuração de desafios que necessitam ser otimizados con-
juntamente. O grande objetivo do Pacto, como se vê, é encontrar formatos de pro-
moção do empoderamento e reconhecimento da cidadania dos indivíduos migrantes
em seu novo país.
Por todo o documento, são encontradas recomendações que visam garantir o
bem-estar das comunidades migrantes em todas as fases da migração - antes, durante
e depois do processo de migração e da população em larga escala, a cooperação in-
ternacional, a soberania nacional, a “rule of law” (Estado de Direito), o desenvolvi-
mento sustentável (com foco à Agenda 2030), os Direitos Humanos, as perspectivas
de gênero e sobre a infância, e o comprometimento de todos os setores dos governos
nacionais (de dentro dos Estados signatários) e de toda a sociedade civil.
Nesse viés, o compromisso internacional firmado na Conferência
301
Gabriela Brito Moreira ·Lucas Fina · Ana Luísa Prado · Cesar Augusto Silva Da Silva
Intergovernamental de dezembro de 2018 reuniu os seguintes propósitos: o alívio da
pressão sobre os países anfitriões, o aumento da autossuficiência dos refugiados, a
ampliação do acesso a soluções de países terceiros e o auxílio na criação de condições
nos países de origem para um regresso dos cidadãos em segurança e com dignidade.
No documento, a reafirmação da motivação comum de conceder tratamento huma-
nitário aos fluxos migratórios em suas diversas modalidades, compreende não ape-
nas o movimento migratório não documentado, mas também aquele relacionado a
deslocamentos formais. Em suma, o princípio de autonomia dos Estados-membros
permanece com a contribuição de forma voluntária, podendo contar com os meca-
nismos de reforço das capacidades das Nações Unidas, promovendo a cooperação de
forma eficiente e menos desburocratizada.
Quanto à sua formação, cabe destacar que a edição do Pacto Global de migração
foi impulsionada pela mais recente crise dos refugiados, considerada pela ONU a
pior crise humanitária do século. O continente europeu vem se tornando o principal
destino de migrantes e refugiados no mundo. Sua reunião de metas e compromissos
fortalecem o estímulo à migração legal, visando a cooperação internacional para o
enfrentamento das mais diversas problemáticas, como tráfico de pessoas, a entrada
clandestina e a gestão integrada e eficiente das fronteiras. Enfim, o Pacto Global de
Migrações da ONU serve como uma tentativa de mitigação e de resolução dos pro-
blemas relacionados às migrações em massa, que se tornaram uma questão de real
urgência no cenário global atual.

3.1 PRINCÍPIO DA RESPOSABILIDADE COMPARTILHADA


O princípio da responsabilidade compartilhada, que coloca os Estados como su-
jeitos ativos no processo de acolhida e traduz a ideia de uma obrigação legal de agir
para proteção dos indivíduos15, já, há muito, figura como princípio geral de ‘soft

15 DOWD, REBECCA; MCADAM, Jane. Internacional Cooperation and Responsibility-


sharing to Protect Refugees; What, Why and How? In: International and Comparative
Law Quartely, 66(4). 2017. Pág 8. Disponível em: https://doi.org/10.1017/S0020589317
000343 Acessado em: 21 de dezembro de 2021.
302
Uma teoria da migração: o framework das aspirações-capacidades
law’16, prestando papel orientativo relevante. Todavia, como bem explicam Dowd e
Mc Adam17, este não se encontrava previsto em nenhum tratado internacional, não
impondo uma obrigação legal entre os Estados.
Nessa esteira, o Pacto Global da ONU de 2018, ao trazer previsão expressa do
princípio, erige este a novo patamar, intentando elaborar um mecanismo que pro-
mova uma partilha mais justa e igualitária entre os Estados, buscando uma aborda-
gem concreta e suprimindo essa lacuna presente nos instrumentos internacionais
anteriores18.
Vale ressaltar, como bem pontua Fernanda Carvalho, que “o Pacto Global não
tem como objetivo a criação de novas normas legais ou estabelecimento de grandes
diferenças no regime internacional de proteção de refugiados”19. Seu próprio teor
deixa claro que “o regime legal de refugiados é fundado na convenção de 1951 rela-
tiva ao Estatuto dos Refugiados e no seu Protocolo Adicional de 1967, bem como nos
demais instrumentos regionais de proteção”20.
A necessidade de elevar um princípio a novo patamar e, ao mesmo tempo, ter-se
o cuidado de preservar o status basilar das cartas já distantes historicamente, advém
de contexto político intrincado. Ao mesmo tempo em que novas soluções se mos-
tram inadiáveis, há razões para temer pela perda dos direitos conquistados - como
exemplo, pode-se citar que, enquanto signatários da Convenção de Genebra de 1951,
Brasil e EUA não ratificaram sua concordância com o novo Pacto Global.

16 DOWD, REBECCA; MCADAM, Jane. International Cooperation and Responsibility-


sharing to Protect Refugees: What, Why and How? In: International and Comparative
Law Quarterly, 66(4). 2017. Pág.17-18. Disponível em:
<https://doi.org/10.1017/S0020589317000343> Acessado em: 21 de dezembro de 2021.
17 Idem.
18 CARVALHO, FERNANDA. A responsabilidade compartilhada para proteção inter-
nacional de refugiados no à luz da Declaração de Nova Iorque. 2018. 115 f. Monografia
(Graduação em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade Federal da Bahia, Salvador,
2018. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/25786. Acesso em: 21 de de-
zembro de 2021.
19 Idem.
20 Idem.
303
Gabriela Brito Moreira ·Lucas Fina · Ana Luísa Prado · Cesar Augusto Silva Da Silva
Em que pese a resistência ideológica de certos Estados às novas soluções, é evi-
dente ser ingênuo tentar enfrentar a complexidade dos novos movimentos migrató-
rios com as soluções disponíveis à época da Guerra Fria. A necessidade da coopera-
ção internacional, da solidariedade internacional e da responsabilidade comparti-
lhada no oferecimento para os refugiados e migrantes de condições satisfatórias de
vida nunca foi tão pungente, sendo três os fatores que isto evidenciam:
“(i) o caráter transfronteiriço e global da questão dos refugiados, que afeta a co-
munidade internacional como um todo; (ii) a complexidade, escala e alcance global
dos grandes movimentos de refugiados e migrantes na atualidade21; e (iii) a despro-
porcional distribuição de refugiados (e recursos) entre os países”.22
O princípio em questão é fundamental no combate a estas problemáticas porque
mitiga o agravamento das dificuldades que decorrem dos fatores em epígrafe, através
de comandos de compartilhamento de dimensão física e de dimensão financeira.
O compartilhamento de responsabilidades financeiras consiste no aporte de as-
sistência financeira ou outros tipos de assistência (por exemplo, assistência técnica)
aos países de acolhida de refugiados. Esta pode ser feita por meio de assistência bila-
teral, em que os países doadores fazem a contribuição financeira para o país de aco-
lhida ou por meio da assistência multilateral, através de contribuições dos países do-
adores para organizações internacionais, tais como o ACNUR ou para organizações
não governamentais23.

21 TURK, Volker; GARLICK, Madeline Garlick. From Burdens and Responsabilities to


Opportunities: The Comprehensive Refugge Response Framework and a Global
Compact on Refugees. In: International Journal of Refugee Law, Volume 28, Issue 4.
2016. Pág. 656. Disponível em: https://doi.org/10.1093/ijrl/eew043. Acessado em: 21 de
dezembro de 2021.
22 CARVALHO, FERNANDA. A responsabilidade compartilhada para proteção inter-
nacional de refugiados no à luz da Declaração de Nova Iorque. 2018. 115 f. Monografia
(Graduação em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade Federal da Bahia, Salvador,
2018. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/25786. Acesso em: 21 de de-
zembro de 2021.
23 MILNER, James. When norms are not enough: Understanding the principle and prac-
tive of burden and responsibility sharing of refugees. 2016. Pág. 3 Disponível em: <

304
Uma teoria da migração: o framework das aspirações-capacidades
Em relação à responsabilidade física, esta se caracteriza essencialmente pela ad-
missão e recepção de refugiados em países terceiros, por meio do reassentamento24.
Vale ressaltar ainda que o parágrafo 68 da Declaração de Nova Iorque, carta de
maior diálogo com o recente Pacto, respalda a aplicação do conceito de “responsa-
bilidades comuns, mas diferenciadas”, originariamente aplicado ao Direito Ambien-
tal, ao Direito Internacional dos Refugiados. Em suma, este princípio reconhece que
os Estados possuem diferentes forças e capacidades para proteger refugiados, e que
não é razoável ou realista esperar que os Estados contribuam no mesmo nível e de
maneira igual25, ideal que tão bem se encaixa dentre os comandos de responsabili-
dade compartilhada física e financeira.
Diante do exposto, vê-se que o Pacto Global, ao trazer em expresso o princípio da
responsabilidade compartilhada, se propõe a gerar uma obrigação legal visando a so-
lução de conflitos gerados pelo novo contexto de intenso fluxo de migrações, reite-
rando a necessidade da cooperação internacional, as diferentes possibilidades de
cada Estado no manuseio da questão e galgando uma abordagem concreta que per-
mita a partilha justa e igualitária de obrigações.
Todavia, em que pese a razoabilidade do princípio e a pertinência daquilo que visa
mitigar, sua aplicabilidade tem sido discricionária. Ocorre que uma concepção envi-
esada do instituto do refúgio faz com que se enxergue ‘responsibility sharing26’ como
‘burden sharing27’. No Estado de “Direito” neoliberal, a tolerância volta a ser

https://www.cigionline.org/sites/default/files/documents/Refugee%20Pa-
per%20no2web_3.pdf> Acessado em: 21 de dezembro de 2021.
24 MILNER, James. When norms are not enough: Understanding the principle and prac-
tive of burden and responsibility sharing of refugees. 2016. Pág. 4 Disponível em: <
https://www.cigionline.org/sites/default/files/documents/Refugee%20Pa-
per%20no2web_3.pdf> Acesso em: 21 de dezembro de 2021.
25 DOWD, REBECCA; MCADAM, Jane. International Cooperation and Responsibility-
sharing to Protect Refugees: What, Why and How? In: International and Comparative
Law Quarterly, 66(4). 2017. Pág.23 Disponível em:
<https://doi.org/10.1017/S0020589317000343> Acessado em: 21 de dezembro de 2021.
26 “Compartilhamento de responsabilidade” (CARVALHO, FERNANDA, 2018, p. 59)
27 “Compartilhamento de encargos. A utilização do termo ‘burden sharing’ tem sido

305
Gabriela Brito Moreira ·Lucas Fina · Ana Luísa Prado · Cesar Augusto Silva Da Silva
condescendência28, a equidade e a inclusão mero idealismo, e os custos da justiça
social e da democracia substancial tornam-se despesas indesejáveis. Em razão disso,
na América, nota-se que dois dos Estados que mais recebem migrantes e refugiados,
Brasil e Estados Unidos, não ratificaram o Pacto, mesmo com a garantia de que a
incorporação da responsabilidade compartilhada garantiria a ambos a vedação de
encargos excessivos.

4. POSICIONAMENTO DOS PAÍSES


O Pacto Global da ONU de 2018 é fruto de dezoito meses de negociação, que con-
taram com a participação inicial de todos os 193 Estados da Nações Unidas29. A ONU
começou a trabalhar no acordo não vinculante depois de mais de 21,3 milhões de
pessoas chegarem à Europa apenas no ano de 201530. E isso se justifica: segundo re-
latório do ACNUR, divulgado em 18 de junho de 2021, o número de pessoas deslo-
cadas à força é o maior que se tem registro: 82,4 milhões31.
Apesar de significativo contingente, diversos países continuam a recorrer à dico-
tomia soberania nacional-compromissos internacionais para se eximir de um com-
promisso humanitário. Dentre os 193 Estados que participaram do início das

repudiada, tendo em vista que esta traz apenas uma conotação negativa ao processo de
refúgio” (CARVALHO, FERNANDA, 2018, p. 59). Outra tradução possível, que repudi-
amos melhor contextualizada, é “compartilhamento de fardo”.
28 AURÉLIO, Diogo Pires. Um Fio de Nada. Ensaio sobre a Tolerância. Lisboa: Edições Cos-
mos,1997.
29 Sem EUA, países da ONU assinam pacto global sobre migração. DW, 2018. Disponível
em: https://www.dw.com/pt-br/sem-os-eua-pa%C3%ADses-da-onu-assinam-pacto-glo-
bal-sobre-migra%C3%A7%C3%A3o/a-44671275. Acesso em: 17 de mar. de 2022.
30 Brasil deixa Pacto Global de Migração da ONU. Folha de São Paulo, 2019. Disponível
em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/01/brasil-deixa-pacto-global-de-migra-
cao-da-onu.shtml. Acesso em: 17 de mar. de 2022.
31 UNHCR. The UN Refugee Agency, 2021. Mid-Year Trends 2021. Disponível em:
https://www.unhcr.org/statistics/unhcrstats/618ae4694/mid-year-trends-
2021.html#_ga=2.171849766.785441079.1645897916-713450694.1645897916. Acesso
em: 17 de mar. de 2022.
306
Uma teoria da migração: o framework das aspirações-capacidades
conversações, apenas 164 assinaram o acordo32. O número torna-se ainda mais sig-
nificativo quando considerados os países que, após a aprovação do documento, se
retiraram do processo, como por exemplo Brasil33, Áustria, Austrália, Chile, Repú-
blica Checa, República Dominicana, Hungria, Letônia, Polônia, Eslováquia34 e Itá-
lia35.
Desde o início do processo de elaboração do Pacto, os Estados Unidos assumiram
a postura de principal crítico da carta, tendo se retirado da elaboração do texto ainda
em 2017, com a alegação de que o acordo estava em desacordo com a política migra-
tória do presidente americano à época, Donald Trump36. Em sua declaração oficial,
o governo dos EUA afirmou que “embora os Estados Unidos honrem as contribui-
ções dos muitos imigrantes que ajudaram a construir nossa nação, não podemos
apoiar um ‘pacto’ ou processo que impõem ou têm o potencial de impor diretrizes,
padrões, expectativas ou compromissos internacionais que podem restringir nossa

32 Entenda o que é o Pacto Mundial para Migração. G1, 2018. Disponível em:
https://g1.globo.com/mundo/noticia/2018/12/11/entenda-o-que-e-o-pacto-mundial-para-
migracao.ghtml. Acesso em: 17 de mar. de 2022.
33 Brasil deixa Pacto Global pela Imigração da ONU. Estado de Minas, 2019. Disponível
em: https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2019/01/08/interna_internacio-
nal,1019805/brasil-deixa-pacto-global-pela-imigracao-da-onu.shtml. Acesso em: 15 de
mar. de 2022.
34 Entenda o que é o Pacto Mundial para Migração. G1, 2018. Disponível em:
https://g1.globo.com/mundo/noticia/2018/12/11/entenda-o-que-e-o-pacto-mundial-para-
migracao.ghtml. Acesso em: 17 de mar. de 2022.
35 Pacto Mundial da ONU para a Migração é aprovado formalmente. Veja, 2018. Dispo-
nível em: https://veja.abril.com.br/mundo/pacto-mundial-para-a-migracao-da-onu-e-apro-
vado-formalmente/#:~:text=Pacto%20Mundial%20da%20ONU%20para%20a%20Migra
%C3%A7%C3%A3o%20%C3%A9%20aprovado%20formalmente,-EUA%2C%20It%
C3%A1lia%2C%20Austr%C3%A1lia&text=It%C3%A1lia%2C%20Austr%C3%A1lia%
2C%20Israel%20e%20v%C3%A1rios%20pa%C3%ADses%20da%20Europa%20Cen-
tral%2C,ao%20acordo%20desde%20o%20in%C3%ADcio.. Acesso em: 15 de mar. de
2022.
36 Entenda o que é o Pacto Mundial para Migração. G1, 2018. Disponível em:
https://g1.globo.com/mundo/noticia/2018/12/11/entenda-o-que-e-o-pacto-mundial-para-
migracao.ghtml. Acesso em: 17 de mar. de 2022.
307
Gabriela Brito Moreira ·Lucas Fina · Ana Luísa Prado · Cesar Augusto Silva Da Silva
capacidade de tomar decisões na defesa dos interesses de nossa nação e de cida-
dãos”37
De teor semelhante a declaração do presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, em suas
redes sociais, após a confirmação da revogação da adesão do país ao documento, em
nove de julho de 2019: “O Brasil é soberano para decidir se aceita ou não migrantes.
Quem porventura vier para cá deverá estar sujeito às nossas leis, regras e costumes,
bem como deverá cantar nosso hino e respeitar nossa cultura. Não é qualquer um
que entra em nossa casa, nem será qualquer um que entrará no Brasil via pacto ado-
tado por terceiros. Não ao Pacto Migratório”38.
Por outro lado, foram vários os líderes que reconheceram a importância dos dis-
positivos do Pacto à época de sua aprovação. O embaixador mexicano, Juan José Gó-
mez Camacho, um dos líderes das negociações, cujo país enfrenta questões delicadas
acerca da imigração com os Estados Unidos, descreveu a assinatura do pacto como
um "dia histórico"39. O mesmo entusiasmo foi partilhado pelo presidente da Assem-
bleia Geral da ONU à época, Miroslav Lajcák, que previu que o acordo, apesar de não
ser vinculativo, iria mudar a forma como o mundo olha para a questão da imigra-
ção40. Ele ainda destacou que o documento não dita nem impõe nada aos governos e
respeita totalmente a soberania dos Estados em matéria de imigração, mas representa
um grande passo à frente. "É um momento histórico e o potencial é enorme", afir-
mou41.

37 A resposta dos EUA ao Pacto Global sobre migração. Share America, 2018. Disponível
em: https://share.america.gov/pt-br/a-resposta-dos-eua-ao-pacto-global-sobre-migracao-
shareamerica/. Acesso em: 17 de mar. de 2022.
38 Bolsonaro retira Brasil de Pacto Global para Migração, diz ONU. Rede Brasil Atual,
com edição da Redação Spbancários, 2019. Disponível em: https://spbanca-
rios.com.br/01/2019/bolsonaro-retira-brasil-de-pacto-global-para-migracao-da-onu.
Acesso em: 17 de mar. de 2022.
39 Sem EUA, países da ONU assinam pacto global sobre migração. DW, 2018. Disponível
em: https://www.dw.com/pt-br/sem-os-eua-pa%C3%ADses-da-onu-assinam-pacto-glo-
bal-sobre-migra%C3%A7%C3%A3o/a-44671275. Acesso em: 17 de mar. de 2022.
40 Idem.
41 Idem.
308
Uma teoria da migração: o framework das aspirações-capacidades
Dentre os líderes de Estado, a chanceler alemã, Angela Merkel, foi uma das prin-
cipais entusiastas do Pacto. Ela saudou a adoção dizendo que já era hora de a comu-
nidade internacional chegar a um entendimento mais realista sobre a migração glo-
bal e advertiu que uma abordagem no estilo “cada um por si" não resolverá a questão,
enfatizando que o multilateralismo é o único caminho possível a seguir42. Segundo
ela, a Alemanha necessitará de mão de obra mais qualificada de fora da União Euro-
peia e tem interesse na migração legal43. A polêmica acerca da temática apenas re-
força quão fundamental é a discussão a seu respeito.

4.1. A SAÍDA DO BRASIL DO PACTO


Ainda durante o mandato do governo Temer, o então futuro ministro das relações
exteriores do Brasil, Ernesto Araújo, utilizou suas redes sociais para deixar claro sua
posição quanto ao Pacto: “O governo Bolsonaro se desassociará do Pacto Global de
Migração que está sendo lançado em Marrakech, um instrumento inadequado para
lidar com o problema. A imigração não deve ser tratada como questão global, mas
sim de acordo com a realidade e a soberania de cada país”44.
Concomitante a isso, em sentido contrário ao posicionamento do governo eleito,
a legislação nacional brasileira, com a promulgação da Lei de Migração (Lei Federal
n. 13.445/2017) que revogou o antigo Estatuto do Estrangeiro de 1980, avançou no
sentido de promover “um maior alinhamento entre a política migratória nacional e
a proteção que o direito humano de migrar demanda na atual sociedade globali-
zada”45.

42 Entenda o que é o Pacto Mundial para Migração. G1, 2018. Disponível em:
https://g1.globo.com/mundo/noticia/2018/12/11/entenda-o-que-e-o-pacto-mundial-para-
migracao.ghtml. Acesso em: 17 de mar. de 2022.
43 Idem.
44 Futuro Chanceler diz que Brasil vai deixar Pacto Global de Migração. Agência Brasil,
2018. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2018-12/futuro-
chanceler-diz-que-brasil-vai-deixar-pacto-global-de-migracao. Acesso em 17 de mar. de
2022.
45 XXVIII ENCONTRO NACIONAL DO COMPEDI GOIÂNIA – GO., 2019. O DIREITO

309
Gabriela Brito Moreira ·Lucas Fina · Ana Luísa Prado · Cesar Augusto Silva Da Silva
O avanço é evidente pois, como explicam Andressa de Medeiros Venturini e Lu-
ciane de Freitas Mazzardo, “os princípios e diretrizes da Lei de Migração possuem
como vetor axiológico o princípio da dignidade da pessoa humana, enquanto o an-
tigo Estatuto do Estrangeiro tinha como cerne a Segurança Nacional, estigmatizando
o estrangeiro como ‘ameaça’”46.
É fato que “com a aprovação da Lei Federal 13.445, a postura brasileira também
indicava a necessidade de se (re)discutir certas posturas mundiais”47, e, infelizmente,
optou o país pela continuidade da velha prática de enxergar o migrante sob a égide
da segurança nacional.
Esclarecem Lucia Maria Bógus e Maria Lúcia Alves Fabiano, por meio da análise
dos fluxos migratórios que recebe o Brasil, que “o Pacto só viria a somar ao país,
especialmente por estabelecer uma rede de cooperação destinada a compreender os
motivos do fluxo migratório (v. Objetivo 2 do Pacto), assim como a trocar experiên-
cias acerca de mecanismos a serem utilizados para uma inclusão plena dos migrantes
na sociedade (v. Objetivo 16 do Pacto), além de colaborar para a melhoria da sua vida
no Estado de destino, notadamente em relação a algumas dificuldades enfrentadas
pelos migrantes no Brasil (BÓGUS; FABIANO, 2015, p. 133), como a (falta de) do-
cumentação (v. Objetivo 4 do Pacto) e acesso à informação (v. Objetivos 3 e 21 do

HUMANO DE MIGRAR E AS CONSEQUÊNCIAS DA SAÍDA DO BRASIL DO


PACTO GLOBAL PARA MIGRAÇÃO SEGURA, ORDENADA E REGULAR.
Equipe Editorial Index Law Journal. Goiânia. Anais. Disponível em: http://site.con-
pedi.org.br/publicacoes/no85g2cd/kaz3fap7/p8X51jiRqVm7cJ0y.pdf. Acesso em: 24 de
junho de 2022.
46 VENTURINI, Andressa de Medeiros; MAZZARDO, Luciane de Freitas. Um novo olhar
acerca do direito humano de migrar: uma análise a partir da sanção da Lei 13.445/17.
Seminário Internacional Demandas Sociais e Políticas Públicas na Sociedade Contempo-
rânea. 2018. Disponível em: http://online.unisc.br/acadnet/anais/index.php/sidspp/arti-
cle/view/17721/4595. Acesso em: 03 mar. 2019.
47 XXVIII ENCONTRO NACIONAL DO COMPEDI GOIÂNIA – GO., 2019. O DIREITO
HUMANO DE MIGRAR E AS CONSEQUÊNCIAS DA SAÍDA DO BRASIL DO
PACTO GLOBAL PARA MIGRAÇÃO SEGURA, ORDENADA E REGULAR.
Equipe Editorial Index Law Journal. Goiânia. Anais. Disponível em: http://site.con-
pedi.org.br/publicacoes/no85g2cd/kaz3fap7/p8X51jiRqVm7cJ0y.pdf. Acesso em: 24 de
junho de 2022.
310
Uma teoria da migração: o framework das aspirações-capacidades
Pacto), na tentativa de ordenar esses influxos.48”
Este argumento se justifica vez que o Brasil não é o país que mais recebe migrantes
na América Latina. Particularmente em relação aos venezuelanos, frisa-se que o Es-
tado brasileiro recebeu apenas 2% do total de migrantes que deixaram tal país até
julho de 2018, estando a maioria situada na Colômbia, Equador, Peru, Chile e Ar-
gentina49.
Neste diapasão, negar o Pacto Global para Migrações, em verdade, meramente
gera prejuízo para brasileiros que estão fora do Estado – número este que é duas vezes
maior do que a quantidade de migrantes situados no Brasil. Conforme o Relatório
Internacional de Migração do Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais da
Secretaria das Nações Unidas, “1,6 milhão de brasileiros viviam no exterior na pri-
meira metade de 2017, [representando] um aumento de 3,5% em relação a 2015.
Desses, a maioria buscou se fixar em países da Europa, onde residiam no ano passado
cerca de 635 mil imigrantes brasileiros”50. O Estado brasileiro parece ignorar que,
caso fosse integrante do Pacto Global, poderia pugnar pela cessação de injustiças
contra seus nacionais através do mecanismo da cooperação que ele estabelece.
Nesse âmbito, Maiara Folly adverte que “atualmente, o Brasil já se encontra entre
as dez nacionalidades mais impedidas de entrar na União Européia (somente no pri-
meiro semestre de 2018, 2.225 de seus cidadãos tiveram entrada negada no conti-
nente Europeu)”51. Para ela, “não só perdem os brasileiros em sede de argumentação
quando seus direitos são arbitrariamente violados (v. Objetivos 12, 14 e 17 do Pacto),

48 BÓGUS, Lucia Maria M.; FABIANO, Maria Lucia Alves. O Brasil como destino das
migrações internacionais recentes: novas relações, possibilidades e desafios. Ponto-
eVírgula: Revista de Ciências Sociais da PUCSP, São Paulo, n. 18, pp. 126-145, 2015.
49 PASSAARINHO, Nathalia. Brasil recebe apenas 2% dos 2,3 milhões de venezuelanos
expulsos pela crise. BBC News Brasil, 21 ago. 2018. Disponível em: www.bbc.com/por-
tuguese/brasil-45251779>. Acesso 13.12.2018.
50 PAMPLONA, Isadora. Quantos brasileiros vivem fora do país? UOL Notícias, 22 jun.
2018. Disponível em: < https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/deutsche-
welle/2018/06/22/quantos-brasileiros-vivem-fora-do-pais.htm> Acesso em 15 abr. 2019.
51 FOLLY, Maiara. Saída do acordo global sobre migrações pode impactar brasileiros no ex-
terior. El País, Madrid, 12 jan. 2019. Disponível em: < https://brasil.elpais.com/bra-
sil/2019/01/12/opinion/1547304022_687377.html> Acesso em 15 abr. 2019.
311
Gabriela Brito Moreira ·Lucas Fina · Ana Luísa Prado · Cesar Augusto Silva Da Silva
como ‘uma postura hostil a migrantes pode incentivar restrições ainda maiores aos
brasileiros no exterior’”52
Como bem concluem Diva Júlia Sousa da Cunha Safe Coelho e Rogério Luiz Nery
da Silva em seu estudo da temática, “considerando apenas os números de brasileiros
residindo no exterior, parece que perdemos muito mais do que ganhamos ao deixar
de participar do Pacto. Mesmo sendo de aplicação opcional, ao optar pelo desliga-
mento, o Brasil desconsidera toda a evolução nacional, regional e internacional sobre
o tema, podendo haver consequências político-sociais (a nível doméstico e interna-
cional) que serão mais prejudiciais para o Estado (e seus nacionais) do que a sua sim-
ples permanência”.53

5. CONCLUSÃO
Diante do que se expôs, o que se intenta é demonstrar a indissossiabilidade do
conteúdo do Pacto da realidade social do continente americano. O documento pro-
mete inovar em matéria de proteção, contudo, a postura de líderes mundiais é de
menosprezo ao seu importante teor. A migração e o refúgio são fenômenos sociais e
culturais complexos que devem ser abordados com cautela e sempre visando o res-
peito à pessoa humana. A busca pela cooperação internacional parece chave para mi-
tigar as dificuldades e os obstáculos naturalmente enfrentados por aquele que se des-
loca.
A importância do documento está, então, no estímulo à colaboração dos países
na garantia do repeito aos direitos fundamentias da população refugiada, migrante e
asilada. O Pacto acrescentou princípios de direito internacional na política migrató-
ria dos Estados, sem restringir a soberania dos países para lidar com as questões,
como é muito alegado.

52 Idem.
53 XXVIII ENCONTRO NACIONAL DO COMPEDI GOIÂNIA – GO., 2019. O DIREITO
HUMANO DE MIGRAR E AS CONSEQUÊNCIAS DA SAÍDA DO BRASIL DO
PACTO GLOBAL PARA MIGRAÇÃO SEGURA, ORDENADA E REGULAR.
Equipe Editorial Index Law Journal. Goiânia. Anais. Disponível em: http://site.con-
pedi.org.br/publicacoes/no85g2cd/kaz3fap7/p8X51jiRqVm7cJ0y.pdf. Acesso em: 24 de
junho de 2022.
312
Uma teoria da migração: o framework das aspirações-capacidades
Nesse diapasão é que entra sua principal inovação: o Princípio da Responsabili-
dade Compartilhada. Este prevê uma atuação em conjunto entre os Estados a partir
da cooperação e solidariedade, para que se divida, de maneira mais justa, a respon-
sabilidade no que se refere ao acolhimento dos migrantes.
Com a tendência atual de diminuição dos efeitos imeditos da pandemia, os fluxos
que vinham minguando tenderão a retomar sua maior força, ainda mais diante do
cenário contubado econômico no continente americano. O Pacto oferece a resposta
para enfrentar satisfatoriamente a questão: apenas a atuação conjunta dos países
pode fazê-lo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
XXVIII ENCONTRO NACIONAL DO COMPEDI GOIÂNIA – GO., 2019. O DI-
REITO HUMANO DE MIGRAR E AS CONSEQUÊNCIAS DA SAÍDA DO BRA-
SIL DO PACTO GLOBAL PARA MIGRAÇÃO SEGURA, ORDENADA E RE-
GULAR. Equipe Editorial Index Law Journal. Goiânia. Anais. Disponível em:
http://site.conpedi.org.br/publicacoes/no85g2cd/kaz3fap7/p8X51jiR-
qVm7cJ0y.pdf. Acesso em: 24 de junho de 2022.
A resposta dos EUA ao Pacto Global sobre migração. Share America, 2018. Dispo-
nível em: https://share.america.gov/pt-br/a-resposta-dos-eua-ao-pacto-global-
sobre-migracao-shareamerica/. Acesso em: 17 de mar. de 2022.
ACNUR. Pesquisa aponta que refugiados e migrantes venezuelanos têm maior
acesso a emprego após interiorização. Disponível em: https://www.ac-
nur.org/portugues/2021/12/08/pesquisa-realizada-por-agencias-da-onu-de-
monstra-que-pessoas-refugiadas-e-migrantes-vindas-da-venezuela-tem-maior-
acesso-a-emprego-e-renda-apos-adesao-a-estrategia-de-interiorizacao/ Aces-
sado em: 31/01/2022
AGÊNCIA BRASIL. Futuro Chanceler diz que Brasil vai deixar Pacto Global de Mi-
gração. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2018-
12/futuro-chanceler-diz-que-brasil-vai-deixar-pacto-global-de-migracao.
Acesso em: 24 de junho de 2022.
AURÉLIO, Diogo Pires. Um Fio de Nada. Ensaio sobre a Tolerância. Lisboa: Edições

313
Gabriela Brito Moreira ·Lucas Fina · Ana Luísa Prado · Cesar Augusto Silva Da Silva
Cosmos,1997.
BÓGUS, Lucia Maria M.; FABIANO, Maria Lucia Alves. O Brasil como destino das
migrações internacionais recentes: novas relações, possibilidades e desafios.
Ponto-eVírgula: Revista de Ciências Sociais da PUCSP, São Paulo, n. 18, pp. 126-
145, 2015.
Bolsonaro retira Brasil de Pacto Global para Migração, diz ONU. Rede Brasil Atual,
com edição da Redação Spbancários, 2019. Disponível em: https://spbanca-
rios.com.br/01/2019/bolsonaro-retira-brasil-de-pacto-global-para-migracao-
da-onu. Acesso em: 17 de mar. de 2022.
Brasil deixa Pacto Global de Migração da ONU. Folha de São Paulo, 2019. Disponí-
vel em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/01/brasil-deixa-pacto-glo-
bal-de-migracao-da-onu.shtml. Acesso em: 17 de mar. de 2022.
Brasil deixa Pacto Global pela Imigração da ONU. Estadão, 2019. Disponível em:
https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2019/01/08/interna_interna-
cional,1019805/brasil-deixa-pacto-global-pela-imigracao-da-onu.shtml. Acesso
em: 15 de mar. de 2022.
CARVALHO, FERNANDA. A responsabilidade compartilhada para proteção in-
ternacional de refugiados no à luz da Declaração de Nova Iorque. 2018. 115 f.
Monografia (Graduação em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade Fede-
ral da Bahia, Salvador, 2018. Disponível em: <https://repositorio.ufba.br/ri/han-
dle/ri/25786>. Acesso em: 21 de dezembro de 2021.
CORREIO BRAZILIENSE. México e Estados Unidos concordam em retomar pro-
grama de imigração de Trump. Disponível em: <https://www.correiobrazili-
ense.com.br/mundo/2021/12/4967699-mexico-e-estados-unidos-concordam-
em-retomar-programa-de-imigracao-de-trump.html>. Acesso em: 18 de dezem-
bro de 2022.
DA SILVA, Rogério Luiz; COELHO, Diva Júlia Sousa da Cunha Safe. O Direito Hu-
mano de migrar e as consequências da saída do Brasil do Pacto Global para mi-
gração segura, ordenada e regular. Disponível em: <http://site.con-
pedi.org.br/publicacoes/no85g2cd/kaz3fap7/p8X51jiRqVm7cJ0y.pdf>. Acesso

314
Uma teoria da migração: o framework das aspirações-capacidades
em 17 de mar. de 2022.
DOWD, REBECCA; MCADAM, Jane. Internacional Cooperation and Responsibil-
ity-sharing to Protect Refugees; What, Why and How? In: International and
Comparative Law Quartely, 66(4). 2017. Disponível em:
<https://doi.org/10.1017/S0020589317000343> Acessado em: 21 de dezembro de
2021.
Entenda o que é o Pacto Mundial para Migração. G1, 2018. Disponível em:
https://g1.globo.com/mundo/noticia/2018/12/11/entenda-o-que-e-o-pacto-
mundial-para-migracao.ghtml. Acesso em: 17 de mar. de 2022.
FOLLY, Maiara. Saída do acordo global sobre migrações pode impactar brasileiros
no exterior. El País, Madrid, 12 jan. 2019. Disponível em: https://brasil.el-
pais.com/brasil/2019/01/12/opinion/1547304022_687377.html. Acesso em 15 de
mar. de 2022.
Futuro Chanceler diz que Brasil vai deixar Pacto Global de Migração. Agência Bra-
sil, 2018. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2018-
12/futuro-chanceler-diz-que-brasil-vai-deixar-pacto-global-de-migracao.
Acesso em 17 de mar. de 2022.
International Organization for Migration. Chad Conducts National Consultation on
Global Compact for Migration. Disponível em: https://www.iom.int/news/chad-
conducts-national-consultation-global-compact-migration. 09 de julho de 2019.
Acesso em: 18 fev. 2022.
México e Estados Unidos concordam em retomar programa de imigração de
Trump. Correio Braziliense, 2021. Disponível em: <https://www.correiobrazili-
ense.com.br/mundo/2021/12/4967699-mexico-e-estados-unidos-concordam-
em-retomar-programa-de-imigracao-de-trump.html>. Acesso em: 24 de junho
de 2022.
MILNER, James. When norms are not enough: Understanding the principle and
practive of burden and responsibility sharing of refugees. 2016. Disponível em:
< https://www.cigionline.org/sites/default/files/documents/Refugee%20Pa-
per%20no2web_3.pdf> Acessado em: 21 de dezembro de 2021.
Nações Unidas. Assembleia Geral da ONU adota oficialmente Pacto Global para

315
Gabriela Brito Moreira ·Lucas Fina · Ana Luísa Prado · Cesar Augusto Silva Da Silva
Migração. 20 de dezembro de 2018. Disponível em: <https://nacoesuni-
das.org/assembleia-geral-da-onu-adota-oficialmente-pacto-global-para-a-mi-
gracao/>. Acesso em: 18 fev. 2022.
Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos Humanos. 10 de dezembro de
1948. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/wp-content/uplo-
ads/2018/10/DUDH.pdf>. Acesso em: 18 fev. 2022.
O êxodo silencioso dos haitianos na América Latina. Revista El País, 2021. Disponí-
vel em: <https://brasil.elpais.com/internacional/2021-08-10/o-exodo-silencioso-
dos-
haitianos-na-america-latina.html>. Acesso em: 24 de junho de 2022.
OCDE. 45º relatório do Sistema Contínuo de Relatórios da OCDE sobre Migração.
OCDE Library: Edição 45º, 2021. Disponível em: <https://www.oecd- ili-
brary.org/sites/29f23e9d-en/1/2/2/index.html?itemId=/content/publica-
tion/29f23e9d-en&_csp_=a9da7d4f182770aaa63ad86232529333&ite-
mIGO=oecd&itemContentType= book> Acesso em: 18 de dezembro de 2021.
ONU. Pacto Global para uma migração segura, ordenada e regular. ONU: Refugia-
dos e Migrantes. Disponível em: https://undocs.org/en/A/CONF.231/3 Acessado
em: 18/12/2021
ONU. Declaração Internacional dos Direitos Humanos. Nações Unidas. Disponível
em: https://brasil.un.org/pt-br/91601-declaracao-universal-dos-direitos-huma-
nos Acessado em: 18/12/2021
Pacto Mundial da ONU para a Migração é aprovado formalmente. Veja, 2018. Dis-
ponível em: https://veja.abril.com.br/mundo/pacto-mundial-para-a-migracao-
da-onu-e-aprovado-formalmente/#:~:text=Pacto%20Mun-
dial%20da%20ONU%20para%20a%20Mi-
gra%C3%A7%C3%A3o%20%C3%A9%20aprovado%20formalmente,-
EUA%2C%20It%C3%A1lia%2C%20Austr%C3%A1lia&text=It%C3%A1lia%2C
%20Austr%C3%A1lia%2C%20Is-
rael%20e%20v%C3%A1rios%20pa%C3%ADses%20da%20Europa%20Cen-
tral%2C,ao%20acordo%20desde%20o%20in%C3%ADcio.. Acesso em: 15 de

316
Uma teoria da migração: o framework das aspirações-capacidades
mar. de 2022.
PAMPLONA, Isadora. Quantos brasileiros vivem fora do país? UOL Notícias, 22
jun. 2018. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/deutsche-
welle/2018/06/22/quantos-brasileiros-vivem-fora-do-pais.htm. Acesso em 15 de
mar. de 2022.
PASSARINHO, Nathalia. Brasil recebe apenas 2% dos 2,3 milhões de venezuelanos
expulsos pela crise. BBC News Brasil, 21 ago. 2018. Disponível em:
www.bbc.com/portuguese/brasil-45251779>. Acesso 13.12.2018.
Políticas Públicas do Brasil impulsionam inclusão de refugiados e migrantes da Ve-
nezuela, mas desafios permanecem. UNHCR, ACNUR, por ACNUR/Banco
Mundial, 2021. Disponível em: <https://www.acnur.org/portu-
gues/2021/05/17/politicas-publicas-do-brasil-impulsionam-inclusao-de-refugi-
ados-e-migrantes-da-venezuela-mas-desafios-permanecem/>. Acesso em: 24 de
junho de 2022.
REVISTA EL PAÍS. O êxodo silencioso dos haitianos na América Latina. Disponível
em:https://brasil.elpais.com/internacional/2021-08-10/o-exodo-silencioso-dos-
haitianos-na-america-latina.html Acessado em: 18/12/2021
TURK, Volker; GARLICK, Madeline Garlick. From Burdens and Responsabilities
to Opportunities: The Comprehensive Refugge Response Framework and a
Global Compact on Refugees. In: International Journal of Refugee Law, Volume
28, Issue 4. 2016. Disponível em: <https://doi.org/10.1093/ijrl/eew043>. Aces-
sado em: 21 de dezembro de 2021.
United Nations. General Assembly Endorses First-Ever Global Compact on Migra-
tion, Urging Cooperation among Member States in Protecting Migrants. 19 de
dezembro de 2018. Disponível em:
https://www.un.org/press/en/2018/ga12113.doc.htm. Acesso em: 18 fev. 2022.
United Nations Refugees and Migrants. Global Compact for Safe, Orderly and Reg-
ular Migration. 11 de julho de 2018. Disponível em: https://refugeesmi-
grants.un.org/sites/default/files/180711_final_draft_0.pdf. Acesso em: 18 fev.
2022.
UNHCR. The UN Refugee Agency, 2021. Mid-Year Trends 2021. Disponível em:

317
Gabriela Brito Moreira ·Lucas Fina · Ana Luísa Prado · Cesar Augusto Silva Da Silva
https://www.unhcr.org/statistics/unhcrstats/618ae4694/mid-year-trends-
2021.html#_ga=2.171849766.785441079.1645897916-713450694.1645897916.
Acesso em: 17 de mar. de 2022.
VENTURINI, Andressa de Medeiros; MAZZARDO, Luciane de Freitas. Um novo
olhar acerca do direito humano de migrar: uma análise a partir da sanção da Lei
13.445/17. Seminário Internacional Demandas Sociais e Políticas Públicas na So-
ciedade Contemporânea. 2018. Disponível em: http://online.unisc.br/acad-
net/anais/index.php/sidspp/article/view/17721/4595. Acesso em: 15 mar. 2022.

__________________________________________________
MOREIRA, Gabriela Brito; FINA, Lucas; PRADO, Ana Luísa; SILVA, Ce-
sar Augusto Silva. Da. Pacto global pela migração de 2018 nas Américas.
In: OLIVEIRA, Marco Aurélio Machado de; (Org.). Anais do I Congresso
do Migrafron. Uberlândia: Marco Teórico, 2022. pp. 295-318.
__________________________________________________

318
UMA TEORIA DA MIGRAÇÃO: O
FRAMEWORK DAS ASPIRAÇÕES-
CAPACIDADES

17
Daniel Francisco Nagao Menezes
Lúcio Flávio Joichi Sunakozawa

RESUMO:
Este texto elabora uma estrutura de aspirações-capacidades para avançar nossa com-
preensão da mobilidade humana como parte intrínseca de processos mais amplos de
mudança social. A fim de alcançar uma compreensão mais significativa da agência e
da estrutura nos processos de migração, essa estrutura conceitualiza a migração
como uma função de aspirações e capacidades para migrar dentro de determinados
conjuntos de estruturas de oportunidades geográficas percebidas. Ele distingue entre
as dimensões instrumentais (meios para um fim) e intrínsecas (que afetam direta-
mente o bem-estar) da mobilidade humana. A estrutura resultante ajuda a entender
as formas complexas e muitas vezes contra-intuitivas pelas quais os processos de
transformação social e “desenvolvimento” moldam os padrões de migração e nos
permitem integrar a análise de quase todas as formas de mobilidade migratória den-
tro de uma estrutura metaconceitual.

PALAVRAS-CHAVE:
Teoria da migração; aspiração-capacidade; mudança social.

319
Daniel Francisco Nagao Menezes ·Lúcio Flávio Joichi Sunakozawa
ABSTRACT:
Resumén: Este texto elabora un marco de aspiraciones-capacidades para avanzar en
nuestra comprensión de la movilidad humana como parte intrínseca de procesos más
amplios de cambio social. Para lograr una comprensión más significativa de la agencia
y la estructura en los procesos migratorios, este marco conceptualiza la migración
como una función de las aspiraciones y capacidades para migrar dentro de conjuntos
determinados de estructuras de oportunidades geográficas percibidas. Distingue entre
las dimensiones instrumentales (medios para un fin) e intrínsecas (que afectan direc-
tamente el bienestar) de la movilidad humana. El marco resultante ayuda a compren-
der las formas complejas y a menudo contrarias a la intuición en las que los procesos
de transformación social y “desarrollo” dan forma a los patrones migratorios y nos
permiten integrar el análisis de casi todas las formas de movilidad migratoria dentro
de un marco metaconceptual.

KEYWORDS:
Teoría de la migración; aspiración-capacidad; cambio social.

1. INTRODUÇÃO - TEORIA DA MIGRAÇÃO: QUAL É O PROBLEMA?


A teoria da migração está em um impasse há várias décadas (Arango 2000; De
Haas 2010; Massey 2019; Skeldon, 2012). O campo dos estudos de migração perma-
nece em um campo surpreendentemente pouco teorizado de investigação social. Isso
é lamentável, pois só podemos desenvolver uma compreensão mais rica dos proces-
sos de migração se não os separarmos conceitualmente de processos mais amplos de
mudança social dos quais eles são parte constituinte. Muito do pensamento sobre
migração permanece implícito ou explicitamente baseado em modelos simplistas de
empurrar-puxar ou suposições neoclássicas de maximização de renda individual (ou
utilidade na linguagem econômica), apesar de sua manifesta incapacidade de expli-
car padrões e processos de migração do mundo real. Embora as teorias de migração
anteriores tenham sido justamente criticadas por suas suposições irreais, os pesqui-
sadores geralmente têm sido melhores em desmascarar essas teorias do que em

320
Uma teoria da migração: o framework das aspirações-capacidades
apresentar alternativas teóricas viáveis.

Para superar esse impasse e avançar a compreensão dos processos de migração


como parte intrínseca de processos mais amplos de mudança social e desenvolvi-
mento, este texto elabora uma estrutura teórica que conceitua a migração como uma
função das capacidades e aspirações das pessoas para migrar dentro de determinados
conjuntos de estruturas de oportunidades geográficas percebidas. Aplicando a estru-
tura de capacidades de Sen (2018) à migração, este artigo define a mobilidade hu-
mana como a capacidade (liberdade) das pessoas de escolher onde morar – incluindo
a opção de ficar – em vez de uma forma mais ou menos automatizada, passiva e de
“causa e efeito” como resposta a um conjunto de fatores estáticos de empurrar e pu-
xar. O texto se baseia nos conceitos de liberdade positiva e negativa de Berlin (1969)
para teorizar as formas complexas e não lineares pelas quais a mudança macroestru-
tural pode moldar as aspirações e capacidades de migração, bem como para definir
novas categorias de mobilidade humana derivadas da teoria da migração.
Os estudos de migração são um campo pouco teorizado de investigação socio ci-
entífica, no qual a tendência recente tem sido de regressão teórica e não de progresso.
Contribuições anteriores para o campo - como a teoria da migração de Lee (1966), a
teoria dos sistemas de migração de Mabogunje (1970), a teoria da transição de mo-
bilidade de Zelinsky (1971), o trabalho de Skeldon (1990) sobre transições de migra-
ção, o neoclássico de Harris e Todaro (1970) a teoria da migração, a teoria do mer-
cado de trabalho dual de Piore (1979), a nova economia da migração laboral de Stark
(1978, 1991) e a teoria da causação cumulativa de Massey (1990) – todos tentaram
chegar a entendimentos generalizados dos fenômenos migratórios. Com exceção de
alguns autores (Carling 2002; Faist 2000; Hatton, Williamson 1998), nas décadas
mais recentes a teorização sistemática dos processos de migração foi amplamente
abandonada (Skeldon 2012). Em sua visão seminal das teorias de migração, Massey
e seus colegas (Massey et al. 1993, p. 432) concluíram que muito do pensamento so-
bre migração continua atolado em conceitos, modelos e suposições do século XIX.
Infelizmente, não mudou muito desde então.
Este estado de subdesenvolvimento teórico contrasta fortemente com o enorme
aumento do número de estudos empíricos sobre migração. A falta de teorização

321
Daniel Francisco Nagao Menezes ·Lúcio Flávio Joichi Sunakozawa
sistemática dificulta nossa capacidade de interpretar “fatos” empíricos de forma sig-
nificativa, de entender como os fatores macroestruturais moldam os processos de
migração, bem como de explicar a enorme diversidade nas experiências de migração
em diferentes grupos étnicos, de gênero, habilidades e classes. Particularmente desde
o surgimento da ciência social “pós-moderna” nas décadas de 1970 e 1980, a teoria
da migração em grande escala foi amplamente abandonada. Em reação à crítica à
“grande teoria”, bem como ao viés estatal e ao “nacionalismo metodológico” (Wim-
mer, Glick Schiller 2002) inerentes a muitas pesquisas sobre migração (orientadas
por políticas), trabalhos recentes, particularmente de antropólogos e sociólogos, cen-
trado no estudo e na conceptualização das vidas, identidades e experiências (trans-
nacionais, multiculturais, diaspóricas, crioulizadas) dos migrantes a partir de uma
perspectiva “émica”.
Não obstante os méritos consideráveis de tal pesquisa, isso infelizmente coincidiu
com uma lacuna crescente entre sociólogos, antropólogos e também geógrafos que
realizam micro estudos qualitativos e interpretativos sobre as experiências dos mi-
grantes, por um lado, e os ramos da economia, sociologia e demografia que têm cada
vez mais concentrou-se na análise de regressão quantitativa para examinar as “cau-
sas” e “impactos” da migração em grande parte ao longo das linhas (implícitas ou
explícitas) do modelo “push-pull”. Embora os pesquisadores qualitativos muitas ve-
zes pareçam ter rejeitado a ideia de teorias explicativas da migração como ingenua-
mente positivistas, o verniz teórico das abordagens quantitativas também permane-
ceu extremamente fino, pois geralmente não vão além de uma perspectiva funciona-
lista (muitas vezes implícita) de “empurrar-puxar”, segundo a qual os migrantes são
atores que buscam maximizar a renda ou a “utilidade”. Tanto as abordagens quali-
tativas quanto as quantitativas falharam em capturar adequadamente o papel vital de
fatores estruturais difíceis de quantificar, como desigualdade, poder e estados, na for-
mação de processos migratórios, ou em desenvolver uma ideia significativa de agên-
cia humana além dos pressupostos voluntaristas do modelo neoclássico ou a repre-
sentação dos migrantes como vítimas mais ou menos passivas das forças capitalistas,
como é comum nas teorias histórico-estruturais.
O problema central na pesquisa sobre migração é a ausência de um corpo central
de teorias que resuma, generalize e sistematize os insights acumulados de uma vasta
quantidade de pesquisa empírica, que possa servir como um quadro comum de
322
Uma teoria da migração: o framework das aspirações-capacidades
referência para examinar, interpretar, entender e explicar “fatos” e “descobertas” de
várias perspectivas disciplinares e paradigmáticas, e que podem orientar pesquisas
futuras. Vários fatores contribuem para essa falta de progresso em nossa compreen-
são generalizada da migração, incluindo:
- O “viés do país receptor” e a concomitante ignorância das causas, consequências e
experiências da migração de uma perspectiva da área de origem, levando a entendi-
mentos parciais e tendenciosos da migração;
- O domínio das perspectivas governamentais, o “nacionalismo metodológico”
(Wimmer, Glick Schiller, 2002) e a tendência relacionada de adotar acriticamente ca-
tegorias estatais para classificar os migrantes e a migração, que muitas vezes susten-
tam visões ideológicas distorcidas sobre migração;
- Divisões disciplinares e metodológicas, particularmente entre abordagens quantita-
tivas (positivistas) e qualitativas (interpretativas);
- A divisão entre o estudo da migração “forçada” e o da migração “voluntária”; e
- A divisão entre o estudo da migração internacional e o da migração interna.
Pesquisadores frequentemente argumentam que uma teoria de migração abran-
gente ou universal nunca surgirá porque a migração é um fenômeno muito complexo
e diversificado (Castles, Miller, 2009). No entanto, este argumento não é convincente
por duas razões principais. Primeiro, seria enganoso sugerir que o objetivo da teoria
social é desenvolver teorias universais que explicam tudo, porque os fenômenos so-
ciais sempre precisam ser entendidos dentro dos contextos históricos e sociais espe-
cíficos em que ocorrem e, portanto, nunca podem ser capturados por um conjunto
simples de fórmulas, normas jurídicas, modelos ou equações de regressão. Em se-
gundo lugar, a complexidade nunca pode ser uma razão para abandonar os esforços
para construir melhores teorias sociais. Afinal, os fenômenos sociais são complexos
por natureza e a complexidade não impediu o avanço teórico em outros campos da
investigação social. Na verdade, precisamos virar o argumento de cabeça para baixo:
a complexidade tão característica dos processos sociais é a razão pela qual precisamos
de teorias sociais, pois elas nos ajudam a entender e discernir padrões em meio à
diversidade às vezes deslumbrante – e a natureza aparentemente aleatória, caótica e
não sistêmica – das experiências humanas e das interações sociais. Em outras pala-
vras, as teorias sociais nos ajudam a ver a madeira das árvores (empíricas).
323
Daniel Francisco Nagao Menezes ·Lúcio Flávio Joichi Sunakozawa
É importante ressaltar que a noção de complexidade não implica que os fenôme-
nos sociais e os processos sociais sejam caóticos ou desprovidos de regularidades,
padrões ou estrutura. Em vez disso, a complexidade implica que eles consistem em
muitas partes em arranjos elaborados e em várias camadas. De uma micro perspec-
tiva, a diversidade de experiências de migração pode parecer desconcertante, mas,
uma vez que começamos a diminuir o zoom, regularidades e padrões tendem a emer-
gir. Isso reflete o próprio propósito da teoria social: discernir padrões para dar sen-
tido ao que está acontecendo ao nosso redor. Por exemplo, como Ravenstein (1985,
particularmente para o caso da Grã-Bretanha) e Mabogunje (1970, particularmente
para o caso da África) já mostraram, a migração é tudo menos um fenômeno aleató-
rio. Em diferentes contextos geográficos e históricos, ambos observaram que a mai-
oria dos migrantes se move ao longo de caminhos espacialmente agrupados entre
comunidades muito particulares nas áreas de origem e destino. Da mesma forma, em
um nível macro, Zelinsky (1971), Skeldon (1990) e Hatton e Williamson (1998) ob-
servaram claras regularidades de longo prazo entre as transições demográficas, eco-
nômicas e sociais, por um lado, e o surgimento e declínio sequenciados de formas
particulares de mobilidade humana interna e internacional, por outro.

2. CLASSIFICAÇÃO PARADIGMÁTICA DAS TEORIAS MIGRATÓRIAS


Desde o final do século XIX, várias teorias surgiram em várias disciplinas das ci-
ências sociais que visam compreender os processos que impulsionam a migração.
Essas primeiras teorias de migração podem ser agrupadas em dois paradigmas prin-
cipais, seguindo uma divisão mais geral entre teoria social “funcionalista” e “histó-
rico-estrutural”. Apesar de suas várias origens disciplinares, as teorias dentro de cada
um desses dois paradigmas principais compartilham suposições básicas sobre a na-
tureza da sociedade e como a sociedade deve ser estudada. Por exemplo, os modelos
de equilíbrio neoclássicos (da economia), os modelos push-pull e as teorias dos sis-
temas de migração (principalmente da geografia e da demografia), bem como as in-
terpretações dominantes das teorias das redes de migrantes (principalmente da soci-
ologia) podem ser situadas dentro do paradigma funcionalista da teoria social, se-
gundo a qual a migração é, em geral, uma estratégia de otimização de indivíduos ou
famílias fazendo cálculos de custo-benefício.

324
Uma teoria da migração: o framework das aspirações-capacidades
Da mesma forma, apesar das diferenças de nuance e nível de análise, a teoria do
conflito neomarxista, a teoria da dependência (Frank, 1966), a teoria dos sistemas
mundiais (Wallerstein, 1974, 1980), a teoria do mercado de trabalho dual (Piore,
1979) e a teoria da globalização crítica (Sassen, 1991) têm interpretações amplamente
semelhantes da migração como sendo moldada por desigualdades estruturais econô-
micas e de poder, tanto dentro como entre sociedades, bem como as maneiras pelas
quais a migração desempenha um papel fundamental na reprodução e reforço dessas
desigualdades. Todas essas teorias podem ser situadas dentro do paradigma histó-
rico-estrutural, também conhecido como “teoria do conflito”, que se concentra em
como elites poderosas oprimem e exploram pessoas pobres e vulneráveis, como o
capital procura recrutar e explorar mão de obra e como ideologia e religião desem-
penham um papel fundamental na justificação da exploração e da injustiça, fazendo-
as aparecer como a ordem normal e natural das coisas.
Teorias mais recentes que se concentram nas experiências cotidianas, percepções
e identidade dos migrantes – como as teorias transnacionais (Vertovec, 2009), diás-
pora (Safran, 1991) e crioulização (Cohen, 2007) – podem todas ser situadas dentro
da perspectiva interacionista simbólica nas relações sociais. teoria. Talvez possamos
distinguir um quarto grupo, um pouco mais híbrido, de teorias de nível meso que se
concentram na continuação ou “dinâmica interna” (De Haas 2010b) da migração,
como teorias de rede, teoria de sistemas de migração (Mabogunje, 1970) e causação
cumulativa teoria (Massey, 1990). Podemos, assim, reduzir o que pode parecer inici-
almente uma complexidade teórica bastante vertiginosa, combinando teorias disci-
plinares existentes (da economia à antropologia) sob os guarda-chuvas conceituais
dos principais paradigmas da teoria social. Por uma questão de brevidade e porque o
objetivo deste texto é avançar na compreensão dos processos de migração como
parte de uma mudança social mais ampla, a análise a seguir se concentrará na distin-
ção clássica entre teorias funcionalistas e histórico-estruturais.

2.1 LIMITAÇÕES DAS TEORIAS FUNCIONALISTAS E HISTÓRICO-


ESTRUTURAIS
A teoria social funcionalista tende a ver a sociedade como um sistema, uma cole-
ção de partes interdependentes (indivíduos, atores), de alguma forma análogas ao

325
Daniel Francisco Nagao Menezes ·Lúcio Flávio Joichi Sunakozawa
funcionamento de um organismo, no qual existe uma tendência inerente ao equilí-
brio. As teorias funcionalistas da migração geralmente veem a migração como um
fenômeno positivo que contribui para a produtividade, prosperidade e, eventual-
mente, maior igualdade nas sociedades de origem e destino por meio de fluxos bidi-
recionais de recursos como dinheiro, bens e conhecimento. Essencialmente, eles in-
terpretam a migração como uma estratégia de otimização, na qual indivíduos (e às
vezes famílias ou famílias) usam a migração para acessar fontes de renda mais altas e
mais seguras e outras oportunidades de subsistência.
A teoria da migração neoclássica, iniciada por Todaro (1969) e Harris e Todaro
(1970), é a representante mais proeminente das teorias funcionalistas da migração,
mas existem mais correntes teóricas que podem ser agrupadas sob o paradigma fun-
cionalista da migração. Os modelos push-pull são basicamente uma versão protótipo
das teorias migratórias neoclássicas, pois interpretam a migração em função da renda
e outras lacunas de oportunidades entre as áreas de origem e destino. Esses modelos
funcionalistas são todos baseados na suposição explícita ou implícita de que as pes-
soas tomam decisões racionais para maximizar a renda ou a “utilidade”. A única
grande exceção a esta regra parece ser a nova economia da migração laboral (NELM)
iniciada por Stark (1978, 1991), que conceitua a migração ocorrendo em contextos
de pobreza relativa e restrições como uma família ou família (em vez de um indiví-
duo) estratégia de co-seguro que visa diversificar (em vez de maximizar) o rendi-
mento através da dispersão do risco. Embora reconheça o papel das restrições estru-
turais na definição das decisões de migração, o NELM também se baseia no pressu-
posto de que as famílias são atores racionais envolvidos em uma estratégia de otimi-
zação econômica de longo prazo.
No nível macro, de uma perspectiva funcionalista, espera-se que as decisões indi-
viduais de otimização contribuam para uma alocação mais otimizada dos fatores de
produção – principalmente através da transferência de mão de obra de áreas e países
pobres para países ricos e fluxos reversos concomitantes de capital de ricos para po-
bres áreas – o que deverá diminuir as lacunas econômicas entre as áreas de origem e
destino (De Haas 2010). No entanto, esses relatos geralmente ignoram como a po-
breza, a desigualdade, as restrições à imigração, a repressão do governo e a violência
podem impedir as pessoas de migrar, causar seu deslocamento forçado ou obrigar os
migrantes a condições de trabalho exploratórias. Isso explica por que os benefícios
326
Uma teoria da migração: o framework das aspirações-capacidades
sociais e econômicos da migração muitas vezes se acumulam desproporcionalmente
para os que já estão em melhor situação nas sociedades de origem e destino – mi-
grantes e “nativos” não migrantes.
O problema central da teoria funcionalista da migração é seu caráter reducionista.
O raciocínio “push-pull” no qual essas explicações se baseiam ressoa fortemente com
a intuição, mas provou ser inadequado e muitas vezes claramente enganoso na com-
preensão dos processos de migração do mundo real. Os modelos push-pull não são
capazes de explicar a migração como um processo social, pois tendem a listar uma
série de fatores estáticos que obviamente desempenham “algum” papel na migração,
mas sem especificar seu papel e interações ou fornecer uma explicação estrutural dos
processos sociais impulsionando os movimentos populacionais. Skeldon (1990, p.
125) argumentou, portanto, que os modelos push-pull nos deixam com uma lista de
fatores, todos os quais podem claramente contribuir para a migração, mas que care-
cem de uma estrutura para reuni-los em um sistema explicativo, levando-o a concluir
que a teoria push-pull é, na melhor das hipóteses, apenas um lugar-comum.
Se reformularmos o pressuposto funcionalista fundamental como a maioria das
pessoas migra na expectativa de encontrar melhores oportunidades no destino, pro-
vavelmente poucos discordariam. Essa suposição, de que as pessoas basicamente têm
boas razões para se mudar, no entanto, é tão geral que é de pouca utilidade para ex-
plicar a natureza geograficamente padronizada e socialmente diferenciada dos pro-
cessos migratórios. Em outras palavras: saber o que motiva as pessoas a se mudar não
nos ajuda realmente a explicar os processos, padrões e impulsionadores da migração
no nível estrutural.
As verdadeiras questões são mais complexas e pedem respostas mais complexas.
Por exemplo, por que as sociedades mais ricas e “desenvolvidas” tendem a ter níveis
mais altos de imigração e emigração do que as sociedades pobres e “subdesenvolvi-
das”, enquanto os modelos push-pull e neoclássicos predizem o contrário? Como
podemos explicar que a maioria das migrações não ocorre das sociedades mais po-
bres para as mais ricas? Por que o “desenvolvimento” nos países de origem geral-
mente leva ao aumento da propensão à emigração? E por que a maioria das pessoas
realmente não migra, apesar da existência de enormes lacunas de renda e oportuni-
dades dentro e entre países?

327
Daniel Francisco Nagao Menezes ·Lúcio Flávio Joichi Sunakozawa
As teorias funcionalistas da migração têm dificuldades inerentes em explicar a
natureza social e geograficamente diferenciada dos processos migratórios, nos quais
a desigualdade estrutural e as práticas discriminatórias favorecem fortemente o
acesso de determinados grupos e classes sociais a oportunidades atraentes e legais de
migração, enquanto excluem outros ao privá-los de direitos ou obrigando-os a situ-
ações de exploração. A capacidade das pessoas de fazer escolhas migratórias inde-
pendentes é limitada por estados e outras estruturas, como família, comunidade, re-
des e cultura, que, em última análise, determinam os recursos sociais, econômicos e
humanos que as pessoas podem e estão dispostas a empregar para migrar. Na melhor
das hipóteses, teorias funcionalistas e modelos push-pull podem incorporar restri-
ções estruturais como “imperfeições de mercado” em modelos teóricos ou fatores de
aumento de custo em análises de regressão. No entanto, isso expõe sua incapacidade
de conceituar como as forças estruturais moldam ativamente os processos de migra-
ção e muitas vezes estão na origem dos sistemas de migração de grande porte.
Colonialismo, guerra, recrutamento de mão de obra, políticas de migração, desa-
propriação de terras, despejo devido a projetos de infraestrutura (por exemplo, cons-
trução de estradas e barragens) e mudança cultural são exemplos de processos com-
plexos de mudança macroestrutural que não podem ser reduzidos a “fatores” ou “va-
riáveis” afetando os custos de migração. Por exemplo, grande parte da migração em
grande escala tem suas origens em esforços ativos de estados e empregadores para
recrutar mão de obra estrangeira (De Haas et al. 2020; Piore, 1979). Isso mostra a
necessidade de conceituar o papel dos estados, empresas, recrutadores e vários ou-
tros intermediários de migração, bem como organizações como o ACNUR, OIM ou
organizações na formação ativa dos processos de migração e criar padrões de migra-
ção inteiramente novos em vez de reduzi-los a restrições de custo crescente em pro-
cessos de migração que ocorrem “naturalmente”. Portanto, uma compreensão com-
pleta do papel desses impulsionadores de migração estrutural obviamente desafia sua
redução a alguns fatores em um modelo teórico matemático ou variáveis em um mo-
delo de regressão empírica.
Além de sua incapacidade geral de conceituar como fatores e atores estruturais
moldaram ativamente os processos de migração ao longo da história, as teorias fun-
cionalistas têm dificuldades em explicar como, no mundo real, a migração pode re-
forçar desigualdades pré-existentes. Isso perturba a suposição de equilíbrio
328
Uma teoria da migração: o framework das aspirações-capacidades
subjacente às teorias funcionalistas, segundo as quais as forças sociais e de mercado,
se deixadas por conta própria, tenderiam automaticamente para o equilíbrio e em
que a migração (livre) deve, portanto, levar à convergência de renda e, eventual-
mente, menos migração. Myrdal (1957) já argumentava que, sem a intervenção re-
distributiva do governo, os processos socioeconômicos de “causação cumulativa”
tendem a reforçar as desigualdades entre áreas pobres e ricas, e não o contrário. Na
mesma linha, as teorias histórico-estruturais argumentam que as estruturas têm, de
fato, uma tendência a reproduzir ou mesmo reforçar as desigualdades, tanto “verti-
calmente” entre grupos sociais (como classes) quanto “horizontalmente” através do
espaço (ou seja, entre áreas rurais periféricas, áreas e cidades, ou entre países ricos e
pobres).
Por exemplo, nos países mais pobres da África e da Ásia, as oportunidades de mi-
gração legal para a Europa, América do Norte e outros países ricos são principal-
mente prerrogativas de grupos de elite, que possuem os diplomas certos para se qua-
lificar para um visto de trabalho ou estudo e que têm condições financeiras meios
para pagar a sua migração. Se são principalmente grupos bastante abastados que ob-
têm acesso às formas mais lucrativas de migração legal, enquanto outros permane-
cem presos na imobilidade ou são relegados a formas exploradoras de migração
(muitas vezes não documentada), é provável que isso sustente ou até aprofunde as
desigualdades dentro sociedades de origem. Como Van Hear (2014) argumentou, a
migração e seus resultados são formados pelos recursos que os aspirantes a migrantes
podem reunir e que, por sua vez, a capacidade de mobilizar esses recursos é ampla-
mente determinada pelo contexto socioeconômico ou classe (Van Hear, 2014).
Tais argumentos ressoam com a economia política neomarxista e as teorias his-
tórico-estruturais que enfatizam como as estruturas sociais, econômicas, culturais e
políticas restringem e direcionam o comportamento das pessoas de maneiras que
geralmente não criam maior equilíbrio, mas, ao contrário, reforçam tais desigualda-
des. Essas teorias enfatizam o papel das empresas – e dos estados que representam
seus interesses – na formação da migração e veem os trabalhadores migrantes, tanto
forçados quanto voluntários, como fornecendo uma força de trabalho barata e ex-
plorável, atendendo principalmente aos interesses de grupos, áreas e países ricos (De
Haas et al. 2020; Piore, 1979). Essas teorias enfatizam que o poder econômico e polí-
tico é distribuído de forma desigual e que crenças culturais (como religião e tradição),
329
Daniel Francisco Nagao Menezes ·Lúcio Flávio Joichi Sunakozawa
bem como práticas sociais servem para justificar e reproduzir tais desigualdades.
Nesta perspectiva, são assim os já privilegiados nas sociedades de destino, como os
empregadores e os grupos de elite detentores de capital em geral, que beneficiam
principalmente da migração. Isso se reflete nas regras de migração e nos discursos
políticos que favorecem e elogiam os qualificados e ricos e desprezam ou difamam
os menos qualificados, vulneráveis, etnicamente diferentes e migrantes pobres e
muitas vezes os relegam para serem explorados no setor informal. A partir desta pers-
pectiva, o verdadeiro objetivo das políticas anti-imigração não é parar a imigração,
mas criar uma aparência de controle (Massey et al. 1998), com os discursos políticos
anti-imigração associados servindo para justificar a exploração de grupos de migran-
tes vulneráveis e culpar os migrantes por problemas que não são de sua autoria.
No entanto, o problema central de tais visões histórico-estruturais é que elas
quase não deixam espaço para a ação humana. Eles tendem a retratar os migrantes
como peões – empurrados e puxados por macro forças globais – ou como vítimas do
capitalismo que não têm escolha a não ser migrar para sobreviver. Visões da migra-
ção como uma “fuga desesperada da miséria”, ou que retratam os migrantes como
vítimas passivas de contrabandistas e traficantes, não fazem justiça ao fato de que a
grande maioria dos migrantes se desloca por vontade própria. De fato, um grande
conjunto de evidências de pesquisa mostra que a maioria dos migrantes consegue
melhorar significativamente seus meios de subsistência por meio da migração in-
terna e internacional (De Haas et al. 2020; Massey et al. 1998). Além disso, ao justa-
por as narrativas convencionais que descrevem os contrabandistas como gangues
criminosas sem escrúpulos e implacáveis que atacam migrantes vulneráveis e deses-
perados, as experiências vividas pelos migrantes expõem uma realidade muito mais
sutil, com os contrabandistas geralmente funcionando como facilitadores da migra-
ção que podem ser amigos íntimos, conhecidos ou prestadores de serviços mais dis-
tantes (Zhang et al., 2018).
As visões histórico-estruturais são muitas vezes baseadas em suposições subja-
centes de que grande parte da migração “Sul-Norte” é um processo amplamente ir-
racional que muitas vezes não seria do interesse dos próprios migrantes, pois eles
seriam cegados por miragens excessivamente otimistas sobre a vida no exterior e en-
ganados por recrutadores, contrabandistas e traficantes não confiáveis. Essa suposi-
ção também é reproduzida em discursos e políticas oficiais segundo os quais os
330
Uma teoria da migração: o framework das aspirações-capacidades
futuros migrantes devem ser educados sobre os riscos e custos da migração por meio
de campanhas de informação. Isso claramente nega o fato de que, mesmo para mi-
grantes menos qualificados ou indocumentados, a migração ainda tem um enorme
potencial para melhorar o bem-estar a longo prazo deles mesmos e de suas famílias
e que, portanto, estão dispostos a suportar situações de exploração e sofrimento, por
mais injustificadas que sejam. pode ser do ponto de vista moral e ético.

2.2 EXCLUSIVISMO TEÓRICO VERSUS ECLETISMO CONCEITUAL


Embora os pressupostos das teorias nem funcionalistas nem histórico-estruturais
tenham valor universal, ambos os conjuntos de explicações podem, no entanto, ser
úteis no desenvolvimento de uma compreensão mais rica, matizada e contextuali-
zada dos processos de migração. Afinal, as teorias funcionalistas podem ter maior
valor explicativo para alguns tipos de formas relativamente irrestritas de mobilidade
humana – como muitas migrações internas e altamente qualificadas – enquanto as
teorias histórico-estruturais podem ter maior valor explicativo para formas de mi-
gração onde as restrições governamentais, a exploração e a involuntária desempe-
nham um papel mais importante. A migração pode ser uma experiência muito em-
poderadora, mas pode, em outros casos, assumir formas mais exploratórias.
Assim, em vez de rejeitar qualquer conjunto de explicações, os insights de ambos
os paradigmas precisam ser incorporados em um novo e abrangente paradigma teó-
rico sobre migração que possa uni-los. Em vez de ver as teorias como afirmações de
verdade exclusivas, precisamos de uma visão na qual a validade dos pressupostos
teóricos dependa das condições específicas sob as quais a migração ocorre, dos gru-
pos sociais e de classe específicos envolvidos, bem como dos níveis de análise. Isso
implica que tanto o paradigma funcionalista quanto o histórico-estrutural podem ter
poder explicativo e relevância e podem, portanto, em certa medida, ser combinados
e integrados em uma estrutura metateórica mais ampla, capaz de incorporar simul-
taneamente agência e estrutura na explicação da migração e que reconhece que a
grande maioria dos migrantes enfrenta algum nível de constrangimento, mas tam-
bém tem algum nível de escolha.
O caminho a seguir, portanto, não é desenvolver teorias inteiramente novas, mas
encontrar conceitos e ferramentas analíticas que nos ajudem a construir e unir
331
Daniel Francisco Nagao Menezes ·Lúcio Flávio Joichi Sunakozawa
insights fornecidos por teorias existentes – não apenas dentro, mas também entre
paradigmas. Isso implica uma rejeição da ideia um tanto comum de que não pode-
mos combinar teorias sociais baseadas em pressupostos paradigmáticos conflitantes,
particularmente se combinarmos explicações em diferentes níveis de análise.
No nível micro, no entanto, ainda pode fazer sentido para as pessoas migrarem se
isso aumentar significativamente a renda familiar e permitir que elas construam uma
casa, paguem assistência médica, mandem seus filhos para a escola ou iniciem um
pequeno empreendimento. O segundo insight não prova que o primeiro está errado
– vice-versa.
Também é perigoso aplicar cegamente o princípio da falsificação popperiana à
análise do mundo social. Por exemplo, se uma análise empírica conduzida dentro de
um determinado contexto mostra que as “variáveis preditoras” neoclássicas, como
diferenças salariais, não têm um efeito significativo sobre essa forma específica de
migração, isso ainda não fornece evidências suficientes para rejeitar a teoria como
um todo. Pode simplesmente significar que uma teoria particular pode ter pouco ou
nenhum poder explicativo naquele contexto particular. Isso não fornece uma licença
para uma prática desleixada de teorização ad-hoc do tipo “vale tudo”, mas, em vez
disso, defende mais precisão analítica na avaliação cuidadosa da aplicabilidade de
teorias específicas em configurações específicas e em níveis específicos de análise.
Como as teorias têm sido frequentemente formuladas para explicar formas específi-
cas de migração que ocorrem em determinados contextos geográficos e históricos,
uma maior consciência da história das teorias é essencial se quisermos entender suas
reivindicações e aplicabilidades particulares.
Em vez de “rejeitar” ou “confirmar” hipóteses e teorias, as análises sociais ganha-
riam profundidade interpretativa e relevância teórica se indicassem quais fatores
contextuais podem explicar certas observações empíricas esperadas ou inesperadas.
Um único experimento desafiando a lei da gravitação universal de Newton deveria
de fato ser suficiente para rejeitar sua teoria. No entanto, em contraste com as ciên-
cias naturais, nas ciências sociais muitas vezes não se trata de uma teoria estar “certa”
ou “errada”, muito menos de testar a validade de uma teoria inteira, inserindo uma
variável preditora “representando” a teoria em um modelo de regressão. Nesse con-
texto, Garip (2012) argumentou com razão que os pesquisadores de migração ten-
dem a reduzir as teorias a conjuntos concorrentes de variáveis independentes o que
332
Uma teoria da migração: o framework das aspirações-capacidades
inevitavelmente leva a posições teóricas e/ou, em vez de uma ênfase na complemen-
taridade de diferentes teorias. Em vez de aderir ao exclusivismo teórico, a construção
da teoria social deve, portanto, ser uma questão inerentemente eclética, na qual deve
existir uma abertura para combinar potencialmente diferentes perspectivas teóricas
como parte de um esforço para desenvolver conceitos mais abrangentes, matizados
e, portanto, mais realistas. estruturas.
Dessa maneira, as teorias de migração podem ser combinadas em cinco dimen-
sões analíticas:
- Em diferentes níveis de análise: explicações de migração em nível macro, meso e
micro podem exigir diferentes ferramentas conceituais. Por exemplo, formas de mi-
gração laboral exploradora que parecem se encaixar no paradigma neomarxista ainda
podem ser racionais para os migrantes e suas famílias.
- Em diferentes contextos (geográficos, regionais, nacionais). Por exemplo, as teorias
neoclássicas funcionalistas podem funcionar melhor para explicar a migração relati-
vamente irrestrita em países mais ricos, enquanto as abordagens histórico-estruturais
podem ser mais úteis para explicar a migração dentro e de países pobres ou “em de-
senvolvimento” ou ocorrendo em condições de opressão e violência.
- Em diferentes grupos sociais: mesmo no mesmo momento e no mesmo contexto
geográfico e nacional, a migração é um processo socialmente diferenciado; portanto,
é provável que diferentes teorias tenham graus variados de aplicabilidade a diferentes
ocupações, habilidades, renda, classe ou grupos étnicos. Por exemplo, as suposições
neoclássicas podem ser relativamente boas para explicar a migração de migrantes
mais qualificados, enquanto as teorias neomarxistas podem ser mais úteis para enten-
der a migração de trabalhadores manuais menos qualificados e relativamente pobres.
- Em diferentes momentos. Os impulsionadores e a dinâmica interna dos processos
de migração muitas vezes mudam ao longo do tempo e ao longo das várias trajetórias
e estágios sucessivos de formação e declínio do sistema de migração (De Haas 2010);
o mesmo acontece, portanto, com os mecanismos sociais, culturais e econômicos que
explicam essa migração. Por exemplo, Garip (2012) identificou quatro tipos distintos
de migrantes México-EUA durante o período 1970-2000 e argumentou que esses ti-
pos ganharam prevalência durante períodos específicos, dependendo das mudanças
nas condições nos dois países.
- De diferentes perspectivas temáticas ou disciplinares. Podemos olhar para a mesma

333
Daniel Francisco Nagao Menezes ·Lúcio Flávio Joichi Sunakozawa
manifestação de migração de várias perspectivas analíticas. Por exemplo, podemos
estudar como os processos de transformação social moldam os processos migratórios
simultaneamente a partir de perspectivas culturais, políticas, econômicas, tecnológi-
cas e demográficas, bem como através do uso de várias metodologias e dados. Isso
fornece diferentes – e geralmente complementares – ângulos para estudar e explicar
o mesmo processo social (De Haas et al. 2020)
Isso destaca o potencial considerável de combinar diferentes teorias para melho-
rar nossa compreensão dos processos de migração em diferentes níveis de análise (e
agregação), contextos, grupos sociais e períodos. Desta forma, disciplinas, teorias e
paradigmas tornam-se quadros interpretativos que refletem uma forma particular de
ver o mundo ou dominar determinadas sociedades ou períodos. Tais perspectivas
variadas podem ser complementares (quando enfatizam diferentes dimensões do
mesmo fenômeno) ou podem parecer conflitantes (quando seus pressupostos fun-
damentais colidem) – embora o que inicialmente parece ser um choque de pressu-
postos possa refletir em parte sua aplicabilidade a diferentes contextos, grupos sociais
e níveis de análises. Isso mostra o perigo de comprar uma linha de pensamento es-
pecífica, na qual as teorias podem facilmente se transformar em camisas de força in-
telectuais em vez de caixas de ferramentas conceituais. Isso deve nos obrigar a alcan-
çar uma compreensão mais profunda dos contextos históricos, geográficos e sociais
concretos em que a migração ocorre. Também destaca a necessidade de romper com
os maus hábitos do paroquialismo disciplinar e metodológico.

3. CONCLUSÃO
O texto elaborou uma estrutura de aspirações-capacidades para promover uma
compreensão nova e abrangente da mobilidade humana como parte intrínseca de
processos de transformação social mais amplos. Com base em trabalhos anteriores
(Carling, 2002; De Haas, 2010, 2020) sobre aspirações e capacidades, este artigo ex-
pandiu esses conceitos e os incorporou nas perspectivas teóricas mais amplas sobre
capacidades na teoria do desenvolvimento oferecidas por Sen (2018), bem como a
distinção entre liberdade negativa e positiva postulada por Berlin (1969). Embora
nem Sen nem Berlin tenham desenvolvido esses conceitos para explicar a migração,
este artigo argumentou que eles podem ser aplicados de forma frutífera à migração

334
Uma teoria da migração: o framework das aspirações-capacidades
para fornecer uma compreensão mais rica, mais agêntica e realista dos processos de
migração. Defendendo o ecletismo conceitual para superar as divisões disciplinares
e paradigmáticas, este artigo mostrou a exigência conceitual e os benefícios teóricos
de conceber a migração como parte intrínseca de processos mais amplos de transfor-
mação social. Tal conceituação requer a incorporação da análise da migração em te-
orias gerais de mudança social sem reverter ao determinismo causal de cima para
baixo das teorias de migração convencionais (histórico-estruturais ou funcionalistas.
A falha crucial nesse tipo de pensamento é a suposição de que as percepções e
preferências das pessoas são (1) impulsionadas pela maximização da utilidade indi-
vidual; que (2) as preferências das pessoas são uniformes em todas as sociedades e
que (3) tais preferências são estáticas. Assim, de várias maneiras, todas as teorias con-
vencionais de migração tendem a conceituar os migrantes como pessoas sendo “pu-
xadas” e “empurradas” como átomos por forças causais econômicas, políticas, de-
mográficas ou ambientais um tanto abstratas. Isso ignora o fato de que fatores como
cultura, educação e exposição à mídia e outras fontes de imagens, ideias e conheci-
mento provavelmente terão um enorme impacto sobre (1) as preferências e noções
de “boa vida” das pessoas e, portanto, aspirações de vida, bem como (2) seu conhe-
cimento, consciência e percepção de oportunidades “aqui” e “lá”.
Este artigo argumentou que podemos alcançar uma compreensão mais significa-
tiva da agência nos processos de migração conceitualizando a migração como uma
função de aspirações e capacidades para migrar dentro de determinados conjuntos
de estruturas de oportunidades percebidas. Com base nisso, podemos definir a mo-
bilidade humana como a capacidade (liberdade) das pessoas de escolher onde morar
– incluindo a opção de ficar – ao invés do ato de se deslocar. Mover-se e permanecer
tornam-se então manifestações complementares de uma mesma agência migratória.
Essa conceituação nos permite ir além do debate fútil sobre se a migração ou o com-
portamento sedentário é a norma, uma vez que uma visão verdadeiramente agêntica
sobre a migração não pressupõe mover ou permanecer como a norma, mas reco-
nhece que eles são dois lados da mesma moeda, liberdade de mobilidade. Isso nos
permite superar classificações dicotômicas e simplistas como entre migração forçada
e voluntária e integrar a análise da maioria das formas de mobilidade migratória den-
tro de um quadro meta conceitual.
A aplicação aos estudos de migração da perspectiva das capacidades de Sen (2018)
335
Daniel Francisco Nagao Menezes ·Lúcio Flávio Joichi Sunakozawa
sobre o desenvolvimento cria o espaço conceitual para alcançar uma compreensão
mais profunda do papel das capacidades na formação das aspirações migratórias,
bem como para fazer uma distinção analítica vital entre as dimensões instrumental e
intrínseca da vida humana e mobilidade. Para adquirir uma compreensão mais sis-
temática da dialética entre estrutura e agência nos processos de migração, a distinção
de Berlin (1969) entre liberdades positivas e negativas é uma ferramenta teórica útil
para elaborar uma visão mais estruturada, sistemática e contextualizada de como a
mudança macroestrutural os processos afetam as aspirações e capacidades das pes-
soas para migrar de maneiras complexas, não lineares e frequentemente contraintu-
itivas.
A estrutura resultante cria um escopo significativo para uma síntese teórica apri-
morada, integrando diferentes teorias de migração sob um guarda-chuva meta con-
ceitual. Em vez de serem mutuamente exclusivas, dentro dessa visão alternativa, di-
ferentes teorias de migração têm vários graus de poder explicativo para entender vá-
rias formas de migração que ocorrem em condições específicas, entre grupos sociais
particulares e categorias de migrantes e em vários níveis de análise. Isso exemplifica
o argumento mais amplo deste artigo, que postula que, na teoria da migração espe-
cificamente e na teoria social em geral, os pressupostos teóricos devem ser vistos
como declarações contextualizadas e não como afirmações de verdade mutuamente
exclusivas.
Isso destaca as linhas inerentemente borradas entre os conceitos de migração “vo-
luntária” e “forçada”. Existem paralelos com debates semelhantes, como aqueles so-
bre as dificuldades em conceituar casamento forçado versus casamento voluntário.
Em tais situações, muitas vezes há um conflito entre o desejo de ser membro de gru-
pos sociais por razões psicológicas e previdenciárias, por um lado, e o impulso pes-
soal para a autonomia, por outro. Isso mostra a importância de desenvolver ferra-
mentas conceituais que possam nos ajudar a obter entendimentos mais sutis da inte-
ração entre estrutura e agência na ação social. Isso também sugere que a estrutura de
aspirações-capacidades desenvolvida neste artigo pode ser útil para outros domínios
da teoria social.

336
Uma teoria da migração: o framework das aspirações-capacidades
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARANGO, J. Explaining migration: A critical view. International Social Science Jour-
nal, vol. 52, n. 165, pp. 283-296, 2000.
BERLIN, I. Four essays on liberty. London/New York: Oxford University Press,
1969.
CARLING, J. Migration in the age of involuntary immobility: Theoretical reflections
and Cape Verdean experiences. Journal of Ethnic and Migration Studies, vol. 28,
n. 1, pp. 05-42, 2002.
CASTLES, S.; MILLER, M. J. The age of migration. Basingstoke: Macmillan, 2009.
COHEN, R. Creolization and cultural globalization: The soft sounds of fugitive po-
wer. Globalizations, vol. 4, n. 3, pp. 369-384, 2007.
DE HAAS, H. Migration and development: A theoretical perspective. International
Migration Review, vol. 44, n. 1, pp. 227–264, 2010.
DE HAAS, H.; FRANSEN, S.; NATTER, K.; SCHEWEL, K.; VEZZOLI, S. Social
transformation (International Migration Institute IMI working paper no. 166).
Amsterdam: University of Amsterdam, 2020.
FAIST, T. The volume and dynamics of international migration and transnational
social spaces. Oxford: Oxford University Press, 2000.
FRANK, A. G. The development of underdevelopment. Monthtly Review, vol. 18, n.
4, pp. 37-58, 1966.
GARIP, F. Discovering diverse mechanisms of migration: The Mexico–US stream
1970–2000. Population and Development Review, vol. 38 n. 3, pp. 393–433, 2012.
HARRIS, J. R.; TODARO, M. P. Migration, unemployment and development: A two-
sector analysis. American Economic Review, vol. 60, n. 1, pp. 126-142, 1970.
HATTON, T. J.; WILLIAMSON, J. G. The age of mass migration: Causes and eco-
nomic impact. New York: Oxford University Press, 1998.
LEE, E. S. A theory of migration. Demography, vol. 3, n. 1, pp. 47–57, 1966.
MABOGUNJE, A. L. Systems approach to a theory of rural-urban migration. Geo-
graphical Analysis, vol. 2, n. 1, pp. 01-18, 1970.

337
Daniel Francisco Nagao Menezes ·Lúcio Flávio Joichi Sunakozawa
MASSEY, D. S. Social structure, household strategies, and the cumulative causation
of migration. Population Index, vol. 56, n. 1, pp. 03-26, 1990.
MASSEY, D. S.; ARANGO, J.; HUGO, G.; KOUAOUCI, A.; Pellegrino, A.; Taylor, J.
E. Theories of international migration: A review and appraisal. Population and
Development Review, vol. 19, n. 3, pp. 431–466, 1993.
MASSEY, D. S. The perils of seeing twenty-first century migration through a twenti-
eth-century lens. International Social Science Journal, vol. 68, pp. 101–104, 2019.
MYRDAL, G. Rich lands and poor: The road to world prosperity. New York: Harper,
1957.
PIORE, M. J. Birds of passage: Migrant labor and industrial societies. Cambridge:
Cambridge University Press, 1979.
RAVENSTEIN, E. G. The laws of migration. Journal of the Royal Statistical Society,
vol. 48, pp. 167-227, 1985.
SAFRAN, W. Diasporas in modern societies: Myths of homeland and return. Dias-
pora, vol. 1, n. 1, pp. 83-99, 1991.
SASSEN, S. The global city: New York, London, Tokyo. Princeton: Princeton Uni-
versity Press, 1991.
SEN, A. Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Companhia do Bolso, 2018.
STARK, O. Economic–demographic interactions in agricultural development: The
case of rural-to-urban migration. Rome: FAO, 1978.
STARK, O. The migration of labor. Oxford: Blackwell, 1991.
SKELDON, R. Population mobility in developing countries: A reinterpretation. Lon-
don: Belhaven Press, 1990.
SKELDON, R. Migration transitions revisited: Their continued relevance for the de-
velopment of migration theory. Population, Space and Place, vol. 18, n. 2, pp.
154–166, 2012.
TODARO, M. P. A model of labor migration and urban unemployment in less deve-
loped countries. The American Economic Review, vol. 59, n. 1, pp. 138–148,
1969.
VAN HEAR, N. Reconsidering migration and class. International Migration Review,
338
Uma teoria da migração: o framework das aspirações-capacidades
vol. 48, n. 1, S100–S121, 2014.
VERTOVEC, S. Transnationalism. Abingdon: Routledge, 2009.
WALLERSTEIN, I. The modern world system I: Capitalist agriculture and the ori-
gins of the European world economy in the sixteenth century. New York: Acade-
mic, 1974.
WALLERSTEIN, I. The modern world system II: Mercantilism and the consolida-
tion of the European world-economy, 1600–1750. New York: Academic, 1980.
WIMMER, A.; GLICK SCHILLER, N. Methodological nationalism and beyond: Na-
tion-state building, migration and the social sciences. Global Networks, vol. 2, n.
4, pp. 301-334, 2002.
ZELINSKY, Z. The hypothesis of the mobility transition. Geographical Review, vol.
61, n. 2, pp. 219–249, 1971.
ZHANG, S. X.; SANCHEZ, G. E.; ACHILLI, L. Crimes of solidarity in mobility: Al-
ternative views on migrant smuggling. The Annals of the American Academy of
Political and Social Science, vol. 676, n. 1, pp. 06-15, 2018.

__________________________________________________
MENEZES, Daniel Francisco Nagao; SUNAKOZAWA, Lúcio Flávio
Joichi. Uma teoria da migração: o framework das aspirações-capacidades.
In: OLIVEIRA, Marco Aurélio Machado de; (Org.). Anais do I Congresso
do Migrafron. Uberlândia: Marco Teórico, 2022. pp. 319-339.
__________________________________________________

339
340

Você também pode gostar