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O Laboratório Americano de Estudos Constitucionais Comparados - LAECC

procura aprofundar as discussões temáticas comparativas entre os vários siste-


mas constitucionais americanos. O grupo desenvolve abordagens comparativas
em 4 diferentes linhas, procurando cobrir todas as dimensões materiais do cons-
titucionalismo e fomentar a produção científica nos diversos ramos do direito,
sempre primando pela abordagem de abrangência interdisciplinar.
Estudos Essenciais de
Direito Digital

Apoio Prof. Dr. Alexandre Walmott Borges


Concepção João Victor Rozatti Longhi
José Luiz de Moura Faleiros Júnior
Coordenação, João Victor Rozatti Longhi
edição e revisão José Luiz de Moura Faleiros Júnior
Capa José Luiz de Moura Faleiros Júnior
Projeto gráfico e diagramação José Luiz de Moura Faleiros Júnior

Laboratório Americano de Estudos Constitucionais Comparados


CNPJ/MF nº 33.097.820/0001-00
Rua Johen Carneiro, 377, Uberlândia – MG
CEP 38.400-070
www.laecc.org.br

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


_________________________________________________________________________________

E85 Estudos essenciais de direito digital / Coordenadores, João Victor Rozatti Lon-
2019 ghi, José Luiz de Moura Faleiros Júnior. Uberlândia: LAECC, 2019.
450 p.

Inclui bibliografia.
Obra coletiva. Vários autores.
ISBN: 978-65-80358-03-8

1. Direito civil. 2. Direito constitucional. 3. Direito empresarial. I.


Longhi, João Victor Rozatti. II. Faleiros Júnior, José Luiz de Moura.

CDU: 34:004.738.5
_________________________________________________________________________________
Catalogação na fonte

/
Conselho Editorial
Laboratório Americano de Estudos Constitucionais Comparados - LAECC

ALESSANDRA SILVEIRA
Doutora em Direito pela Universidade de Coimbra
Professora da Universidade do Minho - Portugal

ALFREDO JOSÉ DOS SANTOS


Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP
Professor da Universidade Estadual Paulista - UNESP Campus Franca

ANTONIO MADRID PÉREZ


Doutor em Direito pela Universidade de Barcelona
Professor da Universidade de Barcelona - Espanha

BERNARDO WALMOTT BORGES


Doutor em Física pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC
Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC

FABIANA PINHEIRO CÂMARA


Mestre em Gestão Internacional e Desenvolvimento Econômico pela Universidade de Reading -
Inglaterra

GONÇAL MAYOS SOLSONA


Doutor em Filosofia pela Universidade de Barcelona
Professor da Universidade de Barcelona - Espanha

JOSÉ CARLOS REMOTTI CARBONELL


Doutor em Direito pela Universidade Autònoma de Barcelona
Professor da Universidade Autònoma de Barcelona

MOACIR HENRIQUE JÚNIOR


Mestre em Criminologia e Sociologia Jurídico-Penal pela Universidade de Barcelona - Espanha
Professor da Universidade Estadual de Minas Gerais - UEMG
PAULO ROBERTO ALMEIDA
Doutor em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP
Professor da Universidade Federal de Uberlândia - UFU

RENATO CARDOSO
Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG
Professor da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG

RODRIGO VITORINO SOUZA ALVES


Mestre em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia - UFU
Professor da Universidade Federal de Uberlândia - UFU

SAULO PINTO COELHO


Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG
Professor da Universidade Federal de Goiás - UFG

VIVIANE SÉLLOS KNOER


Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP
Professora do Centro Universitário Curitiba - UniCURITIBA
“In the information society, 'com-
puter technology' will be the innova-
tional technology that will constitute
the developmental core, and its fun-
damental function will be to substitute
for and amplify the mental labor of
man. … An 'information revolution'
resulting from development of the
computer will rapidly expand infor-
mation productive power, and make
possible the mass production of cogni-
tive, systematized information, technol-
ogy, and knowledge …”

— 増田米治 YONEJI MASUDA (1905–1995)


The Information Society as Post-
Industrial Society (1980)
SOBRE OS AUTORES

COORDENADORES:

JOÃO VICTOR ROZATTI LONGHI – Pós-Doutorando em Direito pela Universidade Estadual


do Norte do Paraná (UENP). Doutor em Direito Público pela Faculdade de Direito da USP
– Largo de São Francisco. Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ). Ex-Professor Adjunto DE da Faculdade de Direito da Universidade Federal
de Uberlândia (UFU). Foi Coordenador do Grupo de Estudos em Direito Digital da Uni-
versidade Federal de Uberlândia (UFU). Atua como convidado em programas de pós-
graduação, dentre eles Complexo Damásio de Jesus, USP-Ribeirão, UFU, PUC-Rio, IB-
MEC-Rio e Universidade Pitágoras-MG. Foi tutor de pesquisas da Escola de Direito da
FGV-Rio. Pesquisador bolsista da CAPES (Pós-doutorado), FAPERJ (mestrado) e FAPESP
(I.C.). Bacharel em Direito pela UNESP, com intercâmbio na Universidad de Santiago de
Compostela (Espanha). Defensor Público do Estado do Paraná.

JOSÉ LUIZ DE MOURA FALEIROS JÚNIOR – Mestrando em Direito pela Universidade Federal
de Uberlândia (UFU). Especialista em Direito Processual Civil, Direito Civil e Empresarial,
Direito Digital e Compliance pela Faculdade de Direito Prof. Damásio de Jesus (FDDJ).
Participou de curso de extensão em direito digital da University of Chicago. Bacharel em
Direito pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Professor de cursos preparatórios
para a prática advocatícia. Pesquisador do Grupo de Estudos em Direito Digital da Univer-
sidade Federal de Uberlândia (UFU). Autor de obras e artigos dedicados ao estudo do di-
reito e às suas interações com a tecnologia. Advogado.

AUTORES:

AMANDA TERUMI SOUZA TAKATA – Graduanda em Direito pela Universidade Federal de


Uberlândia (UFU). Pesquisadora do Grupo de Estudos em Direito Digital da Universidade
Federal de Uberlândia (UFU).

ÁTILA PEREIRA LIMA – Pós-graduanda em Direito Processual Civil pela Escola Paulista de
IX
Direito (EPD). Graduada em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
Pesquisadora do Grupo de Estudos em Direito Digital da Universidade Federal de Uber-
lândia (UFU). Advogada.

FREDERICO CARDOSO DE MIRANDA – Especialista em Direito Processual Civil pela Facul-


dade de Direito Prof. Damásio de Jesus (FDDJ). Bacharel em Direito pelo Centro Universi-
tário do Triângulo (UNITRI). Advogado.

GABRIEL OLIVEIRA DE AGUIAR BORGES – Mestre e bacharel em Direito pela Universidade


Federal de Uberlândia (UFU). Especialista em Direito Processual Civil pela Faculdade
Damásio (SP). Possui curso de inglês jurídico pela Oxford Brookes University (Inglaterra).
Ex-presidente da Liga de Direito e Negócios de Uberlândia. Professor na Faculdade Santa
Rita de Cássia, em Itumbiara/GO. Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito
Societário e Contratos Empresariais da UFU. Advogado.

GABRIELA ROTH – Especialista em Direito Contratual, Responsabilidade Civil e Direito


Imobiliário pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Gradua-
da em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e em
Direito (Ciências Sociais e Jurídicas) pela Fundação Escola Superior do Ministério Público
do Estado do Rio Grande do Sul (FMP/RS). Advogada.

GIULIA GABRIELE REZENDE – Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Uber-


lândia (UFU). Pesquisadora do Grupo de Estudos em Direito Digital da Universidade Fe-
deral de Uberlândia (UFU).

GUILHERME FERREIRA ARAÚJO CRUVINEL – Especialista em Direito Digital e Compliance


pela Faculdade de Direito Prof. Damásio de Jesus (FDDJ). Bacharel em Direito pela Uni-
versidade Federal de Uberlândia (UFU). Pesquisador do Grupo de Estudos em Direito
Digital da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Membro da Comissão de Direito
Digital da 47ª Subseção (Araguari) da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção de Minas
Gerais – OAB/MG. Advogado.

JOÃO VICTOR ROZATTI LONGHI – Pós-Doutorando em Direito pela Universidade Estadual


do Norte do Paraná (UENP). Doutor em Direito Público pela Faculdade de Direito da USP
– Largo de São Francisco. Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ). Ex-Professor Adjunto DE da Faculdade de Direito da Universidade Federal
de Uberlândia (UFU). Foi Coordenador do Grupo de Estudos em Direito Digital da Uni-

X
versidade Federal de Uberlândia (UFU). Atua como convidado em programas de pós-
graduação, dentre eles Complexo Damásio de Jesus, USP-Ribeirão, UFU, PUC-Rio, IB-
MEC-Rio e Universidade Pitágoras-MG. Foi tutor de pesquisas da Escola de Direito da
FGV-Rio. Pesquisador bolsista da CAPES (Pós-doutorado), FAPERJ (mestrado) e FAPESP
(I.C.). Bacharel em Direito pela UNESP, com intercâmbio na Universidad de Santiago de
Compostela (Espanha). Defensor Público do Estado do Paraná.

JOSÉ LUIZ DE MOURA FALEIROS JÚNIOR – Mestrando em Direito pela Universidade Federal
de Uberlândia (UFU). Especialista em Direito Processual Civil, Direito Civil e Empresarial,
Direito Digital e Compliance pela Faculdade de Direito Prof. Damásio de Jesus (FDDJ).
Participou de curso de extensão em direito digital da University of Chicago. Bacharel em
Direito pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Professor de cursos preparatórios
para a prática advocatícia. Pesquisador do Grupo de Estudos em Direito Digital da Univer-
sidade Federal de Uberlândia (UFU). Autor de obras e artigos dedicados ao estudo do di-
reito e às suas interações com a tecnologia. Advogado.

LARISSA CAMPOS SOUSA – Graduanda em Direito pela Escola Superior de Administração,


Marketing e Comunicação de Uberlândia (ESAMC). Pesquisadora do Grupo de Estudos
em Direito Digital da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Colaboradora do Núcleo
de Direito Digital e Startups do escritório Amaral Advogados. Membro da Comissão de
Direito Digital e Startups da 13ª Subseção (Uberlândia) da Ordem dos Advogados do Bra-
sil, Seção de Minas Gerais – OAB/MG. Membro do grupo Uberhub Mulher. Programadora
Front-End pelo Facebook Developer Cicles.

LEONARDO CISNE COUTINHO – Especialista em Direito Digital e Compliance pela Faculda-


de de Direito Prof. Damásio de Jesus (FDDJ). Bacharel em Direito pela Universidade do Sul
de Santa Catarina (UNISUL). Coordenador do Núcleo de Educação Digital da Comissão de
Direito Digital da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção de Santa Catarina – OAB/SC, em
Florianópolis/SC. Advogado.

MARCELO HENRIQUE DE SOUSA ESTEVAM – Graduando em Direito pela Universidade Fe-


deral de Uberlândia (UFU). Pesquisador do Grupo de Estudos em Direito Digital da Uni-
versidade Federal de Uberlândia (UFU).

MATHEUS JUNQUEIRA DE ALMEIDA MEIRA – Pós-graduando no MBA Executivo da Facul-


dade de Gestão e Negócios (FAGEN) da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Ba-
charel em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Pesquisador do Grupo

XI
de Estudos em Direito Digital da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Advogado.

PRISCILA SANTANA – Especialista em Direito Digital e Compliance pela Faculdade de Direi-


to Prof. Damásio de Jesus (FDDJ). Bacharel em Direito pela Escola Superior de Criciúma
(ESUCRI).

SAMUEL NUNES – Graduando em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU).


Pesquisador do Grupo de Estudos em Direito Digital da Universidade Federal de Uberlân-
dia (UFU).

STHÉFANE ALVES VASCONCELOS – Especialista em Direito Constitucional Aplicado pela


Faculdade de Direito Prof. Damásio de Jesus (FDDJ). Bacharel em Direito pela Universida-
de Federal de Uberlândia (UFU). Procuradora do Município de Uberlândia/MG.

TALES CALAZA – Graduando em Direito pela Escola Superior de Administração, Marketing


e Comunicação de Uberlândia (ESAMC). Pesquisador do Grupo de Estudos em Direito
Digital da Universidade Federal de Uberlândia (UFU).

THALITA ABADIA DE OLIVEIRA MAGALHÃES – Bacharel em Direito pela Universidade Fede-


ral de Uberlândia (UFU). Pesquisadora do Grupo de Estudos em Direito Digital da Univer-
sidade Federal de Uberlândia (UFU).

THIAGO PINHEIRO VIEIRA DE SOUZA – Bacharel em Direito pela Universidade Federal de


Uberlândia (UFU). Pesquisador do Grupo de Estudos em Direito Digital da Universidade
Federal de Uberlândia (UFU). Participou do Legal Studies Course pela Goethe Universität
– Frankfurt am Main. Advogado.

VINÍCIUS REZENDE MARRA – Graduando em Direito pela Universidade Federal de Uber-


lândia (UFU). Pesquisador do Grupo de Estudos em Direito Digital da Universidade Fede-
ral de Uberlândia (UFU).

XII
AGRADECIMENTOS

De início, mister o registro de congratulações e agradecimentos à equipe do LA-


BORATÓRIO AMERICANO DE ESTUDOS CONSTITUCIONAIS COMPARADOS – LAECC, aqui
referida na pessoa de seu Presidente, Prof. Dr. Alexandre Walmott Borges, pelo
destacado papel no fomento à pesquisa acadêmica, pelo inestimável apoio editorial
conferido à realização deste projeto e pela incansável disposição em auxiliar-nos
nessa empreitada.
Ficam consignados nossos encômios, ademais, aos notáveis pesquisadores do
Grupo de Estudos em Direito Digital da Universidade Federal de Uberlândia –
UFU que, no ano de 2018, demonstraram inesgotável empenho na realização das
investigações que culminaram nos capítulos que compõem o eixo central desta
obra, e propiciaram ricos debates em sala de aula.
Ainda, destacamos nossa gratidão aos autores convidados que – também sendo
incansáveis jovens pesquisadores – contribuíram para o enriquecimento da casuís-
tica propugnada.
Anotamos agradecimento à Thaís Caixeta, que colaborou imensamente na leitu-
ra e na revisão morfológica e de sintaxe dos textos.
Aos demais colegas e amigos da Faculdade de Direito “Prof. Jacy de Assis” da
Universidade Federal de Uberlândia – UFU, bem como a todos aqueles que, de
uma forma ou de outra, foram imprescindíveis para a concretização desta obra,
nossa gratidão e nossas saudações!

OS COORDENADORES

XIII
APRESENTAÇÃO

É com grande orgulho que faço a apresentação desta obra.


Trata-se do primeiro fruto coletivo de nosso Grupo de Estudos sobre Direito e
Internet na Faculdade de Direito “Prof. Jacy de Assis”, da Universidade Federal de
Uberlândia - UFU.
Tudo começou em 2012, quando, recém empossado na casa, resolvi inaugurar
informalmente um coletivo de alunos que se interessavam pelo tema.
Não havia, até então, ideia da dimensão do que estaria por vir.
Mês após mês, ano após ano, Trabalhos de Conclusão de Curso foram apresen-
tados, comunicações em eventos oficiais foram realizadas, artigos e capítulos foram
publicados em obras no Brasil e no exterior.
Mas, sem dúvida, ao longo dos anos, mais do que dezenas de trabalhos orienta-
dos, pesquisas supervisionadas, hoje vejo que o mais valioso elemento dessa colhei-
ta são as pessoas que passaram pelo grupo.
Poder acompanhar seu crescimento pessoal e profissional é o que há de mais
gratificante para qualquer professor.
Tal como é de alegria inestimável poder contribuir para o crescimento deste tão
importante – embora incipiente – ramo da ciência jurídica, através da pesquisa
árdua de alguns dos nossos alunos.
Coordenar tal obra traz a sensação de missão cumprida.
Faz ver que as sementes lançadas na UFU florescem e a pesquisa segue a todo
vapor com assuntos de grande relevância para a disciplina.
Sem mais delongas, anoto que o grupo de jovens pesquisadores que se dedicou à
elaboração dos textos contidos nesta obra fez formidável trabalho na condução das
leituras e seleção dos temas considerações essenciais à compreensão do hoje cha-
mado direito digital.
Para além da abordagem dogmática, nota-se empenho na compreensão casuísti-

XV
Apresentação
ca, explorada sob diversos ângulos e com forte interdisciplinaridade na condução
dos estudos em diversos ramos do direito.
Optou-se por enumerar os capítulos segundo a ordem alfabética dos autores,
uma vez que cada leitura remete a um tema individualizado e independente. Então,
para bem diagramar a compreensão holística dos estudos propugnados, pode o
leitor se dedicar aos textos relacionados aos temas de seu interesse sem maiores
preocupações com a progressão da leitura.
Boa leitura a todos.
Foz do Iguaçu, abril de 2019

JOÃO VICTOR ROZATTI LONGHI


Defensor Público do Estado do Paraná. Pós-
doutorando na Universidade Estadual do Norte do Pa-
raná. Doutor em Direito do Estado pela Faculdade de
Direito da USP. Mestre em Direito Civil pela Universi-
dade do Estado do Rio de Janeiro. Orgulhosamente, ex-
professor Adjunto da Faculdade de Direito “Prof. Jacy
de Assis”, da Universidade Federal de Uberlândia-MG.

XVI
NOTA INTRODUTÓRIA

A sociedade da informação é uma realidade presente em tempos hodiernos e,


com o avanço incessante da tecnologia, novos desafios se apresentam aos operado-
res do direito.
Na exata medida em que as Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs)
são apontadas por muitos como as principais forças-motrizes das transformações
hodiernas, com expressões emblemáticas como “bomba das telecomunicações”,
para Albert Einstein, “terceira onda”, para Alvin Toefler, “aldeia global”, para
Marshall McLuhan ou mesmo “sociedade do espetáculo”, para Guy Debord, tem-se
como certo que, para além dos predicados de impacto, severas são as consequências
sociais advindas das mudanças tecnológicas dos últimos anos.
Noutras palavras, a tecnologia deixa de se apresentar como um ator autônomo e
desconectado da sociedade e da cultura, passando a constituir o próprio amálgama
das inter-relações individuais – ressignificadas a largos passos!
Bill Gates, Nathan Myhrvold e Peter Rinearson, em sua renomada obra, “A es-
trada do futuro”, já destacavam o papel que a Internet desempenharia no Século
XXI1, ainda que, no curso da década de 1990, se vislumbrasse tímidos fluxos de
dados, com poucas imagens, textos e gráficos intercambiados em um sistema ainda
rudimentar e pouco interligado chamado de web 1.0 e concebido sob premissas
militares pela Agência de Projetos de Pesquisas Avançadas – ARPA (Advanced
Research Projects Agency) do Departamento de Defesa dos EUA.2
Evoluiu-se para a segunda “etapa”, chamada web 2.0, e a Internet adquiriu uma
dimensão jurídica fundamental devido à intensificação do compartilhamento de

1 GATES, Bill; MYHRVOLD, Nathan; RINEARSON, Peter. A estrada do futuro. Tradução de


Beth Vieira, Pedro Maia Soares, José Rubens Siqueira e Ricarco Rangel. São Paulo: Cia. das Le-
tras, 1995, p. 145-173.
2 KANAAN, João Carlos. Informática global. 2. ed. São Paulo: Pioneira, 1998, p. 23-31.
XVII
Nota Introdutória
dados e à massificação de seu uso para variadas finalidades, em problemática que
passaram a ser operacionalizadas a curto e médio prazo, passando a exercer in-
fluência fundamental no cotidiano informacional, suscitando visões de uma era
“pós-territorial” (sem fronteiras).3
Já se está na era da chamada “web 3.0”, marcada pela operabilidade da rede em
tempo real, pelo armazenamento ininterrupto de dados (always recording)4, pela
web criativa, pela tecnologia tridimensional e pelos avatares virtuais, dando origem
à “web semântica” e à legibilidade da rede por máquinas – e não mais apenas por
seres humanos – e à hiperconectividade, ligada às comunicações entre indivíduos
(person-to-person, P2P), entre indivíduos e máquina (human-to-machine, H2M) ou
entre máquinas (machine-to-machine, M2M), a partir de um vasto aparato técnico.5
Além disso, diversos autores já indicam que se está caminhando para a predomi-
nância da web 4.0 ou “web inteligente”, marcada pela presença da ‘Internet das
Coisas’.6
Segundo Eduardo Magrani, o advento da chamada web 3.0, que marcaria o atual
estágio da sociedade da informação, avança a passos largos ao contexto da Internet
das Coisas (Internet of Things, ou IoT), que também se situa na fronteira da chama-
da web 4.0 ou Internet de Todas as Coisas (Internet of Everything, ou IoE). O autor
indica que a vida em sociedade sofreria amplas mudanças pela presença da tecnolo-
gia, uma vez que os gadgets e equipamentos eletrônicos – e até mesmo automóveis e
eletrodomésticos estarão, por si mesmos, em conexão com a grande rede, sendo
capazes de praticar atos jurídicos a partir da inteligência artificial e de gerar inclu-

3 GOLDSMITH, Jack; WU, Tim. Who controls the Internet? Illusions of a borderless world.
Oxford: Oxford University Press, 2006, p. 13.
4 FREDETTE, John et al. The promise and peril of hyperconnectivity for organizations and socie-
ties. In: DUTTA, Soumitra; BILBAO-OSORIO, Beñat (Ed.). The global information technology
report 2012: living in a hyperconnected world. Genebra: Insead; World Economic Forum, 2012,
p. 113.
5 QUAN-HAASE, Anabel; WELLMAN, Barry. Hyperconnected network: computer-mediated
community in a high-tech organization. In: ADLER, Paul S.; HECKSCHER, Charles (Ed.). The
firm as a collaborative community. Nova Iorque/Oxford: Oxford University Press, 2006, p. 285.
6 GREENGARD, Samuel. The internet of things. Cambridge: The MIT Press, 2015, p. 188-189.

XVIII
Estudos Essenciais de Direito Digital
são social.7
Experimenta-se uma agravante, ainda, devido à circunstância de os usuários da
Internet estarem suscetíveis à rastreabilidade de seus passos e ações no mundo vir-
tual, sendo frequentemente privados da escolha quanto à técnica de obtenção de
dados e quanto às informações que serão colhidas a seu respeito.8
Em razão disso, autores como Karan Patel já sustentam a gênese de uma web 5.0,
ou ‘web simbiótica’, na qual se poderia integrar, gradativamente, as tecnologias ao
próprio ser humano (fenômeno denominado ‘trans-humanismo’9), contemplando
até sentimentos e emoções ou transformando a web em um ‘cérebro’ paralelo.10
O fato evidente é que tecnologia e sociedade se interconectam, mas não cami-
nham em sintonia: a primeira, em sua estruturação hodierna, não é capaz de acom-
panhar o ritmo incessante da inovação, e problemas jurídicos surgem a partir disso.
Com efeito:
A lei e a justiça ficaram atrás das novas tecnologias em quase todos os períodos da
história. Isso é compreensível, uma vez que a nova tecnologia deve se estabelecer na
sociedade antes que a legislação possa ser aplicada a ela. Além disso, as consequên-
cias da nova tecnologia nem sempre são claras imediatamente. É por isso que a res-
posta legal geralmente tem o caráter de uma reação ou um ajuste dos princípios
existentes. Na sociedade civil, esse caráter é reforçado pelo princípio do direito civil,
no qual os indivíduos inicialmente agem livremente e a lei faz correções subsequen-
temente.11

7 MAGRANI, Eduardo. A internet das coisas. Rio de Janeiro: FGV, 2018, p. 72-73.
8 ROUTIER, Richard. Traçabilité ou anonymat des conexions? In: PEDROT, Philippe (Org.).
Traçabilité et responsabilité. Paris: Economica, 2003, p. 154.
9 A gênese do trans-humanismo é atribuída usualmente ao biólogo Julian Huxley, desde a década
de 1950; porém, o termo em si deriva de um artigo publicado na década de 1940 por W.D.
Lighthall.
10 PATEL, Karan. Incremental journey for world wide web: introduced with web 1.0 to recent web
5.0: a survey paper. International Journal of Advanced Research in Computer Science and Sof-
tware Engineering, Jaunpur, v. 3, n. 10, p. 410-417, out. 2013, p. 416.
11 VAN DIJK, Jan. The network society. 2. ed. Londres: Sage Publications, 2006, p. 128. No origi-
nal: “The law and justice have lagged behind new technology in almost every period in history.
XIX
Nota Introdutória
O que a doutrina especializada vislumbrou durante décadas, a partir da segunda
metade do século XX, passou a se materializar com grande intensidade no século
XXI.
A grande preocupação que surge não diz respeito à quantidade de dados, mas ao
tratamento dispensado pelas grandes corporações12 às informações, demandando
intervenções estatais para regulamentar determinadas relações jurídicas.
Em uma era de extrema concentração corporativa, na qual as indústrias globais
são controladas por apenas algumas empresas gigantes – grandes bancos, grandes
empresas farmacêuticas e grandes empresas de tecnologia, para citar apenas algu-
mas, reflexões passam a permear a compreensão dos limites do próprio poder esta-
tal.
Se reportando à preocupação externalizada por Louis Brandeis como “a maldi-
ção da grandeza” (the curse of bigness), Tim Wu defende que a preocupação com o
avanço tecnológico e suas implicações não pode mais permanecer na esfera de dis-
cussão especializada e técnica, pois se espalhou para a política, chegando até mes-
mo a ameaçar a própria democracia.13
A história sugere que a tolerância à desigualdade e a falta de controle do poder
corporativo excessivo podem levar ao surgimento do populismo, ao nacionalismo,
à proliferação de visões políticas extremistas e a outros percalços.
Para além das finalidades ilícitas ou abusivas relacionadas à exploração do cida-
dão internauta, em flagrantes violações à privacidade, tem-se uma preocupação

This is understandable, as new technology must become established in society before legislation
can be applied to it. Furthermore, the consequences of new technology are not always clear right
away. That is why the legal answer usually has the character of a reaction or an adjustment of ex-
isting principles. In civil society, this character is enhanced by the principle of civil law, in which
individuals initially act freely and the law subsequently makes corrections”.
12 Sobre o papel dos ‘impérios da comunicação’ (expressão de Tim Wu), recomenda-se a leitura
dos seguinte trabalhos: WU, Tim. The master switch: the rise and fall of information empires.
Nova Iorque: Vintage, 2010; VAIDHYANATHAN, Siva. The Googlelization of everything: (and
why we should worry). Berkeley: University of California Press, 2011.
13 WU, Tim. The curse of bigness: antitrust in the new gilded age. Nova Iorque: Columbia Global
Reports, 2018, p. 14-23.

XX
Estudos Essenciais de Direito Digital
verdadeira com a própria sobrevivência do Estado. Por tal motivo, a criação de
marcos regulatórios se apresenta como mecanismo necessário para assegurar a
plena liberdade do indivíduo na sociedade da informação, reequilibrando a assime-
tria informacional causada pelo intenso uso de dados pessoais e, ainda, visando ao
favorecimento do fluxo de dados pessoais entre entidades que respeitem as garanti-
as do cidadão sobre seus próprios dados.
Justamente nesse contexto foram editadas importantes regulamentações no Bra-
sil, sendo a primeira delas a Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014 (o chamado “Mar-
co Civil da Internet”) e, posteriormente, o Decreto nº 8.771/2016, que a regulamen-
tou. E, mais recentemente, a Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018 (a chamada “Lei
Geral de Proteção de Dados”), posteriormente alterada pela Medida Provisória nº
869, de 27 de dezembro de 2018. Tudo isso pari passu com a tendência global de
criação de leis e regulamentos para a tutela da web.
Contudo, a existência de regulamentações preliminares da Internet no país não
esgota o tema, pois não são raros os exemplos de novas contingências e desafios à
tutela jurídica de direitos fundamentais, que enfrentam carência de delimitação
axiológica quando necessários para dar solução às mais variadas relações virtuais.
Nessa linha, a temática analisada nesta obra se revela contundente, eis que está
posta na ordem do dia em relação à necessidade de observação para a obtenção das
necessárias respostas que a pesquisa jurídica deve dar à sociedade frente aos desafi-
os desvelados pela tecnologia.
Por isso, na certeza de que todas as temáticas serão de interesse dos leitores e
pesquisadores instigados pelas inter-relações do direito com a tecnologia, deseja-
mos boa leitura!
Foz do Iguaçu/Uberlândia, abril de 2019.

OS COORDENADORES

XXI
SUMÁRIO

SOBRE OS AUTORES .............................................................................................................. IX

AGRADECIMENTOS ............................................................................................................ XIII

APRESENTAÇÃO .................................................................................................................. XV

NOTA INTRODUTÓRIA .................................................................................................... XVII

SUMÁRIO ......................................................................................................................... XXIII

Capítulo 1
Amanda Terumi Souza Takata
A força executiva dos contratos eletrônicos com assinatura digital e sem firmas
testemunhais: um estudo de caso à luz do Recurso Especial n° 1.495.920/DF ......... 27

Capítulo 2
Átila Pereira Lima
O direito ao esquecimento na era da sociedade da informação .................................. 45

Capítulo 3
Frederico Cardoso de Miranda
A vedação à locação esporádica de imóveis residenciais por aplicativo: um estudo
de caso do AirBnB à luz da jurisprudência do TJ/RJ .................................................... 67

XXIII
Sumário
Capítulo 4
Gabriel Oliveira de Aguiar Borges | Sthéfane Alves Vasconcelos
Data mining versus privacidade do consumidor na internet..................................... 113

Capítulo 5
Gabriela Roth | Samuel Nunes
A responsabilidade civil dos provedores por danos causados a terceiros: um estudo
doutrinário e jurisprudencial do artigo 19 do Marco Civil da Internet ................... 131

Capítulo 6
Giulia Gabriele Rezende
A sexualização infantil na Internet ................................................................................ 155

Capítulo 7
Guilherme Ferreira Araújo Cruvinel
A (hiper)vulnerabilidade do consumidor no tratamento de seus dados pessoais .. 167

Capítulo 8
João Victor Rozatti Longhi
Dignidade.com: direitos fundamentais na era do populismo 3.0 ............................. 189

Capítulo 9
José Luiz de Moura Faleiros Júnior
A tutela jurídica dos dados pessoais sensíveis à luz da Lei Geral de Proteção de
Dados .................................................................................................................................. 207

XXIV
Sumário
Capítulo 10
Larissa Campos Sousa
Lei de direitos autorais e copyright: implicações à luz do direito brasileiro ............ 233

Capítulo 11
Leonardo Cisne Coutinho | José Luiz de Moura Faleiros Júnior
A regulação do uso de drones e a responsabilidade civil ............................................ 249

Capítulo 12
Marcelo Henrique de Sousa Estevam
Liberdade de expressão e discurso de ódio: conflito de direitos em meio às fake
news .................................................................................................................................... 269

Capítulo 13
Matheus Junqueira de Almeida Meira
Acesso à internet como direito fundamental: a necessidade de garantia ao ingresso
no mundo virtual .............................................................................................................. 291

Capítulo 14
Priscila Santana
Do uso, tratamento e disponibilização de dados pessoais para fins processuais: uma
análise frente à lei geral de proteção de dados ............................................................. 329

Capítulo 15
Tales Calaza
A possibilidade de uso do WhatsApp para intimações judiciais ............................... 349

XXV
Sumário
Capítulo 16
Thalita Abadia de Oliveira Magalhães
A possibilidade de acesso aos dados privados no perfil do Facebook de usuário
falecido: colisão entre o direito à privacidade e o direito à herança ......................... 369

Capítulo 17
Thiago Pinheiro Vieira de Souza
A evolução da proteção de dados pessoais ao patamar de direito fundamental ..... 399

Capítulo 18
Vinícius Rezende Marra
Dano moral coletivo por vazamento de dados em redes sociais ............................... 427

XXVI
A FORÇA EXECUTIVA DOS CONTRATOS
ELETRÔNICOS COM ASSINATURA DIGITAL E
SEM FIRMAS TESTEMUNHAIS: UM ESTUDO DE
CASO À LUZ DO RECURSO ESPECIAL N°
1.495.920/DF

1
Amanda Terumi Souza Takata

Introdução

Um dos grandes desafios do direito atual é, sem dúvida, conseguir adequar


o meio jurídico ao contexto de globalização mundial – em especial no tocante ao
crescente avanço digital interposto nas relações sociais atuais, dito que tal fenôme-
no vem representando mudanças expressivas nestas, de forma a sair da abrangência
jurídica anteriormente existente. Contudo, assim como preconizava Lessig1, a In-
ternet e seu enorme leque de oportunidades necessita de regulamentação, de forma
que a legislação vem construindo novas normas, técnicas e abordagens para que o
Estado consiga tutelar o meio digital e garantir a segurança jurídica neste.
Não é segredo que tal tarefa está longe de ser concluída, e muito menos que seja
fácil: Zygmunt Bauman, ilustre sociólogo e explanador da chamada “sociedade
líquida”, ditava que nossa “liquidez” (assim posta para definir nossa inconstância,
volatilidade), marcada pelo uso da Internet, repercutia tanto em relação ao convívio

1 Cf. LESSIG, Lawrence. Code and other laws of cyberspace. Nova Iorque: Basic Books, 1999.
27
Amanda Terumi Souza Takata
social quanto aos meios econômicos e, claro, jurídicos.2 Isso significa que vários
costumes e regras não se aplicam ao espaço virtual, por este ser tão volátil que não é
nem ao menos um espaço físico, mas ultrapassa barreiras territoriais físicas e até
mesmo a própria soberania governamental.
Dadas as devidas considerações acerca da dificuldade em regulamentar o meio
digital, em especial a World Wide Web, que seria a Internet “popular” (de conexão
aberta), o presente capítulo irá focar nas relações contratuais existentes no ciberes-
paço – mais especificamente, nos contratos eletrônicos com assinatura digital e sem
firmas testemunhais e na força executiva deles no “mundo real”. Considerou-se o
REsp n° 1.495.920/DF uma verdadeira inovação de cariz “normativo”, uma vez
que, nos dizeres do acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) – e
que será detalhado adiante – rompeu-se com a rigidez e o formalismo da legislação
processual.

1 Contrato eletrônico x contrato tradicional

Diante da breve introdução ao tema, faz-se preciso explanar acerca dos contra-
tos e, posteriormente, da sua nova modalidade contemporânea – o dito contrato
eletrônico.
Assim, sendo o contrato um documento, Guilherme Magalhães Martins, em seu
livro “Contratos Eletrônicos de Consumo”, conceitua a noção de documento para
o direito como:
(...) um interesse no sentido da diagnose e classificação normativa de um fato passa-
do, tido como relevante para o direito, de forma que o documento traz em si a vir-
tude do fazer conhecer, a qual depende do seu conteúdo representativo. Perceber o
documento, portanto, significa conhecer o fato representado.3
Historicamente, por sua enorme importância, o contrato sempre foi regido por

2 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro:


Zahar, 2001, p. 84.
3 MARTINS, Guilherme Magalhães. Contratos eletrônicos de consumo. 3. ed. São Paulo: Atlas,
2016, p. 67.
28
A força executiva dos contratos eletrônicos com assinatura digital...
diversos formalismos, para tornar o fato de que este trata de negócio jurídico certo
e não controvertido. No caso dos contratos eletrônicos, este formalismo não se
perdeu, mas foi readequado para uma lógica que preza mais pelo consumidor, de
modo a surgir um formalismo informativo – ou seja, o contrato precisa fornecer
efetivo acesso às condições contratuais, resguardando, assim, o consumidor das
pressões e posições monopolistas dos provedores.
Importante salientar também que todos os negócios jurídicos a serem celebra-
dos devem observância à boa-fé, conforme disposto no Código Civil (CC/2002), em
seu art. 113:
Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos
do lugar de sua celebração.
Bem assim, no Código de Defesa do Consumidor (CDC), em seu art. 51, inciso
IV:
Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao
fornecimento de produtos e serviços que: (...)
IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o con-
sumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a
eqüidade;
Assim exposto, nota-se que, consequentemente, todos os contratos – e, portan-
to, também os eletrônicos – obedecem a tal normativa. Significa que até mesmo os
negócios jurídicos celebrados no meio digital se submetem ao “princípio do equili-
bro econômico do contrato”, referido por Antonio Junqueira de Azevedo.4 Interes-
sante se faz notar que, em um meio tão disperso e abstrato como a Internet, em que
John Perry Barlow escreve sua carta “A Declaração de Independência do Ciberespa-
ço”5, roga-se princípios como o da boa-fé contratual do mundo real, buscando a

4 AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Princípios do novo direito contratual e desregulamentação


do mercado – Direito de exclusividade nas relações contratuais de fornecimento – Função social
do contrato e responsabilidade aquiliana do terceiro que contribui para o inadimplemento con-
tratual. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 750, p. 113-120, abr. 1998, p. 115.
5 BARLOW, John Perry. A Declaration of the Independence of Cyberspace. Disponível em: <
https://eff.org/cyberspace-independence >. Acesso em 29 jan. 2019.
29
Amanda Terumi Souza Takata
justiça nas relações contratuais existentes.
Se, por exemplo, uma pessoa realizasse um contrato com uma loja virtual, esta-
belecendo um contrato a fim de encomendar um livro ou qualquer outra mercado-
ria, havendo ofensa à boa-fé – por exemplo, pela estipulação de cláusulas abusivas –
cabível será a tutela judicial para a revisão contratual ou, ainda, visando à nulifica-
ção do contrato estabelecido no meio eletrônico. Tal acordo não é tangível, físico, e
sim eletrônico, porém, não deixou de ser alcançado pelo direito.
Não obstante, as relações contratuais são diferentes no meio virtual, não pos-
suindo a mesma celeridade, forma ou conteúdo visualizados nas operações do
mundo real. Conforme exposto no ensaio “Confiança nos Contratos Eletrônicos:
uma observação sistêmica”, de Ricardo Menna Barreto e Leonel Severo Rocha,
ocorre uma despersonalização da relação jurídica, já que o comércio eletrônico
transpõe barreiras físicas, causando uma desmaterialização do contrato (antes vin-
culado ao papel, agora totalmente virtual). E o fato de que a oferta ao público tam-
bém é feita de modo virtual – o que gerou uma indeterminação de sujeitos, criando
‘tabus’ quanto à autenticidade dos promitentes compradores/vendedores, bem
como questões de confiança no que se refere à veracidade de determinadas infor-
mações ou conteúdos a serem vendidos na Internet.6
Este novo instrumento de realização de negócios jurídicos possibilitou inúmeras
inovações, como a transposição do tempo e do espaço para a celebração de deter-
minado negócio jurídico, porém, tal relação não obedece à mesma forma e ao
mesmo procedimento dos contratos normais, como será mostrado mais adiante.
Nilson Mineo Morisava conceitua os contratos eletrônicos, dizendo que são:
(...) instrumentos obrigacionais de veiculação digital. São todas as espécies de sinais
eletrônicos transmitidos pela Internet que permitem a determinação de deveres e
obrigações jurídicos. (...)nada mais são do que uma espécie de documento eletrôni-

6 BARRETO, Ricardo Menna; ROCHA, Leonel Severo. Confiança nos Contratos Eletrônicos: uma
organização sistêmica. Revista Jurídica Cesumar, Maringá, v. 7, p. 409-425, jul. 2007. Quadri-
mestral. Disponível
em:<http://periodicos.unicesumar.edu.br/index.php/revjuridica/article/view/575>. Acesso em:
20 jan. 2018.
30
A força executiva dos contratos eletrônicos com assinatura digital...
co, que caracteriza um negócio jurídico (...).7
Não há, ainda, um aparelho legislativo que tenha delimitado especificamente
como este modelo contratual deve prosseguir, já que a matéria é recente e ainda
carece de regulamentação específica, embora a doutrina já tenha, desde muito tem-
po, se dedicado ao seu estudo. Há poucas normas neste sentido, que servem como
guias gerais para a aplicação e formação dos contratos eletrônicos, como o Código
de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990), o Marco Civil da Internet (Lei º
12.925/2014), a própria Lei Geral de Proteção de Dados (Lei n° 13.709/2018), entre
outros aparelhos legislativos mencionados. 8
Os problemas enfrentados pelos contratos eletrônicos são diversos no tocante à
comprovação da manifestação de vontade: há dificuldades para a comprovação de
adulteração no contrato ou na manifestação de vontade, sem falar na devida identi-
ficação das partes envolvidas. Sendo o meio eletrônico estruturalmente tão volátil,
dados podem ser facilmente alterados, fazendo surgir a necessidade de se dar auten-
ticidade ao documento eletrônico, o que se faz com a chamada assinatura digital.

2 A assinatura digital

Diz-se que a assinatura digital se constitui da necessidade de identificação das


partes e da comprovação da autenticidade do documento. Ela funciona de maneira
similar à assinatura normal, e tem o intuito de dar veracidade ao contrato e à von-
tade das partes, por meio de um símbolo, marca ou outro elemento.
Sobre suas características, leciona Fabiano Menke:
O constante e irrefreável desenvolvimento da informática, dos meios eletrônicos e
da Internet faz com que os indivíduos alterem hábitos tradicionais como o de escre-

7 MORISAVA, Nilson Mineo. Validade da Assinatura Digital no Contrato Eletrônico. 2007. 84 f.


Monografia (Especialização) - Curso de Direito, Centro Universitário das Faculdades Metropoli-
tanas Unidas, Faculdades Metropolitanas Unidas, São Paulo, 2007.
8 Merece breve menção o Projeto de Lei 3514/2015, que, embora sutil em sua abordagem sobre os
contratos eletrônicos, é uma proposta ainda e votação para regulamentar de modo mais específi-
co os contratos eletrônicos no país.
31
Amanda Terumi Souza Takata
ver à mão sobre o papel. Hoje em dia, raramente tem-se a oportunidade de conhecer
a caligrafia de uma pessoa. Os computadores e as impressoras aboliram essa neces-
sidade, e o correio eletrônico praticamente extinguiu as cartas manuscritas. No futu-
ro próximo, é de se esperar que as próprias assinaturas lançadas de próprio punho
tornem-se mais raras. Essa realidade é devida fundamentalmente ao desenvolvimen-
to da assinatura digital - tecnologia bastante segura de atribuição de autoria e inte-
gridade de documentos eletrônicos.9
Tendo em vista que a ‘Assinatura Eletrônica’ seria um “gênero”, esta se consti-
tui de várias “espécies”, como as técnicas de estenografia, os instrumentos de iden-
tificação biométricos, a assinatura digitalizada, o chamado código secreto e a Assi-
natura Digital, esta última conceituada pelo glossário do Instituto Nacional de Tec-
nologia da Informação da seguinte forma:
Código anexado ou logicamente associado a uma mensagem eletrônica que permite
de forma única e exclusiva a comprovação da autoria de um determinado conjunto
de dados (um arquivo, um e-mail ou uma transação). A assinatura digital comprova
que a pessoa criou ou concorda com um documento assinado digitalmente, como a
assinatura de próprio punho comprova a autoria de um documento escrito. A verifi-
cação da origem do dado é feita com a chave pública do remetente.10
A assinatura digital compõe o contrato eletrônico, sendo um meio de compro-
var a veracidade da manifestação de vontade em relação a determinado contrato.
Ela trabalha lado a lado com a criptografia, sendo esta última responsável pela con-
fidencialidade dos dados da assinatura.
Em suma, a assinatura digital é um tipo de assinatura eletrônica, constituí-
da por meio da criptografia (em sua maioria) assimétrica11. O intuito final é que o

9 MENKE, Fabiano. Assinatura digital e seus efeitos jurídicos no direito brasileiro. Cadernos do
Programa de Pós-Graduação em Direito da UFRGS, Porto Alegre, n. 4, set. 2005, p. 271.
10 BRASIL. Casa Civil da Presidência da República. Instituto Nacional de Tecnologia da Informa-
ção. Glossário. Disponível em: < https://www.iti.gov.br/glossario/ >. Acesso em: 28 jan. 2019.
11 Sobre o assunto, confira-se: “(...) existem dois tipos de criptografia: a simétrica (ou chave secre-
ta), que possui a mesma chave para cifragem e decifragem de determinado algoritmo, sendo
mais utilizada em redes fechadas, já que depende somente de uma chave para resguardar o algo-
ritmo; e a assimétrica, que utiliza chaves diferentes para cifragem e decifragem, sendo realizada
por meio de uma operação mais complexa, onde a chave privada fica em poder somente do seu
32
A força executiva dos contratos eletrônicos com assinatura digital...
contrato a ser celebrado seja o mais seguro possível, visto que, sem as chaves, o
tempo gasto para descriptografar uma assinatura levaria anos! É por este motivo,
por exemplo, que há notícias de roubo de dados, pessoais por crackers ou hackers,
de dados de usuários de contas bancárias, e não propriamente quanto às assinaturas
digitais que tais usuários utilizam para acessá-las.
A assinatura digital também necessita de uma certificação digital, que consiste
em uma mensagem eletrônica com a finalidade de “confirmar um atributo invoca-
do pelo signatário”12, possuindo dentro dele a identificação do signatário e da auto-
ridade de certificação, bem como a chave pública deste. Os certificados digitais são
divididos em certificados de delimitação de tempo (“time stamps”), de autorização
ou de identificação.
São 3 os diferentes tipos de certificados mais usados: o certificado A1, que pos-
sui somente a senha, sendo o mais barato de todos eles, porém possui a duração de
somente um ano e só pode ser acessado com a devida segurança por meio do com-
putador em que a senha foi registrada; o A3, no cartão com chip, que dura de dois a
três anos, sendo possível executá-lo em qualquer computador, desde que este pos-
sua uma leitora plugada específica para tal; e o A3, no token, que é o método mais
caro, porém dura de dois a três anos, não necessita de nenhum aparelho específico
e pode ser acessado de qualquer computador.
Tais certificações são emitidas pelos chamados “cartórios digitais” ou “notários
eletrônicos” (públicos ou privados), cabendo a eles administrar as chaves públicas e
emitir, renovar ou revogar os certificados de modo seguro, consumando-se a auto-
ridade de certificação destes.
Por fim, após todas as explanações realizadas até aqui, é necessário salientar que,
no Brasil, há uma medida provisória que visa regulamentar o uso da assinatura
eletrônica no país – é a famosa MP 2.200-2/2001, que, entre várias disposições,
instituiu a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileiras (ICP- Brasil), em seu artigo

titular e pode ser lida somente por este e pelo destinatário, que possui a chave pública – a chave
privada é a única que consegue recompor o algoritmo”. (MARTINS, Guilherme Maga-
lhães. Contratos eletrônicos de consumo. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2016, p. 72)
12 MARTINS, Guilherme Magalhães. Contratos eletrônicos de consumo. 3. ed. São Paulo: Atlas,
2016, p. 77.
33
Amanda Terumi Souza Takata
1º:
Art. 1o Fica instituída a Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil,
para garantir a autenticidade, a integridade e a validade jurídica de documentos em
forma eletrônica, das aplicações de suporte e das aplicações habilitadas que utilizem
certificados digitais, bem como a realização de transações eletrônicas seguras.
Em suma, os contratos digitais só podem ser considerados documentos se sua
assinatura digital seguir o modelo desta medida provisória, como dispõe o art. 10 e
seu § 1°:
Art. 10. Consideram-se documentos públicos ou particulares, para todos os fins le-
gais, os documentos eletrônicos de que trata esta Medida Provisória.
§ 1o. As declarações constantes dos documentos em forma eletrônica produzidos
com a utilização de processo de certificação disponibilizado pela ICP-Brasil presu-
mem-se verdadeiros em relação aos signatários, na forma do art. 131 da Lei no 3.071,
de 1o de janeiro de 1916 - Código Civil.
Ressalva-se novamente que as relações contratuais virtuais já vinham sendo
consideradas legítimas pelo direito há algum tempo – nada mais natural, visto que a
celebração desses contratos ocorre com cada vez mais frequência, devido à sua faci-
lidade.
Um exemplo próximo e recente ocorreu com o Banco do Brasil, que não só in-
vestiu em um aplicativo para que seus clientes pudessem realizar operações bancá-
rias via Internet, como também, por meio deste, disponibilizou a opção de criar
uma conta inteiramente virtual – não há contato entre o signatário/contratante e o
agente do banco.
Tudo, desde a identificação dos documentos à criação de senhas de acesso, é fei-
to por intermédio do aplicativo.
Isso sem mencionar um banco novo em ascensão, o Nubank, que, com sua pla-
taforma inteiramente digital, celebra contratos eletrônicos seguros e vem conquis-
tando espaço no mercado.
É possível também citar sites de compra e venda e outros que formam uma infi-
nidade de relações novas jurídicas – e todas elas digitais – ressignificando o modo
como o direito traz respostas a elas.

34
A força executiva dos contratos eletrônicos com assinatura digital...

3 REsp n° 1.495.920/DF

Feitas as devidas considerações acerca dos institutos a serem tratados, passa-se


ao Recurso Especial n° 1.495.920/DF para, posteriormente, ser possível conduzir o
estudo à questão da executividade dos contratos eletrônicos.
Trata-se de Recurso Especial, julgado pela 3a turma do STJ, no dia 15 de maio de
2018, cujo Relator fora o Ministro Paulo de Tarso Sanseverino. Neste recurso, deci-
diu-se que o contrato eletrônico de mútuo com assinatura digital e autoridade certi-
ficadora pode ser tido como título executivo extrajudicial, dando provimento ao
recurso da Fundação dos Economiários Federais (FUNCEF).
Tal precedente é considerado uma inovação quanto à regulamentação dos con-
tratos eletrônicos, já que seguiu o entendimento de que o contrato firmado eletro-
nicamente e com assinatura digital prescinde das assinaturas de duas testemunhas
– requisito que, há décadas, era previsto no artigo 585, inciso II, do Código de Pro-
cesso Civil de 1973:
Art. 585. São títulos executivos extrajudiciais: (...)
II - a escritura pública ou outro documento público assinado pelo devedor; o docu-
mento particular assinado pelo devedor e por duas testemunhas; o instrumento de
transação referendado pelo Ministério Público, pela Defensoria Pública ou pelos ad-
vogados dos transatores;
Bem assim, tal requisito está previsto no art. 784, inciso III, do Código de Pro-
cesso Civil de 2015 (NCPC):
Art. 784. São títulos executivos extrajudiciais: (...)
III - o documento particular assinado pelo devedor e por 2 (duas) testemunhas;
A grande mudança decorre do fato de o contrato eletrônico ser considerado tí-
tulo executivo extrajudicial – o que será melhor explicado posteriormente – mas
que, entre inúmeras especificidades a serem exemplificadas, necessita de assinatura
manual dos contratantes e de duas testemunhas – no caso deste tipo de contrato,
ele não possui tais requisitos.

35
Amanda Terumi Souza Takata
Entretanto, conforme estabelecido no julgado, o STJ entendeu que, embora a
forma do contrato eletrônico seja diferente, este possui os devidos mecanismos de
autenticidade e segurança para ser celebrado e, como as normas vigentes listadas
acima são ultrapassadas frente aos avanços tecnológicos, o direito deve se adequar à
realidade ao seu redor, se traduzindo em novas soluções para problemas jurídicos
como o que se está a estudar.

3.1 Noções básicas do processo de execução dos títulos executivos extrajudiciais

Após este breve resumo, faz-se necessário, no entanto, dissertar sobre breves
noções do processo de execução, de acordo com o Novo Código de Processo Civil,
para, assim, prosseguir com o estudo sobre o REsp n° 1.495.920/DF.
Antes disso, faz-se uma breve consideração em torno dos dois processos que são
estabelecidos em nosso ordenamento jurídico. O primeiro deles é o de conheci-
mento, no qual o direito não é certo e, portanto, há um rito processual a ser seguido
(comum ou especial) para que se “acerte” o direito – o meio jurídico, então, atuará
como um terceiro que conhecerá da lide e, no final, decidirá sobre o direito (a pre-
tensão discutida).
Já o segundo processo é o de execução – que é nosso foco no momento. Tal pro-
cedimento já tem o direito certo, ou seja, ele não necessita de prévio conhecimento
da lide, já que a pretensão de determinado indivíduo foi dada como válida – seja
por sentença, seja por um título.
No passado, antes do Código de Processo Civil de 1973, havia uma diferenciação
do processo de execução em duas ações: a ação executória (aplicada à execução das
sentenças) e a ação executiva (destinada aos títulos extrajudiciais). Humberto The-
odoro Júnior, em seu “Curso de Direito Processual Civil – Vol. III”, descreve a dife-
rença entre essas ações da seguinte forma:
A ação executória era realmente uma execução forçada, visto que se destinava ape-
nas a realizar a satisfação do direito do credor, sem necessidade de acertamento a
seu respeito. A ação executiva, porém, era apenas uma ação comum, com adianta-
mento de penhora, uma vez que, após a segurança do juízo, havia possibilidade de
contestação, obrigatoriedade de despacho saneador, audiência de instrução e julga-
36
A força executiva dos contratos eletrônicos com assinatura digital...
mento, e finalmente uma sentença de mérito para ratificar o título e declarar subsis-
tente a penhora.13
Contudo, após o advento do Código de 1973, os títulos executivos extrajudiciais
ganharam uma ação de execução própria para veicularem a pretensão de recebi-
mento do crédito, possuindo o mesmo regime processual das sentenças condenató-
rias – isso significa que, mesmo fundada em um título extrajudicial, a reação do
executado só era ensejada mediante embargos (e não contestação), que eram profe-
ridos fora dos autos da ação de execução. Como os embargos não possuíam efeito
suspensivo, sempre prosseguia-se, após a penhora, à avaliação e praceamento dos
bens penhorados, não importando se sentença confirmatória do título executivo,
muito menos se tal título era extrajudicial. Portanto, para que se tivesse a formação
de um título executivo extrajudicial, havia a obrigatoriedade de definição expressa
legal, seja no Código, seja em leis especiais. O critério utilizado pelo legislador con-
siderava a relevância das atividades comerciais e dos devidos instrumentos que
eram necessários para realizá-las, bem como o próprio interesse público em relação
a determinados títulos que necessitavam de uma solução mais célere, devido à sua
especialidade.
Necessário ressaltar também que, como a ação executiva não existe mais, já que
o NCPC seguiu a linha traçada pelo código anterior, Humberto Theodoro Júnior
faz ainda mais uma consideração sobre o tema:
É que, não se destinando a execução forçada a condenar o devedor, mas apenas a re-
alizar o direito líquido e certo atestado pelo título do credor, o pedido que a provoca
é específico. Dessa forma, a lide deduzida em juízo é apenas de pretensão insatisfei-
ta, e não de pretensão contestada, como acontece com o processo de cognição.
Por isso, o conhecimento do pedido executivo como pretensão de condenação im-
porta julgamento extra petita, atingindo matéria estranha à litis contestatio.
A conversão, na espécie, não ficaria restrita ao campo do procedimento; alteraria o
próprio pedido, o que esbarraria no preceito do art. 264 do CPC/1973 (após a cita-
ção, é vedado ao autor modificar o pedido ou a causa de pedir, sem o consentimento

13 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 51. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2016, v. III, p. 242.
37
Amanda Terumi Souza Takata
do réu).
A sistemática do NCPC não é diferente. 14
Também é importante destacar que, quando se fala na responsabilidade que tal
título acarreta, sua força gera um efeito tão imediato que, em caso de inadimplência
do devedor, o título executivo já garante uma certa prioridade perante o restante
dos credores, salvo exceções previstas em lei.
Portanto, não remanescem dúvidas do “peso” que a força executiva atribuída a
um documento acarreta, do ponto de vista de suas consequências jurídicas, pelo
que se impõe o rigor na compreensão de seus requisitos formais.

3.2 Dos títulos executivos extrajudiciais

Têm-se, conforme exposto anteriormente, que esta modalidade de título neces-


sita de previsão expressa em lei para ser considerado como tal. Existe, justificada-
mente, um cuidado especial para com esses títulos, uma vez que, devido à seguran-
ça legislativa que os reveste, é possível utilizar diretamente uma execução forçada –
ou seja, “pula-se” o processo de conhecimento, satisfazendo a pretensão do credor
de modo imediato.
É fácil vislumbrar exemplos, visto que tais títulos estão inseridos em nosso coti-
diano. Um dos mais famosos é o cheque: sua executividade é direta, de modo que,
se alguém for, por exemplo, dar um cheque como pagamento de compras no su-
permercado, ele é aceito e pode ser executado direto da conta bancária inscrita nele.
Caso haja insuficiência de fundos, o supermercado pode protestar o título e, ainda,
ingressar com execução forçada para receber a quantia devida – ele não ingressará,
portanto, no rito comum do processo civil.
Assim, o rol de títulos executivos extrajudiciais é taxativo, exposto no art. 784 do
NCPC da seguinte forma:
Art. 784. São títulos executivos extrajudiciais:

14 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 51. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2016, v. III, p. 242.
38
A força executiva dos contratos eletrônicos com assinatura digital...
I - a letra de câmbio, a nota promissória, a duplicata, a debênture e o cheque;
II - a escritura pública ou outro documento público assinado pelo devedor;
III - o documento particular assinado pelo devedor e por 2 (duas) testemunhas;
IV - o instrumento de transação referendado pelo Ministério Público, pela Defenso-
ria Pública, pela Advocacia Pública, pelos advogados dos transatores ou por concili-
ador ou mediador credenciado por tribunal;
V - o contrato garantido por hipoteca, penhor, anticrese ou outro direito real de ga-
rantia e aquele garantido por caução;
VI - o contrato de seguro de vida em caso de morte;
VII - o crédito decorrente de foro e laudêmio;
VIII - o crédito, documentalmente comprovado, decorrente de aluguel de imóvel,
bem como de encargos acessórios, tais como taxas e despesas de condomínio;
IX - a certidão de dívida ativa da Fazenda Pública da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios, correspondente aos créditos inscritos na forma da lei;
X - o crédito referente às contribuições ordinárias ou extraordinárias de condomí-
nio edilício, previstas na respectiva convenção ou aprovadas em assembleia geral,
desde que documentalmente comprovadas;
XI - a certidão expedida por serventia notarial ou de registro relativa a valores de
emolumentos e demais despesas devidas pelos atos por ela praticados, fixados nas
tabelas estabelecidas em lei;
XII - todos os demais títulos aos quais, por disposição expressa, a lei atribuir força
executiva.
§ 1o A propositura de qualquer ação relativa a débito constante de título executivo
não inibe o credor de promover-lhe a execução.
§ 2o Os títulos executivos extrajudiciais oriundos de país estrangeiro não dependem
de homologação para serem executados.
§ 3o O título estrangeiro só terá eficácia executiva quando satisfeitos os requisitos de
formação exigidos pela lei do lugar de sua celebração e quando o Brasil for indicado
como o lugar de cumprimento da obrigação.
Nota-se que, embora taxativo, muitas das espécies de título executivo extrajudi-
39
Amanda Terumi Souza Takata
cial não são especificadas em minúcias – é o caso dos títulos cambiários (inciso I),
que ficam a cargo de lei própria para melhor detalhamento, ou, ainda, da escritura
pública (inciso II), que possui parcialmente uma identificação, pois seu rol de pos-
sibilidades formais e materiais é diverso.
Não surpreende que, cedo ou tarde, os contratos eletrônicos pudessem ser en-
quadrados como tal. Conforme o REsp mencionado anteriormente, ele agora pos-
sui essa função se for um contrato de mútuo, sendo, então, inserido no inciso III do
referido artigo. Mas em que isso implica?
De forma exemplificativa, pode-se vislumbrar alguém realizando um contrato
de empréstimo bancário online – todo o processo foi executado pela Internet. Teo-
ricamente, essa pessoa necessitaria da sua assinatura posta e da assinatura de mais
duas testemunhas para ser considerado um título executivo extrajudicial. Entretan-
to, a autoridade certificadora da assinatura a ser utilizada na celebração do contrato
é, agora, considerada suficiente para afirmar a validade do contrato. Isso significa
que, para esta modalidade contratual, tem-se a dispensa dos requisitos formais de
um contrato normal, de forma que o direito pôde se adequar e exercer sua tutela
jurisdicional perante este tema.
Tal medida não deixou também de gerar dúvidas quanto à própria segurança ju-
rídica a ser afetada: embora eficaz, a assinatura digital passa por problemas, sendo
seu grande desafio comprovar a autenticidade de um documento a ser assina-
do/probado por ela. Imaginem: se, no mundo real, com o contato físico, a presença
do sujeito e o desenvolvimento da tutela jurisdicional, ainda há recorrentes ocor-
rências de fraudes, estelionatos e entre outros delitos patrimoniais, quais são os
riscos em um ambiente no qual se fazem ausentes todos os requisitos acima menci-
onados?
Há que se pensar no acesso, também, a este tipo de prova. A Internet é um re-
curso ainda em expansão no Brasil e, considerando-se o princípio do acesso à justi-
ça, a temática pode gerar problemas: imagine-se alguém que celebrou um contrato
eletrônico de mútuo com uma empresa e, ainda, considere-se que esta adotou a
postura de suprimir grande número de estabelecimentos físicos e passou a se utili-
zar das plataformas online. O contrato de mútuo, que cumpriu os devidos requisi-
tos do REsp, pode ser usado caso essa pessoa se torne inadimplente. Mas, e se ocor-

40
A força executiva dos contratos eletrônicos com assinatura digital...
rer alguma disfunção no servidor responsável? E se o arquivo se perder por uma
falha no sistema ou, por uma queda de energia, não foi possível utilizar o título no
prazo legal?
Embora um pouco distantes, até mesmo absurdas, tais situações não são impos-
síveis, visto que a Internet, embora cheia de possibilidades, ainda demanda cuida-
dos especiais em relação aos documentos digitais. O modo como o Judiciário deve
proceder em situações assim, para evitar possíveis conflitos num futuro muito pró-
ximo, é o desafio mais premente a ser enfrentado sob essa nova ótica.

Considerações finais

Ante o exposto e as devidas reflexões já realizadas, entende-se que, como já tão


reforçado durante todo o texto, o direito digital é uma realidade contemporânea em
constante mudança – daí a dificuldade do meio jurídico em lidar com essa matéria
e sua regularização.
Entretanto, é inegável que houve expressivo avanço jurisdicional em relação ao
REsp n° 1.495.920/DF. As aplicações práticas deste recurso possibilitaram uma
tutela maior sobre os contratos eletrônicos, assim como gerou impacto quanto à
própria dinâmica das relações contratuais virtuais, visto que, ao considerar o con-
trato de mútuo como título executivo extrajudicial, há um novo procedimento, uma
nova relação a ser tratada pelo direito.
Há de se tomar a devida cautela ao aplicar tal medida na prática, já que a Inter-
net, por si só, passa por melhorias constantes de segurança, mas é falível por diver-
sas razões, algumas das quais se comentou anteriormente, sendo a preocupação
com fraudes probatórias a mais grave delas.
Por fim, vale ressaltar que, conforme tal medida, há um “reforço”, um incentivo
à uma maior segurança ao consumidor envolvido, bem como para com credores
em geral. Ainda não se sabe ao certo como a jurisprudência lidará com as ações de
execução dos títulos extrajudiciais deste tipo, porém, é presumível que, em um fu-
turo muito próximo, a adequação do direito e a regulamentação dos contratos ele-
trônicos estarão mais evoluídas das que hoje.

41
Amanda Terumi Souza Takata

Referências

AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Princípios do novo direito contratual e desregu-


lamentação do mercado – Direito de exclusividade nas relações contratuais de
fornecimento – Função social do contrato e responsabilidade aquiliana do ter-
ceiro que contribui para o inadimplemento contratual. Revista dos Tribunais,
São Paulo, v. 750, p. 113-120, abr. 1998.
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nível em: < https://eff.org/cyberspace-independence >. Acesso em 29 jan. 2019.
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MORISAVA, Nilson Mineo. Validade da Assinatura Digital no Contrato Eletrôni-
co. 2007. 84 f. Monografia (Especialização) - Curso de Direito, Centro Universi-
tário das Faculdades Metropolitanas Unidas, Faculdades Metropolitanas Uni-

42
A força executiva dos contratos eletrônicos com assinatura digital...
das, São Paulo, 2007.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 51. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2016, v. III.

43
O DIREITO AO ESQUECIMENTO NA ERA DA
SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

2
Átila Pereira Lima

Una memoria es una invitación a la intimidad de otra persona.


— ISABEL ALLENDE

Introdução

Contemporaneamente, os indivíduos vivem em uma sociedade de informação e


comunicação, tendo como implicação o uso cada vez mais frequente de redes soci-
ais e aplicativos, de celebração de contratos digitais, de uso da assinatura digital,
dentre outras interações envolvendo a tecnologia.
Dessa forma, há uma intensa e volumosa transmissão de dados e informações,
em velocidade cada vez maior, de forma que qualquer dado, foto, vídeo ou conteú-
do pode percorrer todo o planeta em questão de segundos, ultrapassando facilmen-
te as barreiras temporais e/ou territoriais.
Tal fato só foi possível a partir do desenvolvimento da Internet, que propiciou a
formação de redes de dados mais amplas e acessíveis. Entretanto, diferentemente de
outros canais de comunicação, a disseminação e a apuração da veracidade das in-
formações e a ética na divulgação de tais informações estão a cargo exclusivamente

45
Átila Pereira Lima
do usuário, que pode dispô-las como melhor lhe aprouver.1
Nesse contexto, uma informação, independentemente de sua veracidade, pode
percorrer o mundo em poucos minutos. Assim como o fluxo de divulgação das
informações é dinâmico e sua propagação se dá em ritmo acelerado, as consequên-
cias destas informações podem surgir de modo igualmente veloz e em proporções
inimagináveis.
Não obstante, o presente capítulo tem como base o armazenamento das infor-
mações por um período de tempo indefinido e, também, sobre a possibilidade de
que esses dados sejam republicados a qualquer tempo, a um custo virtualmente
nulo. 2
Logicamente, com o avanço no fluxo das informações compartilhadas pelos
meios eletrônicos, através da Internet, houve e há um consequente avanço no que
tange ao armazenamento destes dados. Como simples exemplo, a cada nova leva de
smartphones3, a memória que estes aparelhos possuem é aumentada, quase que
sempre duplicada, acompanhando a ‘Lei de Moore’4, que postula a duplicação da
capacidade de processamento de informação a cada 18 meses. Não obstante, a dis-
ponibilização de armazenamento e nuvem, revolucionou o campo do armazena-

1 Nas lições de Antônio Lago Júnior: “A Internet, portanto, nada mais é do que uma grande rede
mundial de computadores, na qual pessoas de diversas partes do mundo, com hábitos e culturas
diferentes, se comunicam e trocam informações. Ou, em uma só frase, é a mais nova e maravi-
lhosa forma de comunicação existente entre os homens”. (LAGO JÚNIOR, Antônio. Responsa-
bilidade Civil por atos ilícitos na Internet. São Paulo: LTr, 2001, p. 2.)
2 Confira-se, sobre isso: RIFKIN, Jeremy. The zero marginal cost society: the Internet of Things,
the collaborative commons, and the eclipse of capitalism. Nova Iorque: Palgrave MacMillan
Trade, 2014.
3 Segundo a Oxford Dictionaries, tem-se o seguinte conceito para smartphone: “A mobile phone
that performs many of the functions of a computer, typically having a touchscreen interface, Inter-
net access, and an operating system capable of running downloaded apps”. Disponível em: <
https://en.oxforddictionaries.com/definition/smartphone >. Acesso em: 20 fev. 2019.
4 Conceito estabelecido em 1865 pelo químico, escritor e cofundador da Intel Corporation Gor-
don Earl Moore, através da profecia sobre a evolução de hardware, proferindo que a cada 18 me-
ses a capacidade de processamento de dados dos computadores seria aumentada em 100 por
cento, ou seja, o dobro, sem o aumento do custo.
46
O direito ao esquecimento na era da sociedade da informação
mento de dados como um todo.
Ainda quanto ao armazenamento de dados, não há como deixar de mencionar
o, infelizmente cada vez mais frequente, vazamento de dados. Diante deste cenário
de insegurança para o compartilhamento e armazenamento de dados e informa-
ções, faz-se necessário analisar soluções e alternativas que visem garantir segurança
jurídica a princípios constitucionais como segurança, privacidade e, por óbvio, a
própria dignidade da pessoa humana.
Nesse diapasão, fatos ocorridos há muito tempo podem ser retomados pela im-
prensa com objetivos outros que não atender ao interesse público. Da mesma for-
ma, indivíduos comuns, por meio da Internet, podem retomar informações passa-
das, ou ficar relembrando constantemente uma informação que não apresenta mais
relevância para o público ou que sequer seja verdadeira. Ou, pior ainda, isto pode
ser feito com o intuito de constranger e/ou humilhar reiteradas vezes um indivíduo.
Assim sendo, a pessoa envolvida em alguma situação, pode ficar eternamente
vinculada a determinado fato de seu passado, que poderá ser constantemente
relembrado, seja pela mídia, seja por usuários da Internet. Isto pode afetar sua vida
em inúmeros aspectos, seja na sua respeitabilidade perante a sociedade, em sua via
profissional, ou mesmo em hipóteses de afronta à sua honra subjetiva. Uma
pesquisa5 realizada com 18 vítimas mostra que a denominada pornografia de
vingança, feita com base em vídeos e fotos tirados em momentos de intimidade e
indevidamente divulgados, causa múltiplos problemas de saúde mental, de forma
similar à violência sexual.
Este cenário, aliado ao senso comum que ainda permeia a mentalidade de
inúmeras pessoas de que a internet seria uma “terra sem lei”, bem como a escassez
de legislação e jurisprudência a respeito destas situações gera um sentimento de
incerteza e insegurança, e, por vezes, de desamparo diante de circunstancias nas
quais há um abuso do uso das tecnologias no que tange ao uso e à manipulação de
informações.

5 BATES, Samantha. Revenge porn and mental health: a qualitative analysis of the mental health
effects of revenge porn on female survivors. Feminist Criminology, Londres, v. 12, n. 1, p. 22-42,
2017.
47
Átila Pereira Lima
Assim como há uma evolução nas tecnologias utilizadas e no uso das
informações, necessário se faz que as instituições estatais e o Judiciário se adaptem
a esta nova realidade; a realidade de uma sociedade altamente informatizada,
globalizada e digital, para que, mesmo nesse cenário, se consiga assegurar o
exercício de direitos fundamentais como a privacidade e a dignidade da pessoa
humana.
Dessa forma surge o ‘direito digital’, que se propõe a atuar em uma situação de
transição, de mutação jurídica frente às novas relações sociais baseadas no uso da
tecnologia, mormente neste capítulo, no que tange ao direito ao esquecimento, com
foco nas web-violências.

1 Breves apontamentos sobre o direito digital

O chamado direito digital surge como um ‘ramo’ atípico, mas em grande ascen-
são no âmbito jurídico, principalmente por se propor a encontrar soluções para as
questões e impasses que envolvem o uso da tecnologia, cada dia mais comuns em
nossa sociedade, de modo interdisciplinar.
Infelizmente, o Estado não possui capacidade para acompanhar a velocidade das
transformações tecnológicas e legislar sobre os imprevisíveis e incontáveis desdo-
bramentos dos fatos e relações jurídicas que nascem a partir do uso das ferramentas
eletrônicas.
Segundo Samuel Huntington6, o maior desafio da evolução humana é cultural.
Assim, ao direito cabe o mesmo desafio, uma vez que, como instrumento de regula-
ção de condutas, deve refletir a realidade da sociedade.
Para Patrícia Peck Pinheiro, o direito digital não é algo novo, mas, sim, um pro-
duto derivado da legislação atual, uma alternativa às mudanças da sociedade, uma
forma de a legislação não se tornar obsoleta:
Não devemos achar, portanto, que o direito digital é totalmente novo. Ao contrário,

6 HUNTINGTON, Samuel P. The clash of civilizations and the remaking of World Order. Lon-
dres: Simon & Schuster, 2011, p. 207.
48
O direito ao esquecimento na era da sociedade da informação
tem ele sua guarida na maioria dos princípios do Direito atual, além de aproveitar a
maior parte da legislação em vigor. A mudança está na postura de quem a interpreta
e faz sua aplicação. (...) O Direito tem de partir do pressuposto de que já vivemos
uma sociedade globalizada. Seu grande desafio é ter perfeita adequação em diferen-
tes culturas, sendo necessário, por isso, criar a flexibilidade de raciocínio, nunca as
amarras de uma legislação codificada que pode ficar obsoleta rapidamente.7
Existem fundamentos e normas jurídicas que asseguram ao direito digital supor-
te teórico e científico, além de ser um constante objeto de estudo e diálogo. Entre-
tanto, a evolução legislativa deste assunto tem se mostrado lenta e, em muitas situa-
ções sociais, até mesmo insuficiente.
Ainda assim, o direito existe e insiste em se impor, através de interpretações cri-
ativas, uso de analogias e releitura de doutrinas, e em pautar os fatos sociais sobre a
realidade digital, de forma que esse novel capo de assimilação da Ciência Jurídica
tende a despontar no seio acadêmico e a ser cada vez mais utilizado na formação
jurisprudencial e doutrinária dos operadores de direito.
Necessário destacar que por mais tenro que o direito digital seja, ele não se uni-
fica em uma codificação singular, ou seja, está e caso não esteja ainda, provavel-
mente estará presente em praticamente todos os outros ramos do Direito, ou seja,
onde houver o uso de tecnologia eletrônica e digital como instrumentos de ação ou
de propagação dos pensamentos humanos, lá estará o direito digital, mesmo que
tardiamente – daí a razão pela qual não se lhe considera um ‘ramo’ jurídico propri-
amente dito.
Qualquer lei que se proponha a tratar de novos institutos ou situações jurídicas
deve ser genérica o suficiente para sobreviver ao tempo, e flexível para atender às
diversas situações que podem ser englobadas por um único assunto, de forma que a
velocidade das transformações é a grande barreira à legislação sobre o direito digi-
tal. Essa problemática legislativa, no entanto, não é novidade, uma vez que a obso-
lescência das leis sempre foi um dos fatores de discussão no meio jurídico.
Assim, há determinadas ramificações que encontram e necessitam de certa pre-
cedência nos estudos do direito digital, seja pela importância teórica, seja por sua

7 PINHEIRO, Patrícia Peck. Direito digital. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 35.
49
Átila Pereira Lima
maior presença na sociedade, o que desencadeia urgência em sua aplicação. É o
caso dos direitos constitucionais fundamentais que são protegidos ou ameaçados
pela tecnologia, de onde se extrai um pretenso ‘direito constitucional digital’, o qual
está inteiramente ligado à discussão sobre o direito ao esquecimento.
Entretanto, a territorialidade muitas vezes dificulta a aplicação do direito. Este
problema não é restrito à Internet, mas está presente em toda a sociedade globali-
zada, em que inúmeras vezes não é possível determinar de qual território acontece-
ram as relações jurídicas8, os fatos e seus efeitos, sendo difícil determinar que nor-
ma aplicar utilizando os parâmetros tradicionais e, até mesmo, assegurando a sobe-
rania de cada nação.
Para melhor elucidação, pode-se, então, traçar um paralelo tomando como refe-
rência o direito internacional. Por ele, quem se propôs a estabelecer e identificar a
norma a ser aplicada, quando ocorrer a extrapolação dos limites territoriais dos
ordenamentos, deve sempre averiguar a origem do ato e onde ocorreram seus efei-
tos danosos para que possa ser aplicado o direito do país em que teve origem ou no
qual ocorreram os efeitos do ato. Fato é que o direito é a combinação de compor-
tamento e linguagem e, hoje, esses dois elementos são dinâmicos e mutáveis, o que
demonstra que um direito engessado não obterá uma aplicabilidade tão eficaz.
Por fim, pode-se considerar que o grande instrumento de poder na Era Digital é
a informação, não só a recebida ou produzida, mas sim a informação armazenada,
devendo os novos institutos jurídicos se dedicarem aos modos sobre como lidar
com essa questão dentro e fora das fronteiras territoriais.

2 O direito ao esquecimento na era digital

O direito ao esquecimento surge em meio a controvérsias, contudo, ele pode ser


entendido como o direito de não permitir que um fato, ainda que verídico, ocorrido

8 Como exemplo, podemos citar o Dec.-Lei nº 4.657/42 (Lei de Introdução às Normas do Direito
Brasileiro), art. 9º, § 2º: “A obrigação resultante do contrato reputa-se constituída no lugar em
que residir o proponente”; e o Código Civil, art. 435: “Reputar-se-á celebrado o contrato no lu-
gar em que foi proposto”.
50
O direito ao esquecimento na era da sociedade da informação
em determinado momento anterior, seja exposto ao público em geral, seja na mídia
escrita, falada ou virtual, causando-lhe sofrimento ou transtornos. Em outras pala-
vras, é o direito pelo qual as pessoas, diante de situações embaraçosas ou de erros
por elas praticados no passado e que não tenha mais relevância para a sociedade,
não precisariam conviver permanentemente com eles, de modo que sua violação
acarretaria um dano moral.9
Nesse sentido, o Enunciado 531 do CJF representa um importante avanço sobre
o tema:
Enunciado: A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação
inclui o direito ao esquecimento.
Justificativa: Os danos provocados pelas novas tecnologias de informação vêm-se
acumulando nos dias atuais. O direito ao esquecimento tem sua origem histórica no
campo das condenações criminais. Surge como parcela importante do direito do ex-
detento à ressocialização. Não atribui a ninguém o direito de apagar fatos ou
reescrever a própria história, mas apenas assegura a possibilidade de discutir o uso
que é dado aos fatos pretéritos, mais especificamente o modo e a finalidade com que
são lembrados.
Segundo Martinez10:
Em outras palavras o direito ao esquecimento é a possibilidade de defesa que, como
uma redoma, permite a um particular que não autorize a veiculação ou retire desta
um fato pretérito que o expõe ao público em geral, causando-lhe sofrimento ou
transtornos. Pode-se dizer que esta esfera de proteção funciona como um
mecanismo de isolamento direcionado à informação intertemporal.
Nesse sentido, pode-se dizer que o direito ao esquecimento nada mais é que o
direito de determinar o que fazer com dados a respeito de si mesmo, permitindo-se
apagá-los ou retificá-los, bem como ao direito de não ter aspectos da sua vida
expostos sem seu consentimento.

9 NADER, Paulo. Curso de direito civil: responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Forense, 2014, v. 7,
p. 259.
10 MARTINEZ, Pablo Dominguez. Direito ao esquecimento: a proteção da memória individual na
sociedade da informação. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 81.
51
Átila Pereira Lima
A cada dia que passa, há uma maior quantidade de dados arquivada a respeito
das pessoas. Segundo o jurista italiano e ex-presidente da Comissão Italiana de
Proteção de Dados e do Grupo Europeu de Proteção de Dados, Stefano Rodotà,
estamos vivemos em uma era do registro.11 Nesse sentido, há de se destacar que, na
grande maioria dos casos, as pessoas divulgam, por vontade própria, na rede de
computadores, um excessivo número de informações, sobretudo de cunho pessoal:
são dados como nome, fotos, lugares que frequentam etc.
Não obstante, esses dados podem e, comprovadamente, são utilizados por
terceiros para objetivos diversos daqueles que os usuários queriam, além de serem
difíceis de ser apagados, podendo ser divulgados e utilizados muito tempo após sua
inserção na web, uma vez que, ao contrário do que muitos pensam, os dados e
informações inseridos na web nãos se apagam com a mera exclusão. Todas as
imagens, fotos, textos, comentários e similares postados, mesmo que há anos, estão
arquivados na rede.12
Mesmo excluídos, estes dados poderão ser rastreados com as ferramentas
corretas fazendo com que, em questão de minutos, os erros do passado voltem pra
atormentar o indivíduo no presente, ou, ainda, gerando graves efeitos no futuro.
Ademais, ainda que houvesse efetividade na ação de apagar dados da Internet,
há grandes dificuldades devido à perda do nome de usuário e senha, ou como a
desativação do e-mail utilizado para se cadastrar no site, de forma que fotos muito
antigas de usuários permanecem disponíveis, sem que os donos consigam removê-
las.
Para Cristiano Nabuco de Abreu13 a Internet tem memória eterna, de forma que
permite evocar dados muito antigos e incertos, o que pode causar uma ofensa à

11 RODOTÀ, Stefano. L’identità al tempo di Google. La Repubblica, Roma, 14 dez. 2009. Disponí-
vel em: <https://bit.ly/2IklhmG>. Acesso em: 20 fev. 2019.
12 Confira-se: MAYER-SCHÖNBERGER, Viktor. Delete: the virtue of forgetting in the digital age.
Princeton: Princeton University Press, 2009.
13 ABREU, Cristiano Nabuco de. Dependência de Internet. In: ABREU, Cristiano Nabuco de;
EISENSTEIN, Evelyn; ESTEFENON, Susana Graciela Bruno (Org.). Vivendo esse mundo digi-
tal: impactos na saúde, na educação e nos comportamentos sociais. Porto Alegre: Artmed, 2013,
p. 95-100.
52
O direito ao esquecimento na era da sociedade da informação
privacidade e, até mesmo, à memória individual – aspecto integrante da dignidade
humana, que é, como se sabe, inerente ao indivíduo.
Não há dúvidas de que a Internet propicia a construção de uma “personalidade
virtual”, que, em muitos casos, não se relaciona com a realidade, além de poder ser
desatualizada e descontextualizada. Assim, quando o indivíduo não consegue ter
controle sobre informações a seu próprio respeito, direitos como a intimidade e a
honra, entre outros, acabam maculados.
Assim, o direito ao esquecimento, no âmbito da Internet, se mostra um tema
extremamente complexo porque, por excelência, a Internet é um ambiente que não
esquece o que nela é divulgado. Diferentemente de nós humanos, para quem a
regra é esquecer e lembrar é a exceção, as informações dispostas na web
permanecem armazenadas por tempo indeterminado, podendo ser acessadas sem
qualquer tipo de censura e sem qualquer controle de quem as armazena, de quem
as utiliza, de quem as vende ou de quem as controla.
Luciana Helena Gonçalves entende o direito ao esquecimento como o poder de
escolha sobre quais informações a respeito de si mesmo permanecerão
veiculadas no ambiente da Internet, de forma que o direito ao esquecimento
envolveria o direito construção da identidade da pessoa, um direito de editar,
remover ou apagar informações pessoais que não são mais atuais e relevantes para a
construção da personalidade perante a sociedade, visto que os impactos não são
percebidos apenas no meio digital, mas também em sua vida real. Em síntese, de
garantir ao indivíduo o direito de decidir o que fazer com seus próprios dados,
ainda que, na prática, seja quase impossível remover uma informação de todos os
lugares.14
Diariamente, surgem novos casos em que a performance na Internet, o uso de
dados ou a permanência de dados na Internet causa lesão aos indivíduos nas mais
diversas esferas e sob os mais variados graus de impacto. São casos como o de Stacy
Snyder que teve sua carreira de professora universitária abortada em razão de uma

14 GONÇALVES, Luciana Helena. O direito ao esquecimento na era digital: desafios da regulação


da desvinculação de URLs prejudiciais a pessoas naturais nos índices de pesquisa dos buscadores
horizontais. Dissertação de Mestrado. Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Var-
gas. 2016.
53
Átila Pereira Lima
foto online postada por ela mesma, com chapéu de pirata uma suposta bebida
alcoólica em um copo de plástico, em foto que foi intitulada como drunkey pirate
(pirata bêbado).15 A administração da Universidade considerou seu
comportamento impróprio para uma professora e negou seu certificado. Apesar de
Snyder ter alegado que a foto não revelada a natureza do líquido em seu copo e
mesmo que mostrasse, ela já tinha idade suficiente para beber álcool em uma festa
privada, suas alegações não surtiram efeito.
Já para Andrew Feldmar, um artigo escrito em 2001, no qual o mesmo alegava
ter usado LSD na década de 1960, fez com que esse canadense de quase 70 anos
ficasse detido na Polícia americana da Fronteira por quatro horas e só fosse liberado
após assinar uma declaração confirmando que havia usado drogas há quatro
décadas atrás, contudo, mesmo assim foi impedido de entrar nos Estados Unidos.16
O espanhol Mario Costeja Gonzalez ajuizou uma ação contra a Google Spain
como o objetivo de retirar do buscado o resultado de uma antiga matéria do jornal
La Vanguardia de 1998, republicada e/ou digitalizada para a rede na qual constava a
venda se uma de suas propriedades em hasta pública em razão do não pagamento
de dívidas.
O caso Mario Costeja Gonzalez vs. Google Spain foi um dos pioneiros na
aplicação do direito ao esquecimento no campo cibernético. Tal decisão foi
considerada um marco mundial, talvez pelo órgão onde tramitou o processo, qual
seja o Tribunal de Justiça da União Europeia ou pelo seu ineditismo e abrangência,
além de estender aos cidadãos europeus o direito de fazerem pedidos semelhantes
ao Google, sem na necessidade de utilizarem o Judiciário.17
Assim, para garantir o direito ao esquecimento dos seus usuários, a empresa

15 MAYER-SCHÖNBERGER, Viktor. Delete: the virtue of forgetting in the digital age. Princeton:
Princeton University Press, 2009, p. 11-12.
16 MAYER-SCHÖNBERGER, Viktor. Delete: the virtue of forgetting in the digital age. Princeton:
Princeton University Press, 2009, p. 12.
17 UNIÃO EUROPEIA. Processo C-131/12. Grande Seção do Tribunal de Justiça da União Euro-
peia pode ser visualizado em: <
http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?docid=152065&doclang=PT >. Acesso em
04 fev. 2019.
54
O direito ao esquecimento na era da sociedade da informação
Google Inc. disponibilizou um formulário18 online que possibilita a realização de
pedido para o apagamento de links de informações que lhes digam respeito, porém,
o link daquela informação continuará existindo, e ela apenas não poderá mais ser
encontrada por meio do buscador Google – faz-se uma desindexação. Entretanto,
esta concessão não é automática e os pedidos são condicionados à aceitação e
verificação, por meio de processo interno e administrativo realizado pela própria
empresa, sob o argumento de que é necessário equilibrar os direitos de privacidade
do indivíduo ao direito à informação.
Em nossos tribunais pátrios, há casos emblemáticos que envolvem o direito ao
esquecimento. Vários podem ser destacados, a se iniciar pelo caso que envolveu a
apresentadora infantil Xuxa Meneghel, que pleiteou judicialmente a remoção de
vídeos referentes ao filme erótico “Amor, Estranho Amor”, do qual participou no
início de sua carreira, na década de 1970. Na época, a apresentadora se envolvia
com um garoto menor de idade e os filmes eróticos, classificados como
‘pornochanchada’ eram muito comuns e aceitáveis pela sociedade. Contudo, anos
depois, quando se tornou famosa e este filme foi popularizado, associando a
imagem da apresentadora infantil e lhe atribuindo características injuriosas à sua
imagem, como a associando, inclusive, à pedofilia, o pleito de remoção foi
formulado, mas entendeu-se não haver violação apta a justificar seu deferimento.19
Também merece menção o programa “Linha Direta Justiça”, da Rede Globo,
que reencenou o caso Aída Curi20, uma jovem estuprada e assassinada em 1958.

18 GOOGLE. Report of the Advisory Council to Google on the right to be forgotten. Members of
the Council. San Francisco, CA.
19 Assim se pronunciou o Superior Tribunal de Justiça: "(...) Em suma, pois, tem-se que os prove-
dores de pesquisa: (i) não respondem pelo conteúdo do resultado das buscas realizadas por seus
usuários; (ii) não podem ser obrigados a exercer um controle prévio do conteúdo dos resultados
das buscas feitas por cada usuário; (iii) não podem ser obrigados a eliminar do seu sistema os re-
sultados derivados da busca de determinado termo ou expressão, tampouco os resultados que
apontem para uma foto ou texto específico, independentemente da indicação do URL da página
onde estiver inserido (...)”. (STJ. REsp. n. 1.316.921-RJ).
20 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Audiência Pública: direito ao esquecimento na esfera cível.
RE 1.010.606. Relator Min. Dias Toffoli. Disponível em: < https://bit.ly/2D6XzpR >. Acesso em:
12 fev. 2019.
55
Átila Pereira Lima
Seus irmãos pleitearam indenização contra o veículo de comunicação por ter
exibido a história de seu assassinato no programa de televisão. Neste caso, os
julgadores entenderam pela inaplicabilidade do direito ao esquecimento ao
considerar que o acontecimento entrou para domínio público, uma vez que não há
como retratar o caso Aida Curi, sem Aida Curi.21
Isto posto, uma vez que o simples fato de reacender uma informação
desatualizada de alguém pode submetê-lo a sofrimento, escárnio, maculando o
respeito de seus semelhantes, caracteriza-se o aspecto subjetivo dos direitos de
personalidade o que pode ensejar proteção por parte do Estado.
Identificando-se, portanto, a possibilidade de alguém ser ofendido ou
prejudicado pela divulgação de informação pretérita, verifica-se a necessidade de se
tutelar o direito ao esquecimento, uma vez que ninguém deve ser obrigado a
conviver infindavelmente com um fato do passado. Dessa forma, deve ser
permitida ao individuo a liberdade de esquecer, e de ser esquecido, pela sociedade,
das situações com a qual esteve relacionado.
Para uma melhor elucidação, bem como aduzido por Anderson Schreiber22, o
direito ao esquecimento tem suas raízes no Direito Penal, de forma a garantir que,
após cumprida a pena, o condenado por crime não seja obrigado a ser perseguido
indefinidamente pelo delito cometido.
Assim, é o disposto no artigo 202 da Lei de Execuções Penais:
Art. 202. Cumprida ou extinta a pena, não constarão da folha corrida, atestados ou
certidões fornecidas por autoridade policial ou por auxiliares da Justiça, qualquer
notícia ou referência à condenação, salvo para instruir processo pela prática de nova
infração penal ou outros casos expressos em lei.

21 O entendimento foi fixado no julgamento do Recurso Especial nº 1.335.153/RJ, pela 4ª Turma


do Superior Tribunal de Justiça, por três votos a dois. Em síntese, conforme entendimento que
prevaleceu em razão da maioria de votos, a turma julgadora, fazendo a ponderação de valores,
entendeu que o acolhimento do direito ao esquecimento no caso, com a consequente indeniza-
ção, significaria desproporcional afronta à liberdade de imprensa se comparado ao desconforto
gerado pela lembrança.
22 Confira-se: SCHREIBER, Anderson. Direitos da personalidade. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2013.
56
O direito ao esquecimento na era da sociedade da informação
Outro caso prático e comum ao direito ao esquecimento é o caso de concessão
de nova identidade a pessoas que optam por redefinir o sexo biológico por proces-
sos de transgenitalização23, casos em que deve ser realizada, em seu assento de re-
gistro civil, a averbação de sua redefinição sexual, permitindo a estes indivíduos o
esquecimento de seu estado anterior em caso de eventuais consultas realizadas por
terceiros, bem como concedendo a estes todos os direitos relativos ao novo gênero.
Diversos são os dispositivos jurídicos utilizados de forma análoga e extensiva
para justificar o direito ao esquecimento, seja designado no instituto da prescrição,
seja no disposto no artigo 1.215 do Código de Processo Civil que determina a inci-
neração de processos arquivados há mais de cinco anos, ou ainda, até mesmo pre-
visto na Constituição ao ser considerado como um desdobramento do direito à
privacidade24.
Necessário destacar que a Argentina foi o primeiro país latino-americano a
apresentar uma lei de proteção de dados: a Ley nº 25.236/2000.25 O referido diplo-
ma tem por objetivo a proteção integral de dados pessoais para garantir o direito à
honra e à intimidade das pessoas, e, ademais, o texto trata de todas as questões refe-
rentes ao uso de dados dos cidadãos que estejam gravados em arquivos, registros,
bancos de dados ou outros, definindo procedimentos e punições a quem utilizar de
forma errônea os dados alheios e vedando a utilização de dados recolhidos de for-
ma diversa daquela informada ao e pelo usuário.
Já na Europa, as diretrizes de uso de dados remontam ao início da década de
1990, com a edição da Diretiva 95/4626 da União Europeia. Tal diretriz estabelece
que os dados pessoais não podem ser utilizados para objetivos diversos daqueles
para os quais foi colhido, bem como prevê a possibilidade de retificação. Um ponto

23 Cf. BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Disponibilidade dos direitos de personalidade e auto-
nomia privada. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.
24 LIMBERGER, Têmis. O direito à intimidade na era da informática: a necessidade de proteção
dos dados pessoais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 57.
25 ARGENTINA. Lei 25.326, de 30 de outubro de 2000. Lei de proteção de dados pessoais. Dispo-
nível em: < https://bit.ly/1Iqg7y9 >. Acesso em: 20 fev. 2019.
26 PARLAMENTO EUROPEU. Directiva 95/46/CE, de 24 de outubro de 1995. Disponível em: <
https://bit.ly/2v61qyM >. Acesso em: 19 fev. 2019.
57
Átila Pereira Lima
contrário a esta diretriz é o fato de ela ter sido confeccionada antes que a maior
parte da população tivesse acesso à Internet, o que levou à sua revogação, no ano de
2018, com a criação do Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR).27
No mesmo ano de 2018, o Senado Federal brasileiro aprovou o Projeto de Lei da
Câmara nº 53/201828, que terá vigor a partir de agosto de 2020 (após alteração reali-
zada pela Medida Provisória nº 869/2018), e que alterou o Marco Civil da Internet.
O texto da lei foi inspirado na GPDR europeia e se limita ao uso e tratamento de
dados, tanto que o artigo 4º afasta a aplicação da legislação a determinados casos,
como os de dados pessoais tratados por pessoa física para fins exclusivamente pes-
soais ou para fins exclusivamente artísticos ou acadêmicos, o que podemos consi-
derar que deixa o direito ao esquecimento novamente desamparado.
Contudo, o fato de ainda não existir uma positivação específica não impede o
reconhecimento e aplicação do direito ao esquecimento ou de diplomas específicos
e efetivos ao controle do uso de dados pessoais. Isso porque o reconhecimento des-
te direito impõe a formulação de um questionamento muito relevante acerca de
quais seriam seus limites, quando este poderia ser invocado e quais são os paradig-
mas a serem utilizados. Isto porque sua aplicação implicará em uma obrigação de
não fazer, qual seja, a proibição de veiculação de determinada informação, ou em
uma obrigação de fazer, qual seja, a determinação de apagar determinados dados.
Levando-se em consideração que o direito à liberdade de expressão, assim como
o direito ao acesso à informação são direitos constitucionalmente previstos,
conclui-se que o direito ao esquecimento gera um conflito entre direitos
fundamentais.

3 Do conflito de direitos fundamentais

O direito de garantir ao indivíduo que este determine e controle o acesso e a di-


vulgação às informações antigas a seu respeito pela mídia ou por usuários da Inter-

27 Disponível em: < https://eugdpr.org/ >. Acesso em: 12 fev. 2019.


28 BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei da Câmara nº 53, de 2018. Disponível em: <
http://www.senado.leg.br/ >. Acesso em: 16 fev. 2019.
58
O direito ao esquecimento na era da sociedade da informação
net, ou o direito de possibilitar que dados pessoais sejam removidos da Internet,
fazem com que os princípios da liberdade de expressão e do direito à informação se
choquem com o direito ao esquecimento, entendido como um direito de autode-
terminação quanto aos próprios dados, ou seja, um direito de personalidade que,
nas palavras de Flávio Tartuce29, prescinde de previsão expressa em nosso ordena-
mento jurídico para ser reconhecido e tutelado.
De acordo com Ferrajoli30, historicamente, os direitos fundamentais auxiliam a
compreensão do Estado de Direito e da própria democracia. Apesar dos inúmeros
debates envolvendo esta temática, além da dificuldade em sua conceituação, fato é
que há, em determinado tempo, um conjunto de direitos e liberdades institucio-
nalmente reconhecidos e garantidos pelo ordenamento jurídico de um Estado, in-
dependente de pequenas mudanças e ajustes de Estado para Estado. São, em sínte-
se, direitos que visam à segurança jurídica, ao bem estar, à dignidade e à liberdade
do indivíduo frente ao Estado ou a outrem.
Nesse sentido, aduz Arnaldo Rizzardo:
Os direitos de personalidade são essenciais à plena existência da pessoa humana, à
sua dignidade, ao respeito, à posição nas relações com o estado e com os bens, à fi-
nalidade última que move todas as instituições, eis que tudo deve ter como meta
maior o ser humano.31
Para Dalmo de Abreu Dallari, “esses direitos são considerados fundamentais
porque sem eles a pessoa humana não consegue existir ou não é capaz de se
desenvolver e participar plenamente da vida”.32 Assim, os direitos fundamentais
são essenciais para que todos os indivíduos existam e sejam capazes de se
desenvolver em condições iguais, participando plenamente da vida social.
O fato de o direito ao esquecimento não estar positivado na Constituição não

29 TARTUCE, Flávio. A tutela humana e o contrato. In: SIMÃO, José Fernando; BELTRÃO, Sílvio
Romero (Coord.). Direito civil: estudos em homenagem a José de Oliveira Ascensão – direito
privado. São Paulo: Atlas, 2015, v. 2, p. 37-61.
30 Cf. FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantias. La leu del más débil. Madri: Trotta, 1999.
31 RIZZARDO, Arnaldo. Parte geral do Código Civil. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 137.
32 DALLARI, Dalmo de Abreu. Direitos humanos e cidadania. São Paulo: Moderna, 1998, p. 7.
59
Átila Pereira Lima
exclui ou reduz a necessidade de sua tutela e/ou aplicação, visto que é possível a
existência de direitos fundamentais que não se encontrem previstos na
Constituição, desde que seu conteúdo seja equivalente ao dos direitos
fundamentais, ou seja, refira-se, dentre outros, à dignidade da pessoa humana.
Principalmente pelo fato de que nossa Carta Magna não elenca os direitos
fundamentais como um rol taxativo, conclui-se pela existência de direitos
fundamentais atípicos33, assim como o previsto no artigo 5º, §2º da Constituição
Federal que dispõe:
Art. 5º. (...)
§2º. Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros
decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados
internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
Como já dito, a aplicação do direito ao esquecimento pode gerar um impasse em
razão do exercício de outro direito fundamental. Assim, necessária se faz a
discussão acerca da colisão de princípios constitucionais de direitos fundamentais,
afim de que se verifique a forma para que se possa determinar qual princípio deverá
prevalecer no caso concreto.
Ademais, para a efetividade do exercício do direito ao esquecimento, quando
isto envolver dados veiculados na Internet, torna-se necessário entender o
funcionamento desse meio de comunicação, a territorialidade dessa ofensa ou
crime, bem como a efetividade para o exercício desse direito ante a ausência ou
dificuldade de controle do armazenamento de dados em smartphones, HD’s,
nuvem, cartão de memória, pen drive, dentre outros.
A temática dos direitos fundamentais torna-se cada vez mais relevante, de forma
que este tema está no centro de inúmeros debates e teorias. Há quem defenda que, a
partir do momento em que são definidos, pode ocorrer o que foi qualificado como
colisão entre direitos fundamentais: são casos em que princípios se situam em
sentidos oposto, ou seja, o exercício de um implica a remissão de outro.

33 Para maior aprofundamento, confira-se: SANTOS, Eduardo Rodrigues dos. Direitos fundamen-
tais atípicos: uma análise da cláusula de abertura do art. 5º, §2º, da CF/88. Salvador: Juspodivm,
2017.
60
O direito ao esquecimento na era da sociedade da informação
Para ampla compreensãodo assunto, faz-se necessário trazer à lume as lições de
Canotilho, que caracteriza a colisão de direitos fundamentais nos seguintes termos:
De um modo geral, considera-se existir uma colisão de direitos fundamentais
quando o exercício de um direito fundamental por parte do seu titular colide com o
exercício do direito fundamental por parte de outro titular. Aqui não estamos diante
de um cruzamento ou acumulação de direitos (como na concorrência de direitos),
mas perante um choque, um autêntico conflito de direitos.34
Segundo Alexy35, para as situações de conflito de direitos, é necessário que sejam
utilizados, para aplicação ao caso concreto, os critérios de ponderação ou
precedência. Assim, quando há dois princípios equivalentes em sentido abstrato,
deverá prevalecer, no caso concreto, o que tiver maior peso diante das
circunstâncias, de forma que a tensão entre os princípios não deve ser resolvida
com a atribuição de prioridade absoluta de um sobre o outro, visto que a aplicação
de um não invalida o outro, apenas, naquele caso em questão, mitiga a sua
aplicação.
Dito isso, resta nítido que conceder a alguém o direito de não ver certa
informação a seu respeito ser novamente veiculada, por lhe trazer sofrimento e/ou
permitir que sua imagem seja desassociada a determinado caso, tem como efeito a
supressão do direito de informação quando o fato em questão não se caracteriza
como de interesse público. Assim, o princípio do direito à informação terá que ser
mitigado em favor dos direitos de personalidade, que adquirem maior relevância no
caso.
Não obstante, no que tange à liberdade de expressão, seu conflito com os
direitos da personalidade não é recente. Desde os primórdios do exercício da
atividade da imprensa, seja através de mídias impressas – como jornais ou revistas
– ou, agora, com os periódicos digitais, sempre se discutiu os limites de sua
atividade e de seu exercício, ou seja, até que ponto é válida a intromissão na

34 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 3. ed.


Coimbra: Almedina, 1999, p. 1191.
35 Cf. ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Tradução de Ernesto Garzón Valdés.
Madri: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2001.
61
Átila Pereira Lima
privacidade dos indivíduos para a divulgação de notícias e até onde iria o interesse
público. Dessa forma, as novas tecnologias intensificam o embate e acabam por
promover um novo round deste conflito clássico.
No Brasil, o direito à liberdade de expressão está disposto no artigo 5º, inciso X,
que dispõe que é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de
comunicação, independentemente de censura ou licença.
Contudo, diferentemente do que ocorre nos Estados Unidos da América, este
direito constitucional não se encontra acima de outros direitos também previstos
constitucionalmente e também não decorre deles, de forma que a liberdade de
expressão deve considerar outros direitos fundamentais individuais, devendo ser
mitigada caso macule certos valores, como a vedação ao racismo ou caso ofenda
direitos como a privacidade, a honra e a memória.
Sobre isso, detalha Guilherme Martins:
Em qualquer caso, deve haver uma ponderação de interesses entre o direito ao
esquecimento e a liberdade de imprensa, somente podendo ocorrer o seu
reconhecimento caso se trate de ofensa suficientemente grave à pessoa humana, de
modo a restringir a disseminação de determinada informação.
Mas a principal consequência do exercício do direito ao esquecimento, tendo em
vista o princípio da precaução, deve ser a imposição de obrigações de fazer e não
fazer, consagrando o “direito de não ser vítima de danos”, tendo em vista, após a
ponderação dos interesses envolvidos, a retirada do material ofensivo. A reparação
de danos somente ocorrerá excepcionalmente, caso se trate de ofensa consumada a
situação jurídica existencial, não passível de remédio por meio da execução
específica.36
Assim, faz-se necessário encontrar uma forma de resolver o conflito entre os
direitos fundamentais.
Atualmente, cabe ao Judiciário fazer a ponderação entre estes direitos,
analisando os fatos e efeitos de maneira a decidir qual direito fundamental deve

36 MARTINS, Guilherme Magalhães. O direito ao esquecimento na Internet. In: MARTINS, Gui-


lherme Magalhães; LONGHI, João Victor Rozatti. Direito digital: direito privado e Internet. 2.
ed. Indaiatuba: Foco, 2019, p. 91.
62
O direito ao esquecimento na era da sociedade da informação
prevalecer no caso concreto, visto que não existe regra geral de prevalência,
podendo, em determinado caso, prevalecer um direito constitucional e, em outro
caso, outro direito, de forma que não há como estabelecer uma regra de
prevalência.

Considerações finais

Com a cada vez maior adesão às tecnologias e redes sociais, bem como o uso e
comércio de dados pessoais, o direito ao esquecimento emerge como uma possível
solução para o indivíduo que deseja não ser mais lembrado, em uma era globalizada
e de (hiper)informação na qual nada é esquecido. Por essa razão, o direito ao es-
quecimento vem, progressivamente, sendo admitido em diversos países como um
conceito novo, vinculado ao direito à autodeterminação de dados.
À luz do que foi exposto, percebe-se ser, neste momento, impossível definir os
limites de aplicação do direito ao esquecimento, tendo em vista que sua incidência
representa a colisão de direitos constitucionais, o que faz com que seja
condicionada à analise do caso concreto.
No plano prático-jurídico, pode-se considerar que a principal consequência do
direito ao esquecimento é a imposição de uma obrigação de fazer ou não fazer para
a retirada do material ofensivo, sem excluir a possibilidade do direito à reparação
de danos materiais e/ou morais. Atualmente, no Judiciário brasileiro, não há um
consenso quanto ao direito ao esquecimento, porquanto se tem observado decisões
tanto no sentido de acolher a pretensão autoral, reconhecendo o direito ao
esquecimento, quanto o contrário, decidindo que determinado fato pode ser
reexposto pelos meios de comunicação.
Contudo, ainda que se opte por garantir o direito ao esquecimento, quando tal
fato se dá ou tem repercussão na Internet, o controle dessas informações se torna
muito difícil ou até mesmo impossível. Assim, se mostra necessária uma análise da
comunicação e do armazenamento de dados e informações no ambiente virtual,
bem como do tratamento concedido aos dados informacionais no Brasil e no
exterior.
É impossível conceber o meio virtual como um mundo completamente apartado
63
Átila Pereira Lima
do mundo real, principalmente face às consequências que boatos, fotos e vídeos
divulgados na Internet acarretam nas vidas dos envolvidos. Entretanto, a Internet
criou um espaço alternativo, o mundo virtual, que, mesmo alternativo,
permanentemente interage com o espaço físico.
Nesse sentido, é real a necessidade de se proteger o direito do indivíduo de não
ser eternamente associado a determinado episódio, ou de permitir que um fato do
seu passado o impeça de ter uma vida plena no presente. Contudo, com o advento
diário de novas tecnologias, frente à morosidade da legislação e da atuação do
Estado, garantir este direito no ambiente da Internet se torna cada dia mais difícil
ou até impossível.
Assim, resta demonstrado que há inúmeras ações que devem ser adotadas, den-
tro e fora do Legislativo e do Judiciário, de forma a tornar o uso da Internet saudá-
vel e um ambiente de segurança e exercício de direitos. Deve-se garantir a todos o
exercício pleno de seus direitos, assegurando-se que, futuramente, as pessoas pos-
sam se arrepender, mudar de opinião, evoluir e ser desassociadas de estigmas e até
mesmo crimes do passado, quando estes não fazem mais parte de sua vida ou não
haja interesse social neles.

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66
A VEDAÇÃO À LOCAÇÃO ESPORÁDICA DE
IMÓVEIS RESIDENCIAIS POR APLICATIVO: UM
ESTUDO DE CASO DO AIRBNB À LUZ DA
JURISPRUDÊNCIA DO TJ/RJ

3
Frederico Cardoso de Miranda

Introdução

O objetivo do presente estudo é a análise da controvérsia existente no tocante à


possibilidade ou não da locação esporádica, via aplicativo, da unidade autônoma
em edifício edilício com fim exclusivamente residencial.
O estudo terá como base a decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de
Janeiro – autos n° 0127606-47-2019.8.19.0001 – além de outros julgados, demons-
trando os vários posicionamentos contrários e favoráveis à locação por aplicativos.
Também será analisada a questão do direito de propriedade em conflito com o di-
reito da coletividade.
Com o avanço da tecnologia e a facilitação da locação por intermédio de aplica-
tivos como o AirBnB – um dos aplicativos mais usados para intermediar as loca-
ções esporádicas – buscar-se-á explicar se essas locações realmente ostentam fins
comerciais e se, realmente, desrespeitam as legislações pátrias que regulam o assun-
to.
Não se pretende esgotar o tema, mas, tão somente, elucidar alguns pontos e ori-
entar os condomínios edilícios sobre a possibilidade da proibição ou se essa proibi-

67
Frederico Cardoso de Miranda
ção vai de encontro ao direito fundamental à propriedade.
Com base nessa problemática de direitos que se confrontam, com o avanço pau-
latino da tecnologia, juntamente com o crescente número de locações por curto
prazo através de aplicativos, pretende-se investigar, à luz das normas do direito
imobiliário, bem como da já citada jurisprudência sobre o assunto, se é possível a
proibição dessas locações, e qual é a melhor maneira de abordar o tema dentro do
condomínio.
Nos primeiros tópicos do estudo proposto, será abordado o avanço da tecnolo-
gia e a rapidez com que as relações são construídas. Também será feita uma reme-
moração dos diversos conceitos relacionados ao direito imobiliário, mais especifi-
camente ao direito condominial, para, em seguida, averiguar se o direito de propri-
edade se sobrepõe ao direito da coletividade e qual seria a melhor – ou única – ma-
neira de proibir ou liberar as locações atípicas nos condomínios residenciais.

1 Breves relatos históricos

O surgimento dos condomínios edílicos, como será explicado em um tópico es-


pecífico, se deve principalmente à necessidade de adaptação do homem à chamada
‘crise habitacional’, que levou à uma “nova técnica de construção”, como ensina
João Batista Lopes:
Decorrência de uma série de fatores – duas grandes guerras, êxodo rural, explosão
demográfica, formação das megalópoles, anseio de aquisição da casa própria -, a
“crise habitacional” provocou o surgimento de uma técnica de construção e de um
complexo jurídico cuja perfeita compreensão desafia os estudiosos. 1
Com isso, a solução que se encontrou para a “crise habitacional”, que piorou
devido ao êxodo rural, ao crescimento da população e aos espaços nas cidades cada
vez menores, foi a criação do condomínio, conhecido hodiernamente como ‘con-
domínio edilício’.
De outro modo, o surgimento das tecnologias, como computadores, Internet,

1 LOPES, João Batista. Condomínio. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 21.
68
A vedação à locação esporádica de imóveis residenciais por aplicativo
celulares etc. também advém da necessidade de adaptação e evolução dos seres
humanos, e, devido à velocidade do surgimento de novas tecnologias e de novos
institutos, esses avanços refletem diretamente no mundo jurídico.
Importante ressaltar, ainda fazendo menção às necessidades humanas de adap-
tação, que, em 1969, nasceu pelas mãos dos militares a “Internet”, ou seja, buscan-
do um sistema de comunicação que não pudesse ser destruído por bombardeios e
ligando pontos estratégicos, de uma forma rápida e eficaz, os militares criaram um
sistema de comunicação que atendia aos anseios do Departamento de Defesa dos
Estados Unidos, como destaca Eduardo Vieira:
O embrião do que hoje é a maior rede de comunicação do planeta nasceu em setem-
bro de 1969. Surgiu, quem diria, pelas mãos dos militares.
(...) alguns integrantes do Departamento de Defesa dos Estados Unidos tiveram a
ideia de criar um sistema de comunicação que não pudesse ser destruído por bom-
bardeios e fosse capaz de ligar pontos estratégicos, como centros de pesquisas e ba-
ses das Forças Armadas. Os militares norte-americanos sabiam que possuir um
meio de comunicação eficiente poderia ser a diferença entre ganhar ou perder uma
guerra, como de fato já havia sido exaustivamente comprovado ao longo da histó-
ria.2
Ainda sobre o tema, Foruzan e Mosharraf ensinam que:
Em meados dos anos 1960, os computadores do tipo mainframe localizados em or-
ganizações de pesquisas eram dispositivos isolados. Computadores de diferentes fa-
bricantes eram incapazes de se comunicar uns com os outros. A Agência de Projetos
de Pesquisas Avançados (ARPA – Advanced Research Projects Agency), órgão do
Departamento de Defesa (DOD – Departament of Defense) dos Estados Unidos, es-
tava interessada em encontrar uma maneira de conectar computadores para que os
pesquisadores financiados por eles pudessem compartilhar suas descobertas, redu-
zindo custos e eliminado a duplicação de esforços.3

2 VIEIRA, Eduardo. Os bastidores da Internet no Brasil. Barueri: Manole, 2003, p. 3.


3 FOROUZAN, Behrouz A.; MOSHARRAF, Firouz. Redes de computadores: uma abordagem
top-down. Tradução de Marcos A. Simplício Jr. e Charles Christian Miers. Porto Alegre: AMGH
Editora, 2013, p. 23.
69
Frederico Cardoso de Miranda
Após a reunião, em 1960, da ARPA – Advanced Research Projects Agency, foi
elaborado o projeto de criação da ARPANET (Advanced Research Projects Agency
Network), uma rede de computadores conectados, sendo que, em 1967, a ARPA-
NET se tornou realidade, evoluindo até se tornar a Internet que se conhece atual-
mente.
Contudo, apesar do surgimento da ARPANET, que passou a se conectar com
outras redes em 1973, inclusive de outros países, e teve a sua extinção em 1990, a
Internet não podia ser utilizada para fins comerciais4.
Por fim, é interessante notar que o ser humano buscou criar meios para a sua
sobrevivência, muitas vezes motivado pelas consequências das guerras (destruição,
êxodo rural, explosão demográfica, queda na produção mundial e etc.), sendo, in-
clusive, um ponto comum da criação das construções em planos horizontais e do
surgimento da Internet.

1.1 O avanço da tecnologia e o surgimento do AirBnB

Com a criação da ARPANET, como dito anteriormente, os avanços tecnológicos


não pararam, e a Internet somente se tornou conhecida em 1995, como destaca
Manuel Castells:
Assim, em meados da década 1990, a Internet estava privatizada e dotada de uma
arquitetura técnica aberta, que permitia a interconexão de todas as redes de compu-
tadores em qualquer lugar do mundo; (...) para a maioria das pessoas, para os em-
presários e para a sociedade em geral, foi em 1995 que ela nasceu.5
Nessa mesma esteira, Eduardo Vieira diz:
O ano de 1995 pode ser considerado o marco-zero da Internet comercial no Brasil e
no mundo. Foi quando surgiram nos Estados Unidos alguns dos mais importantes
nomes da Internet, como o site de busca Yahoo! e a livraria virtual Amazon.com,

4 LEONARDI, Marcel. Responsabilidade civil dos provedores de serviço de Internet. São Paulo:
Juarez de Oliveira, 2005, p. 2.
5 CASTELLS, Manuel. A galáxia da internet: reflexões sobre a internet, os negócios e a sociedade.
Tradução de Maria Luiza C. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 19.
70
A vedação à locação esporádica de imóveis residenciais por aplicativo
além dos primeiros protagonistas da Web brasileira.6
Assim, com o avanço das tecnologias, juntamente com o avanço da Internet,
novos programas surgiram, passando da ARPANET para a conhecida Internet das
Coisas (Internet of Things), sendo essencial para o cotidiano das pessoas, ou seja, a
Internet passou a ser crucial para a realização de tarefas, como pagar contas, nego-
ciações bancárias, entre outras.
Nessa mesma senda, Patrícia Peck aduz:
(...) nas últimas décadas vários fatos contribuíram para uma profunda mudança na
realidade social. Em 1964, Gordon Moore cria a Lei de Moore e revoluciona a pro-
dução dos chips. O primeiro computador com mouse e interface gráfica é lançado
pela Xerox, em 1981; já no ano seguinte, a Intel produz o primeiro computador pes-
soal 286. Tim Bernes Lee, físico inglês, inventa a linguagem HTML (HyperText
Markup Language ou, em português Linguagem de Marcação de Hipertexto), crian-
do seu pequeno projeto de World Wide Web (WWW), em 1989. (...)7
E completa, dizendo que:
Esses fatos são reflexos de um caminho rumo à chamada sociedade convergente que
se vem desenvolvendo rapidamente desde a criação do telefone, considerada a pri-
meira ferramenta de comunicação simultânea a revolucionar os comportamentos
sociais. Na outra ponta deste movimento evolutivo, a Internet veio possibilitar não
apenas o encurtamento das distâncias com maior eficiência de custo, mas sobretudo
a multicomunicação, ou seja, transmissão de texto, voz e imagem.8
Nesse sentido, Lígia Paulo Pires Pinto, afirma que o desenvolvimento constante
da tecnologia altera os recentes cenários mundiais nos planos sócio-político, cultu-
ral, jurídico e econômico.9 No mesmo caminho, Rogério Camello afirma que, em

6 VIEIRA, Eduardo. Os bastidores da Internet no Brasil. São Paulo: Manole, 2003, p. 11.
7 PINHEIRO, Patrícia Peck. Direito digital. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 58.
8 PINHEIRO, Patrícia Peck. Direito digital. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 59.
9 PINTO, Lígia Paula Pires. Títulos de crédito eletrônicos e a assinatura digital: análise do art. 889,
§3º do Código Civil. In: PENTEADO, Mauro Rodrigues. Títulos de crédito: teoria geral e títulos
atípicos em face do Novo Código Civil (análise dos artigos 887 a 903). São Paulo: Walmar, 2004,
p. 187-205.
71
Frederico Cardoso de Miranda
função da tecnologia, nossas relações cotidianas sofreram mudanças radicais.10
Patrícia Peck Pinheiro descreve o atual momento em que vive a sociedade como
a “era do tempo real, do deslocamento virtual dos negócios, da quebra de paradig-
ma”11.
Assim, devido à evolução tecnológica, com o surgimento da Internet e, seguindo
a ‘era do tempo real’, as pessoas passaram a depender da web para tudo, ou melhor,
a Internet passou a estar presente em tudo (Internet of Things), e consequentemen-
te, houve a troca do tradicional táxi pela Uber, das cartas por e-mails, da TV pelos
streamings e assim sucessivamente, sempre em busca da agilidade e da constante
adaptação.
Com o AirBnB não foi diferente, segundo Leigh Gallagher:
A história básica de como a AirBnB surgiu já é um fato conhecido no Vale do Silício
e além: em outubro de 2007, dois formados desempregados da Escola de Artes que
moravam num apartamento de três quartos em São Francisco, precisando pagar o
aluguel, decidiram, do nada, alugar alguns colchões infláveis durante uma grande
conferência de design que seria realizada na cidade e que havia lotado os hotéis.12
Novamente, é de se destacar que a ideia do AirBnB nasceu devido a um “aperto”
financeiro, e hoje é um rolo compressor, com mais de 2.500 funcionários13 e que
chegou a hospedar 1,8 milhão de pessoas em uma única noite14.
Contudo, com o surgimento do AirBnB, foram causados impactos em várias ca-

10 CAMELLO, Rogério. A locação por temporada através dos aplicativos x normas condominiais
– Conflitos. Disponível em: < https://bit.ly/2Z7JgLb >. Acesso em: 20 nov. 2018.
11 PINHEIRO, Patrícia Peck. Direito digital. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 47.
12 GALLAGHER, Leigh. A história da AirBnB: como três rapazes comuns agitaram uma indústria,
ganharam bilhões... e criaram muita controvérsia. Tradução de Santiago Nazarian. São Paulo:
Buzz Editora, 2018, p. 23.
13 GALLAGHER, Leigh. A história da AirBnB: como três rapazes comuns agitaram uma indústria,
ganharam bilhões... e criaram muita controvérsia. Tradução de Santiago Nazarian. São Paulo:
Buzz Editora, 2018, p. 80.
14 GALLAGHER, Leigh. A história da AirBnB: como três rapazes comuns agitaram uma indústria,
ganharam bilhões... e criaram muita controvérsia. Tradução de Santiago Nazarian. São Paulo:
Buzz Editora, 2018, p. 83.
72
A vedação à locação esporádica de imóveis residenciais por aplicativo
tegorias, inclusive no que se refere ao direito imobiliário, especialmente em se tra-
tando de locação de imóveis residenciais, por curto período de tempo15.
Esses impactos, que é objeto de estudo do presente trabalho, não é novidade no
cotidiano da empresa, e nem uma barreira brasileira, como aduz Leigh Gallagher:
Claro, nem todo mundo se sente assim e o crescimento da AirBnB não surge sem
complicação. Em muitas cidades e subdistritos ao redor do mundo a atividade prin-
cipal proporcionada pela AirBnB – indivíduos alugando alguns ou todos os seus la-
res para outros indivíduos por um curto período – é ilegal. As leis variam de cidade
a cidade e de país a país (...)16
Contudo, esse assunto será abordado de forma mais aprofundada em outros ca-
pítulos do presente estudo, sendo importante destacar que, devido a uma dificulda-
de financeira, e com a evolução tecnológica, novamente o ser humano encontrou
uma forma de adaptação e, com a locação de ‘colchões infláveis’ e café da manhã
(air, bed and breakfast), revolucionou a forma com que o espaço é utilizado e tam-
bém modificou substancialmente a maneira como as viagens são planejadas17.
Por fim, nota-se que o AirBnB é um dos aplicativos mais utilizados na atualida-
de, tendo revolucionado o conceito de hospedagem pelo simples fato de o site des-
burocratizar as intermediações locatícias, o que oferece aos usuários envolvidos
(locadores e locatários) conveniência e rapidez.

1.2 Surgimento do condomínio edilício

Como apontado no início do presente trabalho, devido à necessidade do homem

15 CAMELLO, Rogério. A locação por temporada através dos aplicativos x normas condominiais
– Conflitos. Disponível em: < https://bit.ly/2Z7JgLb >. Acesso em: 20 nov. 2018.
16 GALLAGHER, Leigh. A história da AirBnB: como três rapazes comuns agitaram uma indústria,
ganharam bilhões... e criaram muita controvérsia. Tradução de Santiago Nazarian. São Paulo:
Buzz Editora, 2018, p. 14.
17 GALLAGHER, Leigh. A história da AirBnB: como três rapazes comuns agitaram uma indústria,
ganharam bilhões... e criaram muita controvérsia. Tradução de Santiago Nazarian. São Paulo:
Buzz Editora, 2018, p. 19.
73
Frederico Cardoso de Miranda
de se adaptar após o grande êxodo, e, buscando o maior aproveitamento econômico
do solo, surgiu uma “nova” técnica de construção: os “condomínios”.
Sobre o tema, Pedro Elias Avvad ensina que:
(...) as necessidades do homem de criar moradias, o paulatino êxodo do homem do
campo para as grandes cidades, fruto do desenvolvimento urbano e industrial, fize-
ram nascer a necessidade de melhor distribuição dos espaços disponíveis com a
ocupação racional do solo, fazendo que, já no final da Idade Média, fossem surgindo
as habitações superpostas, umas por cima das outras, sendo essa divisão realizada
por pisos, andares ou apartamentos, edificados em “planos horizontais”.18
Alguns autores afirmam que a propriedade em frações de prédios, ou proprie-
dades com mais de um proprietário, já poderiam ser vistas na antiguidade, como
destaca Arnaldo Rizzardo.
No surgimento histórico, encontram-se notícias de que existiam propriedades em
frações de prédios ou de casa na Babilônia, há mais de dois mil anos antes de Cristo.
No Egito antigo e na Grécia também se conheciam edificações com mais de um titu-
lar, ou vários moradores. No direito romano, onde existiam casas de andares ou pa-
vimentos, pertencentes a proprietários diversos (...)19
Fica assim evidenciado que o condomínio é mais antigo do que muitos afirmam,
nascendo da necessidade do melhor aproveitamento do solo; contudo, é importante
destacar que nessas formas primitivas de condomínio não existia a coexistência
entre a propriedade exclusiva e a copropriedade sobre as partes comuns.20
Nesse mesmo sentido, Mazeaud e Mazeaud21, explicam que, antes da Revolução
Francesa, a copropriedade era conhecida tão somente na cidade de Granoble e
Rennes, e Pedro Elias Avvad explica os motivos, in verbis:

18 AVVAD, Pedro Elias. Condomínio edilício. 3. ed. Rio de janeiro: Forense, 2017, p. 10.
19 RIZZARDO, Arnaldo. Condomínio edilício e incorporação imobiliária. 5. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2017, p. 8.
20 RIZZARDO, Arnaldo. Condomínio edilício e incorporação imobiliária. 5. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2017, p. 8.
21 MAZEAUD, León; MAZEAUD, Henri. Biens, droit de propriété et ses démembrements. 8. ed.
Paris: Montchrestien, 1984, p. 53.
74
A vedação à locação esporádica de imóveis residenciais por aplicativo
(...) na primeira porque vítima de duas grandes enchentes, faltaram espaços para
moradia, obrigando a construção de diversos andares nos terrenos elevados; já em
Rennes, depois de um incêndio que devastou a cidade no século XVIII, os proprietá-
rios urbanos, assolados pelo sinistro, reuniram-se para reconstruir os prédios às ex-
pensas comuns. 22
Assim, temos que o condomínio surge quando, em uma mesma propriedade, se
encontram dois ou mais proprietários, que dividem uma “coisa” indivisa, ou seja,
são coproprietários, com os mesmos direitos e deveres.
De forma técnica, Flávio Tartuce23 conceitua o condomínio citando Limongi
França, in verbis:
Verifica-se a existência do condomínio quando mais de uma pessoa tem o exercício
da propriedade sobre determinado bem. Serve como suporte didático o conceito de
Limongi França, segundo o qual o condomínio “é a espécie de propriedade em que
dois ou mais sujeitos são titulares, em comum, de uma coisa indivisa (pro indiviso),
atribuindo-se a cada condômino uma parte da fração ideal da mesma coisa.”.
Contudo no Brasil, como destaca João Batista Lopes, “a matéria não despertou
interesse, por não ter ainda aflorado o problema habitacional”24, inclusive não ten-
do o Código Civil de 1916 tratado/regulamentado o assunto, nascendo o condomí-
nio tardiamente.
Citando Haroldo Guilherme Vieira Fazano, Arnaldo Rizzardo, destaca:
No Brasil, nos primeiros projetos do Código Civil, como o Esboço de Teixeira de
Freitas e a elaboração de Clóvis Beviláqua, não houve alusão à propriedade edilícia.
O Código Civil de 1916 foi omisso sobre a matéria. Rememora Harildo Guilherme
Vieira Fazano, historiando o surgimento da legislação: “Construídos os primeiros
edifícios, passaram eles a se reger pelos usos e costumes, aplicando-lhes, ainda, as
disposições analógicas do condomínio geral.25

22 AVVAD, Pedro Elias. Condomínio edilício. 3. ed. Rio de janeiro: Forense, 2017, p. 11.
23 TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil. vol. único. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p.
1086.
24 LOPES, João Batista. Condomínio. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 28.
25 RIZZARDO, Arnaldo. Condomínio edilício e incorporação imobiliária. 5. ed. Rio de Janeiro:
75
Frederico Cardoso de Miranda
Nessa mesma linha, João Batista Lopes diz: “Sob a influência das legislações de
outros países e sob pressão dos fatos, surgiu o Dec. 5.481, de 25.06.1928, que de
forma mui tímida procurou disciplinar a matéria”.26
Dessa maneira, os condomínios foram regulamentados no Brasil somente em
1928, com o surgimento do Decreto 5.481, de 25 de junho de 1928, o que – de for-
ma tímida – já foi considerado um avanço para buscar a solução do problema de
forma técnica.
Nessa mesma esteira, Rubens Carmo Elias Filho aduz que:
A partir do século XX, em virtude de sua expressão social, o sistema da propriedade
horizontal passou a ser difundido em vários países, sendo certo que, no Brasil, a
primeira legislação data de 15 de junho de 1928, pelo Decreto nº 5.481, modificado
pelo Decreto-lei n° 5.234, de 8 de fevereiro de 1943, e pela Lei n° 285, de 5 de junho
de 1948.27
Tendo cada decreto modificado e adaptado o condomínio, dentro do que a soci-
edade aceitava ou necessitava, foi somente em 1964 que foi elaborada a lei conheci-
da trivialmente como Lei de Condomínios e Incorporações – Lei n° 4.591 – como
destaca Rubens Carmo Elias Filho: “Com o desenvolvimento econômico e, desta
forma, da indústria imobiliária, adveio a Lei n° 4.591, de 16 de dezembro de 1964,
denominada de Lei de Condomínios e Incorporações.”28
Essa legislação sofreu algumas alterações (Lei 4.864/65 – Lei de Estímulo à
Construção Civil), criando regras mais seguras e protetivas aos adquirentes de imó-
veis na planta. Fato é que os dispositivos contidos na Lei 4.591/64 que dizem respei-
to ao condomínio (artigos 1º ao 27) vigoraram por aproximadamente quarenta
anos, sofrendo algumas modificações por legislações especiais, como aduz Pedro
Elias Avvad:

Forense, 2017, p. 9.
26 LOPES, João Batista. Condomínio. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 28.
27 ELIAS FILHO, Rubens Carmo. Condomínio edilício: aspectos de direito material e processual.
São Paulo: Atlas, 2015, p. 86.
28 ELIAS FILHO, Rubens Carmo. Condomínio edilício: aspectos de direito material e processual.
São Paulo: Atlas, 2015, p. 86.
76
A vedação à locação esporádica de imóveis residenciais por aplicativo
Os dispositivos relativos ao condomínio contidos na citada Lei 4.591/1964 vigora-
ram por quase 40 anos, sofrendo, nesse período, pequenas alterações de leis especi-
ais, como as que foram introduzidas pela lei de Registros Públicos, pela Lei de Segu-
ros e pelo Código de Processo Civil, que diziam respeito a questões reguladas por es-
sas leis modificadoras.29
Contudo, o condomínio edilício como é conhecido hoje, inclusive com a no-
menclatura “edilício”, somente apareceu com o advento do Código Civil de 2002,
que dedicou um capítulo específico para a matéria, intitulado “Do condomínio
edilício”. Assim, temos que o condomínio edilício nada mais é do que a existência
de áreas privativas (apartamentos ou casas), em coexistência com áreas comuns,
como define o artigo 1.331 e seus parágrafos, do Código Civil.30
Nessa mesma senda Rosely Benevides de Oliveira Schwartz, de modo simples,
ensina que: “O condomínio é uma extensão do nosso lar, uma pequena célula da
sociedade, onde temos direitos e deveres e ocupamos um espaço, quer sejamos atu-
antes ou não.”31
E completa:
No novo dicionário da língua portuguesa (Aurélio), a palavra condomínio é defini-
da como: “domínio exercido juntamente com outrem”. A propriedade, portanto,
possui vários donos, os quais são chamados de coproprietários ou condôminos, que

29 AVVAD, Pedro Elias. Condomínio edilício. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 13.
30 Art. 1.331. Pode haver, em edificações, partes que são propriedade exclusiva, e partes que são
propriedade comum dos condôminos.
§ 1°. As partes suscetíveis de utilização independente, tais como apartamentos, escritórios, salas,
lojas e sobrelojas, com as respectivas frações ideais no solo e nas outras partes comuns, sujeitam-
se a propriedade exclusiva, podendo ser alienadas e gravadas livremente por seus proprietários,
exceto os abrigos para veículos, que não poderão ser alienados ou alugados a pessoas estranhas
ao condomínio, salvo autorização expressa na convenção de condomínio.
§ 2º O solo, a estrutura do prédio, o telhado, a rede geral de distribuição de água, esgoto, gás e
eletricidade, a calefação e refrigeração centrais, e as demais partes comuns, inclusive o acesso ao
logradouro público, são utilizados em comum pelos condôminos, não podendo ser alienados se-
paradamente, ou divididos.
31 SCHWARTZ, Rosely Benevides de Oliveira. Revolucionando o condomínio. 15. ed. São Paulo:
Saraiva, 2017, p. 23.
77
Frederico Cardoso de Miranda
formam um grupo. 32
Carlos Roberto Gonçalves conceitua condomínio edilício como:
Caracteriza-se o condomínio edilício pela apresentação de uma propriedade comum
ao lado de uma propriedade privada. Cada condômino é titular, com exclusividade,
da unidade autônoma (apartamento, escritório, sala, loja, sobreloja, garagem) e titu-
lar de partes ideais das áreas comuns (terreno, estrutura do prédio, telhado, rede ge-
ral de distribuição de água, esgoto, gás e eletricidade, calefação e refrigeração cen-
trais, corredores de acesso às unidades autônomas e ao logradouro público etc.)
(CC, art. 1.331). 33
Dessa maneira, percebe-se que o condomínio edilício é composto por unidades
autônomas (privativas) e áreas comuns, ou seja, há mais de um proprietário das
áreas comuns dentro de uma propriedade indivisa (§2º do artigo 1.331), gerando
direitos e deveres e muitas complicações34, como será demonstrado nesse estudo.
Apenas para fins de curiosidade, tendo em vista não ser o assunto principal do
estudo, para autores como Arnaldo Rizzardo35 e Rubens Carmo Elias Filho36, o
Código Civil de 2002 não revogou os artigos 1ª a 27 da Lei 4.591/64, tendo tão so-

32 SCHWARTZ, Rosely Benevides de Oliveira. Revolucionando o condomínio. 15. ed. São Paulo:
Saraiva, 2017, p. 32.
33 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil esquematizado. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, v.
II, p. 631.
34 Para Sílvio de Salvo Venosa, “[n]enhuma outra modalidade de propriedade tenha talvez levan-
tado maior riqueza de problemas jurídicos e sociais do que a denominada propriedade horizon-
tal, propriedade em planos horizontais ou propriedade em edifícios.” (VENOSA, Sílvio de Salvo.
Direito civil: direitos reais. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2017, v. 4, p. 323.).
35 Para Arnaldo Rizzardo, “[a] regulamentação ficou sedimentada unicamente na Lei n.
4.591/1964. O código Civil de 2002 passou a tratar o assunto, mas sem revogar a Lei n
4.591/1964, que segue incidindo nas questões não abarcadas pela lei civil (...)”. (RIZZARDO,
Arnaldo. Condomínio edilício e incorporação imobiliária. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017,
p. 13.).
36 Para Elias Filho, “(...) na medida em que a lei nova não revogou expressamente a lei anterior e
nem todo o sistema foi disciplinado pelo novo ordenamento jurídico (...)’. (ELIAS FILHO, Ru-
bens Carmo. Condomínio edilício: aspectos de direito material e processual. São Paulo: Atlas,
2015, p. 86.).
78
A vedação à locação esporádica de imóveis residenciais por aplicativo
mente complementado os mesmos.
Já para autores como João Batista Lopes37, Pedro Elias Avvad38 e Flávio Tartu-
ce39, o Código Civil revogou totalmente a parte da Lei 4.591/64 que trata de con-
domínios edilícios, não havendo revogado a parte que trata de incorporações imo-
biliárias.
Por fim, independentemente da discussão sobre a revogação ou não de parte da
Lei 4.591/64, o que se deve saber é que o atual Código Civil brasileiro, nos artigos
1.331 a 1.358, regulamenta o conhecido condomínio edilício e traz deveres e obri-
gações para os moradores dessa espécie de edificação, inclusive com a criação de
uma convenção condominial, que visa regulamentar as relações internas do con-
domínio, como será explicado no próximo tópico.

2 Convenção condominial

Como dito no tópico anterior, é possível notar que, devido à existência de áreas
privativas e comuns, o condomínio edilício não se confunde com qualquer dos
institutos jurídicos tradicionais40, ou seja, estamos diante de uma combinação de
direitos reais preexistentes41.
Com isso, é necessário que o condomínio edilício se submeta a regime jurídico

37 Para João Batista Lopes, “[o] Código Civil de 2002 passou a regular integralmente o condomínio
em edifícios, agora denominado condomínio edilício (...).” (LOPES, João Batista. Condomínio.
10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 30.).
38 Para Pedro Elias Avvad, “Durante o período de sua prolongada vigência, de quase quatro déca-
das, a lei especial, revogada pelo o Código Civil de 2002 (...).” (AVVAD, Pedro Elias. Condomí-
nio edilício. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 13.).
39 Para Flávio Tartuce, “[o] CC/2002 consolidou o tratamento que constava da primeira parte da
Lei 4.591/1964 (arts. 1º ao 27). Sendo assim, filia-se à corrente que sustenta a revogação tácita de
tais comandos (...).” (TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil. vol. único. 7. ed. Rio de Janei-
ro: Forense, 2017, p. 1093.).
40 LOPES, João Batista. Condomínio. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 83.
41 LOPES, João Batista. Condomínio. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 83.
79
Frederico Cardoso de Miranda
próprio, com uma estrutura especial e complexa de organização42, para que possa se
enquadrar na necessidade de regulamentação das relações pessoais dos moradores e
da guarda das áreas comuns, visando regulamentar internamente todos os conflitos
que possam existir. Dessa maneira, nasceu a convecção condominial.
Nesse mesmo sentido, aduz João Batista Lopes: "Surge, então, a necessidade de
normas internas para reger a vida do edifício e resolver os seus intrincados proble-
mas, que envolvem não apenas os condôminos como também terceiros.”43
Contudo, antes de prosseguir no estudo da convenção condominial, é necessário
diferenciar a instituição do condomínio (artigo 1.332 do Código Civil) da convec-
ção (artigo 1.333 do Código Civil), sendo que a primeira é o documento que institui
o condomínio, ou seja, é o documento que transforma o conjunto de edificações ou
a edificação – após concluída – em condomínio edilício, como explica Pedro Elias
Avvad:
A instituição a que a norma em análise se refere, por ato entre vivos ou testamento, é
aquela que torna em “condomínio edilício” a edificação ou o conjunto de edifica-
ções, quando concluída a construção, ou mesmo uma edificação já existente, antes
construída em propriedade única ou, mesmo, em condomínio pro indiviso. A insti-
tuição do condomínio é, portanto, o ato que institucionaliza a propriedade como
condomínio especial, dando origem à conceituação das “partes” da edificação que
se constituem “propriedade exclusiva” e das “partes” que são “propriedade co-
mum”. 44
Dessa maneira, para que possa haver a instituição do condomínio, é necessário
que esse seja um ato inter vivos ou formalizado por testamento e esse documento
dever conter a discriminação e individualização das unidades autônomas, a atribui-
ção da fração ideal de cada unidade e a destinação (finalidade) das unidades autô-
nomas, conforme os incisos I, II e III do artigo 1.332 do códex civil brasileiro45.

42 LOPES, João Batista. Condomínio. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 83.
43 LOPES, João Batista. Condomínio. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 83.
44 AVVAD, Pedro Elias. Condomínio edilício. 3. ed. Rio de janeiro: Forense, 2017, p. 47-48.
45 Art. 1.332. Institui-se o condomínio edilício por ato entre vivos ou testamento, registrando em
Cartório de Registro de Imóveis, devendo constar daquele ato, além do disposto em lei especial:
80
A vedação à locação esporádica de imóveis residenciais por aplicativo
Já a convenção, como explanado, é considerada uma lei interna do condomínio,
que rege as relações de convivência e que determina regras, em conformidade ao
disposto no artigo 1.334 do Código Civil, abordando, inclusive, as regras de insti-
tuição, conforme será apresentado.
Assim, Arnaldo Rizzardo, diz:
A convenção constitui lei interna do condomínio, que é adotada para reger as rela-
ções de convivência dos condôminos, de uso das áreas exclusivas e comuns, e de
conduta individual dos moradores, com a discriminação dos direitos e das obriga-
ções a que todos ficam sujeitos. Mais especificamente, é o ato normativo interno do
microssistema do condomínio (...)46
E completa, citando Pedro Elias Avvad:
Revela-se clara e completa a definição de Pedro Elias Avvad: “A Convenção do
Condomínio é um contrato típico de cunho normativo, realizado entre os proprietá-
rios, promitentes compradores, cessionários e promitentes cessionários dos direitos
relativos às unidades autônomas, em edifícios a serem construídos, em construção
ou já construídos, que não tenham realizado ainda”. 47
No mesmo diapasão, Rubens Carmo Elias Filho esclarece:
Os instrumentos de instituição, especificação e convenção de condomínio precisam
refletir a essência da estrutura edilícia, contemplando normas que atendam ao perfil
de cada estrutura edilícia. Tratando-se de ponto de convergência de interesses pri-
vados e comuns, cuja coexistência harmônica decorrerá da sua forma de adminis-
tração e da disciplina do uso das áreas e serviços comuns, tais regras deverão ser ob-
jeto da Convenção de Condomínio, normas interna corporis, de obediência obriga-

I – a discriminação e individualização das unidades autônomas de propriedade exclusiva, estre-


madas umas das outras e das partes comuns;
II – a determinação da fração ideal atribuída a cada unidade, relativamente ao terreno e as partes
comuns;
III – o fim a que as unidades se destinam.
46 RIZZARDO, Arnaldo. Condomínio edilício e incorporação imobiliária. 5. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2017, p. 92.
47 RIZZARDO, Arnaldo. Condomínio edilício e incorporação imobiliária. 5. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2017, p. 92.
81
Frederico Cardoso de Miranda
tória por todos os seus ocupantes.48
Fica evidente, assim, que a convenção condominial é uma autêntica lei interna
da comunidade, que rege o comportamento dos moradores e de todos os terceiros
que frequentam o condomínio, como destacam João Nascimento Franco e Nisske
Bongo, citados por Arnaldo Rizzardo:
É a convenção uma autêntica lei interna da comunidade, destinada a regrar o com-
portamento não dos condôminos apenas, mas de todas as pessoas que ocupem o
edifício, na qualidade de seus sucessores, prepostos, inquilinos, comodatários, etc.
Ao traçar as normas de utilização do edifício, nas partes privativas e nas de uso co-
mum, a convenção visa resguardar, em proveito de todos, o patrimônio condomini-
al e a moralidade do ambiente num sistema de normas que, mais rigorosamente do
que as decorrentes de direito de vizinhança, objetivam garantir as todos os ocupan-
tes das unidades autônomas sossego, tranquilidade e segurança.49
Com isso, é importante frisar que, para a doutrina majoritária, a convenção
condominial tem natureza normativa, e, quando registrada em cartório de imóveis,
é oponível a terceiros; contudo, apesar da discussão sobre a natureza da convenção
condominial, esse não é o assunto principal do estudo. Dessa forma, adotar-se-ão
os ensinamentos majoritários.
Sobre a convecção do condomínio, alguns pontos são importantes, como a de-
terminação de que tal documento deve atender ao disposto nos incisos I a III do
artigo 1.332 do Código Civil, além de outras regras estipuladas no artigo 1.33450 do
mesmo códex, como realça Maria Helena Diniz:
Será preciso lembrar que, além das cláusulas do ato que institui o condomínio e das
avençadas pelos consortes, a Convenção, feita por escritura pública, ou por instru-
mento particular, deverá, como já dissemos, conter: a) a quota proporcional e a ma-
neira de pagamento das contribuições dos condôminos para atender ás despesas or-

48 ELIAS FILHO, Rubens Carmo. Condomínio edilício: aspecto de direito material e processual.
São Paulo: Atlas, 2015, p. 95.
49 RIZZARDO, Arnaldo. Direito das Coisas: Lei nº 10.406, de 10.01.2002. 1. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2004, p. 629.
50 Art. 1.334. Além das cláusulas referidas no art. 1.332 e das que os interessados houverem por
estipular, a convenção determinará: (...).
82
A vedação à locação esporádica de imóveis residenciais por aplicativo
dinárias (p. ex., as feitas com água, energia elétrica) e extraordinárias (p. ex., edifica-
ção de garagem, reconstrução de telhado) do condomínio; b) a forma de adminis-
tração; c) a competência assemblear, modo de sua convocação (por meio de notifi-
cação, edital, etc.) e quórum exigido para as deliberações; d) sanções (p. ex., suspen-
são temporária de uso de espaço comum de lazer; pagamento de multa etc.) a que os
condôminos e possuidores estão sujeitos; e e) o regimento interno, que é o conjunto
de normas que complementam as disposições da Convenção, minudenciando ques-
tões alusivas aos interesses condominiais, p. ex., as sobre responsabilidade civil do
condomínio por danos causados pelos condôminos a terceiros (CC, art. 1.334. I a V
e §1º).51
Assim, novamente fica evidente que a convenção deve conter os requisitos dis-
postos no artigo 1.332 do Código Civil, os requisitos do artigo 1.334 do mesmo
código, além de outras questões individuais de cada edificação. Sobre o tema Ru-
bens Carmo Elias Filho orienta:
Não é suficiente que a convenção de condomínio simplesmente cumpra o disposto
nos arts. 1.332 e 1.334 do Código Civil de 2002, mas sim se aprofunde em critérios e
formas de administração que se adequem à modalidade do condomínio edilício,
sem se olvidar, outrossim, que as normas “jamais poderão perder de vista as leis edi-
tadas pelo poder público, cuja obediência se impõem (...)52
Importante para o presente estudo é o destaque da destinação do condomínio
edilício, estipulado no inciso III do artigo 1.332 do Código Civil brasileiro; além
disso, também é importante tratar dos direitos e deveres dos condôminos, descritos
nos artigos 1.335 e 1.336 do Código Civil, como complementado dentro da conven-
ção e do regimento interno de cada condomínio, sempre lembrando que essa con-
venção faz lei entre os ocupantes do edifício, somente sofrendo limitações pelas
normas editadas pelo Poder Público.
Por fim, apesar de a convenção condominial ser uma lei interna da edificação,
oponível a terceiros, quando registrada, essa regra não poderá de nenhuma maneira

51 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito das coisas. 28. ed. São Paulo:
Saraiva, 2014, v. IV, p. 260
52 ELIAS FILHO, Rubens Carmo. Condomínio edilício: aspectos de direito material e processual.
São Paulo: Atlas, 2015, p. 95.
83
Frederico Cardoso de Miranda
se sobrepor às legislações brasileiras53, sendo que o Código Civil, nos artigos já
mencionados, é somente um balizador para a criação das convenções condomini-
ais, que deverão conter todos os requisitos exigidos pela legislação civilista, trazen-
do, de modo repetitivo, os direitos e deveres dos condôminos e a destinação do
condomínio – temas de grande relevância para o trabalho e que serão abordados
nos próximos tópicos.

2.1 Destinação do condomínio

Como já restou amplamente apresentado no tópico anterior, o artigo 1.332 do


Código Civil, em seu inciso III, impõe que o condomínio determine a sua destina-
ção no momento em que for instituído, ou seja, para que se tenha a instituição do
condomínio, esse deve especificar a finalidade a que se destina, sendo esse preceito,
inclusive, repetido na convenção condominial, conforme os dizeres do artigo 1.334
do CC/02, também já apresentado.
Com isso, ao determinar a destinação do condomínio na instituição e na con-
venção condominial, essa destinação se torna obrigatória para todos os condômi-
nos, pois é regra da convenção condominial e, como já apresentado, essa é lei inter-
na no condomínio. Sobre o tema, Arnaldo Rizzardo, leciona:
Consignarão os documentos de instituição a finalidade a que se destina o condomí-
nio. Basicamente, estabelecerá se a utilização é para residência, ou para outra utili-
dade, como profissional (escritório, clínicas e consultórios), comercial (garagens ou
depósitos) e para a execução de certas atividades (manufaturas, prestação de servi-
ços técnicos, consertos, salões de artesanato, salões de cabelereiros). 54

53 Nesse sentido, João Batista Lopes apud José Roberto Neves Amorim, ensina: “Deve pois a con-
venção condominial estar em sintonia com a lei, porque, apesar da autonomia dos condôminos
em auto-regulamentar suas condutas (interna corporis), jamais poderão perder de vista as leis
editadas pelo poder público, cuja obediência se impõem pelo princípio das supremacia da ordem
pública sobre as deliberações privadas.”. (LOPES, João Batista. Condomínio. 10. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2008, p. 95.).
54 RIZZARDO, Arnaldo. Condomínio edilício e incorporação imobiliária. 5. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2017, p. 33.
84
A vedação à locação esporádica de imóveis residenciais por aplicativo
E completa: “Especificarão se a destinação for mista, ou seja, para a coexistência
de unidades residenciais e unidades não residenciais, estas geralmente localizadas
no pavimento térreo.”55
Assim, percebe-se que a destinação para a qual o condomínio é criado poderá
ser residencial, comercial, para depósito etc. e, inclusive, poderá ter natureza mista
(residencial e comercial). Dito isso, fica cristalino que o condomínio, por uma obri-
gação legal, é destinado para uma certa finalidade, podendo inclusive ser destinada
para exploração hoteleira, condomínios multiuso, como destaca Rubens Carmo
Elias Filho:
Outrossim, por meio da incorporação imobiliária, são oferecidos ao público empre-
endimentos imobiliários, denominados condomínios-clube , megacondomínios”
e “condomínios multiuso”, que conjugam imóveis residenciais, apart-services, uni-
dades hoteleiras, serviços em geral, malls (pequenos centros comerciais), shopping
centers, entre outros, que exigem uma formatação jurídica compatível com a com-
plexidade edilícia, estabelecendo parâmetros de uso e fruição, além de regras de
conduta, vistas como indispensáveis para o adequado funcionamento do empreen-
dimento, sem as quais instaurar-se-ia verdadeira balbúrdia no condomínio, com to-
das as consequências dela decorrentes. 56
E continua dizendo que: “De idêntica forma, verifica-se a existência de unidades au-
tônomas destinadas à atividade hoteleira e ainda dos edifícios de destinação exclusi-
va, vedada a alteração da destinação, a critério exclusivo de seus proprietários.”57
Nesse aspecto, para uma exemplificação sobre a criação específica para o con-
domínio, como hotel, Roberto Penteado Masagão, ensina: “Nasceu para ser um
hotel e, assim, deve permanecer o edifício, até que se modifique ou se substitua o
projeto, como novo fim, pela decisão unânime de todos os seus proprietários, mas

55 RIZZARDO, Arnaldo. Condomínio edilício e incorporação imobiliária. 5. ed. Rio de Janeiro:


Forense, 2017, p. 33.
56 ELIAS FILHO, Rubens Carmo. Condomínio edilício: aspecto de direito material e processual.
São Paulo: Atlas, 2015, p. 1.
57 ELIAS FILHO, Rubens Carmo. Condomínio edilício: aspecto de direito material e processual.
São Paulo: Atlas, 2015, p. 1.
85
Frederico Cardoso de Miranda
sempre de acordo com a legislação cabível.” 58
Assim, o condomínio, como visto, deve ter destinação específica, podendo essa
ser variada e inclusive mista; o que não pode ocorrer é a troca da destinação do
condomínio sem o quórum necessário para isso, que conforme o artigo 1.351 do
Código Civil59 é da unanimidade dos condôminos.
Nessa toada, para explicar a conceituação da destinação do condomínio edilício
como residencial, é necessário entender o que seria uso residencial, assim apoiar-
se-á nas lições de Carmo Elias Filho, sobre o tema:
O conceito de uso residencial condiz com estabilidade, prazo contínuo e duradouro,
não se assemelhando a atividades de hospedagem, a qual pressupõe não apenas a
cessão de uso do espaço, mas também a prestação de serviços próprios de hotelaria,
em ambiente adequado e preparado exatamente para usos de breve duração.60
Com isso, quando a convenção condominial regulamentar que o uso das unida-
des autônomas daquele condomínio seja para fins residenciais, naturalmente, será
esperado pelos condôminos que o uso e a destinação de cada unidade seja estável,
com prazo contínuo e duradouro. Além disso, outros pontos importantes devem
ser citados, por exemplo, quando se tratar de uso comercial do condomínio, desti-
nado à hospedagem, a lei que regulamenta essa modalidade será a Lei Federal n°
11.771/08 e, ainda, esses condomínios deverão realizar cadastro em órgão específi-
co do Ministério do Turismo, conforme previsão legal.
Contudo, o que deve ficar evidente nesse capítulo é que a destinação obrigatória
do condomínio deve estar descrita na instituição do mesmo e deve ser repetida na
convenção condominial, não sendo permitida a alteração da destinação sem a con-
cordância da unanimidade dos condôminos, como descrito em lei e determinado

58 MASSAGÃO, Roberto Penteado. O condomínio edilício aplicado aos empreendimentos hote-


leiros: “Condohotel”. São Paulo: Ícone, 2004, p. 27.
59 Art. 1.351. Depende da aprovação de 2/3 (dois terços) dos votos dos condôminos a alteração da
convenção; a mudança da destinação do edifício, ou da unidade imobiliária, depende da aprova-
ção pela unanimidade dos condôminos.
60 ELIAS FILHO, Rubens Carmo. Locação diária de imóveis. Disponível em:
<www.aabic.com.br/clipping/exibMidia/?midia=4075>. Acessado em: 09 jan. 2019.
86
A vedação à locação esporádica de imóveis residenciais por aplicativo
pelos tribunais pátrios. 61 Por fim, além de ser uma norma contida na convenção
condominial, é um dever do condomínio seguir essa destinação – inciso IV do arti-
go 1.335 do Código Civil –, e os direitos e deveres de cada condômino serão anali-
sado no próximo capítulo.

2.2 Direitos e deveres dos condôminos

Como explanado, os condôminos estão sujeitos a diversos regramentos, impos-


tos tanto nas legislações brasileiras, como decorrentes da própria convenção con-
dominial e do regimento interno, regramentos essenciais para que possa haver
harmonia na convivência dentro do condomínio.
O artigo 1.335 do Código Civil indica genericamente os direitos primordiais dos
condôminos, como preleciona Rubens Carmo Elias Filho:
O art. 1.335 do Código Civil, de maneira genérica, indica os direitos primordiais dos
condôminos, ou seja: “I – usar, fruir e livremente dispor das suas unidades; II – usar
das partes comuns, conforme a sua destinação, e contanto que não exclua a utiliza-
ção dos demais compossuidores; III – votar nas deliberações da assembleia e delas
participar, estando quite”. 62
E completa, dizendo:
De tais direitos se extraem inúmeros outros, tais como o direito à privacidade, res-
peito pelos demais condôminos, locomoção nas áreas internas de uso de todos, o di-
reito de interferir para sanar irregularidades, exigir a ordem interna e condutas
compatíveis, manejar as utilidades oferecidas pelo condomínio, receber os balance-
tes das contas, participar das reuniões, votar e ser votado, entre tantos outros direi-
tos prescritos na Convenção de Condomínio ou inerentes ao exercício dos direitos

61 Nesse sentido, pode-se citar: TJ/SP, 7ª Câmara de Direito Privado, Apelação Cível nº
994.01.001894-8, Rel. Des. Dimas Carneiro, j. 11.08.2010; TJ/RJ, 11ª Câmera Cível, Apelação Cí-
vel n° 0075033-03.2014.8.19.0001, Rel. Des. Fernando Cerqueira Chagas, j. 15.04.2015; TJ/SP,
26ª Câmara de Direito Privado, Agravo de Instrumento n° 0088776-93.2001.8.26.0000, Rel. Des.
Carlos Alberto Garbi, j. 15.06.2011, entre outros.
62 ELIAS FILHO, Rubens Carmo. Condomínio Edilício: aspecto de direito material e processual.
São Paulo: Atlas, 2015, p. 116.
87
Frederico Cardoso de Miranda
proprietários. 63
Ficando assim evidente que o direito da propriedade é relativizado em condo-
mínio, podendo o proprietário usar livremente a sua unidade autônoma, sem, con-
tudo, prejudicar o sossego e a segurança dos demais moradores, percebe-se que o
direito do condômino não é diferente do direito de um proprietário comum, que
deve usar a sua propriedade dento dos limites da boa vizinhança.64
Nessa diretriz, Rubens Carmo Elias Filho, esclarece que:
Não obstante o mencionado artigo disponha a respeito de direitos, ao mesmo tem-
po, estabelece, em mais uma demonstração na nova concepção da propriedade, que
o seu exercício se dará́ em consonância com o direito dos demais condôminos, va-
lendo frisar o impedimento do direito de votar e participar das assembleias ao con-
dômino inadimplente.65
Sobre o tema, Pedro Elias Avvad acrescenta que: “O primeiro rol de direitos as-
segurados diz respeito diretamente à propriedade e é inerente ao conceito de domí-
nio.” 66
E, apresentando a relativização do direito de propriedade, Arnaldo Rizzardo ex-
plica o seguinte:
Nas convenções e regimentos internos, em função com a categoria ou tipo edifício,
podem ser ampliados os direitos, como exigir:
- a obediência à finalidade de utilização do prédio, não se permitindo, assim, quem
em unidades estritamente residenciais, se utilizem para fins comerciais ou profissio-
nais, como consultórios médicos, escritórios de advocacia, ou salões de cabelerei-

63 ELIAS FILHO, Rubens Carmo. Condomínio edilício: aspecto de direito material e processual.
São Paulo: Atlas, 2015, p. 116.
64 Nesse sentido, João Batista Lopes aduz: “O condômino não é, assim, titular de um direito diver-
so do direito do proprietário comum, porquanto este também está sujeito às normas de boa vizi-
nhança.” (LOPES, João Batista. Condomínio. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p.
111.).
65 ELIAS FILHO, Rubens Carmo. Condomínio edilício: aspecto de direito material e processual.
São Paulo: Atlas, 2015. p. 116.
66 AVVAD, Pedro Elias. Condomínio edilício. 3. ed. Rio de janeiro: Forense, 2017, p. 68.
88
A vedação à locação esporádica de imóveis residenciais por aplicativo
ros;67
Dessa maneira, apesar de o proprietário ter o direito de usar, gozar e dispor da
sua unidade autônoma de forma livre, por exemplo, podendo alienar a sua unidade
sem a concordância dos demais, existem, para esse proprietário, certas limitações,
como respeitar a destinação/finalidade do conjunto residencial, ponto primordial
para o estudo.
Em contrapartida aos direitos de cada condômino, o artigo 1.336 do Código Ci-
vil prescreve inúmeros deveres, como o dever de contribuir para as despesas con-
dominiais, na proporção da sua fração ideal, salvo o disposto em sentido contrário
na convenção, sendo esta, inclusive, a principal obrigação do proprietário – inciso I
do artigo 1.336 do Código Civil Brasileiro.
Sobre assunto, Arnaldo Rizzardo anota que:
Os direitos trazem, em contrapartida, deveres, de obrigatório atendimento para via-
bilizar a própria instituição do condomínio, exigidos indistintamente de qualquer
pessoa que resida, ou se encontre estabelecida, ou mesmo frequente o condomínio.
Deveres existem que competem aos titulares das unidades, como o pagamento de
taxas, e outros que abrangem os moradores em geral e ocupantes de conjuntos ou
salas, como familiares, os locatários, e os frequentadores, ou seja, as visitas, os clien-
tes e empregados.68
Com isso, para que seja viabilizada a vida harmoniosa dentro da edificação, é
necessário que todos respeitem as normas condominiais e façam valer os seus direi-
tos, independentemente de serem condôminos ou não.
Poderíamos citar inúmeros deveres descritos no artigo do Código Civil, contu-
do, para a finalidade do trabalho, manteremos olhares no inciso IV do artigo 1.336
desse códex, o qual determina que o condômino tem o dever de “dar às suas partes
a mesma destinação que tem a edificação e não as utilizar de maneira prejudicial ao
sossego, salubridade e segurança dos possuidores e aos bons costumes.”

67 RIZZARDO, Arnaldo. Condomínio edilício e incorporação imobiliária. 5. ed. Rio de Janeiro:


Forense, 2017, p. 121.
68 RIZZARDO, Arnaldo. Condomínio edilício e incorporação imobiliária. 5. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2017, p. 123.
89
Frederico Cardoso de Miranda
Nesse ponto é pertinente colacionar ao trabalho a observação de Pedro Elias
Avvad em relação ao descrito no inciso IV citado alhures:
Impropriamente, diz a nova lei, a destinação emprestada à unidades terá que ser a
mesma dada, à edificação, o que não é correto. Uma loja situada em um edifício re-
sidencial não estará sujeita obviamente à mesma destinação da edificação. Veja-se
que o inciso III do art. 1.332 determina que se especifique, no ato da instituição e,
em consequência, na convenção do condomínio, “o fim que as unidades se desti-
nam”. Portanto, a destinação dada às unidades observará a natureza da edificação
somente quando esta tiver finalidade única, no caso de prédios compostos por um
único tipo de unidade (...)69
Em síntese, a observação pertinente do doutrinador refere que, havendo con-
domínios com finalidades mistas, as unidades ali dispostas devem respeitar as devi-
das destinações, lembra-se que o condomínio poderá ter destinação mista, desde
que instituído com essa finalidade. Agora se houver uma única destinação, como
por exemplo residencial, essa destinação deve ser respeitada.
Ademais, o alcance da regra é vasto, e impõe, ou melhor, flexibiliza o direito de
propriedade, uma vez que o proprietário de uma unidade autônoma em um con-
domínio edilício com a destinação estritamente residencial tem o dever de dar a
mesma destinação à sua unidade, não podendo destiná-la para fins comerciais ou
quaisquer outros, conforme vedação legal.
Sobre o assunto, Arnaldo Rizzardo aduz: “Se previsto o uso para moradia, não se
admite a transformação para o comércio ou a instalação de pequena indústria, ou a
prestação de serviços mesmo que liberais”.70
E acrescenta:
Igualmente no tocante à conduta individual, de modo a não transformar a unidade
em centro de orgias, ou local de encontro de homens e mulheres para a exploração
sexual, causando constrangimento aos demais moradores e deteriorando o nível do
próprio edifício. Importante que se tenha em vista o mau uso da propriedade, atra-

69 AVVAD, Pedro Elias. Condomínio edilício. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 76.
70 RIZZARDO, Arnaldo. Condomínio edilício e incorporação imobiliária. 5. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2017, p. 127.
90
A vedação à locação esporádica de imóveis residenciais por aplicativo
vés de condutas licenciosas, da presença de indivíduos que despertam suspeitas, de
atitudes com falta de decoro ou que chegam ao escândalo, tudo comportando escan-
carada violação aos bons costumes e ofensa aos direitos de vizinhança. 71
Com isso, é importante frisar que o direito de propriedade não é absoluto, como
será abordado em capítulo próprio, existindo inúmeras limitações, sendo que, para
o estudo, a mais importante é o dever de respeitar a destinação do condomínio
edilício, tanto nas áreas comuns, quanto nas áreas privativas.
Por fim, todos os condôminos, inquilinos, visitantes, prestadores de serviços,
funcionários do condomínio e particulares devem respeitar os direitos dos outros
moradores, usando suas unidades e as áreas comuns de modo a respeitar o igual
uso dos outros indivíduos, com segurança e salubridade, podendo a convenção
condominial prever multas para aqueles que agem de forma contrária aos deveres
de boa vizinhança.

3 Conceito de locação por temporada

Prosseguindo o estudo, é necessário que seja comentado o conceito de locação


por temporada, locação essa tipificada pelo artigo 48 da Lei 8.245/91, ou, como é
conhecida, Lei do Inquilinato.
Essa lei tipifica duas modalidades de locação residencial: a do artigo 46, chama-
da locação com contrato típico, cuja duração é de, no mínimo, trinta meses; e, co-
mo já adiantado, a locação por temporada (artigo 48), que é a locação no prazo
máximo de noventa dias.
Então, para que se possa ter caracterizada a locação por temporada, deve-se ter a
residência temporária do locatário, para fins de lazer, realização de cursos, trata-
mentos de saúde, entre outras situações descritas no artigo, com a contratação de
um prazo não superior a noventa dias, como determina o artigo 48 da Lei 8.245/91,
in verbis:

71 RIZZARDO, Arnaldo. Condomínio edilício e incorporação imobiliária. 5. ed. Rio de Janeiro:


Forense, 2017, p. 127.
91
Frederico Cardoso de Miranda
Art. 48. Considera-se locação para temporada aquela destinada à residência tempo-
rária do locatário, para prática de lazer, realização de cursos, tratamento de saúde,
feitura de obras em seu imóvel, e outros fatos que decorrem tão-somente de deter-
minado tempo, e contratada por prazo não superior a noventa dias, esteja ou não
mobiliado o imóvel.
Dessa forma, evidente que existem requisitos que determinam se a locação é por
temporada ou não, sendo o mais importante desses requisitos – e que caracteriza e
diferencia essa modalidade de locação – o prazo de sua duração.
No mais, todos os outros direitos e deveres pertinentes da Lei 8.245/91, especi-
almente os artigos 22 e 23, continuam válidos para o locador e também para o loca-
tário, inclusive o cumprimento integral da convenção condominial e, consequen-
temente, a destinação do condomínio.
Contudo, o conceito de locação por temporada, hospedagem, entre tantos ou-
tros já visualizados no estudo, embora de fácil entendimento, suscita a seguinte
problemática: a locação feita por aplicativos como o AirBnB, é realmente uma loca-
ção por temporada?
A locação por temporada, permitida pela lei especial, é diferente da hospedagem
descrita no artigo 23 da Lei 11.771/08, que diz:
Art. 23. Consideram-se meios de hospedagem os empreendimentos ou estabeleci-
mentos, independentemente de sua forma de constituição, destinados a prestar ser-
viços de alojamento temporário, ofertados em unidades de freqüência individual e
de uso exclusivo do hóspede, bem como outros serviços necessários aos usuários,
denominados de serviços de hospedagem, mediante adoção de instrumento contra-
tual, tácito ou expresso, e cobrança de diária.
Os meios de hospedagem cobram diárias – e não alugueis –, como estabelecido
pelo artigo citado alhures, o que, pela simples leitura dos dispositivos das leis
8.245/91 e 11.771/08, permite diferenciar locação por temporada de hospedagem.
Ademais, como dito no início do presente estudo, a locação por temporada efe-
tuada por meio de aplicativos como o AirBnB vem crescendo significativamente, o
que trouxe à tona um debate ainda sem ponto final, existindo posições favoráveis e
desfavoráveis a essa locação realizada por aplicativos.
Dessa forma, feita a diferenciação entre os conceitos de hospedagem e locação
92
A vedação à locação esporádica de imóveis residenciais por aplicativo
por temporada, conceitos que não podem ser confundidos, serão apresentadas nos
próximos tópicos as posições contrárias e favoráveis às locações atípicas – por in-
termédio dos aplicativos – bem como os seus desdobramentos.

3.1 Posição contrária à locação através dos aplicativos

Para a corrente que é contraria à locação dos imóveis em condomínio edilício


por intermédio dos aplicativos, a insegurança é o maior motivo das críticas, como
destaca Rogério Camello:
Para quem é contrário à locação de imóvel por aplicativos, a insegurança é a princi-
pal justificativa, devido ao alto fluxo de pessoas estranhas no condomínio nas áreas
de piscina, sauna, salão de festas, churrasqueira, quadras de esporte, etc. Além disso,
o uso das áreas comuns por esses “inquilinos”, usualmente é feito sem qualquer co-
nhecimento e respeito aos regramentos das normas internas (...)72
Dessa maneira, devido à alta rotatividade de pessoas e outras questões estrutu-
rais, tem-se em conta o desconforto e a insegurança para todos os outros morado-
res do condomínio.
Além disso, conforme definido por estudo da Comissão de Direito Condominial
da OAB-SP, em parecer técnico referente às locações atípicas no padrão AirBnB em
condomínios edilícios, assinado por seu vice-presidente à época, tem-se que: “O
sistema do chamado ‘AirBnB’ é outro ainda, com suas características próprias que,
igualmente, não se aplica ao condomínio como instituído e convencionado, por
tratar-se, abertamente, de um site especializado em intermediação e agendamento
de ‘hospedagem’”. 73
Alexandre Augusto Ferreira Macedo Marques, em seu parecer, completa dizen-
do que:

72 CAMELLO, Rogério. A locação por temporada através dos aplicativos x normas condominiais
– Conflitos. Disponível em: < https://bit.ly/2Z7JgLb >. Acesso em: 20 nov. 2018.
73 MARQUES, Alexandre Augusto Ferreira Macedo. Parecer sobre a locação atípica de unidades
condominiais em condomínios edilícios exclusivamente residenciais no padrão “AirBnB”.
Disponível em: < https://bit.ly/2KLr2fo >. Acesso em: 20 nov. 2018.
93
Frederico Cardoso de Miranda
O que não é permitida é a hospedagem “por hora”, “dia”, “parte do imóvel (cômo-
dos)”, com caráter claramente de mercancia, atípico, inominado, onde o pactuado
entra as partes, não põe a salvo os direitos dos comunheiros e a responsabilidade ci-
vil necessária na defesa da integridade do patrimônio comum.74
Evidentemente, a locação por temporada é permitida em qualquer condomínio,
sendo proibida a locação por hora, dia e de cômodos nos condomínios edilícios
com a destinação exclusivamente residencial, por destoar a destinação do edifício.
Outro ponto utilizado pela corrente contrária é o fato de que as locações inter-
mediadas pelas plataformas digitais possibilitam a locação por dia, hora e de parte
da unidade autônoma (cômodos), entre outras possibilidades, sendo essa uma ca-
racterística essencial de serviços de hospedagem, cujo regime é o da Lei 11.771/08 e,
com isso, havendo significativa mudança na destinação do imóvel, que de residen-
cial passaria a ser comercial, não seria lícito fazê-lo.
Além dessa mudança de destinação e da falta de segurança, já citada alhures, ou-
tro fato utilizado e evidenciado é a perturbação à ordem do condomínio, que, anali-
sando as situações fáticas, nem sempre contam com serviços de portaria e de limpe-
za regular, por questões financeiras ou por serem condomínios de pequeno porte;
assim, havendo aceitação dessas locações, haveria um aumento significativo do
fluxo de pessoas no âmbito interno e, consequentemente, um prejuízo para os mo-
radores, que estariam à mercê dessa mudança da rotina do condomínio.
No próprio sitio eletrônico da AirBnB é possível perceber algumas regras a se-
rem seguidas pelos “anfitriões”, e ainda é possível perceber que todos os usuários
da plataforma são considerados hóspedes, excluindo, assim, a incidência da Lei do
Inquilinato. A preocupação da plataforma digital com a destinação do condomínio
é clara – e fica evidenciada na aba do site que é denominada “Hospedando com
responsabilidade”:
Permissões
Quem eu devo notificar sobre minhas atividades de hospedagem no AirBnB?

74 MARQUES, Alexandre Augusto Ferreira Macedo. Parecer sobre a locação atípica de unidades
condominiais em condomínios edilícios exclusivamente residenciais no padrão “AirBnB”.
Disponível em: < https://bit.ly/2KLr2fo >. Acesso em: 20 nov. 2018.
94
A vedação à locação esporádica de imóveis residenciais por aplicativo
Contratos:
Consulte sua Associação de Moradores ou as regulamentações do seu condomínio
para certifica-se de que sublocações não são proibidas ou que não haja nenhuma
restrição em relação à hospedagem. Leia os termos da sua locação e consulte seu lo-
cador se necessário. Talvez seja interessante considerar a inclusão de uma cláusula
em seu contrato que regule os interesses das partes e explique as responsabilidades e
obrigações de todos os envolvidos. 75
Com isso, novamente, nota-se que todos os usuários da plataforma são conside-
rados hóspedes e o próprio site explicita preocupação com a existência de alguma
restrição em relação à hospedagem. Essa preocupação se deve a alguns processos
judiciais que a empresa vem recebendo desde de sua criação, como destaca Leigh
Gallagher:
Como se revelou, a própria atividade da AirBnB, alugar a casa de alguém por um
curto período, viola leis de vários lugares. As leis são superlocais e não variam ape-
nas de estado a estado ou cidade a cidade, mas de vila a vila. E a trama regulatória é
complexa: anfitriões podem entrar em conflito com leis locais em relação a aluguéis
de curto prazo, cobrança de impostos, padrões de códigos de edificações, regula-
mentos de zoneamento e muito mais. 76
Assim, desde o surgimento da empresa, essa esbarra em legislações em toda par-
te do planeta, desde regulamentos internos a legislações federais, estaduais e muni-
cipais, que proíbem, ou melhor, regulam a locação/hospedagem em condomínios.
O problema mais grave que a empresa enfrentou ocorreu em Nova Iorque, onde
se tentou passar uma nova emenda à chamada “Lei de Habitação Múltipla”, que
tornaria ilegal alugar apartamentos em prédios locais com três ou mais unidades,
por menos de trinta dias.77

75 Diretrizes retiradas no site do AirBnB. Disponível em:


<https://www.AirBnB.com.br/help/article/1397/responsible-hosting>. Acessado em: 30 nov.
2018.
76 GALLAGHER, Leigh. A história da AirBnB: como três rapazes comuns agitaram uma indústria,
ganharam bilhões... e criaram muita controvérsia. Tradução de Santiago Nazarian. São Paulo:
Buzz Editora, 2018, p. 133-134.
77 GALLAGHER, Leigh. A história da AirBnB: como três rapazes comuns agitaram uma indústria,
95
Frederico Cardoso de Miranda
Cita-se esse problema ocorrido em Nova Iorque, que tentava proibir a locação
por curto período de tempo, e relembra-se que, no Brasil, a Lei do Inquilinato já
prevê a locação por temporada com o prazo máximo de noventa dias.
A informalidade e a alta rotatividade, são questões que elevam a contrariedade
da locação por meio de aplicativos, uma vez que, pela agilidade da locação, propor-
cionada pelos sites especializados, a segurança – direito de todos os moradores –
bem como o direito ao sossego e o respeito à destinação do condomínio, acabam
por inviabilizar essas locações em condomínios edilícios estritamente residenciais.
Inclusive, um ponto interessante de ser citado é que o Sistema Brasileiro de
Classificação de Meios de Hospedagem (SBClass), que é a ferramenta de comunica-
ção entre o setor hoteleiro e os turistas, determina, em sua cartilha de orientação
básica, a definição de “hospedagem cama e café”, que nada mais é do que a tradu-
ção de “air, bed and breakfast”, ou AirBnB, como já explicado no início do artigo.
Para o SBClass78, a “hospedagem cama e café” é: “Hospedagem em residência
com no máximo três unidades habitacionais para uso turístico, com serviço de café
da manhã e limpeza, na qual o possuidor do estabelecimento resida.”
Interessante notar que esse conceito é o mesmo fixado pelo AirBnB, quando de
sua criação, como afirma Leigh Gallagher: “Eles poderiam alugar um lugar barato
para ficar e até oferecer o café da manhã.”79
Por fim, apesar do avanço da tecnologia e da facilidade da locação pelas plata-
formas digitais especializadas, como o AirBnB, para os condomínios residenciais,
essa prática pode gerar aumento da taxa condominial, da insegurança nas depen-
dências do condomínio, utilização indevida da unidade, além do desvio da destina-
ção das unidades autônomas, causando inúmeros transtornos e prejuízos aos con-

ganharam bilhões... e criaram muita controvérsia. Tradução de Santiago Nazarian. São Paulo:
Buzz Editora, 2018, p. 135.
78 BRASIL. Ministério do Turismo. Disponível em: < https://bit.ly/2IhRlrn >. Acessado em: 10 jan.
2019.
79 GALLAGHER, Leigh. A história da AirBnB: como três rapazes comuns agitaram uma indústria,
ganharam bilhões... e criaram muita controvérsia. Tradução de Santiago Nazarian. São Paulo:
Buzz Editora, 2018, p. 30.
96
A vedação à locação esporádica de imóveis residenciais por aplicativo
dôminos.

3.2 Posição favorável à locação através dos aplicativos

Apesar de todos os pontos convincentes apresentados pela corrente contrária à


locação por intermédio de aplicativos como o AirBnB, existe a corrente que é favo-
rável à locação da unidade autônoma em condomínio edilício residencial por in-
termédio dos aplicativos.
Os adeptos dessa corrente justificam a aceitação dessa modalidade de locação
devido ao direito do proprietário de usar e gozar do seu imóvel livremente, poden-
do realizar a locação por temporada, uma vez que essa é regida pela Lei do Inquili-
nato, na medida em que o artigo 48 da lei determina tão somente o prazo máximo,
mas não estipula o prazo mínimo da locação por temporada.
Com isso, defende-se que o direito do proprietário de usar, gozar e dispor da sua
unidade autônoma deve ser resguardado e aplicado, não se admitindo, em nenhum
momento, a proibição às locações por intermédio dos sites especializados.
Nesse sentido, Rogério Camello explica: “Aqueles que defendem a locação por
meio de aplicativos entendem-na como locação por temporada, portanto prevista
em lei. Defendem, ainda, que cabe ao proprietário usar e gozar de sua propriedade
da forma que melhor lhe aprouver.” 80
Assim, a maior justificativa dessa corrente doutrinária é o direito ao uso e à frui-
ção da propriedade privada, resguardada pelo artigo 1.228 do Código Civil81 brasi-
leiro, e também garantido pelo artigo 5º, inciso XXII da Constituição Federal.82

80 CAMELLO, Rogério. A locação por temporada através dos aplicativos x normas condominiais
– Conflitos. Disponível em: < https://bit.ly/2Z7JgLb >. Acesso em: 20 nov. 2018.
81 Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la
do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha
82 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) XXII - é garantido o direito de
propriedade;
97
Frederico Cardoso de Miranda
Para essa corrente, a liberação da locação realizada pelo AirBnB é legal devido ao
já citado direito de gozar – jus fruendi – da sua unidade autônoma (propriedade
privada), que seria o direito a receber os frutos pela a utilização da coisa, por exem-
plo, através do recebimento de diárias e aluguéis, sendo esse, inclusive, um direito
legalmente protegido.
Por fim, em síntese, para as pessoas que são favoráveis à locação por intermédio
do AirBnB, não existe desvio da destinação do condomínio, uma vez que não se
busca exploração comercial da unidade, mas sim o direito de gozar da propriedade
e dos frutos que advêm dessa, aplicando-se diretamente as regras da Lei do Inquili-
nato e não a Política Nacional de Turismo (Lei 11.771/08).

4 Direito à propriedade e sua função social

Para um melhor entendimento sobre o fundamento da posição que é favorável à


locação via aplicativos como o AirBnB, é necessário entender o que é ‘direito de
propriedade’ e sua evolução até a delimitação da propriedade, constitucionalmente
prevista, ou seja, a função social que cada propriedade exerce.
Propriedade, que é uma palavra de origem latina (proprietas), significa ‘o que
pertence à alguém’; é um direito real e fundamental, que sempre foi objeto de estu-
do dos civilistas durante várias gerações.
Flávio Tartuce conceitua propriedade como:
(...) o direito que alguém possui em relação a um bem determinado. Trata-se de um
direito fundamental, protegido no art. 5.º, inc. XXII, da Constituição Federal, mas
que deve sempre atender a uma função social, em prol de toda a coletividade. A
propriedade é preenchida a partir dos atributos que constam do Código Civil de
2002 (art. 1.228), sem perder de vista outros direitos, sobretudo aqueles com subs-
trato constitucional.83
Maria Helena Diniz, conceitua propriedade como: “o direito que a pessoa natu-
ral ou jurídica tem, dentro dos limites normativos, de usar, gozar e dispor de um

83 TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil. vol. único. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p.
982.
98
A vedação à locação esporádica de imóveis residenciais por aplicativo
bem, corpóreo ou incorpóreo, bem como de reivindica-lo de quem injustamente o
detenha.” 84
No direito romano, a propriedade era vista como absoluta, ou seja, tinha caráter
individualista. Hoje, a propriedade tem um caráter coletivo, sendo sua função social
um dos preceitos descritos na Carta Magna brasileira (artigo 182 da Constituição
Federal). Nesse sentido, Cristiano Sobral, citando Cristiano Farias e Nelson Rosen-
vald, explica o que seria e por qual motivo se busca preservar a função social, verbis:
Com muita maestria Cristiano Chaves Farias e Nelson Rosenvald nos ensinam que
se busca paralisar o egoísmo do proprietário, com prevalência de valores ligados à
solidariedade social, a fim de que o exercício dos poderes dominiais seja por uma
conduta ética, pautada no respeito aos interesses metaindividuais que sejam dignos
de tutela, e o acesso de todos a bens mínimos capazes de conferir-lhes uma vida dig-
na.85
E continua dizendo que:
O Código Civil, preocupado com o atendimento da função social, menciona que são
defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e
sejam animados pela intenção de prejudicar outrem. Trata-se da chamada Teoria
dos Atos Emulativos (abuso de direito), daquele proprietário que, por exemplo, bus-
ca prejudicar o seu vizinho (animus nocendi). 86
Dessa maneira, como já amplamente ilustrado em tópicos anteriores do estudo,
apesar de uma das características do direito de propriedade dizer ser seu caráter
absoluto, um grande equívoco se comete dizendo que esse não pode ser limitado,
pois a sua característica de absoluto refere-se tão somente à oponibilidade a todos,
ou seja, é um direito dotado de eficácia erga omnes, conforme afirmativa de Cristi-
ano Sobral87, que, ao conceituar o direito de propriedade, afirma que esse é absoluto

84 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito das coisas. 28. ed. São Paulo:
Saraiva, 2014, v. IV, p. 134.
85 PINTO, Cristiano Vieira Sobral. Direito civil: sistematizado. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014,
p. 787-788.
86 PINTO, Cristiano Vieira Sobral. Direito civil: sistematizado. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014,
p. 789.
87 PINTO, Cristiano Vieira Sobral. Op. Cit. p. 787.
99
Frederico Cardoso de Miranda
e explica: “Ao contrário dos direitos pessoais, o direito de propriedade se exerce em
face de todos (erga omnes). Não poderá o proprietário utilizar a propriedade como
bem entender. Deve esse respeitar a norma prevista no art. 1.228, § 1º, do CC.”.
Nessa mesma senda, afirma Maria Helena Diniz88:
Ante todas as ideias aqui expendidas pode-se atribuir, num certo sentido, ao direito
de propriedade, caráter absoluto não só devido a sua oponibilidade erga omnes, mas
também por ser o mais completo de todos os direitos reais, que dele se desmem-
bram, e pelo fato de que o seu titular pode desfrutar e dispor do bem como quiser,
sujeitando-se apenas às limitações impostas em razão do interesse público ou da co-
existência do direito de propriedade de outros titulares. (CC, art. 1.228, §§ lº e 2º).
E completa dizendo: “Claro está que o seu caráter absoluto não se apresenta com
a feição que revestia no direito romano, devendo ser entendido dentro do âmbito
em que a norma jurídica permite seu movimento e desenvolvimento.” 89
Colocando fim a discussão sobre o direito de propriedade ser absoluto, Cleyson
de Moraes Mello afirma:
A propriedade, quanto ao seu exercício, não pode ser considerada um direito abso-
luto, já que ao longo do tempo vem sofrendo limitações cada vez maiores. Quanto à
oponibilidade, a propriedade é um direito absoluto (erga omnes), já que este direito
pode ser oposto a qualquer pessoa (são exercidos em face de toda a coletividade) que
tenha violado o meu direito de propriedade. Daí que a propriedade gera uma obri-
gação negativa genérica, uma vez que todos os membros da sociedade não podem
violar o direito de propriedade de outrem.90
Dessa maneira, conclui-se que uma propriedade limita a outra, ou seja, a socie-
dade em geral não pode violar o direito de propriedade de outem. A propriedade
privada de um terceiro não pode violar o direito de propriedade do próximo e vice-

88 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito das coisas. 28. ed. São Paulo:
Saraiva, 2014, v. IV, p. 136.
89 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito das coisas. 28. ed. São Paulo:
Saraiva, 2014, v. IV, p. 134.
90 MELLO, Cleyson de Moraes. Direito civil: direito das coisas. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos,
2017, p. 144.
100
A vedação à locação esporádica de imóveis residenciais por aplicativo
versa, por isso, fala-se em ‘função social da propriedade’, retirando a ideia indivi-
dualista de que a propriedade é intocável/absoluta e inserindo no ordenamento a
ideia comunitária/social, como já explicado.
Ademais, antes de entrar no tema das limitações ao direito de propriedade, de-
ve-se ter em conta os elementos constitutivos (conteúdo) da propriedade, que são:
jus utendi, jus fruendi, jus abutendi e reivindicatio, que, em bom português, signifi-
cam usar, gozar, dispor e reivindicar.
Rubens Carmo Elias Filho diz:
Tratando, especificamente, do conteúdo do direito de propriedade, vários atributos
decorrem de seu conteúdo, que se resumem na trilogia romana do jus utendi, fruen-
di et abutendi, acrescentando-se o poder de reaver a coisa injustamente possuída
por outrem. 91
Para o presente estudo, interessa saber apenas o que é o direito de usar e gozar,
e, nas palavras de Maria Helena Diniz:
O direito de usar da coisa é o de tirar dela todos os serviços que ela pode prestar,
sem que haja modificação em sua substância. O titular do jus utendi pode empregá-
lo em seu próprio proveito ou no de terceiro, bem como deixar de utilizá-lo, guar-
dando-o ou mantendo-o inerte. Usar do bem não é apenas retirar vantagens, mas
também ter o bem em condições de servir. O jus utendi é o direito de usar a coisa,
dentro das restrições legais, a fim de se evitar o abuso do direito, limitando-se, por-
tanto, ao bem-estar da coletividade. 92
O jus fruendi se exterioriza na percepção dos frutos e na utilização dos produtos
da coisa. É o direito de gozar da coisa ou de explorá-la economicamente. Reforça
esse atributo da propriedade o disposto no Código Civil no art. 92 – a existência do
acessório supõe a do principal – e no art. 1.232: o dono do principal sê-lo-á do aces-
sório, pois "os frutos e mais produtos da coisa pertencem, ainda quando separados,
ao seu proprietário, salvo se, por preceito jurídico especial, couberem a outrem"; é o

91 ELIAS FILHO, Rubens Carmo. Condomínio edilício: aspectos de direito material e processual.
São Paulo: Atlas, 2015, p. 34.
92 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito das coisas. 28. ed. São Paulo:
Saraiva, 2014, v. IV, p. 135.
101
Frederico Cardoso de Miranda
que se sucede no uso, na habitação, no usufruto, na locação e também no caso de
posse, na hipótese do art. 1.214 desse mesmo diploma legal.
Para Rubens Carmo Elias Filho:
A faculdade de usar enseja colocar a coisa a serviço do titular sem alterar-lhe a subs-
tância, servindo-se da coisa, ou terceiro, de forma geral, lembrando, sempre, que o
uso se subordina às normas de boa vizinhança e é incompatível com o abuso do di-
reito de propriedade (...)
A faculdade de gozar envolve a percepção de frutos, naturais e civis, ou seja, extrair
da coisa benefícios e vantagens. Direito aos frutos, previsto no art. 1.232 do Código
Civil, é uma das modalidades do gozo da coisa, todavia, os frutos e demais utilidades
podem ser atribuídos a outrem (...)93
Com isso, explica-se o que seria o direito de usar e o de gozar, importantíssimos
para entender o tema principal do trabalho, destacando-se que o direito de usar a
coisa limita-se, assim como a propriedade, ao direito de vizinhança e aos interesses
da coletividade, bem como o direito de gozar da propriedade, ou seja, dela retirar os
frutos, também se limita aos direitos e interesses da coletividade, que, em resumo,
pode-se dizer que corresponde ao cumprimento da função social da propriedade.
Dito isso, deve-se aprofundar um pouco mais sobre a limitação do direito de
propriedade, sendo que esse se limita pelo interesse da coletividade ou pelo interes-
se público, existindo limitações administrativas, legais e convencionais que confi-
guram verdadeira barreira ao direto de propriedade, que, no condomínio edilício,
pode ser descrito como limite a não desviar a destinação desse, não perturbar o
sossego e a segurança da coletividade.
Sobre as limitações legais, Maria Helena Diniz leciona:
As limitações legais ao direito de propriedade são as que estão contidas em leis espe-
ciais que têm por objetivo proteger não só o interesse público, social ou coletivo,
bem como o interesse privado ou particular considerado em função da necessidade
social de coexistência pacífica.94

93 ELIAS FILHO, Rubens Carmo. Condomínio edilício: aspectos de direito material e processual.
São Paulo: Atlas, 2015, p. 35.
94 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito das coisas. 28. ed. São Paulo:
102
A vedação à locação esporádica de imóveis residenciais por aplicativo

Dessa maneira, é necessário lembrar que a destinação do condomínio é uma li-


mitação legal ao direito de propriedade, pois aos condôminos é imposto pela lei a
necessidade de não alterar a destinação do condomínio.
Além disso, existe também as limitações em razão do interesse privado, como
explica bem Maria Helena Diniz:
As limitações ao domínio em razão do interesse privado, segundo Messineo, inspi-
ram-se no princípio da relatividade dos direitos e no propósito de sua coexistência
harmônica e pacífica, fundando-se no próprio interesse do titular do bem ou de ter-
ceiro a quem ele pretenda beneficiar, não afetando dessa forma a extensão do exer-
cício do direito de propriedade. Caracteriza-se por sua bilateralidade, ante o vínculo
recíproco que estabelece, situando-se, portanto, no campo do direito civil.95
Na mesma senda, Rubens Carmo Elias Filho, aduz: “A propriedade deverá ser
exercida de tal maneira que não prejudique o direito de terceiro (...).”96
Dessa maneira, o direito de vizinhança é outro limitador fundamental para me-
lhor ambientação e entendimento do assunto, não podendo o proprietário prejudi-
car o sossego e a segurança dos outros condôminos, além de que, estando conven-
cionado o fim residencial das unidades autônomas, essa automaticamente vira um
limitador da propriedade, mas, de nenhuma forma, subtrai o direito do proprietário
de usar, gozar, dispor e reivindicar a sua propriedade – apenas limita sua fruição,
podendo gozar dos frutos, desde que não desvirtue a destinação residenci-
al/comercial, e também que não prejudique os demais.
Apenas para reforçar essa ideia, cita-se os dizeres de Sílvio de Salvo Venosa:
“Convivendo em comunidade restrita, embora desfrutando da autonomia de seu
direito de propriedade sobre a unidade autônoma, aos condôminos cabem direitos

Saraiva, 2014, v. IV, p. 293.


95 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito das coisas. 28. ed. São Paulo:
Saraiva, 2014, v. IV, p. 293 -294.
96 ELIAS FILHO, Rubens Carmo. Condomínio edilício: aspectos de direito material e processual.
São Paulo: Atlas, 2015, p. 38.
103
Frederico Cardoso de Miranda
e deveres.” 97 Evidencia-se, pois, que os deveres dos condôminos, per si, já são uma
limitação ao direito de propriedade, legal e convencional, pois estão elencadas no
Código Civil e complementadas pela convenção e pelo regimento interno de cada
condomínio.
Por fim, em nenhum momento o proprietário será prejudicado por retirar o fru-
to da sua unidade, desde que respeite o direito da coletividade, em especial nos
condomínios edilícios, observando a destinação do condomínio e zelando pelo
sossego e pela segurança de todos para assim cumprir a função social da proprieda-
de, que, nas propriedades horizontais, inclui respeitar as convenções.

5 Análise jurisprudencial

A questão referente à utilização do AirBnB foi parar no Judiciário, tendo seu


precedente de exórdio na sentença do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Ja-
neiro, proferida nos autos nº 0127606-47.2016.8.19.0001, em que se declarou a
proibição da locação da cobertura de um condomínio por intermédio do aplicativo
AirBnB, destacando-se, na decisão, as seguintes falas do magistrado:
Na hipótese, o anúncio da unidade disponível no sítio eletrônico do AirBnB de-
monstra que a mesma pode ser alugada com a escolha da data de entrada (check-in)
e data de saída (check-out), de modo que as cobranças são feitas por diárias, com
desconto para alugueis semanais e mensais. Evidente, portanto, que se trata de meio
de hospedagem, definido, na forma do art.23 da Lei n° 11.771/2008, a qual dispõe
sobre a Política Nacional do Turismo, como empreendimentos ou estabelecimentos,
independentemente de sua forma de constituição. (...) Não bastasse a violação às
normas internas do Condomínio, é necessário, para o funcionamento de hospeda-
gem, seja realizado cadastro no Ministério do Turismo (art. 23, §1º, Lei n°
11.771/2008), bem como registro na Empresa Brasileira de Turismo -EMBRATUR
(art. 3º, Decreto 84.910,1980), o que não foi feito. Outrossim, os Termos de Oitiva
de Testemunhas de fls. 352/355 demonstram que a prática comercial do réu tem
causado insatisfação nos demais condôminos, além de causar prejuízos ao sossego, à
salubridade e à segurança dos mesmos, eis que as testemunhas relataram que perce-

97 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: direitos reais. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2017, v. 4, p. 363.
104
A vedação à locação esporádica de imóveis residenciais por aplicativo
bera, ‘de forma clara uma rotatividade grande de pessoas’, ‘que aconteciam festas
com barulho, circulação de pessoas sem respeito às regras do prédio’ e ‘que a loca-
ção começou a gerar incômodos pela quantidade de pessoas em curto espaço de
tempo, além de festas’. Necessária, portanto, a ponderação do exercício do direito de
propriedade com o direito ao sossego e à segurança dos condôminos, devendo pre-
valecer estes em detrimento daquele, à luz das circunstâncias do caso concreto. 98
Dessa forma, é possível constatar que, no caso apresentado, o julgador conside-
rou a locação por intermédio do site AirBnB verdadeiro desvio da função residenci-
al do condomínio, além de demonstrar a limitação do direito da propriedade em
detrimento do direito da coletividade. Importante salientar que, o Tribunal do Rio
de Janeiro já julgou ações referentes à locação por temporada99 – possibilidade exis-
tente na Lei do Inquilinato –, e mesmo assim, decidiu-se que essa modalidade não
seria possível em condomínios edilícios com fim exclusivamente residencial.
Contudo, é importante destacar partes do voto do Desembargador Fernando
Cerqueira Chagas, que deixa claro que, ao condômino, cabe respeitar as limitações
ao direito da propriedade, impostas pela Convenção e pelo Regimento Interno,
verbis:
É consabido que o condômino deve respeitar a Convenção do Condomínio e seu
Regulamento Interno, sujeitando-se às limitações ao exercício da propriedade, desde
que fundadas naquelas normas internas, sob pena de ser passível de sofrer as penali-
dades previstas na hipótese de descumprimento. A imposição das referidas limita-
ções se respalda na Teoria da Pluralidade dos Direitos Limitados, consoante lição de
Wilson Batalha (in WILSON BATALHA, "Loteamentos e Condomínios", 1953, vol.

98 RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Acórdão de decisão que
julgou, em sede de recurso, a necessidade de seguir a destinação do condomínio, para fins resi-
denciais (inteiro teor). Apelação Cível nº 0075033-03.2014.8.19.0001. Relator: Des. Fernando
Cerqueira Chagas. 15 de abril de 2015. Disponível em: < https://bit.ly/2Dh3wRc>. Acesso em: 25
nov. 2018.
99 RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Apelação Cível n° 0075033-
03.2014.8.19.0001. Relator Des. Fernando Cerqueira Chagas, j. 15.04.2015. Disponível em: <
http://www1.tjrj.jus.br/gedcacheweb/default.aspx?UZIP=1&GEDID=000487BAD227D20CAF7
81C576170851F62AAC5035D240B04&USER= >. Acessado em: 20 dez. 2018.

105
Frederico Cardoso de Miranda
II. p. 22 e segs.):“A concorrência de várias propriedades sobre a mesma coisa acarre-
ta, necessariamente, a idéia de limite entre elas. Cada propriedade limita e cada pro-
priedade é limitada. Aí se ensarta o conceito de quota, como medida do limite das
diversas propriedades concorrentes sobre a mesma coisa. E esta a única construção
jurídica que atende a verdadeira natureza do condomínio. (omissis). Em outros ter-
mos, o condomínio é, na frase expressiva de Sciarloja, uma relação de igualdades
que se limitam reciprocamente, uma relação de equilíbrio, que torna possível a coe-
xistência de direitos iguais sobre a mesma coisa na medida em que o exigem as
mesmas faculdades atribuídas ao demais. E Oliveiro Bosisio adverte que "o direito
de propriedade não se divide nem por quotas ideais nem por quotas reais e que,
quando se fala em quotas no condomínio, se faz referência à proporção segundo a
qual os direitos dos condôminos reciprocamente se limitam. Em substância, a quota
é a proporção que representa a utilidade auferida da coisa comum por cada condô-
mino, servindo também para estabelecer a parte de contribuição para as despesas e a
parte correspondente a cada um na repartição dos resultados de vendas eventuais. A
compressão do direito de cada condômino, em virtude dos direitos dos demais con-
dôminos, não faz desaparecer o conceito de propriedade. A elasticidade do domínio
permite que este se comprima e se limite, sem desaparecer (...)”
Com isso, o desembargador aduz que o direito da propriedade não é absoluto, e
que, como já mencionado, dentro do condomínio, os direitos dos proprietários são
limitados por eles, seja por meio da convenção, do regimento interno, ou pelo res-
peito que deve haver entre as unidades autônomas.
Ainda sobre o tema, poderia ser citado o julgado do Tribunal do estado de São
Paulo, que ao julgar o Agrado de Instrumento n° 0088776-93.2011.8.16.000, solici-
tou-se o fim dos contratos de hospedagem, pois a Convenção Condominial estabe-
lecia a destinação exclusivamente residencial das unidades autônomas.
Contudo, apesar de inúmeros julgados respaldando a vedação da locação dos
apartamentos pelo AirBnB, existem algumas decisões que permitem essa locação,
como a decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, na Apelação 13193025
PR, de relatoria do Des. Guilherme Freire de Barros Teixeira, julgada em
12/03/2018, na qual se decidiu pela possibilidade da locação por temporada, devido
ao direito do proprietário de usar, gozar e dispor do seu bem, sendo que, no caso,
não se encontrou afronta à Convenção Condominial.
Nota-se, pela análise dos precedentes trazidos à colação, que a questão ainda não
106
A vedação à locação esporádica de imóveis residenciais por aplicativo
está resolvida nos tribunais pátrios, existindo julgados em diversos sentidos, desta-
cando-se as principais justificativas de quem é contra e de quem é à favor da loca-
ção por intermédio das plataformas digitais.

Considerações finais

Após breve explicação sobre a locação através de aplicativos/sites como o Air-


BnB, entre tantos outros, foi possível concluir que essa forma de locação é conside-
ra “atípica”, pois ainda existem inúmeras divergências na jurisprudência e na dou-
trina sobre o assunto.
Dessa maneira, caso a atividade disponibilizada por essas plataformas seja con-
siderada locação por temporada, poderá, mesmo assim, ser vedada em condomí-
nios edilícios, conforme sinalizado pela jurisprudência do Tribunal de Justiça do
Estado do Rio de Janeiro; caso seja considerada hospedagem, que, como visto, tem
um conceito diferente de locação, caracterizará mercancia, e então essa locação será
vedada por destoar da finalidade precípua do condomínio edilício com fim exclusi-
vamente residencial.
Além disso, é de se notar que, devido ao avanço tecnológicos, a possibilidade de
exploração imobiliária por proprietários que desejam simplesmente locar seus
apartamentos ou cômodos surge como uma alternativa para a crise financeira vi-
venciada atualmente; contudo, para que possa haver essa locação “atípica”, adotan-
do-se a teoria de que é verdadeiramente uma hospedagem, devido às suas caracte-
rísticas, é necessária a adequação da convenção do condomínio, para que se admita
essa finalidade, bem como para que se tenha ajustes em toda a infraestrutura do
edifício, como contratação de portaria, vigia, serviço de limpeza e etc., para que não
haja prejuízos à rotina e à segurança dos demais moradores.
Dessa maneira, conforme posição encontrada nas mais renomadas e clássicas
doutrinas citadas no presente estudo, entende-se que a hospedagem e a locação
atípica (AirBnB) não são aceitas pelo ordenamento, pois, a princípio, retiram o
caráter residencial do condomínio e trazem prejuízos à segurança e ao sossego dos
demais moradores por causa do grande fluxo de pessoas estranhas.
Ainda, a crítica realizada pela posição favorável a essa locação, de que o direito
107
Frederico Cardoso de Miranda
de propriedade permite a locação atípica, pois ao proprietário é resguardado o di-
reito de usar, gozar, dispor e reaver sua propriedade, é totalmente desmantela-
da/rechaçada pelo fato de que esse direito não é absoluto, havendo limitações ao
uso e gozo da propriedade, sendo o próprio direito de propriedade um limitador,
além, é claro, do direito de vizinhança e da convenção condominial.
Nesse sentido, não se está indo contra o preceito constitucional que resguarda o
direito de propriedade, mas, sim, se está respeitando esse direito, que também prevê
que a propriedade deva cumprir a sua função social, ou seja, acaba-se com a ideia
individualista (absoluta) da propriedade, devendo essa respeitar outros direitos,
como amplamente difundido no estudo.
O posicionamento do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, analisado
como leading case deste breve estudo, foi perfeito quando tratou da relativização do
direito de propriedade e do conceito de hospedagem – devido à possibilidade de
“locação” por diárias – além, é claro, de haver, no caso concreto, diversas perturba-
ções ao sossego, o que agravou mais ainda a situação da locação atípica apresentada
no julgado.
Nesse percurso, foram apresentadas jurisprudências de diversos tribunais, que
acolhem a ideia da proibição dessa locação e de que o uso da unidade autônoma
deve se dar em consonância com a lei, com a convenção ou com a especificação do
condomínio, com sua destinação e sua finalidade, sob pena de se cometer infração,
podendo ser aplicada as penas previstas tanto na legislação, quanto na convenção.
Frise-se que é fato o anseio da sociedade por relações rápidas e desburocratiza-
das, e que os sites especializados em locações atípicas nasceram para revolucionar
ainda mais as relações humanas; todavia, devem ser utilizados com cuidado, de-
vendo o condomínio que aceitar esse estilo de locação estabelecer, no mínimo, cri-
térios básicos baseados em programas como o da própria AirBnB, The AirBnB Fri-
endly Buildings Program, ou seja, Programa Prédios Amigos do AirBnB, que consis-
te em criar regras especificas de hospedagem para aquele prédio cadastrado no pro-
grama.
Perfilhamo-nos totalmente à ideia de que a hospedagem “atípica”, por intermé-
dios dos sites especializado como o AirBnB têm uma característica mercantil, que
desvirtua a destinação do condomínio, bem como ao fato de a grande rotatividade

108
A vedação à locação esporádica de imóveis residenciais por aplicativo
de pessoas em curto espaço de tempo aumentar os riscos e as desavenças internas.
Deve-se lembrar que existem condomínios sem porteiros ou qualquer outro ser-
viço fixo, e, havendo disponibilização de chaves a um estranho a cada dia (diárias),
ou a mais de uma pessoa que ocupará o mesmo apartamento (locação de cômodos),
estar-se-á diante de um número não identificado de pessoas entrando e saindo do
condomínio, o que por si já perturba o sossego dos demais moradores, devido à
alteração da rotina do condomínio exclusivamente residencial, além de outras
questões, como a proibição de sublocação, a superlotação do condomínio e etc.
Nesse aspecto, deve-se perceber que a sociedade muda e, com os avanços tecno-
lógicos, as legislações começam a ficar obsoletas, pois não acompanham em tempo
hábil as transformações sociais e tecnológicas; então, incumbe a todos a discussão
do tema com respeito, dentro de uma assembleia de condomínio, para proibir ou
regulamentar a locação por intermédio dos sites/aplicativos especializados, buscan-
do sempre o conforto, a segurança e o sossego de todos os envolvidos na relação
condominial.

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112
DATA MINING VERSUS PRIVACIDADE DO
CONSUMIDOR NA INTERNET

4
Gabriel Oliveira de Aguiar Borges
Sthéfane Alves Vasconcelos

Introdução

Em constante transformação, a sociedade contemporânea é marcada pela fluidez


das relações e consequente fragilidade da segurança jurídica, caracterizada pelas
relações da sociedade em rede, por meio de conexões, em que o consumo ganhou
destaque na formação da identidade.
A evolução da sociedade e da tecnologia modificou significativamente o modo
de interação das pessoas. A atual sociedade de consumo é inserida em um ambiente
caracterizado pela intensa produção e disseminação da informação. Por sua vez, a
chamada sociedade da informação é caracterizada por riscos exponenciais, diante
da imediatidade, instantaneidade e liquidez da informação na era digital.1
Diante deste novo contexto de exploração e interação humana, deve-se adotar
instrumentos a fim de que esta dimensão na convivência global constitua apenas
locus de promoção da pessoa e não de aviltamento ou de rebaixamento da qualida-
de de vida.2

1 PINHEIRO, Patrícia Peck (Coord.). Direito Digital Aplicado 3.0. São Paulo: Revista dos Tribu-
nais, 2018, p. 218.
2 MARTINS, Fernando Rodrigues. Sociedade da informação e promoção à pessoa: empoderamen-
113
Gabriel Oliveira de Aguiar Borges / Sthéfane Alves Vasconcelos
Em uma sociedade marcada por relações caracterizadas pela velocidade, ubiqui-
dade e liberdade, em que a Internet ganha referência de destaque, sobressai a neces-
sidade da proteção da pessoa humana face à globalização, com uma proteção efetiva
dos consumidores frente às novas tecnologias.3
Trata-se de concretizar prudentemente o balanceamento axiológico entre a tec-
nologia e as novas raízes fecundas e constitucionais da privacidade, como direito
fundamental essencial ao livre desenvolvimento da personalidade, diante da pers-
pectiva que os dados, especialmente os pessoais, têm valor não apenas econômico e
social, mas igualmente jurídico, e, portanto, são exigentes de ampla tutela4.
As práticas oriundas desta atual realidade digital penetram a cultura de cada so-
ciedade, ao passo que cada vez mais pessoas utilizam-se da Internet, e mais infor-
mações, inclusive dados ligados à personalidade da pessoa, são levadas à rede, tor-
nando-se acessíveis a milhões de usuários em qualquer parte do mundo.
Nesse contexto, constata-se grande evolução do conceito de privacidade. Isso
porque, na atualidade, tem-se o direito de manter o controle sobre as próprias in-
formações e de determinar as modalidades de construção da própria esfera privada.
Assim, o direito à privacidade pode ser considerado verdadeiro instrumento fun-
damental contra a discriminação e a favor da igualdade e da liberdade.5
Portanto, vive-se uma era em que informações de cunho personalíssimo são ob-
jetos de uma exposição fomentada e enaltecida social e culturalmente, em constante
oferta pelos prestadores ditos gratuitos, normalmente baseada na remuneração
indireta, e que tende a atrair a incidência das normas do Código de Defesa do Con-
sumidor.

to humano na concretude de novos direitos fundamentais. In: Direito privado e policontextura-


lidade: fontes, fundamentos e emancipação. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 401.
3 PINHEIRO, Patrícia Peck (Coord.). Direito Digital Aplicado 3.0. São Paulo: Revista dos Tribu-
nais, 2018, p. 219.
4 MARTINS, Fernando Rodrigues. Sociedade da informação e promoção à pessoa: empoderamen-
to humano na concretude de novos direitos fundamentais. In: Direito privado e policontextura-
lidade: fontes, fundamentos e emancipação. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 405.
5 RODOTÀ. Stefano. A vida na sociedade da vigilância: a privacidade hoje. Tradução de Danilo
Doneda e Luciana Cabral Doneda. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 7.
114
Data mining versus privacidade do consumidor na Internet
Nesse contexto, uma das principais tecnologias, presente em praticamente todas
as aplicações computacionais utilizadas pela sociedade, faz parte de uma série de
avanços que se coadunam com o início de uma era de transformação de dados em
informações.
‘Mineração de Dados’, tradução para expressão em inglês “Data Mining”, é o
processo de extração de informações, sem conhecimento prévio, de um grande
banco de dados, e seu uso para a tomada de decisões. Consiste nos procedimentos
de processamento, extração e exploração de grandes quantidades de dados visando
estabelecer padrões consistentes, para, então, poder detectar relacionamentos sis-
temáticos entre variáveis e determinar novos subconjuntos de dados.6
O volume de informações produzido diariamente, no âmbito da sociedade da
informação, apenas passa a ter valoração econômica e financeira após ser altamente
filtrado, catalogado, categorizado e interpretado. E os provedores de conexão e de
serviços baseados na era digital notaram que o controle da informação é questão
estratégica aos negócios e altamente rentável.
As técnicas de Mineração de Dados acabam por transformar completamente o
conjunto original de dados, de forma que, hoje, é possível saber quais são as prefe-
rências do usuário, por exemplo, por meio dos sites que acessa, ou mesmo das pala-
vras que digita em um mecanismo de busca. Assim, os serviços de publicidade são
prestados por meio de estimativa de consumidores em potencial, especificados
pelas informações que disponibilizam sobre si mesmos, revelando preferências,
interesses, entre outros dados relevantes voltados ao consumo.
“Big Data” é o fenômeno em que dados são produzidos em vários formatos e
armazenados por uma grande quantidade de dispositivos e equipamentos.7 A exis-
tência do Big Data é alicerce para fortalecer a Mineração de Dados, de forma que
estas novas tecnologias corroboram e fortalecem a necessidade de controle sobre os

6 FONTANA, Arthur. A Mineração de dados (Data Mining) como ferramenta para Marketing
Estratégico de pequenas e médias empresas. Disponível em:
https://www.linkedin.com/pulse/minera%C3%A7%C3%A3o-de-dados-data-mining-como-
ferramenta-para-pequenas-fontana. Acesso em: 25 out. 2018.
7 AMARAL, Fernando. Introdução à ciência de dados: mineração de dados e Big Data. Rio de
Janeiro: Alta Books, 2016, p. 7.
115
Gabriel Oliveira de Aguiar Borges / Sthéfane Alves Vasconcelos
hábitos dos usuários, uma vez que permitem transformar os dados em produto
rentável e negociável a terceiros, que poderão explorar tais preferências e ofertar
produtos ao exibir publicidade segmentada.
Em que pese o aumento da consciência acerca da importância da proteção dos
dados pessoais como expressão não só da vida privada, mas também da própria
liberdade, a sociedade da informação vivencia um ciclo vicioso e potencialmente
maléfico, uma vez que, todos os dias, os próprios usuários oferecem, “voluntaria-
mente”, através da adesão aos Termos de Uso e Políticas de Privacidade dos aplica-
tivos e serviços online, uma enorme quantidade de dados. O uso abusivo das novas
tecnologias acaba por corroborar ainda mais a posição de vulnerabilidade do con-
sumidor inserido no contexto da era digital.
O tratamento de dados pessoais, em particular por processos automatizados, é,
no entanto, uma atividade de risco, que se concretiza na possibilidade de exposição
e utilização indevida ou abusiva de dados pessoais. Destarte, necessária a instituição
de mecanismos que possibilitem à pessoa deter conhecimento e controle sobre seus
próprios dados, que, no fundo, são expressão direta de sua própria personalidade.
Por este motivo, a proteção de dados pessoais é considerada em diversos ordena-
mentos jurídicos como um instrumento essencial para a proteção da pessoa huma-
na e como um direito fundamental.8
Portanto, diante do crescimento do uso da tecnologia e das inovações nas for-
mas de consumo, essencial analisar como a tecnologia da Mineração de Dados pode
interferir nos direitos fundamentais de liberdade e privacidade, a fim de verificar
até que ponto este mecanismo é benéfico ou propiciador de práticas abusivas que
colocam o consumidor em situação de vulnerabilidade. Esse é o problema a ser
enfrentado pela presente pesquisa.
A Mineração de Dados requer instrumentos que a harmonizem com os parâme-
tros de proteção da pessoa humana, ditados pelos direitos fundamentais, que possi-
bilitem aos interessados um efetivo controle em relação aos seus dados pessoais, a

8 DONEDA, Danilo. A proteção dos dados pessoais como um direito fundamental. Revista Espa-
ço Jurídico. Joaçaba, v. 12, n. 2, p. 91-108, jul./dez. 2011. Disponível em:
https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/4555153.pdf. Acesso em: 28 out. 2018.
116
Data mining versus privacidade do consumidor na Internet
veracidade, a segurança, o conhecimento da finalidade para a qual são utilizados,
dentre outros9.
A privacidade e a intimidade são asseguradas pelo texto constitucional em seu
artigo 5º, inciso X, como direito individual fundamental, possuindo claro norte
principiológico ao intérprete sobre sua inviolabilidade. A privacidade engloba o
direito de manter o controle sobre as próprias informações e de determinar sobre a
forma e condição de sua disponibilidade e divulgação. Assim, a informação na esfe-
ra privada coloca-se como elemento objetivo, com análise da finalidade como um
dos aspectos do livre desenvolvimento da personalidade.
Diante do impacto causado pelo avanço tecnológico na sociedade contemporâ-
nea, torna-se ainda mais complexo definir os limites do direito à privacidade e
quais fatos podem ser considerados atinentes à vida privada. Além de assegurada
constitucionalmente, a edição de normas visando à proteção da privacidade tem
sido objeto de preocupação do ordenamento jurídico pátrio.
A Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014, conhecida como o Marco Civil da Inter-
net, objetiva esclarecer dúvidas relevantes que geram instabilidade jurídica, entre-
tanto, não evidencia que a Internet será um ambiente seguro, vez que carece de
aspectos de maior controle e fiscalização. Assim, valorizou-se a liberdade de expres-
são em detrimento do direito à privacidade dos usuários.
Por sua vez, a recente Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018, que terá vigência a
partir de agosto de 2020 (após alteração feita pela Medida Provisória nº 869/2018),
cria regulamentação para o uso, proteção e transferência de dados pessoais, nos
âmbitos privado e público. Referida lei está baseada nos direitos fundamentais de
liberdade e de privacidade, bem como na livre iniciativa e no desenvolvimento eco-
nômico e tecnológico do país, e dispõe de diversos fundamentos, dentre os quais
destaca-se o da transparência para o uso de dados pessoais e a respectiva responsa-
bilização, e o da finalidade, mediante o qual os dados só devem ser utilizados para
as finalidades específicas para as quais foram coletados e previamente informados

9 DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006,
p. 12.

117
Gabriel Oliveira de Aguiar Borges / Sthéfane Alves Vasconcelos
aos seus titulares.
O emprego da tecnologia da Mineração de Dados é uma busca dos fornecedores
de produtos e serviços na colheita de dados de clientes visando melhor atendê-los,
de forma mais eficiente, buscando entender suas necessidades e preferências, e con-
sequentemente, expandir seus resultados. Assim, a Mineração de Dados pode ser
vista como uma ferramenta útil à relação de consumo, de modo a estabelecer liga-
ções de forma mais ágil e eficaz, reduzir as assimetrias da informação, melhorar o
processo de conhecimento, compra e decisão do consumidor e contribuir para au-
mentar a eficiência das transações econômicas nas redes digitais.
Em que pese a devida observância ao princípio da liberdade econômica, diante
das reais e atuais ameaças provenientes do avanço tecnológico, deve-se ter como
propósito averiguar a efetividade da proteção constitucional a ensejar ao usuário a
preservação dos seus direitos em contraposição às cláusulas contratuais dos produ-
tos e serviços baseados na Internet que expropriam os dados, sejam pessoais ou
não, bem como os sensíveis, para transformá-los em mercadoria no mercado de
compra e venda de informações.
Por mais voraz que seja o progresso tecnológico e maiores sejam as vantagens
que ele traga para o mundo real, não se pode jamais perder de vista que a pessoa
humana está e deverá permanecer no centro da ordem jurídica, cujos direitos fun-
damentais deverão ser protegidos diante das necessidades e realidades do mercado.
Portanto, com o atual avanço tecnológico, deflagra-se a preocupação quanto à
crescente interação, formada a partir da tecnologia da mineração de dados, entre o
usuário consumidor e as empresas fornecedoras de produtos e serviços. Pretende-
se analisar os benefícios desta ferramenta tecnológica e quando seu uso passa a ser
causa de prática abusiva, colocando o consumidor em condição de vulnerabilidade.
Assim, mister investigar se existe um limite de privacidade para o uso de dados
pessoais pelo mecanismo de “Data Mining”, e até que ponto o uso dessa tecnologia
pode influenciar nas decisões pessoais de consumo.
Assim, pergunta-se: até que ponto a tecnologia da Mineração de Dados, também
chamada “Data Mining”, pode ser benéfica nas relações de consumo ou se revelar
em prática abusiva, com influência na liberdade de escolha dos consumidores e
risco à preservação de sua privacidade?

118
Data mining versus privacidade do consumidor na Internet

1 Big Data

A era da informação, que tem como característica o meio digital, é conhecida


pela necessidade de estar sempre conectado, facilitando o contato entre indivíduos,
com a utilização de dados pessoais para otimizar os serviços, incorporando-se com
naturalidade aos novos costumes do século XXI.
Gerado pelas identidades e comportamentos, pelos indivíduos e suas ações em
redes digitais, os dados pessoais são a moeda paga pelo uso gratuito de plataformas,
sites e serviços online, de modo que se tornaram um importante bem econômico.
Contudo, a falta de controle destes dados, somada à falta de cuidado dos próprios
usuários, os sujeitam a diversas vulnerabilidades.
A Mineração de Dados consiste em técnicas de coleta e análise de dados de na-
vegação do usuário na Internet e que podem ser utilizadas para auxiliar a compre-
ender o seu comportamento e auxiliar na implementação de estratégias, ações e
práticas direcionadas à melhoria do desempenho de processos de relacionamento
com o cliente.
É considerada uma das tecnologias mais promissoras da atualidade, uma vez que
passou a estar presente no cotidiano, se tornando ferramenta de apoio com papel
fundamental na gestão da informação dentro das organizações. Ocorre que, apesar
dos benefícios advindos da aplicação da Mineração de Dados, verificam-se proble-
mas relativos ao uso da mineração, tais como a segurança dos dados, a privacidade
dos indivíduos e a influência na liberdade de escolha.10
A tese defensora do uso da tecnologia da Mineração de Dados expõe o benefício
a todos, argumentando que as empresas colocariam produtos mais adequados e
mais compatíveis com a demanda, e os consumidores seriam alertados sobre as
oportunidades de atendimento de acordo com seus interesses. Assim, haveria eco-
nomia de tempo e recursos econômicos.

10 CAMILO, Cássio Oliveira; SILVA, João Carlos da. Mineração de dados: conceitos, tarefas, mé-
todos e ferramentas. Disponível em: http://www.inf.ufg.br/sites/default/files/uploads/relatorios-
tecnicos/RT-INF_001-09.pdf. Acesso em 01 nov. 2018.
119
Gabriel Oliveira de Aguiar Borges / Sthéfane Alves Vasconcelos
Segundo Fernando Amaral, o Big Data permite o uso do dado para tornar a em-
presa muito mais competitiva e eficiente, coletando e analisando dados que não
estão apenas relacionados diretamente aos seus negócios:
Olhando para fora, a empresa será capaz de entender melhor as necessidades de seus
clientes, prevenir perdas por recalls e comprometimento de imagem, terá consumi-
dores mais fiéis e dispostos a comprar outros produtos. As empresas ainda poderão
selecionar seus fornecedores baseados em índices mais precisos, sendo capaz inclu-
sive de prevenir perdas. E mais, será possível analisar os concorrentes, ver onde seus
clientes estão insatisfeitos e buscar mecanismos para atraí-los, antecipar-se no lan-
çamento de novos produtos. Além disso, Big Data será uma ferramenta vital para a
inovação de produtos e serviços, algo fundamental para a sobrevivência e saúde das
empresas (...) empresas que não souberem usar Big Data vão desaparecer, engolidas
pelas concorrentes, que serão mais eficientes, com menos custos, com produtos com
mais qualidade e clientes mais satisfeitos.11
A quantidade de dados pessoais captados e armazenados para o uso pelo merca-
do aumenta quanto mais cresce o uso das redes de serviços, informações e entrete-
nimento. Além disso, as empresas de captação e interpretação de dados, em busca
de vantagem econômica, avançam cada vez mais na coleta dos dados pessoais dos
usuários. Portanto, evidencia-se a vulnerabilidade do consumidor neste novo locus
da sociedade de informação.

2 Da privacidade na era da Internet

A partir do momento em que a tecnologia passa a permitir o armazenamento e o


processamento rápido e eficiente de dados pessoais, percebe-se uma alteração não
apenas no conteúdo do direito à privacidade, mas também de seu léxico, passando a
ser denominada privacidade informacional, proteção de dados pessoais, autode-
terminação informativa, entre outros.
Opera-se, pois, na dogmática e na prática jurídica, uma clara evolução no direito

11 AMARAL, Fernando. Introdução à ciência de dados: mineração de dados e Big Data. Rio de
Janeiro: Alta Books, 2016, p. 11
120
Data mining versus privacidade do consumidor na Internet
à privacidade.12
Conforme lição de Stefano Rodotà, nas sociedades de informação pode-se dizer
que “nós somos as nossas informações”, pois que elas nos definem, nos classificam,
nos etiquetam; portanto, ter como controlar a circulação das informações e saber
quem as usa significa adquirir, concretamente, um poder sobre si mesmo.” 13
Rodotà defende que toda oportunidade oferecida pela inovação tecnológica deve
ser analisada sob a lupa da proteção de dados como expressão da dignidade huma-
na.14 A ideia defendida pelo autor vai ao encontro do objeto do presente estudo, vez
que defende a proteção de dados como uma expressão de liberdade e dignidade
pessoais.
Assim, o acesso à tecnologia não deve condicionar o indivíduo à submissão de
vigilância constante, e, por conseguinte, colocá-lo em situação de vulnerabilidade.
Destarte, argumenta sobre a necessidade de iniciativas específicas para regulamen-
tar adequadamente a coleta de dados, com garantia do direito à privacidade.15
Vale dizer que a privacidade, nos dias de hoje, não se refere “apenas ao direito
de manter o caráter confidencial de fatos pessoais, porém, ao direito de saber quais
informações sobre si próprios são armazenadas e utilizadas por outros, e também o
direito de manter estas informações atualizadas e verdadeiras”. 16
O mercado de dados pessoais é baseado nas necessidades de informação das
empresas, instituições públicas e usuários finais. Cada vez mais relevante na socie-
dade informacional, pode ser entendido como as interações econômicas voltadas à

12 MENDES. Laura Schertel. Privacidade, proteção de dados e defesa do consumidor: linhas gerais
de um novo direito fundamental. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 32.
13 RODOTÀ. Stefano. A vida na sociedade da vigilância: a privacidade hoje. Tradução de Danilo
Doneda e Luciana Cabral Doneda. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 7.
14 RODOTÀ. Stefano. A vida na sociedade da vigilância: a privacidade hoje. Tradução de Danilo
Doneda e Luciana Cabral Doneda. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 20.
15 RODOTÀ. Stefano. A vida na sociedade da vigilância: a privacidade hoje. Tradução de Danilo
Doneda e Luciana Cabral Doneda. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 99.
16 SMITH, Robert Ellis apud DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais. Rio
de Janeiro: Renovar, 2006, p. 87.
121
Gabriel Oliveira de Aguiar Borges / Sthéfane Alves Vasconcelos
compra e venda das informações relativas a uma pessoa identificada ou identificá-
vel, direta ou indiretamente.17
Diante da crescente preocupação com a proteção dos dados pessoais, destaca-se
seu reconhecimento como direito fundamental autônomo, constituindo importante
ferramenta de garantia ao direito à privacidade e liberdade de escolha.
A forma como foi disciplinada revela que a proteção dos dados pessoais deixou
de ser considerado apenas como um direito fundamental da pessoa, mas passou a
ser uma questão de interesse público na Europa, sendo que a União Europeia publi-
cou, em 2016, o Regulamento Geral sobre Proteção de Dados – RGPD (ou GDPR,
na sigla em inglês), que tem como objetivo permitir um maior controle pelo cida-
dão dos seus dados, bem como disciplina como as empresas podem tratar e lidar
com os dados.
No âmbito do RGPD, cabe mencionar princípios como o da finalidade, por
meio do qual o dado fornecido pelo usuário não pode ser utilizado para outra situa-
ção senão o fim específico que gerou seu fornecimento, e do consentimento, no
sentido de que o usuário deve dar a expressa e específica a aquiescência para a cole-
ta dos dados. Também é preciso dar ao usuário a possibilidade de verificar, a qual-
quer momento, os dados referentes a ele que foram coletados pela empresa e estão
registrados em sua base de dado, com a possibilidade de alterar ou retificar seus
dados mediante simples solicitação.18
No Brasil, destaca-se que a Constituição Federal assegura, em seu artigo 5º, inci-
so X, os direitos à intimidade e à vida privada, o que também deve ser interpretado
de forma a englobar os dados dispostos na internet.
Além do mais, há diversas disposições protecionistas no Código de Defesa do
Consumidor – Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, aplicáveis na seara digital,
como o direito ao arrependimento previsto no artigo 49, o direito ao acesso às in-
formações existentes em cadastros, fichas, registros e dados pessoais e de consumo

17 AMARAL, Fernando. Introdução à ciência de dados: mineração de dados e Big Data. Rio de
Janeiro: Alta Books, 2016, p. 10.
18 PINHEIRO, Patrícia Peck (Coord.). Direito Digital Aplicado 3.0. São Paulo: Revista dos Tribu-
nais, 2018, p. 75/76.
122
Data mining versus privacidade do consumidor na Internet
arquivados, disposto no artigo 43, e também o direito à informação precisa e clara
insculpida no artigo 6º, inciso III.
Outra normativa também aplicável na seara da proteção de dados na internet é a
Lei nº 12. 257, de 18 de novembro de 2011, conhecida como Lei de Acesso à Infor-
mação, cujo artigo 31 trata do tratamento das informações pessoais de forma trans-
parente e com respeito à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas,
bem como as liberdades e garantias individuais.
Ademais, com o advento da Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014 – Marco Civil
da Internet, houve avanço na definição de alguns procedimentos importantes para
a defesa da privacidade no uso das redes, sendo definido no artigo 3º, dentre os
princípios que disciplina o uso da internet no Brasil, a proteção à privacidade e aos
dados pessoais.
Ademais, conforme artigo 7º do mesmo regramento, assegurado ao usuário o
direito à inviolabilidade da intimidade e da vida privada, sua proteção, indenização
pelo dano material ou moral decorrente de sua violação e inviolabilidade e sigilo
das comunicações.
Entretanto, o Marco Civil da Internet não pode ser considerado uma normativa
geral sobre proteção de dados pessoais, vez que não garante a privacidade e a prote-
ção de dados de forma abrangente, completa e estruturada. Nem todas as disposi-
ções sobre proteção de dados são de natureza protetiva.
Em 14 de agosto de 2018 foi publicada a Lei nº 13.709, que entrará em vigor a
partir de fevereiro de 2020, e dispõe sobre o tratamento de dados pessoais, com
vistas a proteger os direitos fundamentais da liberdade e da privacidade, e o livre
desenvolvimento da personalidade da pessoa natural.
Assim, observando-se as manifestações das empresas que integram a economia
informacional, constata-se que o direito à privacidade é e será o principal limitador
e condicionador para a expansão do mercado de dados pessoais.
Portanto, é preciso dar ao tratamento de dados na era digital uma função social
que passa, necessariamente, pela adoção de políticas estatais educacionais que
conscientizem o usuário acerca do correto uso das novas tecnologias, bem como
informem claramente sobre todos os benefícios e malefícios a que está sujeito o
usuário da Internet e dos serviços online.
123
Gabriel Oliveira de Aguiar Borges / Sthéfane Alves Vasconcelos
Destaca-se que, conforme doutrina de Danilo Doneda, “uma esfera privada, na
qual a pessoa tenha condições de desenvolvimento da própria personalidade, livre
de ingerências externas, ganha hoje ainda mais em importância; passa a ser pressu-
posto para que não seja submetida a formas de controle social que, em última análi-
se, anulariam sua individualidade, cerceariam sua autonomia privada (para tocar
em um conceito caro ao direito privado) e, em última análise, inviabilizariam o
livre desenvolvimento de sua personalidade.” 19
É plausível concluir, brevemente, a necessidade do respeito ao direito à privaci-
dade e à informação dos consumidores. Os dados coletados sem o consentimento
dos usuários ferem diretamente esses direitos, que podem ser vistos como basilares
para uma relação de consumo legítima.
Entretanto, por outro lado, não se deve ignorar ou barrar os aspectos positivos
trazidos pelo avanço tecnológico, e a Mineração de Dados utilizada como ferra-
menta para auxiliar na proximidade de instituições com os usuários e clientes em
potencial também traz benefícios, facilitando a escolha dos mesmos.
Ocorre que é preciso dar a devida atenção à necessidade do consentimento ex-
presso do usuário em ter seus dados coletados e utilizados, pois o uso de dados sem
anuência pode configurar manipulação do consumidor, estimulando-o a comprar
por impulso, ferindo inclusive, o princípio da dignidade da pessoa humana.
O potencial conflito reclama uma necessária harmonização das práticas e inte-
resses potencialmente contrapostos, com observância dos direitos fundamentais.
Em que pese as preocupações com a defesa de garantias constitucionais, não se deve
simplesmente considerar como ilegal a prática da mineração de dados, sugerindo
sua vedação. Além de ser inviável nos dias de hoje, resultaria em uma grave ofensa
ao princípio da liberdade econômica.
Se os avanços da tecnologia da informação e das comunicações podem ameaçar
e violar direitos, também têm a potencialidade de promover e fortalecer esses mes-
mos direitos. Portanto, o emprego de tal técnica deve estar em observância com os
direitos que protegem à pessoa humana, em especial o direito à privacidade, que

19 DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006,
p. 87.
124
Data mining versus privacidade do consumidor na Internet
configura, simultaneamente, um direito fundamental e um direito de personalida-
de, razão pela qual se impõe a delimitação de princípios que norteiem as atividades
que envolvam a coleta, o tratamento e o armazenamento de dados.
Danilo Doneda, se reportando às Guidelines da OCDE, enumera o seguinte rol:
1 – Princípio da publicidade (ou da transparência), pelo qual a existência de um
banco de dados com dados pessoais deve ser de conhecimento público, seja através
da exigência de autorização prévia para funcionar, da notificação a uma autoridade
sobre sua existência; ou do envio de relatórios periódicos.
2 – Princípio da exatidão: Os dados armazenados devem ser fiéis à realidade, o que
compreende a necessidade de que sua coleta e seu tratamento sejam feitos com
cuidado e correção, e de que sejam realizadas atualizações periódicas conforme a
necessidade.
3 – Princípio da finalidade, pelo qual qualquer utilização dos dados pessoais deve
obedecer à finalidade comunicada ao interessado antes da coleta de seus dados. Esse
princípio possui grande relevância prática: com base nele fundamenta-se a restrição
da transferência de dados pessoais a terceiros, além do que pode-se, a partir dele,
estruturar-se um critério para valorar a razoabilidade da utilização de determinados
dados para uma certa finalidade (fora da qual haveria abusividade).
4 – Princípio do livre acesso, pelo qual o indivíduo tem acesso ao banco de dados
onde suas informações estão armazenadas, podendo obter cópias desses registros,
com a consequente possibilidade de controle desses dados; após esse acesso e de
acordo com o princípio da exatidão, as informações incorretas poderão ser
corrigidas e aquelas obsoletas ou impertinentes poderão ser suprimidas, ou mesmo
pode-se proceder a eventuais acréscimos.
5 – Princípio da segurança física e lógica, pelo qual os dados devem ser protegidos
contra os riscos de seu extravio, destruição, modificação, transmissão ou acesso não
autorizado. 20
Mister destacar, entretanto, o posicionamento de Bruno Bioni, que defende o
enquadramento da proteção de dados como categoria autônoma dos direitos da

20 DONEDA, Danilo. O direito fundamental à proteção de dados pessoais. In: MARTINS, Gui-
lherme Magalhães; LONGHI, João Victor Rozatti. Direito digital: direito privado e Internet. 2.
ed. Indaiatuba: Foco, 2019, p. 45.
125
Gabriel Oliveira de Aguiar Borges / Sthéfane Alves Vasconcelos
personalidade, sendo visualizada como liberdade positiva, em contraposição ao
direito à privacidade, visto como liberdade negativa.21
Interessante colacionar exposição de Patrícia Peck Pinheiro, no sentido de que,
“na sociedade global da informação, um dos maiores paradigmas é justamente in-
corporar o enfoque de direitos humanos por meio de um modelo de educação em
cidadania digital inspirados nos valores da liberdade, da igualdade, da sustentabili-
dade, do pluralismo e do respeito às diversidades, mas sem que isso gere uma rup-
tura completa com o modelo que fez surgir e popularizar a própria Internet.” 22

3 A Mineração de Dados e a Lei Geral de Proteção de Dados

Em agosto de 2018, foi promulgada a Lei nº 13.709/2018, também chamada de


Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que dispõe sobre a proteção de dados pes-
soais e altera o Marco Civil da Internet.
Nos termos da nova lei, dados pessoais não podem ser minerados na internet e a
coleta deve ser consentida nos exatos termos da LGPD.
Para saber como deverá ser realizado o consentimento, usam-se os inciso I do
art. 7º e o caput do art. 8º da lei, que preconizam que:
Art. 7º. O tratamento de dados pessoais somente poderá ser realizado nas seguintes
hipóteses:
I - mediante o fornecimento de consentimento pelo titular.
Art. 8º. O consentimento previsto no inciso I do art. 7º desta Lei deverá ser forneci-
do por escrito ou por outro meio que demonstre a manifestação de vontade do titu-
lar.
Portanto, a coleta de dados só poderá ser realizada mediante consentimento pre-
ferencialmente por escrito, mas que pode ser obtido por outro meio. Importante

21 BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento. Rio
de Janeiro: Forense, 2019, p. 92-93.
22 PINHEIRO, Patrícia Peck (Coord.). Direito Digital Aplicado 3.0. São Paulo: Revista dos Tribu-
nais, 2018, p. 218-219.
126
Data mining versus privacidade do consumidor na Internet
lembrar que o §1º do art. 8º traz, também, que, caso o consentimento seja fornecido
por escrito, deverá constar de cláusula destacada das demais cláusulas contratuais,
similar à disposição do Código de Defesa no Consumidor no sentido de que cláusu-
las contratuais que colocam o consumidor em posição de desvantagem devem ser
destacadas das demais.
Quanto ao ônus da prova do consentimento, este será sempre do controlador,
ou seja, da pessoa que está coletando os dados, nos termos do §2º do art. 8º. O §3º,
por sua vez, traz que é vedado o tratamento de dados pessoais mediante vício de
consentimento, e.g., erro, dolo ou coação.
Por sua vez, o §4º do art. 8º traz que o consentimento deverá referir-se a finali-
dades determinadas, e as autorizações genéricas para o tratamento de dados pesso-
ais serão nulas, ou seja, não se aceita cláusulas como “serão coletados dados para
melhorar a qualidade do serviço prestado”, ou “o usuário consente com a coleta de
dados pessoais”, devendo-se expressar exatamente o que será realizado com os
dados coletados, por exemplo “o usuário consente com a coleta de dados pessoais
com a finalidade de se realizar publicidade dirigida de acordo com seus gostos e
interesses pessoais”.
Outrossim, é importante destacar que o §5º preconiza que o consentimento po-
de ser revogado a qualquer momento mediante manifestação expressa do titular,
por procedimento gratuito e facilitado, ou seja, o consentimento é revogável.

Conclusão

Desde sua abertura comercial, a Internet passou por muitas transformações. Na


atualidade, os modelos de negócio são engendrados com vistas à promoção da in-
serção de informações por parte dos usuários. Entretanto, as informações coletadas
e armazenadas propiciam técnicas de publicidade muitas vezes invasivas e obscuras
ao consumidor. A principal delas se trata da mineração de dados pessoais do usuá-
rio da Internet.
Nesse contexto, por todo o exposto, há que se concluir pelo fato de que o data
mining é invasivo e viola a privacidade do consumidor dos serviços de internet.
Mais que isso, a coleta de dados sem o devido consentimento é ilegal, nos termos da
127
Gabriel Oliveira de Aguiar Borges / Sthéfane Alves Vasconcelos
LGPD.
Contudo, isso não quer dizer que a prática é ilícita, ou abusiva. O que é impor-
tante é que a coleta de dados seja realizada com vistas à consecução de um fim be-
néfico ao usuário e, principalmente, que seja dado o expresso consentimento do
titular dos dados para que se faça a coleta.

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130
A RESPONSABILIDADE CIVIL DOS
PROVEDORES POR DANOS CAUSADOS A
TERCEIROS: UM ESTUDO DOUTRINÁRIO E
JURISPRUDENCIAL DO ARTIGO 19 DO
MARCO CIVIL DA INTERNET

5
Gabriela Roth
Samuel Nunes

Introdução

Com o desenvolvimento das sociedades, cada vez mais se discute as linhas limí-
trofes do estado de atuação do “Direito” (assim entendido como Ciência Social e
Jurídica). Isso porque, gradativamente, as regras pré-estabelecidas pelos textos
normativos, indicam sua compatibilidade com a realidade social1, em vista das
constantes mudanças impulsionadas pelas novas tecnologias. E, neste âmbito, não
há que se questionar o papel revolucionário da Internet, não apenas na órbita das
ciências jurídicas, mas também sociais, econômicas, políticas etc. E o direito, como
instrumento de transformação social, deve sempre acompanhar essas tendências a

1 ARAÚJO, Laís Targino Casullo de; REIS, Sérgio Cabral dos. Responsabilidade civil dos provedo-
res de conteúdo de internet. Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIV, n. 93, out 2011. Disponível em:
< https://bit.ly/2UWBB2V >. Acesso em 20 nov. 2018.

131
Gabriela Roth / Samuel Nunes
fim de que não perca sua compatibilidade com a realidade. No entanto, nem sem-
pre os textos normativos trazem clareza, e quando se fala no ‘direito digital’, prin-
cipalmente no que diz respeito à responsabilização dos provedores por atos come-
tidos no ciberespaço, isso é visto com maior ênfase.
A regulação da Internet, no ordenamento jurídico brasileiro, teve sua gênese
formal com a Lei nº 12.965/2014, conhecida como Marco Civil da Internet (MCI).
Visando, de maneira geral, se estabelecer como marco regulatório da Internet no
Brasil, e, ao que se presta esse estudo, também para a responsabilização civil dos
provedores. No contexto de demandas judiciais pela responsabilização dos prove-
dores, o Marco Civil da Internet, a jurisprudência e a doutrina brasileiras têm se
esforçado para uniformizar um entendimento sobre essa responsabilização, mas
nem sempre há consenso sobre este tema, principalmente pela falta de conceitos
precisos sobre termos técnicos, a exemplo dos tipos de provedores.
O Marco Civil da Internet nasce em um ambiente de constantes demandas pela
responsabilização dos provedores por danos cometidos por terceiros. Antes mesmo
do Marco Civil, essa responsabilização já era possível, por meio de ações vertidas ao
judiciário com fundamentações esparsas e mais abrangentes, como o Código Civil e
o Código de Defesa do Consumidor, mas, sem uma regulação específica, os abusos
e equívocos foram evidentes, tanto por parte das supostas vítimas de danos, que
buscavam responsabilizar os provedores de forma indiscriminada, quanto pelo
Judiciário, que, sem a delimitação de uma norma apropriada, em muitos casos,
proferia decisões com grande grau de divergência, comprometendo seriamente a
segurança jurídica. Esse era o reflexo da falta de uma regulamentação ad hoc para
responsabilização dos provedores.
Prevista no artigo 19 do MCI, a responsabilidade civil dos provedores ostenta
contornos bastante peculiares, que serão o aspecto fundamental explorado por este
breve texto – sem a pretensão de ser taxativo –, especialmente quanto aos critérios
para a responsabilização de um provedor por dano deflagrado por atos de terceiros.
Desse modo, busca-se subtrair uma norma jurídica desse texto normativo, a
começar pelos tipos de responsabilidade e pela conceituação de provedor, e termi-
nando pelos critérios usados para que essa responsabilização possa ser efetivada
judicialmente.

132
A responsabilidade civil dos provedores por danos causados...

1 Notas introdutórias à responsabilidade civil

De início, é necessária uma abordagem, mesmo que breve, sobre responsabili-


dade civil, uma vez que se trata de um dos objetivos específicos desse estudo, e
mesmo para uma melhor compreensão do que será estudado.
A responsabilidade civil pode ser considerada como uma consequência da práti-
ca de determinado ato ilícito, mas também como o dever de responder pelas obri-
gações de determinado indivíduo, assumidas na ordem civil e instituídas legalmen-
te2. Uma vez que não tenham sido cumpridas as obrigações, ou que tenha sido pra-
ticado um ato ilícito, nasce a responsabilidade. A base da ideia de responsabilidade,
segundo Gonçalves3, está baseada na estrutura da culpa, expressada na terminolo-
gia de ato ilícito4 pelo ordenamento brasileiro.
O artigo 186 do Código Civil Brasileiro define ato ilícito como ação ou omissão
voluntária, negligência ou imprudência, que viole direito ou case dano a terceiro.
Isso significa que, para responsabilizar deve haver uma ação ou omissão, em des-
conformidade com o direito, e que cause danos ou viole direito de terceiro. Nesse
sentido, prediz o caput do artigo 927 do mesmo diploma. Todavia, faz-se ressalva a
outros tipos de responsabilidades, como aquelas que independem de culpa, nos
casos especificados em lei. Uma vez explicado de modo bem geral a responsabilida-
de, é necessário entender suas espécies mais detalhadamente a seguir.
No direito brasileiro, há basicamente duas modalidades de responsabilização, a
saber: a subjetiva e a objetiva. Segundo a teoria subjetiva, responde pelos danos
cometidos ou pela violação de direito somente aquele a quem a ela deu causa, ou
seja, aquele que, de certa maneira, possui culpa lato sensu (dolo ou culpa stricto

2 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito das obrigações: parte especial responsabilidade civil. São
Paulo: Saraiva, 2017, p. 9.
3 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito das obrigações: parte especial responsabilidade civil. São
Paulo: Saraiva, 2017, p. 9
4 Se encontra no gênero das responsabilidades extracontratuais, malgrado a responsabilidade
possa ser também negocial, o que importa ao objetivo do estudo é a primeira.
133
Gabriela Roth / Samuel Nunes
sensu), pela pratica do ilícito danoso. Já a teoria objetiva entende que não é somente
o agente culpado que deve, ou pode, ser responsabilizado, mas também aquele que
exerce atividade de risco, independentemente de culpa5, sob a base da teoria do
risco6.
O ordenamento jurídico brasileiro adota ambas as formas de responsabilização,
a depender do que se quer indenizar, de modo que não é correto falar na teoria
‘certa’, mas, sim, na mais adequada para a aplicação a determinado caso. E é em
cima disso que muitos juristas se debruçam quando se trata da responsabilização
dos provedores. Alguns afirmam que deve ser objetiva, outros que deve ser subjeti-
va. Mas isso será tema de tópico posterior, ao qual será dado especial atenção, prin-
cipalmente ao entendimento majoritário do STJ sobre esses embates. Antes, faz-se
mister explorar os conceitos de provedores, gêneros e suas espécies, a fim de enten-
dermos melhor como se dá essa responsabilização.

2 Conceito de provedor

O conceito, ou melhor, a natureza dos provedores é de extrema importância, até


pela própria incidência do artigo 19 do MCI, que trata especificamente dos prove-
dores do gênero ‘de aplicação’. No entanto, existe mais um gênero de provedor na
dicção do MCI, encontrado no artigo 18 da mesma lei, que é o chamado provedor
‘de conexão’, in verbis: “O provedor de conexão à internet não será responsabiliza-
do civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros”. Conforme
se depreende da leitura da norma, ipsis litteris, há uma isenção total de responsabi-
lidade dos provedores de conexão por danos gerados a partir de atos de terceiros,
de forma que a estes não se aplica a regra do artigo 19.7 Então, há basicamente dois

5 TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 374.
6 Conselho de Justiça Federal. Enunciado n. 38, in verbis: “... a responsabilidade fundada no risco
da atividade, como prevista na segunda parte do parágrafo único do art. 927 do novo Código Ci-
vil, configura-se quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano causar a pes-
soa determinada um ônus maior do que aos demais membros da coletividade.”
7 Carlos Affonso Souza e Ronaldo Lemos elencam que, dentre os argumentos para não responsa-
bilização dos provedores de conexão à internet, o fato de que a mera disponibilidade de acesso à
134
A responsabilidade civil dos provedores por danos causados...
gêneros de provedor, sendo somente os provedores de aplicação passíveis de res-
ponsabilidade civil, por danos gerados por terceiros.8
Segundo a jurisprudência majoritária Superior Tribunal de Justiça (STJ), os pro-
vedores de aplicação são aqueles que, independentemente de atuarem com finali-
dade lucrativa, trabalham para permitir o acesso de um terminal conectado à Inter-
net (a partir dos serviços prestados por um provedor de conexão), a um conjunto
de funcionalidades variadas, que podem ser serviços de e-mails, redes sociais, hos-
pedagem de dados, compartilhamento de vídeos etc.9 Em outras palavras, são os
provedores que disponibilizam o conteúdo da Internet e que habilitam seu acesso
por meio dela.
Nesta harmonia, o “provedor” é quem provê algo, quem fornece ou abastece, e o
MCI, no artigo 5º, inciso VII, diz que “aplicações de internet” são “o conjunto de
funcionalidades que podem ser acessadas por meio de um terminal conectado à
internet”. Dessa forma, provedores de aplicação podem ser conceituados, também,
como as pessoas físicas ou jurídicas que se encarregam de oferecer um conjunto de
funcionalidades acessíveis, por meio de um terminal conectado à Internet.
Já os provedores de conexão à Internet – conforme já se deduziu até aqui – pos-
suem função semelhante às desempenhadas pelas empresas de telefonia, haja vista
que são eles os responsáveis pelo acesso dos terminais à Internet, não possuindo
armazenamento de nenhum conteúdo da Internet, e se limitando à oferta de servi-
ços de natureza técnica, de funcionamento da Internet contratada pelo usuário. Em
breve síntese, compõem a estrutura que possibilitará o acesso à Internet. A seguir,
examinaremos, com minúcia, as espécies de provedores estudados pela doutrina,
inclusive antes do advento do MCI.

internet “não parece ser a causa direta e imediata do dano sofrido pela eventual vítima, mas sim
o comportamento concretamente desempenhado pelo usuário que gerou o conteúdo ilícito.”
(SOUZA, Carlos Affonso; LEMOS Ronaldo. Marco Civil da Internet: construção e aplicação. Ju-
iz de Fora: Editar, 2016, p. 98.)
8 Posteriormente será entendido com mais detalhe o porquê dessa conclusão.
9 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.642.560/SP. Relator: Ministro
Marco Aurélio Belizze. Pesquisa de jurisprudência. Ementa, 29 de Novembro e 2017. Disponível
em:< https://bit.ly/2D9LPmf >. Acesso em: 20 jan. 2019.
135
Gabriela Roth / Samuel Nunes

2.1 Espécies de provedor

Explicado os gêneros dos provedores, é necessária uma análise de suas espécies


para uma identificação melhor dos provedores e de sua responsabilização. Basica-
mente, antes do Marco Civil da Internet, existiam 5 tipos de provedores: backbone;
de acesso à Internet; de hospedagem; de conteúdo e, por fim, de correio eletrônico.
Porém, é preciso entender melhor de onde surgiu esta classificação pentapartite
e os motivos pelos quais a ela não se aderiu quando da edição do MCI.
Nas palavras de João Victor Rozatti Longhi, “a Internet surgiu como um meio
de comunicação difuso, cujo princípio básico é o de que não importa por onde as
informações trafeguem, mas sim de onde partem e para onde vão”.10 Dessa forma, a
atuação de diversas empresas adquiriu contornos diversos e bastante peculiares no
tocante à gestão do tráfego de dados, e a definição do papel de cada um desses pla-
yers, seja na garantia de acesso à web, seja na oferta direta de serviços virtuais, pas-
sou a ser analisada pela doutrina em face do silêncio do legislador.
Segundo Marcel Leonardi, “o provedor de serviços de internet é a pessoa natural
ou jurídica que fornece serviços relacionados ao funcionamento da internet, ou por
meio dela”.11 Para o autor, a partir deste conceito inicial, que foi traçado muitos
anos antes do advento do MCI, seria possível delinear outras conceituações para
demarcar a atividade-fim de um provedor. Assim, o autor sugere a seguinte classifi-
cação: provedores de backbone, provedores de acesso, provedores de correio eletrô-
nico, provedores de hospedagem e provedores de conteúdo ou de informação. Com
efeito:
Provedor de serviços de Internet é o gênero do qual as demais categorias (provedor

10 LONGHI, João Victor Rozatti. Marco Civil da Internet no Brasil: breves considerações sobre
seus fundamentos, princípios e análise crítica do regime de responsabilidade civil dos provedo-
res. In: MARTINS, Guilherme Magalhães; LONGHI, João Victor Rozatti. Direito digital: direito
privado e internet. 2. ed. Indaiatuba: Foco, 2019, p. 128.
11 LEONARDI, Marcel. Responsabilidade civil dos provedores de serviços de internet. São Paulo:
Editora Juarez de Oliveira, 2005, p. 22.
136
A responsabilidade civil dos provedores por danos causados...
de backbone, provedor de acesso, provedor de correio eletrônico, provedor de hos-
pedagem e provedor de conteúdo) são espécies. O provedor de serviços de Internet é
a pessoa natural ou jurídica que fornece serviços relacionados ao funcionamento da
Internet, ou por meio delas. A confusão é comum em razão de boa parte dos princi-
pais provedores de serviços de Internet funcionarem como provedores de informa-
ção, conteúdo, hospedagem, acesso e correio eletrônico. Exemplificando: um usuá-
rio de um grande provedor de acesso comercial que acesse o web site da empresa,
normalmente conhecido como “portal”, terá à sua disposição informações criadas
pelos funcionários do provedor e por ele disponibilizadas e armazenadas, utilizando,
para tanto, os serviços de conexão oferecidos por este provedor. Em tal hipótese, a
mesma empresa provê acesso ao usuário, armazena e disponibiliza informações cri-
adas por seus próprios funcionários.12
Backbones são os provedores que compõem a infraestrutura da Internet, não
possuem controle do conteúdo da Internet, sendo sua atribuição prezar pelo funci-
onamento da Internet. É também conhecido como “tronco” ou “espinha dorsal” da
rede13. A ele, empresas privadas (provedores de acesso) ligarão seus computadores
e venderão aos interessados, por uma taxa mensal, a conexão com a Internet. Basi-
camente, “oferecem conectividade, vendendo acesso à sua infraestrutura a outras
empresas, que, por sua vez, fazem a revenda de acesso ou de hospedagem para usu-
ários finais, ou que simplesmente utilizam a rede para fins institucionais inter-
nos”14. Desse modo, não se submetem ao Código de Defesa ao Consumidor, pois
não possuem relação direta com o consumidor. São exemplos dessa espécie: Algar,
Tim, Vivo, Embratel, dentre outros.
Provedores de acesso à internet, por sua vez, identificam-se em muito com o que
atualmente é chamado provedor de conexão à Internet, ou seja, são pessoas jurídi-
cas responsáveis por fornecer o acesso da Internet aos seus usuários. Geralmente,

12 LEONARDI, Marcel. Responsabilidade civil dos provedores de serviços de internet. São Paulo:
Editora Juarez de Oliveira, 2005, p. 21.
13 IRIS. Instituto de Referência em Internet e Tecnologia. GNET - Grupo de Estudos Internacio-
nais em Propriedade intelectual, Internet e Inovação. Curso de Introdução ao direito de Inter-
net. Minas Gerais. 2014-2018.
14 LEONARDI, Marcel. Responsabilidade civil dos provedores de serviços de internet. São Paulo:
Editora Juarez de Oliveira, 2005, p. 21.
137
Gabriela Roth / Samuel Nunes
compram a conexão de Internet dos provedores backbones e revendem essa conec-
tividade, funcionando como “varejistas” de conexão de Internet15. Esses provedo-
res, portanto, também não são considerados responsáveis dentro da cadeia da repa-
ração do dano, visto que, de acordo com Leonardi, o provedor de acesso: “é simples
transmissor de informação, não exercendo quaisquer atividades de edição, nem
tampouco monitora as informações que trafegam por seus equipamentos não po-
dendo, em princípio, ser responsabilizado pelo conteúdo destas.”16 No Brasil, são
exemplos Tim, Net, Claro etc.
Já os provedores de correio permitem ao usuário, “por meio de um sistema in-
formático e uma senha de acesso, o envio, armazenamento e recibo de mensagens
eletrônicas.”17 Sua função é possibilitar o envio e recebimento de mensagens de
particulares a um(s) destinatário(s) específico(s), e armazenar essas mensagens.
Sendo esse envio e recebimento condicionado a identificação dos usuários median-
te um “nickname” e senha, que servem como login. São exemplos Outlook, Gmail,
Yahoo etc.
Provedores de conteúdo, por seu turno, em breves palavras, são os responsáveis
pela disponibilização do conteúdo da Internet, controlam a disponibilização do
conteúdo gerado pelos provedores de informação18, determinando, assim, quem
pode ou não ter acesso aos conteúdos por eles disponibilizados. Desta forma, po-
dem oferecer seu conteúdo “gratuitamente, ou a título oneroso, onde apenas pesso-
as devidamente cadastradas, mediante pagamento único, periódico ou mensal, po-

15 IRIS. Instituto de Referência em Internet e Tecnologia. GNET - Grupo de Estudos Internacio-


nais em Propriedade intelectual, Internet e Inovação. Curso de Introdução ao direito de Inter-
net. Minas Gerais. 2014-2018, p. 26-27.
16 LEONARDI, Marcel. Responsabilidade civil dos provedores de serviços de internet. São Paulo:
Editora Juarez de Oliveira, 2005, p. 159.
17 IRIS. Instituto de Referência em Internet e Tecnologia. GNET - Grupo de Estudos Internacio-
nais em Propriedade intelectual, Internet e Inovação. Curso de Introdução ao direito de Inter-
net. Minas Gerais. 2014-2018, p. 27.
18 Com efeito, “o(s) provedor(s) de informação são responsáveis pela criação das informações
divulgadas através da Internet sendo, portanto, os autores da informação disponibilizada por um
provedor de conteúdo.” (LEONARDI, Marcel. Responsabilidade civil dos provedores de servi-
ços de internet. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2005, p. 30.)
138
A responsabilidade civil dos provedores por danos causados...
dem ter acesso ao conteúdo”19. Sendo o armazenamento desse conteúdo localizado
em local de armazenamento (servidor) próprio ou em terceiros especializados
(provedores de hospedagem).
Por fim, provedores de hospedagem são aqueles que prestam serviços de arma-
zenamento de conteúdo gerado pelos provedores de conteúdo, em um disco rígido
com acesso remoto, e de acesso a esse conteúdo nos moldes do contrato prestado
com os provedores titulares dos conteúdos armazenados. “É capaz de oferecer ao
usuário um espaço para divulgação de informações e conteúdo, podendo ser em
duas modalidades: de armazenamento e possibilidade de acesso”.20 Sendo essa pos-
sibilidade de acesso pública ou restrita, a depender do acordado entre eles e os pro-
vedores de conteúdo.
O detalhamento sugerido por Leonardi, como se disse, não foi acolhido pelo le-
gislador brasileiro quando da edição do MCI, embora tal classificação seja ampla-
mente visualizada na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Estabeleceu-
se, apenas, a diferenciação entre provedores de conexão e provedores de aplicação –
já apresentada anteriormente.
Bruna Manhago Serro aduz que os provedores de aplicações, “também chama-
dos de middleware, (...), diferentemente dos provedores de conexão, disponibilizam
um instrumento para a execução de aplicações”.21 Com isso, não se pode negar que,
no Brasil, o papel de cada provedor depende de averiguação específica frente às suas
atividades para que haja responsabilização.
Com o advento do Marco Civil da internet, o STJ por meio de seus julgamentos
tem se limitado subsumir os provedores à um dos dois gêneros tratados no tópico

19 IRIS. Instituto de Referência em Internet e Tecnologia. GNET - Grupo de Estudos Internacio-


nais em Propriedade intelectual, Internet e Inovação. Curso de Introdução ao direito de Inter-
net. Minas Gerais. 2014-2018, p. 30.
20 IRIS. Instituto de Referência em Internet e Tecnologia. GNET - Grupo de Estudos Internacio-
nais em Propriedade intelectual, Internet e Inovação. Curso de Introdução ao direito de Inter-
net. Minas Gerais. 2014-2018, p. 28.
21 SERRO, Bruna Manhago. Da responsabilidade civil dos provedores de aplicações frente à Lei
12.965/2014: análise doutrinária e jurisprudencial. Revista Magister de Direito Empresarial,
Concorrencial e do Consumidor, São Paulo, v. 57, p. 65-79, 2014.
139
Gabriela Roth / Samuel Nunes
anterior, a saber: provedor de aplicação e de conexão à Internet.
Uma importante ressalva é que essas classificações não são absolutas, podendo
um provedor se enquadrar em várias outras espécies de provedores ao mesmo tem-
po (como ocorre comumente quando provedores de acesso são, também, provedo-
res de backbone). E, do gênero provedor de aplicação, podem ser consideradas es-
pécies os provedores de correio eletrônico, de conteúdo e de hospedagem. No
mesmo sentido, concluiu o Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, do STJ, em julga-
mento de recurso especial que pedia a responsabilização subjetiva do Google.22
Porém, conforme se disse, a adesão do MCI à classificação bipartite dos prove-
dores implica considerar apenas as duas espécies para fins de avanço do estudo.

3 A responsabilização civil dos provedores

Conforme visto, somente os provedores de aplicação podem ser responsabiliza-


dos civilmente por conteúdo gerado por terceiros. Desse modo, a palavra utilizada
como “provedores”, à que se refere o artigo 19, deve ser entendida em alusão aos
provedores de aplicação (PAI).
No entanto, outro objeto de controvérsias sobre esse tema é a discussão sobre
qual é o tipo de responsabilidade civil que deve ser imputada aos PAIs, isso porque,
para uma responsabilização objetiva, é imprescindível que o PAI possua controle
prévio de conteúdo – uma espécie de filtragem. Mas, não há um consenso na dou-
trina sobre a obrigatoriedade do controle de conteúdo. E, malgrado a jurisprudên-
cia, atualmente, possua o entendimento pacificado sobre a desnecessidade de con-
trole prévio de conteúdo, pelos provedores de aplicação23, diante da falta de doutri-
na e legislação, os tribunais brasileiros terminaram por firmar vários entendimen-
tos diferentes, antes do Marco Civil da Internet.

22 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.568.935/RJ. Relator: Ministro Ri-
cardo Villas Bôas Cueva. p. 13. Pesquisa de jurisprudência. Acórdãos, 13 de abriu de 2016. p. 4-
5. Disponível em: < https://bit.ly/2Dpx0wn >. Acesso em: 12 jan. 2019.
23 Exceção à essa regra são os provedores de cunho jornalísticos, que devem, por sua natureza,
possuir controle editorial prévio, a exemplo do El Pais, O Globo etc.
140
A responsabilidade civil dos provedores por danos causados...
Em um primeiro momento, a jurisprudência (principalmente a norte america-
na) trouxe à baila o entendimento de que o provedor não poderia, de forma algu-
ma, ser responsabilizado pela publicação ofensiva, tendo em vista serem apenas
instrumentais para a difusão de informação (teoria da irresponsabilidade), e , dessa
forma, não poderiam ser obrigados ao controle prévio, tampouco submetidos à
responsabilização objetiva, visto que quem deveria fazer o controle prévio do con-
teúdo não seria o provedor, mas sim o usuário.24
Em um segundo momento, seguindo os ditames da jurisprudência brasileira,
porém, seus precedentes tomaram partido em um sentido contrário ao da corrente
norte-americana, assumindo, então, que o provedor de conteúdo detinha respon-
sabilidade objetiva acerca da publicação feita pelo seu usuário. Isso porque defendi-
am que os provedores teriam o dever de controlar o conteúdo que era disponibili-
zado por meio de seus serviços. Em cima dessa teoria, várias decisões foram toma-
das pelos tribunais brasileiros, obrigando os provedores a instaurar controle prévio
de conteúdo.
Dentre as justificativas para a adoção desse regime de responsabilidade, se des-
tacam as demandas julgadas com fundamento no art. 927 do Código Civil e na ale-
gação de serviço defeituoso, com base no art. 14 do Código de Defesa Consumidor
– elementares da teoria do risco que dá lastro à responsabilidade objetiva. Entretan-
to, há algumas exceções no caso de se classificar a responsabilidade civil, se verifi-
cada a ocorrência de culpa.

3.1 Responsabilidade civil objetiva

Muitas tentativas de tornar objetiva a responsabilização dos provedores por con-


teúdo gerado por terceiro têm sido defendidas com base na abrangência da teoria
do risco. Para essa teoria, o que realmente importa como critério de responsabili-

24 REINALDO FILHO, Demócrito. Julgados sobre a responsabilidade civil dos provedores. Con-
sultor Jurídico (ConJur), São Paulo, 20 de fevereiro de 2011, 8h53. Disponível em: <
https://www.conjur.com.br/2011-fev-20/jurisprudencia-responsabilidade-provedores-internet>
Acesso em: 20. nov. 2018.
141
Gabriela Roth / Samuel Nunes
dade não é a culpa, mas, sim, o desenvolvimento de uma atividade que possa, even-
tualmente, causar danos. Entende ela que “toda pessoa que exerce alguma atividade
cria um risco de dano para terceiros. E deve ser obrigada a repará-lo, ainda que sua
conduta seja isenta de culpa”25. Os provedores de aplicação, conforme dito anteri-
ormente, são responsáveis pela disponibilização do conteúdo da Internet, no entan-
to, geralmente não controlam o que é disponibilizado, limitando-se a fornecer o
acesso do conteúdo gerado por terceiros, de forma livre ou restrita na Internet.
Observe-se que, por mais que o conteúdo gerado por terceiro seja ilícito, e pos-
sua, à exemplo, ofensas à honra de alguém (usualmente na forma de comentários
ou postagens), os provedores de aplicação não administram esse conteúdo, não são
os agentes diretos desses atos. Por mais que o ato seja praticado por meio de seus
serviços, o STJ entende que eles não podem ser responsabilizados como se fossem,
também, autores do ilícito.
Esse entendimento tem sua originalidade fundada na tentativa de impedir que
os provedores de aplicação (PAIs) estabeleçam uma censura prévia de conteúdo,
segundo critérios subjetivos, pois isto configuraria um grande retrocesso à própria
democracia e à Lex Mater. Por isso, o MCI, no artigo 19, caput, exclui a possibilida-
de de responsabilização objetiva, como indica o STJ:
RECURSO ESPECIAL - AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C INDENIZATÓ-
RIA - RESPONSABILIDADE CIVIL DE PROVEDOR DE INTERNET - OFENSAS
INSERIDAS POR ANÔNIMO NO SITE DE RELACIONAMENTOS ORKUT -
DECISÕES DAS INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS QUE RECONHECERAM A RES-
PONSABILIDADE OBJETIVA DO GOOGLE. INSURGÊNCIA DO RÉU.
1. Ambas as Turmas que compõem a Segunda Seção desta Corte Superior possuem
precedentes sobre o tema central da lide – responsabilidade civil de provedor de in-
ternet por mensagens ofensivas postadas em seus sites. 1.1 Nesses julgados, consoli-
dou-se o entendimento de que não se aplica, em casos como o destes autos, a res-
ponsabilidade objetiva com base no art. 927 do CC, mas sim a responsabilidade sub-
jetiva, a qual só se configura quando o provedor não age rapidamente para retirar o

25 GONÇALVES, Victor Hugo Pereira. Marco Civil da Internet comentado. São Paulo: Atlas,
2017, p. 19.
142
A responsabilidade civil dos provedores por danos causados...
conteúdo ofensivo ou não adota providências para identificar o autor do dano.26
Dando seguimento, outra grande tese de defesa pelos juristas para mudar o en-
tendimento acerca da responsabilização dos provedores por dano de terceiros, resi-
de no disposto no artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor, tendo em vista o
fato ora citado de que os provedores de aplicação entabulam relações de consumo.
Antes, porém, é necessário pontuar que o STJ possui entendimento pacificado
de que os provedores de aplicação estão sujeitos ao CDC, mesmo que o serviço
disponibilizado seja gratuito, uma vez que os provedores auferem ganhos indireta-
mente. Confira-se:
CIVIL E CONSUMIDOR. INTERNET. RELAÇÃO DE CONSUMO. INCIDÊNCIA
DO CDC. GRATUIDADE DO SERVIÇO. INDIFERENÇA. PROVEDOR DE COR-
REIO ELETRÔNICO (E-MAIL). FISCALIZAÇÃO PRÉVIA DAS MENSAGENS
ENVIADAS. DESNECESSIDADE. MENSAGEM OFENSIVA. DANO MORAL.
RISCO INERENTE AO NEGÓCIO. INEXISTÊNCIA. CIÊNCIA DA EXISTÊNCIA
DE CONTEÚDO ILÍCITO. BLOQUEIO DA CONTA. DEVER. IDENTIFICAÇÃO
DO USUÁRIO. INDICAÇÃO DO PROVEDOR DE ACESSO UTILIZADO. SUFI-
CIÊNCIA.
1. A exploração comercial da Internet sujeita as relações de consumo daí advindas à
Lei nº 8.078/90. 2. O fato de o serviço prestado pelo provedor de serviço de Internet
ser gratuito não desvirtua a relação de consumo, pois o termo "mediante remunera-
ção", contido no art. 3º, § 2º, do CDC, deve ser interpretado de forma ampla, de mo-
do a incluir o ganho indireto do fornecedor.27
Dessa forma, muitas demandas levaram o STJ a indicar que é dever dos prove-
dores fiscalizar previamente o conteúdo postado pelos usuários na Internet, e, do
contrário, estaria o provedor incorrendo em defeito do serviço prestado e, portanto,
poderia ser responsabilizado objetivamente.

26 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.501.187/RJ. Relator: Ministro Mar-
co Buzzi. Pesquisa de jurisprudência. Ementa, 19 de Dezembro de 2014. Disponível em: <
https://bit.ly/2KFxdRS >. Acesso em: 12 jan. 2019.
27 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.300.161/RS. Relatora: Ministra
Nancy Andrighi. Pesquisa de jurisprudência. Ementa, 19 de junho de 2012. Disponível em: <
https://bit.ly/2Gfo9Ok >. Acesso em: 12 jan. 2019.
143
Gabriela Roth / Samuel Nunes
Em outras palavras, afirma-se que é da natureza do serviço prestado pelos pro-
vedores a fiscalização prévia dos conteúdos oferecidos. No entanto, o STJ, antes
mesmo do Marco Civil da Internet – e, ainda, posteriormente ao seu vigor – assen-
tou sólido entendimento de que o controle prévio não faz parte da natureza do
serviço prestado pelos provedores, de modo que não podem ser obrigados a tal
dever sob pena de incorrer em responsabilidade objetiva, vide julgado:
PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO
ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. PROVE-
DOR DE CONTEÚDO DA INTERNET. DECISÃO MANTIDA.
1. Consoante a jurisprudência desta Corte, não se constitui atividade intrínseca do
serviço prestado pelo provedor de conteúdo da internet a fiscalização prévia das in-
formações postadas no site por seus usuários, portanto, não se aplica à hipótese a
responsabilidade objetiva prevista no art. 927 do CC/2002, tampouco o art. 14 do
CDC, por não se tratar de produto defeituoso.28
Da mesma forma que o Superior Tribunal de Justiça entende que os provedores
de aplicação estão sujeitos ao Código de Defesa do Consumidor, mesmo se o servi-
ço disponibilizado for gratuito, observa-se que tal fiscalização prévia é desnecessá-
ria, embora também não seja defesa. Esse entendimento vale para todos os prove-
dores de aplicação e também para o provedor de conexão à Internet29. A exceção
são os provedores de backbone, posto que não possuem relação direta com os con-
sumidores da Internet.

3.2 Responsabilidade civil subjetiva

O Marco Civil da Internet determina a responsabilização subjetiva in omittendo


(por omissão) apenas de modo subsidiário, tendo o juiz que determinar, a priori, a

28 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo de Instrumento no Recurso Especial nº


484.995/RJ. Relator: Ministro Antônio Carlos Ferreira. Pesquisa de jurisprudência. Ementa, 03
de Fevereiro de 2015. Disponível em: < https://bit.ly/2UBMgk1>. Acesso em: 14 jan. 2019.
29 Isso porquê vigorava na doutrina majoritária a ideia de gênero de provedor de serviços a inter-
net, dos quais eram espécies os 5 tipos de provedores citados em tópico anterior.
144
A responsabilidade civil dos provedores por danos causados...
ilicitude do ato praticado por terceiros, ao expedir ordem, determinado que o pro-
vedor retire aquele conteúdo, vindo tal ordem a ser desrespeitada. O intuito parece
claro: a liberdade de expressão e a livre difusão de ideias, independentemente de
censura, são bases da democracia, e, com o intuito de evitar a censura prévia dos
provedores que, receados com a possibilidade de serem responsabilizados, a lei cria
uma barreira contra a filtragem prévia da maior parte das manifestações de pensa-
mento dos usuários, evitando que se crie uma ‘ditadura da informação’.
Na prática, esse artigo, além de assegurar e reforçar a liberdade de pensamento,
transfere o julgamento sobre o ilícito para o Judiciário, sendo somente ele o ‘com-
petente’ para determinar, em último caso, se um conteúdo é ou não ilícito, uma vez
que, tanto os provedores quanto os usuários estão submetidos, em um primeiro
momento, aos termos de uso da relação contratual firmada entre ambos. Nessa
sintonia, frisa Marcanini:
(...) O importante dessa regra, insista-se, é reconhecer a inexistência do dever do
provedor de decidir sobre a licitude ou ilicitude do material controvertido. Afinal,
tem ele, na outra ponta, uma relação contratual com o sujeito que publicou aquele
conteúdo, e pode vir a ser responsabilizado por não cumprir os termos desse contra-
to, o que provavelmente ocorreria se limitasse o uso ou removesse conteúdo que
fosse posteriormente considerado lícito (...). 30
O MCI somente ratificou o que já era entendido e pacificado no STJ, isto é, a
ideia de que os provedores de aplicação não são responsabilizados objetivamente31,
mas sim subjetivamente, e neste caso solidariamente com o autor do dano, com
duas exceções: (i) nos casos de violação de direitos autorais; (ii) nos casos de por-
nografia de vingança (revenge porn).32 A seguir, confere-se um julgado neste senti-

30 MARCACINI, Augusto Tavares Rosa. Aspectos Fundamentais do Marco Civil da Internet. São
Paulo: Edição do autor. 2016, p. 72.
31 Nesse sentido, “responsabilizar objetivamente qualquer provedor de serviços de Internet pelos
atos de seus usuários traria, como consequência imediata, o estabelecimento de políticas agressi-
vas de censura da conduta de tais usuários, configurando uma injusta limitação à privacidade e à
liberdade de expressão destes”. (GONÇALVES, Victor Hugo Pereira. Marco Civil da Internet
comentado. São Paulo: Atlas, 2017, p. 95.)
32 Por força normativa da regra do artigo 21 do MCI. Trata-se de uma regra mais específica do que
a do art. 19, de modo que não é correto se falar em conflito entre ambas.
145
Gabriela Roth / Samuel Nunes
do:
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. GOOGLE. YOUTUBE.
AÇÃO DE REPARAÇÃO POR DANOS MORAIS. CONTEÚDO REPUTADO
OFENSIVO. DANO MORAL. RESPONSABILIDADE SUBJETIVA DO PROVE-
DOR. NOTIFICAÇÃO JUDICIAL. DESCUMPRIMENTO. RESPONSABILIDADE
SOLIDÁRIA COM OFENSOR. REDUÇÃO DO VALOR DA MULTA PELO DES-
CUMPRIMENTO DE ORDEM JUDICIAL.
(...) 3. Esta Corte fixou entendimento de que "(i) não respondem os provedores
objetivamente pela inserção no site, por terceiros, de informações ilegais; (ii) não
podem ser obrigados a exercer um controle prévio do conteúdo das informações
postadas no site por seus usuários; (iii) devem, assim que tiverem conhecimen-
to inequívoco da existência de dados ilegais no site, removê-los imediatamente,
sob pena de responderem pelos danos respectivos; (iv) devem manter um sistema
minimamente eficaz de identificação de seus usuários, cuja efetividade será avaliada
caso a caso". Precedentes.
4. Aos provedores de aplicação, aplica-se a tese da responsabilidade subjetiva segun-
do a qual o provedor de aplicação torna-se responsável solidariamente com aquele
que gerou o conteúdo ofensivo se, ao tomar conhecimento da lesão que determina-
da informação causa, não tomar as providências necessárias para a sua remoção.
Precedentes33.
Ato contínuo, além desta previsão, observa-se a necessidade da indicação do
URL como requisito primordial de responsabilização quando instaurada a previsi-
bilidade de descumprimento de norma jurídica. É o que verificaremos em seguida.

3.2.1 Necessidade do URL para responsabilização subjetiva dos provedores

Por fim, além da necessidade de comprovação do descumprimento de ordem


judicial para possível responsabilização dos provedores por conteúdo gerado por
terceiros, o MCI determina, no art. 19, § 1º, como requisito de validade processual

33 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.531.653/RS. Relatora: Ministra


Nancy Andrighi. Pesquisa de jurisprudência. Ementa, 13 de junho de 2012. Disponível em:<
https://bit.ly/2PaZ8HS >. Acesso em: 12 jan. 2019.
146
A responsabilidade civil dos provedores por danos causados...
do mandado judicial que deflagra a responsabilidade do provedor, a indicação es-
pecífica do conteúdo reputado danoso, verbis: “ordem judicial de que trata
o caput deverá conter, sob pena de nulidade, identificação clara e específica do con-
teúdo apontado como infringente, que permita a localização inequívoca do materi-
al.”34
Trata-se, claramente, de uma norma sem conteúdo normativo definido, ou, nas
palavras de Kelsen, uma indeterminação intencional do ato de aplicação do Direi-
to.35 Nela, o legislador optou por se limitar a criar uma norma geral para a validade
da ordem judicial, deixando a cargo do Judiciário o papel de determinar qual seria o
método para a identificação clara e específica do conteúdo normativo.
Destarte, o STJ, em aplicações do Marco Civil, tem entendido que o critério de
identificação de que trata o §1º do art. 19 é o Uniform Resouce Locator, popular-
mente denominado URL. Esse identificador é o único utilizado para localizar um
recurso na internet; é também usado como referência a um endereço na web. É por
meio dele que determinado conteúdo pode ser encontrado na Internet, informan-
do, de forma precisa, onde está localizado na rede.36 No caso do presente estudo,
esse recurso pode ser entendido como o conteúdo reputado ilícito pelo magistrado.
O URL deve ser indicado, na ordem judicial, com todas as suas partes, que são
basicamente três: o protocolo (HTTP ou HTTPS); o sistema de nome de domínio
(DNS), ou resource, e por fim o “path”, que quer dizer “caminho” na tradução para
o português.37

34 BRASIL. Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Estabelece princípios, garantias, direitos e deve-
res para o uso da Internet no Brasil. In: Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasí-
lia, DF, 24 abr. 2014. Disponível em: < https://bit.ly/1kxaoKm >. Acesso em: 08 jan. 2019.
35 Nesse tipo de norma, Kelsen nos ensina que o legislador tinha a opção de especificar o conteúdo
da norma, no entanto escolhe somente descrever uma norma geral, tendo em vista a construção
do seu conteúdo através de sua aplicação construtiva, pelo judiciário, aos casos concretos. (KEL-
SEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins
Fontes, 1999.)
36 SEARCHNETWORKING. Definição do Uniform Resouce Locator. Disponível em: <
https://searchnetworking.techtarget.com/definition/URL >. Acesso em: 19 jan. 2019.
37 SEARCHNETWORKING. Definição do Uniform Resouce Locator. Disponível em: <
147
Gabriela Roth / Samuel Nunes
Apesar desse entendimento, sobre a necessidade do URL para responsabilização
subjetiva ser pacífico no STJ, como a norma do art. 19, § 1º, é aberta, recentemente
fora discutida a possibilidade de serem admitidos outros elementos que também
pudessem indicar, de forma clara e específica, o conteúdo apontado como ilícito na
web. Mas o STJ manteve o entendimento da necessidade do URL como critério de
validade de ordem judicial, para que se determine a responsabilização subjetiva e
solidária com o autor, bem como a retirada do conteúdo tido como ilícito.
Veja-se julgado recente do STJ acerca do debate sobre a necessidade de indica-
ção do URL:
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. REDE SOCIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO
PROVEDOR DE APLICAÇÃO. REDE SOCIAL. FACEBOOK. OBRIGAÇÃO DE
FAZER. REMOÇÃO DE CONTEÚDO. FORNECIMENTO DE LOCALIZADOR
URL DA PÁGINA OU RECURSO DA INTERNET. COMANDO JUDICIAL ESPE-
CÍFICO. NECESSIDADE. OBRIGAÇÃO DO REQUERENTE. MULTA DIÁRIA.
OBRIGAÇÃO IMPOSSÍVE DESCABIMENTO.
(...) 3. Necessidade de indicação clara e específica do localizador URL do conteúdo
infringente para a validade de comando judicial que ordene sua remoção da inter-
net. O fornecimento do URL é obrigação do requerente. Precedentes deste STJ. 4.
A necessidade de indicação do localizador URL não é apenas uma garantia aos
provedores de aplicação, como forma de reduzir eventuais questões relacionadas à
liberdade de expressão, mas também é um critério seguro para verificar o cumpri-
mento das decisões judiciais que determinar a remoção de conteúdo na internet. 5.
Em hipóteses com ordens vagas e imprecisas as discussões sobre o cumprimento de
decisão judicial e quanto à aplicação de multa diária serão arrastadas sem necessida-
de até os Tribunais superiores. 6. O Marco Civil da Internet elenca, entre os requisi-
tos de validade da ordem judicial para a retirada de conteúdo infringente, a "identi-
ficação clara e específica do conteúdo", sob pena de nulidade, sendo necessário,
portanto, a indicação do localizador URL.38

https://searchnetworking.techtarget.com/definition/URL >. Acesso em: 19 jan. 2019.


38 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.642.560/SP. Relator: Ministro
Marco Aurélio Belizze. Pesquisa de jurisprudência. Ementa, 29 de Novembro e 2017. Disponível
em:< https://bit.ly/2D9LPmf >. Acesso em: 20 jan. 2019.
148
A responsabilidade civil dos provedores por danos causados...
Desse modo, é imprescindível ao sujeito ativo do processo que indique, na peti-
ção inicial, além do pedido expresso de responsabilização do provedor por conteú-
do gerado por terceiros em caso de inércia, o URL que permita localizar dito conte-
údo.
Vê-se que, com a promulgação da Lei nº 12.965/2014 (Marco Civil da Internet),
houve a pacificação do tema quanto à responsabilização dos provedores de aplica-
ção quando assim questionados, ao menos do ponto de vista legal. Isso porque tal
lei trouxe à baila disposição expressa quanto a responsabilização dos provedores de
aplicação. Passa-se agora a análise do dispositivo:
Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o
provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente
por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial es-
pecífica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu
serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado co-
mo infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.
Percebe-se que tal disposição propõe que, na hipótese de um consumidor (usuá-
rio) se sentir lesado por qualquer tipo de ofensa/publicação feita nas plataformas
dos provedores de aplicação estes, por sua vez, somente serão civilmente responsá-
veis quando após serem certificados judicialmente e não tomarem as providências
cabíveis. Assim, por exemplo, quando um usuário destes serviços notifica, em um
primeiro momento, administrativamente, a empresa responsável pela publicação
dos conteúdos e, posteriormente, pleiteia em juízo, o comando de retirada de sua
exposição, deve este provedor ser diligente para evitar a condenação à reparação de
danos cíveis.
O que a doutrina39 explica é que tal prescrição traz em sua amplitude a respon-
sabilidade civil em seu viés subjetivo, ou seja, o provedor de tais serviços deve com-
provar o requisito ‘culpa’ para vir a ser condenado. Outro aspecto mencionado por
estes mesmos autores é de que tal responsabilização é solidária com a pessoa (ter-

39 COLOMBO, Cristiano; FACCHINI NETO, Eugênio. Ciberespaço e conteúdo ofensivo gerado


por terceiros: a proteção de direitos de personalidade e a responsabilidade civil dos provedores
de aplicação, à luz da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Revista Brasileira de Polí-
ticas Públicas, Brasília, v. 7, n. 3, p. 216-234, 2017.
149
Gabriela Roth / Samuel Nunes
ceiro) que impulsou (promoveu) a publicação em primeiro lugar, na hipótese de
negligência do provedor.
Isso não passa incólume de críticas doutrinárias, contudo:
Conforme salientado, a necessidade de se repensar sobre um tratamento igual aos
gigantes da tecnologia e aos provedores de aplicações iniciantes (startups) não serve
para crucificar um ou outro conglomerado em especial. Mas acende de maneira gra-
ve um sinal de alerta.
(...)
Ainda que, em essência, reconheça a diferença ontológica entre os grandes provedo-
res de aplicações de Internet e o administrador de um blog, ou um usuário do Face-
book, por exemplo, a disposição é insuficiente perante os riscos que esses serviços
apresentam. Mas, saliente-se, representa um norte interpretativo na proteção do
consumidor vulnerável. Riscos que se evidenciam por si nas hipóteses de perfis fal-
sos, por exemplo.40
Denota-se, a partir disso, a necessidade de intensa reflexão acerca da adequação
do regime de responsabilidade civil do MCI à solução das mais variadas contingên-
cias, sendo imperioso considerar quais são os interesses atendidos por eventual
‘engessamento’ do Judiciário na fixação da responsabilidade civil.

Conclusão: a aplicabilidade da norma jurídica in casu

Gradativamente, vemos que o Direito, como ciência, se coloca em xeque quando


questionado sobre a sua aplicabilidade em novas face das novas tecnologias. O tema
da responsabilidade civil dos provedores (especialmente os de aplicação) e a possi-
bilidade de que venha a causar danos a terceiros na Internet é um de seus exemplos.
O grande embate que se põe é sobre como compatibilizar os direitos à privacidade,
à honra e à imagem com o direito à liberdade de expressão.

40 LONGHI, João Victor Rozatti. Marco Civil da Internet no Brasil: breves considerações sobre
seus fundamentos, princípios e análise crítica do regime de responsabilidade civil dos provedo-
res. In: MARTINS, Guilherme Magalhães; LONGHI, João Victor Rozatti. Direito digital: direito
privado e internet. 2. ed. Indaiatuba: Foco, 2019, p. 152.
150
A responsabilidade civil dos provedores por danos causados...
Nesse sentido, conforme discorrido no curso desse estudo, optou o legislador
brasileiro pela primazia da liberdade de expressão e da livre difusão de ideias, inde-
pendentemente de censura, ao estabelecer, ainda que sob severas críticas da doutri-
na, a responsabilização subjetiva dos provedores por danos gerados por terceiros.
Isso não condiz com a afirmação de que a responsabilidade objetiva está errada em
sua essência, mormente porque ela é defendida por boa parte dos doutrinadores,
em especial adesão ao viés protetivo indicado pelo Código de Defesa do Consumi-
dor quando aderiu à teoria do risco, mas isto somente traduz a impossibilidade de
sua aplicação nos casos de responsabilização dos provedores como se fossem tam-
bém praticantes do ilícito, e, deste modo, também responsáveis pelos atos ilegais
praticados por seus usuários.
Deste modo, é possível concluir que (i) somente podem ser responsabilizados in
omittendo, ou seja, através da responsabilidade civil subjetiva por omissão, isto é,
por descumprimento de mandado judicial válido; (ii) os provedores de aplicação
possuem três espécies (conteúdo, hospedagem e correio eletrônico); (iii) a retirada
de um conteúdo está primeiramente subordinada aos termos de uso dos websites,
sendo o Judiciário o “legítimo” para resolver o empasse em caso de recusa de indis-
ponibilidade de determinado conteúdo, reputado como ilícito por um usuário, daí a
necessidade de notificação judicial para obrigação de retirar determinado conteúdo
da Internet; (iv) a responsabilidade objetiva dos provedores por conteúdo gerado
por terceiros dependerá da constatação de controle prévio de conteúdo; (v) os pro-
vedores não podem ser obrigados ao controle prévio de conteúdo sob a teoria do
risco ou do defeito de serviço e, por fim: (vi) é de extrema importância ao operador
do direito que indique o URL na petição inicial, para responsabilização dos prove-
dores, sob pena de nulidade.

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154
A SEXUALIZAÇÃO INFANTIL NA INTERNET

6
Giulia Gabriele Rezende

Introdução

A Internet, surgida durante a Guerra Fria com o objetivo de tornar a transmis-


são de informações mais segura, se tornou um marco quase definitivo da destruição
das barreiras físicas na comunicação entre os indivíduos de todo o mundo, permi-
tindo conversas por mensagens de texto ou, até mesmo, vídeo chamada, sem as
maiores dificuldades que eram encontradas anos atrás.
Nesse mesmo âmbito, surgiram as redes sociais, como o Facebook, o Instagram,
o Twitter e o Snapchat, trazendo a possibilidade de compartilhar momentos, prin-
cipalmente fotos, com um grupo de amigos, ou de seguidores, o que, muitas vezes,
aproxima até mesmo aquelas pessoas que nunca haviam se encontrado pessoal-
mente. Com essa facilidade de difusão de informações, tais redes se tornaram, até
mesmo, um meio de trabalho para muitos, surgindo os famosos digital influencers,
que expõem sua imagem ao ponto de se tornarem um veículo de propagandas.
Sabe-se que, atualmente, cerca de 85% das crianças e adolescentes do Brasil uti-
lizam a Internet, sendo que grande parte delas a usam como forma de se comunicar
com outros indivíduos mesmo entre cidades diferentes, assim como os adultos, e,
de uma forma geral, elas conhecem tal tecnologia desde o nascimento ou, ao me-
nos, desde os momentos iniciais da infância, o que as torna completamente habitu-
adas ao mundo virtual.
Portanto, como diz Solange Palma Barros, “não se pode utilizar, para essa gera-
155
Giulia Gabriele Rezende
ção, o termo ‘estar conectado’, já que para eles, a Internet não é um alvo a ser con-
quistado, e é sim um meio consolidado para realizar diversas atividades”.1
Destarte, muitas dessas crianças se tornam, também, veículos de propagandas e,
até mesmo, produtos, por si só. Isso é notório nos canais de Youtube, em que o
youtuber mais rico do ano de 2018, com uma receita de U$ 22 milhões, foi um ga-
roto americano de apenas oito anos, cujo conteúdo apresentado consiste em rese-
nhas de brinquedos.
Também é possível recordar o caso de Kylie Jenner, ainda nos Estados Unidos
da América, presente no reality show de sua família desde os seus 10 anos de idade,
o que a colocou em uma intensa exposição midiática e a fez ser uma das jovens
mais conhecidas do mundo, com sua figura considerada um padrão de beleza, e,
inclusive, por ser quase bilionária aos 20 anos de idade devido à sua marca de cos-
méticos. Assim, sua vida nunca foi sequer próxima à da média das crianças, sendo
impedida de terminar o ensino médio presencialmente, além de já muito jovem ter
realizado procedimentos estéticos por insegurança com seus lábios.
No entanto, com a velocidade do surgimento de novas tecnologias e novas for-
mas de se utilizar de sua própria imagem, existem poucos estudos sobre quais seri-
am os efeitos dessa situação global sobre aqueles que estão em uma idade de desen-
volvimento físico e mental, da potencialidade de tratar esses indivíduos de forma
não condizente com a sua idade, além de onde reside a responsabilidade sobre isso,
o que se torna o objeto do artigo aqui apresentado, mais especificamente sobre a
sexualização infantil.

1 A criança

Estudos científicos, como aquele apresentado por Mustard2, demonstram que

1 BARROS, Solange Palma. O comportamento de risco da geração Z na internet: os reflexos no


ambiente escolar. In: ABRUSIO, Juliana (Org.). Educação digital. São Paulo: Revista dos Tribu-
nais, 2015, p. 69-79.
2 MUSTARD, J. Fraser. Desenvolvimento cerebral inicial e desenvolvimento humano. In: TREM-
BLAY, R. E.; BARR, R. G.; PETERS, R. de V.; BOIVIN, M. (Eds). Enciclopédia sobre o Desen-
156
A sexualização infantil na Internet
uma chamada “fase inicial de desenvolvimento”, que vai da concepção aos 8 anos
de idade, interfere diretamente nas demais fases. Portanto, as experiências passadas
nesse momento em que o cérebro humano está em forte atividade de formação
afetarão diretamente o adulto que esse indivíduo será no futuro, assim, ele poderá
ser um adulto saudável ou desenvolver problemas psicológicos diversos.
Não obstante, a noção do que é ser criança, e de como ela deve ser tratada, varia
de acordo com o tempo e o espaço. Em um primeiro momento, pode-se citar que,
em algumas sociedades, como a indiana, meninas, ainda que antes de atingir a pu-
berdade, se tornam noivas, e, ainda que isso seja proibido por lei, se casam.
É curioso observar que, durante a Idade Média, a criança não sofria diferencia-
ção do adulto, sendo tratada como uma mera versão “menor” deste, que adotava as
mesmas vestimentas e atividades, mas que estaria ainda em um estágio de imperfei-
ção.
Também, é possível relembrar o momento de industrialização do Brasil, em tor-
no do século XX, em que a idade mínima para trabalhar era de 12 anos, ou mesmo
comparar com outros países como o Canadá, no qual o indivíduo com mais de 12
anos, a depender da gravidade do crime, pode ser julgado criminalmente, como um
adulto, ainda que não de forma mais severa que este.
Portanto, é de se notar que aqueles na mesma idade não são tratados uniforme-
mente, cabendo ao contexto determinar o que é, afinal, ser uma criança e quais
papéis cabem a ela dentro daquela determinada sociedade. De maneira clara, Castro
demonstra tal situação ao dizer que “cada período imprime na infância uma signi-
ficação mais ou menos vinculada às condições sociais e não apenas a sua condição
de ser vivente e biológico”.3
Já quanto ao período atual, não é possível negar que as redes sociais também al-

volvimento na Primeira Infância [on-line]. Montreal, Quebec: Centre of Excellence for Early
Childhood Development, 2010, p. 1-5. Disponível em: < https://bit.ly/2KHQcLB >. Acesso em:
30 jan. 2019.
3 CASTRO, Michele G. Bredel. Noção de criança e infância: diálogos, reflexões, interlocuções. In:
16° Congresso de Leitura do Brasil. Anais eletrônicos. Campinas: Unicamp, 2007. Disponível
em: < http://alb.com.br/arquivo-morto/edicoes_anteriores/anais16/sem13pdf/sm13ss04_02.pdf
>. Acesso em: 31 jan. 2018.
157
Giulia Gabriele Rezende
cançam as crianças, afetando essa concepção de si, ou seja, se elas são constante-
mente bombardeadas por informações, padrões e modos de comportamentos colo-
cados pelas figuras públicas, empresas e indivíduos comuns por meio da Internet,
haverá, por consequência, uma afetação direta no seu próprio comportamento.

2 A sexualização

Colocadas nas redes sociais, as crianças são tão, se não mais, afetadas pela cultu-
ra de consumo lá muito ativa. Com a facilidade de se tornarem virais, elas se tor-
nam não só consumidoras, mas produtos facilmente manipuláveis pelos seus res-
ponsáveis e pela opinião pública, sendo colocadas como “influenciadoras digitais”
quando são, na realidade, influenciadas pela sua falta de discernimento da realida-
de, decorrente do seu estágio de desenvolvimento.
Dessa forma, para que alcancem a fama, elas são submetidas a jornadas intensas
de trabalho que, muitas vezes, não são reconhecidas como tal, por não haver regu-
lamentação, e são, com isso, privadas de parte da sua infância. Porém, não é só o
seu tempo que é despendido para fins comerciais, mas sua própria imagem, que
deve ser sempre adaptada às preferências do público.
Assim, geralmente instruídas pelos seus pais, as crianças adotam uma figura di-
ferente da média das outras crianças, sendo constantemente expostas nas mídias
sociais como “pequenas adultas”, privadas do contato com outras da mesma faixa
etária, dos comportamentos típicos da idade, vestidas de forma adultizada, e, mui-
tas vezes, erotizada, o que pode, de certa forma, remontar ao tratamento recebido
por elas na Idade Média, conforme citado anteriormente.
Isso se torna ainda mais problemático quando se visualiza que tal comporta-
mento condiciona o das demais crianças; portanto, não são somente aquelas crian-
ças que se tornam virais que sofrem com a sexualização, mas esse se torna um fe-
nômeno observado de uma maneira geral. Para exemplificar, pensa-se em uma
criança que vê a outra, tratada como adulta, se tornar famosa nas redes sociais, e
tende a copiar tal comportamento para ter uma maior aceitação na sociedade.
Não existindo o controle desse processo, o indivíduo elimina uma importante
etapa do seu desenvolvimento mental, podendo gerar efeitos imediatos também
158
A sexualização infantil na Internet
físicos, como a puberdade precoce, além de efeitos a longo prazo que ainda carecem
de estudos mais aprofundados.

3 Caso ‘Melody’

Dadas as circunstâncias expostas sobre a sexualização infantil, é relevante apre-


sentar um caso atual notório e de grande visibilidade: o da cantora mirim MC Me-
lody, ou apenas Melody, que hoje tem 11 anos, mas já era conhecida na Internet
pelos seus “falsetes” desde tenra idade.
Seu pai, cujo nome artístico é MC Belinho, sempre procurou manter suas filhas
expostas nos meios digitais, principalmente no âmbito musical do funk. No entan-
to, Melody não foi apresentada como a criança que era e ainda é, cantando músicas
com realidade que não condiz com a sua faixa etária, como ocorre, por exemplo, na
música “Agora chora”, que diz:
“Agora chora
A menina cresceu
Agora chora
Tu viu que me perdeu
Agora é tarde
Não adianta implorar
Sai fora, garoto
Já tem outro no seu lugar”
Ademais, a menina padece de uma sexualização latente, denotada pelo uso de
decotes, de maquiagens pesadas e por uma verdadeira tentativa de apresentá-la
como uma adulta perante a sociedade, reprimindo a sua infância e as importantes
fases do desenvolvimento que vem com ela em troca da sua fama.
Porquanto as consequências desse tratamento são de alta reprovabilidade social
– e até mesmo criminosas – observa-se a maior demonstração de tal fato no apon-
tamento de que, em um conhecido site de conteúdo pornográfico, o XVídeos, o
nome da cantora está entre os mais procurados, além de se encontrar fotos dela em

159
Giulia Gabriele Rezende
sítios eletrônicos desse tipo.
Em decorrência disso, surgiram na rede diversas discussões sobre o assunto,
com a interferência de outras figuras públicas, como o youtuber Felipe Neto, que
trouxe mais visibilidade ao caso. A sua primeira atitude foi banir os seus vídeos de
“reação” aos clipes de Melody, que eram feitos devido a um acordo do youtuber
com o pai da garota, em exploração ao apelo sexual contido neles.
Depois, o youtuber realizou um acordo, informado pela sua assessoria, no qual
Melody e sua irmã teriam “acompanhamento pedagógico e psicológico” por parte
de especialistas para tornar seus comportamentos mais condizentes com as suas
idades, além de serem inseridas em um programa que utilizará do seu potencial
artístico e midiático em prol de gerar uma boa influência em crianças pelo país.
Porém, tal atitude alcançou maiores dimensões e acabaram por culminar em di-
versas ações, como o afastamento do pai da menina da administração da carreira
dela, fazendo com que a mãe se tornasse responsável pelas contas em redes sociais
de Melody. Uma apuração foi realizada pelo Ministério Público com relação ao
núcleo familiar das irmãs, por meio de um Procedimento Administrativo Individu-
al, além da busca judicial para a retirada de qualquer conteúdo em websites de teor
pornográfico nos quais figurasse a garota.
Atualmente, a cantora se encontra sob vários impedimentos, como o de utilizar
cílios e unhas postiças, assim como roupas decotadas, além de estar frequentando a
escola, o que representa parte do processo de tratamento psicológico e pedagógico e
da sua mudança de imagem pública.

4 A responsabilidade parental

A Constituição Federal de 1988, no seu capítulo VII do título VIII, já traz a pro-
teção da criança como um dos seus objetivos. O seu artigo 227 agrega a responsabi-
lidade da família, da sociedade e do Estado de garantir a esses indivíduos os seus
mais básicos direitos; porém, deve ser destacado, nesse caso, o dever de cuidado dos
pais, especificamente.
Também, utilizando-se do Estatuto da Criança e do Adolescente, o ordenamen-

160
A sexualização infantil na Internet
to jurídico brasileiro determina considerar-se “criança, a pessoa até doze anos de
idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade”. No
entanto, essa proteção não foi garantida desde o princípio da sociedade brasileira,
como já foi demonstrado sobre a mão de obra infantil, e veio apenas no ano de
1990, junto à tentativa constitucional de expandir a garantia dos Direitos Humanos
pelo país.
Nessa mesma lei, é destacada várias vezes a forma com que a responsabilidade
dos pais pelos filhos deve ocorrer. O poder familiar traz o dever de educar a criança,
como é citado no art. 22, de forma a preservar seu desenvolvimento saudável, tanto
física quanto psicologicamente, e impedindo que ela passe por situações degradan-
tes que os responsáveis poderiam evitar por meio de cuidados atentos. Da mesma
maneira, o Código Civil, no art. 1.634, I, determina que compete aos pais educarem
e criarem os seus filhos, demonstrando, portanto, a coesão do sistema em delegar a
responsabilidade de cuidado principalmente aos genitores.
Dessa maneira, se considerado que a Internet é, hoje, um meio em que as crian-
ças passam grande parte do seu tempo, surge a necessidade de se analisar qual é a
responsabilidade dos pais sobre o comportamento das crianças em tal âmbito.
O Marco Civil da Internet traz, pontualmente, que “o usuário terá a opção de li-
vre escolha na utilização de programa de computador em seu terminal para exercí-
cio do controle parental de conteúdo entendido por ele como impróprio a seus
filhos menores, desde que respeitados os princípios desta Lei e da Lei no 8.069, de
13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente”.
No entanto, nota-se uma forte negligência por parte dos pais em relação a fo-
mentar a educação digital aos seus filhos, atitude essa que pode ser decorrente de
omissão pela própria falta de conhecimento, ou por uma ação direta, como ocorreu
com o pai da cantora Melody, sendo isto previsto pelo ECA no seu art. 5º como
ilegal.
Jones Figueirêdo traz, ao tratar de abandono digital, as seguintes considerações,
pertinentes a esse tema:
(...) evidente que ao conceito de abandono, como situação de perigo, integra-se a fal-
ta dos cuidados necessários à idade do menor, no espectro virtual, pelo genitor
omisso ou negligente (situação de “abandono digital”), ficando o filho entregue a si

161
Giulia Gabriele Rezende
próprio e aos seus equipamentos eletrônicos. Daí decorrem os perigos psíquicos e
emocionais suscetíveis nessa esfera de vivência digital, certo que a noção de perigo
se vincula, desde logo, à iminência ou potencialidade dos danos, independente de a
lesão haver efetivamente ocorrido. Com efeito, a primeira situação de perigo, com-
preensiva em sua ampla extensão, é o da própria criança desassistida por abandono
digital dos genitores.4
Assim, quando se diz sobre a sexualização infantil, nota-se essa clara negligência
por parte da maioria dos pais, que deixam os filhos relegados à própria sorte nas
redes sociais, sem nenhum tipo de controle de conteúdo, ou, ao menos, sem uma
consciência de que não devem adotar determinados comportamentos simplesmen-
te por estes estarem amplamente difundidos nas redes sociais e abrirem possibili-
dade de torná-los pessoas populares.
Já o Código Civil traz a responsabilidade dos pais pelos atos de seus filhos meno-
res no art. 932, I. Portanto, se a criança praticar algum ato ilícito enquanto estiver
sob a autoridade de seus responsáveis, eles serão responsabilizados, e o menor po-
derá responder apenas subsidiariamente, ou seja, se os responsáveis não forem
obrigados a responder ou se eles não puderem fazê-lo, de acordo com o art. 928 do
referido diploma normativo.
Isto posto, quaisquer atos que os filhos realizem no âmbito da Internet são de
responsabilidade dos seus genitores, que não podem alegar desconhecimento ou
nenhuma relação com o acontecimento para eximirem-se de uma penalidade. Isso
se dá por se tratar de um caso de responsabilidade objetiva, a qual é assim definida
por Caio Mário da Silva Pereira:
A doutrina objetiva, ao invés de exigir que a responsabilidade civil seja a resultante
dos elementos tradicionais (culpa, dano, vínculo de causalidade entre uma e outro),
assenta na equação binária cujos polos são o dano e a autoria do evento danoso. Sem
cogitar da imputabilidade ou investigar a antijuridicidade do fato danoso, o que im-
porta para assegurar o ressarcimento é a verificação se ocorreu o evento e se dele
emanou o prejuízo. Em tal ocorrendo, o autor do fato causador do dano é o respon-

4 ALVES, Jones Figueirêdo. Negligência dos pais no mundo virtual expõe criança a efeitos nocivos
da rede. Revista Consultor Jurídico, 15 de janeiro de 2017. Disponível em: <
https://bit.ly/2PcbUGk >. Acesso em: 06 fev. 2019.
162
A sexualização infantil na Internet
sável. Assim, observado que os pais deveriam ter zelado para que não houvesse ne-
nhum dano à criança ao permitir o seu acesso à internet, e considerando que isso
não configura ato ilícito por si só, é possível de se identificar o citado nexo causal e,
consequentemente, a responsabilidade civil dessas pessoas.5
De tal maneira, se a criança se encontra sexualizada nas mídias digitais, os seus
pais devem ser considerados responsáveis por esse fato devido à falta de autonomia
civil da criança e do seu dever de educação e criação já diplomado no ordenamento.
Ademais, o art. 1.634, IX, do Código Civil determina que é de competência dos
pais, no exercício do pleno poder familiar, exigir que a criança realize atividades
próprias à sua idade e condição, o que claramente denota uma indiligência de tais
genitores quando permitem que seus filhos se tornem sexualizados antes de ao me-
nos atingirem a puberdade – o quando o corpo inicia a produção de hormônios
sexuais e, consequentemente, desperta o desejo sexual no indivíduo.
Portanto, como foi observado, permitir ou incentivar que uma criança se porte
como objeto de interesse sexual é uma conduta reprovada pelo ordenamento jurí-
dico brasileiro e é passível de penalização, com a perda do poder familiar pelo res-
ponsável sobre o menor, além de não se descaracterizar a possibilidade de repara-
ção de eventuais perdas e danos.

Conclusão

Assim, é claro o problema que a falta de educação digital, com o acesso quase ir-
restrito à Internet por parte das crianças, pode trazer. Como foi apontado, a sexua-
lização infantil é decorrente da falta de cautela por parte dos pais, que não restrin-
gem o acesso dos filhos a apenas conteúdos que sejam adequados à idade da crian-
ça, mas as deixam sob a influência da mídia digital e dos estereótipos que levam à
mudança de comportamento devido à fragilidade dessas pessoas que ainda estão
em fase de desenvolvimento.
Entretanto, os benefícios do acesso à principal fonte de informação e, hoje, de

5 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p.
269.
163
Giulia Gabriele Rezende
comunicação, não devem ser mitigados pela falta de cuidado daqueles responsáveis
pelas crianças, já que isso será contrário a, até mesmo, os princípios e objetivos
legais vigentes, como aqueles postos pelo Marco Civil da Internet, que envolvem
utilizá-la como um meio de desenvolvimento do país.
Torna-se notável, portanto, a necessidade de buscar a aplicação do artigo 29 do
diploma normativo supracitado, principalmente em relação à proposta contida no
seu parágrafo único, a qual envolve a promoção da educação digital tanto para os
pais, quanto para os filhos, para que haja uma inclusão de maneira adequada dessas
crianças no espaço virtual.
Também, é preciso que os pais sejam efetivamente responsabilizados pela negli-
gência em relação aos seus filhos, sem que isso ocorra apenas em casos como o da
cantora Melody, mas, sim, para que haja a aplicação dos princípios legais que garan-
tem a proteção da criança. Caso não haja a busca para selecionar tal problema, não
se sabe concretamente qual será a abrangência dos efeitos sobre esses indivíduos
que chegarão à idade adulta tendo passado por uma infância mitigada, ou seja, com
um período essencial para a consolidação de experiências e desenvolvimento men-
tal reduzido.
Além da sabida importância de preservar tal fase para que a criança se desenvol-
va adequadamente, essas medidas são importantes para que a pornografia infantil
seja refreada até certo ponto e não ocorram situações como a da cantora mirim e o
website de vídeos pornográficos.

Referências

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efeitos nocivos da rede. Revista Consultor Jurídico, 15 de janeiro de 2017. Dis-
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166
A (HIPER)VULNERABILIDADE DO CONSUMIDOR
NO TRATAMENTO DE SEUS DADOS PESSOAIS

7
Guilherme Ferreira Araújo Cruvinel

Introdução

A todo o momento estamos sendo observados! Há alguns anos, essa frase seria
aplicada a programas de reality show, nos quais pessoas abrem mão de alguns direi-
tos como a liberdade e a privacidade para concorrerem a prêmios milionários.
Também poderia ser aplicada ao livro “1984” de George Orwell1, para simbolizar o
‘grande irmão que tudo vê’.
Contudo, quando se recebe uma publicidade de exatamente aquilo que se estava
pesquisando dias atrás, ou quando é liberado um crédito especial no banco sem
nenhuma solicitação prévia ou, ainda, quando aparece no canto da tela de um
computador ou smartphone, especialmente em redes sociais, produtos e/ou serviços
sobre os quais se comentou casualmente em conversas, há algo para se questionar.
Que os dados pessoais são compartilhados diariamente é algo indiscutível, po-
rém, é importante se questionar até onde podem tais dados ser compartilhados sem
o conhecimento e o consentimento do seu titular.
A chamada 4ª Revolução Industrial é indicada por muitos autores como a prin-
cipal mudança da humanidade. Assim como o vapor foi para a primeira revolução,

1 Cf. ORWELL, George. 1984. Tradução de Heloisa Jahn e Alexandre Hubner. São Paulo: Cia. das
Letras, 2009.
167
Guilherme Ferreira Araújo Cruvinel
a energia elétrica para os meios de produção na segunda, o computador automati-
zou e consagrou grandes feitos na terceira, a inteligência artificial será um marco na
chamada quarta revolução.
Com todas essas mudanças, certamente as relações ficaram mais assimétricas,
posto que sempre haverá uma parte mais dominante, se sobrepujando à outra. No
tratamento dos dados pessoais, é notório que a parte frágil da relação é o titular dos
dados, grande parte das vezes o consumidor dos produtos e/ou serviços oferecidos
pela parte dominante.
Para que não fique o consumidor totalmente desprotegido, é necessário que leis
sejam criadas, a fim de proteger a sua integridade, bem como que aconteçam mu-
danças significativas na arquitetura da rede.
Garantir direitos ao titular dos dados pessoais é função essencial do Estado para
o empoderamento do consumidor enquanto pessoa humana. Não pode o consumi-
dor ser desprovido de sua privacidade para se inserir na economia digital. Na mes-
ma medida, não pode ser-lhe garantido um direito (fundamental) à privacidade
enquanto lhe é negada participação social.
Assim, para que aconteçam as mudanças esperadas pela 4ª Revolução Industrial
deve ser garantido ao consumidor o livre desenvolvimento de sua personalidade,
arrimado a um direito à privacidade contextualizado e a autodeterminação infor-
macional.

1 A sociedade do compartilhamento

A expressão “sociedade do compartilhamento” nunca esteve tão em voga como


na presente década. Dizer que os dados pessoais são o novo petróleo, a matéria
prima da atual sociedade ou, até mesmo, o motor do capitalismo é algo que está
todos os dias nos periódicos nacionais e internacionais. Contudo, a sociedade do
compartilhamento vem se transformando há séculos.
Antes do advento das funções comerciais da Internet, já existiam controles dos
dados pessoais para otimizar o desenvolvimento econômico. A exemplo disso, po-
de-se citar o próprio taylorismo, pelo qual se investiu em treinamento e padroniza-

168
A (hiper)vulnerabilidade do consumidor no tratamento...
ção de operários para aumentar a produção e as margens de lucro.2
Dessa forma, o que a Internet fez foi apenas virtualizar a informação.3 A trans-
formação do átomo ao bit!4 O tratamento de dados pessoais sempre foi realizado,
seja para utilidade pessoal ou qualquer outro fim econômico. Com a tecnologia, a
capacidade de armazenamento desses dados aumentou de forma estratosférica,
passando de simples ficheiros de papel, os quais armazenavam pequena quantidade
de escritos, para computadores com sistema binário (0 e 1)5 com altíssima capaci-
dade de armazenar qualquer tipo de informação escrita, fonográfica etc.
Além do fator quantitativo que a tecnologia proporcionou ao tratamento de da-
dos, o fator qualitativo também fora melhorado, posto que, a exemplo de uma bi-
blioteca, que, anos atrás, tinha estruturação logística totalmente física na qual fica-
va-se horas procurando uma obra literária que preenchesse as expectativas do lei-
tor; hoje, porém, com a capacidade de processamento aumentada, toda a biblioteca
é mapeada através de chips, que armazenam a obra, o autor, o assunto principal,
assuntos secundários, entre outros.
Com a monetização dos dados pessoais, surgiram novas tecnologias que, nova-
mente, revolucionaram o mercado das informações, trazendo riscos para os players
envolvidos. O Big Data6, por exemplo, é um conceito emanado dessa ideia de con-
solidação de imensurável quantidade de dados que, quando filtrados (por processos

2 BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento. Rio
de Janeiro. Forense, 2019, p. 9.
3 BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento. Rio
de Janeiro. Forense, 2019, p. 6.
4 “O bit (simplificação para dígito binário, em inglês binary digit) é a menor unidade de informa-
ção que pode ser armazenada ou transmitida, usada na Computação e na Teoria da Informação.
Um bit pode assumir somente 2 valores: 0 ou 1, corte ou passagem de energia, respectivamente”.
Conceito extraído do site Wikipédia. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Bit>.
5 “O sistema binário ou de base 2 é um sistema de numeração posicional em que todas as quanti-
dades se representam com base em dois números, ou seja, zero e um (0 e 1)”. Conceito extraído
do site Wikipédia, disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Sistema_de_numera%C3
%A7%C3%A3o_bin%C3%A1rio>.
6 O conceito de Big Data pode ser encontrado em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Big_data>.
169
Guilherme Ferreira Araújo Cruvinel
de algoritmização), fazem com que coisas sem importância sejam transformadas
em informações capazes de identificar o titular da informação.
A Internet das Coisas/IoT é outro mecanismo que possibilita a formação de pro-
filing.7 As chamadas “coisas inteligentes”, que são capazes de interagir com as pes-
soas, são as principais formas de coletar dados atualmente. Televisores, relógios e
assistentes virtuais estão o tempo todo armazenando nossas atitudes.
Watch’s são capazes de realizar relatórios médicos detalhados através da coleta
de dados pessoais. Até mesmo crimes estão sendo desvendados pela utilização de
relógios inteligentes.8
A Siri, assistente virtual da Apple, que realiza diversas funções dentro do smar-
tphone é uma aposta da marca, bem como a Alexa, assistente da Amazon que, no
ano de 2017 vendou mais de 100 milhões de unidades.9
É importante destacar, ainda, o papel de nossas interações nas redes sociais: os
chamados likes. Cada clique dado diariamente nessas plataformas é capaz de traçar
um perfil de consumo através de mapeamento de interesses pelas curtidas – e pelos
comentários – os quais, posteriormente, são vendidos a empresas de publicidade e
marketing. A IoT, alinhada à tecnologia Big Data, possibilita a essas grandes corpo-
rações, coletar e tratar uma infinidade de dados pessoais que, sem o devido controle
da legislação e do Estado, pode trazer prejuízos às pessoas envolvidas.
Visualiza-se que o tratamento desenfreado dos dados pessoais torna o usuário
parte vulnerável, posto que, na maior parte das vezes, esse não tem o conhecimento
de que seus dados estão sendo coletados, tratados e compartilhados com outras
empresas. Esse tratamento pode violar diversos direitos dos consumidores, reduzir
a sua capacidade de escolha, causar discriminações, retirar sua privacidade, bem

7 A tradução e o conceito de profiling pode ser encontrado em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Pro


filing_(computer_programming)>.
8 A matéria completa pode ser encontrada no site: <
https://www.tecmundo.com.br/produto/128924-apple-watch-ajudar-solucionar-homicidio-
australia.htm>.
9 A matéria completa pode ser encontrada em: < https://www.maistecnologia.com/amazon-
registra-mais-de-100-milhoes-de-dispositivos-alexa-vendidos/>.
170
A (hiper)vulnerabilidade do consumidor no tratamento...
como sua liberdade informacional, além de impedir o livre desenvolvimento de sua
personalidade.

2 O tratamento dos dados pessoais à luz da lei geral de proteção de dados

Por muitos anos, o Brasil ficou carente de uma norma geral de proteção de da-
dos pessoais que buscasse, de forma incisiva, proteger os usuários, o que não signi-
fica ausência de proteção a tais dados. Diversos ordenamentos trazem em seu plexo
normativo questões relacionadas à proteção de dados, a exemplo do Código de
Defesa do Consumidor, o Código Civil, o instituto do Habeas Data, o Marco Civil
da Internet, entre outros. Porém, o advento de uma legislação especificamente des-
tinada a essa proteção – Lei 13.709/2018, ou Lei Geral de Proteção de Dados – é
algo que merece averiguação mais detida.
O art. 2° da Lei 13.709/2018 estabelece os fundamentos que a legislação busca
alcançar; dentre eles estão o da autodeterminação informacional e o do livre desen-
volvimento da personalidade.10
Destaca-se que o legislador não privilegiou apenas a proteção da privacidade do
titular dos dados, como era destacado em legislações comparadas. Aqui, o legisla-
dor buscou proteger o livre desenvolvimento da personalidade, indicando que a
proteção dos dados tem status de direito fundamental. Através da autodetermina-
ção informacional, o poder decisório está nas mãos do titular dos dados e não de
quem o trata.
Acresce-se que a autodeterminação informacional arrimada aos princípios elen-
cados no art. 6° do mesmo dispositivo deve ser algo bastante claro e de fácil aplica-
ção, posto que apenas garantir ao titular dos dados pessoais o direito de escolher o

10 Destaca-se o art. 2° da Lei 13.706/18: “Art. 2º A disciplina da proteção de dados pessoais tem
como fundamentos: I - o espeito à privacidade; II - a autodeterminação informativa; III - a liber-
dade de expressão, de informação, de comunicação e de opinião; IV - a inviolabilidade da inti-
midade, da honra e da imagem; V - o desenvolvimento econômico e tecnológico e a inovação;
VI - a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor; e VII - os direitos humanos,
o livre desenvolvimento da personalidade, a dignidade e o exercício da cidadania pelas pessoas
naturais.”
171
Guilherme Ferreira Araújo Cruvinel
tratamento a ser empregado em seus dados, através de seu consentimento, mas não
desenvolver meios para que tal consentimento não seja velado ou até mesmo fadi-
gado, não significará a garantia do seu livre desenvolvimento da personalidade.
Dentre os vários princípios trazidos à tona pela Lei Geral de Proteção de Dados,
destacam-se alguns que deverão ser levados em consideração em todo o exercício
de tratamento de dados, sob o risco de se violar a personalidade e a autodetermina-
ção informacional do usuário.11 O princípio da finalidade12 talvez seja o grande
regulador das atividades de tratamento de dados pessoais.
Para que os dados pessoais sejam tratados pelos operadores13 e/ou controlado-

11 Destaca-se o art. 6° da Lei 13.706/18. O texto completo pode ser encontrado no site do planalto.
Art. 6º As atividades de tratamento de dados pessoais deverão observar a boa-fé e os seguintes
princípios: I - finalidade: realização do tratamento para propósitos legítimos, específicos, explíci-
tos e informados ao titular, sem possibilidade de tratamento posterior de forma incompatível
com essas finalidades; II - adequação: compatibilidade do tratamento com as finalidades infor-
madas ao titular, de acordo com o contexto do tratamento; III - necessidade: limitação do trata-
mento ao mínimo necessário para a realização de suas finalidades, com abrangência dos dados
pertinentes, proporcionais e não excessivos em relação às finalidades do tratamento de dados; IV
- livre acesso: garantia, aos titulares, de consulta facilitada e gratuita sobre a forma e a duração
do tratamento, bem como sobre a integralidade de seus dados pessoais; V - qualidade dos dados:
garantia, aos titulares, de exatidão, clareza, relevância e atualização dos dados, de acordo com a
necessidade e para o cumprimento da finalidade de seu tratamento; VI - transparência: garantia,
aos titulares, de informações claras, precisas e facilmente acessíveis sobre a realização do trata-
mento e os respectivos agentes de tratamento, observados os segredos comercial e industrial; VII
- segurança: utilização de medidas técnicas e administrativas aptas a proteger os dados pessoais
de acessos não autorizados e de situações acidentais ou ilícitas de destruição, perda, alteração,
comunicação ou difusão; VIII - prevenção: adoção de medidas para prevenir a ocorrência de da-
nos em virtude do tratamento de dados pessoais; IX - não discriminação: impossibilidade de rea-
lização do tratamento para fins discriminatórios ilícitos ou abusivos; X - responsabilização e
prestação de contas: demonstração, pelo agente, da adoção de medidas eficazes e capazes de
comprovar a observância e o cumprimento das normas de proteção de dados pessoais e, inclusi-
ve, da eficácia dessas medidas.
12 Inciso extraído da Lei 13.706/18. I - finalidade: realização do tratamento para propósitos legíti-
mos, específicos, explícitos e informados ao titular, sem possibilidade de tratamento posterior de
forma incompatível com essas finalidades;
13 Art. 5º. Para os fins desta Lei, considera-se: VII - operador: pessoa natural ou jurídica, de direito
público ou privado, que realiza o tratamento de dados pessoais em nome do controlador;
172
A (hiper)vulnerabilidade do consumidor no tratamento...
res14, deve ficar claro ao titular dos dados qual é o propósito legítimo, específico e
explícito da coleta de seus dados.
Violada a finalidade para qual foram os dados coletados, estarão os controlado-
res/operadores agindo com abusividade, podendo sofrer sansões pesadíssimas,
como a multa aplicada em razão de infrações cometidas, a qual pode chegar a R$
50.000.000,00.15
Contudo, como já mencionado, não adiantará a legislação garantir direitos ne-
gativos se não garantir direitos positivos que regulem a arquitetura da rede.

3 Os riscos do compartilhamento

Falar em compartilhamento é falar em lucro. Empresas estão faturando bilhões


por trabalharem com nossos dados pessoais. Através dos rastros que são deixados
na rede, frequentemente, por meios dos cookies16, são traçados perfis digitais que
podem aumentar ou diminuir nossa liberdade de escolha, bem como nossos direi-
tos e garantias individuais.
Navegar na rede é algo que se tornou arriscado. Nunca saberemos se estamos
sendo discriminados por nossa geolocalização, cor da pele, capacidade financeira
ou opção sexual.

14 Art. 5º. Para os fins desta Lei, considera-se: VI - controlador: pessoa natural ou jurídica, de direi-
to público ou privado, a quem competem as decisões referentes ao tratamento de dados pessoais;
15 Art. 52. Os agentes de tratamento de dados, em razão das infrações cometidas às normas previs-
tas nesta Lei, ficam sujeitos às seguintes sanções administrativas aplicáveis pela autoridade naci-
onal: II - multa simples, de até 2% (dois por cento) do faturamento da pessoa jurídica de direito
privado, grupo ou conglomerado no Brasil no seu último exercício, excluídos os tributos, limita-
da, no total, a R$ 50.000.000,00 (cinquenta milhões de reais) por infração;
16 Basicamente, um Cookie é um arquivo de texto muito simples, cuja composição depende dire-
tamente do conteúdo do endereço Web visitado. Por exemplo, a maioria dos sites armazenam
informações básica, como endereços IP e preferências sobre idiomas, cores, etc. Contudo, em
portais como o Gmail e o Hotmail, nomes de usuários e senhas de e-mail também fazem parte
dos Cookies. O texto completo pode ser encontrado em: <
https://www.tecmundo.com.br/web/1069-o-que-sao-cookies-.htm>.
173
Guilherme Ferreira Araújo Cruvinel
A empresa Decolar.com fora denunciada pelo Ministério Público do Estado do
Rio de Janeiro17 pela prática de geo-blocking (bloqueio da oferta com base na ori-
gem geográfica do consumidor) e de geo-pricing (precificação diferenciada da oferta
também com base na geolocalização).
Outro exemplo de discriminação através da coleta de dados foi o da empresa
Uber18, que fora investigada por aumentar o preço da tarifa ao levar em considera-
ção o nível de bateria do cliente19. Segundo a investigação, clientes com níveis de
bateria mais baixo tendem a pagar mais pelo serviço por estarem em uma situação
de risco.
O emblemático caso da empresa Norte-Americana Target20 ficou famoso após a
empresa utilizar a tecnologia de Big Data para traçar o perfil de suas consumidoras
e descobrir quais estavam grávidas antes mesmo das próprias clientes, através do
mapeamento do que era pesquisado. A empresa cruzava os dados das clientes com
o que essas buscavam na rede. Eram criados perfis de consumo capazes de identifi-
car até mesmo o período gestacional da mulher.
Assim leciona a professora Laura Schertel Mendes ao dizer que:
(...) os riscos da técnica de construção de perfil não residem apenas na sua grande
capacidade de junção de dados; na realidade, a ameaça consiste exatamente na sua
enorme capacidade de combinar diversos dados de forma inteligente, formando no-
vos elementos informativos (...).21
As velhas “listas negras”22 são um problema antigo que, com o desenvolvimento

17 A matéria completa pode ser acessada através do site: < https://bit.ly/2Dgj1sF >.
18 A matéria completa pode ser acessada através do site: <https://www.npr.org/2016/05/17/4782
66839/this-is-your-brain-on-uber>.
19 A matéria completa pode ser acessada através do site: <
http://www.analisepreditiva.com.br/como-prever-a-gravidez-de-clientes-aumenta-as-vendas-
caso-target/>
20 A matéria completa pode ser encontrada no site: <https://www.nytimes.com/2012/02/19/ maga-
zine/ shopping-habits.html?pagewanted=1&_r=1&hp>.
21 MENDES, Laura Schetel. Privacidade, proteção de dados e defesa do consumidor: linhas gerais
de um novo direito fundamental. São Paulo. Saraiva. 2014, p. 111.
22 Há diversas decisões do TST a respeito da ilegalidade das “listas negras”. Ver: RR 325/2004-091-
174
A (hiper)vulnerabilidade do consumidor no tratamento...
tecnológico, tomaram outra forma. Diversas empresas criam lista de funcionários
que, após o fim do contrato de trabalho, ingressam na justiça requerendo demais
direitos. Tais funcionários são incluídos em listas que são compartilhadas com de-
mais empresas, a fim de impedir que esses ex-funcionários consigam emprego.
A prática conhecida como racial profiling23 viola o direito à igualdade dos usuá-
rios ao tomar decisões discriminatórias, seja por questões raciais ou de imigrantes.
Diversas pessoas são impedidas de entrar em outros países, pois seu sobrenome faz
parte de listas de supostos aliados ao terrorismo.
Sem dúvida, a tecnologia afeta positivamente e negativamente todos os setores
da economia. Além da questão social, também são afetados todos os direitos fun-
damentais do cidadão, seja na sua privacidade, igualdade ou até mesmo no seu di-
reito de ir e vir.

4 Consumidor de vidro

A expressão “consumidor de vidro” (the glass consumer) fora utilizada pela pro-
fessora Susanne Lace24 para se referir à (hiper)vulnerabilidade do consumidor no
seu dia a dia. Frente às novas tecnologias que estão transformando a sociedade em
uma verdadeira prisão de vigilância máxima, o consumidor cada vez mais se torna
frágil e vulnerável nas relações sociais.
O tratamento dos dados tornou-se uma coisa normal e lucrativa. As maiores
empresas do mundo, Amazon, Google, Facebook trabalham com o tratamento diá-
rio de dados pessoais de seus clientes. É discrepante a assimetria do consumidor em
face a essas empresas – chamadas de “impérios da comunicação” por Tim Wu. 25

09-00.7, julgado em 2-4-2008, rel. Min. Maria de Assis Calsing, 4ª Turma, Dj 18-4-2008.
23 O conceito completo do termo pode ser encontrado em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Racial
_profiling>.
24 LACE, Susanne. The glass cosumer: life in a surveillance, society. Bristol: Policy Pess, 2005. p 1.
apud BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimen-
to. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 24.
25 Para maiores aprofundamentos, recomenda-se a leitura de: WU, Tim. The master switch: the
175
Guilherme Ferreira Araújo Cruvinel
Assim, o titular dos dados é visto como figura (hiper)vulnerável26 na relação as-
simétrica de consumo. Surgem, então, as normas especiais para tutelar a peculiari-
dade de cada grupo “ferido”.
O termo vulnerabilidade advém do latim vulnus (machucado ou ferida), o que
significa a potencialidade de o sujeito, ora identificado como vulnerável, ser mais
suscetível de sofrer dano.27
Destaca-se que nessa relação assimétrica, o usuário é vulnerável em três esferas
distintas: informacional, técnica e econômica.
Informacional, posto que regularmente a finalidade do tratamento dos dados
pessoais não é demostrada de forma clara ao titular dos dados, o que o torna desco-
nhecedor de todo o processo realizado no tratamento dos dados.
Técnica, por não ter o titular a capacidade intelectual para optar, através de seu
consentimento, sobre o tratamento de seus dados. A tecnologia que deveria mini-
mizar essa assimetria muitas das vezes a maximiza, posto que dificulta o entendi-
mento do titular.
Por fim, a assimétrica-econômica, haja vista o poderio econômico das empresas
distancia o consumidor/usuário de suas garantias fundamentais.
Ressalta-se que a situação do consumidor piora, quando esse é quase obrigado a
consentir com o compartilhamento de seus dados pessoais para participar de forma
efetiva da chamada “sociedade digital”.
Pelo fato de grande parte dos serviços disponibilizados na rede serem “gratui-
tos”, a contraprestação à qual deve o consumidor se submeter é consentir com o
compartilhamento de seus dados pessoais, o que faz surgir a figura do Prosumer.28

rise and fall of information empires. Nova Iorque: Vintage, 2010.


26 BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento. Rio
de Janeiro. Forense, 2019, p 165.
27 BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento. Rio
de Janeiro. Forense, 2019, p 162.
28 Prossumidor é um neologismo (originado do inglês “prosumer”) que provém da junção de
produtor + consumidor ou profissional + consumidor. Confira-se: <
https://pt.wikipedia.org/wiki/Prosumer >.
176
A (hiper)vulnerabilidade do consumidor no tratamento...
Assim, o consumidor deixa de ter uma posição meramente passiva e passa a ter
uma participação ativa. Não apenas consumindo (consumption), pois também pro-
duz o bem de consumo (production).29

5 Consentimento real x consentimento velado

Sem dúvida, o consentimento é a estrutura fundamental no tratamento dos da-


dos pessoais. Grande parte das legislações, nacionais ou estrangeiras, privilegia o
poder que o titular tem sob os seus dados pessoais.
O Regulamento Geral sobre Proteção de Dados da União Europeia, 2016/769
UE30 cita 72 vezes a palavra “consentimento”. No art. 4° sobre as definições, define
consentimento como:
Consentimento» do titular dos dados, uma manifestação de vontade, livre, específi-
ca, informada e explícita, pela qual o titular dos dados aceita, mediante declaração
ou ato positivo inequívoco, que os dados pessoais que lhe dizem respeito sejam ob-
jeto de tratamento; (...).
Nota-se que o legislador europeu manifestou que, para o consentimento ser vá-
lido, esse deve ser livre, específico, informado e explícito. No art. 6° do mesmo dis-
positivo, reafirmou a licitude do ato arrimado ao consentimento do titular.31
No mesmo sentido, o legislador brasileiro, ao editar a Lei 13.709/2018, utilizou o
consentimento do titular como requisito essencial para o tratamento dos dados
pessoais. No art. 7°, I fica clara a obrigatoriedade de se dar o consentimento para o
tratamento das informações. 32

29 BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento. Rio
de Janeiro. Forense, 2019, p. 15.
30 O regulamente pode ser encontrado na integra em: <https://eur-lex.europa.eu/legal-
content/PT/TXT /HTML/?uri=CELEX:32016R0679&from=PT>.
31 1. O tratamento só é lícito se e na medida em que se verifique pelo menos uma das seguintes
situações: a) O titular dos dados tiver dado o seu consentimento para o tratamento dos seus da-
dos pessoais para uma ou mais finalidades específicas;
32 Art. 7º. O tratamento de dados pessoais somente poderá ser realizado nas seguintes hipóteses: I -
177
Guilherme Ferreira Araújo Cruvinel
Contudo, apesar da boa intenção do legislador, é importante relembrar que o
consumidor é a parte vulnerável na relação. Deixar todo o poder de escolha em sua
mão talvez não seja algo que lhe proteja.
Não sendo o consentimento livre, a medida se torna ilegal. Nas relações assimé-
tricas, às quais os consumidores são submetidos todos os dias, facilmente o consen-
timento se torna aparente. Exemplos de tal ficção são as situações nas quais o con-
sentimento é dado para a aquisição de um serviço essencial ou em contratos cativos
(de longa duração), em que não se consegue destacar a cláusula de consentimento
das demais.
Ao navegar pelas redes sociais, o usuário muita das vezes é forçado a fornecer os
seus dados para utilizar os serviços de forma completa. Por mais que dados expos-
tos na Internet se tornaram “públicos”, esses carecem de tutela jurídica.
Quantas são as vezes nosso CPF é solicitado para realizar compras simples em
farmácias ou mercados sob a justificativa de se criar um cartão fidelidade? Ao não
fornecer o dado, é informado um preço superior ao dos demais consumidores ca-
dastrados. Citado pela professora Laura Schertel Mendes, o autor Benedikt Buchner
denomina tal situação de “take it or leave it”, isto é, pegar ou largar, o que demostra
que a liberdade de consentir nesses casos é apenas aparente.33
Dessa forma, é importante destacar a figura do princípio da autodeterminação
informacional, a qual garante ao titular dos dados o livre desenvolvimento de sua
personalidade, garantindo que seus dados sejam confidencializados, a depender de
suas escolhas.
Não se pode atribuir tamanha carga decisória ao titular dos dados, sendo que es-
se é a parte mais frágil na relação. Deve o Estado garantir, através de direitos positi-
vos, a tutela do usuário.
Assim leciona o professor Bruno Ricardo Bioni:
Mais do que garantir, artificialmente, diversos qualificadores para o consentimento,

mediante o fornecimento de consentimento pelo titular;


33 Cf. MENDES, Laura Schertel. A vulnerabilidade do consumidor quanto ao tratamento de dados
pessoais. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 102, n. 24, p.
19-43, nov./dez. 2015.
178
A (hiper)vulnerabilidade do consumidor no tratamento...
deve-se buscar, sobretudo, outras ferramentas regulatórias para equalizar a referên-
cia assimétrica do mercado informacional, redesenhando a sua dinâmica de poder.
Esse é o maior desafio para se propiciar ao cidadão um melhor controle de seus da-
dos – uma verdadeira autonomia para, com o pressão de ser prolixo, autodetermi-
nar as informações pessoais.34
Nesse contexto, a autodeterminação informacional é princípio relevante nessa
“briga de forças”. Deve o consumidor se empoderar de direitos para não continuar
sendo o elo mais fraco nas relações de compartilhamento de dados.

6 Autodeterminação informacional

O direito à autodeterminação informacional surgiu em 1983, na Alemanha,


quando o Tribunal Constitucional Alemão (Bundesverfassungsgericht) julgou o
famoso caso da “lei do recenseamento da população, profissional, moradia e traba-
lho.” Nesse julgamento, o tribunal radicalizou o conceito do livre controle do indi-
víduo sobre o fluxo de suas informações na sociedade e decidiu pela inconstitucio-
nalidade parcial da referida lei.35
A referida lei visava à coleta dos dados dos cidadãos quanto aos pontos acima ci-
tados e previa uma multa para os cidadãos que se negassem a fornecer tais dados.
Além da coleta, a lei estabelecia que os dados pudessem ser transmitidos de forma
anônima para demais órgãos do governo federal, além de serem comparados com
demais bancos de dados, para verificar a veracidade das informações prestadas.
Assim, o direito à autodeterminação informacional (Schutz der informationellen
Selbstbestimmung) é entendido como o direito do indivíduo de determinar, em
princípio, a si próprio, sobre a divulgação e uso de seus dados pessoais.
Leciona a professora Laura Schertel Mendes:
A sentença da Corte Constitucional, na sua formulação de um direito à autodeter-

34 BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento. Rio
de Janeiro: Forense, 2019, p. 168.
35 MENDES, Laura Schertel. Privacidade, proteção de dados e defesa do consumidor: linhas gerais
de um novo direito fundamental. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 30.
179
Guilherme Ferreira Araújo Cruvinel
minação da informação, criou o marco para a teoria da proteção de dados pessoais e
para as subsequentes normas nacionais e europeias sobre o tema, ao reconhecer um
direito subjetivo fundamental de seus dados. O grande mérito do julgamento reside
na consolidação da ideia de que a proteção de dados pessoais baseia-se em um direi-
to subjetivo fundamental, que deve ser concretizado pelo legislador e que não pode
ter o seu núcleo fundamental violado. Isso significa uma limitação ao poder legisla-
tivo, que passa a estar vinculado à configuração de um direito à autodeterminação
da informação.36
Dessa forma, o princípio da autodeterminação informacional garante ao cidadão
o livre desenvolvimento da sua personalidade. Arrimado na dignidade da pessoa
humana, tem o cidadão o direito de determinar o fluxo de suas informações na
sociedade.
A decisão alemã destaca dois aspectos importantes: (i) a proteção dos dados pes-
soais como um direito de personalidade autônimo e a compreensão do terno auto-
determinação informacional para além do consentimento; (ii) a função e os limites
do consentimento do titular dos dados.37
Verifica-se que a Corte Constitucional não se conteve em garantir um direito à
proteção dos dados pessoais ligados à privacidade do indivíduo. Entendeu-se que a
proteção estava ligada diretamente à personalidade do cidadão, sendo um direito
autônomo.
A questão que se apresenta é a seguinte: como o titular dos dados poderia se de-
senvolver como pessoa humana se, a todo o momento, fosse monitorado por seus
atos ou manipulado previamente? A conclusão que se extrai da releitura do julgado
é a de que o consentimento poderia servir “às avessas” para a desproteção dos da-
dos pessoais, na medida em que tornaria ilimitada a coleta e o processamento dos
dados pessoais.38

36 MENDES, Laura Schertel. Privacidade, proteção de dados e defesa do consumidor: linhas gerais
de um novo direito fundamental. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 31.
37 BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento. Rio
de Janeiro: Forense, 2019, p. 101.
38 BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento. Rio
de Janeiro: Forense, 2019, p. 107.
180
A (hiper)vulnerabilidade do consumidor no tratamento...

7 Privacidade Contextual

A proteção dos dados pessoais não pode ser analisada apenas sob o prisma do
direito à privacidade e/ou à intimidade do titular dos dados. A sua plena proteção
cabe a um direito autônomo que irá tutelar a proteção dessas informações por
completo.
Podemos citar a privacidade como um pilar fundamental desse direito autôno-
mo, posto que, logo no art. 2° da Lei 13.709/18, o legislador deu destaque para esse
instituto.
Porém, a privacidade deve ser analisada em um contexto próprio, e não de mo-
do geral, como é indicado por alguns autores. O respeito à privacidade citato no
dispositivo supramencionado somente será efetivo se for analisado de forma parti-
cular em cada caso concreto.
Citado pela professora Laura Schertel Mendes, Viktor Mayer-Schönberger traz
uma boa reflexão sobre o tema: “Será que nós alcançamos o estágio ótimo da prote-
ção de dados se garantirmos os direitos à privacidade que, quando exercidos, acar-
retarão a exclusão do indivíduo da sociedade?”39
A partir dessa reflexão é que surge a ideia de uma privacidade contextual, ade-
quada a situações específicas. Essa teoria fora desenvolvida pela professora norte-
americana Helen Nissenbaum40, a qual disserta sobre um conceito de privacidade
mais amplo.
Segundo Nissenbaum, o foco dos institutos que visavam à proteção de dados era
o controle do indivíduo sobre as suas informações pessoais ou a preservação de
eventos íntimos e privados. Porém, ela define privacidade como “integridade con-
textual”, afirmando que a privacidade não é um direito ao sigilo, nem um direito ao
controle, mas sim o fluxo apropriado de informações pessoais, conforme normas

39 MENDES, Laura Schertel. Privacidade, proteção de dados e defesa do consumidor: linhas gerais
de um novo direito fundamental. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 61.
40 MENDES, Laura Schertel. Privacidade, proteção de dados e defesa do consumidor: linhas gerais
de um novo direito fundamental. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 81.
181
Guilherme Ferreira Araújo Cruvinel
informacionais orientadas pelo contexto social.41
Dessa forma, a verificação da violação da privacidade sob essa perspectiva re-
quer a análise de uma série de requisitos: (i) ambiente social estruturado; (ii) emis-
sores, receptores e sujeitos da informação; (iii) tipos de informação; e (iv) princí-
pios de transmissão.
Nissenbaum também afirma que, em determinados eventos, faz-se necessária
uma análise mais ampla e detalhada sobre os riscos causados pelo fluxo de informa-
ções à autonomia e à liberdade do indivíduo, assim como à justiça, à igualdade e à
democracia.42
A professora norte-americana propõe que o trânsito das informações pessoais
tenha um valor social, guiado por considerações políticas e morais, que é o que
determina ser ele apropriado ou não.43
Nessa equação, o indivíduo não se torna o soberano pelo tratamento de seus da-
dos pessoais, até porque, muitas das vezes, esse é hipossuficiente na relação. Sugere
a professora que a fórmula seja a soma do contexto mais a integridade resultando
em normas informacionais.
O professor Bruno Ricardo Bioni faz uma boa reflexão sobre tal equação:
[Norma informacional] é o produto dos citados elementos (contexto + integridade)
dessa equação que deve governar o trânsito dos dados. Invertendo-se a ordem dos
fatores, mas não do seu resultado: as normas informacionais restringem o fluxo dos
dados, verificando-se a sua integridade de acordo com o contexto em que eles estão
inseridos. (...)44
Tal fórmula permite ao consumidor garantir as suas legítimas expectativas sobre

41 MENDES, Laura Schertel. Privacidade, proteção de dados e defesa do consumidor: linhas gerais
de um novo direito fundamental. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 81.
42 MENDES, Laura Schertel. Privacidade, proteção de dados e defesa do consumidor: linhas gerais
de um novo direito fundamental. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 82.
43 BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento. Rio
de Janeiro: Forense, 2019, p. 211.
44 BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento. Rio
de Janeiro: Forense, 2019, p. 212.
182
A (hiper)vulnerabilidade do consumidor no tratamento...
a privacidade. Como já mencionado, deixar toda a carga de responsabilidade para o
consumidor é algo que pode trazer grandes prejuízos. A teoria formulada pela pro-
fessora Nissenbaum talvez seja o início de um tratamento mais democrático, no
qual se garante direitos negativos por parte do Estado, mas também se assegura
direitos positivos, equilibrando a responsabilidade entre as partes relacionas.

8 Arquitetura Regulatória

Na busca de se garantir cada vez mais autonomia de vontade ao consumidor, é


preciso regular alguns pontos da arquitetura da rede. Como já foi mencionado an-
teriormente, deixar toda a responsabilidade de escolha ao consentimento do con-
sumidor é algo que não se coaduna com os princípios estabelecidos pela Lei Geral
de Proteção de Dados.
Por mais que a legislação ordinária estabeleça princípios para a plena proteção
dos dados pessoais e a Constituição Federal os reafirme, é importante que haja re-
gulações na web para que as expectativas dos consumidores sejam legítimas.
Garantir punições, estabelecer fundamentos, criar autoridade de proteção, talvez
não seja o suficiente, caso o risco no empreendimento supere os prejuízos ocasio-
nados. Aqui se fala das maiores empresas do mundo, com faturamentos estratosfé-
ricos, as quais extrapolam as fronteiras territoriais.
Dessa forma, arrimado aos princípios da prevenção e da precaução, devem ha-
ver regulações na arquitetura da rede, a fim de garantir ao titular uma livre manifes-
tação de sua vontade, bem como contextualizar os princípios no caso em concreto.

9 Privacy Enhancing Technologies/PETs

A expressão Privacy Enhancing Technologies pode ser traduzido para o portu-


guês como “tecnologias de aprimoramento da privacidade”, referindo-se àquelas
tecnologias que buscam minimizar os riscos para o titular dos dados pessoais. A
exemplo de algumas PETs que utilizamos, podemos citar a criptografia, a anonimi-
zação de dados pessoais e a navegação anônima pela web, que nada mais são do que
183
Guilherme Ferreira Araújo Cruvinel
arquiteturas dos sistemas informacionais para a proteção dos dados pessoais.
As PETs, muito mais do que garantir um sigilo sobre os dados dos titulares, bus-
cam equilibrar a relação entre as partes envolvidas na coleta, mineração e comparti-
lhamento de dados pessoais. Arrimado ao princípio da autodeterminação informa-
cional, as PETs surgem para garantir que o titular escolha de forma coesa e clara.
Acresça-se que o termo Privacy Enhancing Technologies não se confunde com
Privacy Invasive Technologies, que seria exatamente o contrário: tecnologias utiliza-
das para invadir a privacidade dos usuários.
Assim, as PETs, podem ser compreendidas como um ‘guarda-chuva’ que impe-
de a invasão de certas tecnologias e garante ao consumidor uma proteção eficaz
para que esse possa se empoderar na sociedade da informação.
As PETs refletem a ideia de que a proteção de dados pessoais deva orientar a
concepção de um produto ou serviço, devendo eles ser embarcados com tecnologia
que facilite o controle e a proteção das informações pessoais.45

10 Do Not Track/DNT: Não me rastreie!

Várias são as tecnologias que coletam diariamente os dados dos internautas. O


exemplo mais comum são os cookies, que coletam os nossos “rastos”, que são dei-
xados por toda a rede enquanto navegamos.
A partir dessas coletas que são realizadas sem o conhecimento do titular, fora
criada uma PETs chamada DNT, cuja sigla traduzida para o português significa
“não me rastreie” (do not track). Tal PET busca padronizar toda a rede, facilitando
ao usuário que não fique dando o seu consentimento a todo instante.
Assim explica o professor Bioni:
Ao contrário de fechar, rejeitar e/ou aceitar inúmeros pop-ups de cookies, ou, ainda,
travar uma saga constante para deletar inúmeros trackers, bastaria ao consumidor
acionar o botão “DNT” para que, automaticamente, fosse exteriorizada a sua esco-

45 BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento. Rio
de Janeiro: Forense, 2019, p. 176.
184
A (hiper)vulnerabilidade do consumidor no tratamento...
lha em barrar ou não a coleta de seus dados. Essa funcionalidade seria ativada pelo
próprio navegador do usuário que sinalizaria tal opção do usuário a todos as aplica-
ções por ele acessadas. O browser seria, assim, a forma pela qual o consentimento do
titular dos dados pessoais seria externalizado e, em última análise, o veículo da au-
todeterminação informacional.46
A partir do DNT, surgiu, na Europa, a discussão sobre em qual momento deve-
ria o titular dar o seu consentimento para que seus dados fossem coletados e/ou
compartilhados. A discussão se deu para saber se o consentimento seria dado no
início, opt-in, quando o titular consentiria para tratarem seus dados, ou ao final,
opt-out, no qual o titular se manifestaria para deixarem de compartilhar.
Na situação opt-in, não poderiam ser os dados tratados até que o titular consen-
tisse com o ato. Dessa forma, assim que o internauta entrasse na rede, deveria ma-
nifestar seu consentimento para cada lugar onde poderiam ser os seus dados trata-
dos. Tal opção trouxe ao titular uma espécie de fadiga do consentimento, posto que,
a partir de certo momento, o titular já não escolhia de plena consciência, mas ape-
nas aceitava ou negava os cookies de forma aleatória e sem critério, caracterizando
um consentimento falso e maçante.
Aposto a essa situação, a opção opt-out, que significa um “direito de saída”, vio-
laria a capacidade técnica do titular, posto que esse não tivesse condições técnicas
para requerer o não compartilhamento de seus dados. No opt-out, as PET’s coleta-
riam ilimitadamente os dados e, caso o titular não optasse mais por essa coleta, ele
deveria solicitar o fim do ato.
A fim de solucionar essa discussão, fora desenvolvido o DNT, Do not Track, o
direito de não ser rastreado. Como já mencionado tal PET colocaria o titular e o
tratador dos dados de forma equânime, posto que equilibraria a relação entre eles.
Com apenas uma escolha, inicial, opt-in, que seria dada no próprio browser, o ti-
tular padronizaria a sua escolha de compartilhar ou não os seus dados, garantindo a
sua autodeterminação informacional, bem como seu livre desenvolvimento social
na rede.

46 BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento. Rio
de Janeiro: Forense, 2019, p. 180.
185
Guilherme Ferreira Araújo Cruvinel
Por uma guerra de forças, o projeto do DNT não foi concluído, tendo continua-
do a ocorrer a coleta dos dados diuturnamente e sem uma regulamentação de pro-
teção na arquitetura da Internet.

11 Platform for Privacy Preferences/ P3P: preferências e privacidades

Deixar de viver na sociedade do compartilhamento é algo inalcançável para se-


res que, diariamente, utilizam alguma coisa ligada à Internet, seja acessar uma rede
social ou fazer uma simples compra com o cartão de crédito.
A partir dessa incontrolável coleta de dados, existem pessoas que se sentem con-
fortáveis com tal prática, tendo em vista o direcionamento publicitário que é reali-
zado. A formação de perfis tem a vantagem de indicar ao consumidor exatamente o
que ele quer, desprezando mensagens massificadas.
Alinhando a coleta maciça de dados, fruto da sociedade da informação, com o
direcionamento publicitário, criou-se a Platform for Privacy Preferences, ou apenas
P3P.
A P3P tinha como ideia padronizar para todos os provedores de aplicação as
preferências do consumidor, assim, esse conseguiria efetivar o seu direito autode-
terminativo de forma plena e efetiva.
Assim leciona Bioni:
Mais do que isso, afastar-se-ia a lógica do “tudo” ou “nada” das políticas de privaci-
dade, na medida em que o “concordo” ou “discordo” poderiam ser substituídos pe-
la granularidade das autorizações especificas nas preferências de privacidade. Asse-
gurando-se tal poder de barganha na troca econômica (trade-off) da economia de
dados, a P3P empoderaria o cidadão com uma autonomia genuína sobre o fulcro de
suas informações pessoais. O leque de opções do processo de tomada de decisão
avançaria para além da lógica binária do take-it ou leave-it.47
Poderia ter sido a P3P um avanço para combater a falsa impressão de segurança

47 BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento. Rio
de Janeiro: Forense, 2019, p. 184.
186
A (hiper)vulnerabilidade do consumidor no tratamento...
apresentada pelas políticas de privacidade apresentadas pelas empresas. Indicar
direitos não significa garanti-los se, também, se está longe de concretizá-los. Dessa
forma, além de uma legislação negativa, são necessárias leis que regulem a formata-
ção arquitetônica da Internet e proteja os direitos dos consumidores.

Conclusão

É notório que o direito não consegue acompanhar as mudanças tecnológicas


que acontecem a cada minuto. Comparando a Lei de Moore, que diz que um pro-
cessador leva 18 meses para duplicar a sua capacidade de processamento, com o
tempo que um projeto lei demora para tramitar no congresso, constatamos que
aquela frase é verdadeira.
Sob essa perspectiva, há alguns caminhos a serem escolhidos: (i) sempre buscar
a lei para resolver os problemas que por ventura surgirem com o avanço tecnológi-
co; (ii) deixar o mercado regular as questões em uma lógica de procura e demanda;
(iii) arraizar princípios jurídicos e éticos que devem ser seguidos por toda a tecno-
logia.
Parece que a terceira opção é a mais viável dentre as outras, posto que não busca
ir de encontro com o avanço, mas sim utilizá-lo como benefício de todos.
Assim deve ser o tratamento dos dados pessoais. A utilização de tecnologia deve
privilegiar também os titulares das informações e não apenas gerar lucro às grandes
corporações.
Os princípios elencados na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais devem ser a
base de proteção das informações tratadas diariamente.
Deve-se assumir a figura vulnerável do consumidor no tratamento de seus da-
dos pessoais e lhe garantir o livre desenvolvimento de sua personalidade. Esse só
alcançará sua inserção digital quando lhe for garantida uma participação efetiva na
sociedade e seus dados forem protegidos.
A junção de um direito à privacidade contextual com uma regulação arquitetô-
nica da Internet garantirá ao consumidor o pleno gozo de seus direitos como figura
humana. Enquanto não se mexer na arquitetura da rede, não acontecerão mudan-

187
Guilherme Ferreira Araújo Cruvinel
ças positivas na vida do consumidor.
Garantir um direito de autodeterminação informacional a uma parte vulnerável
tecnicamente é prejudicial ao próprio titular dos dados. A responsabilidade de um
tratamento sustentável é das corporações que geram lucro com isso e não do sim-
ples titular que se encontra atrás de um smartphone.
Conclui-se que o poder decisório não deve ficar exclusivamente sob um consen-
timento a ser dado pelo titular. Deve o Estado garantir meios legais para que o titu-
lar/consumidor consiga consentir de forma livre e consciente, bem como que as
grandes corporações consigam regulamentar a arquitetura de seus serviços para que
não haja uma relação assimétrica prejudicando a parte vulnerável da relação.

Referências

BRASIL. Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Estabelece princípios, garantias,


direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. Disponível em: <
https://bit.ly/1kxaoKm >. Acesso em: 08 jan. 2019.
BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Dispõe sobre a proteção de dados
pessoais e altera a Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Disponível em: <
https://bit.ly/2NH4yIF >. Acesso em: 08 jan. 2019.
BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do con-
sentimento. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
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de dados pessoais. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo: Revista dos
Tribunais, v. 102, n. 24, p. 19-43, nov./dez. 2015.
MENDES, Laura Schertel. Privacidade, proteção de dados e defesa do consumidor:
linhas gerais de um novo direito fundamental. São Paulo: Saraiva, 2014.
ORWELL, George. 1984. Tradução de Heloisa Jahn e Alexandre Hubner. São Pau-
lo: Cia. das Letras, 2009.
WU, Tim. The master switch: the rise and fall of information empires. Nova
Iorque: Vintage, 2010.

188
DIGNIDADE.COM: DIREITOS FUNDAMENTAIS
NA ERA DO POPULISMO 3.0

8
João Victor Rozatti Longhi

The rise of new political parties reflects a new cleavage in society,


stemming from technological and economic factors: a fracture
between political and/or economic insiders and what I call con-
nected outsiders. 1
— PAOLO GERBAUDO

Introdução

O conceito de democracia nunca esteve tão em xeque quanto no século XXI,


fruto evidente da alavancagem trazida pelas Tecnologias da Informação e Comuni-
cação, marcos essenciais da chamada sociedade da informação.
Nesse campo, especial destaque se confere ao papel das mídias sociais, que de-
ram voz a todo tipo de opinião, desafiando o legislador a revisitar todo o arquétipo
estrutural do sistema jurídica, com a codificação de regulamentos voltados ao trato
com a Internet. E, no Brasil, esse fenômeno se tornou especialmente marcante a
partir da segunda década deste século, com a promulgação de um Marco Civil da
Internet e de uma Lei Geral de Proteção de Dados – para citar alguns exemplos.

1 GERBAUDO, Paolo. The digital party: political organisation and online democracy. Londres:
Pluto Press, 2019, p. 177.
João Victor Rozatti Longhi
Nesse sentido, se questiona acerca do fenômeno da personalização e dos riscos
trazidos pelas redes sociais, com destaque para a polarização política gerada pelos
efeitos deletérios das (más) interações virtuais decorrentes da datificação massiva,
da estigmatização gerada pela prática do profiling, da poluição informacional, das
Fake News e do fenômeno que a doutrina convencionou chamar de populismo
digital – aqui renomeado para “populismo 3.0”, ao revisitar o conceito cunhado
por Paolo Gerbaudo, marco teórico do presente estudo.
O envieseamento de conteúdos e a radicalização política decorrente do acesso
em massa aos dados pessoais indica-se como um risco às liberdades democráticas,
ferindo direitos fundamentais em um período de transição democrática no qual o
que aqui se denominou de “dignidade.com” reflete a angústia resultante dos peri-
gos que o Estado Democrático de Direito está a enfrentar frente a essa realidade.
Propõe-se, como problema de pesquisa, a discussão quanto aos impactos do uso
político indevido da web, cujas influências nefastas que não se voltam apenas à
moldagem da opinião pública em campanhas e pleitos eleitorais, mas a todo o pro-
cesso de deliberação na esfera pública. Daí a necessidade de que sejam criados cer-
tos freios institucionais e de regulamentação, especialmente no campo da proteção
de dados, que, embora insuficientes para conter todos os riscos advindos desta nova
realidade, dão a tônica de uma nova roupagem institucional que tem o poder de
munir o cidadão de mecanismos para a proteção de sua dignidade informacional.

1 Breves notas sobre o conceito de democracia

A dicotomia entre o âmbitos público e privado sempre foi muito evidente, em-
bora se diga que, atualmente,
existem evidências suficientes de certa desordem na fronteira entre ambos, que se
tornou móvel, em alguns casos confusa e, em numerosos temas, permeada por pro-
blemas e princípios que estabeleceram um novo sistema de comunicação entre o
público e o privado.2

2 LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial. Tradução de Bruno Miragem. 2. ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 39.
190
Dignidade.com
Essa separação tem raízes na hodierna superação da até então incontestável se-
paração entre direito público e direito privado, que emerge da releitura pós-
moderna do direito público3, que impõe novas nuances para o sistema jurídico.
Toda essa distinção tem origem no direito romano, donde se extraem os concei-
tos de ius privatum e ius publicum, sendo o primeiro relacionado aos interesses da
sociedade civil e o segundo materializado na figura de seu titular e exequente: o
Estado.4 A distinção é vista pela clássica doutrina como fenômeno importante do
ponto de vista sistemático, uma vez que, na prática, ela seria bem nítida: no direito
privado, prevaleceriam a liberdade e a igualdade; no direito público, a autoridade e
a competência.5
Sucinta análise histórica revela uma transição marcante ao longo do período li-
beral, na passagem do Estado Liberal para o Estado Social e, posteriormente, para o
Estado Democrático de Direito, na medida em que “o homem, enquanto realidade
histórico-existencial, tende a criar e a desenvolver, no contexto de um mundo natu-
ral e de um mundo valorativo, formas de vida e de organização social.”6
As revoluções que marcaram o Século XVIII, especialmente nos Estados Unidos
da América e na França, com inspiração iluminista, marcaram a forte tendência à
modificação do modelo de funcionamento das estruturas da sociedade, dando cor-
porificação ao ‘contrato social’ delineado por Jean-Jacques Rousseau e permitindo a
superação de modais clássicos de formatação da estrutura do Estado no Antigo
Regime, criando espaço para que tomasse corpo o modelo de Estado pautado no
primado da liberdade individual e no afastamento máximo do Estado em relação
aos cidadãos.

3 HAURIOU, Maurice. Précis de droit administratif et de droit public. 11. ed. Paris: Librairie du
Recueil Sirey, 1927, p. 301.
4 PRATA, Ana. A tutela constitucional da autonomia privada. Coimbra : Almedina, 1982, n. 1.2,
p. 28.
5 MENEZES CORDEIRO, António. Teoria geral do direito civil. 3. ed. Coimbra : Coimbra Edito-
ra, 1994, v. 1, p. 12.
6 WOLKMER, Antônio Carlos. Ideologia, estado e direito. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1989, p. 56. Sobre isso, confira-se, para maiores aprofundamentos: BONAVIDES, Paulo. Do es-
tado liberal ao estado social. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 30-34.
191
João Victor Rozatti Longhi
Face à superação do Estado Liberal7, transformações sociais intensas marcaram
a ascensão do Estado Social, especialmente após a Revolução Industrial, o que via-
bilizou uma remodelagem do papel do Estado, que se tornou provedor direto de
uma série de garantias das quais se originou a proteção aos direitos sociais e à flexi-
bilização da autonomia da vontade, permitindo densa revisão dos vetustos institu-
tos do direito privado e, por consequência, também do direito público, com a revi-
são do papel do Estado na nova dogmática jurídica.8
Para Karl Larenz, o propósito primordial desse novo modelo era evitar que
"aqueles a quem eventualmente é confiado o exercício do poder estatal o utilizem
de um modo distinto do sentido que impõe o Direito".9 E, nesse exato sentido, é
possível compreender o quão importante se tornou o papel do Estado no que diz

7 As bases fundamentais do Estado Liberal têm raízes que remontam aos papeis do ‘Homem-ser
empírico’ e do ‘Homem-ser racional’ (KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos
costumes. Tradução de Leopoldo Holzbach. São Paulo: Martin Claret, 2003, p. 77.). Ademais,
nota-se que foi um período marcado pela presença do conceito de liberdade baseado na metafí-
sica dos costumes e em uma ‘lei universal’ que impunha ao Direito um ‘agir’ atrelado a tais pa-
râmetros. (BONAVIDES, Paulo. Do estado liberal ao estado social. 10. ed. São Paulo: Malheiros,
2011, p. 107.). Todavia, a insubsistência do modelo liberal fomentou um repensar do papel do
Estado naquele período, apesar de autores como John Stuart Mill, Jeremy Bentham e outros
adeptos do utilitarismo jurídico que viria a prosperar no common law, apontassem para os peri-
gos da ‘tirania da maioria’ (MILL, John Stuart. Sobre a liberdade. Tradução de Denise Bott-
mann. São Paulo: L&PM Editores, 2016, p. 56.); outros, como Benjamin Constant, apontavam
para a necessidade de uma releitura da antítese entre liberalismo e democracia, culminando em
indicações como a de Norberto Bobbio: “Nesse sentido, a contraposição entre liberalismo e de-
mocracia também pode ser considerada de outro ponto de vista: o desenvolvimento da doutrina
liberal está estreitamente ligado à crítica econômica das sociedades autocráticas; o desenvolvi-
mento da doutrina democrática está mais estreitamente ligado a uma crítica de caráter político
ou institucional. (BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. Tradução de Marco Aurélio
Nogueira. São Paulo: Edipro, 2017, p. 86-87.)
8 É importante registrar que o amadurecimento do direito privado, em termos de codificação,
ocorre antes que o do direito público, que fica adstrito a um vasto rol de leis espargidas por todo
o ordenamento, sem completa elaboração doutrinária e sujeitas à indesejada mutabilidade exces-
siva. (VEDEL, Georges; DEVOLVÉ, Pierre. Droit administratif. Paris: PUF, 1992, p. 40.)
9 LARENZ, Karl. Derecho justo: fundamentos de etica juridica. Tradução de Luis Díez-Picazo.
Madri: Civitas, 1985, p. 151.
192
Dignidade.com
respeito à tomada de decisões e às deliberações quanto aos rumos da sociedade na
coordenação do convívio social, cuja meta primordial passou a ser a efetivação do
interesse público, até então dissociado do interesse privado (da sociedade civil). 10
A contribuição de Rousseau para o Estado Social é mais condizente com o con-
ceito de democracia, quando comparado ao pensamento de Karl Marx e Friedrich
Engels11, tendo em vista que Rousseau defende que a doutrina do Estado social deve
ser baseada em uma política de cunho popular fundada no consentimento, ou na
“vontade geral” (volonté générale).12
Mas é Ortega y Gasset o pensador que melhor descreve o perfil do liberalismo
que viria a imperar no Século XX:
O liberalismo – convém hoje recordar isto – é a suprema generosidade: é o direito
que a maioria outorga à minoria e é, portanto, o mais nobre grito que soou no pla-
neta. Proclama a decisão de conviver com o inimigo; mais ainda, com o inimigo dé-
bil. Era inverossímil que a espécie humana houvesse chegado a uma coisa tão boni-
ta, tão paradoxal, tão elegante, tão acrobática, tão antinatural. Por isso, não deve
surpreender que tão rapidamente pareça essa mesma espécie decidida a abandoná-
la.13
A civilização ocidental, para Ortega y Gasset, é visualizada a partir de seu con-
ceito de ‘homem-massa’, que ilustra como todo o progresso que ocorreu no Século
XIX passou a ser visto como natural pelas massas, transformando-se em um direito
inalienável. Nos dizeres de Eric Hobsbawn, trata-se de período histórico no qual os
países de base capitalista e também o bloco socialista e parte do chamado ‘Terceiro
Mundo’ atingiram altíssimas taxas de crescimento.14 É durante o Século XX que se

10 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Novos institutos consensuais da ação administrativa.


Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro: Renovar, v. 231, jan./mar. 2003, p. 91-93.
11 Cf. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Coleção a obra-prima
de cada autor. Tradução de Pietro Nasseti. São Paulo: Martin Claret, 2000.
12 ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social. Tradução de Antônio P. Machado. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2011, p. 44.
13 ORTEGA Y GASSET, José. A rebelião das massas. Tradução de Felipe Denardi. Campinas: Vide
Editorial, 2016, p. 149.
14 HOBSBAWN, Eric. Era dos extremos: o breve Século XX (1914-1991). Tradução de Marcos
193
João Victor Rozatti Longhi
aceleram as relações entre Estado e Direito, conduzindo a uma reformulação do
modelo até então vigente a um novo arquétipo: o Estado Democrático de Direito.
Chega-se ao Século XXI e o que se nota é um crescente distanciamento entre os
meandros externos do controle político institucionalizado e o espaço em que se
estabelece o rol das questões mais importantes para a vida humana: vive-se a mo-
dernidade líquida, e, nesse contexto, “sendo a exequibilidade da ação medida pela
potência das ferramentas, pouca ação é esperada pelas pessoas mais razoáveis de
sua ecclesia local”. 15
Cass Sunstein assevera sua preocupação com esse movimento:
Com essas ideias em mente, enfatizei os sérios problemas para indivíduos e socieda-
des que provavelmente serão criados pela prática do auto-isolamento – por uma si-
tuação em que muitos de nós nos isolamos das preocupações e opiniões de nossos
companheiros cidadãos.16
A inserção de modais tecnológicos nas inter-relações humanas e, inclusive, nas
interações dos cidadãos com o Estado se materializa de uma nova dinâmica de inte-
rações, na medida em que a Internet tornou o ser humano imerso em uma “peque-
na vila”, onde ninguém mais pode ser considerado um estranho.17
Representantes e representados, usualmente separados pela burocracia e por di-
versos outros fatores, se veem reaproximados em razão de mudanças no compor-
tamento que, aliadas a novas alternativas que surgem em meios de comunicação,
tendem a se aproximar, sendo a Internet uma ferramenta estratégica para a conver-
gência de interesses no meio digital.

Santarrita. 2. ed. São Paulo: Cia. das Letras, 2000, p. 257.


15 BAUMAN, Zygmunt. A sociedade individualizada: vidas contadas e histórias vividas. Tradução
de José Gradel. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 255-257.
16 SUNSTEIN, Cass R. #Republic: divided democracy in the age of social media. Princeton: Prince-
ton University Press, 2017, p. 252. No original; “With these ideas in view, I have stressed the
serious problems for individuals and societies alike that are likely to be created by the practice of
self-insulation – by a situation in which many of us wall ourselves off from the concerns and
opinions of our fellow citizens”.
17 LEVMORE, Saul; NUSSBAUM, Martha. Introduction. In: LEVMORE, Saul; NUSSBAUM,
Martha. The offensive Internet. Cambridge: Harvard University Press, 2010, p. 1.
194
Dignidade.com
Não se pode perder de vista, contudo, a existência de uma norma fundamental
“sobre a qual repousará a validade do novo ordenamento”18, e da qual se poderá
extrair um rol de deveres dos quais se incumbirá o Estado, dos quais merece desta-
que a proteção à dignidade humana, que constitui a premissa para todas as demais
questões jurídico-dogmáticas da sociedade já constituída ou potencialmente consti-
tuída, criando, nos dizeres de Peter Häberle, uma força protetiva pluridimensional
contra os perigos que eventualmente ameaçarem a ordem constitucional.19
Dessa forma, o interesse público envolvido nas questões administrativas revela o
participativismo como o ideal democrático, o caminho para ampliar a interação
entre o Estado e a sociedade civil, e rompendo a velha dicotomia entre público e
privado a partir da cooperação que define a democracia digital (também conhecida
como e-democracia ou democracia eletrônica).

2 Populismo 3.0: a democracia na era digital

Em 2013, a chamada “primavera árabe”20 e seus resultados políticos posterio-


res21 marcaram um fenômeno de ascensão ao poder de regimes autoritários, em

18 JORI, Mario; PINTORE, Anna. Manuale di teoria generale del diritto. 2. ed. Turim: Giappichel-
li, 1995, p. 291. No original: “(...) su cui riposerà la validità del nuovo ordinamento”.
19 HÄBERLE, Peter. A dignidade humana como fundamento da comunidade estatal. In: SARLET,
Ingo Wolfgang (Org.). Dimensões da dignidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p.
128-129.
20 “Primavera árabe” é a nomenclatura utilizada para se referir à onda de protestos, revoltas e
revoluções populares contra governos do mundo árabe que eclodiu a partir de 2011, tendo como
epicentro o agravamento econômico provocado pela crise e pela falta de democracia dos países
do Médio Oriente.
21 Sobre isso: "It is commonly said that nobody predicted the upheavals in the Arab world that began
in December 2010 and defined the following year. But that does not mean that nobody saw them
coming. The crumbling foundations of the Arab order were visible to all who cared to look. Politi-
cal systems that had opened slightly in the mid-2000s were once again closing down, victim to re-
gime manipulation and repression. Economies failed to produce jobs for an exploding population
of young people. As the gap between rich and poor grew, so did corruption and escalating resent-
ment of an out-of-touch and arrogant ruling class. Meanwhile, Islamist movements continued to
195
João Victor Rozatti Longhi
sequência de eventos decorrente das mobilizações sociais naquele momento histó-
rico22, marcando um período de mudanças significativas para o estudo dos impac-
tos dos movimentos sociais na Internet.23 O tom de otimismo inicial acerca do pa-
pel das redes sociais, especialmente na questão do empoderamento do cidadão co-
mum e da participação política, mudou (drasticamente).24
Com efeito, visualizou-se a ascensão do chamado ‘ativismo virtual’, que passou
a ter suas feições remodeladas para além das interações singelas de outrora: da luta
por causas ligadas à defesa de direitos humanos, democracia e participação, cresceu
e continua a aumentar o número de pessoas com caráter “anti-globalistas”, que
questionam fatos até então tidos por consensuais, como o aquecimento global, por
exemplo, além da ascensão de grupos de caráter racista, misógino, homofóbico e
ultra-nacionalista, com reflexos em todo o mundo.
Segundo Gerbaudo:
O culto da participação problematiza a utopia e a prática, fins e meios; o mundo que
queremos construir e as maneiras pelas quais podemos construí-lo. A ação coletiva
corre o risco de se tornar meramente terapêutica e não emancipatória, e sua nature-
za é mais ética e quase religiosa do que política. Essa tendência, que reflete a miste-

transform public culture even as Arab regimes used the threat of al-Qaeda to justify harsh security
crackdowns”. (LYNCH, Mark. The Arab uprising: the unfinished revolutions of the Middle East.
Nova Iorque: Public Affairs, 2013, p. 11.)
22 BEÇAK, Rubens; LONGHI, João Victor Rozatti. O papel das tecnologias da comunicação em
manifestações populares: a primavera árabe e as jornadas de junho no Brasil. Revista Eletrônica
do Curso de Direito da UFSM, Santa Maria, v. 10, n. 1, pp. 388-405, out. 2015, p. 391.
23 GERBAUDO, Paolo. Tweets and the streets: social media and contemporary activism. Londres:
Pluto Press, 2012, p. 166. Comenta: “At the heart of the culture of contemporary social move-
ments there lies a third fundamental tension: that between evanescence and fixity. On the one
hand, contemporary popular movements are characterised by ‘liquid’ forms of organising; in
which the use of social media by social networking sites is geared towards superseding the authori-
tarian tendencies of ‘solid’ organisations like parties and trade unions, in the effort of avoiding the
‘iron law of oligarchy’. On the other hand, these movements require the invocation of a sense of lo-
cality or ‘net locality’, which involves bestowing them with some degree of fixity, a ‘nodal point’ in
their texture of participation.”
24 KEEN, Andrew. The internet is not the answer. Londres: Atlantic, 2015, p. 140-142.
196
Dignidade.com
riosa ressonância entre o neoanarquismo e o neoliberalismo em sua reflexão comum
das tendências narcísicas individualistas, considera todos os movimentos em dire-
ção à formalização como necessariamente equivalentes à ossificação e à esclerotiza-
ção, e não, por exemplo, à maturação.25
Em essência, o fenômeno que se observa é o fato de a Internet não ser mais
aquela mesma, originalmente concebida. Novas aplicações surgiram, criando largo
espaço para o domínio exercido por poucos atores (Facebook, Google etc.). As redes
sociais tem uma estrutura comunicacional baseada em um enviesamento de conte-
údo, fortalecendo as bolhas dos filtros e, como produto, os radicalismos político-
ideológicos, como alerta Siva Vaidhyanathan:
A história do Facebook foi contada bem e frequentemente. Mas merece uma análise
profunda e crítica no momento crucial. De alguma forma, o Facebook foi transfor-
mado de um inocente site criado por estudantes de Harvard em uma força que, em-
bora possa tornar a vida um pouco mais prazerosa, torna a democracia muito mais
desafiadora. É uma história de arrogância e boas intenções, um espírito missionário
e uma ideologia que vê o código de computador como o solvente universal para to-
dos os problemas humanos. E é uma acusação de como as mídias sociais promove-
ram a deterioração da cultura democrática e intelectual em todo o mundo.26

25 GERBAUDO, Paolo. The mask and the flag: populism, citizenship and global protest. Oxford:
Oxford University Press, 2017, p. 244. No original: “The cult of participation problematically
conflates utopia and praxis, ends and means; the world we want to build and the ways in which
we can build it. Collective action runs the risk of becoming merely therapeutic rather than eman-
cipatory, and its nature more ethical and quasi-religious instead of political. This tendency, which
reflects the uncanny resonance between neoanarchism and neo liberalism in their common reflec-
tion of individualistic narcissistic tendencies, considers all moves towards formalisation as neces-
sarily equating to ossification and sclerotisation rather than, for example, maturation.”
26 VAIDHYANATHAN, Siva. Anti-social media: how Facebook disconnects us and undermines
democracy. Oxford: Oxford University Press, 2018, p. 3. No original: “The story of Facebook has
been told well and often. But it deserves a deep and critical analysis at crucial moment. Somehow
Facebook devolved from an innocent social site hacked together by Harvard Students into a force
that, while it may make personal life just a little more pleasurable, makes democracy a lot more
challenging. It’s a story of hubris of good intentions, a missionary spirit, and an ideology that sees
computer code as the universal solvent for all human problems. And it’s an indictment of how so-
cial media has fostered the deterioration of democratic and intellectual culture around the world.”
197
João Victor Rozatti Longhi
Esta constatação é corroborada pelo pensamento de Evgeny Morozov, que indi-
ca que a política desdobrada do conceito de e-democracia parece revelar como uma
cyber-utopia27, dando ensejo à formação de uma nova forma de populismo: o popu-
lismo digital: “O que estamos assistindo através destes diversos fenômenos é o que
poderia ser descrito como 'afinidade eletiva' entre mídias sociais e populismo: as
mídias sociais favorecem movimentos populistas contra o ‘establishment’”.28
E este suporte popular passa, mais uma vez, pelo uso maciço das redes sociais
pelos ‘líderes’ – eleitos ou não – das redes sociais. Agora com a possibilidade de
comunicação direta com seus seguidores, que, por seu turno, compartilham, co-
mentam, respondem às postagens contrárias, rapidamente e em tempo real, tem-se
um novo formato de participação interativa com o poder de, em segundos, gerar
repercussão a partir de trending topics, visualizações etc.
Atendo-se ao presidente norte-americano Donald Trump, exemplo mais em-
blemático deste momento histórico, é perceptível a mudança de atitude dos líderes
globais, pois, em termos de técnica comunicacional, Trump se vale quase que ex-
clusivamente da rede social Twitter para expressar suas visões e, de modo geral, se
comunicar com seus representados, havendo quem o chame ironicamente de
“Twitter-in-chief”29, em menção à função presidencial de “Commander in Chief”
prevista na Constituição norte-americana (Artigo II, Seção 2).30
Nas postagens de Donald Trump, observa-se a presença usual de textos curtos e
de linguagem simples, compreensível e de fácil apreensão por parte do seguidor;
quanto ao conteúdo, nota-se uma mistura de opiniões pessoais com fatos contro-

27 MOROZOV, Evgeny. The net delusion: the dark side of Internet freedom. Nova Iorque: Public
Affairs, 2011, p. 320.
28 GERBAUDO, Paolo. Social media and populism: an elective affinity? Media, Culture & Society,
Londres, v. 40, n. 5, p. 745-753, 2018, p. 746.
29 ANDERSON, Bryan. Tweeter-in-Chief: a content analysis of President Trump’s tweeting habits.
Elon Journal of Undergraduate Research in Communications, v. 8, n. 2, outono de 2017, p. 36
et seq.
30 UNITED STATES OF AMERICA. The Senate. Constitution of the United States. Disponível
em: <https://www.senate.gov/civics/constitution_item/constitution.htm>. Acesso em: 25 nov
2018.
198
Dignidade.com
versos, que posteriormente são contestados pela mídia tradicional pela natureza
polêmica e permeada por Fake News, teorias da conspiração, ironias etc.
É importante destacar que não se pretende, neste breve texto, extrair qualquer
conclusão sobre conceitos complexos como os de populismo, totalitarismo, autori-
tarismo, ditadura etc., o que demandaria estudos mais sólidos e robustos, com in-
cursões em outras áreas do conhecimento; porém, o contexto das comunicações –
particularmente das redes sociais – revela a existência de um ambiente repleto de
perigos para que sejam preservados os direitos fundamentais, especialmente os de
primeira dimensão (liberdades públicas).
Isso porque esse fenômeno que, aqui, se optou por chamar de “populismo 3.0”,
marca a presença de um ambiente de desinformação generalizada e de ataques sis-
temáticos às instituições democráticas, no qual as liberdades de expressão e comu-
nicação passam a ser alvo em potencial.

3 Para além da e-democracia

Para Cass Sunstein, antes que se possa buscar uma completa assimilação dos
modos pelos quais se poderá proteges – efetivamente – o arcabouço de direitos que
se extrai da noção de dignidade, é necessário que se faça uma revisão completa no
“sistema de liberdade de expressão”.31
As questões em torno da ‘qualidade’ da e-democracia revelam a expressão má-
xima do poder do cidadão quanto às formas contemporâneas de populismo, que
revelam um instrumento do totalitarismo mais insidioso, de realização do socialis-
mo ou a expressão de um verdadeiro ‘fascismo digital’. 32 Essa mesma visão é parti-
lhada por Gustavo Zagrebelsky33, “para quem a democracia opinativa é uma ilusão

31 SUNSTEIN, Cass R. #Republic: divided democracy in the age of social media. Princeton: Prince-
ton University Press, 2017, p. 26.
32 LONGHI, João Victor Rozatti. Processo legislativo interativo: interatividade e participação por
meio das Tecnologias da Informação e Comunicação. Curitiba: Juruá, 2017, p. 100.
33 ZAGREBELSKY, Gustavo. A crucificação e a democracia. Tradução de Mônica de Santis. São
Paulo: Saraiva, 2011, p. 143.
199
João Victor Rozatti Longhi
que pode redundar em um ambiente altamente antidemocrático e totalitarista”34.
Realmente, a proposta de uma democracia digital ou e-democracia pressupõe a
apresentação de soluções para problemas concernentes à dinâmica das interações
em rede, e para a superação de adversidades relativas à inclusão e à exclusão digital
e ao grau de engajamento político-democrático da população.35
A este respeito, notou-se que a mera existência da Internet não propiciou maior
engajamento político da população, embora seja possível anotar, como o faz Jan
Van Dijk, que:
Contrariamente às expectativas populares nos anos 90, a Internet não está atraindo
mais pessoas para o processo político. (...) Entretanto, ela propicia uma plataforma
para formas adicionais de ativismo político que são mais difíceis de realizar no
mundo “offline”: oportunidades adicionais de se encontrar informações políticas e
de criar interação política.36
Além disso, não se pode olvidar das preocupações quanto à nebulosidade que
permeia o conhecimento que se tem dos usos e do controle da Internet, notada-
mente em face do predomínio do poder econômico dos ‘impérios da comunica-
ção’37, corporações privadas que ascenderam ao patamar de entidades hegemônicas
no controle das mídias sociais.38

34 LONGHI, João Victor Rozatti. Processo legislativo interativo: interatividade e participação por
meio das Tecnologias da Informação e Comunicação. Curitiba: Juruá, 2017, p. 101.
35 MAGRANI, Eduardo. Democracia conectada: a Internet como ferramenta de engajamento
político-democrático. Curitiba: Juruá, 2014, p. 100.
36 VAN DIJK, Jan. The network society. 2. ed. Londres: Sage Publications, 2006, p. 106-107. No
original: “Contrary to popular expectations in the 1990s, the Internet is not drawing more people
into the political process. (...) However, it does provide a platform for additional forms of political
activity that are more difficult to realize in the offline world: additional opportunities to find polit-
ical information and to create political interaction.”
37 Cf. WU, Tim. The master switch: the rise and fall of information empires. Nova Iorque: Vintage,
2010.
38 Essa preocupação remete à marcante frase de Cass Sunstein: “Esfera pública conectada? O que
sabemos exatamente sobre o uso da Internet? Muito longe do suficiente.” (LONGHI, João Vic-
tor Rozatti. Processo Legislativo Interativo: interatividade e participação por meio das Tecnolo-
gias da Informação e Comunicação. Curitiba: Juruá, 2017, p. 111.)
200
Dignidade.com
Inegavelmente, as críticas apresentadas são plausíveis e revelam uma preocupa-
ção que se deve ter ao implementar mecanismos tecnológicos para a facilitação da
interação entre os cidadãos e o Estado, o que significa dizer que, a rigor, o tempo se
revelará preponderante para a maturação de mecanismos de e-democracia já exis-
tentes e para a criação e a implementação de novos mecanismos – o que será inevi-
tável, segundo Van Dijk:
Minha própria expectativa é que o aumento das redes políticas e computacionais e o
incremento do uso de TICs introduzam uma série de instrumentais com potencial
de influenciar democraticamente, de forma direta, os cidadãos em um sistema polí-
tico de representação que tenta incorporá-los mais ou menos de forma exitosa. O
futuro pode trazer uma combinação de modais de democracia direta e representati-
va, combinações variadas entre sistemas políticos e culturais, como já ocorre hoje.39
Com efeito, o caminho que se tem no horizonte não é a ausência de regulamen-
tação, que deixa lacunas no ordenamento para que usuários se valham da Internet a
fim de fazerem postagens cuja remoção seja cada vez mais dificultada; também não
se dará com a instituição de uma Autoridade sem autonomia, incapaz de fiscalizar e
sancionar os responsáveis pelo seu vazamento – como ocorreu no Brasil com a
edição da Medida Provisória nº 869/2018.40
Precisa-se, em verdade, de verdadeira ruptura com o paradigma burocrático pa-
ra que a viabilização da implementação de estruturas de tecnologia da informação
em modelos democráticos se dê a partir de plexos procedimentais que evitem a
formação de verdadeiras bolhas de informação, em que cada vez mais o internauta

39 VAN DIJK, Jan. The network society. 2. ed. Londres: Sage Publications, 2006, p. 106-107. No
original: “My own expectation is that the rise of political and computer networking and the grow-
ing use of ICTs will introduce a number of instruments with the potential for direct democratic in-
fluence of citizens in a political system of representation that tries to incorporate them more or less
successfully. The future might be some combination of direct and representative modes of democ-
racy, combinations varying across political systems and cultures, as they do today”.
40 Para maiores aprofundamentos, confira-se: MARTINS, Guilherme Magalhães; LONGHI, João
Victor Rozatti; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Primeiras impressões sobre as altera-
ções da Medida Provisória 869/2018 na LGPD: medida dá um passo na contramão da conver-
gência normativa internacional. 14/01/2019. JOTA. Disponível em: < http://bit.ly/2KYPZUm >.
Acesso em: 14 abr. 2019.
201
João Victor Rozatti Longhi
é induzido a ter contato maior com postagens que, em tese, sejam de seu interesse,
diminuindo-se a apreciação de conteúdos dos quais teria maior chance de discor-
dar.41 Dessa maneira, é preciso evitar a perpetuação de um ambiente que tem como
resultado um processo crescente de radicalização, no qual as pessoas caminham,
paulatinamente, para os extremos e deixam de dialogar com outras de posições
diversas em relação a cada ato ou processo que se deseje redesenhar.

Considerações finais

O ponto fundamental do estudo dos impactos das Tecnologias da Informação e


Comunicação (TICs), especialmente da Internet, no recente delineamento do prin-
cípio democrático está situado na problemática do encurtamento da distância entre
o Estado e a sociedade civil, na medida em que se nota um sensível desvirtuamento
do uso da web para finalidades diversas daquelas concebidas em sua origem.
Quanto às redes sociais, vários são os efeitos nocivos das chamadas ‘bolhas dos
filtros’, em que os cidadãos consomem conteúdo supostamente direcionado às suas
preferências, propiciando o surgimento de tendências que não refletem, necessari-
amente, aquilo que está a preponderar na opinião pública, o que acirra os riscos de
que o fornecimento de conteúdo com caráter propagandístico tenha como resulta-
do final um ambiente de polarização política extremada, altamente prejudicial ao
debate e, consequentemente, apto a violar o princípio democrático.
O conceito contemporâneo de populismo digital (aqui, ‘populismo 3.0’), extraí-
do das preocupações descritas por Paolo Gerbaudo, tem especial relevância para a
compreensão desse fenômeno, na medida em que as técnicas comunicacionais são
ampliadas em um universo marcado pela massificação dos dados, não somente
para influenciar campanhas e eleições, mas para interferir em todo o processo de
deliberação na esfera pública.
Os riscos disso são inúmeros, mas torna-se clarividente a preocupação com
eventuais ofensas a direitos fundamentais que poderão ser materializadas da

41 Cf. PARISER, Eli. O filtro invisível: o que a Internet está escondendo de você. Tradução de Die-
go Alfaro. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.
202
Dignidade.com
(in)efetividade dos mecanismos institucionais existentes para coibir excessos: a
liberdade de expressão e comunicação, neste particular, revela preocupante cenário
em que a veiculação de todo e qualquer conteúdo, ainda que danoso, atrelado à
burocracia dos trâmites necessários à sua remoção, poderá se tornar expediente
para manipulações e máculas insolucionáveis.
Assim, certos freios institucionais e de regulamentação, especialmente no cam-
po da proteção de dados, podem ajudar, mas não serão suficientes para impedir os
excessos. Tudo parte da implementação de mecanismos de controle que assegurem,
ao fim e ao cabo, a proteção à dignidade no mundo digital. É isto que “Dignida-
de.com” quer dizer: a criação de medidas que, no Estado Constitucional, assente a
própria ideia de soberania no postulado da dignidade humana, mantendo a impor-
tância do dualismo entre os interesses público e privado, mas revisitando-os de
modo a permitir o realce e o fortalecimento dos direitos fundamentais do cidadão
em seu aspecto privado e a destacar e pormenorizar as tarefas e os limites do exercí-
cio do poder pelo Estado.

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206
A TUTELA JURÍDICA DOS DADOS PESSOAIS
SENSÍVEIS À LUZ DA LEI GERAL DE
PROTEÇÃO DE DADOS

9
José Luiz de Moura Faleiros Júnior

Introdução

A delimitação de marcos regulatórios voltados especificamente à tutela de con-


tingências relacionadas ao uso da Internet é uma tendência inescapável na hodierna
sociedade da informação.
No Brasil, foi exatamente nesse contexto que foram editadas importantes regu-
lamentações, sendo a primeira delas a Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014 (o cha-
mado “Marco Civil da Internet”) e, posteriormente, o Decreto nº 8.771/2016, que a
regulamentou. E, mais recentemente, a Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018 (a
chamada “Lei Geral de Proteção de Dados”), posteriormente alterada pela Medida
Provisória nº 869, de 27 de dezembro de 2018.
Com foco voltado à regulamentação da proteção de dados pessoais, a referida
legislação foi promulgada na esteira do Regulamento Geral de Proteção de Dados
europeu (GDPR, na sigla em inglês), que entrou em efeito em maio de 2018.
Diversos conceitos importantes são extraídos da nova lei, aos quais se dedicará
algumas breves linhas deste texto, com ênfase na delimitação conceitual do dados
pessoais sensíveis, analisando-se, ainda, seu contexto de aplicação, os modos de sua
proteção e a necessariedade de sua tutela.

207
José Luiz de Moura Faleiros Júnior
Não se tem a pretensão de esgotar a pesquisa a esse respeito, tampouco se almeja
abordar toda e qualquer situação em que dados pessoais sensíveis poderão desafiar
o direito à apresentação de respostas contundentes para violações geradoras de
danos. O objetivo geral desta investigação é indicar, em linhas gerais, a imperiosi-
dade da reflexão acerca do novo papel das Tecnologias da Informação e Comunica-
ção (TICs), que contribuíram para que a informação pessoal se mostrasse capaz de
extrapolar os limites da própria pessoa, revelando a necessidade de mecanismos
que possibilitem à pessoa deter conhecimento e controle sobre seus próprios dados
– que são, no fundo, expressão direta de sua própria personalidade.

1 Informação e personalidade: proteção e marcos regulatórios

Quando determinada informação, por suas características, revela a existência de


vínculo objetivo com determinada pessoa, afasta-se do plano cognitivo qualquer
indicativo externo, desconectado de outras categorias. E, a esse respeito, desde a
década de 1980, Pierre Català já se manifestava:
Mesmo que a pessoa em questão não seja a “autora” da informação, no sentido de
sua concepção, ela é a titular legítima de seus elementos. Seu vínculo com o
indivíduo é por demais estreito para que pudesse ser de outra forma. Quando o
objeto dos dados é um sujeito de direito, a informação é um atributo da
personalidade.1
A personalização informacional é fruto da existência de vínculo entre a informa-
ção e um sujeito, a partir da possibilidade de que o contato com a informação per-
mita estabelecer alguma conexão quanto às características ou ações desse sujeito,
seja em decorrência da lei, como na atribuição caso do nome civil ou do domicílio,
ou quando forem provenientes de seus atos, como os dados relacionados a hábitos
de consumo, opiniões que manifesta, localização, entre outras.2

1 CATALÀ, Pierre. Ebauche d’une théorie juridique de l’information. Informatica e Diritto,


Nápoles, ano IX, jan./apr. 1983, p. 20.
2 DONEDA, Danilo. O direito fundamental à proteção de dados pessoais. In: MARTINS, Gui-
lherme Magalhães; LONGHI, João Victor Rozatti. Direito digital: direito privado e Internet. 2.
208
A tutela jurídica dos dados pessoais sensíveis...
O avanço tecnológico daquele período propiciou o surgimento da Convenção de
Estrasburgo (Convenção nº 108, de 1981), fruto do labor do Conselho Europeu –
primeiro documento internacional a se ocupar da conceituação e da proteção de
informações pessoais.
Para além da dicotomia conceitual entre dado e informação3, é inegável que a
evolução tecnológica que marcou os anos subsequentes, em especial a década de
1990 – quando a Internet se popularizou – elevou a importância da compreensão
dos aspectos mais peculiares da informação, desafiando o reenquadramento do
direito fundamental à privacidade.
Bill Gates, Nathan Myhrvold e Peter Rinearson, em sua renomada obra “A es-
trada do futuro”, já destacavam esse papel que a Internet desempenharia no Século
XXI4, o que fomentou a doutrina a se ocupar das consequências relacionadas à exis-
tência de um ambiente no qual se “operam e se autoproduzem regras sociais de
comportamento suas e próprias”.5
O avanço crescente do ritmo de produção e da capacidade de processamento
computacional encontraria limites na desintegração dos microcomputadores que,
embora cada vez mais potentes e com custos equilibrados de produção, mas cerce-
ados pela inviabilidade do intercâmbio informacional, que demandaria investimen-
tos e um crescimento da difusão desses equipamentos para a população em geral.

ed. Indaiatuba: Foco, 2019, p. 36.


3 Segundo Doneda, “o termo informação presta-se igualmente em certos contextos a contribuir na
representação de determinados valores”, ao passo que “o termo dado apresenta conotação um
pouco mais primitiva e fragmentada, como se fosse uma informação em estado potencial, antes
de ser transmitida; o dado estaria, portanto, associado a uma espécie de “pré-informação”, ante-
rior à interpretação e a um processo de elaboração”. (DONEDA, Danilo. O direito fundamental
à proteção de dados pessoais. In: MARTINS, Guilherme Magalhães; LONGHI, João Victor Ro-
zatti. Direito digital: direito privado e Internet. 2. ed. Indaiatuba: Foco, 2019, p. 37.)
4 GATES, Bill; MYHRVOLD, Nathan; RINEARSON, Peter. A estrada do futuro. Tradução de
Beth Vieira, Pedro Maia Soares, José Rubens Siqueira e Ricarco Rangel. São Paulo: Cia. das Le-
tras, 1995, p. 145-173
5 ROSSELLO, Carlo. Riflessioni. De jure condendo in materia di responsabilità del provider. Il
Diritto dell’Informazione e Dell’Informatica, Roma, v. 26, n. 6, p. 617-629, nov./dez. 2010, p.
618.
209
José Luiz de Moura Faleiros Júnior
Para Laura Schertel Mendes, “(...) a vitalidade e a continuidade da Constituição
dependem da sua capacidade de se adaptar às novas transformações sociais e histó-
ricas, possibilitando uma proteção dos cidadãos contra novas formas de poder que
surgem na sociedade”.6 Noutros termos, constata-se que a nova tecnologia das co-
municações eletrônicas inaugurou uma nova era7, não sendo mais possível descon-
siderar o enquadramento da proteção de dados como categoria autônoma dos di-
reitos da personalidade (liberdade positiva), em contraste ao direito fundamental à
privacidade (liberdade negativa).8
Segundo Danilo Doneda, o que se almeja é a
“promoção de um equilíbrio entre os valores em questão, desde as consequências da
utilização da tecnologia para o processamento de dados pessoais, suas consequên-
cias para o livre desenvolvimento da personalidade, até a sua utilização pelo merca-
do”.9
A privacidade é, sem dúvidas, tema de relevância ímpar para o estudo dos efei-
tos jurídicos experimentados na sociedade da informação. Suas origens remontam
ao famoso artigo de Samuel Warren e Louis Brandeis, de 1890, no qual os autores
investigaram a existência de um direito à privacidade10, posteriormente analisdo
por vários doutrinadores, especialmente à luz do avanço em torno da proteção aos
direitos fundamentais.11

6 MENDES, Laura Schertel. Privacidade, proteção de dados e defesa do consumidor: linhas gerais
de um novo direito fundamental. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 169.
7 BRZEZINSKI, Zbigniew K. Between two ages: America's role in the technetronic era. Nova
Iorque: Viking Press, 1971, p. 11.
8 BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento. Rio
de Janeiro: Forense, 2019, p. 92-93.
9 DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006,
p. 407.
10 WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis D. The right to privacy. Harvard Law Review, Cam-
bridge, v. 4, n. 5, p. 193-220, dec. 1890. Disponível em: < http://bit.ly/2VSsbCE >. Acesso em: 14
nov. 2018.
11 BRÜGGEMEIER, Gert; COLOMBI-CIACCHI, Aurelia; O'CALLAGHAN, Patrick. A common
core of personality protection. In: BRÜGGEMEIER, Gert; COLOMBI-CIACCHI, Aurelia;
210
A tutela jurídica dos dados pessoais sensíveis...
Ainda sobre isso:
O argumento construído por Warren e Brandeis era simples e direto. Primeiro de-
duziram de causas existentes de ação em uma demanda judicial para salvaguardar
sentimentos humanos de interferência indevida por parte de outros. Então, buscan-
do estabelecer uma base factual para apoiar a necessidade de proteção legal adicio-
nal, eles descreveram as novas maneiras pelas quais uma mídia de massa agressiva-
mente intrusiva poderia infringir esses sentimentos, publicando informações preci-
sas, mas pessoalmente sensíveis, contra os desejos de seus súditos. A partir disso,
chegaram à conclusão de que o direito comum poderia e deveria proteger sentimen-
tos feridos por essas novas invasões, moldando uma nova forma de responsabilidade
extracontratual que proporcionaria compensação às vítimas e, assim, impediria uma
conduta excessivamente intrusiva no futuro. Concluindo seu tour de force, eles deli-
nearam cuidadosamente os parâmetros da nova causa de ação, principalmente lis-
tando as defesas que poderiam ser levantadas contra ela e outras limitações à res-
ponsabilidade. 12

O'CALLAGHAN, Patrick (Ed.). Personality rights in European tort law. Cambridge: Cam-
bridge University Press, 2010, p. 567-569. Comentam: “The protection of privacy (‘right to be let
alone’) is another core area of personality protection in tort law. Since the famous article of War-
ren and Brandeis in 1890, privacy has become a synonym in Anglo-American law for many as-
pects of personality. In Europe, Art. 8(1) ECHR lends a constitutional quality to this personality
interest. In France and Portugal, the civil codes expressly provide for protection (Art. 9 French Civ-
il Code, Art. 79 Portuguese Civil Code and Art. 26, para. 1 Portuguese Constitution). In most civil
law orders, written or unwritten rules of general tort law function as legal bases for the protection
of privacy.”
12 PAGE, Joseph A. American tort law and the right to privacy. In: BRÜGGEMEIER, Gert; CO-
LOMBI-CIACCHI, Aurelia; O'CALLAGHAN, Patrick (Ed.). Personality rights in European tort
law. Cambridge: Cambridge University Press, 2010, p. 41, tradução livre. No original: “The ar-
gument constructed by Warren and Brandeis was simple and straightforward. They first deduced
from existing causes of action in tort a judicial willingness to safeguard human feelings from un-
due interference on the part of others. Then, seeking to establish a factual basis to support the need
for additional legal protection, they described the new ways by which an aggressively intrusive
mass media could infringe upon these feelings by publishing accurate but personally sensitive in-
formation against the wishes of their subjects. From this they drew the conclusion that the com-
mon law could and should protect feelings bruised by these novel invasions by fashioning a novel
form of tort liability that would provide compensation to victims and thereby deter excessively in-
trusive conduct in the future. Concluding their tour de force, they carefully delineated the parame-
211
José Luiz de Moura Faleiros Júnior
É evidente que essa proteção da esfera privada é garantida em todas as ordens de
direito privado, mas é, como sempre, justificada de diferentes maneiras, na medida
em que tal proteção não é infinita. Onde a linha pode ser desenhada depende das
circunstâncias concretas do caso individualmente analisado, pois, quando a prote-
ção de interesses legais primordiais ou instituições estatais está em perigo concre-
to13, a protecção da esfera privada deve sempre dar caminho: é nesse compasso que
normativas específicas surgem.
Em um mundo ideal, no qual regras e instituições podem ser projetadas para
maximizar a liberdade pessoal (especialmente no que concerne às escolhas) e a
responsabilidade pessoal (pelas consequências das escolhas)14, e onde a interferên-
cia governamental pode ser minimizada, os atores poderiam esperar que os usuá-
rios, totalmente informados sobre os riscos a que estão expostos, tomarão medidas
razoáveis para se protegerem do perigo e, como tomam decisões informadas sobre
os perigos a enfrentar, as vítimas em potencial devem assumir a responsabilidade
por isso: conscientemente, devem saber que tais escolhas implicam riscos.15
Para tanto, a delimitação de marcos regulatórios voltados à proteção dos dados
pessoais ganhou corpo em todo o mundo.16 O Regulamento Geral de Proteção de
Dados europeu certamente foi a normativa que mais reverberou seus efeitos sobre
outras nações, despertando a urgência quanto à edição de textos relativos ao tema.
Paul Voigt e Axel von dem Bussche comentam o conceito de dado pessoal con-
tido no art. 4º, n. 1, do GDPR:
Como mostrado acima, qualquer tratamento sistemático de dados corresponde à
noção de “processamento” sob o escopo material do GDPR. Dados significa (eletro-

ters of the new cause of action, mainly by listing defences that might be raised against it and other
limitations on liability.”
13 WESTIN, Alan F. Privacy and freedom. Nova Iorque: Atheneum, 1970, p. 7.
14 OWEN, David G. Information shields in tort law. In: MADDEN, M. Stuart (Ed.). Exploring tort
law. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 325.
15 Para maior aprofundamento, confira-se: STALLINGS, William. Network security essentials:
applications and standards. 6. ed. Londres: Pearson, 2007.
16 SOLOVE, Daniel J. Understanding privacy. Cambridge: Harvard University Press, 2008, p. 4.
212
A tutela jurídica dos dados pessoais sensíveis...
nicamente) informações armazenadas, sinais ou indicações. No entanto, os dados
têm de ser "pessoais" para se enquadrarem no referido âmbito de aplicação do regu-
lamento. Os dados são considerados pessoais se as informações estiverem relacio-
nadas a um indivíduo identificado ou identificável, art. 4 No. 1 GDPR. Os dados são,
portanto, pessoais, se a identificação de uma pessoa for possível com base nos dados
disponíveis, ou seja, se uma pessoa puder ser detectada, direta ou indiretamente, por
referência a um identificador. Este é o caso se a atribuição a uma ou mais caracterís-
ticas que são a expressão de uma identidade física, fisiológica, psicológica, genética,
econômica, cultural ou social é possível, por exemplo: - o nome de uma pessoa; -
números de identificação, como um número de seguro social, um número pessoal
ou um número de identificação; - Dados de localização; - identificadores on-line (is-
so pode envolver endereços IP ou cookies).17
A Lei Geral de Proteção de Dados brasileira se vale de um dispositivo bastante
semelhante, que define como dado pessoal, em seu art. 5º, inciso I, a "informação
relacionada a pessoa natural identificada ou identificável”.
Este conceito está alinhado à definição até então já existente no ordenamento,
contida no art. 4º, inciso IV, da Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/2011),
que define informação pessoal como "aquela relacionada à pessoa natural
identificada ou identificável”.
O fato de o indivíduo ser identificado ou identificável afasta do âmbito de
proteção dessas normas os dados anonimizados, que são uma espécie de antítese do

17 VOIGT, Paul; VON DEM BUSSCHE, Axel. The EU General Data Protection Regulation
(GDPR): a practical guide. Basileia: Springer, 2017, p. 11, tradução livre. No original: “As shown
above, any systematic handling of data corresponds to the notion of ‘processing’ under the materi-
al scope of the GDPR. Data means (electronically) stored information, signs or indications. How-
ever, data has to be ‘personal’ in order to fall within said scope of application of the Regulation.
Data is deemed personal if the information relates to an identified or identifiable individual, Art.
4 No. 1 GDPR. Data is therefore personal if the identification of a person is possible based on the
available data, meaning if a person can be detected, directly or indirectly, by reference to an iden-
tifier. This is the case if the assignment to one or more characteristics that are the expression of a
physical, physiological, psychological, genetic, economic, cultural or social identity is possible, for
example: – a person’s name; – identification numbers, such as a social insurance number, a per-
sonnel number or an ID number; – location data; – online identifiers (this may involve IP ad-
dresses or cookies).”
213
José Luiz de Moura Faleiros Júnior
dado pessoal, desqualificado a partir do implemento do procedimento técnico
chamado de anonimização.18
O foco desta pesquisa, contudo, diz respeito à proteção dos dados pessoais
sensíveis, alertanto para a preocupação quanto à
(...) natureza complexa da decisão sobre a disponibilização de dados pessoais, uma
vez que, utilizando-se a metáfora do mosaico, a coleta de pequenos dados, mínimos
fatos sobre cada sujeito, a qual permite a estruturação de todo um dossiê, que, ao fim
e ao cabo, poderá, aliado à incapacidade de previsão de acessos secundários e terciá-
rios (não se sabe de antemão quem será o destinatário final desses dados) eternizar-
se na rede mundial de computadores, e servir para qualquer finalidade indesejável.19
A dicotomia entre o simples dado pessoal e o dado pessoal sensível é evidente:
para além dos meros dados que identifiquem ou permitam identificar um indiví-
duo, trabalha-se com uma ideia de dado sensível à luz dos direitos da personalida-
de20, de modo que “[n]ome, honra, integridade física e psíquica seriam apenas al-
guns dentre uma série de outros atributos que dão forma a esse prolongamento”.21

2 Dados pessoais sensíveis na LGPD

Em continuidade ao que se apresentou até este momento, mister ressaltar que-


são consideradas dasdos sensíveis as informações que estejam relacionadas a carac-

18 DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006,
p. 43-44.
19 SAUAIA, Hugo Moreira Lima. A proteção dos dados pessoais no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2018, p. 171.
20 Sobre os direitos da personalidade: “A expressão foi concebida por jusnaturalistas franceses e
alemães para designar certos direitos inerentes ao homem, tidos como preexistentes ao seu re-
conhecimento por parte do Estado. Eram, já então, direitos considerados essenciais à condição
humana, direitos sem os quais ‘todos os outros direitos subjetivos perderiam qualquer interesse
para o indivíduo, ao ponto de se chegar a dizer que, se não existissem, a pessoa não seria mais
pessoa.” (SCHREIBER, Anderson. Direitos da personalidade. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 5.)
21 BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento. Rio
de Janeiro: Forense, 2019, p. 63.
214
A tutela jurídica dos dados pessoais sensíveis...
terísticas da personalidade do indivíduo e às suas escolhas pessoais, a exemplo de
sua origem racial ou étnica, de sua convicção religiosa, de sua opinião política, da
filiação a sindicato ou a organização religiosa, filosófica ou a partido político, bem
como os detalhes referentes à sua saúde ou à sua vida sexual, além dos dados gené-
ticos, da biometria22, da geolocalização.23
Para sintetizar, Caitlin Mulholland indica três exemplos emblemáticos que per-
mitem contextualizar o enquadramento dos dados pessoais sensíveis:
Em 2016, uma prestadora de serviços de coleta e doação de sangue na Austrália, a
Red Cross Blood Service, sofreu um duro golpe em seu sistema de segurança de da-
dos, quando informações referentes a 550.000 doadores de sangue vieram a público
devido à transferência de um arquivo contendo informações desses doadores a um
ambiente computacional não seguro, acessível por pessoas sem a devida autorização
para manejar aqueles dados. Os dados se referiam a coletas de sangue realizadas en-
tre os anos de 2010 e 2016.
(...)
Em 2017, num segundo caso, no Canadá, uma empresa de produtos sexuais, a Stan-
dard Innovation, disponibilizou no mercado de consumo um vibrador denominado

22 A biometria traz inúmeras vantagens e facilidades – por exemplo, para fins de controle migrató-
rio –, mas seu uso tem se tornado demasiadamente amplo e isto vem trazendo preocupações:
“Worries about the “stigmatizing effect” of fingerprinting have been laid to rest after the identities
produced by the “stigma” of the fingerprint diversified rapidly. From being a sign of criminality,
fingerprinting is rapidly growing in importance as a tool to perfect a far wider range of social cate-
gorizations, including, for instance, welfare recipients, refugees, and migrants. (...) Next to these
public service and administration applications of biometrics there is a broad trend in the worlds of
commerce and work where improved methods of identification, authentication, tracking and log-
ging are sought. The growing electronic mediation in these domains calls forth a feverish search for
new ways to secure transactions of all kinds, be they telebanking, ATM cash dispensing, e-
commerce, or the logistic management of goods, people, and data in offices, businesses and on the
road.” (VAN DER PLOEG, Irma. Biometrics and the body as information: normative issues of
the socio-technical coding of the body. In: LYON, David (Ed.). Surveillance as social sorting:
privacy, risk, and digital dis-crimination. Londres: Routledge, 2003, p. 60-61.)
23 PHILLIPS, David; CURRY, Michael. Privacy and the phonetic urge: geodemographics and the
changing spatiality of local practice. In: LYON, David (Ed.). Surveillance as social sorting: pri-
vacy, risk, and digital dis-crimination. Londres: Routledge, 2003, p. 137-149.
215
José Luiz de Moura Faleiros Júnior
We-Vibe 4 Plus que possuía uma característica incomum: o aparelho conectava-se
por rede (bluetooth ou wi-fi) ao celular, por meio de um aplicativo, que permitia o
seu acesso remoto. O usuário - ou seu/sua companheiro(a) definia por meio do apli-
cativo preferências relacionadas ao ritmo e tipo da vibração. Contudo, descobriu-se
que o aparelho enviava para os servidores da empresa os dados relacionados ao seu
uso, inclusive no exato momento em que estava sendo utilizado. Os dados coletados
continham informações sobre a temperatura corporal, o ritmo de vibrações, a inten-
sidade das mesmas, tempo de uso, início e término do uso, etc. Evidentemente, a
justificativa da empresa para a coleta de tais dados era a de que com eles poderia me-
lhorar o produto. No entanto, nem os termos de uso do produto ou do aplicativo
indicavam a coleta dos dados, nem existia um sistema de segurança das informações
adequado que permitisse a sua guarda eficiente. Os consumidores do vibrador in-
gressaram com uma ação coletiva contra a empresa, que foi levada a realizar um
acordo no valor de US$ 2,9 milhões e obrigou-se a não mais coletar dados sigilosos
de seus usuários.
No terceiro caso, na China, em 2014, foi anunciado o que está sendo chamado de
sistema de crédito social (“social scoring”), que será implementado até 2020 no país.
Por meio de tal sistema mantido pelo Estado chinês pretende-se verificar a “fideli-
dade” dos 1,3 bilhão de cidadãos chineses aos princípios e valores do Estado. Por es-
se sistema será possível categorizar e taxar os comportamentos dos cidadãos como
positivos ou negativos (na visão do Estado), indicando uma classificação única e
pública daquela pessoa, que servirá para determinar se um cidadão terá direito ao
acesso a determinadas políticas públicas, que incluem desde a prestação de serviços
médico-hospitalares até a indicação de escolas em que os filhos devem ser matricu-
lados. De acordo com o documento público de planejamento do sistema de crédito
social, tal proposta “forjará um ambiente de opinião pública em que manter a confi-
ança é gloriosa. Fortalecerá a sinceridade nos assuntos do governo, a sinceridade
comercial, a sinceridade social e a construção da credibilidade judicial”. Por en-
quanto, a participação do cidadão chinês em tal sistema é voluntária, mas, em 2020,
ela será obrigatória para todos, inclusive para as pessoas jurídicas que tenham sede
na China.24

24 MULHOLLAND, Caitlin Sampaio. Dados pessoais sensíveis e a tutela de direitos fundamentais:


uma análise à luz da Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/18), Revista de Direitos e Ga-
rantias Fundamentais, Vitória, v. 19, n. 3, p. 159-180, set./dez. 2018, p. 160-162.
216
A tutela jurídica dos dados pessoais sensíveis...
O escopo de aplicação da LGPD, já elucidado no tópico anterior, considera a
proteção de dados pessoais e de dados pessoais sensíveis. Excetuam-se, contudo, os
dados abarcados pelas hipóteses descritas no art. 4º da lei, o que deixa clara a
abrangência protetiva almejada pelo legislador.
Já com relação aos princípios25 aplicáveis ao tratamento de dados pessoais, o art.
6º da LGPD indica o objetivo do legislador de restringir o tratamento de dados pes-
soais, exigindo-se que haja sua observância cogente para que seja reconhecida a
licitude da atividade.
Desdobramento da preocupação com a neutralidade da rede26, o princípio da
não discriminação ganha contornos especiais quando se está a investigar a tutela
dos dados pessoais sensíveis, pois, devido à sua natureza, tais dados revelam um
acirramento dos riscos de estratificação pessoal e estigmatização de pessoas a partir
de perfis traçados pelo processamento de dados coletados.27
O consentimento é tido pelo legislador como gatilho para a filtragem da coleta
indevida de dados. Optou-se por admitir o tratamento, mediante coleta consentida
de dados pessoais, inclusive os sensíveis (arts. 5º, XX e 11, I), mas exige-se a obser-
vância de finalidade específica.
Tudo parte da necessidade de um novo olhar quanto à informação. Na medida
em que o consentimento passa a ser o critério fundamental para a coleta, torna-se
essencial que o indivíduo saiba os limites e os riscos que enfrentará com o forneci-
mento de determinado conjunto de dados.

25 O rol de princípios trazido pela lei contempla os seguintes postulados: finalidade, adequação,
necessidade, livre acesso, qualidade dos dados, transparência, segurança, prevenção, não discri-
minação, responsabilização e prestação de contas.
26 Prevista no art. 9º do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014), a neutralidade da rede define
as balizas da privacidade, refreando o poderio informacional de algumas poucas grandes corpo-
rações e visando garantir que todas as informações que trafegam na rede sejam tratadas da mes-
ma forma, navegando à mesma velocidade, ou seja, na velocidade da contratação, evitando-se
que determinadas corporações se sobreponham ao próprio Estado. (LLOYD, Ian J. Information
technology law. 6. ed. Oxford: Oxford University Press, 2011, p. 40-43.)
27 RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância: a privacidade hoje. Tradução de Danilo
Doneda e Luciana Cabral Doneda. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 56.
217
José Luiz de Moura Faleiros Júnior
O problema – já sinalizado pela doutrina – é que o cidadão comum não está
acostumado a se importar tanto com informações digitais quanto com aquelas ar-
mazenadas no papel, mesmo quando elas revelam os mesmos fatos: “ter um estra-
nho invadindo sua casa é inevitavelmente mais violador do que ter um acesso ao
seu e-mail”. 28
Evidentemente, é preciso diferenciar o escopo de tratamento dos dados pessoais
(art. 7º) em relação ao dos dados pessoais sensíveis (art. 11):

Art. 7º. O tratamento de dados pessoais Art. 11. O tratamento de dados pessoais
somente poderá ser realizado nas seguintes sensíveis somente poderá ocorrer nas seguin-
hipóteses: tes hipóteses:
I - quando o titular ou seu responsável legal
I - mediante o fornecimento de consenti-
consentir, de forma específica e destacada,
mento pelo titular;
para finalidades específicas;
II - sem fornecimento de consentimento do
titular, nas hipóteses em que for indispensá-
II - para o cumprimento de obrigação legal
vel para:
ou regulatória pelo controlador;
a) cumprimento de obrigação legal ou regu-
latória pelo controlador;
III - pela administração pública, para o
tratamento e uso compartilhado de dados
b) tratamento compartilhado de dados ne-
necessários à execução de políticas públicas
cessários à execução, pela administração
previstas em leis e regulamentos ou respal-
pública, de políticas públicas previstas em
dadas em contratos, convênios ou instru-
leis ou regulamentos;
mentos congêneres, observadas as disposi-
ções do Capítulo IV desta Lei;
IV - para a realização de estudos por órgão c) realização de estudos por órgão de pesqui-
de pesquisa, garantida, sempre que possível, sa, garantida, sempre que possível, a anoni-
a anonimização dos dados pessoais; mização dos dados pessoais sensíveis;
V - quando necessário para a execução de d) exercício regular de direitos, inclusive em
contrato ou de procedimentos preliminares contrato e em processo judicial, administra-
relacionados a contrato do qual seja parte o tivo e arbitral, este último nos termos da Lei

28 SUMNER, Stuart. You: for sale. Protecting your personal data and privacy online. Waltham:
Syngress/Elsevier, 2016, p. 10, tradução livre. No original: “Having a stranger break into your
house is inevitably more violating than having one hack into your email.”
218
A tutela jurídica dos dados pessoais sensíveis...
titular, a pedido do titular dos dados; nº 9.307, de 23 de setembro de 1996 (Lei de
Arbitragem);
VI - para o exercício regular de direitos em
processo judicial, administrativo ou arbi-
tral, esse último nos termos da Lei nº 9.307,
de 23 de setembro de 1996 (Lei de Arbitra-
gem);
VII - para a proteção da vida ou da inco- e) proteção da vida ou da incolumidade
lumidade física do titular ou de terceiro; física do titular ou de terceiro;
VIII - para a tutela da saúde, em procedi- f) tutela da saúde, em procedimento realiza-
mento realizado por profissionais da área do por profissionais da área da saúde ou por
da saúde ou por entidades sanitárias; entidades sanitárias; ou
IX - quando necessário para atender aos
interesses legítimos do controlador ou de
terceiro, exceto no caso de prevalecerem
direitos e liberdades fundamentais do
titular que exijam a proteção dos dados
pessoais; ou
g) garantia da prevenção à fraude e à segu-
rança do titular, nos processos de identifica-
ção e autenticação de cadastro em sistemas
X - para a proteção do crédito, inclusive eletrônicos, resguardados os direitos mencio-
quanto ao disposto na legislação pertinente. nados no art. 9º desta Lei e exceto no caso de
prevalecerem direitos e liberdades funda-
mentais do titular que exijam a proteção dos
dados pessoais.

Nota-se que certos detalhes foram negligenciados pelo legislador, que é até
mesmo repetitivo e confuso em alguns aspectos de diferenciação dos dados pessoais
comuns em relação aos dados pessoais sensíveis.
A presença da palavra “somente” nos caputs dos dois dispositicos indica a taxa-
tividade das hipóteses apresentadas. Entretanto, quanto aos dados pessoais sensí-
veis, a redundância que se sustentou decorre da necessidade de indicação da finali-
dade do tratamento, que já consta do art. 9º, inciso I, da lei, e reaparece no art. 11,
inciso I, quando se lê que a manifestação do consentimento para a coleta de dados
deve se dar “de forma específica e destacada, para finalidades específicas”.
219
José Luiz de Moura Faleiros Júnior
Sem dúvidas, a reiteração de boa parte do conteúdo do art. 7º no art. 11 indica a
intenção do legislador ao atribuir especial cuidado aos dados pessoais sensíveis:
optou-se por atribuir maior proteção àquela categoria de informações tida por mais
valiosa!
No caso de dados pessoais sensívies, o contexto em que os dados foram manti-
dos ou usados acaba se revelando mais importante do que os dados em si. Uma
lista de nomes e endereços, por exemplo, normalmente não seria considerada sen-
sível, mas essa visão poderia mudar se se referisse aos movimentos de pessoas pro-
eminentes e estivesse nas mãos de uma organização terrorista.
A par disso, deve-se fazer expressa menção aos estudos de Helen Nissenbaum,
que defende existir um valor social atribuível às informações pessoais, servindo
como uma ‘régua’ para a conceituação do que seja apropriado ou não. Nesse plano,
a autora defende a utilização de uma “privacidade contextual” como processo deci-
sional heurístico no qual o centro de análise redunda na captura do significado
completo da privacidade e nos sucedâneos de eventual violação.29
Significa dizer que, para além de diversas situações específicas e evidentemente
danosas, é de se esperar que a averiguação de eventual violação – especialmente
para fins de aferição da responsabilidade civil – transcenda a mera verificação obje-
tiva do fato e adentre aos meandros contextuais do dano e da utilização do dado.

3 Perfilamento (profiling) e a tutela da intimidade

Em sintonia com a proteção conferida pela LGPD aos dados pessoais sensíveis,
uma questão fundamental ganha maior nitidez: práticas estigmatizantes relaciona-
das à estratificação das pessoas a partir de perfis não apenas violam a proteção
constitucional conferida à intimidade, mas criam bancos de dados valiosos.30

29 NISSENBAUM, Helen. Privacy in context: technology, policy and the integrity of social life.
Stanford: Stanford University Press, 2010, p. 231-233.
30 Eis o alerta de Felix Stalder e David Lyon: “Furthermore, if an ID proposal is linked to a central
database containing the master files of the biometric identifiers, the security of this database be-
comes of paramount concern. What if someone breaks into the database and alters the master file?
220
A tutela jurídica dos dados pessoais sensíveis...
De acordo com Stefano Rodotà, a esfera privada pode ser descrita como “aquele
conjunto de ações, comportamentos, opiniões, preferências, informações pessoais,
sobre os quais o interessado pretende manter um controle exclusivo”31, o que pare-
ce tarefa impossível na sociedade da informação, conforme alerta Harari:
Quando a autoridade passa de humanos para algoritmos, não podemos mais ver o
mundo como o campo de ação de indivíduos autônomos esforçando-se por fazer as
escolhas certas. Em vez disso, vamos perceber o universo inteiro como um fluxo de
dados, considerar organismos pouco mais que algoritmos bioquímicos e acreditar
que a vocação cósmica da humanidade é criar um sistema universal de processa-
mento de dados – e depois fundir-se a ele. Já estamos nos tornando, hoje em dia,
minúsculos chips dentro de um gigantesco sistema de processamento de dados que
ninguém compreende a fundo. Todo dia eu absorvo incontáveis bits de dados atra-
vés de e-mails, tuítes e artigos. Na verdade, não sei onde me encaixo nesse grande
esquema de coisas, e como meus bits de dados se conectam com os bits produzidos
por bilhões de outros humanos e computadores. Não tenho tempo para descobrir,
porque eu também estou ocupado, respondendo a e-mails.32
Antes de se proclamar o ocaso da intimidade, contudo, impõe-se uma reflexão
acerca do papel que a tecnologia ainda tem a desempenhar na criação de filtros de
proteção daquilo que realmente precisa ser mais protegido, impondo ao direito o
grande desafio de propiciar uma releitura do conceito de privacidade, que Caitlin
Mulholland assim delimita:
Seriam, assim, três as concepções sobre o direito à privacidade acima apresentadas,
quais sejam, (i) o direito de ser deixado só, (ii) o direito de ter controle sobre a cir-
culação dos dados pessoais, e (iii) o direito à liberdade das escolhas pessoais de cará-

Given the sensitivity of the stored data, and the fact that this database must have thousands of ac-
cess points, some perhaps even mobile (in police cars, for example), the additional security risk
might be bigger than the previous security gains.” (STALDER, Felix; LYON, David. Electronic
identity cards and social classification. In: LYON, David (Ed.). Surveillance as social sorting:
privacy, risk, and digital discrimination. Londres: Routledge, 2003, p. 84)
31 RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância: a privacidade hoje. Tradução de Danilo
Doneda e Luciana Cabral Doneda. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 92.
32 HARARI, Yuval Noah. 21 lições para o século 21. Tradução de Paulo Geiger. São Paulo: Cia. das
Letras, 2018, p. 83.
221
José Luiz de Moura Faleiros Júnior
ter existencial. Assim, “a privacidade deve ser considerada também como o “direito
de manter o controle sobre suas próprias informações e de determinar a maneira de
construir sua própria esfera particular”, reconhecendo-se às pessoas “auto-
determinação informativa” e a realização plena de sua liberdade existencial.33
Nesse campo, salienta-se que todos os sistemas jurídicos almejam, em certa me-
dida, à proteção da reputação de uma pessoa contra a difamação e, em determina-
das circunstâncias, o acesso não autorizado a detalhes íntimos de uma pessoa pode
lhe causar danos à reputação por variadas razões. Nesse contexto, é preciso indicar
como os principais sistemas jurídicos do Ocidente tutelam a proteção da dignidade
e, nesse cariz, a doutrina assim se posiciona:
A segunda perspectiva principal centra-se na lesão da dignidade pessoal, seja ela
rotulada "privacidade", "dignidade" ou "personalidade". A extensão e a forma precisa
de proteção para a dignidade individual diferem acentuadamente entre os principais
sistemas de civil law e de common law. Inicialmente, a maioria dos sistemas
jurídicos costumava dar prioridade a reclamações por danos físicos e, em épocas
anteriores, essas lesões eram a principal preocupação da lei. À medida que as
sociedades e as condições de vida modernas mudam, os queixosos inevitavelmente
reivindicam reparação por outros tipos de danos. Interesses em reputação ou honra
pessoal, privacidade pessoal e interesses em liberdade do sofrimento social tornam-
se cada vez mais importantes. Normalmente, as violações da personalidade
individual são de natureza não pecuniária, não apenas porque não podem ser
avaliadas em termos monetários com precisão matemática, mas também porque são
geralmente de valor inerentemente não econômico.34

33 MULHOLLAND, Caitlin Sampaio. Dados pessoais sensíveis e a tutela de direitos fundamentais:


uma análise à luz da Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/18), Revista de Direitos e Ga-
rantias Fundamentais, Vitória, v. 19, n. 3, p. 159-180, set./dez. 2018, p. 173.
34 BEVERLEY-SMITH, Huw; OHLY, Ansgar; LUCAS-SCHLOETTER, Agnès. Privacy, property
and personality. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 5, tradução livre. No original:
“The second main perspective focuses on the injury to personal dignity, be it labelled ‘privacy’,
‘dignity’, or ‘personality’. The extent and precise form of protection for individual dignity differs
markedly between the major civil law and common law systems. Initially, most legal systems used
to give priority to claims for physical injury and in earlier times these injuries were the law’s pri-
mary concern. As societies and modern living conditions change, plaintiffs inevitably claim redress
for other kinds of harm. Interests in reputation or personal honour, personal privacy, and interests
222
A tutela jurídica dos dados pessoais sensíveis...
Richard Warner alerta para os riscos de se compreender alguns desdobramentos
da privacidade, o que acaba por demandar um comportamento que a maioria dos
indivíduos simplesmente não vislumbra como viável, tendo em vista que os benefí-
cios percebidos são, simplesmente, baixos demais, o que induz a um menosprezo
pelos próprios dados35, que acabam sendo facilmente cedidos em operações triviais
como a criação de uma conta em uma plataforma qualquer (uma rede social, um
portal de varejo virtual, um provedor de e-mail, um feed de notícias etc.).
Acrescente-se, ademais, que isto não ocorre apenas na Internet – tampouco a
LGPD tem campo de aplicação limitado a ela –, não se podendo olvidar de situa-
ções em que essa coleta ocorra noutros ambientes do convívio rotineiro do indiví-
duo, como em condomínios (o que se tornou muito comum em tempos recentes)36,
escolas, clubes de recreação, academias etc.
Zygmunt Bauman e David Lyon apontam o seguinte:
Os principais meios de obter segurança, ao que parece, são as novas técnicas e tec-
nologias de vigilância, que supostamente nos protegem, não de perigos distintos,
mas de riscos nebulosos e informes. As coisas mudaram tanto para os vigilantes
quanto para os vigiados. Se antes você podia dormir tranquilo sabendo que o vigia

in freedom frommental distress become increasingly important. Usually, violations of individual


personality are of a non-pecuniary nature, not only because they cannot be assessed in money
terms with any mathematical accuracy, but also because they are usually of inherently non-
economic value.”
35 WARNER, Richard. Undermined norms: the corrosive effect of information processing tech-
nology on informational privacy. St. Louis University Law Journal, St. Louis, v. 55, p. 1047-
1086, 2011, p. 1084.
36 Com efeito: “Para impor controle e inibir a ação de meliantes, recorreu-se às portarias físicas,
com controle de acesso exercido pela pessoa do porteiro. Contudo, tendo como desdobramento
principal o tão falado avanço tecnológico, a simples contração de um porteiro não foi suficiente
para garantir a segurança tão fortemente almejada. Assim, a colocação de câmeras e a utilização
de outros mecanismos de segurança, como a coleta de dados pessoais (nome, identidade, CPF)
para fins de consolidação de um cadastro, e até mesmo de dados pessoais sensíveis (fotografia,
biometria) para o controle de acesso, tornaram-se a regra na maioria dos condomínios.” (MI-
RANDA, Frederico Cardoso de; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. A aplicação da lei
13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados - LGPD) aos condomínios edilícios. Migalhas Edi-
lícias, 11 abr. 2019. Disponível em: < http://bit.ly/2PkPO4s > Acesso em: 11 abr. 2019.)
223
José Luiz de Moura Faleiros Júnior
noturno estava no portão da cidade, o mesmo não pode ser dito da “segurança” atu-
al. Ironicamente, parece que a segurança de hoje gera como subproduto – ou talvez,
em alguns casos, como política deliberada? – certas formas de insegurança, uma in-
segurança fortemente sentida pelas pessoas muito pobres que as medidas de segu-
rança deveriam proteger.37
Vive-se a sociedade da viligância, e a própria vigilância cresce a partir da ali-
mentação de bancos de dados e da estratificação.38 Dessa forma, para garantir a
efetiva proteção da intimidade, é preciso ter em mente uma série de cuidados com a
proteção daquilo que se tem de mais precioso, pois é fato que empresas como Goo-
gle e Facebook usam os dados dos indivíduos para melhorar seus serviços e oferecer
publicidade mais personalizada39, o que parece ser a desculpa perfeita para escudas
atividades indevidas de coleta e tratamento abusivos dos dados pessoais de seus
usuários.
Nessa seara, tendo em conta os riscos que caminham em paralelo às supostas
benesses obtidas da personalização publicitária40, é importante que se propague a
consciência quanto aos problemas trazidos pelo aumento do controle de determi-

37 BAUMAN, Zygmunt; LYON, David. Vigilância líquida. Tradução de Carlos Alberto Medeiros.
Rio de Janeiro: Zahar, 2013, p. 95-96.
38 Para David Lyon: “If surveillance as social sorting is growing, this is not merely because some new
devices have become available. Rather, the devices are sought because of the increasing number of
perceived and actual risks and the desire more completely to manage populations – whether those
populations are citizens, employees, or consumers. The dismantling of state welfare, for instance,
that has been occurring systematically in all the advanced societies since its zenith in the 1960s,
has the effect of individualizing risks. Whereas the very concept of state welfare involves a social
sharing of risks, the converse occurs when that state welfare goes into decline. What are the results
of this?” (LYON, David. Surveillance as social sorting. In: LYON, David (Ed.). Surveillance as
social sorting: privacy, risk, and digital discrimination. Londres: Routledge, 2003, p. 20-21.)
39 A descrição é de Tim Wu: “Google and a few other West Coast companies had demonstrated that
web advertising wasn’t just hype: there was real money to be made reselling attention captured by
the Internet. But Google had effectively put AdWords on the remote control; there remained a lot
more attention to be harvested the old-fashioned way. (…)”. (WU, Tim. The attention mer-
chants: the epic scramble to get inside our heads. Nova Iorque: Vintage, 2016, p. 267.)
40 LYON, David: The electronic eye: the rise of surveillance society. Minneapolis: University of
Minnesota Press, 1994, p. 150-153.
224
A tutela jurídica dos dados pessoais sensíveis...
nadas corporações sobre a pessoa, desconsiderando sua autonomia e dificultando o
exercício da manifestação consciente do consentimento para o tratamento de seus
dados pessoais.41
Sobre isso:
A tutela jurídica de dados pessoais como um corolário do direito à privacidade (ou
do direito à identidade) nos leva a considerar que a autodeterminação informativa,
ou o poder de controle sobre os próprios dados, deve ser a tônica quando buscamos
a proteção específica dos dados sensíveis, especialmente se tais dados podem gerar
tratamentos desiguais. O reconhecimento do direito fundamental à igualdade no ar-
tigo 5º, caput, da Constituição Federal tutela também o direito ao tratamento sem
distinções de qualquer natureza. Ao mesmo tempo, dentre os objetivos fundamen-
tais da República Federativa do Brasil, constantes do artigo 3º, da Constituição Fe-
deral, está o de “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo,
cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Soma-se ao reconhecimen-
to constitucional da proteção da igualdade e da não discriminação, a previsão na
LGPD da impossibilidade do tratamento para fins discriminatórios ilícitos ou abusi-
vos, conforme já esclarecido em outra oportunidade.42
Para garantir o controle, impõe-se a implantação de uma Agência Nacional de
Proteção de Dados realmente aparelhada e capacidade para o desempenho da fisca-
lização e da imposição de sanções aos agentes que operam mediante a coleta e o
tratamento de dados pessoais.
Nesse sentido, o Marco Civil da Internet representou importante avanço, im-
pondo algumas práticas relacionadas à guarda e à disponibilização de dados de
conexão e acesso às plataformas, o que abriu caminho para o maior detalhamento
trazido pela LGPD.43

41 TEFFÉ, Chiara Spadaccini de; MORAES, Maria Celina Bodin de. Redes sociais virtuais: privaci-
dade e responsabilidade civil. Análise a partir do Marco Civil da Internet. Pensar - Revista de
Ciências Jurídicas, Fortaleza, v. 22, n. 1, p. 108-146, jan./abr. 2017, p. 128-130.
42 MULHOLLAND, Caitlin Sampaio. Dados pessoais sensíveis e a tutela de direitos fundamentais:
uma análise à luz da Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/18), Revista de Direitos e Ga-
rantias Fundamentais, Vitória, v. 19, n. 3, p. 159-180, set./dez. 2018, p. 175.
43 Veja-se: “O Marco Civil procura também evitar as práticas de vigilância que hoje compõem a
estrutura do modelo de negócios de muitos provedores (bem como de instituições públicas),
225
José Luiz de Moura Faleiros Júnior
Apesar disso, teme-se que a ANPD, conforme regulamentada pela Medida Pro-
visória nº 869, de dezembro de 2018, não tenha a mesma pujança que teria segundo
se imaginou no texto original da LGDP – que foi objeto de veto presidencial por
ocasião da promulgação da lei:
A Medida Provisória, lamentavelmente, dá um passo na contramão da convergência
normativa internacional, já que a regulação europeia determina que as autoridades
deverão atuar de forma independente, livre de influências externas, diretas ou indi-
retas (art. 52, RGPD). As Autoridades de Proteção de Dados têm sua jurisdição res-
trita aos limites territoriais das suas normas, e são, em regra, parte da administração
de cada país membro da União Europeia.
Ao fazer parte da Administração Pública Direta, na esfera federal, a Autoridade bra-
sileira surge com o risco de pouca ou nenhuma efetividade na fiscalização e aplica-
ção de sanções, uma de suas principais atribuições. Aguarda-se a atuação do Con-
gresso Nacional, com poucas chances de alteração de seus atributos-chave.44
Sem uma ANPD atuante, corre-se o risco de se ter o completo esvaziamento da
proteção haurida aos dados pessoais, relegando a lei à inefetividade nefasta da mera
existência formal, sem cogência pragmática.

Considerações finais

A par de tudo o que se procurou expor nessas brevês linhas, cumpre salientar
que o papel das legislações de proteção de dados – a exemplo da GDPR europeia e

disciplinando a questão do registro e disponibilização de dados referentes à conexão e acesso a


aplicações da Internet, constituindo ponto de partida à atual legislação específica sobre o tema, a
lei geral de proteção de dados pessoais (lei nº 13.709/18).” (LONGHI, João Victor Rozatti. Mar-
co Civil da Internet no Brasil: breves considerações sobre seus fundamentos, princípios e análise
crítica do regime de responsabilidade civil dos provedores. In: MARTINS, Guilherme Maga-
lhães; LONGHI, João Victor Rozatti (Coords.). Direito digital: direito privado e internet. 2. ed.
Indaiatuba: Foco, 2019, p. 127.)
44 MARTINS, Guilherme Magalhães; LONGHI, João Victor Rozatti; FALEIROS JÚNIOR, José
Luiz de Moura. Primeiras impressões sobre as alterações da Medida Provisória 869/2018 na
LGPD. Jota, 14 jan. 2019. Disponível em: < http://bit.ly/2KRO4Ba >. Acesso em: 10 abr. 2019.
226
A tutela jurídica dos dados pessoais sensíveis...
da LGPD brasileira – reside na necessidade de refrear práticas abusivas desenvolvi-
das, sem qualquer filtro, na sociedade da informação.
Se os fluxos de dados são incessantes e se tornam cada vez mais imprescindíveis
para o exercício de inúmeras atividades cotidianas, também os riscos advindos des-
sa nova realidade passam a gerar efeitos que o direito precisa enfrentar. Vale dizer:
não basta que se tenha legislações detalhadas e repletas de conceitos! Para que seja
efetivamente aplicável a abrangência de proteção da LGPD, impõe-se um repensar
sobre o modo como a entrega de dados pessoais ocorre.
Se a maioria das pessoas não demonstra grande cautela – e nem mesmo grande
preocupação – com o fornecimento de seus dados pessoais, uma diferenciação da-
quilo que traga maior perigo se faz necessária. Para tanto, dividiu-se a tutela jurídi-
ca dos dados pessoais “comuns” em relação aos dados pessoais sensíveis; porém, a
LGPD brasileira foi até mesmo redundante e pontualmente confusa na delimitação
das hipóteses (taxativas!) dos artigos 7º e 11.
Se o consentimento é visto como o principal filtro para a coleta de dados pesso-
ais sensíveis – devendo ser expresso e destacado, como diz a lei – exige-se do usuá-
rio grande conhecimento quanto àquilo que faz na Internet. A conscientização é,
portanto, a primeira premissa a ser destacada para a efetivação do controle proteti-
vo dos dados sensíveis à luz da LGPD.
Além disso, é imperativo que se garanta o controle regulatório dos agentes que
coletam e tratam dados pessoais, deles exigindo, com maior rigor, a observância do
imperativo da neutralidade da rede e da não discriminação, coibindo-se práticas
estigmatizantes como o profiling.
Por derradeiro, destaca-se a necessidade de efetiva fiscalização, que somente se-
rá possível com a implementação de uma Agência Nacional de Proteção de Dados
bem aparelhada e atuante.

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LEI DE DIREITOS AUTORAIS E COPYRIGHT:
IMPLICAÇÕES À LUZ DO DIREITO BRASILEIRO

10
Larissa Campos Sousa

1 Breve histórico da lei de direitos autorais

Com o primeiro voto da Lei de Direitos Autorais europeia, houve murmúrios


aos quatro cantos do mundo na tentativa de prever quais seriam os impactos do
novo art. 13 da normativa para a Internet global. Para tanto, esta lei ainda precisará
passar por mais um voto para, finalmente, irradiar seus efeitos perante o sistema
jurídico europeu e, consequentemente, despertar reações das demais nações.
Posto isso, o presente texto tem por finalidade discorrer sobre tal temática, bem
como difundir o conhecimento quanto aos termos da Lei de Direitos Autorais bra-
sileira e os possíveis impactos, caso o art. 13 venha a ser sancionado por definitivo.
Em face das evoluções tecnológicas e humanas, ao observar-se a história em seu
contexto geral, percebe-se as transformações que impactaram as relações sociais e,
também, as relações jurídicas, tendo em vista que ambas se interligam para sua
sobrevivência, a fim de proteger de maneira adequada as criações passiveis de aco-
lhimento em face dos direitos autorais.
Como quase todo e qualquer ponto de vista jurídico, torna-se difícil precisar a
data exata de seu surgimento, tendo em vista ser resultado de movimentos variados,
em face de todo contexto histórico; entretanto, através de uma análise temporal, é
possível delinear o progresso ao longo dos séculos, quando tratamos dos direitos do

233
Larissa Campos Sousa
autor, desde quando nem se cogitava proteger o direito de cópia.1
Na Idade Antiga, do período das aparições da escrita até a queda do Império
Romano do Ocidente, de 4.000 a.C até 476 d.C, ocorreram crescentes evoluções
quanto ao intelecto do homem. Naquela época, houve grande desenvolvimento
quanto à linguagem escrita, o que, consequentemente, levou às primeiras aparições
das obras bibliográficas, causando uma grande preocupação quanto à proteção de
suas autorias. Apesar da abundância das produções, à época, na Grécia, ainda pre-
dominava a cultura oral e, em Roma, a reprodução de algumas obras se dava por
trabalhos manuais.2
As práticas de plágio ainda não eram punidas, mesmo com as reproduções ma-
nuais em face das demais sociedades, o que, para os Gregos, era totalmente o con-
trário. Segundo Manso, o que se observava era a existência de uma espécie de san-
ção moral, “que impunha o repúdio público ao contra fator e sua desonra e desqua-
lificação nos meios intelectuais”.3
Na Idade Média, em decorrência do contexto social, houve influência significa-
tiva da Igreja Católica, a qual, diante da “idade das trevas”, contribuiu para a preva-
lência dos sentimentos de ignorância e ausência de razão, sendo difícil encontrar
qualquer forma de demonstração de conhecimento intelectual publicado frente às
produções artísticas e cientificas, bem como ao surgimento das primeiras universi-
dades, não existindo qualquer avanço quanto ao direito autoral.
Nesta época, o Renascimento fora fator primordial para conduzir novas produ-
ções intelectuais, tendo em vista grandes movimentações nas rotas comerciais, que
permitiram a evolução das produções artísticas, culturais e tecnológicas, o que,
consequentemente, levou ao crescimento das cidades europeias. E, nesse contexto,
houve a criação da imprensa, impulsionando o mercado da escrita em Mainz, na

1 TARALLO, Adônis Dias. A lei de direitos autorais brasileira pós-advento da Internet e das
licenças Creative Commons: uma análise da Lei n. 9.610/1998 e sua proposta de modernização.
Monografia (Graduação). 89p. Brasília: Universidade de Brasília, 2015, p. 13.
2 VIEIRA, Alexandre Pires. Direito autoral na sociedade digital. São Paulo: Montecristo. 2011, p.
16.
3 MANSO, Eduardo J. Vieira. O que é direito autoral. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 9.
234
Lei de direitos autorais e copyright
Alemanha.
Nessa conjuntura, a Igreja Católica sofria oposição em decorrência do movi-
mento protestantista, que estava dominando as nações europeias desde o século
XVI. E, assim, o clero encontrou na imprensa uma maneira de disseminar os dou-
trinamentos opostos àqueles da tradição católica, causando aos soberanos integran-
tes da monarquia o temor do acesso ao conhecimento pela população. Nesta época,
não havia legislação competente para regulamentar os direitos autorais, bem como,
na mesma medida, eram escassos os empecilhos de livre reprodução de obras de
terceiros. E, consequentemente, junto à evolução social, notou-se a evolução do
mercado literário, tornando-se cada vez mais competitivo e, com isso, impulsio-
nando a crescente demanda por algum meio de proteção.
A partir da evolução da escrita, o estabelecimento de uma jurisdição que tutelas-
se o direito de cópia tomou destaque na França e na Inglaterra. Contudo, delimita-
remos nossas análises à lei criada em solo inglês, também conhecida como Co-
pyright. Este termo surgiu para designar a concessão, pela Coroa inglesa, do “mo-
nopólio de todo o material impresso no reino”4, o que se deu em decorrência da
regra de que todos os escritos deveriam ser mantidos sob a cesura prévia de indiví-
duos a serviço da monarquia, a fim de omitir provocações políticas e religiosas.
Com a Idade Contemporânea, período marcado por tentativas de restauração da
monarquia, agora sujeita à limitação imposta pelos opositores cada vez mais ex-
pressivos do absolutismo, e pela repressão aos movimentos de afirmação popular,
em meio às sucessivas conquistas políticas e sociais da população menos favorecida,
teve início, em termos sociais e econômicos, o período que alguns historiadores
chamam de “o longo século XIX”, com sinais característicos de consolidação da
burguesia, industrialização e de um de seus principais efeitos: a expansão imperia-
lista e o conflito entre nações, que geraram a Primeira Guerra Mundial, em 1914.5
Tudo isso levou ao desenvolvimento de uma disciplina dos direitos autorais, na

4 VIEIRA, Alexandre Pires. Direito autoral na sociedade digital. São Paulo: Montecristo, 2011, p.
31.
5 VICENTINO, Cláudio; DORIGO, Gianpaolo. História para o ensino médio: História geral e do
Brasil. São Paulo: Scipione, 2014, p. 286.
235
Larissa Campos Sousa
medida em que algumas regiões europeias começaram a discutir sobre estas ques-
tões, impactando diretamente outras regiões no mundo e levando, assim, os Esta-
dos Unidos a promulgarem sua lei nos anos 80, tempos depois das discussões apon-
tadas em solo europeu.
Frente a esta divagação histórica, percebe-se que se discutia sobre direitos auto-
rais muito antes de haver uma norma positivada, ou até mesmo, discussões doutri-
nárias. E, a partir do século XX, a realidade vislumbrada frente ao que tanto se dis-
cutia começou a sofrer influência dos avanços tecnológicos. Diante da grande de-
manda e do crescimento da indústria fonográfica, foi se exigindo controle, de forma
mais rígida, tendo em vista a grande comercialização. Isto deu ensejo à formação
dos sindicatos, confederações e monopólios.
De lá para cá, o mundo se transformou de maneira ampla e geral em decorrência
das grandes evoluções visualizadas, dentre elas grandes guerras, a evolução do
transporte, telefonia, tecnologia e comunicações, fazendo com que, assim, a popu-
lação, mesmo que dividida entre territórios, fosse capaz de se comunicar com faci-
lidade. E, é nesse panorama, que os direitos autorais enfrentam suas objeções.

2 Direitos autorais: conceitos jurídicos

É preciso compreender os conceitos de propriedade – a fim de elencá-lo ao con-


ceito de propriedade intelectual – e, sobretudo, de propriedade intelectual.
O dicionário Houassis tem por definição que a propriedade: “É a coisa possuída
por exclusividade; presença ou direito legal de possuir algo; imóvel pertencente a
alguém; direito de usar, gozar e dispor de um bem, e de reavê-lo do poder de quem
ilegalmente o possua”.6
E, para Pontes de Miranda, a propriedade possui como qualificação o fato de ser
o direito real ‘máximo’, ou seja, o modelo de todos os outros direitos reais.7

6 HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. 2.


Reimpressão. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.
7 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Atualizado por
Vilson Rodrigues Alves. Campinas: Bookseller, 2001, t. XI, p. 37.
236
Lei de direitos autorais e copyright
Com o presente conceito de propriedade, nos cabe abordar o conceito de pro-
priedade intelectual. A propriedade intelectual traz para si o diferente conceito de
propriedade, não sendo como os demais, tendo em vista tratar-se de um conceito
mais amplo, servindo para abarcar uma série de bens intangíveis que, também,
apresentam algumas peculiaridades.8
Usar da intelectualidade para as criações é uma artimanha inata do ser humano,
o qual utiliza do seu potencial criativo em proveito econômico, de maneira natural.
Segundo Fábio Ulhôa Coelho, aquilo que qualquer um pode conceber, sem expres-
siva dedicação ou especial espírito criativo, está ao alcance de todos e por isso nada
vale numa troca9. De forma inevitável, expressa Sérgio Branco que não existe mais a
possibilidade de existirmos sem os bens criados intelectualmente.10 Assim, as cria-
ções que se enquadram em arte ou técnica serão consideradas como bens intelectu-
ais, usufruindo das normas de propriedade intelectual.
Assim se concebe o conceito de inovação: o ser humano, a todo momento, ex-
plora novas ideias, seja no momento de desenvolver um novo produto ou compor
um anova música, enfim, para tudo que envolva criatividade e inspiração, impõe-se
a necessidade de determinadas cautelas.
A Lei de Direitos Autorais brasileira, sancionada em 19 de fevereiro de 1998, vi-
sa proteger a obra intelectual – não o seu suporte – e os negócios jurídicos a eles
relacionados. O autor, que gozará dos direitos abarcados pela lei, sempre será pes-
soa física; no entanto, a proteção conferida a ele será aplicada às pessoas jurídicas,
conforme casos previstos em lei.
A criação e vigência de uma lei neste patamar, em solo nacional, contribui para
o desenvolvimento intelectual do país e para a difusão de conhecimento, expansão
de recursos humanos, financiamento à tecnologia, crescimento industrial e desen-
volvimento econômico. É o que entende Antônio Chaves, haja vista que os gover-

8 BRANCO JÚNIOR, Sérgio Vieira. O domínio público no direito autoral brasileiro. Rio de Ja-
neiro: Lumen Juris, 2011, p. 25
9 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito civil. São Paulo: Saraiva, 2006, v. 4, p. 258.
10 BRANCO JÚNIOR, Sérgio Vieira. Direitos autorais na internet e o uso de obras alheias. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 47.
237
Larissa Campos Sousa
nos de crescimento promissor perceberam que só existirá progresso se houve am-
paro à cultura.11 Este pensamento é um exercício cultural que deve ser implemen-
tado na sociedade moderna. Os produtores de grandes obras e aspirantes a invento-
res devem perceber os efeitos que a proteção efetiva dos produtos do intelecto po-
derá acarretar. Em consequência disso, a absorção deste pensamento pela comuni-
dade, de maneira geral, fará com que a lei tenha mais efetividade, saindo do campo
da imitação.12
À vista disso, o direito autoral abrange os direitos do autor, os direitos conexos e
os programas de computador (software). Quando falamos dos direitos do autor,
versamos sobre as obras intelectuais protegidas, como textos de forma geral, con-
forme apontado no art. 7º da Lei de Direitos Autorais (nº 9.610/1998). Já os direitos
conexos dão proteção aos artistas, intérpretes e executores, os produtores de fono-
gramas e os organismos de radiodifusão, conforme apontado no art. 89 da mesma
lei. Entretanto, os programas de computador, possuem legislação específica como
proteção, sendo a Lei de Direitos Autorais somente um parâmetro legal, de forma
geral, naquilo que não for conflitante quanto à regulamentação trazida pela Lei nº
9.609/98.
Não obstante, é importante mencionar que, além da proteção conferida por
meio de lei ordinária, a propriedade intelectual, em seu aspecto geral, encontra-se
respaldada pela Carta Magna, em seus incisos XXVII, XXVIII e XXIX, do art. 5º,
bem como, nos tratados internacionais.
Para tanto, a doutrina aponta a divisão dos direitos autorais em dois campos: os
patrimoniais e os morais.
Os direitos patrimoniais compreendidos pela doutrina, que estão previstos na
LDA, estão exemplificados pela legislação. Isso se dá, pois, conforme entendimento
legal, para se obter direito ao uso da obra, é necessário obter autorização expressa
do autor, ainda que se trate de modalidade de autorização não mencionada no texto

11 Direito de autor. In: FRANÇA, R. Limongi (Coord.). Enciclopédia Saraiva de Direito. São Paulo:
Saraiva, 1977, v. 26, p. 110.
12 SANTOS, Manuella Silva. Direito autoral na era digital: impactos, controvérsias e possíveis
soluções. Dissertação (Mestrado). 229 p. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Pau-
lo, 2008, P. 24
238
Lei de direitos autorais e copyright
de lei. Dessa forma, uma simples cópia de uma página de um livro violaria os direi-
tos protegidos pela lei. No entanto, a LDA, em seu art. 46, visa delimitar esta vasão,
chamando-a de “limitação aos direitos autorais”, não constituindo ofensa aos direi-
tos do autor a reprodução, em um só exemplar, de pequenos trechos, para o uso
privado do copista, desde que feita por este sem intuito de lucro.
Nesse contexto, entende Maria Helena Diniz que o direito autoral e a proprie-
dade industrial resulta-se de um direito imaterial oriundo de trabalho intelectual
como o de o autor utilizar suas obras literárias13, deixando claro que a propriedade
intelectual protege fielmente as criações do ser humano em todas as suas formas,
principalmente quando se trata dos direitos autorais.
Quanto aos direitos autorais de natureza moral, entende-se que, estes estão rela-
cionados diretamente aos direitos da personalidade. Sob este parâmetro, os direitos
morais do autor estariam diretamente ligados aos direitos da personalidade, haja
vista que a obra está ligada diretamente ao autor. Contudo, diversos autores publi-
cam suas obras por meio de anonimato ou pseudônimo, o que, do ponto de vista
técnico, parece anunciar, em determinados casos, indiferença quanto ao vínculo
com a personalidade do autor.14 E, consequentemente, isto inviabiliza o argumento
sobre o direito moral ser um direito de personalidade.
Além de todos os conceitos apontados, ainda nos cumpre mencionar os direitos
conexos do autor, que são aqueles que não se confundem com os direitos do autor
pela obra originária, mas pertencem ao artista, que interpreta ou executa, sendo
relacionado, diretamente, ao produtor de fonograma, e aos organismos de radiodi-
fusão, sobre seus programas, o que amplia o conceito de direito autoral àqueles que
não são autores das próprias obras.
Importante ressaltar que, enquanto a LDA permite que os autores cedam ou
transfiram seus direitos autorais15, a lei que regulamenta a profissão de artista e
técnico em espetáculos de diversões – Lei n. 6.533/1978 – não permite que sejam

13 DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, v. 3, p. 976.
14 BRANCO JÚNIOR, Sergio Vieira. O domínio público no direito autoral brasileiro. Rio de Ja-
neiro: Lumen Juris, 2011, p. 52.
15 Veja o art. 49 da Lei n. 9.610/1998.
239
Larissa Campos Sousa
cedidos os direitos autorais e conexos decorrentes da prestação de serviços profissi-
onais.16
Ao dispor sobre esta temática, os legisladores conferiram a titularidade dos di-
reitos autorais para os próprios prestadores de serviços, mesmo quando tenham
sido contratados e pagos para executar tal criação, quando se tratar de direitos au-
torais e conexos decorrentes da prestação de serviços profissionais.

3 Regime de direito autoral europeu: copyright

O copyright, cuja tradução literal é “direito a cópia”, possui como regime o prin-
cipal direito a ser protegido: a reprodução de cópias.17 A prioridade, nesse campo, é
a proteção do editor em face do autor. Sua história começa em 1557, quando Felipe
e Maria Tudor outorgaram à Stationer’s Company o direito de exclusividade para a
publicação de livros.18
A Lei de Direitos Autorais (copyright) é dividida em 8 (oito) partes e constitui
um instrumento jurídico abrangente, cobrindo todos os aspectos dos direitos auto-
rais, incluindo disposições relativas à proteção de direitos autorais, de trabalho lite-
rário expresso por fala ou escrita, trabalho musical, trabalho dramático, coreográfi-
co, trabalho pantomímico e programas de computador, bem como o conceito jurí-
dico decorrente do contrato e no decorrer do emprego, e direitos coletivos de ges-
tão. A Lei visa à maior harmonização da legislação da União Europeia quanto à sua
aplicação, bem como ao estabelecimento de proteção ao direito do autor e aos direi-
tos conexos no mercado interno, determinando regras relativas à utilização de cer-
tas obras e de outro material sem a autorização do titular dos direitos, em benefício
das pessoas cegas, com deficiência visual ou com outras dificuldades de acesso a
textos impressos.

16 Veja o art. 13 da Lei n. 6533/1978.


17 Apostila do Curso Direitos Autorais da Fundação Getúlio Vargas – FGV/RJ. 2007-2008, p. 29.
18 SANTOS, Manuella Silva. Direito autoral na era digital: impactos, controvérsias e possíveis
soluções. Dissertação (Mestrado). 229 p. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Pau-
lo, 2008, p. 45
240
Lei de direitos autorais e copyright
O domínio geral do copyright muita das vezes é mal interpretado, sendo con-
fundida diretamente com a lei do patriarcado e marcas registradas, comumente
agrupadas como “propriedade intelectual”. A lei de direitos autorais europeia tem
como principal vertente o incentivo para promover o progresso da ciência das artes
úteis.19
Para tanto, quanto aos direitos patrimonais, esta lei possui o regime mais
complexo e mais protetivo, tendo em vista a sua preocupação quanto aos dreitos
básicos, como o direito de adaptar obra, transmiti-la e distribui-la ou publicá-la.
Conquanto, quando tratamos de direitos morais, para o copyright não há relevân-
cia; já na LDA brasileira, tais direitos podem ser, inclusive, renunciados.
É relevante fazer uma distinção entre a lei dos direitos de autor e o corpo de leis
que regula a propriedade de bens pessoais tangíveis: o copyright é uma forma de
propriedade "intangível". As palavras de um poema ou as notas de uma canção, por
exemplo, podem existir na mente do poeta ou compositor, ou podem ser
comunicadas oralmente, sem ser incorporadas a qualquer meio tangível.
Nesse sentido, o Capítulo 5 da Lei estabelece as limitações dos direitos autorais
ao fornecer o uso gratuito de trabalho. A utilização gratuita de obras significa que
estas podem ser legalmente reproduzidas ou, até mesmo, usadas sem a necessidade
de permissão do titular, com ou sem compensação para o autor e sob a condição de
que o uso normal da obra não seja prejudicado e que os legítimos interesses do
proprietário dos direitos autorais não estejam prejudicados, conforme mencionado
em seu art. 23.20

4 Mudanças do copyright europeu e art. 13

Em meio aos apontamentos trazidos à baila em 12 de setembro de 2018, o Par-


lamento Europeu aprovou emendas perante a Diretriz de Direitos Autorais, a fim
de atualizar os direitos autorais para a nova era da Internet.

19 GORMAN, Robert A. Copyright Law. 2. ed. Washington: Federal Judicial Center, 2006, p. 5.
20 Diretiva (Ue) 2017/1564 do Parlamento Europeu e do Conselho.
241
Larissa Campos Sousa
Diante de tanto alvoroço, houve rumores de que a aprovação da lei apontaria o
fim da Internet, começando pela União Europeia e, por consequência, abalaria as
estruturas das conexões mundiais. Cumpre frisar que a mudança ainda não chegou
ao fim e ainda é cedo para falarmos qual será o destino tomado frente às conexões.
O texto será alterado neste ano, podendo ser alvo de novas negociações.
A grande parte do ultraje se deu pela divulgação do art. 13 desta diretriz. Este foi
apelidado de “upload filter” ou, para o bom e velho português, “filtro de envio”.
Este artigo tem como propósito estabelecer filtros prévios sobre as plataformas,
apurando onde elas estarão armazenando e dando acesso a grandes quantidades de
trabalhos e outros dados enviados por seus usuários.21
Segundo interpretações críticas, isso significa fazer upload de conteúdos com
submissão prévia a diversos filtros, forçando sites como o YouTube e o Facebook a
escanear tudo o que for compartilhado pelos usuários e checar, em contraste a um
banco de dados de material protegido por direitos autorais, através de complexos
algoritmos. Isto despertou apreensão exatamente por revelar suposto exercício de
controle prévio, assemelhado à repudiável censura, além de representar limitação
ao poder criativo de quem gera conteúdo para a Internet, pois impediria, por
exemplo, a propagação de análises sobre cinema ou conteúdos televisivos com a
exposição de imagens no YouTube, a propagação de conteúdos de gameplay de
jogos de videogame etc.
Esta versão da Diretiva de Direitos Autorais agora entra em trílogos (são reuni-
ões de representantes das três principais instituições envolvidas no processo decisó-
rio europeu: o Parlamento Europeu, a Comissão Europeia e o Conselho, em que se
procura resolver questões suspensas, facilitando, assim, as possibilidades de acor-
do). Esse processo geralmente acontece a portas fechadas, o que significa que have-
rá pouca supervisão pública ou notícias surgindo do processo decisional.
Ao fim, se aprovada a medida, os Estados membros terão dois anos para imple-
mentar a diretiva em sua própria legislação. As cenas dos próximos capítulos, até o
momento, não podem ser previstas. E, em consequência disso, caso seja definitiva-

21 VINCENT, James. Everthyng you need to know about europe’s new copyright directive. The
Verge. 2018. Disponível em: < https://bit.ly/2D4EiYG >. Acesso em: 29 jan. 2019.
242
Lei de direitos autorais e copyright
mente aprovada, esta nova diretriz emplacará as grandes plataformas para que in-
troduzam filtros, podendo levar os serviços de Internet ao seu fim.

5 Impactos do copyright à luz do direito brasileiro

Em face do contexto histórico, nota-se que o direito constitucional atual (ou ne-
oconstitucionalismo) se desenvolveu na Europa, após a Segunda Guerra Mundial.
Esse modelo posicionou a Constituição à frente da legislação em vários países eu-
ropeus, redefinindo seu papel em relação às demais normas previstas no ordena-
mento jurídico destes países.
O Tribunal Constitucional Alemão, criado em 1951, trouxe uma produção teó-
rica e jurisprudencial quanto ao novo conceito de direito constitucional, cuja tradi-
ção jurídica era a romano-germânica, ou "Civil Law" (a lei era única e exclusiva-
mente suficiente e aplicável, impondo limites a qualquer interpretação do magis-
trado frente ao processo de aplicação aos casos concretos), diante da aproximação,
ainda que restrita, ao sistema anglo-saxão, "Common Law", com muita força nos
Estados Unidos da América, o qual se desenvolveu frente à jurisprudência e ao
primado dos precedentes, nas decisões tomadas pelos tribunais norte-americanos, e
não pelos atos legislativos ou executivos.22
O constitucionalismo europeu, em tempos remotos, era incapaz de evitar o sur-
gimento de movimentos autoritários responsáveis por violações a direitos e garan-
tias fundamentais impostas ao homem23, e, frente a este paradigma, em face de sis-
temas normativos próximos, apesar da distância territorial, novos regulamentos e
diretrizes poderão impactar a legislação e os direitos e garantias fundamentais bra-
sileiros. Têm-se que, mesmo que de forma análoga, ambos os sistemas se interli-
gam, apesar de uma série de direitos estarem positivados, pois essa Constituição

22 CARLUCCI, Stéfano di Cônsolo. A influência do neoconstitucionalismo na Constituição Federal


de 1988 e a constitucionalização do Direito Civil no Brasil. < https://bit.ly/2KFxjsG> Acesso em:
29 jan. 2019.
23 Cf. ROCHA, Cármem Lúcia Antunes. República e federação no Brasil: traços constitucionais da
organização política brasileira. Belo Horizonte: Del Rey, 1996.
243
Larissa Campos Sousa
deixa lacunas quanto à forma de concretização dos mesmos.
Na mesma linha de raciocínio, podemos analisar os impactos quanto à reforma
da diretiva de direitos autorais europeia frente à lei de direitos autorais brasileira.
No Brasil, é comum o uso constante de plataformas digitais como Youtube, Fa-
cebook, Instagram, LinkedIn, entre outras.
Em face das circunstâncias jurídico-normativas atuais, é sempre um desafio ela-
borar uma regulação inteligente e efetiva, que permita o desenvolvimento e a ma-
nutenção das normas vigentes. Se pensarmos nos modelos das Agências Regulado-
ras existentes em vários países, tais como Portugal, Espanha, França, Estados Uni-
dos da América, Brasil, entre outros, observar-se-á que há vários estudos24 que
comprovam que a regulação realizada por estas, a qual tende a beneficiar os players
existentes no mercado, dificultando o ingresso de novas empresas a fim de aumen-
tar a concorrência, cria, de fato, uma reserva de mercado – reserva essa extrema-
mente prejudicial para a coletividade.
Em virtude da polêmica motivada pelo art. 13 da diretiva de direitos autorais eu-
ropeia, há expectativa quanto ao impacto ocasionado, não somente no continente
europeu, mas também aos quatro cantos do planeta, pois a diretiva prevê que as
plataformas que hospedam conteúdos de áudio e/ou elementos visuais que não
sejam de propriedade do usuário, implicarão responsabilidade por violação aos
direitos autorais.
Nessa visão, a título de exemplo, youtubers brasileiros que utilizarem uma ima-
gem de autores europeus estarão sujeitos a tais medida, se o autor desejar coibir tal
veiculação. E a própria plataforma poderá fazer cessar a monetização do vídeo, sem
prejuízo da responsabilização por ação judicial.
Diante disso, ao serem postados novos vídeos na plataforma, os criadores do
conteúdo serão obrigados a comprovar a licença, pelos autores, de eventuais conte-
údos utilizados para a edição do material, seja uma logamarca que aparece ou uma

24 LUZ NETO, Luiz Guedes da. A internet está ameaçada? O art. 13 da Diretiva da União Euro-
peia sobre Direitos Autorais. <https://medium.com/@prof.luizguedes/a-internet-est%C3%A1-
amea%C3%A7ada-o-art-13-da-diretiva-da-uni%C3%A3o-europeia-sobre-direitos-autorais-
28d9aa248b4c>. Acesso em: em 31 jan. 2019.
244
Lei de direitos autorais e copyright
música de fundo, trechos de outros vídeos, enfim, quaisquer conteúdos de titulari-
dade de terceiros. E não se precisa conhecer muito de Internet para imaginar o im-
pacto dessa medida, capaz de prejudicar milhões de pessoas e forçar empresas de
Internet a deixarem de operar no território da União Europeia.
Segundo relatos colhidos em entrevistas fornecidas pela própria plataforma, o
artigo 13 “ameaça impedir milhões de pessoas na Europa de carregar conteúdos em
plataformas como o YouTube”: “Os visitantes europeus perderiam acesso a milha-
res de vídeos de todo o mundo.”25
Para tanto, em nota, o Parlamento Europeu garantiu:
Tem havido muito debate em torno desta diretiva e creio que o Parlamento ouviu
atentamente as preocupações levantadas. Assim, abordamos as preocupações levan-
tadas sobre inovação excluindo pequenas e micro plataformas. Estou convencido de
que, quando a poeira assentar, a Internet continuará tão livre quanto é hoje, os cria-
dores e jornalistas estarão a ganhar uma parcela mais justa das receitas geradas pelas
suas obras e estaremos a perguntar-nos sobre o motivo de todo este alarido.26
Ao fim da carta, acrescenta-se:
A União Europeia é um lugar de liberdade de expressão. Não é à toa que tantos mi-
lhares de imigrantes sofrem para cá chegar. A liberdade, a informação e as socieda-
des democráticas fazem parte do nosso ADN. É por isso que apostamos no Erasmus,
no fim do roaming, no fim do geoblocking e no InterRail gratuito para os jovens com
18 anos. E isso não vai mudar.27
Em meio a este debate, no dia 26 de março de 2019, o Parlamento Europeu
aprovou a nova Diretriz dos Direitos Autorais, tendo como premissa traçar novas

25 YouTuber português diz que artigo 13 “é o fim da Internet”. Mas não é bem assim
<https://observador.pt/2018/11/27/youtuber-portugues-diz-que-artigo-13-e-o-fim-da-internet-
mas-nao-e-bem-assim/>. Acessado em: 31.01.2019
26 "A Internet não vai desaparecer". Comissão Europeia responde a youtubers.
<https://www.jn.pt/inovacao/interior/a-internet-nao-vai-desaparecer-comissao-europeia res-
ponde-a-youtubers-10253871.html> Acessado em: 31.01.2019
27 "A Internet não vai desaparecer". Comissão Europeia responde a youtubers.
<https://www.jn.pt/inovacao/interior/a-internet-nao-vai-desaparecer-comissao-europeia res-
ponde-a-youtubers-10253871.html> Acessado em: 31.01.2019
245
Larissa Campos Sousa
regras para produtores de conteúdo na Internet. O Parlamento Europeu tem como
argumento a necessidade de monetizar aqueles que produzem conteúdo que é re-
produzido por terceiros. Assim, o reprodutor do conteúdo será responsável legal-
mente quanto da utilização ilegal do trabalho e de sua divulgação sem autorização
do autor.
Frente a esta discussão e a todos os impasses criados por esta aprovação, resta
dizer que as mudanças não serão imediatas. O texto ainda precisa ser aprovado pelo
Conselho da União Europeia e, posteriormente, os países que compõem este bloco
econômico terão dois anos para aprovar uma legislação compatível em face da re-
forma. Logo, a “guerra” ainda não está totalmente perdida.
À luz disso, a possível consequência será que as companhias optarão por aplicar
filtros de conteúdo que atendam a todas as legislações, de modo que até os usuários
de países com leis mais flexíveis sejam submetidos a um rigor exagerado, impac-
tando diretamente, por exemplo, o Brasil, haja vista que os conteúdos produzidos
detêm uma natureza global e estão veiculados nas maiores plataformas online de
produção de conteúdo.
Por outro ângulo, plataformas menores, como as que são mantidas por startups,
estão à margem de uma linha tênue de risco, podendo ser fortemente impacta-
das, ainda que o texto preveja que empresas com receita inferior a €10 milhões anu-
ais ou menos de 5 milhões de usuários por mês ou, que estejam ativas há menos de
três anos, não tenham que se submeter às mesmas regras.
Portanto, a “cartada final” está nas mãos do Conselho da União Europeia, pos-
suindo capacidade de “voltar atrás” quanto aos votos e à implementação do art. 13
nos ordenamentos nacionais dos países membros da União Europeia. De forma
cautelosa, as grandes empresas produtoras de conteúdo para a Internet devem estar
preparadas para qualquer decisão, sendo negativa ou positiva, a fim de respeitar os
novos parâmetros propostos na web.

Referências

BRANCO JÚNIOR, Sérgio Vieira. Direitos autorais na internet e o uso de obras

246
Lei de direitos autorais e copyright
alheias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
BRANCO JÚNIOR, Sérgio Vieira. O domínio público no direito autoral brasileiro.
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DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, v. 3.
FRANÇA, R. Limongi (Coord.). Enciclopédia Saraiva de Direito. São Paulo: Sarai-
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União Europeia sobre Direitos Autorais.
<https://medium.com/@prof.luizguedes/a-internet-est%C3%A1-
amea%C3%A7ada-o-art-13-da-diretiva-da-uni%C3%A3o-europeia-sobre-
direitos-autorais-28d9aa248b4c>. Acesso em: em 31 jan. 2019.
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lizado por Vilson Rodrigues Alves. Campinas: Bookseller, 2001, t. XI.
ROCHA, Cármem Lúcia Antunes. República e federação no Brasil: traços constitu-
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247
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VINCENT, James. Everthyng you need to know about europe’s new copyright di-
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29 jan. 2019.

248
A REGULAÇÃO DO USO DE DRONES E A
RESPONSABILIDADE CIVIL

11
Leonardo Cisne Coutinho
José Luiz de Moura Faleiros Júnior

Introdução

A indústria da aviação está sendo transformada pelo uso de veículos aéreos não
tripulados – os populares drones – seja para fins comerciais, militares, científicos ou
recreaticos. Porém, as regulamentações nacionais vêm se revelando incapazes de
acompanhar a expansão desta indústria, que cresce com muita celeridade.
Sem ter a pretensão de esgotar este tema, que é assaz abrangente, este ensaio se
propõe a analisar os aspectos regulatórios concernentes ao uso desses objetos, ques-
tionando o futuro da aviação e a necessidade premente de que sejam estabelecidas
leis e regulamentos que considerem a inter-relação entre o avanço rápido da tecno-
logia e as tentativas legislativas de manter o ritmo das leis pari passu às questões
domésticas e internacionais sobre drones (incluindo questões de segurança, priva-
cidade, operabilidade e espaço aéreo).
Justificativa esta intenção a partir dos riscos que o uso de veículos aéreos não
tripulados representa, a nível de responsabilidade civil, devido à carência de princí-
pios norteadres da regulamentação internacional da chamada Internet das Coisas
(Internet of Things) – uma infraestrutura na qual bilhões de sensores são incorpo-
rados a dispositivos comuns e cotidianos para registrar, processar, armazenar e
transferir dados –, que incentiva a digitalização de todo tipo de informação, criando
249
Leonardo Cisne Coutinho / José Luiz de Moura Faleiros Júnior
redes inteligentes que conectam objetos.
Considerando que os drones são categorizados no domínio de uma nova “web
3.0 espacial”, ao fornecer dados de localização sobre os itens ou pessoas gravadas,
eles complementam os dispositivos de monitoramento onipresentes que estão for-
mando um novo mercado de serviços de geolocalização. Também não se pode per-
der de vista que a indústria de brinquedos e os entusiastas de drones trazem desafios
próprios do ponto de vista mercadológico e regulatório. Ainda, não se deixa de
considerar os usos militares desses objetos e suas implicações na hodierna socieda-
de da vigilância.
Com essas breves considerações introdutórias, registra-se que a pesquisa se ba-
seia no método dedutivo, com o implemento de substratos bibliográfico-
doutrinários para indicar caminhos no tocante à regulação do uso de drones.

1 Web 3.0 e a Internet das Coisas

O papel da Internet desempenharia no Século XXI alçou-se a patamares até en-


tão inimagináveis, passando a ocupar, em ritmo acelerado, um espaço antes relega-
do à pequena movimentação de dados – que marcou a década de 1990 –, com pou-
cas imagens, textos e gráficos intercambiados em um sistema rudimentar de cone-
xões dial-up que marcou o período da chamada web 1.0.
Em poucos anos, avançou-se para a chamada web 2.0 e a Internet adquiriu uma
dimensão jurídica notável em razão da intensificação crescente do compartilha-
mento de dados e da massificação de seu uso pelos indivíduos.
Já se está na era da chamada web 3.0, marcada pela operabilidade da rede em
tempo real, pela web criativa, pela tecnologia tridimensional e pelos avatares virtu-
ais da chamada “web semântica” e das redes legíveis por máquinas e não mais ape-
nas por seres humanos.1 Além disso, diversos autores já indicam que se está cami-
nhando para a web 4.0 ou “web inteligente”, marcada pela presença da ‘Internet das
Coisas’, que, segundo Eduardo Magrani, marca o atual estágio da sociedade da in-

1 KWANYA, Tom; STILWELL, Christine; UNDERWOOD, Peter G. Library 3.0: Intelligent Li-
braries and apomediation. Oxford: Chandos/Elsevier, 2015, p. 33-37.
250
A regulação do uso de drones e a responsabilidade civil
formação2, avançando a passos largos a uma fronteira com a chamada web 4.0 ou
Internet de Todas as Coisas (Internet of Everything, ou IoE), na qual os gadgets e
equipamentos eletrônicos – e até mesmo automóveis e eletrodomésticos – estarão,
por si mesmos, em conexão com a grande rede, sendo capazes de praticar atos jurí-
dicos a partir da inteligência artificial e de gerar inclusão social.3
Trata-se do incremento voluptuoso das relações Machine-to-Machine (M2M):
O número de "dispositivos conectados" (ou seja, dispositivos conectados à Internet)
está crescendo e espera-se que continue a crescer exponencialmente à medida que as
pessoas aumentam o número de dispositivos que compram. Em todo o mundo, as
assinaturas de celulares já ultrapassaram 3 bilhões. Os usuários finais também estão
começando a usar vários dispositivos (por exemplo, iPads, Kindles, telefones celula-
res, TVs digitais etc.).
Além disso, no entanto, milhões de novos tipos de dispositivos estão surgindo, per-
mitindo que as máquinas sejam conectadas umas às outras. Esses dispositivos se
comunicarão e oferecerão serviços através da Internet, criando uma nova onda de
inovação, tanto do ponto de vista técnico quanto social. Este crescimento explosivo
é sem precedentes não apenas nas indústrias de comunicações, mas também na
economia global em geral.4
Ainda acerca da Internet das Coisas:
A Internet das Coisas (IoT) refere-se à estrutura semelhante à Internet de bilhões de

2 GREENGARD, Samuel. The internet of things. Cambridge: The MIT Press, 2015, p. 188-189.
3 MAGRANI, Eduardo. A internet das coisas. Rio de Janeiro: FGV, 2018, p. 72-73.
4 HÖLLER, Jan; TSIATSIS, Vlasios; MULLIGAN, Catherine et al. From Machine-to-Machine to
the Internet of Things: introduction to a new age of intelligence. Oxford: Academic
Press/Elsevier, 2014, p. 3-4, tradução livre. No original: “The number of “connected devices” (i.e.
devices connected to the Internet) is growing and is expected to continue to grow exponentially as
peopleincrease the numbers of devices they purchase. Worldwide, mobile phone subscriptions have
already exceeded 3 billion. End-users are also starting to use multiple devices (e.g. iPads, Kindles,
mobile handsets, digital TVs, etc.). In addition, however, millions of new types of devices are
emerging that allow machines to be connected to one another. These devices will communicate
and offer services via the Internet, creating a new wave of innovation from both a technical and
societal perspective. This explosive growth is unprecedented within not just the communications
industries, but also the wider global economy.”
251
Leonardo Cisne Coutinho / José Luiz de Moura Faleiros Júnior
dispositivos “restritos” interconectados: com capacidades limitadas em termos de
poder computacional e memória. São, muitas vezes, alimentados por bateria, au-
mentando assim a necessidade de adotar tecnologias de energia eficiente. Entre os
desafios mais notáveis que a construção de objetos inteligentes interconectados traz
estão a padronização e a interoperabilidade. O protocolo de Internet (IP) é previsto
como padrão para interoperabilidade de objetos inteligentes. Como se espera que
bilhões de objetos inteligentes apareçam e os endereços IPv4 tenham sido usados
principalmente, o IPv6 foi identificado como um candidato à comunicação de obje-
tos inteligentes.5
Experimenta-se, porém, uma agravante: os usuários da Internet estão sujeitos à
rastreabilidade de seus passos e às ações praticadas no mundo virtual, sendo fre-
quentemente privados de escolha quanto à técnica de obtenção de dados e quanto
às informações que serão colhidas a seu respeito.6
Nesse contexto, a preocupação com segurança em cenários de IoT é uma consi-
deração crucial. Aplica-se em diferentes níveis, desde questões tecnológicas até
questões mais filosóficas, como privacidade e confiança, especialmente em cenários
como brinquedos inteligentes, e os desafios de segurança derivam da própria natu-
reza dos objetos inteligentes e do uso de protocolos padrão.
Tanto M2M como IoT são frutos do progresso tecnológico nas últimas décadas,
incluindo não apenas os custos decrescentes dos componentes semicondutores,
mas também a absorção espetacular do Protocolo de Internet (IP) e a ampla adoção

5 CIRANI, Simone; FERRARI, Gianluigi; PICONE, Marco; VELTRI, Luca. Internet of Things:
architectures, protocols and standards. West Sussex: John Wiley & Sons, 2019, p. 191, tradução
livre. No original: “The Internet of Things (IoT) refers to the Internet-like structure of billions of
interconnected “constrained” devices: with limited capabilities in terms of computational power
and memory.These are often battery-powered, thus raising the need to adopt energy-efficient tech-
nologies. Among the most notable challenges that building interconnected smart objects brings
about are standardization and interoperability. Internet Protocol (IP) is foreseen as the standard
for interoperability for smart objects. As billions of smart objects are expected to appear and IPv4
addresses have mostly been used, IPv6 has been identified as a candidate for smart-object commu-
nication.”
6 ROUTIER, Richard. Traçabilité ou anonymat des conexions? In: PEDROT, Philippe (Org.).
Traçabilité et responsabilité. Paris: Economica, 2003, p. 154.
252
A regulação do uso de drones e a responsabilidade civil
da Internet para todas as finalidades.7 É fato que as oportunidades de aplicação de
tais soluções são limitadas apenas pela imaginação; no entanto, o papel que M2M e
IoT terão na indústria e na sociedade em geral está apenas começando a emergir
por uma série de razões interativas e interligadas, razão pela qual o estudo de de-
terminados temas se impõe.
Disso emerge o tema selecionado para esse breve estudo: os drones e suas peculi-
aridades em termos de regulamentação, além de seus desdobramentos para a res-
ponsabilidade civil.

2 O que são drones?

Grégoire Chamayou salienta que “o léxico oficial do exército americano define o


drone como um ‘veículo terrestre, naval ou aeronáutico, de controle remoto ou
condução automática’”.8 Apesar disso, a origem do termo não encontra explicação
única na doutrina:
"Drone" é um dos muitos nomes para uma aeronave não tripulada. Várias origens da
palavra foram sugeridas. Poderia ter surgido como um termo descritivo do trabalho
de reconhecimento "maçante e seco" realizado no início de sua história. Ele também
foi ligado para o drone-alvo "Fairey Queen", cujo sucesso levou à criação dos drones
"Queen Bee". Isso poderia então ter levado ao uso do "drone" como a contraparte
masculina da abelha-rainha. O que se sabe é que a palavra drone foi usada em um
relatório de 1936 do Tenente Comandante Delmer Fahrney, da Marinha dos Esta-
dos Unidos, que estava encarregado de um projeto de aeronave não-tripulada con-
trolada por rádio. Como é evidente a partir da origem do termo em si, os drones têm
sido associados às forças armadas no imaginário popular e carregam uma conotação
negativa porque foram usados para matar remotamente. No entanto, essas associa-

7 HÖLLER, Jan; TSIATSIS, Vlasios; MULLIGAN, Catherine et al. From Machine-to-Machine to


the Internet of Things: introduction to a new age of intelligence. Oxford: Academic
Press/Elsevier, 2014, p. 10.
8 CHAMAYOU, Grégoire. Théorie du drone. Paris: La Fabrique, 2013, p. 21, tradução livre. No
original: "Le lexique officiel de l’armee americaine definit le drone comme un « vehicule terrestre,
naval ou aeronautique, controle a distance ou de façon automatique»."
253
Leonardo Cisne Coutinho / José Luiz de Moura Faleiros Júnior
ções estão mudando lentamente à medida que os drones são cada vez mais usados
em um ambiente civil. Embora o termo "drone" seja de uso popular, os drones já fo-
ram chamados de "aeronaves sem piloto".9
É evidente que a conotação militar conferida ao termo impõe algumas releituras
para fins de delimitação conceitual10, especialmente porque nem toda aeronave não
tripulada terá enquadramento no conceito hodierno de drone.11
Não obstante, abstraindo-se da figura do dispositivo de vôo “não-tripulado”, a
noção de lógica de um drone, amplamente interpretada, se desdobra em uma vee-
mente preocupação com relação às implicações relacionada à coleta e à resposta de
dados em rede por esses dispositivos, pois embora a tecnologia dos drones e seu
avanços apresentam oportunidades e possibilidades para uma ampla gama de in-
dústrias e comunidades, essa tecnologia também revela desafios regulatórios para
os governos em todo o mundo. Um número crescente de países implementou regu-

9 HODGKINSON, David; JOHNSTON, Rebecca. Aviation law and drones: unmanned aircraft
and the future of aviation. Londres: Routledge, 2018, p. 1, tradução livre. No original: “‘Drone’ is
one of the many names for an unmanned aircraft. Various origins of the word have been suggest-
ed. It could have emerged as a term descriptive of the ‘dull and dry’ reconnaissance work per-
formed early in its history. It has also been traced to the target drone ‘Fairey Queen’, the success of
which led to the creation of the ‘Queen Bee’ drones. This could then have led to the use of ‘drone’
as the male counterpart of the queen bee. What is known is that the word drone was used in a
1936 report by Lieutenant Commander Delmer Fahrney of the US Navy who was in charge of a
radio-controlled unmanned aircraft project. As is evident from the origin of the term itself, drones
have been associated with the military in the popular imagination, and carry a negative connota-
tion because they have been used to kill remotely. However, these associations are slowly changing
as drones are increasingly used in a civilian setting. While ‘drone’ is in popular usage, drones were
previously called ‘pilotless aircraft’”.
10 ZAVRŠNIK, Aleš. Introduction: situating drones in surveillance societies. In: ZAVRŠNIK, Aleš
(Ed.). Drones and unmanned aerial systems: legal and social implications for security and sur-
veillance. Basileia: Springer, 2016, p. 3.
11 Na década de 1960, a expressão inglesa ‘Remotely Piloted Vehicle’ (RPV) era muito utilizada,
mas acabou sendo substituída por ‘Unmanned Aerial Vehicles’ (UAV) a partir de 1980. Também
existiram outras designações, tais como ‘Unmanned Aircraft Systems’ (UAS), ‘Unmanned Air-
craft’ (UA), ‘Remotely Piloted Aviation Systems’ (RPAS), ‘Unmanned Drones’, and ‘Autonomous
Drones’. A mais usual fora do context military é a UAV, que adquiriu conotação específica de
um veículo sem tripulante reutilizável, que exclui mísseis e alvos aéreos.
254
A regulação do uso de drones e a responsabilidade civil
lamentações domésticas de drones para evitar um possível influxo desses objetos
em seus céus, sem proteções apropriadas, e uma série de inquietações surgiram a
partir de então, principalmente no campo militar.
A possibilidade de antecipar ocorrências através da vigilância ostensiva, isto é, a
possibilidade da preempção por meios diversos da contrainteligência e da fiscaliza-
ção, propiciaram a alavancagem do uso de drones a partir da chamada “guerra ao
terror”, baseando-se na identificação de inimigos externos à distância.12 Tudo se
resume à ideia de que determinadas ameaças podem ser desativadas antes de pro-
vocarem danos. Nesta versão do drone warfare, a generalizada ameaça onipresente
e que se materializa à distância é complementada pela imagem de um centro de
operações distante de qualquer ameaça e que permite a realização de operações
táticas que não expõem seres humanos (de um dos lados) a riscos.13
Fato é que a popularização desses objetos, especialmente a partir da segunda dé-
cada do século XXI, propulsionou um mercado até então pouco explorado, gerando
expectativas gigantescas em torno da criação de marcos específicos para regular
este novo nicho, na exata proporção em que a projeção de crescimento desse mer-
cado indicava alto potencial lucrativo.
Isto, como não poderia deixar de ser, trouxe um desafio gigantesco para o uni-
verso jurídico, que não caminha em sintonia com os avanços da indústria tecnoló-
gica:
Se não se esperasse que as aeronaves não tripuladas se tornassem indústrias multibi-
lionárias nas próximas décadas, não haveria necessidade de examinar a estrutura re-
gulatória que governa essa tecnologia. Sem uma expansão maciça que se aproxima
rapidamente neste mercado, espera-se que um marco regulatório lide com o

12 ANDREJEVIC, Mark. Theorizing drones and drone theory. In: ZAVRŠNIK, Aleš (Ed.). Drones
and unmanned aerial systems: legal and social implications for security and surveillance. Basile-
ia: Springer, 2016, p. 28.
13 Diz a doutrina: “As drones are able to take away the need for pilots to risk their lives over smoke-
laden flames to identify hot spots, direction changes, wind alterations, or dwindling areas that
need less attention, risk is reduced significantly, increases on-site performance, and enables new
high-risk operations never dreamed of before.” (WOLF, Harrison G. Drones: safety risk man-
agement for the next evolution of flight. Londres: Routledge, 2017, p. 24.)
255
Leonardo Cisne Coutinho / José Luiz de Moura Faleiros Júnior
crescimento lentamente e ao longo do tempo. A indústria simplesmente não tem es-
se luxo, pois as expectativas e necessidades de UAS expandem exponencialmente e a
necessidade de investimento e implementação rápidos continua. O crescimento es-
timado do mercado para UAS é enorme e cada nova versão da estimativa parece
aumentar esse número.14
Em face disso, o empenho legislativo em torno da regulamentação do uso de
drones adquiriu novas facetas, pois inúmeros riscos estão atrelados ao seu uso, que
envolve o espaço aéreo e os percalços da aviação, a questão da vigilância e da inva-
são de privacidade, problemas relacionados a treinamentos específicos, questões
regulatórias para fins de cadastro dos drones, expedição de licenças/registros, fisca-
lização de uso etc.

3 Desafios regulatórios para o uso de drones

Com o avanço do uso de drones para finalidades variadas, o usuário comum pas-
sou a contar com a oferta, a preços acessíveis, de aeronaves não tripuladas dos mais
variados tipos, o que alavancou fortemente esse mercado.15
Diversos percalços começaram a surgir, entretanto: em 2015, um drone quase
atingiu o esquiador campeão Marcel Hirscher durante uma competição de esqui.16
No Brasil, em novembro de 2017, um drone foi avistado nas proximidades do aero-

14 WOLF, Harrison G. Drones: safety risk management for the next evolution of flight. Londres:
Routledge, 2017, p. 21, tradução livre. No original: “If unmanned aircraft were not expected to
grow into multi-billion dollar industries over the next few decades, there would be no need to ex-
amine the regulatory framework that governs this technology. Without a quickly approaching
massive expansion in this market, the regulatory framework could be expected to handle the
growth slowly and over time. The industry simply does not have that luxury as the expectations
and needs for UAS expand exponentially and the need for quick investment and implementation
continues. The estimated market growth for UAS is tremendous and every new release of estima-
tion seems to swell that number.”
15 HODGKINSON, David; JOHNSTON, Rebecca. Aviation law and drones: unmanned aircraft
and the future of aviation. Londres: Routledge, 2018, p. 30-62.
16 GREZ, Matias. Drone crashes onto piste, misses champion skier by inches. CNN. 23 dec. 2015.
Disponível em: < https://cnn.it/2ZrorKL >. Acesso em: 10 abr. 2019.
256
A regulação do uso de drones e a responsabilidade civil
porto de Congonhas17, em São Paulo, e permaneceu no ar por duas horas, gerando
caos aéreo, na medida em que trinta voos tiveram que ser desviados ou cancelados,
causando prejuízos a centenas de pessoas.18
Tal como acontece com a aviação tripulada, a segurança das operações de drones
é de suma importância: deve haver equilíbrio entre a liberdade de operações e a
segurança para terceiros e outros usuários do espaço aéreo.
Os drones representam um risco de segurança significativo para as pessoas no
solo. Com seu uso crescente e sem regulamentação adequada para a segurança das
operações de drones – e para os próprios drones – torna-se plausível a afirmação de
que esse tipo de incidente se tornará uma ocorrência muito mais comum.
Outro problema fundamental diz respeito à regulação da privacidade. Para ilus-
trar, imagine-se o seguinte contexto:
Considere o seguinte exemplo hipotético: uma manhã, os cidadãos de Townsville
acordam apenas para receber uma carta de suas autoridades locais. Na carta, eles
descobrem que a polícia está prestes a começar a usar vários drones. Os drones ope-
rarão a uma altitude de 300m e contarão com equipamentos de vigilância de última
geração e recursos de processamento de dados. Entre elas, câmeras de imagem tér-
mica, câmeras de alta resolução, recursos de rastreamento GPS, microfone de longo
alcance, sistema automatizado de reconhecimento de placas, recursos de reconhe-
cimento facial, identificador internacional de assinantes móveis (IMSI) e conexão de
banda larga em tempo real com dados pessoais disponíveis em registros. (...) Como
um cidadão comum deve se sentir quando confrontado com tal desenvolvimento? 19

17 DRONE invade espaço aéreo de Congonhas, em SP, e prejudica voos. Jornal Nacional, 13 nov.
2017. Disponível em: < https://glo.bo/2Zv9tmK >. Acesso em: 10 abr. 2019.
18 FREITAS, Vladimir Passos de. A regulamentação do uso de drones, o passado e o futuro. Con-
sultor Jurídico, 10 dez. 2017. Disponível em: < https://bit.ly/2vgPRoD >. Acesso em: 10 abr.
2019.
19 GORKIČ, Primož. The (f)utility of privacy laws: the case of drones? In: ZAVRŠNIK, Aleš (Ed.).
Drones and unmanned aerial systems: legal and social implications for security and surveil-
lance. Basileia: Springer, 2016, p. 69, tradução livre. No original: “Consider the following hypo-
thetical example: one morning, the citizens of Townsville wake up only to receive a letter from
their local law enforcement. In the letter, they learn that the law enforcement is about to start us-
ing several drones. The drones will operate at an altitude of 300 m and will have state-of-the-art
257
Leonardo Cisne Coutinho / José Luiz de Moura Faleiros Júnior
Naturalmente, leis de proteção à privacidade e ao controle de dados são necessá-
rias para preencher essa lacuna. Atualmente, o ritmo no qual leis desse jaez estão
sendo desenvolvidas está bem atrás do avanço da tecnologia de vigilância por dro-
nes. Ao abordar as questões de privacidade, os Estados têm, até agora, tendido a
"modernizar" as leis de privacidade existentes. A doutrina indica que, em várias
jurisdições, incluindo Austrália, Nova Zelândia, Canadá e Estados Unidos da Amé-
rica, a abordagem tem sido adotada no sentido de aplicar a legislação existente (in-
clusive leis de controle da aviação) aos drones para tutelar questões de identificação,
gestão de coleta e tratamento de dados, entre outras.20 Entretanto, como a legislação
existente muitas vezes não contempla tais tecnologias, o escopo dessas leis de priva-
cidade e os poderes para aplicá-los deixam espaços ainda sem resposta.21
Na Austrália, por exemplo, tem-se a aplicação do Australian Privacy Principles -
APPs, que fornecem uma estrutura geral que as autoridades oficiais devem obede-
cer: estes princípios aplicam-se apenas a uma "entidade APP", definida na legislação
australiana como uma organização ou agência, e, embora este conceito possa se
aplicar a um indivíduo em circunstâncias limitadas, a própria lei afasta sua obser-
vância por quem não exerça atividade empresarial – logo, eventual uso doméstico
de drones, para diversos fins, acaba por esbarrar na polêmica quanto à abrangência
da lei.22
No Canadá, ao contrário da Austrália, os departamentos governamentais estão

surveillance equipment and data-processing capabilities. These will include thermal imaging cam-
eras, high-resolution cameras, GPS tracking capabilities, long-range microphone, automated li-
cense plate recognition system, face recognition capabilities, international mobile subscriber iden-
tity (IMSI) catcher and a wide-band real-time connection to available personal data records. How
should an average citizen feel when confronted with such a development?”
20 FINN, Rachel; DONOVAN, Anna. Big data, drone data: privacy and ethical impacts of the inter-
section between big data and civil drone deployments. In: CUSTERS, Bart (Ed.). The future of
drone use: opportunities and threats from ethical and legal perspectives. Haia: Asser
Press/Springer, 2016, p. 59-64.
21 HODGKINSON, David; JOHNSTON, Rebecca. Aviation law and drones: unmanned aircraft
and the future of aviation. Londres: Routledge, 2018, p. 30.
22 AUSTRÁLIA. Privacy Act of 1988. Australian Privacy Principles - APPs. Disponível em: <
https://bit.ly/2DLWAsW >. Acesso em: 11 abr. 2019.
258
A regulação do uso de drones e a responsabilidade civil
sujeitos a legislações diversas dos entes privados. No direito público, tem-se a inci-
dência do Privacy Act (1985)23, ao passo que, no direito privado, os indivíduos e as
entidades comerciais privadas são regidos pela Personal Information Protection and
Electronic Documents Act (2000).24 No entanto, como na Austrália, se ausente um
uso comercial, os indivíduos não estarão impedidos de utilizar drones para realizar
inúmeras atividades, inclusive a vigilância.
A Nova Zelândia oferece alguma proteção limitada contra violação de privaci-
dade por drones, não exigindo essa vinculação da atividade aos fins comerciais.25 E
esta tendência parece estar sendo seguida pela União Europeia, que implementou
diretamente os requisitos de privacidade em sua proposta de regulamentação para
drones contida no Regulamento (EU) 2016/679, ou Regulamento Geral de Proteção
de Dados (GDPR, na sigla em inglês). 26-27
Também é de crucial importância a definição de regras operacionais (notada-
mente aquelas extraídas o uso do espaço aéreo, em nítida semelhança aos controles
exercidos sobre a aviação civil28) para a formação da base elementar para operações
de drones em qualquer jurisdição. Das jurisdições examinadas anteriormente, cada

23 CANADÁ. R.S.C., 1985, c. P-21. Privacy Act. Disponível em: < https://bit.ly/2UMnNbU >.
Acesso em: 11 abr. 2019.
24 CANADÁ. S.C. 2000, c. 5. Personal Information Protection and Electronic Documents Act.
Disponível em: < https://bit.ly/2VZOGFR >. Acesso em: 11 abr. 2019.
25 NOVA ZELÂNDIA. Privacy Act 1993. Disponível em: < https://bit.ly/18qlgRB >. Acesso em: 12
abr. 2019.
26 UNIÃO EUROPEIA. General Data Protection Regulation. Disponível em: <https://gdpr-
info.eu>. Acesso em: 19 jun. 2018.
27 Além da proteção de dados, tem-se um regulamento específico para o uso de aeronaves não
tripuladas: o UAS Rules and Guidance – EU. Este regulamento estipula o seguinte, em seu art. 4º:
“The operator shall comply with the requirements laid down in the applicable regulations, in
particular those related to security, privacy, data protection, liability, insurance and environ-
mental protection.” (UNIÃO EUROPEIA. UAS Rules and Guidance – EU. Disponível em: <
https://bit.ly/2W2iLoj >. Acesso em 11 abr. 2019.)
28 DE LEON, Pablo Mendes; SCOTT, Benjamyn Ian. An analysis of unmanned aircraft systems
under air law. In: ZAVRŠNIK, Aleš (Ed.). Drones and unmanned aerial systems: legal and so-
cial implications for security and surveillance. Basileia: Springer, 2016, p. 188-189.
259
Leonardo Cisne Coutinho / José Luiz de Moura Faleiros Júnior
um adotou regras para drones de alguma forma. Enquanto os países definem as
operações de drone de diferentes maneiras, parece haver duas abordagens princi-
pais para tal definição:
A primeira abordagem é definir as operações de drone pelo peso do drone. Como
princípio geral, quanto maior o drone, mais rigorosas são as regras de operação. A
abordagem baseada no peso em cada jurisdição varia. Por exemplo, a menor catego-
ria de peso da Austrália para drones (denominada "micro") é de 100 gramas ou me-
nos, enquanto a menor categoria de peso da China (também denominada "micro") é
de 7 quilogramas ou menos. Uma tendência comum é a tentativa de reduzir a "bu-
rocracia" de pequenos drones para permitir o uso mais facilitado. A Austrália, os Es-
tados Unidos, o Reino Unido, a Nova Zelândia e o Canadá possuem isenções para
drones menores operarem sem cumprir as regras aplicáveis. Variações em cada ju-
risdição vão para o limite de peso que se qualifica para uma isenção. Esse limite va-
ria de menos de 1 quilograma até 25 quilogramas. A segunda abordagem é definir
operações por finalidade. Os drones geralmente voam para fins recreativos, comer-
ciais ou científicos. Os drones utilizados para fins comerciais (geralmente chamados
de aeronaves pilotadas remotamente ou sistemas de aeronaves não tripuladas) cos-
tumam estar sujeitos a regras operacionais mais rígidas, dependendo da jurisdição.
Embora os drones sejam usados para diversas finalidades e possam estar efetivamen-
te realizando as mesmas operações, o tratamento regulatório das operações pode di-
ferir muito de acordo com a finalidade de um voo.29

29 HODGKINSON, David; JOHNSTON, Rebecca. Aviation law and drones: unmanned aircraft
and the future of aviation. Londres: Routledge, 2018, p. 35, tradução livre. No original: “Opera-
tional rules form the basis for drone operations in any jurisdiction. From the jurisdictions previ-
ously examined, each has adopted rules for drones in some form. While countries define drone op-
erations in different ways, there appear to be two main approaches to such definition. The first ap-
proach is to define drone operations by the weight of the drone. As a general principle, the larger
the drone, the more stringent the operating rules. The weight-based approach in each jurisdiction
varies. For instance, Australia’s smallest weight category for drones (termed ‘micro’) is 100 grams
or less, while China’s smallest weight category (also termed ‘micro’) is 7 kilograms or less.A com-
mon trend is the attempt to cut the ‘red tape’ for smaller drones to allow easier use of drones. Aus-
tralia, the United States, the United Kingdom, New Zealand and Canada contain exemptions for
smaller drones to operate without complying with otherwise applicable rules. Variations across
each jurisdiction go to the weight threshold qualifying for an exemption. That threshold ranges
from less than 1 kilogram up to 25 kilograms. The second approach is to define operations by pur-
260
A regulação do uso de drones e a responsabilidade civil
Em termos de regulação, não se pode perder de vista, ademais, o papel da Orga-
nização da Aviação Civil Internacional (ICAO, na sigla em inglês), entidade res-
ponsável por harmonizar as operações de aviação e a certificação entre seus Estados
membros com o desenvolvimento seguro e eficiente da aviação civil. A Circular
AN/328 da ICAO, publicada em 2011, reconhece a necessidade de entender qual
seria o papel da ICAO em adotar os Padrões e Práticas Recomendadas para os Esta-
dos-membros com relação a veículos de aeronaves não tripuladas (UAVs). En-
quanto a ICAO aborda o papel dos UAVs como uma extensão das práticas de avia-
ção tripulada, muitos dos Estados-membros nunca vislumbraram a necessidade do
uso de sistemas para aeronaves não tripuladas ou não esperavam que viessem a ter
o impacto visto hoje. Por esse motivo, a definição de padrões técnicos é tão vital no
desenvolvimento de sistemas regulatórios em todo o mundo – este é o papel precí-
puo da ICAO.30
Não obstante, outros problemas importantes – que ultrapassam as preocupações
regulatórias – perturbam o direito, desafiando o operador a apresentar tutela e so-
luções jurídicas condizentes com esta nova realidade. O instituto da responsabili-
dade civil é um deles.

4 Aspectos concernentes à responsabilidade civil

Em termos de responsabilidade civil, o uso dos drones desperta imediata inquie-


tação quanto aos usos militares e aos danos que podem causar em ataques bélicos e
atos de guerra31 – este é um estudo para outra ocasião.

pose. Drones are generally flown either for recreational, commercial or scientific purposes. Drones
flown for a commercial purpose (usually termed Remotely Piloted Aircraft or Unmanned Aircraft
Systems) are usually subject to more strict operating rules depending on the jurisdiction. While
drones are flown for a variety of purposes and may effectively be carrying out the same operations,
the regulatory treatment of drone operations can differ greatly according to a flight’s purpose.”
30 WOLF, Harrison G. Drones: safety risk management for the next evolution of flight. Londres:
Routledge, 2017, p. 41.
31 Para maior aprofundamento, recomenda-se: EIJKMAN, Quirine; BAKKER, Marlieke. Access to
an effective remedy and reparations for civilian victims of armed drone strikes. In: CUSTERS,
261
Leonardo Cisne Coutinho / José Luiz de Moura Faleiros Júnior
Aqui não se pode deixar de considerar a quantidade de riscos envolvidos na
operação com drones, pois são veículos capazes de mudar várias vezes de direção
durante o voo, com manobras abruptas, além de terem diferentes pesos e a voarem
em diversas velocidades, o que acirra a segurança de todos.
Com isso, merece destaque o fato de a crescente prevalência do uso de drones
trazer novas contingências frente aos riscos que representa: a doutrina aponta uma
elevação no acionamento do setor de seguros para a obtenção de coberturas de
responsabilidade civil. Um número significativo de Estados exige um seguro obri-
gatório32, incluindo o Canadá, a China, a Áustria, a Bélgica, o Chipre, a Alemanha,
a Itália e o Brasil.33
No Brasil, o Regulamento Brasileiro de Aviação Civil Especial nº 94, de 02 de
maio de 2017 (RBAC-E nº 94/2017), da Agência Nacional de Aviação Civil –
ANAC estabelece regras complementares às normas de operação de drones estabe-
lecidas pelo Departamento de Controle do Espaço Aéreo – DECEA e pela Agência
Nacional de Telecomunicações – ANATEL. Segundo este regulamento, aeronaves
não tripuladas, de uso recreativo, com peso superior a de 250 gramas, devem ter o
seguro obrigatório contra danos a terceiros (que é bastante similar ao seguro obri-
gatório de aviões e helicópteros, denominado Responsabilidade do Explorador e
Transportador Aeronáutico – RETA).
É preciso frisar que voos não recreativos, de acordo com o regulamento, estão
todos condicionados à autorização prévia, que avalia cada caso. E, evidentemente,
certas atividades desempenhadas com o uso de drones para fins de fornecimento de
produtos (como ocorre com os delivery drones34-35) ou para a prestação de serviços

Bart (Ed.). The future of drone use: opportunities and threats from ethical and legal perspec-
tives. Haia: Asser Press/Springer, 2016.
32 SCOTT, Benjamyn. Key provisions in current aviation law. In: CUSTERS, Bart (Ed.). The future
of drone use: opportunities and threats from ethical and legal perspectives. Haia: Asser
Press/Springer, 2016, p. 253.
33 HODGKINSON, David; JOHNSTON, Rebecca. Aviation law and drones: unmanned aircraft
and the future of aviation. Londres: Routledge, 2018, p. 35.
34 BROWN, Jack. Delivery drones: the future of delivery business? DroneLab. Disponível em: <
https://bit.ly/2Vl8ypS >. Acesso em: 11 abr. 2019.
262
A regulação do uso de drones e a responsabilidade civil
(fotografias, filmagens, georreferenciamento, análises de solo etc.), indubitavelmen-
te vincularão tais fornecedores à disciplina jurídica do direito do consumidor.
É importante observar que terceiros eventualmente lesados pelas atividades ex-
ploradas com drones serão considerados consumidores por equiparação, na forma
prevista pelo art. 2º, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor, que
evidencia a natureza difusa da matéria. Ademais, o art. 17 do Código equipara aos
consumidores todas as vítimas do acidente de consumo (bystanders é o termo em
inglês, que a doutrina traduz como “circunstantes”36). Já o art. 29 cuida dos “con-
sumidores potenciais”, ou seja, aqueles que estejam expostos às seguintes práticas
comerciais: oferta (arts. 30 a 35), publicidade (arts. 36 a 38), práti-cas abusivas (arts.
39 a 41), cobrança de dívidas (arts. 42 e 42-A) e bancos de dados e cadastro de con-
sumidores (arts. 43 e 44).
É inegável que todo e qualquer acidente de consumo envolvendo drones impli-
cará a submissão do fornecedor à dinâmica do Código. Conduto, breve reflexão
mostra que, hipoteticamente, pode o fabricante ser implicado – por exemplo, em
casos de quedas ou quando houver culpa do piloto pela colisão entre o RPA e as
aeronaves comerciais e, por via reflexa, a responsabilidade dos controladores de
tráfego aéreo quando da autorização pela decolagem das aeronaves.
Isto desvela uma sensação de que, cada vez mais, a regulação (e as consequentes
autorizações) para o uso e a exploração do uso de drones se assemelhe à aviação
civil; inclusive, a depender de sua categoria e do modo de utilização, pelo que se
extrai do regulamento da ANAC, já é possível dizer que certos tipos de drone deve-
rão ser enquadrados no ramo aeronáutico, oferecendo-se garantia adequada ao
casco e à responsabilidade civil do proprietário do equipamento por danos eventu-
almente causados a terceiros.
Para além dos efeitos repressivos da responsabilidade civil, não se pode deixar

35 Confira-se: APPLIN, Sally A. Deliveries by drone: obstacles and sociability. In: CUSTERS, Bart
(Ed.). The future of drone use: opportunities and threats from ethical and legal perspectives.
Haia: Asser Press/Springer, 2016.
36 LIMA, Cíntia Rosa Pereira de. Da aplicação do Código de Defesa do Consumidor às instituições
financeiras. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 101, p.
653-696, jan./dez. 2006, p. 669.
263
Leonardo Cisne Coutinho / José Luiz de Moura Faleiros Júnior
de destacar a necessidade da prevenção. Sem dúvidas, tanto para fornecedores que
explorem comercialmente o uso de drones, quanto para particulares que façam
apenas uso recreativo, certas práticas trarão a almejada mitigação de riscos.
A doutrina elenca algumas:
Cultura de segurança – Muito já foi dito sobre a cultura de segurança. Uma organi-
zação que define seu sucesso através das lentes do desempenho de segurança pro-
move a comunicação voluntária de incidentes e acidentes e incentiva seus funcioná-
rios a adotar a segurança como uma função principal de suas atividades para criar
uma melhor comunicação e capacitar toda a organização. A cultura de segurança
deve começar no topo e, portanto, ter um executivo responsável que entenda a im-
portância de cada indivíduo trabalhar em conjunto é vital.
Envolvimento da gerência – É importante assegurar que todos os níveis de gerenci-
amento adotem a segurança como o elemento mais importante da operação e que
operadores, mantenedores e compradores também adotem essa função, criando
reuniões semanais ou mensais em que a interface entre gerentes e operadores, com
foco total no desempenho de segurança e outros itens operacionais, promova a co-
municação aberta necessária à cultura e à promoção da segurança.
Competência e treinamento – Treinamento recorrente, dias de stand-down, revisão
anual das estatísticas de desempenho e horas de voo e uma revisão dos riscos relata-
dos são todos bons elementos de um regime robusto de promoção de segurança. No
entanto, há mais que pode ser feito no interesse da promoção da segurança, incluin-
do operadores de tarefas e VOs com revisões externas de sistemas, abraçando a par-
ticipação em conferências onde os operadores podem interagir uns com os outros
para aprender as melhores práticas do setor e a adoção do tempo de treinamento fo-
ra dos ambientes operacionais.
Comunicação – É essencial garantir que todos os funcionários se sintam à vontade
para relatar riscos, incidentes ou acidentes, e a promoção de segurança tem o objeti-
vo facilitar essas discussões, dividindo os silos e muros que podem crescer em qual-
quer organização. De nada adianta, para uma organização, identificar perigos, avali-
ar seu risco e mitigá-los se essas estratégias não forem disseminadas para toda a
equipe.37

37 Para mais detalhes, confira-se: WOLF, Harrison G. Drones: safety risk management for the next
264
A regulação do uso de drones e a responsabilidade civil
Nessa linha, reitera-se que a proeminência da discussão em torno dos drones
ainda ganhará novos contornos que desafiaram os tradicionais institutos jurídicos a
tutelar novas contingências. Para trabalhar de forma preventiva, a adoção de boas
práticas é o caminho inexorável, impondo-se a todos antes mesmo que se tenha
maior aglutinação normativo-regulamentar.

Considerações finais

Ao longo deste breve ensaio, buscou-se analisar a complexa situação dos drones
e seu enquadramento conceitual para, a partir disso, discutir os percalços regulató-
rios enfrentados hodiernamente e as novas fronteiras que esta tecnologia trará, com
desafios próprios, sendo a questão da responsabilidade civil uma das mais alarman-
tes e urgentes.
Sem ter a pretensão de esgotar o tema, apontou-se que a adequada classificação
dos drones vem se aproximando cada vez mais do tratamento jurídico dispensado à
aviação civil, com delimitações regulamentares realizadas por órgãos de controle do
espaço aéreo e de fiscalização da aviação. E, nos vários regulamentos já criados em
todo o mundo, nota-se a presença de aspectos centrais à responsabilidade civil,
sendo a exigência do seguro obrigatório contra danos causados a terceiros uma
tendência inescapável, que foi objeto de expressa previsão na regulamentação brasi-
leira, delineada pela Agência Nacional de Aviação Civil.
Ainda, comentou-se sobre o enquadramento dos acidentes de consumo com
drones na disciplina do Código de Defesa do Consumidor quando quem o utilizar
for enquadrado nos conceitos típicos do código, sendo a responsabilidade civil por
danos causados a terceiros regida pela tutela conferida aos “consumidores por
equiparação”. Também se obtemperou brevemente a situação de outros fornecedo-
res da cadeia de consumo, como os fabricantes.
Ponderou-se, ao final, a necessidade de boas práticas preventivas para que a res-
ponsabilidade civil cumpra função essencial à mitigação de riscos e ao contingenci-
amento de danos, partindo de transparência, comunicação e exemplo. E, mesmo

evolution of flight. Londres: Routledge, 2017, p. 123-124.


265
Leonardo Cisne Coutinho / José Luiz de Moura Faleiros Júnior
para quem utilize os drones para fins de recreação, todas essas nuances são perti-
nentes, impondo-se a assunção de grande responsabilidade no seu uso, para além
dos limites regulamentares.

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268
LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DISCURSO DE
ÓDIO: CONFLITO DE DIREITOS EM MEIO ÀS
FAKE NEWS

12
Marcelo Henrique de Sousa Estevam

Introdução

Os direitos humanos consolidaram-se, na esfera global, como postulados inter-


nacionais que visam resguardar a dignidade da pessoa humana e suas ramificações,
cabendo aos Estados promover políticas públicas que maximizem o bem estar soci-
al. No Brasil, instituído o Estado Democrático de Direito, a Carta Magna de 1988
assume essa atribuição de salvaguardar direitos perante a sociedade, especialmente
pela proteção aos direitos fundamentais.
Tem-se, então, uma gama de garantias asseguradas pelos preceitos normativos
constitucionais, como os direitos à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade. As pessoas têm a prerrogativa de gozar plenamente da cidadania –
fundamento da República Federativa do Brasil. Entretanto, esta condição não é
ilimitada, particularmente, quando sua fruição viola direito de outrem.
Surge, assim, o conflito de direitos. Circunstância da própria essência jurídica,
que gera a necessidade de ponderar sobre determinada divergência, deliberando
sobre qual direito deve se sobressair em relação ao outro.
Nesse diapasão, sob a perspectiva da sociedade contemporânea, um dos princi-
pais conflitos de direitos se dá entre a liberdade de expressão, principalmente em

269
Marcelo Henrique de Sousa Estevam
relação às notícias falsas (Fake News), pois, ao mesmo tempo em que é assegurada a
liberdade de pensamento e de expressão, existe a proteção à dignidade e à persona-
lidade de agentes que podem se sentir ofendidos com determinados conteúdos, a
exemplo daqueles ligados ao discurso de ódio (hate speech).
Esse artigo visa discutir o conflito de direitos que se materializa quando notícias
falsas causam situações desse jaez, ou seja, pretende-se refletir sobre o aspecto de
ponderação de princípios constitucionais, sob a ótica da liberdade de expressão, em
paralelo ao discurso de ódio, almejando, a partir da perspectiva do Estado Demo-
crático de Direito, mensurar as consequências das Fake News, especialmente sob o
ponto de vista do embate de direitos e valores constitucionalmente protegidos.
Após esmiuçar as Fake News, investigar-se-á alternativas que possam minimizar a
difusão das notícias falsas na sociedade da informação.
Busca-se, assim, analisar como o conflito de direitos, sob o prisma constitucio-
nal da liberdade de expressão ocorre em eventos de veiculação de Fake News, men-
surar os meios e os principais temas que fazem das notícias falsas um instrumento
para o fomento do discurso de ódio e, por fim, verificar alternativas que possam
reduzir a propagação do discurso de ódio e das Fake News na Internet.

1 A liberdade de expressão e o discurso de ódio

A liberdade de expressão é um preceito assegurado em inúmeros tratados inter-


nacionais. Pode-se citar, a título de elucidação: artigo IV da Declaração Americana
dos Direitos e Deveres do Homem; artigo 13 da Convenção Americana Sobre Direi-
tos Humanos; artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos; artigo 19
do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos; artigo 10 da Convenção
Europeia de Direitos Humanos; e artigo 9º da Carta Africana dos Direitos Huma-
nos e dos Povos. Todos tratam sobre o tema em questão.
No Brasil, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 prevê a li-
berdade de forma dispersa, em vários dispositivos, podendo-se citar: art. 5º, IV, V e
IX (dos direitos e deveres individuais e coletivos); e art. 220 (criação, a expressão e a
informação). Por exemplo, o texto constitucional brada que é livre a manifestação
do pensamento, sendo vedado o anonimato, e, também, que é livre a expressão da
270
Liberdade de expressão e discurso de ódio
atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de
censura ou licença.
Dessa forma, nota-se que a liberdade de expressão e opinião vem como princí-
pio e regra que norteia o ordenamento jurídico pátrio, e, em consequência, as rela-
ções interpessoais.
Contudo, paralelamente ao direito fundamental à liberdade de expressão, en-
contra-se o caso específico do discurso de ódio (hate speech). Esse se dá quando
mensagens demasiadamente preconceituosas lesionam indivíduos ou grupos vul-
neráveis. Assim, consoante Rothenburg e Stroppa,
o discurso do ódio consiste na divulgação de mensagens que difundem e estimulam
o ódio racial, a xenofobia, a homofobia e outras formas de ódio baseadas na intole-
rância e que confrontam os limites éticos de convivência com o objetivo de justificar
a privação de direitos1.
Por se tratar de uma violação de direitos, a constituição pátria, em seu artigo 5º,
inciso XLI, aponta que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos
e liberdades fundamentais”. Dessa forma, vem à tona o conflito de direitos, em que
se pondera se é possível ou não usar do princípio fundamental da liberdade de ex-
pressão e opinião para agredir a dignidade da pessoa humana e a personalidade de
outrem. E, em caso de ofensa, surge a necessidade de que se responda judicialmente
por tais afirmações ou atos na Internet.
Essa colisão ocorre tendo como base os ensinamento hermenêuticos, uma vez
que os princípios têm caráter amplo em relação às regras, que ostentam particulari-
dade perfeita e acabada, ou seja, os princípios apresentam uma gama de possibili-
dades fáticas e jurídicas, sendo intitulados de “mandamentos de otimização”. As-
sim, há a necessidade de se realizar um sopesamento de princípios conforme o caso
concreto, deliberando-se sobre qual princípio se enquadra melhor às circunstâncias

1 ROTHENBURG, Walter Claudius; STROPPA, Tatiana. Liberdade de expressão e discurso do


ódio: o conflito discursivo nas redes sociais. Anais do 3º Congresso Internacional de Direito e
Contemporaneidade: mídias e direitos da sociedade em rede. UFSM - Universidade Federal de
Santa Maria. 27 a 29 de maio de 2015 - Santa Maria / RS. Disponível em: <
https://bit.ly/2Zfnoxc>. Acesso em: 02 set. 2018.
271
Marcelo Henrique de Sousa Estevam
do contexto apreciado2.
A liberdade de expressão, de modo geral, assume feição de preferência entre os
outros direitos fundamentais. Ainda mais sob o pressuposto que a formação da
sociedade brasileira carrega em sua memória marcas do regime ditatorial em que a
supressão de direitos foi perene, com a censura à liberdade de imprensa, de pensa-
mento e de expressão.
Os próprios tribunais têm tomado essa linha, como se nota da Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADI) 4815, que tratou da autorização prévia para a publica-
ção de biografias.3 O ministro Luís Roberto Barroso, em seu voto de procedência à
ação, narrou que o caso em questão tratava de uma tensão entre a liberdade de ex-
pressão e o direito à informação e os direitos da personalidade. Além disso, que a
liberdade de expressão deve ser tratada como preferencial ao caso em análise, devi-
do à causa histórica de restrição à imprensa no país, por ser um dos pressupostos
para os demais direitos fundamentais e por ser um instrumento que favorece o pro-
gresso nacional.4
O Marco Civil da Internet – Lei nº 12.965 de 2014 – também com o mesmo fun-
damento supramencionado, indica, no artigo 3º, que o uso da Internet no Brasil
tem como garantia a liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pen-
samento, nos termos da Constituição Federal. Ademais, brada, no artigo 19, com o
intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, que provedores
de aplicação só serão responsabilizados civilmente por danos decorrentes de conte-
údo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomarem as provi-
dências indicadas.5

2 SILVA, Virgílio Afonso da. Princípios e regras: mitos e equívocos acerca de uma distinção.
Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais, v. 1, p. 607-630, 2003. Disponível em: <
https://bit.ly/2Gi61Dm >. Acesso em: 10 ago. 2019.
3 Para conhecer melhor o assunto, sugere-se: BARBOSA, Fernanda Nunes. Biografias e liberdade
de expressão: critérios para a publicação de histórias de vida. Porto Alegre: Arquipélago, 2017.
4 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. STF afasta exigência prévia de autorização para biografias.
Publicado em: 10 jun. 2015 Disponível em: < https://bit.ly/1FUxy46 >. Acesso em: 10 jan. 2019.
5 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. STF afasta exigência prévia de autorização para biografias.
Publicado em: 10 jun. 2015 Disponível em: < https://bit.ly/1FUxy46 >. Acesso em: 10 jan. 2019.
272
Liberdade de expressão e discurso de ódio
Fica claro, dessa forma, que tanto as normas quanto as decisões do Judiciário,
em geral, têm adotado a liberdade de expressão como um dos princípios essenciais
para a construção de um sociedade igualitária, justa e plural. Todavia, quando essa
prerrogativa de comunicação é usada em excesso, ou melhor, em relação ao fato, se
é utilizada para lesionar direito alheio, como a personalidade e a dignidade, há a
necessidade de prudência, a fim de que certa mensagem não seja um instrumento
de discurso de ódio.
Com efeito, o combate ao discurso de ódio, do mesmo modo que a liberdade de
expressão, é reconhecido no ordenamento jurídico tupiniquim, seja no que se refe-
re aos textos positivados ou a casos deliberados em meio à seara forense. Como
exemplo, pode-se citar o artigo 5º, inciso XLI, da Carta Magna de 1988, na qual se
narra que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades
fundamentais”, e também, o inciso XLII, ao expor que “a prática do racismo consti-
tui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da
lei”.
Além disso, há a Convenção Americana de Direitos Humanos, da qual o Brasil é
signatário, que, em seu artigo 13, item “5”, indica-se que “a lei deve proibir toda
propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou
religioso que constitua incitação à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à vio-
lência”. Em outras palavras, uma evidente objeção frente a uma imoderação do
gozo à liberdade de pensamento e de expressão.
Outrossim, mais um texto normativo adota ponto de vista de precaução à mani-
festações de ódio: a Lei nº 12.288 de 2010, também conhecida como Estatuto da
Igualdade Racial. A supracitada lei, em seu artigo 26, inciso I, aponta que o poder
público adotará as medidas necessárias para “(...) coibir a utilização dos meios de
comunicação social para a difusão de proposições, imagens ou abordagens que
exponham pessoa ou grupo ao ódio ou ao desprezo por motivos fundados na religi-
osidade de matrizes africanas”.
Sendo assim, é perceptível o posicionamento do legislador em fazer com que
não só os agentes civis, mas também o próprio Estado tenham o dever de combater
mensagem de discurso de ódio, até mesmo na esfera virtual.
O próprio seio forense, na figura do Estado, conforme a conjuntura, adota posi-

273
Marcelo Henrique de Sousa Estevam
cionamento em favor da dignidade e personalidade de agentes, em contraposição à
liberdade de expressão, com reminiscências de manifestações preconceituosas a
certos grupos ou pessoas ou pessoa.
O famigerado “Caso Ellwanger” é exemplo concreto do que se discute. O editor
Siegfried Ellwanger foi condenado por crime de racismo por usar de sua editora e
livraria para publicar obras defendendo uma espécie de revisionismo histórico, isto
é, negando o holocausto judeu na Segunda Guerra Mundial. À vista disso, o minis-
tro Gilmar Mendes bradou, em seu voto referente ao caso descrito, que “não se
pode atribuir primazia à liberdade de expressão, no contexto de uma sociedade
pluralista, em face de valores outros como os da igualdade e da dignidade huma-
na”6.
Percebe-se, dessa maneira, que tanto a liberdade de expressão, quanto o cercea-
mento ao discurso de ódio em favor da dignidade da pessoa humana, são efetivos e
possuem fortes argumentos para se encontrarem presentes no ordenamento jurídi-
co brasileiro. E, havendo um conflito de direitos entre esses princípios, surge a ine-
vitabilidade de uma coerente deliberação, seja nos tribunais ou nos mais variados
núcleos do tecido social, pois, se uma injustiça é caudada, todo o Estado Democrá-
tico de Direito pode ser lesado.

2 Fake News

Com a sociedade da informação, ou seja, com avanços tecnológicos que otimi-


zam as relações interpessoais em incremento e difusão da Internet, a população, de
modo geral, se viu diante de uma nova realidade, onde os usuários deixaram de ser
meros agentes recebedores de notícias, para serem criadores e propagadores de
conteúdo.
Essa renovada prática trouxe inúmeros bônus para a aldeia global, mas, do
mesmo modo, vários ônus. Pois, sendo certo que as pessoas passaram a ter um

6 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. STF nega Habeas Corpus a editor de livros condenado por
racismo contra judeus. Publicado em: 17 set. 2003. Disponível em: < https://bit.ly/2XfVr6H >.
Acesso em: 15 jan. 2019.
274
Liberdade de expressão e discurso de ódio
maior acesso às informações, fato benéfico e diretamente ligado ao preceito funda-
mental de acesso à informação, isso, simultaneamente, fez com que nem toda in-
formação, gerada e acessada, fosse verídica. Tem-se, então, a gênese das famigera-
das notícias falsas (Fake News).
As Fake News são notícias fundadas em inverdades, edificadas sem base real ou
verificação de fatos. Ademais, elas tem o intuito de propagar alguma mentira, ou,
então, induzir ao erro por terem aparência de verdade, seja por uma exatidão parci-
al ou total, visando resultado financeiro ou não.7
Além disso, as notícias falsas estão diretamente ligadas ao preceito da “pós-
verdade”8, termo considerado pela Universidade de Oxford como a palavra do ano
em 2016. Pois, pós-verdade interliga-se a uma relativização da verdade, uma bana-
lização da objetividade de dados e com a supremacia do discurso emotivo, sendo,
assim, um componente que, por meio das Fake News, se propaga exponencialmente
em meio às pessoas nas redes sociais9.
Não se trata de um aspecto da conjuntura contemporânea, por estar na Internet.
Uma vez que, historicamente e, ao longo da formação da humanidade, em vários
momentos, as notícias falsas estiveram diretamente vinculadas à comunicação da
população. Pode-se citar o regime nazista, com o ministro da propaganda, Joseph
Goebbels, que usava de informações tendenciosas e levianas perante os judeus e
comunistas, ou então, com a DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), no
Estado Novo, de Getúlio Vargas, que tinha o intuito de censurar e fazer propaganda
do regime de poder em questão.
Todavia, não bastando a criação e propagação de notícias falsas, elas são usadas
como um instrumento de propagação de discurso de ódio. Dado que, como em

7 LITZENDORF NETTO, Carl Friedrich Wilhelm; PERUYERA, Matias Sebastião. Fake News
como ferramenta de propaganda política na internet. Centro Universitário Internacional Unin-
ter, Curitiba-PR. Disponível em: < https://bit.ly/2V2fbNP >. Acesso em: 02 set. 2018.
8 Sobre o tema, leia-se: D'ANCONA, Matthew. Pós-verdade: a nova guerra contra os fatos em
tempos de Fake News. Tradução de Carlos Szlak. Tradução de Barueri: Faro Editorial, 2018.
9 FERREIRA, Wilson. Pós-verdade e Fake News são notícias falsas para colocar jornalistas hips-
ters “na linha”. Forum. Publicado em: 23 jul. 2018. Disponível em: < https://bit.ly/2IsIoLU >.
Acesso em: 02 set. 2018.
275
Marcelo Henrique de Sousa Estevam
alguns casos essas notícias falsas são anônimas, as opiniões descritas no texto carre-
gam expressões que tendem a violar a honra e a imagem de determinadas pessoas
ou grupos, como ocorreu, recentemente, com a vereadora Marielle Franco, no Rio
de Janeiro, em que surgiram Fake News com referências à sua vida amorosa, à sua
gravidez e ao seu possível envolvimento com o tráfico de drogas.10
Nesse aspecto, as Fake News se tornaram uma verdadeira adversidade para a li-
berdade de expressão na sociedade da informação, fundamento que justifica a ne-
cessidade de discutir esse tema, principalmente pelo fato de, bienalmente, ocorre-
rem eleições no Brasil – e o certame de 2018 já demonstrou que as Fake News são
potencializadas na esfera de comunicação dos brasileiros durante referidos pleitos.
Considerando que as notícias falsas tornaram-se perenes nas relações interpes-
soais, especialmente na atualidade, com a maximização do uso da Internet, seus
efeitos têm sido inúmeros, com grande repercussão na seara na jurídica.
A partir do uso da Rede Mundial de Computadores, a sociedade brasileira sujei-
tou-se a um novo panorama, em que há verdadeiro fomento ao gozo da liberdade
de expressão, bem como à distribuição de conhecimento. Além disso, constata-se
que, atualmente, grupos marginalizados têm a faculdade de usufruir de garantias
antes suprimidas devido ao preconceito e à intolerância, ou seja, de se autoafirma-
rem como tais, inclusive no campo da Internet.
Todavia, em meio às redes sociais e ao fato de esses sujeitos vulneráveis defende-
rem opiniões e pontos de vista próprios, conforme suas realidades, vivências e his-
tórias, eles se tornam vítimas de ataques de usuários que não concordam com suas
convicções, seja por meio de ofensas caluniosas diretas ou, então, por meio de notí-
cias falsas. Infelizmente, perante os internautas brasileiros, a intolerância é ainda
muito presente, em particular no que toca a assuntos políticos ou, então, a grupos
determinados, como as mulheres, os deficientes físicos, as pessoas negras ou a co-
munidade LGBT.11

10 BAUER, Caroline Silveira. Discurso de ódio e preconceito não são liberdade de expressão!
Dissenso.org. Publicado em: 11 abr. 2018. Disponível em: < https://bit.ly/2KKyIhC >. Acesso
em: 02 set. 2018.
11 MATSUURA, Sérgio. Brasil cultiva discurso de ódio nas redes sociais, mostra pesquisa. Jornal
O Globo. Publicado em: 03 ago. 2016. Disponível em: < https://glo.bo/2GPUVrs >. Acesso em:
276
Liberdade de expressão e discurso de ódio

3 Consequências jurídicas do uso das Fake News como instrumento de propaga-


ção de discurso de ódio

O ódio é um sentimento, e todos os seres humanos têm a liberdade de, interna-


mente, vivenciá-lo. Todavia, em situações episódicas nas quais esse sentimento é
externalizado, sobretudo de maneira desenfreada, gera-se repercussão em diversas
áreas das relações humanas e das ciências comportamentais.12 Pode-se citar as
ofensas à dignidade existencial, racial, política e sexual como exemplos de efeitos
reais que o discurso de ódio pode acarretar.
Nesse sentido, consoante descreve Patrícia Peck, surge a necessidade de usar a
liberdade de expressão com “responsabilidade”, isto é, deve-se interpretar a prote-
ção trazida pelo artigo 5º da CRFB/88 a esse princípio constitucional supramencio-
nado à luz do que prevê, de forma direta, o Código Civil de 2002, em seus artigos
186 e 187, nos quais se indica que, face ao fato que gera um dano, surge a obrigação
de indenizar, seja por ação ou omissão, ou, então, quando o dano é “fruto do exer-
cício legítimo de um direito no qual o indivíduo que o detém ultrapassou os limites
da boa-fé e dos bons costumes”.13
A própria seara jurídica tem caminhado nesse sentido, como se nota do substra-
to da “VIII Jornada de Direito Civil”, promovida pelo Centro de Estudos Judiciá-
rios do Conselho da Justiça Federal, em 2018. Dentre as proposições elaboradas,
que servem como orientação para estudos, pesquisas, decisões e peça processuais, o
Enunciado 613, artigo 12, expõe que “a liberdade de expressão não goza de posição
preferencial em relação aos direitos da personalidade no ordenamento jurídico
brasileiro”.14 Isto é um claro indicativo de que a liberdade de expressão não é um

27 jan. 2018.
12 MARTINS, Fernando Rodrigues. Discurso de ódio e tutela jurídica dos sentimentos no direito
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13 Cf. PINHEIRO, Patrícia Peck. Direito digital. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.
14 CONSULTOR JURÍDICO. Leia os 32 enunciados aprovados na VIII Jornada de Direito Civil.
277
Marcelo Henrique de Sousa Estevam
princípio absoluto e ilimitado.
Assim sendo, se alguma notícia falsa causar dano à imagem ou à honra de de-
terminada pessoa, na esfera cível, pode-se postular indenização por danos morais.
Ademais, se certa notícia inverídica caracterizar crime de racismo, conforme pre-
visto no art. 20, § 2ª, da Lei 7.716/89, pode-se invocar a aplicação da pena descrita
no tipo legal, tratando-se de reclusão e multa. Por fim, na seara penal, dependendo
do caso concreto, divulgar Fake News pode configurar crime de calúnia, difamação
ou injúria.15
Com efeito, segundo Fernando Rodrigues Martins (2018), o discurso de ódio re-
vela-se como uma concretude ruinosa da indevida discriminação, caracterizando-
se, também, como uma violação máxima da igualdade entre as pessoas. A dicoto-
mia existente entre liberdade de expressão e a vedação ao discurso discriminatório
trata, da mesma forma, da dualidade entre bem-estar e sofrimento; fraternidade e
egoísmo; amor e ódio. Dessa forma, não se pode fazer com que alguém suporte o
ódio emitido por outro, seja uma só pessoa ou um grupo social, pois, mais que um
dano privado, configura um dano social ou moral coletivo frente aos direitos e valo-
res constitucionalmente protegidos.16

4 Os meios e os principais temas que fazem das notícias falsas um instrumento


para o fomento do discurso de ódio

As notícias falsas se tornaram inerentes ao cotidiano, especialmente com a difu-


são do uso das redes sociais e dos aplicativos de comunicação instantânea por todos

Consultor Jurídico. Publicado em: 24 mai. 2018. Disponível em: < https://bit.ly/2V3ebsB >.
Acesso em: 29 jan. 2019.
15 GOULART, Juliana Ribeiro; LEMOS, Luciane Cotoman. A verdade nem sempre aparece: como
se proteger das fake news. Migalhas. Publicado em: 07 jan. 2019. Disponível em: <
https://bit.ly/2UGr2Sf >. Acesso em: 27 jan. 2019.
16 MARTINS, Fernando Rodrigues. Discurso de ódio e tutela jurídica dos sentimentos no direito
privado. Consultor Jurídico. Publicado em: 10 dez. 2018. Disponível em:
<https://goo.gl/CcZKhy>. Acesso em: 27 jan. 2019.
278
Liberdade de expressão e discurso de ódio
os núcleos socioeconômicos da nação brasileira. E, não bastando a proliferação de
Fake News, nota-se um excesso de crimes por intermédio delas. A Central Nacional
de Denúncias de Crimes Cibernéticos, projeto da Safernet Brasil, Organização Não
Governamental (ONG), relatou que, de 2007 até meados de 2018, recebeu cerca de
quatro (4) milhões de denúncias envolvendo crimes de ódio17.
Apesar desse alto índice de queixas de violação de direitos, principalmente de
direitos humanos, a prática de manifestação odiosa, mesmo assim, segue resistente
entre as pessoas. O anonimato tem sido um dos principais aparatos para a realiza-
ção desses delitos continuar sendo frequente, visto que dificulta a punição. Desse
modo, o Ministério Público Federal, em parceria com o Grupo de Apoio Sobre
Criminalidade Cibernética, aponta que a ameaça mais séria das Fake News se dá
com a multiplicação de postagens e perfis clandestinos e falsos.18
À vista disso, nota-se uma evidente banalização do ódio, que, por meio das notí-
cias falsas, se materializa como componente natural das relações interpessoais, em
que os mais variados segmentos da sociedade apropriam-se dele a fim de satisfazer
seus interesses. Por exemplo, na própria política, líderes partidários usam de um
discurso regado ao preconceito, à discriminação e ao ódio, a fim de captar votos e
ganhar visibilidade na mídia.19
Essa exacerbação do uso do ódio é comum, pois certos grupos sintetizam todo o
debate em um simples maniqueísmo entre bem e mal, mesmo com o diálogo, espe-
cialmente o que trata da política, sendo algo multiforme e complexo. Pois o ódio é
utilizado exatamente para dificultar a interação comunicacional entre as pessoas,
evitando que a população se relacione e produza esclarecimentos sobre os mais
variados temas. Impede-se, então, que se construa uma espécie de boa política20.

17 PUGLIERO, Fernanda. Como o ódio viralizou no Brasil. Carta Capital. Publicado em: 20 ago.
2018. Disponível em: < https://bit.ly/2MQoWIu>. Acesso em: 28 jan. 2018.
18 OLIVEIRA, Neide M. C. Cardoso de. Fake News e como investigar. Grupo de Apoio Sobre
Criminalidade Cibernética. Ministério Público Federal. Disponível em: <
https://bit.ly/2VbMXjT >. Acesso em: 28 jan. 2019.
19 PUGLIERO, Fernanda. Como o ódio viralizou no Brasil. Carta Capital. Publicado em: 20 ago.
2018. Disponível em: < https://bit.ly/2MQoWIu>. Acesso em: 28 jan. 2018.
20 RIBEIRO, Renato Janine. A boa política. Ensaios sobre a democracia na era da internet. São
279
Marcelo Henrique de Sousa Estevam
Isso sem esquecer dos sentimentos que estão diretamente ligados às manifestações
odiosas que, apesar de não serem o foco desse estudo, potencializam em grande
escala a disseminação de notícias falsas.
As Fake News, dessa maneira, contaminam até o próprio debate político, em que
a forte polarização ideológica da comunidade tupiniquim repercute, evidentemen-
te, na Internet. Dado que, como as redes sociais e os aplicativos de comunicação
instantânea têm a capacidade de, em uma mínima quantidade de tempo e em alta
proporção, disseminar conteúdos, as pessoas acabam apenas compartilhando de-
senfreadamente notícias falsas regadas a manifestações de ódio, sem ao menos pes-
quisar e/ou ponderar se determinado texto ou imagem é uma inverdade e/ou pode
ferir direito alheio21.
Isto posto, segundo Leonardo Sakamato:
O debate anônimo, sem fontes, desqualificado e que visa a desinformação na inter-
net é um grande formador de opinião no Brasil. As pessoas não se preocupam com a
qualidade daquilo que consomem e do que repassam desde que o conteúdo vá ao
encontro daquilo que elas acreditam22.
Assim, todo círculo de comunicação fica prejudicado. E pior, pois esse impró-
prio meio de comunicabilidade deixa severas consequências para terceiros, especi-
almente as minorias. Tornando-as vítimas de racismo, neonazismo, intolerância
religiosa, homofobia e pedofilia, ou, então, provocando incitação de crimes contra a
vida e também no que se refere a maus tratos de animais.23
Pode-se citar, a título de elucidação, o maximizado fluxo de notícias falsas en-
volvendo Marielle Franco. No dia 14 de março de 2018, a vereadora do PSOL (Par-

Paulo: Cia. das Letras, 2017.


21 AVENDAÑO, Tom C.; BETIM, Felipe. ‘Fake News’: a guerra informativa que já contamina as
eleições no Brasil. El País – Brasil. Publicado em: 11 fev. 2018. Disponível em: <
https://bit.ly/2RkGFIL >. Acesso em: 28 jan. 2019.
22 PUGLIERO, Fernanda. Como o ódio viralizou no Brasil. Carta Capital. Publicado em: 20 ago.
2018. Disponível em: < https://bit.ly/2MQoWIu>. Acesso em: 28 jan. 2018.
23 BRASIL. Safernet. Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos. Institucio-
nal/Projetos. Disponível em: < https://bit.ly/2Xgtfkf >. Acesso em: 28 jan. 2019.
280
Liberdade de expressão e discurso de ódio
tido Socialismo e Liberdade), Marielle Franco, e seu motorista, Anderson Gomes,
foram mortos na região central do Rio de Janeiro, e tal acontecimento gerou uma
onda de indignação no Brasil. Na Internet não foi diferente, porém, além dos defen-
sores, existiam pessoas que tentavam prejudicar a imagem da vereadora e, conse-
quentemente, de seu motorista.24
Marielle Franco era mulher, negra, bissexual, nascida em favela, socióloga e ve-
readora.25 Ou seja, reunia várias das características que, diariamente, se interligam
ao discurso de ódio, conforme já apontado nesse estudo. Assim, em paralelo ao
movimento para descobrir quem havia assassinado a vereadora e seu motorista,
iniciou-se uma movimentação para de difamar sua biografia por meio de notícias
falsas. Por exemplo, criaram-se Fake News indicando que Marielle era usuária de
drogas, que teria sido casada com um traficante, que sua candidatura havia sido
financiada pelo Comando Vermelho (facção do crime organizado do Rio de Janei-
ro), que não era defensora dos direitos humanos, mas sim engajada com bandidos e
etc.26. Desse modo, feito uma metástase, essas notícias falsas foram excessivamente
compartilhadas nas redes sociais, nos mais variados núcleos do tecido social, em
particular devido à sociedade hodierna – polarizada política e ideologicamente.
Assim sendo, legitimadas pela liberdade de expressão, várias pessoas, ao parti-
lhar desses relatos falsos na Internet, ofenderam inúmeros direitos da vereadora e
de sua família, como sua dignidade, sua personalidade e sua existência. Tudo isso
em virtude de falta de verificação e deliberação dessas notícias inverídicas, bem
como da falta de sentimentos, como empatia, humanitarismo e complacência.
Logo, verifica-se que as notícias falsas podem se dar por inúmeros temas, espe-
cialmente tendo como base a sociedade pluralista brasileira. Mas é perceptível, do
mesmo modo, que, em meio à conjuntura atual, no Brasil, as Fake News têm se
ligado especialmente a assuntos relacionados à política. Consequentemente, na

24 EXAME. Notícias falsas sobre Marielle Franco se espalham na internet. Publicado em: 21 mar.
2018. Disponível em: < https://bit.ly/2Uisoxz >. Acesso em: 29 jan. 2019.
25 MARIELLE FRANCO. Quem é Marielle? Disponível em: < https://bit.ly/2IxzqK0 >. Acesso em:
29 jan. 2019.
26 EXAME. Notícias falsas sobre Marielle Franco se espalham na internet. Publicado em: 21 mar.
2018. Disponível em: < https://bit.ly/2Uisoxz >. Acesso em: 29 jan. 2019.
281
Marcelo Henrique de Sousa Estevam
interligação desse tema com negros, mulheres e a população LGBT, ou seja, mino-
rias historicamente excluídas do debate político e da participação democrática,
tem-se um acirramento de ânimos ainda maior.

5 Alternativas que possam minimizar a difusão das notícias falsas em meio a soci-
edade da informação

É sabido que há aspectos positivos advindos da sociedade da informação, nota-


damente em relação à interação humana e ao direito à informação garantido pela
Constituição. No entanto, vislumbra-se a necessidade de que esses conteúdos sejam
verídicos e que não lesionem direitos alheios, como insistidamente tem-se explana-
do nesse estudo. Dessa forma, é imperiosa a necessidade de se investigar alternati-
vas para fazer da comunicabilidade entre as pessoas um instrumento para otimizar
o diálogo e, por conseguinte, o debate político.
Uma vez que a atualidade tem sido caracterizada por um “descompasso entre as
potencialidades tecnológicas e seu preenchimento por valores humanos retrógra-
dos”,27 confirmando que a coletividade tem cada vez mais acesso à informação, mas
é cada vez menos informada, com o ódio sendo ratificado na Internet e os internau-
tas agindo como verdadeiros vetores de notícias falsas, o debate ganha especial rele-
vância.
Dessa forma, pequenas ações no cotidiano podem ajudar a minimizar o crescen-
te número de Fake News que tem infestado as redes sociais e os aplicativos de co-
municação instantânea.
Segundo Juliana Gragnani, se determinado sujeito recebe uma notícia, indepen-
dentemente do meio de comunicação virtual, surge a necessidade de ler a notícia
por completo – e não apenas o título –, averiguar a fonte e analisar se a mesma pos-
sui autoria ou então algum link de algum site confiável; mensurar se é apenas uma
opinião, ou realmente uma informação; digitar o título da notícia no site de busca,
dado que, se ela for verdadeira, certamente, outros veículos de comunicação tam-

27 RIBEIRO, Renato Janine. A boa política. Ensaios sobre a democracia na era da internet. São
Paulo: Cia. das Letras, 2017, p. 266.
282
Liberdade de expressão e discurso de ódio
bém estarão reproduzindo tal conteúdo e, por fim, verificar os fatos e a data da pu-
blicação.28
Ainda segundo a escritora supracitada, em se tratando de aplicativos de comu-
nicação instantânea, ao receber uma imagem narrando uma história, pode-se fazer
uma busca por imagem, e não por texto, uma espécie de análise “reversa”, em sites
com tal ferramenta. Em se tratando de áudios, deve-se resumir as informações e
averiguá-las nos sites de busca. Por último, tratando-se de números, ou seja, quan-
do estatísticas forem citadas na notícia como resultado de pesquisas ou coleta de
dados, é necessário examiná-los isoladamente nos sites de busca.
Ademais, no que se refere ao discurso de ódio, Leonardo Sakamoto indica que,
além de ler a notícia por completo e averiguar fontes, ao se inserir em um debate de
ideias nas redes sociais, tendo em vista que a pessoa pode não dominar perfeita-
mente certo tema, deve-se reconhecer tal limitação e não agredir com palavras de
baixo calão ou regadas a injúria ou difamação. Mas, caso compreenda tal tema,
saiba discordar educadamente da publicação, focando em deliberar sobre os argu-
mentos da publicação, sem ofender o próximo.29
Tudo isso, com o presságio de estimular socialmente a educação digital, Saka-
moto indica que “o fenômeno dos Fake News é apenas a ponta do iceberg de um
sistema de desinformação”.30 A falta de inclusão social, bem como a carência edu-
cacional e cultural, somada a todas as mazelas sociais existentes em meio à popula-
ção brasileira, contribuem para a insuficiência desse diálogo, prejudicando, sobre-
tudo, o debate político democrático.
Com efeito, Renato Janine Ribeiro indica que:
Se a internet hoje mais impulsiona o ódio do que o diálogo, é porque hipertrofia tra-

28 GRAGNANI, Juliana. Para mandar no grupo da família: um guia de como checar se uma notí-
cia é falsa. BBC News – Brasil. Publicado em: 14 set. 2018. Disponível em: <
https://bbc.in/2CVTUNL >. Acesso em: 29 jan. 2019.
29 SAKAMOTO, Leonardo. O que aprendi sendo xingado na Internet. São Paulo: LeYa, 2016, p.
136.
30 PUGLIERO, Fernanda. Como o ódio viralizou no Brasil. Carta Capital. Publicado em: 20 ago.
2018. Disponível em: < https://bit.ly/2MQoWIu>. Acesso em: 28 jan. 2018.
283
Marcelo Henrique de Sousa Estevam
ços da sociedade atual. Mas, se conseguirmos fortalecer o diálogo, ela poderá ser
uma ferramenta relevante para fazê-lo proliferar”.31
Há a necessidade, desse modo, de se fazer dessa importante ferramenta inerente
a sociedade da informação, que é a Internet, um mecanismo que fortifique o Estado
Democrático de Direito e que preserve e respeite os direitos fundamentais salva-
guardados pela Constituição Federal de 1988, almejando que seja edificado um
equilíbrio entre a população, especialmente para os princípios constitucionais, co-
mo foi discutido nesse estudo sobre a liberdade de expressão e direitos correlacio-
nados à personalidade e à dignidade dos cidadãos, pretendendo, assim, corroborar
para potencializar o bem-estar social.
Destarte, é perceptível que o maior obstáculo, no que toca às Fake News, se in-
terliga ao diálogo entre as pessoas, em que a qualificação do debate público é a al-
ternativa mais plausível para mudar essa conjuntura, visto que, por exemplo, elabo-
rar uma legislação com a finalidade de conter a disseminação de conteúdo, especi-
almente as notícias falsas e o discurso de ódio, não indica ser a resposta mais eficaz
para esse fenômeno.
A complexidade do tema vai muito além de definir, por meio de leis, o que são
“Fake News” e de apontar alguma punição. Obviamente, não se pode esquecer das
pessoas vitimadas pelas notícias falsas e manifestações de ódio, ainda mais sob a
condição de vulnerabilidade em que se encontram. Contudo, apenas criminalizar a
prática das Fake News seria a solução? Parece que não. Mas, sim, com a educação
digital dos mais variados núcleos da sociedade brasileira.

6 Considerações finais

Por todo exposto, é visível o quão delicado é o tema das notícias falsas, em parti-
cular face ao pressuposto do discurso de ódio. Sob a perspectiva dos direitos asse-
gurados pelo ordenamento jurídico, é notável que os princípios não são absolutos,
e, dependendo do caso concreto, determinada garantia, mesmo que protegida le-

31 RIBEIRO, Renato Janine. A boa política. Ensaios sobre a democracia na era da internet. São
Paulo: Cia. das Letras, 2017, p. 269.
284
Liberdade de expressão e discurso de ódio
galmente, pode ser sobrepujada por outra prerrogativa, conforme se deliberou, por
exemplo, entre liberdade de expressão e dignidade da pessoa humana.
Nesse sentido, sob a penumbra da faculdade de manifestar as mais variadas opi-
niões acerca dos mais diversificados temas, especialmente pelo fato de a população
brasileira ter, em sua história, tristes relatos do período ditatorial, com supressão de
direitos, determinados sujeitos usurpam dessa condição para ofender terceiros, de
maneira especial, no seio virtual, dado que, popularmente, a Internet é conhecida
como uma “terra sem leis”, e, em consequência, algumas pessoas sentem-se insti-
gadas a insultar e desrespeitar grupos que tem pontos de vista diferentes dos seus.
Além do que, sob a sombra do anonimato, notícias falsas tem sido cada vez mais
contínuas e interligadas a manifestações odiosas perante o contexto da comunica-
ção e, inclusive, potencializadas pela rápida disseminação de conteúdo devido à
rede de compartilhamento, que amplia ainda mais o dano perante a pessoa ou gru-
po que tem mentiras espalhadas a seu respeito. Na maioria dos casos, conforme
deliberado nesse estudo, as vítimas das Fake News estão diretamente ligadas à seara
política, ou são minorias (mulheres, negros, comunidade LGBT e etc.).
Nota-se, desse modo, que o diálogo está contaminado, e, como sequela, o debate
democrático. Por isso, a educação digital de toda a sociedade brasileira é vista como
o mecanismo mais eficaz para minimizar ofensa a direitos por notícias falsas e pelo
discurso de ódio. Singularmente, potencializar o conhecimento no seio menos fa-
vorecido e com menor instrução educacional e cultural, na qual seus agentes foram
inseridos num novo ambiente – o virtual – sem, ao menos, terem consciência dos
efeitos negativos que esse nicho pode deixar para a população.
Em razão disso, criar apenas uma legislação com o intuito de suprimir esse fe-
nômeno não parece ser a solução mais acertada, mesmo sabendo que a edificação
de leis pode ser benéfica para reforçar a segurança jurídica, pois será que apenas
criminalizar as Fake News resolveria todo o dilema analisado? Ou, então, somente
tipificar o anonimato na Internet? Estaria suscetível a sanção apenas quem cria
uma notícia falsa ou também quem compartilha, mesmo não tendo a intenção ou
não compreendendo que tal conteúdo é uma inverdade? E, entendendo que se trata
de um conteúdo falso, até que ponto compartilhar tal informação ilegítima teria a
proteção da liberdade de expressão? Além disso, qual seria a responsabilidade dos

285
Marcelo Henrique de Sousa Estevam
provedores, por exemplo, de conteúdo ou acesso, pelas Fake News?
Destarte, a qualificação do debate público é a saída mais conveniente. Ainda
mais sob o preceito de que o direito à informação pode ser considerado um direito
fundamental. Sendo assim, poderiam ser inseridas nas grades curriculares do ensi-
no fundamental e médio, disciplinas voltadas À educação digital, com o objetivo de
indicar meios corretos de se usar a Internet.
Além disso, fazer com que os meios de comunicação tradicionais façam propa-
gandas contra as notícias falsas e o discurso de ódio no seio virtual, ou seja, indi-
cando artifícios de como checar conteúdos e ratificando o apontamento de que “na
dúvida, não compartilhe”. Por fim, que possam ser inseridos, em toda sociedade,
especialmente em ambientes marginalizados, palestras e rodas de conversa sobre
educação digital, por exemplo, por meio de ONG’s ou projetos de extensão de uni-
versidades.
Tudo isso com o intuito de criar uma sociedade igualitária, instruída e que po-
tencialize o bem-estar social, fazendo da Internet um profícuo espaço de interação
social e de troca de conteúdos verídicos e, também, um ambiente onde as pessoas
saibam conviver pacificamente com as diferenças do próximo, isto é, com o respei-
to sendo a base da comunicabilidade, na qual não há a necessidade de concordar
com todos os apontamentos apresentados, mas apenas de respeitá-los, tornando-a,
assim, uma esfera de convivência aprazível, mesmo que não física, em que a liber-
dade de expressão seja cada vez mais consolidada, mas em consonância com os
direitos fundamentais salvaguardados pela Constituição, de modo particular, a
dignidade da pessoa humana e os direitos inerentes à existência e à personalidade
dos cidadãos.

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290
ACESSO À INTERNET COMO DIREITO
FUNDAMENTAL: A NECESSIDADE DE GARANTIA
AO INGRESSO NO MUNDO VIRTUAL

13
Matheus Junqueira de Almeida Meira

Introdução

O presente capítulo, tem como escopo, abordar a questão do acesso à Internet


como direito fundamental no ordenamento jurídico brasileiro, com enfoque no
primeiro nível da situação: o estrutural.
Vivemos na era da informação.1 Mais do que nunca, os países estão amplamente
conectados e com fluxo comunicacional inimaginável, muito em função da globali-
zação, bastante relacionada ao avanço das Tecnologias da Informação e Comunica-
ção (TICs), com destaque à Internet2, após, principalmente, a década de 1980. Com
essa popularização das TICs e da Internet, vieram também os desdobramentos le-
gais acerca do que ocorre no mundo virtual. No Brasil mesmo, recentemente, tive-
mos a aprovação do Marco Civil da Internet3, que estabelece princípios, garantias,

1 Cf. CASTELLS, M. A sociedade em rede. Tradução de Roneide Venancio Majer com a colabora-
ção de Klauss Brandini Gerhardt. São Paulo: Paz e Terra, 2005, v. 1.
2 CASTELLS, M. A sociedade em rede. Tradução de Roneide Venancio Majer com a colaboração
de Klauss Brandini Gerhardt. São Paulo: Paz e Terra, 2005, v. 1, p. 82.
3 O Marco Civil foi uma evolução importante no Direito brasileiro no que diz respeito à regula-
mentação da internet. Recentemente foi elogiado pelo relator da ONU, Frank La Rue, o qual se
291
Matheus Junqueira de Almeida Meira
direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil.
Sabemos, portanto, que, no século XXI, a Internet está presente nos mais diver-
sos segmentos da realidade humana, desde o cotidiano, para comunicação, lazer,
entre outros, até no trabalho. No Brasil, pouco mais da metade da população4 tem
acesso à internet. Nesse sentido, se a Internet é meio de conectividade, de obtenção
de informações e de lazer, por que tantas pessoas não tem acesso a ela? Quais são as
influências sociais dessa exclusão?
Segundo estudo conduzido pela Fundação Getúlio Vargas, em 2012, os três
principais motivos pelos quais as pessoas não acessam a internet são: a pessoa não
achou necessário ou não quis (33,14%), não sabia utilizar a internet (31,45%) e não
tinha acesso a microcomputador (29,79%).5
Dentre os números trazidos acima, nota-se que as duas últimas parcelas, que
juntas somam mais da metade do universo entrevistado, estão diretamente ligadas à
camada menos favorecida da sociedade e com menor grau de escolarização. Apa-
rentemente, o fato de não saber utilizar e não ter computador decorre de uma baixa
remuneração, que, na maioria das vezes, é fruto do nível educacional baixo. Isso
emperra a noção de igualdade na esfera pública, enquanto mediadora entre Estado
e sociedade, e portadora de opinião pública. Quanto ao conceito de esfera pública,
importa destacar o trazido por Habermas:
A esfera pública pode ser descrita como uma rede adequada para a comunicação de
conteúdos, tomadas de posição e opiniões; nela os fluxos comunicacionais são fil-
trados e sintetizados, a ponto de se condensarem em opiniões públicas enfeixadas
em temas específicos. Do mesmo modo que o mundo da vida tomado globalmente,

referiu ao Marco como sendo modelo. Disponível em: < https://nacoesunidas.org/projeto-


brasileiro-de-marco-civil-da-internet-e-modelo-internacional-diz-relator-da-onu/ >. Acesso
em: 05 dez. 2018.
4 CGI.br/NIC.br, Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informa-
ção (Celtic.br). Pesquisa sobre o Uso das Tecnologias de Informação e Comunicação nos domi-
cílios brasileiros – TIC Domicílios, 2017. Disponível em:
https://cetic.br/tics/domicilios/2017/domicilios/A4/ . Acesso em: 11 set. 2019.
5 FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS. Mapa da Inclusão Digital. Coordenação Marcelo Neri. Rio
de Janeiro: FGV, CPS, 2012. Disponível em: https://bit.ly/2b9xuZ3 . Acesso em: 03 nov. 2018.
292
Acesso à Internet como direito fundamental
a esfera pública se reproduz através do agir comunicativo, implicando apenas o do-
mínio de uma linguagem natural; ela está em sintonia com a compreensibilidade ge-
ral da prática comunicativa cotidiana.6
Acerca do efetivo funcionamento dessa esfera, como elucidado por Frank Webs-
ter7, a apresentação imparcial e neutra de informações, da forma mais ampla possí-
vel, deve se dar independentemente da capacidade do indivíduo de pagar pelo ser-
viço. Nesse sentido, de que forma o governo brasileiro tem se imposto para a efeti-
vação dessa proposta no âmbito das TICs? O Estado tem garantido o acesso à in-
formação – à Internet no caso – aos que não tem condição?
Assim, dado o alto número de pessoas, no Brasil, que não tem acesso à Internet,
surge a discussão acerca da seguinte problemática: a indispensabilidade da inclusão
digital – sendo esta uma inclusão, por consequência, social. Todavia, qual é o cami-
nho para tal inclusão? Como o Estado pode auxiliar nesse processo? Conforme
prognosticado por Bobbio8, o desenvolvimento das áreas do conhecimento e – o
que mais nos é oportuno destacar – a intensificação dos meios de comunicação
geraram profundas transformações sociais, o que importou a necessidade de habili-
tação de novos direitos como fundamentais, sociais, entre outros. Acerca disso,
destaca-se:
Não é preciso muita imaginação para prever que o desenvolvimento da técnica, a
transformação das condições econômicas e sociais, a ampliação dos conhecimentos
e a intensificação dos meios de comunicação poderão produzir tais mudanças na
organização da vida humana e das relações sociais que se criem ocasiões favoráveis
para o nascimento de novos carecimentos e, portanto, para novas demandas de li-
berdade e de poderes. 9 (Grifo meu).
A referida exclusão digital é, por si só, pretexto suficiente para justificar a neces-

6 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Tradução de Fabio


Beno Siebneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, v. II, p. 92.
7 WEBSTER, Frank. Theories of information society. 3. ed. Londres: Routledge, 2006. Disponível
em: https://bit.ly/2GufOaM . Acesso em: 15 nov. 2018.
8 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 4. tiragem. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 20.
9 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 4. tiragem. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 20.
293
Matheus Junqueira de Almeida Meira
sidade de atenção estatal quanto ao acesso à Internet. Ora, se todos são iguais pe-
rante a lei, sendo tal igualdade garantida constitucionalmente, fica clara a necessi-
dade de garantia ao direito de ser parte do mundo virtual.
Assim, a gênese desse processo de inclusão seria, como se abordará ao longo do
trabalho, a inserção do direito fundamental ao acesso à Internet no rol dos direitos
fundamentais. Essa proposta de inclusão será sustentada a partir da demonstração
da existência real de uma necessidade desse acesso e das modificações sociais que
justifiquem essa integração.
Ponto indispensável à discussão é o que diz respeito à democracia participativa e
à intrínseca relação com as TICs. Esse assunto leva a discussão para o campo dos
direitos políticos, em que a Internet, aparentemente, revolucionou a manifestação
política. Insta salientar, ainda, que o acesso à internet, atualmente, é pressuposto
inclusive para a efetivação de outros direitos, como o acesso à informação, liberda-
de de expressão, entre outros.
Ainda, discutiremos acerca de que forma a inclusão digital deve se dar, com en-
foque no nível estrutural, qual seja a instituição de políticas públicas para a garantia
ao acesso. Não obstante, verificaremos a possibilidade de judicialização quando da
omissão governamental na efetivação das referidas políticas públicas.
Por fim, apresentaremos uma proposta de programa que visa diminuir a exclu-
são digital, pela criação de uma wi-fi pública, gratuita e nacional. Tal programa
deverá ser fomentado via políticas públicas, se baseando em modelos internacionais
já existentes, bem como ampliando e nacionalizando os programas congruentes já
existentes no Brasil. Portanto, espera-se, através do presente capítulo, encontrar um
meio de evidenciar a questão do acesso à Internet enquanto direito fundamental
com enfoque no papel estatal e judiciário para a garantia desse direito, tão impor-
tante na sociedade contemporânea.

1 Panorama geral do acesso no Brasil


1.1 Dados do acesso e programas existentes

No Brasil, houve recente aumento no número de usuários que acessam a Inter-

294
Acesso à Internet como direito fundamental
net, bem como no número de domicílios com acesso à internet. Atualmente, cerca
de 61%10 dos domicílios possuem acesso à internet, importando salientar que, co-
mo dito, a porcentagem de acesso nas famílias com renda mais alta é nitidamente
maior que nas famílias com renda menor11. Incluindo o acesso via smartphones12, o
acesso chega a 73%13 da população.
Como introduzido, o acesso à internet proporciona a efetiva participação do in-
divíduo na sociedade e isso inclui o acesso à informação (jornais online, ferramen-
tas de pesquisa, entre outros), a oportunidade de comunicação (redes sociais), a
inclusão no mercado online e possibilidade de utilizar as prestações fáticas online já
oferecidas pelo governo. Sendo, portanto, crucial à inclusão, precisamos discutir os
programas governamentais a respeito.
Acerca disso, no Brasil, desde as últimas décadas, têm sido desenvolvidos pro-
gramas e iniciativas visando fomentar a aquisição de TICs, bem como o acesso à
internet. Exemplo disso é o antigo programa do governo, Projeto Cidadão Conec-
tado – Computador para Todos.
O citado programa foi um dos mais conhecidos e, talvez, mais eficientes lança-

10 CGI.br/NIC.br, Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informa-


ção (Celtic.br). Pesquisa sobre o Uso das Tecnologias de Informação e Comunicação nos domi-
cílios brasileiros – TIC Domicílios, 2017. Disponível em:
https://cetic.br/tics/domicilios/2017/domicilios/A4/. Acesso em: 11 set. 2018.
11 CGI.br/NIC.br, Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informa-
ção (Celtic.br). Pesquisa sobre o Uso das Tecnologias de Informação e Comunicação nos domi-
cílios brasileiros – TIC Domicílios, 2017. Disponível em:
https://cetic.br/tics/domicilios/2017/domicilios/A4/. Acesso em: 11 set. 2018.
12 Apesar de não ser um acesso total, no sentido de haver ferramentas na internet exclusivas para
computadores, entre outros, o acesso via smartphones, têm alavancado a inclusão no país. É cada
vez mais comum a adesão às redes sociais no Brasil e aplicativos de comunicação, como Facebo-
ok e Whatsapp. Nesse sentido, defendemos que esse acesso tem que ser ampliado, de forma ga-
rantida pelo governo, via wi-fi públicas gratuitas. Tema que será desenvolvido logo mais.
13 CGI.br/NIC.br, Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informa-
ção (Celtic.br). Pesquisa sobre o Uso das Tecnologias de Informação e Comunicação nos domi-
cílios brasileiros – TIC Domicílios, 2017. Disponível em:
https://cetic.br/tics/domicilios/2017/domicilios/A4/. Acesso em: 11 set. 2018.
295
Matheus Junqueira de Almeida Meira
dos até hoje. Criado no primeiro governo Lula, o programa tinha como escopo
promover a inclusão digital facilitando a aquisição de computadores, desde que
obedecidos alguns critérios estabelecidos no decreto regulatório do programa.
O supracitado programa ficou muito conhecido, pois acabou atingindo uma
grande parcela da população. Nesse sentido foram os números trazidos pela Pesqui-
sa Nacional de Amostragem por Domicílio (PNAD)14 de 2005 e de 2006, que de-
monstraram crescimento significativo nos domicílios com computadores (em
comparação com os anos anteriores). O fato de que o aumento de máquinas se deu
principalmente em domicílios de baixa-renda corrobora com o entendimento de
que o referido crescimento foi fruto do programa, lançado em 200515, por ser esse o
público-alvo.
Além desse pioneiro programa, há outros, menos conhecidos, bem como mais
atuais. Em regra, estão ligados ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovação e
Comunicações (MCTIC), a exemplo do programa Governo Eletrônico – Serviço de
Atendimento ao Cidadão (GESAC). Esse programa oferece conexão à internet ob-
jetivando promover a inclusão digital no território Nacional.
O GESAC, instituído pela Portaria nº 2.662/2014, é direcionado principalmente
para comunidades em estado de vulnerabilidade social, que não possuem meios de
se inserirem no mundo das TCIs. Contando com aproximadamente 5.500 pontos
espalhados pelo Brasil, o programa ainda tem como objetivo apoiar pesquisas em
locais isolados, contribuir para ampliação do acesso, entre outros. Interessante res-
saltar que o GESAC acabou por fomentar e instituir outros programas, decorrentes
dele, aos quais cabem elogios. Um exemplo do caso é o programa “Internet para
Todos”, que foi recentemente retomado16. Tal programa visa oferecer conexão em

14 IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Disponível em:


https://ww2.ibge.gov.br/home/estatistica/pesquisas/pesquisa_resultados.php?id_pesquisa=40.
Acesso em: 10 nov. 2018.
15 TELE.SÍNTESE. Os bons resultados do computador para todos. Disponível em:
https://bit.ly/2UopU0r. Acesso em 09 nov. 2018.
16 A execução do programa, recentemente instituído, havia sido impedida por uma liminar da
Justiça Federal em Manaus (AM), em função de suspeitas de irregularidades na execução. Toda-
via, a então presidente do Supremo Tribunal Federal, Carmem Lúcia, suspendeu a decisão, re-
296
Acesso à Internet como direito fundamental
banda larga a preços reduzidos, visando a inclusão digital através da democratiza-
ção do acesso à internet. Os serviços serão prestados pela Telebrás em parceria com
a operadora Viasat e empresas regionais de telecomunicações17.
Por último, cabe ressaltar sobre o Plano de Integração à Plataforma de Cidada-
nia Digital, que é um documento que traça estratégias do MCTIC para transforma-
ção digital dos serviços públicos. Essa plataforma, tem como finalidade promover
atuação integrada entre os órgãos e entidades envolvidos na prestação dos serviços
públicos, simplificar as solicitações, permitir aos cidadãos acompanhamento dos
serviços públicos por meio digital, entre outros.
Esse plano tem estimada importância não por garantir acesso universal, mas por
promover ações digitais nas prestações fáticas do governo. Isso é de elevada impor-
tância para a integração de dados, transparência nas prestações, facilitação, entre
outros. Todos esses pontos são relevantes, já que possibilitam interações que antes
não eram possíveis18. Destaca-se, do mesmo modo, que a digitalização governa-
mental resultaria no aumento da participação popular nos atos do governo, sendo
possível identificar o avanço do e-government e a e-democracy, mesmo que de for-
ma tímida19.
Nesse sentido, acerca destes programas, depreende-se que no início, o primeiro
programa citado, gerou significativa atuação estatal, no sentido de facilitar o acesso
e podemos falar em sucesso no alcance do objetivo, qual seja a inclusão. Contudo, é
notório que os programas de inclusão acabaram se tornando obsoletos. Prova disso
é a quantidade de pessoas que ainda continuam sem acesso no Brasil, mesmo com
os programas citados.
Assim, podemos considerar que o governo tem sido omisso em promover a in-
clusão, ainda mais se considerarmos que os programas atuais, apesar de preverem,

tomando o prosseguimento do programa.


17 TELECOMUNICAÇÕES BRASILEIRAS S.A. MCTIC retomará programa “Internet para To-
dos”. Disponível em: https://bit.ly/2VPbAQk . Acesso em 03 nov. 2018.
18 LESSIG, Lawrence. Code: version 2.0. Nova Iorque: Basic Books, 2006, p. 83
19 MARTINS, Fernando Rodrigues. Sociedade da informação e promoção à pessoa, p. 6. Revista de
Direito do Consumidor, São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 96, 2014, p. 225-257.
297
Matheus Junqueira de Almeida Meira
no papel, o que o presente capítulo defende, não têm sido capazes de colocar em
prática tudo o que prometem.
Defendemos, portanto, uma eficaz utilização dos programas existentes, ou
mesmo criação de novos programas, e a transparência no alcance dos mesmos, de
forma a evitar uma falsa percepção de que os programas têm surtido efeito, quando
na verdade não têm. Em tempo, podemos considerar que o programa Internet para
Todos possui ideias extremamente pontuais, bem como vai de encontro com o que
o presente capítulo e obra defendem.
Nesse sentido, defendemos veementemente a divulgação e execução do referido
programa, como forma de fomento à inclusão e torcemos para que o mesmo alcan-
ce em tempo hábil frutos consideráveis. Ainda, entendemos que são necessárias
novas ações estatais para a garantia do acesso e correta aplicação normativa, para
que as normas referentes à garantia do acesso universal sejam, de fato, eficazes.

1.2 O Marco Civil da Internet

O Marco Civil da Internet no Brasil, Lei nº 12.965 de 23 de abril de 2014, estabe-


lece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. Isso se
dá pela regulamentação desses direitos e deveres dos usuários da internet, dos por-
tais e sites, dos provedores e das prestadoras de serviço e do próprio Estado, bem
como pelo estabelecimento de diretrizes para a atuação estatal. Destacaremos a
seguir os pontos que mais nos interessam.
Em primeiro lugar, o artigo 4º, da referida lei, talvez seja o que mais nos interes-
sa, pois traz o objetivo da disciplina do uso da internet no Brasil, que é promover o
que temos defendido no presente capítulo, com destaque para o direito universal de
acesso à internet, à informação e conhecimento e do fomento de novas tecnologias.
O primeiro inciso é a base do que temos defendido: o direito ao acesso universal,
que é o que se pretende ao incluir tal direito no rol dos fundamentais. Todavia,
como vimos, a mera inclusão não soluciona o problema, pois também há que se
discutir de que forma o Estado irá garantir o acesso e o fomento à difusão de novas
tecnologias (terceiro inciso) e se o acesso universal será de qualidade, bem como se
possibilitará acesso pleno à informação, entre outros (incisos segundo e quarto).
298
Acesso à Internet como direito fundamental
Percebe-se, destarte, que, mesmo trazendo em seu bojo exatamente o que tem
que ser discutido e colocado em prática, o Marco Civil não tem sido aplicado: o
Estado não tem sido eficiente em fazer valer o dispositivo legal, no que tange a
questão do acesso universal. Tal fato corrobora a pretensão de transformar o pata-
mar do direito abordado.
Em seu artigo 26, o Marco Civil obriga, ainda, as instituições de ensino a pro-
moverem a capacitação digital, bem como o ensino de informática nas escolas. En-
tendemos que, apesar mostrarem-se necessárias, atualmente tais medidas não têm
sido tomadas de forma efetiva. Tal fato confirma a necessidade de discussão do
tema, bem como dos meios para a efetivação da lei.
Por fim, o artigo 7º reforça, em seu caput, a indispensabilidade do acesso à in-
ternet enquanto garantidor do exercício da cidadania, o que direciona o debate ao
campo da democracia, que trataremos em capítulo específico. Além disso, o Marco
Civil disciplina diversos outros assuntos, melhor abordado em outros capítulos da
obra.
Nesse sentido, consideramos que o Marco Civil acertou ao considerar o acesso a
internet enquanto indispensável ao exercício da cidadania, bem como declarar que
este deve ser universal. No entanto, sabemos que o maior obstáculo gira em torno
de sua aplicação e de que forma esse dispositivo pode ser eficaz no tocante à garan-
tia do acesso à internet.

2 Acesso à Internet enquanto direito fundamental


2.1 Direitos relacionados e PEC/185

Nossa Constituição dispõe sobre diversos Direitos Fundamentais, constantes do


Título II, e conforme introduzido, a Internet se relaciona com muitos deles. Foi
supracitado o prognóstico de Bobbio,20 acerca da transformação que as TICs causa-
riam ao Estado de Direito e às relações sociais. Nesse condão, detalharemos de que
forma as TICs, e o acesso a elas, se relacionam com os Direitos Fundamentais.

20 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 4. tiragem. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 20.
299
Matheus Junqueira de Almeida Meira
Hodiernamente, é notória a relação que existe entre o direito à informação (inci-
sos XIV e XXXIII, art. 5º, CF) e as TICs. Não precisamos de esforços para constatar
que meios de informação, antes muito utilizados, estão se tornando obsoletos, dife-
rente do que acontece com os meios digitais de informação. A tendência é que, cada
vez menos, a veiculação de informações se dê via off-line, exemplo disso é o fim da
atividade de diversos jornais impressos e revistas nos últimos anos.
Nesse sentido, importa salientar que o direito à informação é ameaçado – quiçá
cerceado – pela ausência de conectividade à internet. Isto, pois, conforme mencio-
nado, uma pessoa sem acesso à internet tem diminuída sua oportunidade de obten-
ção de informações ou mesmo de comunicação de forma desmedida.
Em outro ponto, a democracia tem como pilar a participação popular. Por con-
sequência, direitos políticos estão intrinsecamente relacionados ao exercício desta.
Acontece que, atualmente, as estruturas da democracia têm sido redefinidas, a
exemplo de outras transformações que já sofreu21, pelas atuais transformações soci-
ais, como a popularização da internet. Assim, a parcela da população que não pos-
sui acesso à internet pode ver o exercício dos seus direitos políticos prejudicado,
afetando a efetiva democracia.
Ainda sobre a democracia, sabe-se que o governo tem modernizado suas presta-
ções fáticas. Nesse sentido, com a ideia de governança digital ganhando corpo no
Brasil, os indivíduos que se encontram à margem da digitalização, podem se ver
excluídos da participação social, o que enfraqueceria a democracia e, por conse-
quência, os direitos políticos, se estendendo o referido enfraquecimento até ao aces-
so à justiça.
Sobre os direitos à liberdade de opinião e expressão (inciso IX, art. 5º, CF), tem-
se que a internet, enquanto difusora de ideias, tem um papel demasiado grande na
garantia desses direitos. Isso, pois a internet tem servido como elo social para com-
partilhamento de ideias.
Ademais, diversos outros direitos se relacionam com o tema abordado. Isso se

21 BEÇAK, Rubens; LONGHI, João Victor Rozatti. Instrumentos para a implementação da demo-
cracia participativa e o papel das tecnologias da informação e da comunicação. Revista Interdis-
ciplinar de Direito, 2012.
300
Acesso à Internet como direito fundamental
deve ao atual estado de dependência telemática no qual a sociedade, como um todo,
se encontra, afetando os mais variados direitos.
Acerca do meio para efetivação do primeiro passo para o acesso universal à in-
ternet no Brasil, qual seja a inclusão do direito ao acesso no rol dos fundamentais,
seria o ideal uma Proposta de Emenda à Constituição. Nesse sentido é o texto da
PEC 185/15, de autoria da deputada federal Renata Abreu, à época integrante do
Partido Trabalhista Nacional.
A PEC foi apresentada no dia 17/12/2015 e visa, em suma, acrescentar o inciso
LXXIX ao artigo 5º da Constituição Federal, que asseguraria a todos o acesso uni-
versal a Internet como direito fundamental do cidadão22. Tal PEC é vista com bons
olhos, por ser considerada apropriada, tendo versado exatamente sobre o aqui de-
fendido. A mudança se daria, como dito, no artigo 5º da Constituição Federal, in-
cluindo o inciso LXXIX, com texto: “é assegurado a todos o acesso universal à in-
ternet”.
A justificativa da PEC vai de acordo com o já abordado aqui: a necessidade da
inclusão enquanto consequência das transformações sociais e tecnológicas da soci-
edade, sendo certo que os direitos fundamentais são mutáveis, devendo correspon-
der às novas necessidades – e realidades – da sociedade.
A PEC já passou pelo primeiro estágio para sua aprovação, qual seja a admissão
junto à Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ). O próximo passo
será a análise, por uma comissão especial, criada para apreciar seu conteúdo. Sendo
aprovada na Câmara, a PEC segue para o Senado, para ser analisada e votada em
dois turnos. Tendo sida analisada e aprovada pelas duas casas, a PEC é, por fim,
aprovada e passa a produzir efeitos.

2.2 Enquadramento do direito discutido enquanto fundamental

É notório que nossa Constituição assegura, em seu texto, diversos direitos fun-
damentais, mas não tão somente. Isso, pois mesmo os desdobramentos desses direi-

22 BRASIL. Câmara dos Deputados. PEC 185/15. Disponível em: https://bit.ly/2M4fM9q . Acesso
em 27 set. 2018.
301
Matheus Junqueira de Almeida Meira
tos são garantidos pelo seu texto. Depreende-se que o texto constitucional visou
assegurar, analiticamente23, tais direitos com base no que a sociedade demandava à
época e tentando arquiteta-los para o futuro.
Não obstante, é inegável que a sociedade passou por significativas transforma-
ções. Nesse condão, era de se esperar que nossa Carta Magna, promulgada em 1988,
uma hora se tornaria obsoleta, ou necessitaria de adaptações. Assim, partindo do
pressuposto que um cidadão comum hoje carece de internet para estar totalmente
incluído socialmente, nada mais justo que passar a considerar o acesso a internet
como um direito fundamental.
Essa mutação constitucional importaria na atuação estatal para garantia do aces-
so, o que ainda não ocorre genuinamente. Isso, pois com status de direito funda-
mental, o acesso à internet atrairia os esforços das máquinas legislativa e estatal
para a devida efetivação desse novo direito, principalmente através de políticas
públicas, o que trataremos em breve.
Exemplo de país onde o direito ao acesso é considerado como fundamental, es-
tando inclusive disposto na Constituição, é a Estônia, onde desde 2000 o acesso é
considerado um direito básico humano24. Outros exemplos de países que conside-
ram o acesso à internet como sendo um direito fundamental são a França e Costa
Rica25.
Tais exemplos são, antes de mais nada, positivos no sentido de evolução norma-
tiva. Isso, pois reconhecem (alguns há mais de uma década) o direito ao acesso en-
quanto sendo fundamental, corroborando com a ideia de que os direitos funda-
mentais não são conceitos acabados, mas suscetíveis a mutações que decorrem das
mudanças sociais.

23 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito
constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 57.
24 WOODARD, Colin. Estonia, where being wired is a human right. Christian Science Monitor,
07/2003.
25 LA RUE, Frank. Report of the Special Rapporteur on the promotion and protection of the right
to freedom of opinion and expression. 2011. Disponível em: https://bit.ly/QD35W5. Acesso em:
04 out. 2018.
302
Acesso à Internet como direito fundamental
Acerca da consideração da referida norma como sendo uma disposição, uma
norma de direito fundamental, assim a conceituaremos nos baseando no aspecto
formal, sendo este, conforme entende Alexy26, o critério mais adequado para tal.
Isso significa dizer que, pela forma de sua positivação, qual seja a inclusão de um
inciso no artigo 5º de nossa Constituição, ela deverá ser considerada uma disposi-
ção de direito fundamental, já que o referido artigo se encontra incluído no Título
II de nossa Carta Magna, que traz os Direitos e Garantias Fundamentais.
Todavia, ressalta-se que a mera inclusão do direito ao acesso à internet no rol
dos direitos fundamentais não solucionaria a questão da exclusão digital, Sendo
apenas o primeiro passo. A partir da inclusão, ocorreriam desdobramentos diretos
em função desta.
Esses desdobramentos, a exemplo do desenvolvimento da questão estrutural da
garantia ao acesso, servirão de base, futuramente para diversos fins relacionados à
informatização, dentre eles um processo exclusivamente digital, o qual ainda é invi-
ável pela exclusão digital27 existente em nosso país.
Faz-se necessário, destarte, um update em nossa Constituição, considerando que
esta retrata os direitos do homem, sendo estes históricos – e não modelos prontos e
recém-criados – e, portanto, sujeitos a alteração28. Em se considerando, nesse sen-
tido, o direito ao acesso à internet como um novo direito, decorrente das atualiza-
ções sociais, fruto do avanço tecnológico das TCIs, defendemos o referido update
como forma de reconhecimento legal de que a sociedade se transformou.

2.3 Igualdade na esfera pública e democracia participativa

Como já dito, é visível que as TICs revolucionaram a sociedade, as relações de


consumo e inclusive a expressão dos valores democráticos. Nesse sentido, discorre-

26 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São
Paulo: Malheiros, 2008, p. 68.
27 ROCHA, Henrique de Moraes Fleury da Rocha. Garantias fundamentais do processo sob a ótica
da informatização judicial. Revista dos Tribunais, 2017, p. 3.
28 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 4. tiragem. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 20.
303
Matheus Junqueira de Almeida Meira
remos, nesse tópico, sobre a possibilidade de consideração do acesso enquanto
pressuposto para uma igualdade na esfera pública.
Para prosseguirmos, esclarece-se que nos valemos do conceito trazido por Ha-
bermas para esfera pública, o qual foi transcrito acima6. Para o autor, esfera pública
não é um conceito tradicional que descreve a ordem social, não podendo ser enten-
dida como uma instituição, pois não possui estrutura normativa que diferencie
competências e papeis. Prossegue afirmando que a esfera pública é uma rede de
comunicação de conteúdos, opiniões e tomadas de posição, se reproduzindo pela
interação social, através da comunicação29.
Ainda, Habermas se refere à esfera pública como sendo uma rede de comunica-
ções onde há “atores” e “plateia”, de forma que uns influenciam mais que os ou-
tros. Nesse sentido, podemos considerar que a esfera pública está intrinsecamente
ligada aos meios de comunicação, em que pese ser ela o conglomerado de opiniões
da sociedade como um todo. Aqui, começa a ser traçado o paralelo entre esfera
pública e as TICs. Isso, pois, a internet – como marco para as TICs – tem elevado a
comunicação a níveis globais e criado um novo espaço para compartilhamento de
informações e ideias. Nesse condão, somos levados a concordar que, hodierna-
mente, o acesso à internet restou inserido nos pressupostos da igualdade na esfera
pública, em que pese ser grande instrumento de comunicação e de debate, sobretu-
do porque o acesso corresponde à ampliação do leque de acesso a informação.
Filiamo-nos, nesse sentido, ao posicionamento de que estamos passando por um
período de renovação política da vida democrática, se considerarmos a capacidade
informativa e comunicativa da internet30. E, assim sendo, consideramos que a ex-
clusão digital fere a democracia e, por consequência, a noção de igualdade na esfera
pública.
Entendemos, portanto, que o acesso à internet é pressuposto direto para a noção
de igualdade na esfera pública. Com isso, defendemos que o acesso tem que ser

29 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Tradução de Fabio


Beno Siebneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, v. II, p. 92.
30 PÉREZ-LUÑO, Antonio Enrique. Internet y los derechos humanos. Anuario de Derechos Hu-
manos, v. 12, Nueva Época, 2011, p. 316.
304
Acesso à Internet como direito fundamental
garantido, aos excluídos digitalmente, para fazer valer a isonomia disposta na
Constituição Federal. Entendemos, ainda, que o acesso é pressuposto para a própria
democracia, sendo a internet meio de exercício da cidadania e canal ampliador da
participação democrática.
Antes de passarmos à discussão acerca da democracia participativa, importa dis-
cutir brevemente o conceito de democracia. Etimologicamente, deriva da palavra
demokratía31, de origem grega, significando poder (kratos) que emana do povo
(demo). Nesse sentido, depreende-se que democracia, seria, portanto, um governo
do povo para o povo, mas não devendo ser considerado um conceito definitivo e
acabado32 e estando intrinsecamente ligado à participação popular33.
Insta salientar, ainda, que o presente trabalho filia-se à visão34 que diz respeito à
distorção do referido termo, o qual tem sido utilizado vulgarmente nos tempos
modernos, inclusive por regimes anti-democráticos que se auto intitulam democrá-
ticos. Ainda, importa destacar que o exercício da democracia esbarra em dificulda-
des35, sendo dificílimo – se não impossível – a existência de um governo plenamen-
te democrático, fazendo-se necessário objetivar a plena democracia. Nesse sentido,
Bonavides36:

31 SANTANA, Marcelo dos Santos Garcia. A significação original de democracia e a isegoria


como pressuposto da deliberação na modernidade. In: ROBL FILHO, Ilton Norberto; MORAES
FILHO, José Filomeno de; SANTIN, Janaína Rigo (Coord.). Teoria do Estado e da Constituição.
Florianópolis: CONPEDI, 2014, p. 53.
32 BEÇAK, Rubens; LONGHI, João Victor Rozatti. Instrumentos para a implementação da demo-
cracia participativa e o papel das tecnologias da informação e da comunicação. Revista Interdis-
ciplinar de Direito, 2012, p. 53.
33 BONAVIDES, Paulo, apud BEÇAK, Rubens; LONGHI, João Victor Rozatti. Instrumentos para a
implementação da democracia participativa e o papel das tecnologias da informação e da comu-
nicação. Revista Interdisciplinar de Direito, 2012, p.53.
34 BONAVIDES, Paulo, apud BEÇAK, Rubens; LONGHI, João Victor Rozatti. Instrumentos para a
implementação da democracia participativa e o papel das tecnologias da informação e da comu-
nicação. Revista Interdisciplinar de Direito, 2012, p.53.
35 Sendo a que mais nos interessa a exclusão digital, a qual obsta o exercício da democracia con-
temporânea, nos termos que trataremos a seguir.
36 BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 10. ed., São Paulo: Malheiros, 2000, p. 344.
305
Matheus Junqueira de Almeida Meira
De qualquer maneira, bem ponderada, serve-nos já aquela advertência, porquanto,
examinado a fundo o desenvolvimento da democracia, partindo-se do conceito de
que ela deve ser o governo do povo, para o povo, verificar-se-á que as formas histó-
ricas referentes à prática do sistema democrático tropeçam por vezes em dificulda-
des. E essas dificuldades procedem exatamente — assim pensam os seus panegiris-
tas — de não lograrmos alcançar a perfeição, na observância deste regime, o que, de
outra parte, não invalida, em absoluto, segundo dizem, a diligência que nos incum-
biria fazer por praticá-lo, visto tratar-se da melhor e mais sábia forma de organiza-
ção do poder, conhecida na história política e social de todas as civilizações.
Superado o debate acerca do conceito básico da democracia, partiremos à análi-
se do que seria a democracia participativa. A discussão acerca desse instituto é larga
e diversas são as tentativas de classificar atos enquanto desdobramentos da partici-
pação democrática dos cidadãos. Nesse sentido, atos como a participação popular
na proposição ou elaboração de leis são manifestações da referida democracia37,
contrariando a tese de que a democracia participativa decorreria exclusivamente do
voto38.
Destaca-se, ainda, a inter-relação entre princípios constitucionais e a democra-
cia participativa no Brasil, dentre os quais se destacam a dignidade da pessoa hu-
mana (art. 1º, III), soberania popular (art. 1º, parágrafo único), soberania nacional
(art. 1º, I) e unidade da Constituição39.
Porquanto, indispensáveis as explanações acerca da democracia e o seu desdo-
bramento que nos interessa é a democracia participativa, passemos à relação desta
com a visada inclusão digital e a necessidade de inclusão para sua efetivação.
Exemplos de ocorrência da democracia participativa no Brasil, como orçamento

37 BONAVIDES, Paulo, apud BEÇAK, Rubens; LONGHI, João Victor Rozatti. Instrumentos para a
implementação da democracia participativa e o papel das tecnologias da informação e da comu-
nicação. Revista Interdisciplinar de Direito, 2012, p.56.
38 HÄBERLE, Peter, apud BONAVIDES, Paulo, apud BEÇAK, Rubens; LONGHI, João Victor
Rozatti. Instrumentos para a implementação da democracia participativa e o papel das tecnolo-
gias da informação e da comunicação. Revista Interdisciplinar de Direito, 2012, p.53.
39 BONAVIDES, Paulo, apud BONAVIDES, Paulo, apud BEÇAK, Rubens; LONGHI, João Victor
Rozatti. Instrumentos para a implementação da democracia participativa e o papel das tecnolo-
gias da informação e da comunicação. Revista Interdisciplinar de Direito, 2012, p.53.
306
Acesso à Internet como direito fundamental
participativo, conselhos comunitários, entre outros, nos remetem à facilidade com
a qual se daria a devida participação se o caminho utilizado fosse digital, desde que
a população inteira tivesse acesso. Nesse sentido, a dinamização da utilização digital
nos mecanismos de participação popular ou mesmo para o próprio sistema eleitoral
pressupõe a necessidade de uma inclusão digital, como meio de efetivação da refe-
rida participação e melhoramento do processo eleitoral como um todo40.
A referida inclusão é, portanto, fundamental à efetivação da democracia, como
um todo. Ela é prerrogativa para a real participação. Esse ponto de vista se reforça
se considerada a dificuldade de colocar em prática estruturas de participação de-
mocrática brasileiras, a exemplo do encaminhamento de lei por iniciativa popular,
onde a Constituição, em seu artigo 61, exige que haja adesão mínima de 1% do elei-
torado nacional, mediante assinatura, distribuídos por no mínimo cinco unidades
federativas, com no mínimo 0,3% dos eleitores em cada uma dessas unidades.
Resta claro, nesse condão, que o alcance digital é maior – que o off-line – e que o
ideal seria que a população inteira tivesse acesso a essas iniciativas, bem como a
seus possíveis desdobramentos. Isso superaria a dificuldade na efetivação da demo-
cracia participativa que a exclusão digital gera37.
Mais do que apenas a participação popular nos moldes conhecidos, é de suma
importância salientar que a inclusão digital ainda resulta, nas palavras de Hart-
mann41, no “livre acesso aos dados que informam as decisões”. Em outras palavras,
as ações dos representantes, eleitos ou não, também são mais facilmente monitora-
das via internet, pelos portais de transparência, por exemplo. Ora, claro é, portanto,
que, estando a democracia intimamente ligada ao monitoramento do cidadão em
relação aos seus representantes, a exclusão digital dilacera mais um pressuposto da
democracia, qual seja o controle, por parte da população, de seus representantes.
Nesse sentido, é inimaginável considerar bem-sucedida nossa democracia sendo
esta conivente com a vigente exclusão existente em nosso país. Há que se falar, por-

40 BEÇAK, Rubens. A democracia na modernidade: evolução histórica. Revista de Direito Consti-


tucional e Internacional, p. 169-181, 2014, p. 169-181.
41 HARTMANN, Ivar A. Martins. Ecodemocracia: a proteção do meio ambiente no ciberespaço.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 143.
307
Matheus Junqueira de Almeida Meira
tanto, em meios capazes de combater a referida exclusão, de forma urgente para o
seguro exercício da democracia, bem como da garantia dos direitos fundamentais
decorrentes da inclusão digital, como tratado no segundo capítulo desta. Tais meios
devem ser disponibilizados pelo Estado, principalmente por políticas públicas, po-
dendo o judiciário intervir quando instigado, ponto que logo trataremos.

3 Políticas públicas e estrutura necessária


3.1 Estrutura necessária para garantia universal do acesso

Dado o que já analisamos, resta evidente que, atualmente, o governo brasileiro


tem negligenciado a problemática da exclusão digital. É necessário, portanto, partir
para a discussão acerca da forma pela qual o governo deve atuar para a confirmação
do direito ao acesso enquanto fundamental, visando combater a exclusão digital.
Preliminarmente, apoiamos a expansão dos mecanismos já existentes, tratados
no capítulo anterior. Eles, apesar dos problemas previamente apontados, têm exer-
cido papel importante no combate à exclusão digital e já beneficiaram milhares de
lares.
Prosseguindo, há que se falar no reconhecimento da relevância do acesso à in-
formação pela população como um todo, incluindo os deficientes42. Aqui, cria-se o
primeiro ponto a ser observado pelo governo na garantia ao acesso: a importância
de promover medidas inclusivas que possibilitem a inclusão de pessoas hiperexclu-
ídas43, como os cegos, surdos, idosos, entre outros. Há que se falar, nesse sentido,
em fomento na legislação e nas políticas públicas em relação à garantia do acesso a
essas pessoas.

42 LA RUE, Frank. Report of the Special Rapporteur on the promotion and protection of the right
to freedom of opinion and expression. 2011. Disponível em: https://bit.ly/QD35W5. Acesso em:
04 out. 2018.
43 Aqui, foi traçado um paralelo com a ideia de hipervulnerabilidade do idoso abordada pela autora
Cláudia Lima Marques, em diversas obras suas, onde há a cumulação de vulnerabilidade do con-
sumidor e do idoso, ambos vulneráveis, sendo hipervulnerável o consumidor idoso. Nesse senti-
do, os excluídos digitalmente que também são parcela marginalizada na sociedade em função de
defiência física foram considerados hiperexcluídos pela presente obra.
308
Acesso à Internet como direito fundamental
Frise-se, também, que as áreas rurais não podem ser esquecidas, o que poderia
agravar a exclusão44. Nesse sentido, apesar da dificuldade presumida em levar a
conexão a essas áreas, há que se falar em atuação estatal para possibilitar o acesso.
Assim, defendemos que o Estado utilize mecanismos para auxiliar no suporte à
garantia do acesso nas zonas rurais, seja custeando o cabeamento necessário ou
promovendo ações de incentivo junto às empresas de tecnologia e comunicação.
Outro ponto de extrema relevância é o da exclusão que decorre da baixa renda e
de que forma esse problema pode ser sanado. Aqui, precisamos esclarecer, é a área
na qual a ação governamental deveria ser mais significativa. Isso, pois o acesso,
atualmente, pressupõe investimento: desde o fornecimento dos dados, pelo prove-
dor, até a aquisição do equipamento necessário para o acesso.
Por depender de investimento, o acesso é menor entre famílias de baixa-renda.
Nesse condão, há que se falar em desenvolvimento de programas e destinação de
capital para que a internet chegue aos menos favorecidos economicamente. Para
isso, o governo deve mapear o acesso no Brasil, identificando onde é mais deficitá-
rio e mais influenciado pela baixa renda, investindo em peso para que essa fatia da
população seja incluída: subsidiando computadores e smartphones, criando e de-
senvolvendo – os já existentes – programas para instalação de redes de internet nos
bairros onde não há, entre outros.
Nas pequenas comunidades nas quais o acesso é mais limitado, principalmente,
o presente filia-se à ideia de que o governo deve criar pontos de acessos públicos
gratuitos. Esse tema, o qual nós abordaremos mais profundamente em tópico espe-
cífico, não é novidade no Brasil e no mundo e tem como escopo fornecer internet
em determinados pontos, de forma gratuita, podendo ser utilizada por qualquer
pessoa, sem distinções.
Conduzindo a discussão para outro lado, não poderíamos deixar de dizer que o
acesso, quando efetivada a estrutura para tal, não pode ser limitado. Depreende-se,
destarte, que não deve haver bloqueio arbitrário ou filtro de conteúdo na internet,
de forma que o acesso pleno seja inviabilizado pelas possíveis restrições. Não obs-

44 CASTELLS, M. A sociedade em rede. Tradução de Roneide Venancio Majer com a colaboração


de Klauss Brandini Gerhardt. São Paulo: Paz e Terra, 2005, v. 1, p. 374.
309
Matheus Junqueira de Almeida Meira
tante, há situações em que o bloqueio pode ser efetivado, obviamente, como nos
casos de pornografia infantil, entre outros45.
Essa é, inclusive, uma questão que está intrinsicamente relacionada aos anseios
políticos dos governantes, caso que deve ser acompanhado de perto pelo judiciário
no Brasil, para que não ocorra bloqueio arbitrário, ainda mais com motivações polí-
ticas de quem detém o poder. Esse controle pode se dar de diversas formas, por
exemplo bloqueando websites que contenham palavras chaves de determinados
assuntos.
A China talvez seja o maior exemplo de controle de informação na internet pelo
governo decorrente de regime político. Nesse caso, por exemplo, websites que con-
tenham palavras-chaves como “democracia” e “direitos humanos” são bloquea-
dos46, de forma cada vez mais inteligente e discreta47, que é um dos pontos que ne-
cessitam de atenção e combate.
Ainda nesse aspecto, existe a restrição “just-in-time”48, que é mais sutil que a
que costumeiramente ocorre na China, por não ser habitual, mas tão danosa quan-
to. Explica-se. A referida restrição pode ocorrer, pelo governo, nas palavras de
Frank La Rue49, para “prevenir e bloquear o acesso ou a disseminação de determi-
nadas informações em momentos-chaves na política, como eleições, tempos de
agitação social, entre outros”.

45 LA RUE, Frank. Report of the Special Rapporteur on the promotion and protection of the right
to freedom of opinion and expression. 2011. Disponível em: https://bit.ly/QD35W5 . Acesso
em: 04 out. 2018.
46 REPORTERS WITHOUT BORDERS. Enemies of the Internet, 2010. Disponível em:
http://en.rsf.org/IMG/pdf/Internet_enemies.pdf. Acesso em: 08 nov. 2018.
47 LA RUE, Frank. Report of the Special Rapporteur on the promotion and protection of the right
to freedom of opinion and expression. 2011. Disponível em: https://bit.ly/QD35W5 . Acesso
em: 04 out. 2018, p. 9.
48 LA RUE, Frank. Report of the Special Rapporteur on the promotion and protection of the right
to freedom of opinion and expression. 2011. Disponível em: https://bit.ly/QD35W5. Acesso
em: 04 out. 2018, p. 9.
49 LA RUE, Frank. Report of the Special Rapporteur on the promotion and protection of the right
to freedom of opinion and expression. 2011. Disponível em: https://bit.ly/QD35W5. Acesso em:
04 out. 2018, p. 9.
310
Acesso à Internet como direito fundamental
Essas restrições são extremamente prejudiciais ao exercício da democracia e ao
pleno acesso que é defendido pelo presente, motivo pelo qual consideramos que
esses filtros e bloqueios devem ser combatidos e evitados. Esse posicionamento vai
de encontro com o disposto no Marco Civil da Internet no Brasil.
Há que se falar, também, nas ações de educação digital, como a obrigatoriedade
do ensino das disciplinas de informática nas escolas. Apesar de haver, no Marco
Civil, previsão de que o Estado deve cumprir o dever constitucional na prestação da
educação incluindo a capacitação, além de outras práticas, para uso consciente e
responsável da internet, a realidade está longe de corresponder com a letra da lei.
Corroborando para esse entendimento, o levantamento feito pela Federação do
Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo atestou que, em
95,6% das 400 escolas paulistas contatadas, não há educação digital no currículo50,
apesar do disposto no Marco Civil.
Essa capacitação digital no currículo das escolas é de suma importância e tem
papel fundamental na educação digital, bem como no combate à exclusão. Isso,
pois além de incluir, pode educar os estudantes no sentido de protegerem os seus
dados, pode explicar as consequências da exposição de dados na internet, além de
conscientizar acerca do ciberbullying e outras questões.
Por fim, começa a surgir a necessidade da discussão acerca da forma pela qual o
governo garantiria as mudanças necessárias, acima abordadas. A verdade é que, em
se considerando o direito ao acesso enquanto fundamental, nossa Constituição
provavelmente trará a norma enquanto sendo programática51, também podendo
ser chamada de “norma de promessa”, tal como são trazidas normas congruentes a
essa. E, assim sendo, há que se falar na intrínseca relação que se criará entre a Ad-
ministração Pública e o Estado de Direito, pela condução das políticas públicas pela
referida norma, objetivando sua efetivação52.

50 ROLLI, Cláudia. Escolas desconhecem lei que determina ensino de educação digital. Folha de
São Paulo, 05 mai. 2015. Disponível em: < https://bit.ly/2V5eCTf >. Acesso em: 11 nov. 2018.
51 Norma programática seria norma que não regula diretamente determinada situação, de forma
que fica a cabo do aplicador da norma decidir como agirá em determinados temas pertinentes ao
assunto do dispositivo legal.
52 GARCIA, Maria. Políticas públicas e normas programáticas: a efetividade da constituição, a
311
Matheus Junqueira de Almeida Meira
Assim, analisaremos o que, para o presente trabalho, seria o principal meio pelo
qual deverá se dar a defesa e garantia do referido direito. Falaremos das políticas
públicas, de que forma elas podem se concretizar e quando o Judiciário deverá agir
para a garantia da execução das referidas políticas públicas.

3.2 Introdução às políticas públicas

Entendida, desse modo, a função primordial do governo, uma primeira defini-


ção de política pública pode ser formulada como sendo o conjunto de princípios,
critérios e linhas de ação que garantem e permitem a gestão do Estado na solução
dos problemas nacionais.
Outra definição de políticas públicas pode ser sintetizada da seguinte maneira:
são as ações empreendidas ou não pelos governos que deveriam estabelecer condi-
ções de equidade no convívio social, tendo por objetivo dar condições para que
todos possam atingir uma melhoria da qualidade de vida compatível com a digni-
dade humana53.
Conforme a transcrita citação, podemos considerar política pública enquanto
sendo um processo pelo qual o governo canaliza as necessidades de mudança obje-
tivando o bem-estar do interesse público. Nesse sentido, as políticas públicas se
diferem das privadas, pois são controladas pelo governo com propósitos públicos e
não particulares. Há, portanto, diferenciação entre matéria privada e a pública, no
sentido de reconhecer que há questões de interesse social e geral que superam inte-
resses particulares, dando lugar aos anseios da sociedade.
De forma geral, as políticas públicas têm como escopo promover o desenvolvi-
mento de algumas dimensões, dentre elas a social, econômica, ambiental, territorial
e político-institucional54. As que mais nos interessam são a social e a político-

administração pública e o Estado de Direito. Revista de Direito Constitucional e Internacional,


v. 76, 2011, p. 101-111.
53 DIAS, Reinaldo; MATOS, Fernanda. Políticas públicas. São Paulo: Atlas, 2015, p. 12.
54 CASTRO, Jorge Abrahão de; OLIVEIRA, Márcio Gimene. Políticas públicas e desenvolvimento.
In: Avaliação de Políticas Públicas. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2014, p. 23.
312
Acesso à Internet como direito fundamental
institucional, pelos motivos que exporemos a seguir.
A primeira, social, tem como objetivo maior a justiça social, se apoiando em du-
as metas, quais sejam a proteção social (se manifestando na seguridade social) e a
promoção social (se manifestando em ações que promovem a igualdade à luz dos
direitos fundamentais e sociais)55. Adiantando, o sentido da promoção social é, em
conjunto com o que trataremos a seguir, o considerado como meio no qual a efeti-
vação da inclusão digital no Brasil se encaixaria, via políticas públicas.
Ademais, a dimensão político-institucional, nas palavras de Castro e Oliveira56,
“envolve a promoção da inserção internacional soberana e o contínuo fortaleci-
mento do Estado e das instituições em um regime democrático que estimule a par-
ticipação e a inclusão social”. Nesse sentido, estando a inclusão digital intimamente
relacionada à consolidação dos valores democráticos, dado o que já discorremos,
entende-se que a classificação das políticas públicas a serem colocadas em prática,
assumindo aqui que esse seria o meio, portanto, para a garantia da inclusão pelo
Estado, seria a político-institucional, bem como a social.
Considerando, então, que as políticas públicas seriam o conglomerado de ações
e metas que visam solucionar problemáticas sociais, pelo governo, considera-se esse
o mecanismo pelo qual o mesmo deve combater a exclusão digital e promover a
inclusão. Ainda, defende-se que, em não havendo efetiva atuação estatal no sentido
de colocar em funcionamento o pretendido pelas referidas políticas, há que se falar
em intervenção (breve trataremos sobre a judicial) para o efetivo funcionamento
das políticas públicas.
Entendemos que o meio para alcance da inclusão seja o estabelecimento de polí-
ticas públicas, pois seria por meio delas que o governo atingiria os fins que motiva-
ram, inclusive, a criação do próprio Estado57, quais sejam a noção de equidade no
convívio social, melhoria na qualidade de vida, entre outros. Decidindo, por meio

55 CASTRO, Jorge Abrahão de; OLIVEIRA, Márcio Gimene. Políticas públicas e desenvolvimento.
In: Avaliação de Políticas Públicas. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2014, p. 23.
56 CASTRO, Jorge Abrahão de; OLIVEIRA, Márcio Gimene. Políticas públicas e desenvolvimento.
In: Avaliação de Políticas Públicas. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2014, p. 23.
57 DIAS, Reinaldo; MATOS, Fernanda. Políticas públicas. São Paulo: Atlas, 2015, p. 12.
313
Matheus Junqueira de Almeida Meira
das políticas públicas o que deve fazer58, o governo deve incluir objetivos que visem
a inclusão digital, a promoção da busca ao acesso universal e medidas que permi-
tam que esses objetivos sejam alcançados, como a delimitação de metas, repasse de
fundos e outras ações.
Não obstante, apesar de considerarmos que as políticas públicas são o caminho
para possibilitar a inclusão digital, entendemos que pode haver dificuldades na
implementação das mesmas. Esses problemas na implementação podem ser defini-
dos de duas formas diferentes, sendo um administrativo-organizacional e o outro
decorrente de conflitos de interesses59. O primeiro depende da delimitação de obje-
tivos e controle dos subordinados e o segundo depende da obtenção de cooperação
dos participantes do processo60.
O que nos importa, no entanto, não é destrinchar ambos, mas sugerir formas de
escape para tais. Assim, passaremos a tratar, a seguir, sobre a possibilidade de inter-
venção do judiciário para efetivação nas políticas públicas quando identificada certa
inércia estatal, em regra causada pelos problemas retro citados.
Essa intervenção judicial seria, na verdade, fruto de uma judicialização: quando
do fomento junto ao Judiciário para resolução de um impasse na efetivação de uma
política pública.

3.3 Da possibilidade de judicialização para efetivação das políticas públicas

Iniciando a discussão acerca da intervenção do Judiciário na efetivação das polí-

58 Utilizando aqui o conceito de políticas públicas de Thomas R. Dye, enquanto sendo o que os
“governos decidem ou não fazer”. (Cf. DYE, Thomas R. Understanding public policy. 6. ed. Es-
tados Unidos da América: Prentice Hall, 1987.)
59 CLINE, Kurt D., apud LIMA, Luciana Leite; D’ASCENZI, Luciano. Estrutura Normativa e
Implementação de Políticas Públicas. In: Avaliação de Políticas Públicas. Porto Alegre: Editora
UFRGS, 2014, p. 52.
60 CLINE, Kurt D., apud LIMA, Luciana Leite; D’ASCENZI, Luciano. Estrutura Normativa e
Implementação de Políticas Públicas. In: Avaliação de Políticas Públicas. Porto Alegre: Editora
UFRGS, 2014, p. 52.
314
Acesso à Internet como direito fundamental
ticas públicas que venham a ser descumpridas (mesmo que parcialmente) pelo go-
verno, reafirmamos o posicionamento de que deve haver intervenção judicial nos
casos de omissão do governo. Contudo, mesmo concordando com a judicialização
quando se fizer necessário, deve ficar claro que isso deve ocorrer exclusivamente
em casos de manifesta omissão, ou mesmo corrupção e atravancamento dos canais
tradicionais61.
Nesse sentido, quando ocorrer uma grave violação ou falta de colaboração dos
outros poderes que justifique a judicialização, o judiciário deve se comprometer a
tomar medidas que julgue necessárias, de forma a tomar decisões coercitivas que
culminem na efetivação do pretendido62. No caso, o pretendido via judicial seria a
efetivação das políticas públicas que têm sido deixadas de lado pelo Estado, acarre-
tando na segregação social que decorre da exclusão digital, ponto que justificaria a
intervenção do aparato judicial para devida correção.
Entendemos também que uma política governamental pode ser considerada in-
constitucional pela sua finalidade, por efeito dos instrumentos escolhidos para sua
efetivação e por sua omissão, como no caso das políticas públicas. Acerca disso e
dos possíveis efeitos de uma decisão judicial que declare a inconstitucionalidade de
política pública, Comparato63:
Tudo isso, quanto à inconstitucionalidade comissiva. Impossível, porém, não
reconhecer que, também em matéria de políticas públicas, pode haver inconstituci-
onalidades por omissão. Em seu art. 182, § 1.º, por exemplo, a Constituição impõe,
a todos os municípios com mais de vinte mil habitantes, a elaboração de um plano
diretor, como "instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão
urbana". Seria uma irrisão se os tribunais tivessem que se quedar inativos diante da
omissão das autoridades municipais em dar cumprimento a essa norma constituci-
onal. E, no entanto, é o que ocorre presentemente em relação a vários municípios

61 SALGADO, José María. El proceso colectivo y la política pública: um sistema em construcción.


Revista Iberoamericana de Derecho Procesal, v. 2, 2015, p. 229-245.
62 SALGADO, José María. El proceso colectivo y la política pública: um sistema em construcción.
Revista Iberoamericana de Derecho Procesal, v. 2, 2015, p. 229-245.
63 COMPARATO, Fábio Konder. Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de políticas públicas.
Revista dos Tribunais, v. 5, 1997, p. 149-166.
315
Matheus Junqueira de Almeida Meira
brasileiros, a começar pelo mais populoso deles.
Mas quais os efeitos jurídicos que decorreriam de uma decisão judicial de in-
constitucionalidade de política pública?
É irrecusável, em primeiro lugar, reconhecer que o juízo de inconstitucionalida-
de atingiria todas as leis e atos normativos executórios, envolvidos no programa de
ação governamental. Não se pode, porém, deixar de admitir que esse efeito invali-
dante há de produzir-se tão só ex nunc, ou seja, com a preservação de todos os atos
ou contratos concluídos antes do trânsito em julgado da decisão, pois de outra sorte
poder-se-ia instituir o caos na Administração Pública e nos negócios privados.
Seria desejável, em segundo lugar, que a demanda judicial de inconstitucionali-
dade de políticas públicas pudesse ter, além do óbvio efeito desconstitutivo (ex
nunc, como assinalado), também uma natureza injuntiva ou mandamental. Assim,
antes mesmo de se realizar em pleno um programa de atividades governamentais
contrário à Constituição, seria de manifesta utilidade pública que ao Judiciário fos-
se reconhecida competência para impedir, preventivamente, a realização dessa polí-
tica.
Assim entendemos, em concordância com o teor da Arguição de Descumpri-
mento de Preceito Fundamental (ADPF) de nº 45, cujo ministro relator foi Celso de
Mello, que a referida ação constitucional (ADPF) pode ser utilizada como instru-
mento para viabilizar a concretização de políticas públicas. Isso, pois se trata de
uma atribuição conferida ao Supremo Tribunal Federal: de tornar efetivos os direi-
tos econômicos, sociais e culturais e, em não fazendo, pode até comprometer a in-
tegridade da própria ordem constitucional, nas palavras de Mello64.
Nesse sentido, quando do reconhecimento do direito ao acesso à internet como
sendo um direito fundamental, constatada a inércia estatal, há que se falar judiciali-
zação para garantia da efetivação das políticas públicas relacionadas à garantia do
acesso. Isso, pois consideramos omissão estatal na efetivação das políticas públicas
como sendo uma modalidade de comportamento inconstitucional do poder públi-

64 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental


45-9. ADPF 45. Relator: Min. Celso de Mello. DJ: 04/05/2004. Disponível em:
https://bit.ly/298rrpX. Acesso em: 01 dez. 2018.
316
Acesso à Internet como direito fundamental
co.
Ainda nesse condão, defendemos que haja a referida atuação do aparato judicial
para o fim almejado (quando instigado judicialmente), qual seja a inclusão digital e
consequente manutenção da ordem democrática. Entendemos, ainda, que essa
atuação é uma obrigação do judiciário, enquanto protetor da Constituição Federal,
motivo pelo qual o mesmo deve ser incisivo em sua atuação no sentido de propor-
cionar, de fato, alternativa para efetivação das políticas públicas que têm sido e po-
dem vir a ser menosprezadas.

3.4 Wi-fi pública nacional como objetivo urgente

Superada a discussão acerca das políticas públicas, podemos considerar que es-
tas são o meio pelo qual buscaremos a inclusão digital. Defendemos, nesse sentido,
que há medidas que devem ser fundamento de políticas públicas com certa urgên-
cia para a efetiva garantia ao acesso. Nesse sentido, apresentamos a proposta de
criação de uma wi-fi pública nacional como sendo uma alternativa viável para
combater, em partes, a problemática da exclusão digital, uma vez que pode ser via-
bilizada de forma imediata, por não ser demasiada complexa. Explica-se.
A ideia de uma wi-fi pública não é novidade no Brasil e no mundo. Contudo,
nem sempre a conexão é gratuita ou independente de relação pré-constituída entre
o fornecedor e o consumidor. Ilustrando, é comum identificar redes de acesso pú-
blico (em shopping centers ou lugares de alto fluxo de pessoas) fornecidas pelas
operadoras de telefonia e internet, onde apenas os seus clientes obtém o acesso me-
diante informação de seus respectivos dados.
Não é esse o conceito que defendemos, mas o de uma wi-fi pública e gratuita,
independente de relação entre fornecedor e consumidor ou qualquer outra amarra.
Esse conceito também não é original, contudo não tem sido discutido a fundo no
Brasil, a nível nacional. Essa ideia, portanto, teria como pressuposto a inclusão digi-
tal nas cidades, principalmente dos usuários de smartphones, já comuns na socie-
dade brasileira65, como forma de proporcionar acesso de qualidade66 para a popula-

65 UOL NOTÍCIAS. Celular é principal meio de acesso à internet no Brasil, aponta IBGE. Dispo-
317
Matheus Junqueira de Almeida Meira
ção em locais de elevado fluxo de pessoas.
A nível mundial há diversos países e cidades estrangeiras que dispõem de wi-fi
pública com acesso gratuito67. Na Índia, por exemplo, o governo – através de parce-
rias com o setor privado – criou os chamados e-kiosks, que são pontos de acesso à
internet gratuitos, sendo instituídos mais de 87.000 pontos68 espalhados pelo país.
Na cidade de Seul, capital da Coreia do Sul, há, aproximadamente, 15 mil pontos
de acesso, sendo o serviço público e gratuito69. Talvez, tenhamos aqui um dos mai-
ores exemplos de disponibilização de wi-fi gratuita pelo governo, via políticas pú-
blicas, exemplo esse que deve ser seguido pelo Brasil. A Coréia do Sul é, talvez em
função do seu engajamento digital, bem como da promoção do acesso, a 3ª coloca-
da no Ranking de Governança Digital da Organização das Nações Unidas (ONU),
enquanto o Brasil ocupa a 44ª posição70.
No Brasil, há programas pontuais acerca do referido tema, geralmente desenvol-
vidos pelos estados ou pelos próprios municípios, mas nada a nível nacional. Nesse
sentido, segundo levantamento feito pela Universidade Federal do ABC71 em 2015,
pouco mais da metade das capitais no Brasil possuem políticas e programas que

nível em: https://bit.ly/2V64gCx . Acesso em: 06 set. 2018.


66 As conexões via wi-fi são, em regra, mais velozes que as por dados móveis, além de que a popu-
lação de baixa-renda, principalmente, se vê à margem dos planos de rede móveis, em regra com
preços elevados.
67 Exemplos: Amsterdam (HOL), Buenos Aires (ARG), Barcelona (ESP), Berlim (ALE), Chicago
(EUA), Lima (PER), Milão (ITA), entre diversas outras. Fonte: UNIVERSIDADE FEDERAL DO
ABC. Wi-fi pública no Brasil e no mundo. Disponível em: https://bit.ly/2Gj11P1. Acesso em: 08
nov. 2018.
68 LA RUE, Frank. Report of the Special Rapporteur on the promotion and protection of the right
to freedom of opinion and expression. 2011. Disponível em: https://bit.ly/QD35W5. Acesso em:
04 out. 2018.
69 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ABC. Wi-fi pública no Brasil e no mundo. Disponível em:
https://bit.ly/2Gj11P1 . Acesso em: 08 nov. 2018, p. 18-19.
70 UNITED NATIONS. UN E-Government Survey 2018. Disponível em: https://bit.ly/2O74SS2 .
Acesso em: 12 nov. 2018.
71 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ABC. Wi-fi pública no Brasil e no mundo. Disponível em:
https://bit.ly/2Gj11P1. Acesso em: 08 nov. 2018, p. 18-19.
318
Acesso à Internet como direito fundamental
viabilizam o acesso público gratuito72. Há algumas cidades referências no assunto,
pelo êxito em alguns pontos dos programas.
Em São Paulo, através do programa “Wi-fi Livre SP”73, há aproximadamente
120 pontos de acesso gratuitos instalados74 por toda a cidade, em praças, parques,
terminais de trens e ônibus e centro culturais. Esse seria, nesse sentido, um exemplo
positivo de alcance bem sucedido se comparado com outras cidades brasileiras,
com a ressalva de que deve haver uma expansão exponencial dos pontos de acesso
para considerarmos o programa como sendo um sucesso a nível internacional. Já
no tocante à velocidade da conexão, Curitiba, Macapá e Manaus são referências,
também a nível nacional, por prover internet no mínimo duas vezes mais rápida
que as demais capitais75, com velocidade mínima de 2 megabytes por usuário. No
entanto, do referido levantamento, depreende-se que, além de não ter alcance naci-
onal, cada um dos programas se mostram deficitários em alguns pontos. Exemplo
disso é a baixa velocidade de conexão de alguns, pequena quantidade de pontos de
acessos de outros, entre outros.
Compreendemos, nesse sentido, que as tutelas municipal e, eventualmente, es-
tadual, não têm sido suficientes para desenvolver os referidos programas e obter o
máximo de suas capacidades contributivas. O patrocínio federal seria, portanto, o
caminho mais factível para o fortalecimento das políticas públicas de wi-fi pública
gratuita.
Nessa perspectiva, o que se defende aqui é que o Estado estabeleça políticas pú-
blicas a fim de desenvolver programas nacionais de acesso à internet em locais pú-
blicos de elevado fluxo de pessoas. Lado outro, é de estimada relevância que, o pro-
grama desenvolvido, se preocupe com uma questão extremamente sensível, os da-

72 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ABC. Wi-fi pública no Brasil e no mundo. Disponível em:


https://bit.ly/2Gj11P1. Acesso em: 08 nov. 2018, p. 24.
73 SÃO PAULO. Prefeitura de São Paulo. Disponível em: https://bit.ly/2CfCda6. Acesso em: 05
nov. 2018.
74 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ABC. Wi-fi pública no Brasil e no mundo. Disponível em:
https://bit.ly/2Gj11P1. Acesso em: 08 nov. 2018, p. 26.
75 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ABC. Wi-fi pública no Brasil e no mundo. Disponível em:
https://bit.ly/2Gj11P1. Acesso em: 08 nov. 2018, p. 31.
319
Matheus Junqueira de Almeida Meira
dos pessoais e sensíveis dos usuários. Nas palavras de Martins76:
Os dados pessoais representam o conjunto de informações concernentes à pessoa fí-
sica ou jurídica ao menos identificável com capacidade de revelar seus caracteres e
conteúdos quanto à personalidade, relações afetivas e familiares, etnia, circunstân-
cias físicas, domicilio (físico e eletrônico), acervo patrimonial, registros telefônicos,
preferências políticas ou religiosas, orientação sexual.
Assim, defendemos que a wi-fi pública seja efetivamente segura, no sentido de
não proporcionar o vazamento de dados, bem como evitando a manipulação dos
usuários pela utilização de cookies e combatendo, portanto, os spams. O sistema
almejado deve proteger sistematicamente a privacidade pessoal, podendo (leia-se
devendo) o direito servir como sistema de promoção e proteção77. Não podemos
esquecer também que a educação digital também contribui para a cibersegurança,
com medidas simples como não acessar dados bancários em redes públicas, ou
fazer compras on-line, daí a importância de fomentar o ensino digital nas escolas,
conforme defendido outrora.
Destarte, a implementação de um sistema nacional de wi-fi pública, que conte
com a colaboração dos estados e municípios, bem como da iniciativa privada, se
apresenta como medida com resultados factíveis em curto prazo. Sabemos que
muitos são os desafios no tocante ao combate à exclusão digital no Brasil, mas en-
tendemos que desenvolver um programa que aloque uma destinação de verba pú-
blica para conectar pessoas em trânsito, principalmente, pode ser uma faísca positi-
va no fomento à inclusão.

Considerações finais

Com base no que abordamos no presente trabalho, podemos depreender que o


direito ao acesso à internet está intrinsecamente ligado a outros direitos fundamen-

76 MARTINS, Fernando Rodrigues. Sociedade da informação e promoção à pessoa, p. 6. Revista de


Direito do Consumidor, São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 96, 2014, p. 225-257.
77 MARTINS, Fernando Rodrigues. Sociedade da informação e promoção à pessoa, p. 6. Revista de
Direito do Consumidor, São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 96, 2014, p. 225-257.
320
Acesso à Internet como direito fundamental
tais, bem como merece status de direito fundamental. Isso, pois o acesso à internet
é fruto de uma mudança social, proporcionada pelo desenvolvimento das TICs.
Considerando, nesse sentido, que o Direito e, por consequência, os direitos funda-
mentais são mutáveis, a inclusão do direito ao acesso à internet no rol dos direitos
fundamentais no Brasil seria fruto de uma atualização normativa e, no caso em tela,
constitucional.
Como sabido, o meio eficiente para concretizar a referida atualização constitu-
cional é o da proposição de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC). No
entanto, por já haver PEC no sentido da inclusão do direito ao acesso no rol dos
direitos fundamentais (185/15), concordamos com seu teor, apoiando o seu trâmi-
te, bem como os desdobramentos de sua aprovação. Não obstante, é visível que a
mera inclusão do direito ao acesso à internet no rol dos direitos fundamentais não
solucionaria a problemática da exclusão digital.
Acerca dessa exclusão, a realidade é de que há, até hoje, um alto número de pes-
soas excluídas digitalmente no Brasil, muito em função de sua baixa-renda. Isso
também é fruto da ineficiência do governo na garantia ao acesso. Podemos afirmar
isso, pois mesmo com os diversos programas existentes, abordados acima, o gover-
no tem tido dificuldade em alavancar a inclusão digital, apesar de ter conseguido
alguns resultados positivos.
Ponto de destaque foi a criação do Marco Civil da Internet, o qual regulamenta
diversas questões relacionadas ao acesso. Todavia, no tocante à garantia ao acesso
tem sido menosprezado, não tendo gerado frutos palpáveis desde o início de sua
vigência, em 2014.
Por conseguinte, a observação das normas acerca da garantia ao acesso, bem
como o incentivo dos programas existentes gerariam uma diminuição na desigual-
dade que decorre da exclusão. Assim, a noção de igualdade na esfera pública entra-
ria em equilíbrio no tocante à desigualdade fruto da exclusão digital.
Aqui, frise-se, talvez tenhamos um dos pontos de maior importância na discus-
são: a necessidade de obter isonomia social pelo acesso, visto que a exclusão digital
é empecilho para a igualdade na esfera pública.
Isso, pois esta esfera é um conglomerado de conteúdo, uma rede de comunica-

321
Matheus Junqueira de Almeida Meira
ção e opiniões78. Assim, importa garantir a inclusão, o acesso, para falarmos em
igualdade, ou aumento desta, estando a internet intrinsecamente ligada ao que a
esfera pública representa, hodiernamente.
Ainda, importante salientar que a garantia universal ao acesso é imprescindível
para a manutenção da democracia. Isso, porque a participação popular é pressupos-
to fundamental da desta. Então, considerando que a participação popular é efetiva-
da não tão somente pelo voto, mas muito também pela internet, a exclusão digital é
um obstáculo considerável para o funcionamento da democracia. Defendemos,
nesse sentido, que a inclusão seja efetivada com o fim de possibilitar uma experiên-
cia real de democracia, com efetiva participação popular.
Ainda, consideramos imprescindível que o governo desenvolva exponencial-
mente o chamado e-government, que são os serviços governamentais prestados on-
line, como forma de facilitar e ampliar a participação social em questões referentes
à saúde, às prestações fáticas do governo e até em tomadas de decisões governa-
mentais, por meio de consultas populares, entre outros.
Com base no abordado, depreende-se que, apesar de haver legislação que incen-
tive o acesso à internet, a efetividade normativa tem sido mínima. Defendemos,
nesse sentido, que há que se falar em elaboração de políticas públicas que visem
efetivar as normas referentes ao acesso (além do Marco Civil, a própria Constitui-
ção), bem como a expansão dos programas já existentes que visam a inclusão digi-
tal.
Defendemos, também, que haja o desenvolvimento de um projeto que tenha
como escopo a criação de uma wi-fi pública nacional. Isso, pois entendemos que
pontos de conexão via wi-fi públicos são de estimada importância, dado que os
usuários de smartphones nem sempre possuem acesso à internet via redes móveis e
que, no dia a dia, a internet é indispensável para serviços como GPS, comunicação
(a exemplo do Whatsapp), entre outros.
O que se defende aqui é a criação de uma rede nacional, onde verbas seriam des-
tinadas e parcerias seriam feitas visando proporcionar o acesso em lugares de fluxo

78 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Tradução de Fabio


Beno Siebneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, v. II, p. 92.
322
Acesso à Internet como direito fundamental
alto de pessoas, a exemplo de estações de ônibus, praças, shopping centers, entre
outros. Vale ressaltar que é importante que o governo proteja os usuários dessas wi-
fi, preservando seus dados pessoais e sensíveis. Acreditamos, nesse condão, que o
meio para o desenvolvimento do referido projeto seria o estabelecimento de políti-
cas públicas que visem a inclusão digital.
Sendo, portanto, as políticas públicas – enquanto decisões e ações estatais79 – o
meio para alavancar a inclusão digital, discutimos no presente capítulo acerca da
efetivação destas políticas públicas, de que forma elas têm que se dar.
Consideramos, assim, que o Estado tem que agir firmemente visando garantir o
acesso. Preliminarmente, ampliando e fortalecendo os projetos já existentes: inves-
tindo e combatendo as óbices que têm impedido um melhor funcionamento destes.
Ainda, consideramos que, em caso de inércia estatal, há que se discutir medidas que
visem garantir a eficiência das políticas públicas.
Necessário, portanto, garantir que, através da judicialização, o Judiciário atue
para a efetivação dessas políticas. Essa atuação é, portanto, meio idôneo para com-
bater a inércia e omissão estatal no tocante à efetivação das políticas públicas. Isso,
pois a não observação estatal das políticas públicas é, antes de mais nada, uma
afronta à Constituição80 e, enquanto protetor desta, o Judiciário (mais comumente
o STF no julgamento de ADPFs, por exemplo) se vê, em nossa opinião, obrigado a
atuar para a manutenção das políticas públicas e bem-estar social.
Finalmente, consideramos que o acesso à internet deve ser considerado um di-
reito fundamental, bem como garantido pelo Estado, aos que ainda não o pleiteiam.
Esperamos, ainda, contribuir ao fomento da discussão acerca do acesso, em que
pese sua estimada importância. Consideramos, ainda, que o Estado brasileiro tem
sido falho em garantir o acesso e que o mesmo deve repaginar sua atuação nesse
quesito.
Isto posto, defendemos que apenas a mudança estrutural proposta não é sufici-

79 DIAS, Reinaldo; MATOS, Fernanda. Políticas públicas. São Paulo: Atlas, 2015, p. 12.
80 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
45-9. ADPF 45. Relator: Min. Celso de Mello. DJ: 04/05/2004. Disponível em:
https://bit.ly/298rrpX. Acesso em: 01 dez. 2018.
323
Matheus Junqueira de Almeida Meira
ente, necessitando, portanto, uma mudança de mentalidade governamental, no
sentindo de reconhecer a importância do acesso enquanto garantidor da noção de
igualdade na sociedade.
Por fim, almejamos que a inclusão se dê de forma nacional e universal, visando
diminuir desigualdades. Almejamos que este se dê de forma plena, sem filtros (se-
jam políticos, econômicos, entre outros), bloqueios e com o principal, que é a infra-
estrutura, garantida pelo governo aos que não possuem meios para efetivá-la. Ain-
da, que a referida inclusão se estenda também aos mais excluídos, quais sejam os
moradores de zonas rurais, bem como os deficientes visuais, auditivos e físicos em
geral. Isso para que tenhamos uma sociedade mais inclusiva, democrática e iguali-
tária.

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ce Monitor, 07/2003.

327
DO USO, TRATAMENTO E DISPONIBILIZAÇÃO
DE DADOS PESSOAIS PARA FINS
PROCESSUAIS: UMA ANÁLISE FRENTE À LEI
GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS

14
Priscila Santana

Introdução

O mundo globalizado e as mudanças tecnológicas trazem novos desafios que an-


tes eram despercebidos. O acesso diário às novas tecnologias, por sua vez, traz no-
vas discussões nos campos da economia e da cultura, e o rápido avanço da tecnolo-
gia resulta em desigualdade social, principalmente para os países subdesenvolvidos,
pois nem todos têm condições financeiras de se manterem atualizados.1
Apesar das desigualdades existentes e das dificuldades que o Brasil enfrenta, em
face dos avanços tecnológicos, o Poder Público vem trabalhando cada vez mais para
aproximar todas as camadas da população através de políticas públicas, notada-
mente na pasta da educação.2 Na medida em que os indivíduos passaram a estar

1 ROCHA, Maria Célia Albino da. A era digital: restrição à liberdade de expressão. In: FAMES.
Santa Maria. 9ª Jornada de Pesquisa e 8ªJornada em Extensão do Curso de Direito, Mai. 2016.
Disponível em: https://bit.ly/2DgL23i. Acesso em: 13 dez. 2018.
2 O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) é uma agência de
fomento à pesquisa vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). O CNPq
tem uma série de programas de bolsas para alunos do Ensino Médio, graduação, pós-graduação
329
Priscila Santana
mais conectados, havendo maior inclusão digital, a população passou a usar mais os
meios tecnológicos para os mais diversos atos; a utilização de qualquer tecnologia,
por sua vez, exige alguns cuidados que a população, de modo geral, deixa de obser-
var – muitas vezes por desconhecimento ou despreparo –, o que faz com que a edu-
cação digital seja fundamental para lidar com todos estes avanços.
Outro ponto fundamental que requer uma atenção especial é o aspecto relacio-
nado aos cuidados com os dados pessoais, pois, em uma sociedade movida pela
tecnologia, tudo se revolve à coleta e à aplicação de dados para os mais diversos fins
– o que impõe uma releitura dos caminhos pelos quais se pode zelar pelo direito
fundamental à privacidade.
Há muitas armadilhas no meio digital.
A exigência de informações, normalmente colhidas em cadastros que parecem
ser inofensivos, refletem enorme risco para os usuários que disponibilizam os da-
dos pessoais sem saber ao certo para qual finalidade eles serão utilizados.
Seria ideal que todo usuário-internauta, ao se deparar com formulários de coleta
de dados pessoais, se atentasse para os termos de uso e para a política de privacida-
de da plataforma, mas o que se observa é a inadvertida (embora comum) prática –
geralmente fruto da pressa – de simplesmente se fazer o scroll down da página e,
com um breve clique, conceder o consentimento àquela operação.
É primordial cuidar de cada local em que há este tipo de exigência e, consequen-
temente, ter grande atenção em qualquer situação de disponibilização de informa-
ções pessoais. Isso porque a forma como estas são compartilhadas, visto que podem
ser utilizadas de forma positiva ou negativa, a dependendo da intenção do agente,
gera reflexos e risco de danos de toda ordem.
A Internet faz parte de um ‘mundo novo’ para muitas pessoas, e há muito a ser
feito para se preparar para o tratamento e armazenamento dessas informações. Daí
a importância de se abordar a consulta de dados pessoais pelo Poder Público, à luz
da nova Lei Geral de Proteção de Dados, visto que há formas de disponibilização
das informações que não ferem os preceitos fundamentais do ser humano, coope-

e pesquisadores, tanto no Brasil como no Exterior. Disponível em: http://www.cnpq.br/. Acesso


em 13 dez. 2018.
330
Do uso, tratamento e disponibilização de dados pessoais...
rando, também, com as ações particulares.
Com base nisso, o presente estudo se propõe a revisitar as operações de uso, tra-
tamento e disponibilização de dados pessoais no que diz respeito aos fins processu-
ais, especialmente a consulta de endereços para a viabilização de determinadas
ações judiciais à luz do princípio da cooperação e dentro dos limites de atuação
estatal, especialmente no exercício da função judiciária, com os reflexos de sistemas
como BACENJUD, RENAJUD, SIEL, COPEL, INFOJUD e INFOSEG, que conferem ao ma-
gistrado amplo acesso a dados – especialmente para fins de captura patrimonial em
processos de execução ou cumprimento de sentença.
A análise será pautada no método indutivo, com aportes doutrinários para fins
de contextualização. Após discorrer sobre conceitos e premissas que orbitam a pro-
blemática posta, serão tecidas algumas derradeiras considerações que, sem ter a
pretensão de esgotar o tema, servirão para instigar o debate.

1 Breves notas sobre a tutela dos dados pessoais

Em diversos momentos, os usuários se deparam com exigências de que dados


pessoais sejam fornecidos, na Internet, em aplicativos de smartphones ou em sites,
ou, ainda, fora do mundo virtual, em matrículas de cursos, convênios médicos,
estabelecimentos de varejo, entre outros, a fim de aumentar o número de informa-
ções dos indivíduos nos servidores corporativos de bancos de dados para o acesso
futuro a esses registros.
Antes da Internet, essas informações não eram tratadas com tanto zelo, ou não
se tinha tanta preocupação com isso, pois o acesso a essas informações era dificul-
toso e restrito, bastando uma breve reflexão quanto à dificuldade de se adentrar em
uma sala de registros físicos, composta de arquivos de ferro e de muitas pastas e
acervos gigantescos de papel.
Ocorre que essa realidade mudou e, hoje, todo o acervo de dados que antes ocu-
pava inúmeros metros cúbicos de papel em caixas de arquivo pode ser armazenado
em alguns poucos megabytes de um dispositivo USB ou em um hard disk de um
servidor qualquer. Mas, antes de qualquer reflexão, é necessário entender o que são
dados, e, a esse respeito, transcreve-se a lição de Valdemar W. Setzer:
331
Priscila Santana
Definimos dado como uma sequência de símbolos quantificados ou quantificáveis.
Portanto, um texto é um dado. De fato, as letras são símbolos quantificados, já que o
alfabeto por si só constitui uma base numérica. Também são dados imagens, sons e
animação, pois todos podem ser quantificados a ponto de alguém que entra em con-
tato com eles ter eventualmente dificuldade de distinguir a sua reprodução, a partir
da representação quantificada, com o original. É muito importante notar-se que
qualquer texto constitui um dado ou uma sequência de dados, mesmo que ele seja
ininteligível para o leitor. Isso ficará mais claro no próximo item.3
Liliana Minardi Paesani ainda comenta que todas as mensagens públicas e pri-
vadas, verbais ou visuais, a partir da década de 1960, começaram a ser consideradas
dados, pois essas informações poderiam ser transmitidas, coletadas e registradas,
independente da sua origem.4
Resumindo, dados são todas e quaisquer informações coletadas, sejam elas pes-
soais ou não. Deve-se ter atenção, contudo, à classificação de dados, pois há vários
situações em que a coleta ocorre.
A Lei Geral de Proteção de Dados, que será tratada no tópico a seguir, traz três
tipos de classificação para os dados, quais sejam: os pessoais5, que identificam o
usuário, como o nome; os anonimizados6, que, por sua vez, são informações (su-
postamente) não identificáveis, ou seja, é mais difícil reconhecer o usuário; e, por
fim, os merecedores de maiores cuidados, os dados sensíveis7, que, como o próprio
nome demonstra, são informações mais delicadas, como aquelas relacionadas a
gênero, raça/etnia, religião, ideologia política ou filosófica, entre outros.
É possível verificar que, dentre os mencionados tipos, os dados sensíveis são os
que merecem maior atenção, visto que se tratam do tipo mais frágil, podendo in-
correr nos mais diversos tratamentos, sejam eles benéficos em certas situações, o

3 SETZER, Valdemar W. Dado, informação, conhecimento e competência. Data Grama Zero -


Revista de Ciência da Informação, - n. zero, dez. 1999.
4 PAESANI, Liliana Minardi. Direito e Internet: liberdade de informação, privacidade e respon-
sabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2013, p. 31.
5 Lei nº 13.709, art.5º, I.
6 Lei nº 13.709, art.5º, III.
7 Lei nº 13.709, art. 5º, II.
332
Do uso, tratamento e disponibilização de dados pessoais...
muito prejudiciais noutras:
A própria seleção de quais seriam estes dados considerados sensíveis provem da va-
loração de que a circulação de determinadas espécies de informação apresentariam
um elevado potencial lesivo aos seus titulares, em uma determinada configuração
social.8
A LGPD protege todos os tipos de dados, exceto os anonimizados (art. 12, ca-
put), pois não são só os dados sensíveis que poderão ser utilizados para prejudicar o
indivíduo, tendo em vista que informações como o nome ou CPF – hoje facilmente
localizáveis na Internet – podem ser utilizadas para as mais diversas finalidades,
como para aquisição de bens e produtos.

2 Legislação pertinente

A Constituição Federal9, apesar de não mencionar diretamente a temática da


proteção de dados, protege direitos fundamentais como a igualdade, a dignidade, a
segurança, a honra, a liberdade, a informação e a propriedade, direitos estes previs-
tos no rol dos direitos e garantias individuais de seu artigo 5º e respectivos incisos.
Ainda, a Carta Magna traz a proteção específica da proibição do acesso ao domi-
cílio, ou seja, sua inviolabilidade,10 e a violação de correspondência11, sendo que tais
dispositivos podem ser aplicados à proteção de dados pessoais, por se enquadrarem
na classificação dos dados pessoais (sensíveis ou não).
Apesar da criação de uma legislação específica para o tratamento dessas infor-
mações, o ordenamento jurídico brasileiro já traz mecanismos de proteção dos
dados pessoais:

8 DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006,
p. 161.
9 BRASIL. Constituição da República (1988). Brasília. 2018. Disponível em: <
https://bit.ly/1dFiRrW >. Acesso em: 11 dez. 2018.
10 Art. 5º, XI.
11 Art. 5º, XII.
333
Priscila Santana
(...) para atuação da proteção de dados no ordenamento brasileiro são a ação de ha-
beas data, introduzida pela Constituição de 1988 e regulamentada pela Lei 9.507/97,
e os preceitos sobre a proteção de dados pessoais em relações de consumo, determi-
nadas pelo Código de Defesa do Consumidor em seus artigos 43 e 44.12
O habeas data, como citado, tem a finalidade de garantir o acesso a informações
de caráter personalíssimo arquivadas por terceiros, enquanto ações de responsabi-
lidade civil são os meios adequados para que haja a reparação por violação à inti-
midade no que diz respeito ao mau uso de dados pessoais.
Há, ainda, amparo do Código de Defesa do Consumidor, do Código Civil, sem
contar os inúmeros projetos de lei e outros dispositivos legais espargidos no orde-
namento jurídico13 e que podem ser utilizados para a proteção destas informações.
Nesse sentido, muito se discutiu sobre a falta de legislação específica sobre o te-
ma:
Sem a presença de uma tutela significativa em relação ao conjunto de informações
recolhidas a nosso respeito pelas inovações tecnológicas dos sistemas inteligentes,
torna difícil preservar a privacidade e a dignidade sem reduzi-las a mercadorias.
Como consequência, sente-se a necessidade de eliminar a ingerência de elementos
externos na esfera privada das pessoas.14
O problema surge com o conflito de interesses, visto que a justificativa maior
para a coleta dessas informações se baseia na segurança dos demais. Entretanto,
vale refletir se os interesses individuais devem prevalecer em detrimento dos inte-
resses coletivos.
Há um princípio de regência da Administração Pública, que disciplina o interes-
se público e sua prevalência sobre o direito privado.15 A despeito das críticas que a

12 DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006,
p. 326.
13 SOUZA, Dayane Caroline de. GDPR: Lei europeia de proteção de dados e seus impactos no
Brasil. jul. 2018. Disponível em: < https://bit.ly/2tx5wji > Acesso em 20 dez. 2018.
14 PAESANI, Liliana Minardi. Direito e Internet: liberdade de informação, privacidade e respon-
sabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2013, p. 31.
15 HACHEM, Daniel Wunder. Princípio constitucional da supremacia do interesse público. Belo
Horizonte: Fórum, 2011, p. 426.
334
Do uso, tratamento e disponibilização de dados pessoais...
doutrina faz a essa preponderância, isso não significa dizer que, necessariamente,
deve-se disponibilizar todas as informações requeridas para as atividades do cotidi-
ano; pelo contrário, isso quer dizer que é necessário ter ainda maiores cuidados
com os dados que serão disponibilizados:
O que terá mais força em uma discussão judicial, a informação por geolocalização,
hoje muito mais comum e acessível, já que quase todo aplicativo que se instala em
um celular consegue embarcar este dado como um atributo simultâneo à manifesta-
ção de vontade, como ocorre quando se usa um serviço como, por exemplo, o do
"Easy Taxi" ou o local escrito no documento? Qual dos dois traz mais garantia de
veracidade do ponto de vista técnico e deveria então prevalecer na análise jurídica
da relação?16
Segundo Danilo Doneda, “(...) a facilidade com que podem cada vez mais ser
obtidas informações pessoais lança, porém, uma sombra sobre a privacidade, capaz
de gerar, como potencial consequência, a diminuição da esfera de liberdade do ser
humano”.17
O Código Civil18 normatizou e deixou claro que tais direitos da personalidade
são imutáveis, irrenunciáveis e inalienáveis, não havendo quaisquer dúvidas acerca
da necessidade da segurança pessoal das informações.
Ainda, deve-se lembrar do texto contido no artigo 21 do citado código, que
menciona: “a vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento
do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato
contrário a esta norma.”
É possível observar que o Estado não está omisso a essas mudanças: “Em uma
retrospectiva legislativa, podemos destacar as diversas mudanças ocorridas no Po-
der Judiciário, na expectativa de informatização judicial, consistindo em mais um

16 PINHEIRO, Patrícia Peck. Contratos digitais ou eletrônicos: apenas um meio ou uma nova
modalidade contratual. v. 966/2016. São Paulo: Thomson Reuters, 2016. Disponível na Revista
dos Tribunais Online Essencial: < https://bit.ly/2GuQj9s >. Acesso em: 13 dez. 2018.
17 DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006,
p. 118-119.
18 BRASIL. Código Civil (2002). Brasília. 2018. Disponível em: https://bit.ly/1drzx5j . Acesso em:
13 dez. 2018.
335
Priscila Santana
elo da sociedade, com um judiciário digital.”19
Contudo, é sabido que os avanços tecnológicos são mais rápidos que o nosso le-
gislativo, e o fato de vivermos na sociedade da informação não deveria ser um im-
peditivo para aqueles que não concordam com a divulgação de suas informações,
devendo o Estado facilitar o acesso aos mecanismos de proteção à privacidade e à
retirada de conteúdos.
Até porque, o fato de a sociedade necessitar de dados pessoais para “sensos” e
melhores posicionamentos políticos e estatais, não pode fazer reféns ao direito à
liberdade de informação, prejudicando, assim, o direito à privacidade.
Com efeito: “Toda liberdade, por mais ampla que seja, encontra limites, que ser-
vem para garantir o desenvolvimento ordenado da sociedade e dos direitos funda-
mentais de qualquer sujeito, e este princípio se aplica também ao direito à liberdade
de informação.”20
Há quem diga que o “big brother” vivido nos dias atuais deixa as pessoas impos-
sibilitadas de exercer seu direito à privacidade. Contudo, no Direito, não é apropri-
ado ter um olhar positivo da legislação, devendo-se compreender o contexto, e a
coleta de informações feita pelo Estado, por certo, poderia estar disponível para o
auxílio da própria população.

3 Legislação especial de proteção de dados

As legislações gerais citadas no tópico anterior foram complementadas com o


advento do Marco Civil da Internet21, que entrou em vigor em 2015 e passou a dar
maior segurança jurídica para os usuários da Internet. Ainda há pouco, em agosto
de 2018, foi promulgada a Lei Geral de Proteção de Dados, após dois anos de trâmi-

19 FEITOSA, Andréia Rocha (Coord.). Direito digital e a modernização do Judiciário. São Paulo:
LTr, 2015, p. 22.
20 PAESANI, Liliana Minardi. Direito e Internet: liberdade de informação, privacidade e respon-
sabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2013, p. 31.
21 BRASIL. Marco Civil da Internet. (2014). Brasília. 2018. Disponível em: https://bit.ly/2NH4yIF
Acesso em: 27 dez. 2018.
336
Do uso, tratamento e disponibilização de dados pessoais...
te. Esta lei entrará em vigor em agosto de 2020, e passará a dar maior proteção ao
tratamento de dados pessoais.
Em análise à nova lei, verifica-se que a mesma está pautada na garantia da priva-
cidade dos dados pessoais e em conferir maior controle sobre eles. A lei é voltada às
informações das pessoas físicas; sobre isso, Danilo Doneda descreve o “mecanismo
pelo qual se pode caracterizar uma determinada informação como pessoal: o fato de
estar vinculada a uma pessoa, revelando algum aspecto objetivo desta.” 22
Apesar de não ser uma definição tão clara, dando abertura a várias interpreta-
ções, é difícil de obter explicação mais aprofundada até o momento. Por essa razão
é que se deve aguardar a entrada em vigor e a aplicação efetiva da LGPD para que
possa extrair a casuística necessária quanto à sua completa extensão.
Além da proteção e do controle, ela cria regras sobre o processo de coleta, ar-
mazenamento e compartilhamento das informações e tem aplicação extraterritori-
al, ou seja, todas as empresas que tiverem negócios no país, mesmo quando sedia-
das no exterior, devem se adequar a ela.
A lei foi pautada no Regulamento Europeu (GDPR)23, que entrou em efeito me-
ses antes, exigindo que as empresas se movimentassem e se atentassem mais às
políticas de privacidade, a fim de evitar as severas punições impostas, visto que
também tem abrangência extraterritorial, sendo refletida em nosso país. Esta nor-
ma, que vem sendo discutida desde 201224, tendo, entretanto, entrado em vigor
somente no último ano, visa padronizar as regras para a proteção de dados e identi-
ficação de pessoas naturais que permanecem na União Europeia.
Já no âmbito nacional, além de exigir uma mudança de cultura das empresas e
também dos usuários, a LGPD trouxe exigências quanto à necessidade do consen-
timento explícito do usuário para o arquivamento dessas informações. Ademais, os

22 DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006,
p. 157.
23 General Data Protection Regulation, ou, por tradução livre, Regulamento Geral de Proteção de
Dados.
24 SOUZA, Dayane Caroline de. GDPR: Lei europeia de proteção de dados e seus impactos no
Brasil. jul. 2018. Disponível em: < https://bit.ly/2tx5wji > Acesso em 20 dez. 2018.
337
Priscila Santana
dados infantis ganharam aporte especial, pois os dados relacionados a crianças e
adolescentes – por sua incapacidade civil –, para coleta, devem receber o consenti-
mento dos pais ou responsáveis, entre outras novidades.
Segundo a lei, essas informações só poderão ser coletadas mediante consenti-
mento do titular, de forma clara e para finalidades específicas:
Além disso, a LGPD, de maneira análoga ao GDPR, traz a definição e cria regras es-
pecíficas para o tratamento de dados sensíveis (relativos à origem racial, étnica, opi-
niões políticas, vida sexual e outros), que somente pode ser realizado mediante o
consentimento do titular, de forma específica e destacada, para finalidades específi-
cas, assim como define regras específicas para o tratamento de dados de crianças e
adolescentes, que dependerá do consentimento dos pais ou responsáveis. 25
Há, no entanto, exceções previstas em lei26, como os casos de coleta por pessoas
naturais para fins particulares e não econômicos27 e os previstos no artigo 4º, inci-
sos I e II, que menciona fins jornalístico, artístico ou acadêmico, de segurança pú-
blica, defesa nacional, segurança do Estado ou atividades de investigação e repres-
são de infrações penais ou dados em trânsito, ou seja, aqueles que não serão trata-
dos internamente.
Contudo, algumas empresas que utilizam os dados para serviços de aplicação na
rede e que dependem quase que exclusivamente da monetização de dados dos seus
usuários, precisarão – se já não o fizeram – adequar a forma de registro e os termos
de privacidade, a fim de que estejam de acordo com a nova lei: “A coleta de regis-
tros eletrônicos é necessária tanto à manutenção da plataforma de negócios que faz
a Internet prosperar, quanto para a solução de ilícitos, levando em consideração o
atual estágio da metodologia de investigações.”28

25 BENTO, Beatrice Helena Silveira. A nova lei de proteção de dados no Brasil e o General Data
Protection Regulation da União Europeia. 23 out. 2018. Disponível em: < https://bit.ly/2Rd0stE
>. Acesso em: 20 dez. 2018.
26 SOMADOSSI, Henrique. O que muda com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Disponí-
vel em: < https://bit.ly/2xFcLYw > Acesso em: 27 dez. 2018.
27 Lei nº 13.709, art. 4º, I.
28 MASSO, Fabiano Dolencdel; ABRUSIO; Juliana, FLORÊNCIO FILHO; e Marco Aurelio (Co-
ord.). Marco Civil da Internet: Lei 12.965/2014. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 142.
338
Do uso, tratamento e disponibilização de dados pessoais...
Há vários casos que se pode citar sobre escândalos envolvendo registros de da-
dos. O mais recente e noticiado foi o vazamento de informações dos hotéis Marri-
ott29, o qual levou o MPDFT a abrir investigação, no início de dezembro de 2018.
Segundo o referido órgão, este foi um dos maiores vazamentos do mundo.
Este e outros casos levam a uma reflexão sobre quais seriam as consequências
caso haja vazamento de dados. Esta previsão vem estabelecida no artigo 42 da Lei
em questão, caracterizando a responsabilidade como solidária entre os agentes de
tratamento. Estes agentes de tratamento podem ser classificados em operador e
controlador dos dados, ou seja, aquele que armazena e o que utiliza as informações:
Estes danos podem ser, em relação aos sujeitos que sofrem a lesão, individuais ou
coletivos, e no que tange à natureza da lesão, materiais e/ou morais. O direito à in-
denização, bem como a possibilidade de comutatividade de danos materiais e mo-
rais, decorre de previsão expressa do art. 6º, inciso VI, do CDC (...).30
Ressalta-se, ainda, que existia o projeto de criação da chamada Agência Nacional
de Proteção de Dados (ANPD), o qual, todavia, foi vetado pelo presidente, embora
posteriormente, pela Medida Provisória nº 869/2018, tenha havido a sua criação.
Seu propósito seria evitar a intervenção pelo saturado judiciário, retirando deste o
encargo de controle e supervisão da nova lei:
(...) os agentes de tratamento de dados terão a obrigação de adotar medidas para
prevenir o acesso não autorizado aos dados coletados, bem como de informar situa-
ções acidentais ou ilícitas de destruição, perda ou difusão não autorizada dos dados
coletados. A LGPD determina a comunicação dos casos de incidentes de segurança à
autoridade nacional e ao titular em prazo razoável, ao passo que o GDPR prevê o
prazo de até 72 horas após o conhecimento do fato.31
Em nosso ordenamento, além das possíveis ações previstas, há a necessidade de

29 GOMES, H. S. MP abre investigação do vazamento de dados de 500 milhões da rede Marriott.


UOL. https://bit.ly/2DhjI4Q. Acesso em: 27 dez. 2018.
30 NERY JUNIOR, Nelson. Publicidade e direito. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2010, p. 281.
31 BENTO, Beatrice Helena Silveira. A nova lei de proteção de dados no Brasil e o General Data
Protection Regulation da União Europeia. 23 out. 2018. Disponível em: https://bit.ly/2Rd0stE.
Acesso em: 20 dez. 2018.
339
Priscila Santana
informação ao usuário acerca dos problemas ocorridos com seus dados, com a fina-
lidade de que este tome as providências que entender necessárias: “A busca pela
justiça deve estar comprometida com as mais variadas formas de democratização
de seu acesso. Ou seja, todas as pessoas, independentemente de suas condições, têm
o direito de buscar o Judiciário e ter uma resposta ao seu pleito.”32
O artigo 42, da lei mencionada norma dita as responsabilidades, enquanto o ar-
tigo seguinte elenca as causas excludentes, descrevendo que haverá isenção nas
possibilidades que houver comprovação de que não realizaram o tratamento de
dados pessoais que lhes é atribuído; que, embora tenham realizado o tratamento de
dados pessoais que lhes é atribuído, não houve violação à legislação de proteção de
dados; ou que o dano é decorrente de culpa exclusiva do titular dos dados ou de
terceiro.33
Essas aplicações não são voltadas somente às empresas brasileiras, assim como a
lei europeia (GDPR), mas também terão aplicação extraterritorial e alcançarão,
portanto, além dos limites geográficos do país. Isto porque qualquer empresa que
tenha filial local ou ofereça serviços no mercado brasileiro, coletando dados de pes-
soas localizadas no país, estará sujeita à aplicação da mesma.
Ainda, a LGPD terá aplicação transversal, multissetorial, envolvendo todos os
setores da economia, tanto no âmbito público quanto no privado, online e offline.
Com poucas exceções, toda e qualquer prática que se valer do uso de dados pessoais
estará sujeita à lei. Resta, portanto, evidente que esta lei foi criada com a finalidade
de estimular e promover o desenvolvimento tecnológico na sociedade e a própria
defesa do consumidor. Contudo, o presente artigo passará a tratar especificamente
da parte final do artigo 4º, inciso III, e os parágrafos 1 a 3.

4 Auxilio do Estado na consulta de endereços

Mas qual é a relação dos dados com esses direitos? As organizações têm exigido,

32 DUARTE, Antônio Aurelio Abi Ramia. Os princípios no projeto do Código de Processo Civil:
visão panorâmica. 2013. Disponível em: < https://bit.ly/2GuQz8q > Acesso em 13 dez. 2018.
33 Lei nº 13.709, art. 43.
340
Do uso, tratamento e disponibilização de dados pessoais...
cada vez mais, que sejam fornecidos dados para cadastros dos mais diversos tipos,
sejam eles para o simples download de um livro, para acessar um aplicativo de mo-
bilidade ou para consultar o extrato bancário.
A utilização dos dados no auxílio da população abarca várias discussões, como a
necessidade do fornecimento do CPF nas mais diversas compras, ora qual a neces-
sidade do armazenamento dessas informações. O Serasa,34 informa que se trata de
uma medida de controle dos governos estaduais na tributação e combate à sonega-
ção. Ainda, alguns estados fornecem descontos e benefícios aos usuários desta mo-
dalidade.
Com essa e outras medidas, é possível observar que o Estado vem adotando mo-
delos para realizar o controle das empresas, contudo, muitas dessas informações
são detidas para si.
Através de uma reflexão mais aprofundada no sentido de que o Estado tem mai-
or poder para a utilização das informações pessoais da população, isto leva a crer
que ele também tem maior estrutura de proteção.
Um dos maiores mitos discutidos nos dias atuais é que a centralização de infor-
mações por um grande banco de dados seria uma ameaça à privacidade.35 Um
exemplo deste tipo de centralização é o cadastro único da pessoa física, que visa
agrupar as informações e números de cadastros públicos para identificação do indi-
víduo. Acredita-se que esta inovação facilitaria o dia-a-dia da sociedade como um
todo, porém não saiu do papel, até o momento, justamente pela dificuldade das
pessoas de aceitarem que o Estado está apto a proteger essas informações.
Essa abrangência da lei e o controle sobre as informações poderiam ser utiliza-
dos para auxiliar na busca de endereços de réus não localizados, já que tal situação
torna o processo moroso e muitas vezes sem sucesso.
Essa consulta é amparada pelo artigo 319, §1º, do Código de Processo Civil, in-
formando que poderá a parte, em caso de dificuldade ou falta de informações do

34 SERASA. CPF na nota fiscal: confira os benefícios para você. Disponível em: <
https://bit.ly/2Ipl1CT >. Acesso em: 22 jan. 2019.
35 DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006,
p. 11.
341
Priscila Santana
réu, solicitar ao juiz auxílio nas diligências de localização.
Ainda, segundo o §2º do artigo 4º da LGPD36, a utilização das informações deti-
das pelo Estado só poderá se dar pelos particulares quando houver auxílio de pessoa
jurídica de direito público. Infelizmente, o princípio da cooperação37 é esquecido
por alguns magistrados, ainda que sirva para que os sujeitos do processo contribu-
am para o rápido andamento dos autos, agilizando os atos processuais.
Em recente decisão interlocutória, proferida pela Exma. Juiza da Comarca de
São João Batista/SC, nos autos nº 0300419-82.2018.8.24.0062, foi possível verificar
essa dificuldade de o magistrado reconhecer a necessidade da realização da consul-
ta:
Postula a parte autora a localização do endereço da parte ré por meio dos sistemas
Siel, Infoseg, Infojud, Serasajud, Bacenjud. INDEFIRO o pedido de fls. 53/55, vez
que (sic) cabe à parte demandante diligenciar no sentido de localizar a parte deman-
dada38.
Contudo, os tribunais têm entendimento em sentido contrário, sendo frequen-
tes as reformas de decisões proferidas em primeira instância, a fim de reconhecer
que o próprio Judiciário, devido ao acesso que têm aos referidos sistemas, auxilie na
realização das consultas de endereços, como se pode ver na decisão abaixo, do
Agravo de Instrumento nº 10344150083790001/MG, julgado em 20/11/2018, de
Relatoria do Desembargador Mota e Silva:
EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO DE EXECUÇÃO – PESQUI-
SA DE ENDEREÇOS – SISTEMAS BACENJUD, RENAJUD, INFOSEG, E INFO-
JUD – POSSIBILIDADE – RECURSO PROVISO.
Os sistemas BACENJUD, RENAJUD, INFOSEG, E INFOJUD constituem impor-

36 § 2º O tratamento dos dados a que se refere o inciso III do caput por pessoa jurídica de direito
privado só será admitido em procedimentos sob a tutela de pessoa jurídica de direito público,
hipótese na qual será observada a limitação de que trata o § 3º.
37 Art. 6o. Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo
razoável, decisão de mérito justa e efetiva.
38 TJSC, Ação de Busca e Apreensão e Alienação Fiduciária nº 0300419-82.2018.8.24.0062, 06 jun.
2018, Juiza Alessandra Mayra da Silva de Oliveira.
342
Do uso, tratamento e disponibilização de dados pessoais...
tantes instrumentos consagrados pelo ordenamento pátrio e disponibilizados aos
magistrados, para que se empreenda efetividade na prestação jurisdicional, ressal-
tando-se que tal medida não fere qualquer direito constitucionalmente assegurado
ao devedor/executado, não há razões que impeçam a sua utilização. 39
No Senado Federal há um Projeto de Lei (PLS) de nº 21/2018, pronto para ser
analisado, com a finalidade de alterar a legislação processual para compelir o Judi-
ciário a localizar o réu em processos cíveis, quando o endereço for desconhecido40,
ou seja, o debate acerca da utilização, pelas empresas privadas, das informações
coletadas pelos órgãos públicos já vem ocorrendo até mesmo no Legislativo.
O enfrentamento de dificuldades na localização dos indivíduos ocorre diaria-
mente e não há justificativa plausível para a ausência de auxílio na busca dessas
informações – notadamente em face do princípio da cooperação. Há, na legislação,
pauta que auxilia nesta busca, bastando que o Estado se organize de forma eficiente
para que se tenha o retorno efetivo das informações, pois, segundo explicado ante-
riormente, o interesse da população deve preponderar.
Hoje, quando deferidos os pedidos de consultas de endereços, já se utilizam os
sistemas BACENJUD, RENAJUD, SIEL, COPEL, INFOJUD, INFOSEG. Contudo, nem sem-
pre essas pesquisas são realizadas de forma célere e eficiente, pois, como não há
centralização de informações, os registros não são atualizados instantaneamente.
Se houvesse um sistema centralizador de informações pessoais do Estado, este
serviria não só para a busca de endereços para fins processuais, como também para
auxílio aos serviços administrativos e para a diminuição do risco de fraudes e ca-
dastros displicentes. Este cadastro único auxiliaria a todos e seus registros poderiam
ser alterados de forma automática, não exigindo, por vezes, que o usuário detenha
seu tempo na atualização de endereços.
Essas mudanças, por sua vez, devem ser vistas pelo Estado e por toda a socieda-
de como avanços positivos, pois o desenvolvimento tecnológico apenas contribui,
quando combinado com outras mudanças estruturais, ou seja, as discussões e ino-

39 TJMG, AI10344150083790001 MG, 20/11/2018, Relator: Mota e Silva.


40 BRASIL. Senado Federal. Projeto simplifica convocação de réu com endereço desconhecido.
Disponível em: https://bit.ly/2UI31dr. Acesso em 25 dez. 2018.
343
Priscila Santana
vações só poderão ser abarcadas pelo Poder Público quando houver estrutura para
tanto; contudo, como demonstrado, não basta apenas que o Legislativo e o Judiciá-
rio se movam em benefício dessas mudanças – a estrutura estatal deverá estar pre-
parada. Por fim, Pekka Himanen cita:
A primeira fase da sociedade da informação focou-se no desenvolvimento da tecno-
logia, como as conexões de rede. Na segunda fase, que começou agora, o desenvol-
vimento tecnológico continuará, contudo, o enfoque deslocar-se-á para assuntos so-
ciais mais abrangentes e será dada especial ênfase à mudança da forma como traba-
lhamos. 41
Nesta espreita, deve-se acompanhar e exigir da forma mais fundamentada pos-
sível que a solução de litígios ocorra de forma condizente com o que a tecnologia
tem a oferecer – impondo-se ao Estado o dever de esmero no desempenho de suas
funções –, inclusive quando ao labor do Judiciário na utilização de dados, especial-
mente nestes em que se almeja soluções mais rápidas e justas.

Conclusão

O que se conclui é que o Legislativo está atento às mudanças que vem ocorren-
do, e não está deixando para depois as adequações necessárias para a inclusão da
tecnologia no labor jurisdicional. Isso porque a nova Lei Geral de Proteção de Da-
dos, em complementação ao Marco Civil, tem a finalidade de trazer mais segurança
jurídica à temática da proteção de dados, bem como trazer meios mais efetivos e
seguros no armazenamento e tratamento destes.
É claro, que há muito a ser trabalhado e discutido, mas, como mencionado du-
rante o artigo, não se pode ter uma visão positiva do direito, pois, apesar de tratar-
mos com o meio tecnológico, que é exato e lógico, as interações humanas, indepen-
dente do meio, não devem se realizar sem olhares atentos à casuística – viés neces-
sário para que se crie parâmetros para o julgamento de cada situação.

41 HIMANEN, Pekka. Desafios Globais da Sociedade de Informação. In: CASTELLS, Manuel.


CARDOSO, Gustavo. (Org.). A sociedade em rede: do conhecimento à acção política. Brasília:
Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2005, p. 350.
344
Do uso, tratamento e disponibilização de dados pessoais...
A entrada em vigor da lei não trará essas soluções de forma imediata, porém, há
precedentes europeus, e tais precedentes têm sido suficientes para fazer com que as
empresas brasileiras se atentem para a proteção de dados no sentido de adequação
às normas existentes. E o Estado não pode ficar atrás!
Nas ações judiciais, da mesma forma que se espera celeridade e efetividade, a
cooperação é medida necessária, pois, da mesma forma que as tecnologias são em-
pregadas por particulares para a otimização de resultados, também o labor estatal
pode ser melhorado com o uso da tecnologia.
Para isso, a proposta que se apresenta é de que, com a criação de um cadastro
centralizado e sistematizado, se obtenha fácil acesso a dados que, para o autor de
uma ação, são de difícil acesso. Em festejo ao princípio da cooperação, isto teria o
condão de mudar a realidade de uma causa.

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347
A POSSIBILIDADE DE USO DO WHATSAPP
PARA INTIMAÇÕES JUDICIAIS

15
Tales Calaza

Intimação, trata-se de uma ordem proferida por autoridade, podendo esta ter
força coercitiva, ou seja, objetiva constranger alguém a fazer ou deixar de fazer um
ato, ou informativa, que objetiva levar um ato ao conhecimento do interessado para
que tome alguma providência.
Primeiramente, importante diferenciar o conceito de intimação do conceito de
citação, mesmo tendo em mente que este se insere naquele. Isto se dá pelo fato de
uma citação se traduzir como uma “intimação inicial”, ou seja, é a primeira intima-
ção que ocorre em um processo, a qual o leva ao conhecimento da parte contrária à
que propôs à ação.
Nos termos do Código de Processo Civil, Lei n° 13.105/2015, em seu artigo de
número 238, dispõe que a citação se traduz como um ato pelo qual se convoca o
réu, o executado e o interessado, de modo que tomem conhecimento e integrem a
relação processual proposta: “Artigo 238 do Código de Processo Civil – Citação é o
ato pelo qual são convocados o réu, o executado ou o interessado para integrar a
relação processual. ”
Além da prerrogativa processual trazida pelo Código de Processo Civil, a cita-
ção, assim como as demais intimações, tem uma prerrogativa constitucional, pois
visam garantir ao réu, executado ou terceiro o direito ao contraditório e a ampla
defesa, garantias trazidas pela Constituição Federal em seu artigo 5°, inciso LV.
O professor Pontes de Miranda, em seu livro Comentários ao Código de Proces-
349
Tales Calaza
so Civil, define a citação como o ato que desencadeia o processo de modo que possa
prosseguir com sua tramitação até a satisfação ou indeferimento do pleito autoral.
Citação é chamamento com a cognição do objeto da causa pelo citado, para que pos-
sa defender-se, segundo o conceito da nota 1); notificação é o meio judicial de se dar
conhecimento a alguém de que, se não praticar, ou se praticar certo ato, ou certos
atos, está sujeito à cominação; intimação é a comunicação de ato praticado. Quem
notifica ou intima só se refere a certo ponto do processo; quem cita se refere à ins-
tauração da demanda e à continuação do processo, ao processo mesmo, donde di-
zer-se que é, à diferença das outras, continuativa.1
Em seguida, ao analisar os conceitos de citação e intimação, o professor Pontes
de Miranda ensina que: “Intimar é fazer saber, comunicar. Depois de falar de cita-
ção como “o ato pelo qual se chama a juízo o réu a fim de se defender”, empregou
“citação” como sendo o ato com que se faz chegar a alguém a intimação...”2
Intimação se traduz como uma ordem proferida por alguma autoridade civil,
militar ou judicial que obriga algum indivíduo a fazer ou se abster de fazer algo. Em
regra, esta pode ser subdividida como administrativa, quando a administração pú-
blica notifica o particular para que faça ou deixe de fazer algo; extrajudicial, quando
feita fora do âmbito do judiciário, por documento particular ou forma diversa que
não envolva ato de juiz ou autoridade; fiscal, quando dirigida ao contribuinte sobre
decisão ou exigência; inicial, também conhecida como citação, pela qual o indiví-
duo toma conhecimento de um processo; ou judicial, quando objetiva dar ciência
ao indivíduo de um ato incidental no processo. No âmbito do direito digital, nos
interessa trabalhar com o conceito de notificação proferida por autoridade judicial,
sendo esta conceituada pelo artigo 269 Código de Processo Civil, Lei n°
13.105/2015, como o ato pelo qual se dá a ciência a algum indivíduo dos atos e/ou
dos termos do processo. 3
No ordenamento jurídico brasileiro atual são aceitas algumas formas de intima-

1 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil:


artigos 154 a 281. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996, t. III, p. 200.
2 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil:
artigos 154 a 281. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996, t. III, p. 202.
3 Art. 269. Intimação é o ato pelo qual se dá ciência a alguém dos atos e dos termos do processo.
350
A possibilidade de uso do WhatsApp para intimações judiciais
ção, sendo as principais por meio eletrônico (intimar alguém pelos meios eletrôni-
cos atuais, como e-mail, site ou mensagem); por meio judicial (a ciência é dada pelo
próprio juízo); por carta precatória (o juízo de uma comarca se vale desse meio para
intimar alguém em comarca diversa, fora de sua jurisdição); por despacho (decisões
processuais impassíveis de recurso, que tem por finalidade mover o processo); por
publicação (decisão publicada em Diário Oficial, publicado no nome do advogado
da parte); e por correspondência (carta registrada com assinatura de aviso de rece-
bimento), sendo esta um dos meios mais comuns de utilização na justiça brasileira,
não sendo, entretanto, o meio mais eficiente.
Como exposto anteriormente, o professor Pontes de Miranda trabalhava um
conceito de intimação dentro do âmbito do processo trazido pelo Código de Pro-
cesso Civil de 1973. Com o advento do Código de Processo Civil de 2015, o legisla-
dor fez bem em atualizar a lei de acordo com os meios atuais de comunicação. Nes-
se sentido, o professor Elpídio Donizetti, em seu livro Novo Código de Processo
Civil Comentado, trabalha o conceito de intimação trazido pelo novo Código. Des-
sa forma, o autor, ao analisar o artigo 269 do Código de Processo Civil, já informa
sua nova natureza com sua modalidade preferencialmente eletrônica:
Conceito e modalidades de intimação. Intimação é o ato pelo qual se dá ciência a al-
guém dos atos e termos do processo (art. 269). Ela será realizada preferencialmente
por meio eletrônico, observadas as prescrições da Lei n° 11.419/2006. As intimações
do Ministério Público e da Defensoria Pública serão realizadas também por meio
eletrônico. Para tanto, essas entidades devem manter cadastro atualizado junto aos
sistemas de processo em autos eletrônicos. A mesma regra se aplica às intimações da
União, do Estado do Distrito Federal, dos Municípios e de suas respectivas autar-
quias e fundações de direito público. Quanto a estes, tanto as intimações como as ci-
tações serão realizadas perante o órgão de Advocacia Pública responsável pela repre-
sentação judicial.4
Em seguida, o professor explica que a grande novidade trazida pelo novo Código
foi a possibilidade de um sistema que permite a comunicação direta entre advoga-
dos, o que possibilita a redução da burocracia que tanto assola a advocacia atual. Do

4 Cf. DONIZETTI, Elpídio. Novo Código de Processo Civil comentado. 2. Ed. São Paulo: Atlas,
2017.
351
Tales Calaza
mesmo modo que tal avanço foi consolidado com o Novo Código, o mesmo ensina
que a intimação deve ser feita preferencialmente pelo meio eletrônico, se aplicando
tal regra inclusive ao Ministério Público, cujo, segundo o Código de Processo Civil
de 1973, deveria ser obrigatoriamente intimado pessoalmente.
A evolução da sociedade acompanha a evolução tecnológica, que avançou expo-
nencialmente no decorrer dos últimos anos. Dessa forma, para facilitar o acesso à
justiça (prerrogativa constitucionalmente fixada) é necessário que a evolução da
justiça acompanhe a evolução da sociedade e, consequentemente, a evolução tecno-
lógica, de modo a garantir que o povo, titular do poder constituinte, possa exercer o
seu poder da forma mais natural e espontânea.
Art. 1°. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Esta-
dos e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Di-
reito e tem como fundamentos:
I – a soberania;
II – a cidadania;
III – a dignidade da pessoa humana;
IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V – o pluralismo político;
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de represen-
tantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
Junto com a promulgação da Lei n° 13.105/2015 (Código de Processo Civil), seu
texto foi adaptado para a referida evolução, de modo que em além dos meios tradi-
cionais de intimação, por correio, oficial de justiça, cartório e edital, foi dada uma
atenção especial para o meio eletrônico, ao passo em que em seu texto, dispõe ex-
pressamente que a citação e a intimação processual deverão preferencialmente ser
efetuada pelos meios eletrônicos. A disposição trazida pelo texto legal demonstra a
tendência do legislador e, consequentemente, da justiça migrar cada dia mais para o
meio digital, adaptando-se ao contemporâneo dia a dia da sociedade.
Art. 246. A citação será feita:
I – pelo correio;

352
A possibilidade de uso do WhatsApp para intimações judiciais
II – por oficial de justiça;
III – pelo escrivão ou chefe de secretaria, se o citando comparecer em cartório;
IV – por edital;
V – por meio eletrônico, conforme regulado em lei.
§ 1° Com exceção das microempresas e das empresas de pequeno porte, as empresas
públicas e privadas são obrigadas a manter cadastro nos sistemas de processo em
autos eletrônicos, para efeito de recebimento de citações e intimações, as quais serão
efetuadas preferencialmente por esse meio.
No mesmo sentido se traduz o artigo 270 da Lei 13.105/2015: “Art. 270. As in-
timações realizam-se, sempre que possível, por meio eletrônico, na forma da lei. ”
Tendo em vista a modalidade preferencialmente eletrônica trazida pela lei, faz-
se necessário realizar uma análise pormenorizada de quais meios eletrônicos o le-
gislador se refere, já que resta como norma que necessita de complementação por
não ensinar expressamente à quais meios se refere.
De início, já no ano de 2006, a Lei n° 11.419/2006 autorizou expressamente a
criação de Diários de Justiça Eletrônicos pelos tribunais, com o escopo de publicar
atos judiciais e administrativos oficiais, além de estabelecer um canal de comunica-
ção. Ao estabelecer essa forma de intimação, o legislador substituiu e dispensou
qualquer outro meio de publicação para efeitos legais, à exceção dos casos que exi-
gem intimação pessoal. Da mesma forma que o Diário de Justiça Eletrônico, a lei
supracitada estabeleceu a possibilidade de intimação por portal próprio, ao passo
em que o indivíduo se cadastra na plataforma. Nessa modalidade, as informações
relativas aos atos processuais são disponibilizadas de forma seletiva, em portal pró-
prio ou em área restrita, de modo a preservar o sigilo da documentação e comuni-
cações.
Nesse sentido, ao analisar o avanço legislativo no que se refere a dar preferência
pela intimação eletrônica, o novo Código, possibilitando a diminuição burocrática
de modo que permite a adoção de um sistema de comunicação direta entre advoga-
dos, a doutrina igualmente avançando no sentido de desburocratizar o judiciário e
o próprio judiciário visando uma forma mais efetiva de agir, é possível visualizar a
possibilidade legal de adotar formas alternativas para realização de intimação e

353
Tales Calaza
comunicação oficial. Dessa forma, com essa finalidade, o próprio Conselho Nacio-
nal de Justiça se manifestou com essa intenção.
No ano de 2017, o Conselho Nacional de Justiça, no julgamento virtual do Pro-
cedimento de Controle Administrativo de n° 0003251-94.2016.2.00.0000, aprovou
por unanimidade a utilização do aplicativo WhatsApp para a finalidade de intima-
ções em todo o poder judiciário. A decisão se consolidou principalmente no escopo
de garantir a agilidade e a desburocratização dos procedimentos judiciais. Para
garantir segurança jurídica a esse formato atual de intimação, o CNJ entendeu pelo
uso facultativo do aplicativo e a exigência da confirmação do recebimento da men-
sagem no mesmo dia do envio, sob pena da intimação dever ser feita pelas outras
vias convencionais.
Para o prosseguimento do estudo, faz-se necessário conhecer a ferramenta
WhatsApp e seu funcionamento. WhatsApp trata-se de um aplicativo que pode ser
utilizado nos telefones celulares, tablets e computadores, sendo compatível com os
sistemas operacionais Android, iPhone (iOS), Mac, Windows PC e Windows Phone.
O aplicativo possibilita o envio e recebimento de mensagens utilizando da internet,
pelas quais também é possível compartilhar imagens, vídeos, documentos e fazer
ligações. Esta ferramenta pode ser uma importante aliada da justiça, visto que além
do dinamismo e celeridade que pode trazer para as comunicações, também traz
segurança, visto que possui a criptografia chamada de “end-to-end”, a qual o aplica-
tivo afirma que só o destinatário final tem acesso ao conteúdo da mensagem envia-
da, o que garante o sigilo e a segurança das comunicações utilizadas pelo judiciário.
O uso do aplicativo WhatsApp como ferramenta para intimações judiciais se
mostra como um grande aliado do judiciário, pois se demonstra como um meio
célere, que evita a morosidade e diminui os custos processuais, de modo a obter um
processo mais rápido e barato. Essa ferramenta é importante inclusive em Justiças
Especiais, como o Juizado Especial, tendo em vista que o mesmo se consolida por
um viés de oralidade, simplicidade e informalidade.
Em janeiro de 2018, sete meses após o CNJ aprovar as intimações por meio do
WhatsApp, onze Tribunais de Justiça por todo o país aderiram à ideia e regulamen-
taram o uso dessa ferramenta nos processos de sua jurisdição. Até o início do citado
ano, essa nova forma de intimação já era regulamentada nos estados de Minas Ge-

354
A possibilidade de uso do WhatsApp para intimações judiciais
rais, Paraná, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rondônia, Alagoas, Amazonas,
Maranhão, Ceará, Acre e Distrito Federal, sendo que também estava em fase de
testes nos estados de Sergipe e Pará. Essa rápida adaptação demonstra a boa recep-
tividade que esse avanço jurídico-tecnológico repercutiu em todo o país.
Tendo em vista a decisão do CNJ e a análise legal e doutrinária explanada neste
capítulo, faz-se necessário realizar uma análise jurisprudencial acerca do tema, para
garantir que o entendimento dos tribunais se encontra em conformidade com essa
forma alternativa de intimação.
De início, para que haja a validade do ato de intimação, é necessário que esta se-
ja realizada através do procurador da parte, ou seja, não há de se falar em intimação
da parte diretamente por WhatsApp. Nesse sentido é possível verificar as decisões
TJPR, AP 106280-4, j. 09.12.1997 e TRF3, AP 2003.71.00.012882-4, j.29.06.2004.
Tais julgamentos se preceituam no artigo 280 do Código de Processo Civil, que
ensina que “são nulas as intimações realizadas sem observância das prescrições
legais”, sendo que uma delas é a intimação através do procurador.
Em seguida, faz-se necessário observar a aplicação do artigo 191, § 2° do Código
de Processo Civil, de modo que aplicar-se-ia às intimações por WhatsApp o mesmo
que é aplicável as intimações regulares, podendo estas serem supridas se, versando
sobre direitos disponíveis, as partes, em conjunto com o juiz, fixarem um calendá-
rio para a prática dos atos processuais.
O Superior Tribunal de Justiça, no julgamento dos recursos REsp 123.254, j.
29.05.2001 e AgRg no REsp 651.887, j. 07.10.2004 deixou claro sua posição que o
ato da intimação será aperfeiçoado independente da publicação em órgão oficial, se
a parte houver, com procurador constituído, tomado ciência inequívoca da decisão.
Nesse sentido, também publicou a decisão abaixo.
Os prazos processuais, inclusive os recursais, contam-se a partir do momento em
que as partes têm ciência inequívoca do ato praticado no processo, independente-
mente de terem sido observadas as formalidades referentes à intimação. Intimar
significa levar ao íntimo. Considera-se intimado quem tem ciência inequívoca da
decisão por qualquer meio, ainda que antes da publicação.5

5 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp: 869.308 – SC (2006/0168780-0). Relator Humberto


355
Tales Calaza
Visto a posição do Superior Tribunal de Justiça, importante se faz estudar a po-
sição dos tribunais de justiça, visando buscar a conformidade jurisprudencial como
um todo. Para tanto, é necessário retroceder alguns passos no estudo, para que seja
feita uma análise prévia de intimações realizadas por telefone, anteriormente ao
surgimento e disseminação do WhatsApp no país.
Inicialmente, no ano de 2004, o Tribunal de Justiça do estado do Paraná, no jul-
gamento da AP 225911-8, j. 05.05.2004, entendeu por considerar inválida a intima-
ção realizada por telefone, isto porque tal forma de intimação não se encontrava
expressamente prevista na legislação processual. Atentar que no referido ano ainda
constava em vigência o Código de Processo Civil de 1973, o qual ainda não dava
preferência para a forma eletrônica.
Em seguida, no ano de 2006, o Tribunal de Justiça do estado de Santa Catarina,
no julgamento da AI 2005.030451-8, j. 08.08.2006, evoluiu em relação ao posicio-
namento jurisprudencial dos tribunais do sul, ao passo em que ensinou que a juris-
prudência estava se posicionando no sentido que não haveria ilegalidade na intima-
ção por telefone se não houvesse prejuízo à parte. Por fim, mais atualmente, no ano
de 2017, o Tribunal de Justiça do estado de Goiás, no julgamento da AP 142960-
42.2012.8.09.0095, j. 30.03.2017, entendeu que a intimação, ainda que realizada de
maneira atípica, seria válida se atingisse sua finalidade essencial. Dessa forma, é
clara a posição mais atual dos tribunais de que uma forma atípica de intimação, ou
seja, não expressa em lei, seria válida se não gerasse prejuízo à parte e se atingisse
sua finalidade essencial.
Visto a admissibilidade do uso do WhatsApp para a finalidade de realização de
intimações pela jurisprudência, para aprofundar o estudo é importante entender
certas nuances envolvendo esse formato de intimação. O Superior Tribunal de Jus-
tiça, no julgamento REsp 960.280, j. 07.06.2011, determinou que as informações
eletrônicas oficias são as que constam nas páginas eletrônicas dos tribunais, de mo-
do que à estas é possível prestar a confiança do advogado. Dessa forma, a intimação
não necessitaria conter o ato processual em sua integralidade, seu inteiro teor, pois

Gomes de Barros. DJ: 27/08/2007. STJ, 2007. Disponível em: https://bit.ly/2V8bIgH. Acesso em:
30 jan. 2019.
356
A possibilidade de uso do WhatsApp para intimações judiciais
basta constar a conclusão do ato, o nome das partes e dos advogados, devendo o
inteiro teor ser conhecido no cartório, conforme decidido nos julgamentos TRF1,
AI 2001.01.00.033.895-9, j. 21.11.2006, TJPR, AI 175264-7, j. 20.08.2001 e o artigo
27 da Lei de n° 6.830/1990.
A seguir, faz-se necessário correlacionar institutos aplicáveis à intimação regular
que serão aplicados igualmente à intimação realizada por WhatsApp. Especifica-
mente em relação às suas causas de invalidação. O Tribunal de Justiça de Santa
Catarina, no julgamento da AP 1999.008098-6, j. 03.05.2002 dispôs que a intimação
será inválida quando houver omissões graves, caso em que será devolvido o prazo a
contar da nova publicação, dessa forma, interessante entender que se aplica tal caso
de invalidade à intimação por WhatsApp que, conforme visto anteriormente, não
necessita de conter o inteiro teor da intimação, mas não pode conter omissões gra-
ves, sob pena de invalidade.
Em seguida, no ano de 2011, no julgamento da AP 1003355-34.2013.8.26.0361,
o Tribunal de Justiça do estado de São Paulo decidiu que são inválidas as intima-
ções que geram fundada dúvida sobre seu real conteúdo, por exemplo, sem se refe-
rir sobre qual das partes se refere o ato a ser praticado. Outro caso aplicável, é o
julgamento da AP 0185493-66.2008.8.26.0100, em que o Tribunal de Justiça de São
Paulo julgou como inválida a intimação enviada ao endereço equivocado. Dessa
forma, em analogia com a plataforma WhatsApp, será igualmente inválida a inti-
mação direcionada ao sítio/endereço eletrônico equivocado.
Tendo em mente as supracitadas causas de nulidade aplicáveis às intimações ele-
trônicas, é importante estudar jurisprudências que aplicaram em casos concretos as
regras gerais aplicáveis ao instituto das intimações. De início, é sabido que a nuli-
dade da intimação deve ser arguida pela parte que sofreu algum prejuízo, dessa
forma, não há de se falar em vício provocado pela própria parte, como no caso de
fornecimento equivocado de alguma informação essencial para sua intimação, co-
mo o número de WhatsApp incorreto, por exemplo. Em seguida, válido informar
que não há de se falar em invalidar a intimação se esta cumprir com sua finalidade e
não trazer prejuízo às partes, ou seja, no caso de cumprir com seu objeto (fazer o
ato chegar ao conhecimento da parte) e não trazer prejuízo para os integrantes do
processo, será considerada aperfeiçoada a intimação, sendo esta completamente

357
Tales Calaza
válida, tendo forma não defesa em lei e, ainda, atingindo a sua finalidade principal.
Tendo em mente as regras gerais aplicáveis à intimação regular e, por conse-
quência, também aplicáveis à intimação por WhatsApp, necessário visualizar a apli-
cação na prática deste instituto pelos tribunais.
A começar pelos tribunais sulistas, em decisões recentes é possível verificar a
ampla adesão a esse novo formato de intimação. Como será visto a seguir:
Agravante que alega irregularidade da intimação formalizada pelo oficial de justiça
por telefone e pelo aplicativo WhatsApp. Tese rejeitada. Possibilidade de intimação
por tal meio. Finalidade alcançada. Aplicação do artigo 277 do Código Processualis-
ta Civil vigente.6
A seguir, em contraste com a região anterior, é possível verificar a região nor-
deste do país caminhando na mesma direção:
Regulamenta a intimação de atos processuais mediante a utilização de aplicativos de
mensagens do tipo WhatsApp ou similar no âmbito do Tribunal Regional Eleitoral
de Alagoas.7
No Tribunal de Justiça de Minas Gerais também já é possível visualizar a ade-
rência à evoluída forma de intimação, como é possível verificar no próprio site do
TJMG, na aba “notícias”, é disposto que:
A intimação mediante a utilização do aplicativo WhatsApp é uma novidade aprova-
da pela Corregedoria-Geral de Justiça que chegou ao Poder Judiciário mineiro no
início de 2017, por meio de um projeto-piloto implantado no Juizado Especial da
Comarca de Vespasiano. Em 21 de junho último, a iniciativa chegou aos Juizados
Especiais Criminais da Comarca de Belo Horizonte. A ferramenta deverá ser expan-
dida para os demais juizados, após a avaliação dos resultados do uso do aplicativo
nessas primeiras unidades jurisdicionais.8

6 SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina. AGV: 4002770-


59.2017.8.24.0000. Relatora Rosane Portella Wolff. DJ: 29/06/2017. TJSC, 2017. Disponível em:
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7 BRASIL. Tribunal Regional Eleitoral de Alagoas. Processo Administrativo PA 191808 Maceió-
AL. Disponível em: https://bit.ly/2VQH1K7. Acesso em: 30 jan. 2019.
8 MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Intimação por WhatsApp. 28
358
A possibilidade de uso do WhatsApp para intimações judiciais
Menos de um ano após a publicação da supracitada notícia, a primeira vara cri-
minal de Belo Horizonte aderiu a essa forma de intimação. Dessa forma, para ins-
truir os advogados sobre o novo formato de comunicação, publicou a seguinte no-
tícia em conjunto com a Portaria 28/DIRFO/2018 de 06/03/2018:
Instituído, na 1ª Vara Criminal de Belo Horizonte, pelo período experimental de 90
dias, o procedimento de intimação, com a utilização do aplicativo WhatsApp, baixa-
do no aparelho celular destinado à unidade judiciária, exclusivamente para essa fi-
nalidade, ou do Programa WhatsApp Web. A intimação por WhatsApp não se aplica
às hipóteses em que a Lei determina a intimação pessoal, ficando restrita às pessoas
físicas. A parte interessada deverá preencher e assinar o Termo de Adesão, devendo
comunicar imediatamente ao juízo, se houver mudança do número do telefone e as-
sinar novo termo, considerando-se eficazes as intimações enviadas ao telefone ante-
riormente cadastrado, na ausência de comunicação. Ao aderir ao procedimento de
intimação, pelo uso do WhatsApp, a parte declarará que manterá ativa, nas opções
de privacidade do aplicativo, a opção de recibo/confirmação de leitura. O TJMG, em
nenhuma hipótese, solicita dados pessoais, bancários ou quaisquer outros de caráter
sigiloso, limitando-se o procedimento para a realização de atos de intimação. No ato
da intimação, o servidor responsável encaminhará pelo WhatsApp a imagem do
pronunciamento judicial, com a identificação do processo e das partes. A intimação
será considerada realizada no momento em que os ícones do aplicativo, que repre-
sentam a mensagem de entregue e lida, adquirirem a tonalidade azul, indicando sua
entrega ao destinatário... 9
Do trecho acima publicado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais é possível
retirar diversas informações importantes, como o fato de que, para aderir à essa
forma de intimação, é necessário que a parte assine um termo de adesão e que a
intimação será considerada realizada quando os ícones de visualização adquirirem
a tonalidade azul. Em seguida a portaria explica como é feita a contagem dos prazos
e como proceder em relação às dúvidas:
...A contagem dos prazos obedecerá à legislação vigente. Se não houver a entrega e a

de junho de 2017. TJMG, 2017. Disponível em: https://bit.ly/2Up6CrZ. Acesso em: 30 jan. 2019.
9 MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. 1ª Vara Criminal de Belo
Horizonte: intimação por WhatsApp. 07 de março de 2018. TJMG, 2018. Disponível em:
https://bit.ly/2Xf6ddo. Acesso em: 30 jan. 2019.
359
Tales Calaza
leitura da mensagem pela parte, no prazo de 3 dias, a contar do envio, o servidor
responsável providenciará a intimação por outro meio idôneo, conforme o caso. Ca-
so essa intimação seja tentada por duas vezes consecutivas ou alternadas, implicará
na exclusão da parte da modalidade de intimação por WhatsApp e ela não poderá se
recadastrar, nos 6 meses subsequentes. As dúvidas referentes à intimação deverão
ser tratadas, exclusivamente, na secretaria de juízo da 1ª Vara Criminal, mesmo lo-
cal para o qual a parte deverá se dirigir na hipótese de intimação para compareci-
mento. 10
Como é possível visualizar, a portaria 28/DIRFO/2018 de 06/03/2018 regula-
mentou integralmente a modalidade de intimação por WhatsApp, demonstrando o
avanço que determinados tribunais já possuem com o tema. Ainda nesse sentido,
na região norte do país também é possível visualizar os tribunais caminhando para
a mesma perspectiva:
O Judiciário começa nesta segunda-feira, 21, em caráter experimental, a utilizar o
aplicativo WhatsApp, como meio de intimação de partes em processos que trami-
tam nas doze Varas dos Juizados Especiais Cíveis da capital. Gradativamente, o pro-
jeto será expandido para outras Varas e Comarcas. O uso do aplicativo de mensa-
gem instantânea é regulamentada pela Resolução 28/2018 – GP, aprovada pelo Ple-
no do Tribunal de Justiça do Pará, em sessão realizada no dia 19 de dezembro. A
adesão ao sistema, no entanto, será voluntária, uma vez que os interessados em ade-
rir à modalidade deverão preencher e assinar o documento a ser entregue pela secre-
taria da unidade judiciária e informar o número de telefone respectivo. Conforme o
artigo 1° da resolução, “As intimações por WhatsApp serão enviadas a partir do apa-
relho de telefonia móvel destinado à secretaria da unidade judiciária exclusivamente
para esse fim”. No ato de intimação, o servidor responsável encaminhará, via What-
sApp, a imagem do pronunciamento judicial (despacho, decisão ou sentença) com a
identificação do processo e das partes. A intimação será considerada realizada na
data e hora consignadas pelo aplicativo, nos dados de mensagem de intimação, com
indicativo de entrega e leitura. O servidor certificará nos autos a data e hora do re-
cebimento da comunicação. Se não houver a confirmação de recebimento e leitura
da mensagem pela parte, no prazo de três dias, a secretaria da unidade judiciária

10 MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. 1ª Vara Criminal de Belo
Horizonte: intimação por WhatsApp. 07 de março de 2018. TJMG, 2018. Disponível em:
https://bit.ly/2Xf6ddo. Acesso em: 30 jan. 2019.
360
A possibilidade de uso do WhatsApp para intimações judiciais
providenciará a intimação por outro meio idôneo, nos termos da Lei 9.099/1995... 11
Ao analisar a notícia acima, é possível verificar que há uma uniformidade em
todo o território nacional em relação a forma de como proceder com as intimações
por WhatsApp. Isto porque nos tribunais que cortam o país de norte a sul é possível
verificar a adesão à este formato e, igualmente, a forma de como proceder com o
ato, de modo que, inicialmente, o indivíduo deve se cadastrar, assinando o termo de
adesão, informar seu número de telefone e futuras alterações deste, o momento de
recebimento será considerado quando o símbolo verificador indicar a tonalidade
azul, a qual é adquirida após a mensagem ser recebida e lida e caso não haja tal con-
firmação de recebimento pelo prazo de três dias, a secretaria procederá com meio
idôneo diverso de intimação.
O objetivo principal da adoção desta medida no tribunais do país, é a necessida-
de da adequação do procedimento da tramitação do processo com as novas formas
de tecnologia, buscando entregar a prestação jurisdicional em tempo hábil, o qual
traduz os princípios que regem principalmente os juizados especiais, quais sejam os
princípios da oralidade, informalidade, simplicidade, economia processual e celeri-
dade.
No presente estudo a intimação por WhatsApp colabora principalmente com os
princípios da simplicidade, ao passo que desburocratiza o acesso à informação, da
economia processual, ao passo em que utiliza de menos recursos para atingir sua
finalidade, da celeridade, pois atinge seu objetivo de forma mais rápida e respeita o
princípio da informalidade, tendo em vista que é feita por forma não defesa em lei,
de modo que deve ser amplamente aceita.
Além dos princípios que regem os juizados especiais, o processo brasileiro adota
princípio que o regem como um todo e que, ao aplicar a realização de intimações
alternativas visando uma prestação jurisdicional mais eficaz, colabora com o pro-
cesso como um todo. A começar pelo princípio da duração razoável do processo
(artigos 5°, inciso LXXVIII da CF e 4° do Código de Processo Civil), pois, uma vez
que tal medida é adotada, as informações processuais chegarão mais rapidamente à

11 PARÁ. Tribunal de Justiça do Estado do Pará. Intimação Via WhatsApp Começa Dia 21. 16 de
janeiro de 2019. TJPA, 2019. Disponível em: https://bit.ly/2VPEvnm. Acesso em: 30 jan. 2019.
361
Tales Calaza
seus destinatários, o que possibilitará a ação por sua parte de forma mais rápida,
possibilitando assim a entrega da prestação jurisdicional. Da mesma forma, colabo-
ra com o princípio da efetividade, visto que auxiliará o processo a alcançar, em
tempo hábil, a finalidade para que foi criado.
Em seguida, válido entender que a aplicação da medida estudada neste capítulo
também auxilia o judiciário a obedecer ao princípio da eficiência. O princípio da
eficiência ensina que o judiciário deve buscas o melhor uso dos recursos dentro do
serviço público, ou seja, obter a melhor qualidade e maior quantidade de produtos e
serviços com o menor gasto possível. Dessa forma, utilizando da ferramenta de
uma rede social gratuita para realizar intimações, é visível que o serviço público
estará economizando gastos ao deixar de imprimir notificações, deslocar pessoal
para que a notificação chegue ao conhecimento do destinatário e outros gastos des-
necessários.
A seguir, importante trabalhar o ideal do princípio da lealdade processual, pois,
para haver a efetiva prestação jurisdicional com o correto uso das intimações pelo
WhatsApp, é necessário que as partes ajam nos conformes dos princípios da lealda-
de e da boa-fé, tendo em vista que inclusive no Termo de Adesão são obrigadas a
agir dentro de certos conformes, como ligar a função “recebido” no WhatsApp, a
qual permite que, no ato da mensagem ser lida, o ícone de recebimento receba a
tonalidade azul.
Por fim em relação aos princípios processuais, importante trabalhar o princípio
da instrumentalidade das formas em relação ao presente estudo. O citado princípio
rege que o que importa é a finalidade do ato, e não a forma com que ele é feito,
princípio este que visa a simplificação e desburocratização processual. Nesse senti-
do, o ilustre professor Nelson Nery Junior ensina em seu livro Código de Processo
Civil Comentado, que:
O juiz deve desapegar-se do formalismo, procurando agir de modo a propiciar às
partes o atingimento da finalidade do processo. Mas deve obedecer às formalidades
do processo, garantia do estado de direito... O Código adotou o princípio da instru-
mentalidade das formas, segundo o qual que importa é a finalidade do ato e não ele
em si mesmo considerado. Se puder atingir a sua finalidade, ainda que irregular na

362
A possibilidade de uso do WhatsApp para intimações judiciais
forma, não se deve anulá-lo. 12
Visto a legislação, a jurisprudência e casos concretos de sua aplicação, válido
também visualizar casos de direito comparado, em que casos semelhantes com a
intimação por WhatsApp foram autorizados em outros países.
A começar pelos Estados Unidos, a juíza federal Laurel Beeler, de São Francisco,
Califórnia, proferiu decisão em que autorizou a citação da parte no processo pela
ferramenta Twitter. O processo envolvia as partes St. Francis Assisi, que é uma or-
ganização sem fins lucrativos, contra Kuwait Finance House (instituição financei-
ra), Kuveyt-Turk Participation Bank Inc. (instituição financeira) e Hajjaj al-Ajmi
(Sheikh kuwaitiano), em uma ação de indenização proposta pela organização. Ao
analisar o caso concreto e suscitar precedentes, o magistrado americano informou
que o Sheikh possuía uma rede social (Twitter) bastante ativa e que a utilizava para
se comunicar com seu público. Dessa forma, o magistrado entendeu que a citação
pela rede social seria o meio mais adequado para contatá-lo, suscitando ainda que
tal conduta não seria defesa, tendo em vista o acordo internacional de Kuwait.
Outro caso parecido ocorreu no Reino Unido, quando a Suprema Corte autori-
zou a iniciativa do uso de redes sociais para comunicação no meio judicial. Tendo
em vista dados divulgados pelo Daily Mail, no ano de 2011, metade da população
do Reino Unido possuía uma conta no Facebook, número que cresce exponencial-
mente a cada dia. Desta forma, a Suprema Corte autorizou em caso concreto que o
Facebook fosse utilizado para intimar a parte no processo para comparecer ao tri-
bunal. Igualmente no Reino Unido, no ano de 2010, a Corte Britânica utilizou do
Twitter para entregar uma injunção à parte em um processo movido por Donal
Blaney, advogado e blogueiro, tendo em vista que seria a forma mais eficaz de tor-
nar o ato conhecido pelo destinatário no processo, visto que a parte ré era desco-
nhecida e o púnico meio de comunicação viável era por meio da própria rede social
em que se consumou o ato ilícito.
Tendo em vista a inclinação não só no processo brasileiro, mas em diversos paí-
ses a adotar meios alternativos de intimação eletrônica, como a intimação por

12 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comentado.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 618-620.
363
Tales Calaza
WhatsApp, Twitter e Facebook, é possível visualizar a tendência global por uma
busca de um processo mais ágil e atualizado, tendo em vista que se adequa às novas
tecnologias visando atingir a finalidade essencial dos atos de uma forma mais célere
e econômica.
Analisando os casos internacionais, em consonância com a inovação do Código
de Processo Civil brasileiro, pode-se observar que o intuito principal da comunica-
ção judicial pela rede social é conseguir atingir o destinatário da melhor e mais rá-
pida maneira possível. No primeiro caso, nos Estados Unidos, a parte requerida
possuía uma conta ativa com muitas movimentações no Twitter, pela qual o reque-
rido se utilizava para se comunicar com seu público. No segundo caso, no Reino
Unido, a Corte entendeu por realizar a intimação pelo próprio meio em que havia
ocorrido o ato ilícito, pelo Facebook, ou seja, é visível que, em conformidade com os
diversos princípios adotados pelo sistema jurídico brasileiro, é necessário utilizar
dos meios mais eficientes e atuais para atingir a finalidade do ato, caso a forma seja
não defesa por lei, visando um processo mais célere e menos burocrático, assim
como preceitua nosso Código de Processo Civil e nossa Constituição Federal.
Em conclusão, é importante rever os conceitos trabalhados com os institutos
trazidos no presente estudo, visando adequar o conceito com os entendimentos
legais, doutrinários, jurisprudenciais e de direitos comparado. Em relação à legisla-
ção, principalmente em relação ao Código de Processo Civil, foi visto que o formato
de intimação por WhatsApp não só é possível de ser utilizado por atingir sua finali-
dade, qual seja levar o ato à ciência do destinatário, como está em conformidade
com a nova prerrogativa trazida pelo Código, ao dar preferência para as intimações
por meio eletrônico.
Em relação à doutrina, é visível que tal instituto também deve ser amplamente
aceito, pelo fato que os autores defendem que a finalidade deve suprir a forma, caso
esta não seja prescrita em lei e, como a intimação não traz um requisito específico,
deve ser considerada válida.
Em relação à jurisprudência, é possível verificar que o entendimento caminha
para pacificação nos tribunais, tendo em vista que tribunais de diversas regiões tem
entendimento de que deve ser aplicado tal formato de intimação, assim como al-
guns tribunais já aplicam efetivamente tal instituto, como o Tribunal de Justiça de

364
A possibilidade de uso do WhatsApp para intimações judiciais
Santa Catarina e o Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Por fim, em relação ao di-
reito comparado, é visível que os tribunais e cortes internacionais também avançam
no sentido de que a finalidade deve se sobrepor à forma, de modo que deve se bus-
car o meio de comunicação mais eficiente para que o conteúdo da mensagem che-
gue ao conhecimento do destinatário final, visto que cumpre com seu objetivo da
maneira mais econômica.

Referências

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Tales Calaza
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367
Tales Calaza
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368
A POSSIBILIDADE DE ACESSO AOS DADOS
PRIVADOS NO PERFIL DO FACEBOOK DE
USUÁRIO FALECIDO: COLISÃO ENTRE O
DIREITO À PRIVACIDADE E O DIREITO À
HERANÇA

16
Thalita Abadia de Oliveira Magalhães

Introdução

Com a crescente evolução da sociedade, nota-se que a tecnologia vem ganhando


espaço e notoriedade em todos os meios, modificando as interações sociais, as for-
mas de se comunicar, de se trabalhar, de se relacionar, enfim, modificando todos os
aspectos do cotidiano.
Com o advento da internet, a sociedade toda se modificou, e como bem se sabe,
todas as mudanças sociais trazem não só alteração na forma de se observar os fe-
nômenos, mas alteram também a forma de se interpretar o Direito, pois este é uma
ciência viva, e deve se moldar conforme a sociedade.
Neste cenário atual, os indivíduos se conectam com o mundo todo através das
redes sociais, estabelecendo relações afetivas e profissionais, criando uma espécie de
realidade virtual que por muitas vezes nem chega a compor a realidade física, pois
frequentemente as interações não saem da “telinha”. Antigamente também os da-
dos que a gente possuía eram guardados em cartas, livros, CDs, fitas e etc., mas
atualmente é bem mais comum se guardar os dados “on-line” na Nuvem.
369
Thalita Abadia de Oliveira Magalhães
Muitas vezes esses dados possuem valor econômico, e quando o titular vem a fa-
lecer, podem servir aos herdeiros, se constituindo em herança. Contudo, esse con-
teúdo armazenado virtualmente pode conter dados sigilosos, que podem ferir a
honra do de cujus ou de terceiros, como por exemplo, fotos ou vídeos, e principal-
mente as conversas nas redes sociais, que se forem disponibilizadas para os herdei-
ros, podem trazer à tona fatos que o falecido não queria ver expostos para a família.
Este artigo busca analisar se dentro do ordenamento jurídico brasileiro há pos-
sibilidade de acesso dos herdeiros ao perfil do falecido no Facebook, considerando
que o direito à herança deve abranger tudo deixado por ele; ou se não há essa possi-
bilidade, porque isso constituiria violação ao direito à privacidade.
Desta forma, no primeiro capítulo será abordado o tema do direito à privacida-
de, abordando seu conceito e sua regulamentação, inclusive no Marco Civil da In-
ternet, e, por fim, a tutela post mortem dos direitos da personalidade.
O segundo capítulo trata sobre o direito à herança, partindo-se de sua conceitu-
ação, e abordando tal instituto no ordenamento jurídico brasileiro, sua posição
como direito fundamental, sua ligação com alguns valores, e alguns aspectos gerais
sobre a sucessão no Brasil.
No terceiro capítulo é trazido à discussão o tema da sucessão digital, apresen-
tando um pouco sobre os entendimentos no Brasil, e inclusive citando dois projetos
de lei em tramitação. Em outro tópico chega-se à questão da sucessão no Facebook,
trazendo inicialmente seus termos e políticas para depois explicar a solução apon-
tada pela empresa em relação ao perfil do usuário falecido.
O quarto capítulo analisa a colisão entre o direito à privacidade e o direito à he-
rança, demonstrando por fim qual direito foi considerado prevalente.
Para a formulação deste artigo buscou-se eleger duas hipóteses para solução da
questão controversa, para então extrair qual é a mais adequada dentro do ordena-
mento jurídico brasileiro, e, para tanto, foram analisados os principais aspectos
acerca do direito à privacidade e sua tutela post mortem, e o direito à herança, bem
como a colisão entre eles, sendo utilizados livros e artigos da internet, dispositivos
da Constituição da República Brasileira, do Código Civil Brasileiro, e outras legisla-
ções e projetos de lei.
Assim, como ainda não há regulamentação específica e considerando o direito
370
A possibilidade de acesso aos dados privados no perfil do Facebook...
constitucional de acesso à justiça, ao longo dos anos tende a crescer a busca dos
sucessores pelo judiciário para dirimir os conflitos entre eles e o Facebook, pois este
último não vem aceitando o acesso ao perfil do de cujus, pois fere a política de pri-
vacidade.
Desta forma, resta demonstrada a importância em se discutir o tema, pois en-
quanto não for regulamentado, abre-se espaço para pesquisas e discussões sobre
essa possibilidade de transmissão post mortem do acesso à conta do falecido, e as-
sim surge este trabalho visando trazer alguns importantes conceitos e citando al-
guns entendimentos no Brasil, para ao final eleger qual opção foi considerada a
mais adequada para dirimir a controvérsia.

1 Direito à privacidade

O direito à privacidade engloba o direito à intimidade, à honra e à imagem, es-


tando todos dentro do rol de direitos da personalidade, que abrange todos aqueles
direitos que se prestam a proteger os aspectos íntimos, psíquicos e físicos de cada
indivíduo. A privacidade se refere à proteção da vida particular do indivíduo, de
modo que terceiros não se intrometam na esfera privada, podendo se considerar
que “O objeto de proteção do direito à privacidade compreende: os pensamentos,
as emoções, os sentimentos, as conversas, a aparência, o comportamento e os hábi-
tos.”1
O direito à privacidade abrange hoje não apenas a proteção à vida íntima do in-
divíduo, mas também a proteção de seus dados pessoais, sendo que é bem amplo
que o simples direito à intimidade, pois não se limita ao direito de cada um ser
“deixado só” ou de impedir a intromissão alheia na sua vida íntima e particular.
Transcende essa esfera doméstica para alcançar qualquer ambiente onde circulem
dados pessoais do seu titular, aí incluídos suas características físicas, código genéti-
co, estado de saúde, crença religiosa e qualquer outra informação pertinente à pes-

1 LISBOA, Roberto Senise. A inviolabilidade de correspondência na internet. In: DE LUCCA,


Newton; SIMÃO FILHO, Adalberto (Coord.). Direito & internet: aspectos jurídicos relevantes.
Bauru: Edipro, 2000, p. 471.
371
Thalita Abadia de Oliveira Magalhães
soa.2
A intimidade, por sua vez, trata-se de algo ainda mais íntimo, que diz respeito
somente ao indivíduo e sua família ou amigos, ou seja, a intimidade está fundamen-
tada no “isolamento mental inerente à natureza humana, não desejando o seu titu-
lar que certos aspectos de sua vida cheguem ao conhecimento de terceiros.”3
Ainda acerca do direito à intimidade, tem-se que:
O direito à intimidade abrange: as confidências, os informes de ordem pessoal, as
recordações pessoais, as memórias, os diários, as relações familiares, as lembranças
de família, a sepultura, a vida amorosa e conjugal, o estado de saúde pessoal, as afei-
ções, o entretenimento, os costumes domésticos e as atividades negociais privadas.4
Assim, o direito à intimidade é um direito da personalidade que se liga a ideia de
que não se deve expor informações da vida íntima de outrem, e pode ser classifica-
do como um direito psíquico da personalidade, que permite que as pessoas possam
resguardar aspectos intrínsecos do seu existir.5
O direito à honra é conceituado por vários autores, cada qual utiliza diferentes
expressões, contudo, em linhas gerais, liga-se a preservar a reputação e autoestima
do indivíduo. Neste sentido, segundo Bittar (1995, p. 125/126): “No direito à honra,
o bem jurídico protegido é a reputação, ou a consideração social a cada pessoa de-
vida, a fim de permitir-se a paz na coletividade e a própria preservação da dignida-
de da pessoa humana”.6

2 SCHREIBER, Anderson. Direitos da personalidade. São Paulo: Atlas, 2011, p. 130-131.


3 LISBOA, Roberto Senise. A inviolabilidade de correspondência na internet. In: DE LUCCA,
Newton; SIMÃO FILHO, Adalberto (Coord.). Direito & internet: aspectos jurídicos relevantes.
Bauru: Edipro, 2000, p. 470.
4 LISBOA, Roberto Senise. A inviolabilidade de correspondência na internet. In: DE LUCCA,
Newton; SIMÃO FILHO, Adalberto (Coord.). Direito & internet: aspectos jurídicos relevantes.
Bauru: Edipro, 2000, p. 470.
5 LISBOA, Roberto Senise. A inviolabilidade de correspondência na internet. In: DE LUCCA,
Newton; SIMÃO FILHO, Adalberto (Coord.). Direito & internet: aspectos jurídicos relevantes.
Bauru: Edipro, 2000, p. 470.
6 OLIVEIRA, Jakeline Gella de. O direito à honra, imagem, intimidade, privacidade e
inviolabilidade do corpo do de cujus com relação a publicações na mídia. Monografia
372
A possibilidade de acesso aos dados privados no perfil do Facebook...
Comumente há uma divisão entre a honra objetiva, que se refere ao seu prestígio
perante seu círculo social; e honra subjetiva que está ligada à concepção da pessoa
sobre si mesma, sua autoestima. Ademais, segundo André Barreto Lima, a proteção
à honra do indivíduo também se dá no Código Penal, pois “Referido instrumento
normatizador, evidenciando a importância que esse tão valioso bem (a honra) me-
rece, criou figuras típicas objetivando a defesa da honra do indivíduo caracterizan-
do assim a: injúria, calúnia e a difamação.”7
Desta feita, considera-se que “o direito a honra refere-se à integridade moral do
indivíduo, isto é, sua salubridade psíquica, necessária a preservação da dignidade da
pessoa humana. Logo, salvaguardar da honra é fundamental, por esta ser atributo
íntimo de cada ser humano.”8
O direito à imagem, como o próprio nome já diz, é a proibição de exposição da
imagem do indivíduo sem sua autorização ou do uso autorizado que seja feito com
desvio de finalidade. Há de considerar com isso que tal direito tem um diferencial
com relação a outros direitos da personalidade, qual seja a disponibilidade, pois o
titular pode licenciar o uso de sua imagem, podendo, contudo, buscar a reparação
de danos sempre que sentir seu direito violado por outrem.9
Em suma, o direito à privacidade é extremamente importante, abarcando os as-
pectos da intimidade, honra e imagem do indivíduo, sendo todos atributos impor-
tantes para proteção da integridade do sujeito, permitindo seu desenvolvimento, e

apresentada à Fundação Universidade Federal de Rondônia – UNIR, 2016. Disponível em: <
https://bit.ly/2UsdZ1D >. Acesso em: 14 jan. 2019.
7 LIMA, André Barreto. O direito à honra do indivíduo na perspectiva dos danos moral e mate-
rial. Publicado em 01/2017. Disponível em: http://bit.ly/2UoNoCN. Acesso em: 14 jan. 2019.
8 OLIVEIRA, Jakeline Gella de. O direito à honra, imagem, intimidade, privacidade e
inviolabilidade do corpo do de cujus com relação a publicações na mídia. Monografia
apresentada à Fundação Universidade Federal de Rondônia – UNIR, 2016. Disponível em:
https://bit.ly/2UsdZ1D. Acesso em: 14 jan. 2019, p. 22.
9 OLIVEIRA, Jakeline Gella de. O direito à honra, imagem, intimidade, privacidade e
inviolabilidade do corpo do de cujus com relação a publicações na mídia. Monografia
apresentada à Fundação Universidade Federal de Rondônia – UNIR, 2016. Disponível em:
https://bit.ly/2UsdZ1D. Acesso em: 14 jan. 2019, p. 25/26.
373
Thalita Abadia de Oliveira Magalhães
isto se liga à dignidade da pessoa humana, que, segundo o texto constitucional, é
uma das bases do nosso ordenamento jurídico.
Demonstrando tal preocupação com o ser humano e seus aspectos intrínsecos, a
Constituição Federal de 1988 dispõe sobre vários direitos da personalidade, e den-
tre eles o direito à privacidade, conforme se observa na leitura do art. 5º, inciso X,
que diz que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das
pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente
de sua violação”, e inciso XII, que estabelece que “é inviolável o sigilo da corres-
pondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefôni-
cas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei
estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”.
Além da regulamentação constitucional, tem-se o Código Civil de 2002 como
importante norma que trata do direito à privacidade, sendo estabelecida no artigo
20 a proteção à imagem do indivíduo, dando legitimidade aos cônjuges, descenden-
tes e ascendentes nos casos em que se trate de imagem de pessoa falecida ou ausen-
te; e no artigo 21 consta que “a vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz,
a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou
fazer cessar ato contrário a esta norma”.
A disposição do direito à privacidade no texto constitucional, incluído no rol de
garantias individuais, por si só, já demonstra a preocupação do Estado brasileiro em
sua proteção, e o tratamento no Código Civil fortalece esta proteção, pois veio para
regulamentar a cláusula constitucional.

1.1 Direito à privacidade na Lei 12.965/2014 (Marco Civil da Internet)

Com o advento das inovações tecnológicas, o mundo está cada vez mais conec-
tado, atualmente tudo pode ser compartilhado por um clique, assim a privacidade
dos indivíduos encontra um ambiente perigoso e inseguro, tornando-os cada vez
mais vulneráveis. De tal forma, houve por bem criar uma norma para tratar do as-
sunto, surgindo assim a Lei 12.965/2014, também chamada de Marco Civil da In-
ternet, que na exposição de motivos citou a necessidade de tal norma para que ga-
ranta a observância dos direitos fundamentais no ambiente cibernético.
374
A possibilidade de acesso aos dados privados no perfil do Facebook...
Esta Lei trata da vida privada em alguns de seus dispositivos, como por exemplo,
o art. 3º, em seus incisos II e III, que dizem que alguns dos princípios do uso da
internet no Brasil são a proteção da vida privada e proteção dos dados pessoais.
Ademais, há vários outros dispositivos que novamente tratam do assunto, como
o artigo 7º, que estabelece o seguinte:
Art. 7o O acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania, e ao usuário são as-
segurados os seguintes direitos:
I - inviolabilidade da intimidade e da vida privada, sua proteção e indenização pelo
dano material ou moral decorrente de sua violação;
II - inviolabilidade e sigilo do fluxo de suas comunicações pela internet, salvo por
ordem judicial, na forma da lei;
III - inviolabilidade e sigilo de suas comunicações privadas armazenadas, salvo por
ordem judicial; (...)
VII - não fornecimento a terceiros de seus dados pessoais, inclusive registros de co-
nexão, e de acesso a aplicações de internet, salvo mediante consentimento livre, ex-
presso e informado ou nas hipóteses previstas em lei;
O artigo 8º estabelece que “a garantia do direito à privacidade e à liberdade de
expressão nas comunicações é condição para o pleno exercício do direito de acesso
à internet”, e ainda diz que serão nulas de pleno direito aquelas cláusulas contratu-
ais que violarem tal disposição, bem como aquelas que ofendam a inviolabilidade e
sigilo das comunicações pela internet.
Por sua vez, o artigo 10 traz a seguinte disposição:
Art. 10. A guarda e a disponibilização dos registros de conexão e de acesso a aplica-
ções de internet de que trata esta Lei, bem como de dados pessoais e do conteúdo de
comunicações privadas, devem atender à preservação da intimidade, da vida priva-
da, da honra e da imagem das partes direta ou indiretamente envolvidas.
Nestes dispositivos fica clara a preocupação do legislador em estabelecer normas
de proteção à privacidade dos indivíduos no ambiente virtual, porque neste cená-
rio, os sujeitos se tornam muito vulneráveis, dada a facilidade de disseminação dos
dados através das redes.

375
Thalita Abadia de Oliveira Magalhães
1.2 Direitos da personalidade e a morte do titular

O artigo 6º do Código Civil de 2002 traz que “A existência da pessoa natural


termina com a morte”. Assim, tem-se que nosso diploma civil traz a morte como
momento em que termina a existência da pessoa natural, sendo este o instante em
que os direitos patrimoniais serão transmitidos para seus sucessores, e conforme
alguns autores seria também o momento em que desapareceriam os direitos perso-
nalíssimos do falecido considerando que ele deixou de ser sujeito de direitos e obri-
gações.
Quanto às obrigações, é certo que aquelas que poderiam ser realizadas exclusi-
vamente pelo falecido, não poderão ser realizadas por pessoa distinta, nem mesmo
pelos herdeiros, pois a figura do devedor era imprescindível para o cumprimento.
Ocorre que quanto aos direitos personalíssimos, o próprio Código Civil traz a
possibilidade de tutela post mortem, que em seus artigos 12 e 20, parágrafo único,
dão legitimidade aos herdeiros para a proteção destes direitos, requerendo a cessa-
ção da ameaça ou da lesão.
Vale destacar que a proteção post-mortem de certos bens da personalidade diz res-
peito a interesses próprios da pessoa, enquanto em vida, como valoração dos ele-
mentos que a individualizava como ser humano, sujeito ao tratamento digno antes e
depois da sua morte. Pois, o corpo morto e sua memória necessitam do mesmo res-
peito à dignidade a qual era submetida à pessoa viva, em face do seu corpo e de sua
honra.10
Segundo o autor Enéas Costa Garcia, a morte cessa a personalidade jurídica, mas
não põe fim à personalidade humana, que continua produzindo efeitos mesmo
após a morte do indivíduo, pois há bens da personalidade física e moral que conti-
nuam influindo no curso das relações jurídicas, por isso continuam a ser autono-
mamente protegidos.11

10 BELTRÃO, Silvio Romero. Tutela jurídica da personalidade humana após a morte: conflitos
em face da legitimidade ativa. 2015. Disponível em: http://bit.ly/2V4OBUm. Acesso em: 14 jan.
2019.
11 GARCIA, Enéas Costa. Direito geral da personalidade no sistema jurídico brasileiro. São Paulo:
376
A possibilidade de acesso aos dados privados no perfil do Facebook...
A proteção post mortem cuida de bens jurídicos da personalidade que eram pro-
tegidos quando em vida, e que apesar do falecimento, continuam a ser objeto de
proteção, tais como, o direito à proteção da vida privada, da imagem, da honra, dos
segredos, das criações intelectuais, dentre outros.12
Assim, nota-se a preocupação do legislador em proteger os direitos da persona-
lidade mesmo após a morte de seu titular, caracterizando uma preocupação não
somente com os herdeiros, mas também com a memória do falecido, que merece
ser preservada. E como a existência da pessoa natural se extingue com a morte, a
tutela que se dá não é à pessoa do morto, mas aos aspectos de sua personalidade,
que devem e merecem ser protegidos, porque ligados à dignidade da pessoa huma-
na, e, portanto, devem perdurar muito além da personalidade jurídica.13
Desta forma, os direitos da personalidade como direito à privacidade, intimida-
de e honra seriam uma espécie de prolongamento da vida física do indivíduo, ou
seja, estes direitos transcendem a vida, merecendo tutela do Estado.

2 Direito à herança

Inicialmente, cabe destacar que herança e sucessão, apesar de estarem interliga-


dos, são termos distintos. Assim, segundo alguns escritores, a sucessão se refere a
“transmissão/transferência da titularidade do patrimônio pertencente a alguém, no
todo ou em parte, por força de lei ou por força da determinação de última vontade
do titular do patrimônio a outrem em virtude de sua morte.”14
Já a herança é conceituada como o conjunto de bens, direitos e obrigações dei-

Juarez de Oliveira, 2007, p. 107.


12 GARCIA, Enéas Costa. Direito geral da personalidade no sistema jurídico brasileiro. São Paulo:
Juarez de Oliveira, 2007, p. 108.
13 BELTRÃO, op. cit. BELTRÃO, Silvio Romero. Tutela jurídica da personalidade humana após a
morte: conflitos em face da legitimidade ativa. 2015. Disponível em: http://bit.ly/2V4OBUm.
Acesso em: 14 jan. 2019, p. 04.
14 PISSUTTO, Giovanna. O direito sucessório: principais aspectos. Disponível em:
https://bit.ly/2PfKLCh. Acesso em: 16 jan. 2019.
377
Thalita Abadia de Oliveira Magalhães
xados pelo de cujus aos seus sucessores, ou seja, “trata-se dos pertences, da univer-
salidade dos bens deixados pelo ‘de cujus’, aos seus herdeiros, sucessores legais. É o
patrimônio ativo e passivo deixado pelo falecido.”15
Desta forma, nota-se que os conceitos de sucessão e herança não se confundem.
A primeira, como dito acima, se refere à transmissão de bens ou direitos, que pode
se dar inter vivos ou causa mortis; já a segunda significa o acervo de bens, os direitos
e obrigações que serão transmitidos com a morte do titular.
De acordo com Maria do Céu Pitanga Pinto, o direito à herança também se liga
aos sentimentos do falecido, porque “(...) necessita o homem de um estímulo jurí-
dico para continuar amealhando bens e conservando aqueles que adquiriu, na cer-
teza de que a substituição da titularidade se dará, quando de sua morte, em favor
dos entes queridos.”16
É importante ainda destacar que o direito à herança exerce uma significativa
função social, porque permite a conservação de propriedades em prol do bem co-
mum, sendo que seria insensato que tais bens fossem extintos com a morte do pro-
prietário.17
Assim, há de se considerar que apesar de a existência da pessoa natural terminar
com a morte, o direito à herança é uma forma de dar continuidade àquilo que o
falecido adquiriu em vida para propiciar o sustento de sua família.
O direito à herança é disposto em algumas normas do ordenamento, como por
exemplo, o artigo 5º, inciso XXX, da Constituição Federal, que incluiu o direito à
herança no rol dos direitos e garantias fundamentais dos indivíduos, e o livro V (Do

15 DIREITO NET. Herança - Novo CPC (Lei nº 13.105/15). Publicado em 23/05/2010. Atualizado
em 27/05/2016. Disponível em: http://bit.ly/2Pj9aqO. Acesso em 16 jan. 2019.
16 PINTO, Maria do Céu Pitanga. A dimensão constitucional do direito de herança: aspectos
processuais do inventário e partilha. Dissertação apresentada à Banca Examinadora da
Faculdade de Vitória – FDV, 2006. Disponível em: https://bit.ly/2XpoXXP. Acesso em: 16 jan.
2019.
17 MENDES LIMA, Marcos Aurélio. Herança digital: transmissão post mortem de bens
armazenados em ambiente virtual. 2016. 95 f. Monografia (Graduação) – Curso de Direito,
Universidade Federal do Maranhão, São Luis – MA. Disponível em: https://bit.ly/2IqNqbU.
Acesso em: 16 jan. 2019.
378
A possibilidade de acesso aos dados privados no perfil do Facebook...
Direito das Sucessões) do Código Civil Brasileiro, que veio para regulamentar a
disposição constitucional.
Segundo disposto em nosso Código Civil, a sucessão causa mortis pode ser legí-
tima ou testamentária. A sucessão legítima ocorre quando o titular não deixou tes-
tamento, ou se deixou, este é nulo ou caduco, nestes casos os bens do falecido serão
transmitidos para os herdeiros legítimos, conforme a ordem do artigo 1.829 do
Código Civil. Já a sucessão testamentária, como o próprio nome já diz, é quando o
falecido deixou disposição de última vontade e a mesma possui validade, sendo que
pode ocorrer por meio do testamento não só a disposição de bens, mas podem
ocorrer outras declarações, como por exemplo, reconhecimento de filhos ou nome-
ação de tutor. Também é importante destacar que se o testador possuir herdeiros
necessários (descendentes, os ascendentes e o cônjuge), ele só poderá dispor da
metade de seu patrimônio.
O Código Civil ainda estabelece que se o falecido fizer um testamento, mas não
dispuser sobre alguma parte do patrimônio disponível, será este dividido conforme
as regras da sucessão legítima.
É importante explicitar estas informações gerais sobre a sucessão, pois quando
da morte do indivíduo, seus bens serão deixados aos seus sucessores da forma que
tiver sido estabelecido na lei, considerando haver ou não o testamento.
Apesar de não se tratar de um procedimento tão complexo, de permitir que seja
satisfeita a vontade do titular dos bens e evitar diversas brigas entre os herdeiros, a
transmissão de bens por meio de testamento não é muito utilizada no Brasil, sendo
mais recorrente a sucessão legítima.
A confecção do testamento também poderia dirimir vários conflitos relaciona-
dos a bens digitais, pois serviria como uma autorização do titular para o uso de tais
bens, como jogos, músicas, e-books, etc. Ocorre que há certa discussão sobre o que
poderia constar na disposição de última vontade do sujeito, pois se alguma parte do
patrimônio deixado interferir na esfera íntima de terceiro, poderá causar danos.
Isto quer dizer que o testador, mesmo que decida deixar seu acesso às redes sociais
para seus sucessores, encontraria um obstáculo, pois, por exemplo, as conversas
não são apenas dele, sempre haverá outra parte, assim, não há como dispor no tes-
tamento sobre algo que pertence também a outrem. O próprio Código Civil estabe-

379
Thalita Abadia de Oliveira Magalhães
lece que o testador deve dispor apenas de bens que lhe pertençam, sendo que seu
art. 1.912 dispõe que “É ineficaz o legado de coisa certa que não pertença ao testa-
dor no momento da abertura da sucessão”.
Em suma, temos que o direito à herança se constitui em um direito fundamen-
tal, estando disposto no art. 5º da Constituição Federal de 1988, e tal garantia trazi-
da no texto constitucional acaba por impor ao legislador a confecção de normas
regulamentadoras do instituto, assim, surge o capítulo do direito das sucessões no
Código Civil de 2002. Desta forma, ao mesmo tempo em que se é protegido o pa-
trimônio deixado pelo falecido, tem-se a proteção da família, como herdeira de tais
bens.

3 Sucessão digital

Com a modernidade e as inovações tecnológicas, tem crescido o número de pes-


soas que armazenam suas informações no espaço virtual, seja em arquivos, e-mails
ou redes sociais. Ocorre que o acesso a essas informações geralmente só pode ser
realizado por meio de uma senha pessoal, que normalmente somente o usuário
possui. Assim, todos os usos desses dados só podem ser feitos pelo titular.
A questão tormentosa, se inicia quando nos deparamos com a morte do titular e
a possibilidade de acesso desses dados digitais por seus herdeiros, pois podem ter
sido deixados perfis em redes sociais, jogos, músicas, livros e tantos outros ativos
digitais.
Nesta esteira, surge o conceito de sucessão digital, sendo uma fusão entre o di-
reito digital e o direito das sucessões, e que visa justamente cuidar desta questão dos
bens digitais e a possibilidade de transmissão post mortem.
Como objeto da sucessão digital, temos a herança digital que “é o conteúdo ima-
terial, incorpóreo, intangível, sobre o qual o falecido possuía titularidade, formado
pelos bens digitais com valoração econômica e sem valoração econômica”18, e o

18 RIBEIRO, Desirée Prati. A herança digital e o conflito entre o direito à sucessão dos herdeiros e
o direito à privacidade do de cujus. Monografia apresentada ao Curso de Graduação em Direito,
da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM, RS), 2016. Disponível em:
380
A possibilidade de acesso aos dados privados no perfil do Facebook...
conceito de bens digitais engloba e-mails, arquivos armazenados na nuvem
(Dropbox, OneDrive ou Google Drive), e-books, aplicativos, contas em redes sociais,
entre outros.
É um tema relativamente recente, até porque o direito digital é algo que surgiu
nos últimos anos, mas é de grande importância devido à grande popularização das
várias ferramentas digitais atualmente, portanto, necessária a adequada tutela juris-
dicional.

3.1 Sucessão digital no Brasil

O tema é controverso, porque a legislação brasileira ainda é omissa, e pouco se


discute sobre isso na doutrina pátria, mas é importante que comece a ser discutido,
pois a tendência é que passem a existir cada vez mais bens digitais em detrimento
dos materiais. No mesmo sentido, a pesquisadora Isabela Rocha Lima entende que
“A cada dia que passa, o legado deixado na internet fica maior. E, considerando que
alguma parte desse conteúdo pode ter valor comercial, será difícil separar a herança
real da digital.” 19
De acordo com Alessandro Gonçalves e José Anchiêta: “O desafio trazido pela
vida multiconectada é garantir a aplicabilidade das normas de direito sucessório,
previstas no Livro V do Código Civil Brasileiro, ao patrimônio digital.” 20
Segundo Tuany Schneider Pasa:
(...) a figura em comento ainda não está amadurecida nos pensamentos doutriná-
rios, em razão do profundo impacto da Internet na vida das pessoas, da mesma for-
ma que o direito tradicional ainda se mostra insuficiente para tratar de alguns as-
suntos desse meio, porém enquanto não há essas alterações necessárias para o Direi-

https://bit.ly/2GqA2Bc. Acesso em: 16 jan. 2019.


19 LIMA, Isabela Rocha. Herança Digital: direitos sucessórios de bens armazenados virtualmente.
Monografia apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, 2013. Disponível
em: http://bit.ly/2GoJTY7. Acesso em: 16 jan. 2019.
20 BARRETO, Alessandro Gonçalves; NERY NETO, José Anchiêta. Publicado em 14/03/2016.
Herança digital. Disponível em: http://bit.ly/2XkV8re . Acesso em: 16 jan. de 2019.
381
Thalita Abadia de Oliveira Magalhães
to acompanhar a realidade, faz-se necessário analisar sob a ótica do conjunto de
normas existentes no sistema jurídico, mais especificadamente, do direito das suces-
sões a partir de uma interpretação extensiva para a tutela desses dados (...).21
Sobre a questão da controvérsia entre a transmissão post mortem e a privacidade
do de cujus, os artigos e monografias brasileiros tem se inclinado no sentido de que
podemos fazer uma divisão entre os bens com valoração econômica e aqueles sem
valoração econômica.
Quanto aos primeiros, o entendimento é que devem compor a herança, pois se
traduzem em patrimônio do falecido, portanto, passível ser deixado para seus su-
cessores, sendo assim, “constata-se que o conteúdo economicamente valorável do
acervo digital integra a definição de patrimônio, devendo, por essa razão, integrar,
quando da morte do titular, o todo unitário da herança.”22
Ocorre que em relação aos bens sem valoração econômica, que seriam aqueles
que têm apenas valor sentimental, o entendimento de parte dos juristas seria de que
eles não são passíveis de valoração econômica, assim, “não podem ser recebidos
por herdeiros por não fazerem parte do patrimônio”23, e ainda porque poderão ferir
a honra, privacidade e intimidade do de cujus. Nesse sentido:
O acesso a tais bens fere o direito à privacidade do falecido, afinal em seus emails,
perfis em rede sociais ou dados armazenados em “nuvem” podem estar registrados
seus segredos mais íntimos, e pelo fato de o falecido não ter realizado disposição de
última vontade para esse acesso, caso ocorra tal transmissão se estaria priorizando o
direito de herdar dos sucessores em detrimento do direito da personalidade do fale-
cido ter protegido para além da vida, privacidade, intimidade, honra e imagem.

21 PASA, Tuany Schneider. Herança digital: um novo enfrentamento. Monografia apresentada ao


curso de Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul, UNISC, 2016. Disponível em:
https://bit.ly/2ZiiZd5. Acesso em: 16 jan. 2019.
22 VIEGAS, Cláudia Mara de Almeida Rabelo; SILVEIRA, Sabrina Bicalho. A herança digital:
considerações sobre a possibilidade de extensão da personalidade civil post mortem. Publicado
em 26/10/2017. Disponível em: https://bit.ly/2DuAL3F . Acesso em: 16 jan. 2019.
23 SEGANFREDO, Henrique. Sucessão digital. 2017. 149 f. Monografia (graduação) – Faculdade
de Ciências Jurídicas e Sociais, Centro Universitário de Brasília (UniCEUB), Brasília - DF. Dis-
ponível em: https://bit.ly/2UrOjlO. Acesso em: 16 jan. 2019.
382
A possibilidade de acesso aos dados privados no perfil do Facebook...
Ao sopesar os princípios conflitantes evidencia-se que o direito à privacidade do
falecido frente ao direito de herdar prevalece, com fulcro na dignidade da pessoa
humana que transcende a existência física.24
A questão da privacidade do falecido em confronto com o direito à herança en-
contra nas pesquisas pátrias duas respostas, pois no que se refere aos dados digitais
sem valor econômico, a ideia majoritária é que não podem ser deixados à disposi-
ção dos herdeiros, pois podem ferir a honra, privacidade e intimidade do de cujus,
já quanto aos dados digitais com valoração econômica, se encontram inseridos
dentro do conceito de patrimônio, devendo, portanto, ser resguardados aos herdei-
ros.

3.2 Projetos de Lei 4.099/2012 e 4.847/2012

Com a ideia de que o Direito é uma ciência dinâmica, que precisa acompanhar
todos os avanços sociais, culturais e tecnológicos, pois todos impactam diretamente
na percepção de mundo, e, portanto, no modo como se comporta a sociedade, tem
se buscado formas de aproximá-lo da realidade em que nos encontramos: a era
digital.
Neste contexto, estão em tramitação dois projetos de lei que tratam sobre a
questão da herança digital, ou seja, de que modo se daria a sucessão em relação a
bens digitais.
Primeiramente temos o Projeto de Lei 4.099/12, proposto pelo deputado Jorgi-
nho Mello, apresentado em 20/06/2012, cujo último andamento foi remessa ao
Senado Federal em outubro de 2013. Este projeto pretende alterar o artigo 1.788 do
Código Civil Brasileiro para dispor sobre a sucessão dos bens e contas digitais do
autor da herança, que passaria a vigorar com o acréscimo de um parágrafo único,
com a seguinte disposição: “Serão transmitidos aos herdeiros todos os conteúdos de

24 RIBEIRO, Desirée Prati. A herança digital e o conflito entre o direito à sucessão dos herdeiros e
o direito à privacidade do de cujus. Monografia apresentada ao Curso de Graduação em Direito,
da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM, RS), 2016. Disponível em:
https://bit.ly/2GqA2Bc. Acesso em: 16 jan. 2019, p. 47.
383
Thalita Abadia de Oliveira Magalhães
contas ou arquivos digitais de titularidade do autor da herança”25. A justificativa do
autor do projeto é trazer regularização e uniformização nas decisões sobre o tema,
porque atualmente chegam aos Tribunais diversos casos envolvendo herança digi-
tal, onde as famílias querem ter acesso às contas e arquivos digitais, e as soluções
tem sido distintas para cada caso.26
Também foi proposto o Projeto de Lei 4.847/12, apresentado pelo deputado
Marçal Filho em 12/12/2012, visando acrescentar o Capítulo II-A (Da Herança
Digital) e os arts. 1.797-A a 1.797-C ao Código Civil, com a seguinte redação27:
Art. 1.797-A. A herança digital defere-se como o conteúdo intangível do falecido,
tudo o que é possível guardar ou acumular em espaço virtual, nas condições seguin-
tes:
I – senhas; II – redes sociais; III – contas da Internet; IV – qualquer bem e serviço
virtual e digital de titularidade do falecido.
Art. 1.797-B. Se o falecido, tendo capacidade para testar, não o tiver feito, a herança
será transmitida aos herdeiros legítimos.
Art. 1.797-C. Cabe ao herdeiro:
I - definir o destino das contas do falecido;
a) - transformá-las em memorial, deixando o acesso restrito a amigos confirmados e
mantendo apenas o conteúdo principal ou;
b) - apagar todos os dados do usuário ou;
c) - remover a conta do antigo usuário.
Para o autor do projeto, tudo que puder ser guardado em espaço virtual passa a
fazer parte do patrimônio do indivíduo. Como a ideia de herança digital ainda é
pouco difundida no Brasil há a necessidade de uma lei específica para que os famili-

25 BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 4.099/2012, do Sr. Jorginho Mello. Disponí-
vel em: https://bit.ly/2UJjNZS. Acesso em: 16 jan. 2019.
26 BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 4.099/2012, do Sr. Jorginho Mello. Disponí-
vel em: https://bit.ly/2UJjNZS. Acesso em: 16 jan. 2019, p. 02.
27 BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 4.847/2012, do Sr. Marçal Filho. Disponível
em: https://bit.ly/2KJFfcB. Acesso em 16 jan. 2019.
384
A possibilidade de acesso aos dados privados no perfil do Facebook...
ares tenham assegurado o direito de gerir o legado digital de seus parentes falecidos.
Na tramitação do Projeto de Lei 4.847/12 consta que em outubro de 2013 ele foi
arquivado nos termos do artigo 163 c/c 164, § 4º, do Regimento Interno da Câmara
dos Deputados, mas no mesmo mês, o Deputado Marçal Filho apresentou reclama-
ção para elucidar a interpretação e a observância dos arts. 163 e 164 do Regimento
Interno. A questão ainda não foi decidida.
Os dois Projetos de Lei ainda estão em fase de tramitação, contudo, já há críticas
às questões suscitadas em ambos, sendo que um dos motivos apontados por estudi-
osos do direito digital é que tais normas seriam inconstitucionais porque “(...)
grande parte das contas e arquivos digitais de titularidade de pessoas falecidas estão
amparados pelos direitos à intimidade e à privacidade, espécies do gênero ‘direitos
da personalidade’, os quais permaneceriam intactos mesmo após o óbito”.28
Assim, só nos resta aguardar o deslinde da situação para que esclarecidas essas
questões antagônicas levantadas por ambas as partes.

3.3 Sucessão no Facebook

O Facebook é uma rede social muito popular no Brasil, e devido a essa populari-
dade, surge a indagação acerca do que ocorre com o perfil de um usuário quando
ele falece, contudo, antes de tratar desta questão, é importante algumas considera-
ções sobre esta rede social.
Na página inicial do Facebook, quando a pessoa vai criar uma conta, aparecem
os termos e políticas que ela concorda ao se inscrever, para que possa ler e ter ciên-
cia de todas as implicações de seu cadastro e informações importantes sobre os
dados.
Em sua página de termos de serviços29, o Facebook apresenta os produtos e ser-

28 MENDES LIMA, Marcos Aurélio. Herança digital: transmissão post mortem de bens
armazenados em ambiente virtual. 2016. 95 f. Monografia (Graduação) – Curso de Direito,
Universidade Federal do Maranhão, São Luis – MA. Disponível em: https://bit.ly/2IqNqbU.
Acesso em: 16 jan. 2019, p. 57.
29 FACEBOOK. Termos de serviço do Facebook. Disponível em: < http://bit.ly/2ZsEnwm >.
385
Thalita Abadia de Oliveira Magalhães
viços que coloca à disposição de seus usuários, e também cita os compromissos do
usuário na utilização do programa. Dentre eles estão: usar o nome que utiliza na
vida real; fornecer informações precisas; não compartilhar a senha ou acesso para
terceiros; ter pelo menos 13 anos; não ter sido condenado por crime sexual, etc., e
outro requisito é que não seja compartilhado conteúdo que viole a segurança, inte-
gridade e bem-estar de outros.
Nas disposições adicionais dos termos de serviço do Facebook, consta os moti-
vos pelos quais a conta pode ser suspensa ou desativada, estando entre eles a viola-
ção dos termos ou política. Outro ponto importante das disposições adicionais está
no tópico de contestações, dispondo o seguinte:
Se você for um consumidor, as leis do país em que você reside serão aplicáveis a
qualquer pleito, causa de ação ou contestação que você tiver contra nós decorrente
de ou relacionada a estes Termos ou aos Produtos do Facebook (“reivindicação”), e
você poderá resolver sua reivindicação em qualquer tribunal competente em tal país
que tenha jurisdição para tanto. Em todos os outros casos, você concorda que a rei-
vindicação deverá ser resolvida exclusivamente no tribunal distrital dos EUA no
Distrito Norte da Califórnia ou em um tribunal estadual localizado no condado de
San Mateo, que você se submeterá à jurisdição pessoal de qualquer desses tribunais
para o fim de resolver esses pleitos e que as leis do estado da Califórnia regerão estes
Termos e qualquer pleito, independentemente de disposições sobre conflitos de leis.
Assim, o indivíduo, quando decide criar uma conta no Facebook deve estar cien-
te de que está celebrando uma espécie de contrato, sendo necessário saber que há
várias implicações e permissões para o uso dos serviços disponíveis, e também que
qualquer reivindicação/reclamação pode encontrar obstáculos por se tratar de pla-
taforma internacional e com regras próprias.
Ainda nas disposições adicionais, consta que o usuário não pode transferir qual-
quer de seus direitos ou obrigações previstos nos Termos para qualquer outra pes-
soa sem o consentimento do Facebook. Traz também a possibilidade de designar
uma pessoa para administrar a conta caso ela seja transformada em memorial, o
que será visto com mais detalhes no próximo tópico.

Acesso em: 16 jan. 2019.


386
A possibilidade de acesso aos dados privados no perfil do Facebook...
Com essa breve exposição sobre os termos e política, nota-se que os dados do
usuário ficam à disposição do Facebook, que dita as regras de armazenamento e
controle destes dados, inclusive proibindo o compartilhamento da senha ou acesso
a terceiros, afirmando sempre que é para uma melhor utilização dos produtos e
serviços, e deixando poucas ou nenhuma opção ao usuário que não concorde com
certos termos.

3.3.1 O que acontece com o perfil no Facebook após a morte do titular

Muitas pessoas morrem todos os dias, e muitas dessas pessoas possuem redes
sociais, então surge a seguinte dúvida: o que acontece com o perfil da pessoa quan-
do ela falece?
O Facebook criou opções para os casos em que o dono do perfil venha a fale-
cer30:
o usuário pode indicar um contato herdeiro para cuidar de sua conta trans-
formada em memorial ou ter sua conta excluída permanentemente.
Caso o usuário não tenha interesse em ter uma conta no Facebook quando fale-
cer, há a opção nas configurações para que a conta seja permanentemente excluída.
Basta ir até as configurações, clicar na aba ‘gerenciar conta’, e logo abaixo da opção
de contato herdeiro, aparece a opção ‘solicitar exclusão da conta’, para caso o usuá-
rio não queira uma conta no Facebook após o falecimento, assim ela será perma-
nentemente excluída.
A opção de transformar as contas em memorial serve para que seja dada uma
espécie de sobrevida online para o falecido, pois muitas pessoas têm esse desejo de
não serem esquecidas mesmo após a morte. Assim, nas contas memoriais os amigos
podem compartilhar lembranças na linha do tempo; o conteúdo compartilhado em
vida pela pessoa permanece e fica visível para o público com o qual foi comparti-
lhado; os perfis transformados em memorial não são exibidos em espaços públicos,
como nas sugestões do recurso Pessoas que você talvez conheça, em lembretes de
aniversário ou anúncios; ninguém poderá entrar em uma conta transformada em

30 FACEBOOK. O que acontecerá com a minha conta se eu falecer? Disponível em: https://pt-
br.facebook.com/help/103897939701143> Acesso em: 16 jan. 2019.
387
Thalita Abadia de Oliveira Magalhães
memorial; e também as contas transformadas em memorial que não tiverem um
contato herdeiro não poderão ser alteradas31.
Caso a escolha do usuário seja a de ter um administrador para sua conta trans-
formada em memorial, é necessário nomear um contato herdeiro32. O site responde
a questão “O que é um contato herdeiro e o que ele pode fazer?”33 dizendo que ele
poderá fixar uma publicação no perfil do falecido caso as configurações permitam;
aceitar novas solicitações de amizade; atualizar a foto do perfil e da capa; solicitar
que a conta seja removida; e também, se o dono do perfil tiver autorizado, o herdei-
ro poderá baixar uma cópia de tudo que foi compartilhado. Contudo, o herdeiro
não poderá entrar na conta; remover ou alterar conteúdo do usuário; ler as mensa-
gens; remover amigos ou solicitar novas amizades; e adicionar um novo contato
herdeiro.
Para nomear um contato herdeiro, o usuário deve ir às configurações, entrar na
aba ‘gerenciar conta’, e aparece a opção ‘seu contato herdeiro’, então tem um espa-
ço para que seja colocado o nome da pessoa escolhida (sendo permitido apenas
escolher entre os amigos do Facebook).
Depois da escolha do contato herdeiro, aparece a opção de enviar a seguinte a
seguinte mensagem:
Olá, (...). O Facebook agora permite que as pessoas escolham um contato herdeiro
para cuidar de seu perfil caso algo aconteça com elas:
https://www.facebook.com/help/1568013990080948
Eu escolho você porque você me conhece bem e eu confio em você. Me avise se
quiser conversar sobre isso.

31 FACEBOOK. O que acontecerá com a minha conta se eu falecer? Disponível em: <https://pt-
br.facebook.com/help/103897939701143> Acesso em: 16 jan. 2019.
32 A atualização que permite designar um contato herdeiro foi lançada nos Estados Unidos em
fevereiro de 2015, e foi disponibilizada para os usuários do Brasil em setembro do mesmo ano.
(ZARA, André. Brasileiro já pode escolher 'herdeiro' para o seu Facebook em caso de morte.
Publicado em 14 set 2015. Disponível em: < https://bit.ly/2XjvbbJ >. Acesso em 16 jan. 2019.)
33 FACEBOOK. O que é um contato herdeiro e o que ele pode fazer? Disponível em: <https://pt-
br.facebook.com/help/1568013990080948>. Acesso em: 16 jan. 2019.
388
A possibilidade de acesso aos dados privados no perfil do Facebook...
Contudo, esta mensagem pode ser editada pelo usuário, ou ele pode clicar na
opção ‘agora não’ e não enviar a mensagem, caso prefira falar pessoalmente.
Após a opção de envio da mensagem, aparece a permissão de envio de dados, o
usuário deve clicar se quiser permitir que o contato herdeiro baixe uma cópia do
conteúdo compartilhado no Facebook, sendo que isso pode incluir publicações,
fotos, vídeos e informações da seção Sobre do perfil, mas não inclui as mensagens
privadas. Caso a pessoa não queira mais o contato herdeiro que adicionou basta
clicar na opção remover que aparece abaixo do nome da pessoa.
O Facebook ainda informa que para nomear um contato herdeiro, o usuário de-
ve ter pelo menos 18 anos de idade.
O autor Nelson Rosenvald escreveu sobre o tema em seu livro “O Direito Civil
em movimento” em um capítulo intitulado “A Sucessão no Facebook”, e disse que
“Mesmo que haja um inventariante para gerir o patrimônio real do morto, a em-
presa determinou que o titular da página terá que nomear um administrador para o
pós-morte, seguindo a ‘soft law’ do Facebook”34, não valendo assim as leis estatais.
O autor diz que a conta memorial seria para quem tem interesse em ter uma af-
terlife digital, contudo, o contato herdeiro tem poder apenas fazer as ações já cita-
das acima, não podendo editar o que o falecido havia publicado, isso quer dizer que
se o titular da conta fez alguma publicação embaraçosa, o herdeiro nada pode fazer
a respeito.
Apesar de Rosenvald entender que essa possibilidade valorize a autonomia exis-
tencial, ele observa que o brasileiro ainda despreza o uso da autodeterminação para
as disposições de última vontade, dificultando a compreensão de que o perfil no
Facebook possa fazer parte da herança.35
Então, o usuário tem a opção de entrar nas configurações e estabelecer se quer
que sua conta seja excluída ou se quer que seja transformada em memorial e no-
meie um contato herdeiro. Contudo, caso nenhuma dessas opções seja realizada
pelo usuário, e o Facebook toma conhecimento do falecimento, a conta será trans-
formada em memorial, contudo não será administrada por ninguém, o que seria

34 ROSENVALD, Nelson. O direito civil em movimento. 2. ed. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 302.
35 ROSENVALD, Nelson. O direito civil em movimento. 2. ed. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 303.
389
Thalita Abadia de Oliveira Magalhães
como se a conta permanecesse congelada. Os parentes próximos têm ainda a opção
de solicitar a remoção da conta, sendo que o Facebook exige verificação de que é um
membro direto da família ou testamenteiro para a remoção da conta, e ainda salien-
ta que caso tenha um contato herdeiro, só ele pode solicitar a remoção da conta.
No ano de 2018, a Corte da Alemanha foi à contramão do que dispõe as políticas
de privacidade do Facebook e determinou que o acesso às redes sociais pode ser
herdado quando as pessoas morrem. Em 2017 um tribunal alemão negou o pedido
da mãe para acessar o perfil da filha que havia falecido, a genitora queria o acesso
para ver se conseguia descobrir se a garota havia se suicidado. Os pais da jovem
tinham a senha, mas quando foram acessar, não conseguiram porque a conta havia
sido transformada em memorial.
A decisão do Tribunal Federal alemão foi de que “as contas de mídia social não
são diferentes das cartas e diários pessoais, pois eles também podem ser herda-
dos”36, então não haveria motivo para tratar o conteúdo digital de modo diverso.
Assim, o Facebook segue no sentido de negar o acesso dos herdeiros aos perfis
dos falecidos, seguindo sua política de privacidade, mas isso gera por vezes a indig-
nação dos familiares, que se socorrem do judiciário para tentar resolver a contro-
vérsia.

4 Direito à privacidade versus direito à herança

Analisando a questão da possibilidade de acesso aos dados privados no perfil do


Facebook de usuário falecido, depara-se com a colisão entre dois direitos funda-
mentais, de um lado está o direito à privacidade, e de outro, o direito à herança.
Segundo Luis Roberto Barroso37, a colisão entre direitos fundamentais seria
apenas uma particularização da colisão de princípios, porque “a estrutura normati-
va e o modo de aplicação dos direitos fundamentais se equiparam aos princípios.”

36 FACEBOOK ordenou deixar a mãe enlutada entrar na conta da filha morta. Sophos.com,
Publicado em 13/07/2018. Disponível em: http://bit.ly/2GrIcKw. Acesso em: 16 jan. 2019.
37 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo. São Paulo: Saraiva,
2009, p. 329.
390
A possibilidade de acesso aos dados privados no perfil do Facebook...
Para solucionar a colisão entre princípios, é muito utilizada a técnica da ponde-
ração, por meio da qual tenta-se inferir no caso concreto qual princípio terá prece-
dência sobre o outro, e como dito acima, já que as estruturas são semelhantes às dos
princípios, a colisão entre direitos fundamentais também pode ser solucionada
através da ponderação. Deste modo, passa-se enfim à análise da colisão entre o
direito à privacidade e o direito à herança.
Ambos os direitos são fundamentais, tanto no aspecto formal quanto no materi-
al, porque além de estarem presentes na nossa Constituição Federal, o conteúdo
deles está intrinsecamente ligado aos valores de nossa sociedade, então são direitos
essenciais.
Como não há hierarquia entre eles, deverá ser utilizada a técnica da ponderação,
sendo que o que se busca não é dizer que um destes direitos sempre deverá estar
acima do outro, a ideia é que analisando a questão da privacidade e o direito de
herdar dos sucessores, possamos estabelecer qual princípio deveria prevalecer sobre
o outro neste caso.
O Facebook é a rede social mais utilizada atualmente no Brasil, e se constitui em
uma enorme sala de conversação, os indivíduos se comunicam com diversas pesso-
as de diversos locais, compartilham suas histórias e experiências, e ao mesmo tem-
po em que é um ambiente extremamente público, é também um local íntimo, pois a
despeito de os compartilhamentos, curtidas e comentários estarem acessíveis aos
amigos da rede ou até ao público em geral, as conversas no bate-papo são privadas,
só interessando aos que estão conversando.
Assim, a proteção destas conversas está ligada à proteção aos direitos da perso-
nalidade, principalmente, privacidade, intimidade e honra, pois pode haver conver-
sas e assuntos extremamente íntimos, que só dizem respeito aos interlocutores, e
que caso venham a ser conhecidos por terceiros, podem gerar danos também a
outras pessoas.
O direito à herança está muito ligado a questões patrimoniais, se referindo àqui-
lo construído ou conquistado pelo sujeito em vida, e que quando de sua morte será
utilizado para sustento de sua família, daí a grande conexão com o direito à propri-
edade. A grande questão, e para a qual ainda não há resposta clara, é se os dados
digitais constituem-se em patrimônio passível de ser herdado, e muitos autores

391
Thalita Abadia de Oliveira Magalhães
concordam que sim, mas apenas aqueles bens que possuem valoração econômica,
ou seja, não abrange bens estritamente sentimentais.
Os dois direitos em conflito se ligam à dignidade da pessoa humana, pois dis-
põem sobre questões que estão ligadas a uma existência digna do indivíduo, um
assegurando a privacidade, e outro assegurando a defesa do patrimônio individual e
a manutenção da família.
Entretanto, há de se considerar que a valorização da esfera íntima do indivíduo
merece uma maior proteção, pois está intimamente ligada à percepção que cada um
tem de si, e que os indivíduos têm um do outro, sendo, portanto, essenciais à exis-
tência humana, e devendo ser respeitados por todos. Ainda sobre os direitos da
personalidade e as redes sociais, tem-se que “Restringindo-se à seara dos sites de
redes sociais (...), a pessoa humana é parte sempre vulnerável nas relações jurídicas
travadas em seu âmbito. Posto isso, clama-se pela necessidade de proteção especial
a seus aspectos existenciais.”38
Já foi dito que certos direitos da personalidade permanecem mesmo com a mor-
te da pessoa natural, pois tais direitos devem permanecer intactos muito além do
fim da personalidade jurídica do sujeito, mas apesar de a discussão se pautar inici-
almente no direito do falecido, é importante considerar que a permissão de que se
tenha acesso aos dados da conta do de cujus pode ocasionar danos nas outras pes-
soas que estavam nas conversas, e até em quem não estava.
Com toda essa explanação, verifica-se que no cenário trazido à discussão, qual
seja, a possibilidade de acesso dos herdeiros ao perfil no Facebook do falecido, que
acaba por gerar o conflito entre o direito à privacidade e o direito à herança, utili-
zando-se a técnica da ponderação e analisando as principais implicações de ambos
os direitos, a conclusão a que se chega é que o primeiro deve prevalecer sobre o
segundo, pois abrange os sentimentos do ser humano, o que está além de questões
patrimoniais, e ainda, certas informações que possam ser descobertas pela família
caso se opte pela violação da privacidade, podem causar uma série de transtornos, e

38 LONGHI, João Victor Rozatti. Responsabilidade civil por danos à pessoa oriundos do uso de
perfis falsos em sites de redes sociais. 2011. 167 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de
Direito, Universidade do Estado do Rio Janeiro – UERJ, Rio de Janeiro – RJ. Disponível em: <
https://bit.ly/2IGr70T >. Acesso em: 16 jan. 2019.
392
A possibilidade de acesso aos dados privados no perfil do Facebook...
inclusive mudar a própria ideia da dos familiares sobre o falecido.

Conclusão

A Era Digital trouxe grandes e importantes mudanças, e como não poderia ser
diferente, o Direito, como ciência que cuida das relações jurídicas entre os sujeitos,
precisa acompanhar estas transformações. Assim, se discutiu neste texto os desafios
jurídicos que surgem frente à possibilidade de acesso dos herdeiros ao perfil no
Facebook do de cujus.
A questão principal era analisar se seria possível estender os direitos da persona-
lidade mesmo após a morte do titular, pois segundo o Código Civil, a existência da
pessoa natural termina com a morte. A conclusão a que se chegou foi de que a per-
sonalidade jurídica se finda com a morte, mas a personalidade humana continua,
isto quer dizer que como nosso ordenamento é pautado na dignidade da pessoa
humana, há de se considerar que há direitos tão essenciais a esta dignidade que
merecem proteção mesmo após a morte. A tutela post mortem dos direitos da per-
sonalidade se refere a uma espécie de extensão da vida do indivíduo, uma forma de
preservação de sua memória.
É certo que assim como o direito à privacidade, o direito à herança também é
fundamental, por isso foi abordado o tema da colisão entre direitos fundamentais, e
ao final, a opinião foi a de que o direito à privacidade prevalece sobre o direito à
herança, o que significa dizer que apesar de o indivíduo ter falecido, a proteção a
direito da personalidade deve ser realizada pelo Estado, assim, o direito de herdar
não deve abranger o acesso aos dados privados no perfil do Facebook.
Ainda é preciso ressaltar que os acessos às mensagens privadas podem expor
terceiros, assim não basta uma disposição de última vontade do titular da conta
autorizando seus herdeiros a acessar seu perfil, porque isto violaria o direito dos
demais interlocutores.
A ideia do Facebook de criar um memorial é vista por mim com bons olhos, pois
o que estava disponível para os amigos da rede social os herdeiros podem acessar e
até administrar, o que não se pode aceitar é que tenham acesso a dados que só esta-
vam disponíveis para o dono do perfil, e nem que possam alterar aquilo que foi
393
Thalita Abadia de Oliveira Magalhães
postado ou compartilhado em vida pelo usuário.
Como nosso ordenamento traz o direito do amplo acesso à justiça, é perfeita-
mente válido que as famílias procurem o judiciário para dirimir questões como a
que se discute neste trabalho, ocorre que enquanto não houver uma legislação espe-
cífica, os conflitos só tendem a crescer e isso pode gerar decisões conflitantes, e
consequentemente insegurança jurídica. Também não é certo que as normas regu-
ladoras do ciberespaço venham das próprias empresas interessadas, o mais correto
é que sejam criadas normas pelo Estado de acordo com toda sua legislação e valo-
res, mas que permitam que as empresas também participem do processo de regu-
lamentação para que não venha a ser algo obsoleto.

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397
A EVOLUÇÃO DA PROTEÇÃO DE DADOS
PESSOAIS AO PATAMAR DE DIREITO
FUNDAMENTAL

17
Thiago Pinheiro Vieira de Souza

Introdução

Há muitos séculos, instituições sociais como a Igreja e o Estado estiveram asso-


ciadas ao controle do poder na sociedade e, consequentemente, ao controle da in-
formação. Isso mudou a partir de meados do século XX, quando o desenvolvimento
tecnológico acarretou a intensificação dos fluxos de informação de uma forma nun-
ca antes vista, o que levou à denominação da sociedade atual como Sociedade da
Informação ou Era da Informação1.
Uma das consequências mais claras da informatização de muitos aspectos da vi-
da cotidiana atual, é justamente a possibilidade de registro de praticamente todos
atos realizados através de meios informatizados, e muitos desses, que antes seriam
efêmeros e gerariam consequências apenas imediatas e previsíveis dentro de deter-
minados padrões, passam a tomar forma de informações armazenadas, o que abre a
possibilidade de serem utilizadas em contextos diferente daqueles nos quais foram
inicialmente praticados, e com finalidades também diversas, fugindo, muitas vezes,
do poder de previsão e controle de quem inicialmente os praticou.

1 Sobre as expressões, ver: LYON, David. The information society: issues and illusions. Cam-
bridge: Polity Press, 1988.
399
Thiago Pinheiro Vieira de Souza
Não apenas atos são armazenados, mas também – e principalmente – os dados
de identificação dos sujeitos que os praticam, que são fornecidos frente a uma em-
presa, podendo ser coletados e utilizados para diversas finalidades. O perfil de uma
pessoa, do que ela gosta, o que compra, quais suas necessidades, hábitos e, em al-
guns casos, até mesmo sua localização e seu perfil genético valem tanto para o mer-
cado que o consumidor, nesse contexto, não é mais visto como somente um desti-
natário de informações, mas como a própria fonte delas, determinando, inclusive, a
forma como ele será abordado e tratado futuramente.
Ao mesmo tempo que a informação pessoal é utilizada como capital e moeda do
mercado, a cessão de informações pessoais é feita em troca de quaisquer tipos de
serviços digitais, sem qualquer preocupação com a forma pela qual será feito seu
tratamento, onde esses dados são armazenados, quem tem acesso a eles, ou quais as
regras para a transferência dos mesmos. Poucos parecem se preocupar com o fato
de que a maior parte das informações cedidas a empresas virtuais são vendidas e
compartilhadas com outras, de forma que é possível identificar e rastrear os usuá-
rios consumidores em quase todas atividades realizadas: o valor desses dados nunca
foi tão subestimado pela sociedade.
Diante do fato de que as informações pessoais são comercializadas livremente
em grande escala no mercado, a indiferença do Direito perante o desenvolvimento
tecnológico deixa de ser possível, devendo este estar preparado para enfrentar as
novas situações decorrentes das tecnologias informacionais inovadoras. Assim,
desenvolveu-se um debate doutrinário acerca da possibilidade de se garantir um
direito de propriedade sobre os dados pessoais, seguindo o pretexto de que o direito
tem de se adequar à realidade e ao fato social.
Sob essa ótica, e para possibilitar a resposta adequada aos desafios sociais advin-
dos da revolução tecnológica, é fundamental que a Teoria do Direito se reconstrua a
ponto de compreender e solucionar os novos problemas enfrentados pelo homem
na era da informação.
Desse modo, este artigo busca analisar quais são as consequências da conexão
entre sociedade de informação e sociedade de consumo, bem como as formas pelas
quais o direito pode contribuir para proteger a privacidade do consumidor.

400
A evolução da proteção de dados pessoais...
Simson Garfinkel2 aproxima tal questão com a devastação do meio ambiente pe-
la tecnologia moderna, que foi tratada nas décadas de 1950 e 1960 como um pro-
blema inevitável: sob tal ótica, seria necessário conviver com a destruição das reser-
vas naturais do planeta como condição para o desenvolvimento econômico e o
aumento do nível de vida da população.
Ocorre, no entanto, que tal visão foi superada a partir da concepção do desen-
volvimento sustentável, que propugna conciliar o desenvolvimento econômico com
a preservação ambiental. Assim, ao se analisar o tema da proteção de dados pessoais
na sociedade da informação, é fundamental compreender que o cerne do problema
não está situado na tecnologia. Afinal, a tecnologia não se encontra em um vácuo,
devendo ser compreendida a partir do meio social, econômico e político em que
está inserida.
Nesse sentido, é fundamental que o debate sobre a proteção de dados pessoais
tenha como foco as opções jurídicas e econômicas relativas às funções que a tecno-
logia deve assumir na sociedade, rejeitando-se, de plano, a ideia de que ela é a res-
ponsável pela perda de privacidade pessoal da sociedade contemporânea.
Não se trata mais de assegurar o segredo, mas sim de assegurar o controle sobre
os fluxos de informação, devendo a privacidade ser pensada como um direito tam-
bém atinente à esfera de liberdade pessoal e política, com repercussões coletivas3.
Dessa forma, a construção da esfera privada deve ser compreendida, nas sociedades
contemporâneas, como a possibilidade de o indivíduo controlar o acesso e o uso
dos dados que constituem a sua identidade pessoal e permitem o livre desenvolvi-
mento de sua personalidade4. Normas relativas à proteção de dados são, assim, uma
maneira indireta de atingir um objetivo último, que é a proteção da própria pessoa
humana.

2 GARFINKEL, Simson. Database nation: the death of privacy in the 21th Century. California:
O’Reilly Media. 2000, p. 5.
3 GARFINKEL, Simson. Database nation: the death of privacy in the 21th Century. California:
O’Reilly Media. 2000, p. 27.
4 RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância: a privacidade hoje. Tradução de Danilo
Doneda e Luciana Cabral Doneda. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 24.
401
Thiago Pinheiro Vieira de Souza
O presente trabalho vem expor algumas noções acerca das teorias para o trata-
mento de dados pessoais e defender, conforme apresentado, sua intitulação como
um Direito Fundamental constitucional da pessoa humana.
Para isso, falar-se-á de sua evolução a partir do direito à propriedade privada,
que ensejou maiores estudos acerca do tema e levou a doutrina, posteriormente, à
criação de um direito autônomo – e constitucional – à proteção de dados. Será feita,
ainda, uma explicação dos fundamentos e princípios norteadores e da aplicação
concreta do referido direito, o que será enriquecido com uma análise da principal
norma de proteção de dados em vigência no mundo, norteadora dos demais siste-
mas nacionais que tratam do tema: o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados
(RGPD)5, da União Europeia.
A partir de pesquisas desenvolvidas sob a perspectiva do método de abordagem
dedutivo, com base em bibliografias e estudos existentes sobre o tema, bem como
na recente jurisprudência nacional e internacional, o objetivo do presente trabalho
é, assim, procurar e evidenciar soluções que possam ser implementadas pelos sis-
temas jurídicos atuais quando se fala em proteção da pessoa no ambiente online.
Mas não apenas, visa, também, a exposição dos fatores que levaram à atual situação
de lacuna legislativa, recentemente suprida pela edição de normativas gerais, apon-
tando métodos para sua aplicação prática efetiva.

1 Considerações iniciais

A importância da tutela jurídica dos dados pessoais, reside no fato de que esses
dados, assim como as demais informações pessoais contraídas a partir deles, consti-
tuem uma representação virtual da pessoa perante a sociedade, constituindo uma
verdadeira parcela de sua personalidade.
Quando se trata da utilização dos termos aludidos, é indiscutível que ambos se
sobrepõem em várias circunstâncias6, servindo para representar um fato, um de-

5 UNIÃO EUROPEIA. Regulamento (UE) 2016/679, de 27 de abril de 2016. Considerações inici-


ais nº (38). Disponível em: http://bit.ly/2IE1NZC . Acesso em: 16 jan. 2019.
6 Um bom exemplo é a própria definição de dados pessoais dada pela GDPR, que os coloca, no
402
A evolução da proteção de dados pessoais...
terminado aspecto da realidade, mas, quanto às peculiaridades, os dados pessoais
podem ser vistos como uma expressão mais primitiva e fragmentada do que uma
informação pessoa propriamente dita, podendo ser entendidos como uma informa-
ção em estado potencial7, se transformando nesta última apenas quando comunica-
do, recebido e compreendido. Seria algo semelhante à uma pré-informação, anteri-
or à interpretação e ao processo de elaboração8.
Representam, assim, o conjunto de fato, comunicações e ações concernentes à
pessoa9, com capacidade de revelar seus caracteres e conteúdos quanto à personali-
dade, relações afetivas e familiares, etnia, circunstâncias físicas, domicilio (físico e
eletrônico), acervo patrimonial, registros telefônicos, preferências políticas ou reli-
giosas e orientação sexual10.
Em regra, os sujeitos deverão ser identificados, ou, ao menos, inidentificáveis,
mas isso nem sempre ocorrerá, como, por exemplo, nas hipóteses em que os dados
se referem a pessoas indeterminadas por natureza. Nesses casos, os dados são con-
siderados anônimos, e servirão para fins estatísticos, servindo como uma forma de

artigo 4º, 1, como sendo toda informação relativa a uma pessoa singular identificada ou identifi-
cável; é considerada identificável uma pessoa singular que possa ser identificada, direta ou indi-
retamente, em especial por referência a um identificador, como por exemplo um nome, um nú-
mero de identificação, dados de localização, identificadores por via eletrônica ou a um ou mais
elementos específicos da identidade física, fisiológica, genética, mental, econômica, cultural ou
social dessa pessoa singular.
7 Vale mencionar, também, a definição de Wacks: “Personal information consists of those facts,
communications, or opinions which relate to the individual and which it would be reasonable to
expect him to regard as intimate or sensitive and therefore to want to withhold or at least to re-
strict their collection, use, or circulation. (WACKS, Raymond. Personal information. Oxford:
Clarendon Press. 1989, p. 25-26.)
8 DONEDA, Danilo. A proteção de dados pessoais como direito fundamental. Espaço Jurídico,
Joaçaba, v. 12, n. 2, 2011, p 94.
9 ALEMANHA. Bundesdatenschutzgesetz – BDSG, 25 Mai, 2018. Lei de Proteção de dados. Dis-
ponível em https://dsgvo-gesetz.de/bdsg/ Acesso em: 16 jan. 2019.
10 MALTA, Tatiana. O direito à privacidade na sociedade da informação: efetividade desse direito
fundamental diante da tecnologia da informação. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor,
2007, p. 6.
403
Thiago Pinheiro Vieira de Souza
proteção às pessoas que tiveram seus dados coletados e armazenados anteriormen-
te11. Vale ressaltar que, uma vez que tais dados são transformados em anônimos e
tratados de modo a impossibilitar qualquer identificação pessoal, eles não mais
estão sujeitos à disciplina e tutela da proteção de dados pessoais12, por não violar a
essência protetiva do direito em questão: a privacidade e personalidade da pessoa.
A informação pessoal, por sua vez, remete a algo além do simples conteúdo do
dado, pressupondo uma fase inicial de depuração de seu conteúdo. Pode ser trans-
mitida por diversas formas – gráfica, fotográfica e acústica13 – e em muitos contex-
tos, carregando consigo diversas ordens de valores. Fica, assim, “quase como ato
reflexo, ligada à privacidade por uma equação simples e básica que associa um mai-
or grau de privacidade à menor difusão de informações pessoais e vice-versa”14.
Nas palavras de P. Català, vale dizer que:
(...) “Mesmo que a pessoa em questão não seja a ‘autora’ da informação, no sentido
de sua concepção, ela é a titular legítima de seus elementos. Seu vínculo com o indi-
víduo é por demais estreito para que pudesse ser de outra forma. Quando o objeto
dos dados é um sujeito de direito, a informação é um atributo da personalidade”15.

11 Nesse sentido, vale mencionar a amplamente conhecida decisão da Corte Constitucional alemã
de 15 de dezembro de 1983, ao julgar a “Lei do Recenseamento de População, Profissão, Mora-
dia e Trabalho”, em que se determinou que os dados pessoais coletados para o censo somente
poderiam ser transferidos a outros órgãos da Administração Pública se fossem tornados anôni-
mos ou após o seu processamento estatístico. (BVerfGe 65, 1, Volkszählung)
12 Assim dispôs o preâmbulo da antiga Diretiva Europeia 95/46/CE, segundo o qual não se aplica o
regime de proteção de dados pessoais aos dados anônimos, já que não possibilitam a identifica-
ção da pessoa: “(...) os princípios da proteção não se aplicam a dados tornados anônimos de
modo tal que a pessoa já não possa ser identificável”.
13 MALTA, Tatiana. O direito à privacidade na sociedade da informação: efetividade desse direito
fundamental diante da tecnologia da informação. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor.
2007, p. 252.
14 MARTINS, Fernando Rodrigues. Sociedade de informação e proteção à pessoa. Revista de
direito do Consumidor, São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 96, 2014, p. 16.
15 CATALÀ, Pierre. Ebauche d’une théorie juridique de l’information. Informatica e Diritto, ano
IX, jan-apr. 1983, p. 20.
404
A evolução da proteção de dados pessoais...
De maneira mais concreta, utilizando-se da Convenção de Strasbourg16, uma
possível definição do termo em questão seria “qualquer informação relativa a uma
pessoa singular identificada ou susceptível de identificação”. Indo além, a informa-
ção pessoal se difere das demais em razão de seu vínculo objetivo, estabelecido entre
o sujeito e a informação, que menciona aspectos que lhe dizem respeito. Indo além,
é o vínculo subjetivo aqui estabelecido que “afasta outras categorias de informações
que, embora também possam ter alguma relação com uma pessoa, não seriam pro-
priamente informações pessoais”17. Em razão disso, é fundamental esclarecer que,
na realidade, a tutela de dados (ou informações) visa à proteção da pessoa e de sua
personalidade, e não dos dados per se18.
Ademais, em um campo de estudo mais funcional, os dados sensíveis são tidos
pela doutrina como uma parcela compreendida dentro do termo maior dados pes-
soais, como uma categoria especial de informação subsumida à primeira expressão.
De forma concreta, os dados sensíveis podem ser compreendidos, nas palavras de
José de Oliveira Ascensão, como sendo as “convicções filosóficas ou políticas, filia-
ção partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada, origem racial ou étnica, saúde e
vida sexual, incluindo os dados genéticos”19. Ou seja, o próprio conceito já de-
monstra uma necessidade de delimitar uma área na qual a probabilidade de utiliza-
ção discriminatória da informação é potencialmente maior, e na qual a atuação de
diversos sujeitos será consequentemente diminuída.
A questão é tratada de diferentes maneiras pelos ordenamentos nacionais ao re-
dor do mundo20, sendo, em regra, acompanhada de disposições normativas mais

16 EUROPA. Convenção nº 108 do Conselho da Europa. Convenção para a proteção das pessoas
em relação ao tratamento automatizado de dados pessoais, art. 2º. Disponível em:
https://www.cnpd.pt/bin/legis/internacional/Convencao108.htm. Acesso em 16 jan. 2019.
17 DONEDA, Danilo. A proteção de dados pessoais como direito fundamental. Espaço Jurídico,
Joaçaba, v. 12, n. 2, 2011, p 93.
18 ARGENTINA. Ley de protección de Datos Personales. Secretaria de Investigaión de Derecho
Comparado, Corte Suprema de Justicia de La Nación. Disponível em: http://bit.ly/2IFlYq2.
Acesso em: 16 jan. 2019.
19 ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito civil: teoria geral. São Paulo: Saraiva, 2010, v. 1, p. 105.
20 Na Europa, países como a Suíça e a Alemanha restringem o processamento de dados sensíveis,
405
Thiago Pinheiro Vieira de Souza
severas e de maior rigor, visando a melhor proteção do cidadão e da sociedade. Essa
proteção deve ser feita de modo a resguardar também as categorias de dados restan-
tes que, embora aparentemente insignificantes, possam vir a se tornar sensíveis a
depender do tipo de tratamento a que são submetidos, não existindo mais dados no
todo insignificantes ao processamento eletrônico de dados”21.

2 Da propriedade privada à proteção de dados pessoais

Ainda no início do século XIX, em decorrência da utilização de novas formas e


instrumentos tecnológicos, o início dos debates acerca do direito à privacidade se
deu como consequência do crescente acesso e divulgação de fatos relativos à esfera
privada de certos indivíduos da sociedade. Warren e Brandeis22 foram pioneiros no
assunto, traduzindo o cotidiano da época e denunciando como os jornais, a foto-
grafia e outras novas tecnologias invadiram o setor da vida privada e doméstica
dessas sociedades de uma forma revolucionária. Ressalta-se a associação feita entre
o objeto vida privada e um direito – até então – desconhecido.
Ao fundamentarem o direito à privacidade, os autores relacionam a sua prote-
ção à inviolabilidade da personalidade, rompendo com uma tradição anterior que
associava a proteção da vida privada à propriedade. Nas suas palavras, “o princípio
que protege escritos pessoais e outras produções pessoais, não contra o furto ou a
apropriação física, mas contra toda forma de publicação, é na realidade não o prin-

sem determinar, no entanto, a sua proibição total, enquanto nas legislações da Noruega, Finlân-
dia, Dinamarca, França e Grã-Bretanha observa-se a proibição total do tratamento desses dados.
21 MARTINS, Leonardo. Cinquenta anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional federal
Alemão. Montevidéu: Fundação Konrad Adenauer. 2005, p. 244 e 245.
22 WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis D. The Right to Privacy. Harvard Law Review, Cam-
bridge, v. 4, n. 5, p. 193-220, dec. 1890. Disponível em: http://bit.ly/2VSsbCE. Acesso em: 14
nov. 2018. Os autores estudaram juntos no curso de direito da Harvard Law School, e, posteri-
ormente, Brandeis se tornou ministro da Suprema Corte dos EUA. O referido artigo é conside-
rado um dos mais citados e relevantes da história norte-americana. (apud DONEDA, Danilo. Da
privacidade à proteção de dados pessoais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 137)
406
A evolução da proteção de dados pessoais...
cípio da propriedade privada, mas da inviolabilidade da personalidade”23. Nascia,
assim, o Direito à Privacidade.
No decorrer do século XX, a transformação da função do Estado aliada à contí-
nua revolução tecnológica contribuiu para modificar o sentido e o alcance do direi-
to à privacidade. Hoje, a necessidade do reconhecimento desse direito se dá no
próprio estilo de vida pós-moderno, com relações cada vez mais complexas, que
tornaram as pessoas mais sensíveis e expostas à publicidade, tornando a solidão e a
privacidade algo essencial. A doutrina coloca, então, o direito à privacidade relaci-
onado com a aversão a qualquer intromissão não consentida na vida privada, defi-
nida como o espaço da vida doméstica e das relações sexuais24.
Na medida que novas tecnologias surgiram, o armazenamento e processamento
rápido e eficiente de dados pessoais permitiu a associação entre a proteção à priva-
cidade e informações pessoais. Percebeu-se não apenas uma alteração na substância
e tratamento desse Direito à Privacidade, mas em sua própria nomenclatura, ao
passo que surgiram termos como privacidade informacional, proteção de dados
pessoais, autodeterminação informativa, etc. Não se limitando apenas à privacidade,
a tutela do objeto – inclusive através de dispositivos constitucionais – foi além, en-
tendendo-se, agora, que tais dados e informações constituem uma projeção da pró-
pria personalidade dos indivíduos.

2.1 O direito à autodeterminação informativa na decisão do Tribunal Constituci-


onal Alemão

A expressão autodeterminação informativa foi utilizada pela primeira vez pelo


Tribunal Federal Constitucional Alemão (Bundesverfassungsgericht – BVerfG), ao
julgar inconstitucional a “Lei do Recenseamento” (Volkszählungsgesetz), em

23 MENDES, Laura Schertel. Transparência e privacidade: violação e proteção da informação


pessoal na sociedade de consumo. Departamento de Pós-Graduação Unb. Brasília, 2008, p. 14.
24 DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006,
p. 139.
407
Thiago Pinheiro Vieira de Souza
198325. Apesar de a Lei Fundamental (Grundgesetz - GG) alemã não conter expressa
previsão do direito fundamental de o indivíduo opor-se ao uso não consentido da
informática para o tratamento de seus dados – que dizem respeito às convicções
filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada e
origem étnica – e à cessão destes a terceiros, conforme ocorria com as constituições
da Espanha26 e Portugal27, o Tribunal reconheceu a existência de um direito de
origem constitucional (Grundrecht), próprio à salvaguarda desses interesses.
A Corte afirmou que o moderno processamento de dados pessoais configura
uma grave ameaça à personalidade do indivíduo, na medida em que possibilita o
armazenamento ilimitado de dados, bem como permite a sua combinação irrestrita,
de modo a formar um retrato completo da pessoa sem a sua participação ou conhe-
cimento.
Nesse contexto, entendeu que o elenco de dados classificados como sensíveis
não resguardaria adequadamente o indivíduo diante da nova realidade tecnológica,
pelo fato de não existir dado pessoal sem importância, não sendo possível subtrair
nenhuma categoria de dados à disciplina jurídica, visto que as modernas tecnologi-
as informáticas tornam possível extrair de dados aparentemente insignificantes
informações mais delicadas.
Argumentou, ainda, que a Constituição alemã protege o indivíduo contra o tra-

25 Julgamento da Lei do Recenseamento. Disponível em: http://bit.ly/2IEhPmj. Acesso em: 16 jan.


2019.
26 A Constituição da República Espanhola, de 1978, trata, em seu artigo 10, dos direitos fundamen-
tais à dignidade da pessoa humana e ao livre desenvolvimento da personalidade, e em seu artigo
18 elenca os direitos fundamentais à intimidade, à inviolabilidade de domicílio e ao segredo das
comunicações, inclusive no campo da internet. Este feixe de direitos, que permite ao indivíduo
exercer controle sobre os seus próprios dados e sobre a atividade estatal a respeito, é também
designado pela doutrina de direito fundamental à autodeterminação informativa.
27 A Constituição da República Portuguesa de 1976, nos artigos 26, nº1, 28 e 34, traz cláusulas de
proteção à intimidade da vida privada, de informações relativas a pessoas e famílias e da vedação
à utilização abusiva ou contrária à dignidade humana. No seu artigo 35 cuida do direito de o
indivíduo manter o controle sobre os seus dados pessoais, por meio do exercício do direito de
acesso, retificação, atualização e do direito ao conhecimento das finalidades para as quais foram
captados esses dados.
408
A evolução da proteção de dados pessoais...
tamento indevido de dados pessoais por meio do direito fundamental ao livre de-
senvolvimento da personalidade, segundo o qual o indivíduo tem o poder para
determinar o fluxo de suas informações na sociedade. Dessa forma, atendendo ao
direito neonato, estabeleceu-se que os indivíduos devem possuir o poder de contro-
lar a legitimidade do recolhimento, da divulgação e da utilização dos seus dados
pessoais.
O grande mérito do julgamento reside na consolidação da ideia de que a prote-
ção de dados pessoais se baseia em um direito subjetivo fundamental, que deve ser
concretizado pelo legislador e que não pode ter o seu núcleo fundamental violado.
Ou seja, a decisão do tribunal criou um precedente que limitou o poder legislativo,
fazendo com que o mesmo passasse a estar vinculado à configuração de um direito
à autodeterminação da informação e, acima de tudo, à própria Lei Fundamental.
Por fim, pode-se dizer que a decisão logrou demonstrar a fragilidade dos siste-
mas de proteção de dados pessoais baseados apenas em normas infraconstitucio-
nais, evidenciando a importância do reconhecimento constitucional de um direito
subjetivo fundamental do cidadão, cujos dados pessoais são objeto de tratamento.
A partir dessa construção jurisprudencial do BVerfG alemão, foi possível obser-
var uma convergência de legislações voltadas à proteção desses dados nos Estados-
membros da então Comunidade Europeia, de forma que as sucessivas Diretivas e
legislações nacionais criaram apropriados instrumentos de manejo em tema de
proteção de dados pessoais, fazendo com que se passasse a chamar o direito à auto-
determinação informativa de direito à proteção de dados pessoais.
Dessa forma, fica fácil perceber que a proteção de dados pessoais, apesar de ter
como fundamento o direito à privacidade, ultrapassa o seu âmbito28, podendo ser
compreendida como um fenômeno coletivo, na medida em que os danos causados
pelo tratamento impróprio desse material são, em razão de sua própria natureza,
difusos, exigindo uma tutela jurídica coletiva específica.
Naturalmente, tanto o direito à privacidade como a proteção de dados pessoais
fundamentam-se, em última medida, na proteção da personalidade e da dignidade

28 MENDES, Laura Schertel. Transparência e privacidade: violação e proteção da informação


pessoal na sociedade de consumo. Departamento de Pós-Graduação Unb. Brasília, 2008, p. 205.
409
Thiago Pinheiro Vieira de Souza
do indivíduo, entretanto, a proteção de dados pessoais modifica os elementos da
privacidade, aprofundando seus postulados e tocando em certos pontos centrais
dos interesses em questão29. Ora, “nem todos os problemas advindos do processa-
mento de dados pessoais são passíveis de serem plenamente examinados sob a ótica
da privacidade. Isso acontece vez que esse conceito não é capaz de abordar os pro-
blemas individuais e coletivos oriundos dos atuais sistemas de classificação e risco,
como por exemplo, a utilização de dados genéticos dos pacientes por planos de
saúde ou a discriminação por supermercados em razão do código postal”30.

2.2 Da fundamentalização da proteção de dados pessoais

O tratamento autônomo da proteção de dados vem sendo uma tendência forte-


mente enraizada nos ordenamentos jurídicos, sendo um caso emblemático de algo
que, a princípio, “parecia apenas destinado a mudar de terminado patamar tecno-
lógico e a solicitar previsões pontuais no ordenamento, mas que, em seus desdo-
bramentos, veio a formar as bases para o que vem sendo tratado, hoje, como um
Direito Fundamental à Proteção de Dados”31. Mas antes de trabalhar com essa pro-
teção como um Direito Fundamental, visando uma adequada e completa aborda-
gem do tema, é primordial determinar a amplitude do termo, bem como o processo
de formação e características dos mesmos.
Conforme doutrina Bobbio32, a caracterização de um Direito Fundamental é fei-
ta a partir do fato de serem universais, ou seja, de valerem para todo homem, inde-
pendente de nacionalidade, raça, etc. Intitular um direito de fundamental é de-
monstrar que o mesmo é imprescindível à condição humana e ao convívio social,

29 MENDES, Laura Schertel. Transparência e privacidade: violação e proteção da informação


pessoal na sociedade de consumo. Departamento de Pós-Graduação Unb. Brasília, 2008, p. 205.
30 MENDES, Laura Schertel. Transparência e privacidade: violação e proteção da informação
pessoal na sociedade de consumo. Departamento de Pós-Graduação Unb. Brasília, 2008, p. 11.
31 MENDES, Laura Schertel. Transparência e privacidade: violação e proteção da informação
pessoal na sociedade de consumo. Departamento de Pós-Graduação Unb. Brasília, 2008, p. 36.
32 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 7. ed. Rio de Janeiro: Elsevier. 2004, p. 79.
410
A evolução da proteção de dados pessoais...
integrando o núcleo substancial da ordem normativa33, que visa, acima de tudo, a
proteção dos direitos à liberdade, à igualdade, à propriedade e à dignidade de todos
os seres humanos.
Ou seja, surgem a partir de um processo de positivação dos próprios Direitos
Humanos, quando ocorre seu reconhecimento nas legislações internas em cada
ordenamento nacional. Além da mencionada universalidade, os Direitos Funda-
mentais podem ser caracterizados principalmente pela (1) relatividade, haja vista
que não podem ser considerados absolutos, podendo ser sopesados quando aplica-
dos conjuntamente; (2) imprescritibilidade, pois não são perdidos pela falta de uso;
(3) indisponibilidade, dada a impossibilidade de venda, doação, empréstimo, etc.;
(4), e indivisibilidade, devido à sua interpretação conjunta, não permitindo uma
análise individual ou parcial dos mesmos.
Os Direitos Fundamentais são, acima de tudo, uma construção histórica, que va-
ria de época para época e de lugar para lugar. Na antiga França em período de revo-
lução os Direitos Fundamentais eram basicamente a liberdade, a igualdade e a fra-
ternidade, e nem se cogitaria, por exemplo, pensar na possibilidade de um Direito
Fundamental a um meio ambiente ecologicamente equilibrado ou à igualdade entre
os sexos. Ou seja, por mais fundamentais que pareçam ser, são direitos históricos,
nascidos em certas circunstâncias e caracterizadas por lutas em defesa de novas
liberdades, sendo desenvolvidos de modo gradual, de modo que o que parece fun-
damental numa época e numa determinada civilização não é, necessariamente,
fundamental em outras épocas e culturas34.
Em meio às infinitas ameaças e perigos à vida, à liberdade e à segurança, prove-
nientes do aumento do progresso tecnológico, nascem esses direitos da nova gera-
ção. A partir disso, considerado o contexto que a sociedade humana em geral passa
atualmente, o direito à proteção de dados pessoais, é de suma importância, princi-
palmente nos ambientes virtuais, relacionando-se com o pleno desenvolvimento
dos demais direitos e garantias. Nas palavas de Pinãr Manãs:

33 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na constitui-


ção federal de 1988. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2005, p. 70.
34 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 7. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 9.
411
Thiago Pinheiro Vieira de Souza
(...) “En general se dice que el derecho a la protección de datos personales es un de-
recho nuevo, (...) que C. E. Delpiazzo35 lo llama “novel derecho”, razón por la cual,
se le ha considerado un derecho de la tercera generación y un derecho autónomo,
(...) instrumental”36
Ou seja, em decorrência de seu recente surgimento e temática, o direito à prote-
ção de dados pessoais é tido, por alguns autores, como um direito de terceira di-
mensão – conforme teoria do checo-francês Karel Vasak acerca das dimensões, ou
gerações, de direitos fundamentais – e, sendo considerado um direito autônomo,
num contexto de modernização da sociedade e desenvolvimento de novas tecnolo-
gias, tal proteção torna-se imprescindível para a eficácia dos demais direitos.
Visando a limitação do tratamento de dados pessoais, para que os indivíduos
possam exercer plenamente seu poder de autodeterminação informativa, a doutrina
desenvolveu ao longo dos anos uma série de princípios norteadores da prática. Não
obstante a clara evolução do tema durante tal período, é possível agrupar material-
mente alguns objetivos e linhas de atuação principais, presentes em diversos orde-
namentos, em diversos graus. Através disso, percebe-se uma forte convergência do
tratamento da matéria nos diferentes ordenamentos rumo à consolidação de alguns
princípios básicos e à vinculação cada vez mais estreita com os direitos fundamen-
tais e a proteção da pessoa37. Esses princípios têm suas origens nas leis de primeira e
segunda geração, podendo remeter até mesmo aos princípios norteadores do Nati-
onal Data Center, ainda na década de 6038.

35 DELPIAZZO, Carlos. A la búsqueda del equilibrio entre privacidad y acceso. Instituto de Dere-
cho Informático, Facultad de Derecho, Universidad de la República. Montevideo. 2009, p. 9.
36 PIÑAR MAÑAS, José Luis. Guía del derecho fundamental a la protección de datos de caracter
personal, Agencia Española de Protección de Datos, 2004, p 36. “Em geral, se diz que o direito à
proteção de dados pessoais é um direito novo (...) que C. E. Delpiazzo chama de “Direito novi-
ço”, razão pela qual o considera um direito de terceira geração e um direito autônomo (...) ins-
trumental. (Tradução livre)
37 DONEDA, Danilo. A proteção de dados pessoais como direito fundamental. Espaço Jurídico,
Joaçaba, v. 12, n. 2, 2011, p 98.
38 O National Data Center foi projetado para reunir as informações sobre os cidadãos estaduniden-
ses disponíveis em diversos órgãos da administração federal em um único banco de dados, a par-
tir de um projeto original, que pretendia unificar os cadastros do Censo, dos registros trabalhis-
412
A evolução da proteção de dados pessoais...
De forma concisa, são eles: (A) Princípio da publicidade (ou transparência): a
existência de bancos de dados deve ser de conhecimento público, o que se dará por
meio de autorização estatal prévia para seu funcionamento, de uma notificação às
autoridades acerca de sua existência, ou ainda por meio de relatórios periódicos de
livre acesso ao público; (B) Princípio da exatidão: necessário à manutenção da qua-
lidade dos dados, trata-se da exigência de que os dados de um banco reflitam a rea-
lidade, o que é traduzido pela necessidade de coleta e tratamento com cuidado e
correção, além de atualizações periódicas conforme a necessidade; (C) Princípio da
finalidade: a utilização dos dados pessoais deve, obrigatoriamente, obedecer às fina-
lidades anunciadas antes da coleta ao sujeito cedente. Isso é de extrema relevância
prática, pois restringe a transferência de dados pessoais a terceiros, podendo, inclu-
sive, estruturar um critério de valoração da razoabilidade da utilização de determi-
nados dados para certa finalidade (fora da qual haveria abusividade); (D) Princípio
do livre acesso: assegura a plena disponibilidade dos dados armazenados aos sujei-
tos à que se referem, garantindo a obtenção de cópia dos registros e, em consonân-
cia com o princípio da exatidão, a retificação de informações incorretas ou obsole-
tas, podendo haver supressão ou acréscimo de informações; e (E) Princípio da segu-
rança (lógica e física): assegura a proteção dos dados contra os riscos de seu extra-
vio, destruição, modificação, transmissão ou acesso não autorizado por aqueles à
que se referem, tanto no meio físico quanto virtual.
Tais princípios passaram a ser encontradas em diversas normativas sobre a pro-
teção de dados, e passaram a ser chamados de Fair Information Principles. Esse
núcleo comum se consolidou como tal principalmente a partir da Convenção de
Strasbourg, e das guidelines da OCDE39, no início da década de 8040.

tas, do fisco e da previdência social. Após acirradas discussões sobre a ameaça potencial que re-
presentaria às liberdades individuais, o governo desistiu do projeto. (Idem, Ibidem, p 98.)
39 Os princípios elencados são: (1) collection limitation; (2) data limitation; (3) purpose specifica-
tion; (4) use limitation; (5) security safeguard; (6) openness; (7) individual participation.
(OCDE. Guidelines on the Protection of Privacy and Transborder Flows of Personal Data. dis-
ponível em: http://bit.ly/2ID8mLX. Acesso em: 16 jan 2019.)
40 DONEDA, Danilo. A proteção de dados pessoais como direito fundamental. Espaço Jurídico,
Joaçaba, v. 12, n. 2, 2011, p 100.
413
Thiago Pinheiro Vieira de Souza
A partir das mudanças de tratamento sofridas nos últimos anos, gozando de tu-
tela autônoma, e, algumas vezes, de proteção constitucional41, o direito à proteção
de dados pessoais cada vez mais se estabelece como um direito fundamental, não
apenas nos ordenamentos nacionais, mas também em textos internacionais. Exem-
plo disso é a antiga Diretiva 95/46/ CE sobre proteção de dados pessoais na União
Europeia, que coloca como um dos objetivos principais o tratamento de dados pes-
soais, utilizando, inclusive, a expressão Direitos Fundamentais para tal, e, posteri-
ormente, a própria Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia42, de 2000,
que tem em seu corpo uma seção exclusiva para a proteção de dados pessoais. Co-
mo exemplo mais atual, é possível perceber a fundamentalização de tal direito pela
leitura do novo Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD) pessoais na
Europa, que reforça ainda mais a característica de tal direito43.
Além da legislação internacional europeia, sem nem adentrar nas legislações na-
cionais do velho continente, uma breve busca nos ordenamentos vizinhos leva à
uma sólida comprovação do exposto. No Uruguai, por exemplo, o artigo 1º da Lei
18.331 dispõe expressamente que o direito à proteção de dados pessoais é inerente à
pessoa humana44.

41 Tendência iniciada, principalmente, pelas constituições de Portugal (1976) e Espanha (1978),


com dispositivos destinados a enfrentar os problemas da utilização da informática e, no caso da
Constituição portuguesa, com referência explícita à proteção de dados pessoais.
42 Art. 8º: 1- Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu
domicílio e da sua correspondência. 2- Não pode haver ingerência da autoridade pública no
exercício deste direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma
providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a
segurança pública, para o bem-estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das
infrações penais, a proteção da saúde ou da moral, ou a proteção dos direitos e das liberdades de
terceiros. Disponível em: http://www.europarl.europa.eu/charter/pdf/text_pt.pdf. Acesso em: 16
jan 2019
43 Consideração nº 1 do Regulamento. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-
content/PT/TXT/PDF/?uri=OJ:L:2016:119:FULL&from=EN. Acesso em: 16 jan 2019.
44 Artigo 1º da Lei nº 18.331, de 2008, que trata da Proteção de Dados Pessoais: “el derecho a la
protección de datos personales es inherente a la persona humana, por lo que está comprendido
en el artículo 72 de la Constitución de la República”. Disponível em: http://bit.ly/2V02WRZ.
Acesso em: 16 jan 2019.
414
A evolução da proteção de dados pessoais...
Indo ainda mais além, conforme estudo publicado por D. Banisar45, existem,
atualmente, mais de 100 países com uma lei de proteção de dados em vigência, e
outros mais de 40 com algum projeto ou iniciativa pendente, sendo a maioria deles
composta por projetos fortemente embasados nas mencionadas legislações, o que
traça um consistente caminho rumo à efetiva fundamentalização do direito.
Fato é, que uma considerável parcela dessas menções – talvez em razão de sua
antiga elaboração – dizem respeito aos dados pessoais transmitidos por meios físi-
cos, pois falam em correspondências, na sua maioria. Interessa aqui, entretanto,
examinar o conteúdo formal de tal direito, que, há quase vinte anos atrás, já era tido
como fundamental para o desenvolvimento social. A leitura atual de tais dispositi-
vos – que ainda não tiveram devida adequação terminológica às novas tecnologias
– deve ser feita de forma ajustada, abrangendo quaisquer informações que possam
identificar uma pessoa, tanto no ambiente físico quanto virtual.
Dessa forma, a titulação do direito à proteção de dados pessoais – hoje, princi-
palmente no campo da Internet – como um Direito Fundamental faz-se necessária
não só em razão de sua classificação como um direito autônomo, mas como um
meio difusor de informação, na medida que quanto maior for o nível de conheci-
mento e consciência da sociedade, menor será o nível de abusos realizados pelos
diferentes sujeitos ativos. É, assim, um passo necessário à integração da personali-
dade humana, em sua acepção mais completa, nas diversas questões que cercam a
Sociedade da Informação.

3 Da tutela jurídica brasileira e o direito comparado

Em tempos de cloud a transferência internacional de dados é uma realidade – ou

45 O pesquisador Daniel Banisar faz parte de um projeto que analisa as leis nacionais de proteção
de dados pessoais e privacidade, publicando um mapa-múndi com todos os países classificados
como (1) lei já promulgada/em vigor, (2) iniciativa pendente e (3) sem iniciativa/sem
informações. A partir disso, sua mais recente publicação, em janeiro de 2018, conta com mais de
100 países no primeiro grupo e mais de 40 no segundo, traduzindo o enorme crescimento e
preocupação dada ao tema. Disponível em: < http://bit.ly/2ZgA72O>. Acesso em: 16 jan 2019.
415
Thiago Pinheiro Vieira de Souza
melhor, uma virtualidade real46 – que os localiza em qualquer parte do planeta. Em
razão disso, fica explícita uma tendência das legislações dos países de se aproxima-
rem para fomentar uma troca ainda mais intensa e segura de informações, princi-
palmente quando o assunto são os próprios dados pessoais trocados. A Lei Geral de
Proteção de Dados (LGPD) vem, assim, como um primeiro e importante passo para
o ingresso definitivo do Brasil no seleto time de países que reconhecem positiva-
mente a relevância dos dados digitais e a necessidade de protegê-los, e consequen-
temente no estabelecimento de garantias e na preservação dos direitos fundamen-
tais do novo cidadão que surgiu com o meio digital.
Com uma clara influência da entrada em vigor do novo Regulamento Geral so-
bre a Proteção de Dados (RGPD, ou GDPR, sigla em inglês), da União Europeia, e
dos recentes escândalos de vazamento de dados47, talvez, foi sancionado o texto que
trata do uso de informações pessoais de modo específico no ordenamento nacional,
visando desenvolver a proteção da privacidade no meio eletrônico. Com o período
de vacatio legis de 18 meses, a nova lei passa a ter eficácia plena em todo território
nacional em fevereiro de 2020, consagrando princípios e garantias semelhantes
àqueles do Regulamento europeu e reforçando, ainda, o controle do titular sobre
seus dados pessoais através da exigência do consentimento, o direito ao acesso e à
informação, o direito de retificação e apagamento.
Dispõe sobre o modo pelo qual informações pessoais podem ser coletadas e tra-
tadas, seja a partir de cadastros, no fechamento de compras ou até mesmo em ima-
gens publicadas, estabelecendo requisitos para que esses dados possam ser trata-
dos, repassados, publicados e até comercializados. Vale destacar que, apesar de
versar sobre temas similares, o Marco Civil da Internet (MCI) se mantém integral-
mente vigente, tendo sido alterado apenas naqueles artigos que dizem respeito ex-
pressa e especificamente aos dados pessoais, quais sejam os artigos 7, X e 16, II48.

46 CAVALCANTI, Eduardo de Hollanda. Proteção de dados, a vez do Brasil. Disponível em:


http://bit.ly/2VN0bQW. Acesso em: 16 jan 2019.
47 O mais famoso com o fornecimento de informações de milhares de usuários para a empresa
britânica de big data e marketing político Cambridge Analytica.
48 Artigo 7, X, MCI: O acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania, e ao usuário são
assegurados os seguintes direitos: X - exclusão definitiva dos dados pessoais que tiver fornecido
416
A evolução da proteção de dados pessoais...
De modo geral, os princípios da GDPR são mais específicos e diretos ao assunto
do que aqueles da lei brasileira, que tem se mostrado bastante subjetiva. Ficam ex-
cluídos de seu alcance, em qualquer das circunstâncias, todos os processos de tra-
tamento de dados para fins jornalísticos, artísticos, acadêmicos, de segurança públi-
ca, defesa nacional, segurança do Estado ou de atividades de investigação e repres-
são de infrações penais.
De plano, é possível afirmar que o consentimento é a palavra chave para o tema
em ambas as legislações, de forma que sem consentimento do titular dos dados ou
informações pessoais, o controlador dos dados não poderá manipulá-los. Deverá,
desse modo, ser obtido nos mesmos moldes da GDPR – em seu artigo 4º, 11, define
consentimento como “qualquer manifestação de vontade, livre, específica, infor-
mada e explícita, pela qual o titular dos dados aceita, mediante declaração ou ato
positivo inequívoco, que os dados pessoais que lhe dizem respeito sejam objeto de
tratamento” – com o adicional do interesse legítimo, que funciona como uma mo-
tivação para a coleta dos dados (algo que se assemelha ao princípio da finalidade).
Quando se fala em consentimento de crianças, assim como na norma europeia,
o tratamento deve ser feito com o consentimento de ao menos um dos pais ou res-
ponsável legal, de modo prévio. Importante dizer que em determinados casos o uso
da anonimização é obrigatória, conforme a lei nacional.
Indo além, ainda no tema consentimento para a coleta de dados, existe previsão
expressa em ambas as legislações aqui tratadas, no sentido de os titulares dos dados
obterem uma explicação para qualquer decisão feita unicamente por algoritmos,
tão como o direito de optar pela não-coleta de dados nesses casos, o que é previsto
no artigo 22 do Regulamento e 20 da Lei. As exceções a esse direito restringem-se às
hipóteses nas quais o titular de dados tiver dado consentimento explícito, o uso for
autorizado por lei da União Europeia ou do Estado Membro a que o responsável
pelo tratamento estiver sujeito ou, ainda, caso o processamento seja necessário para

a determinada aplicação de internet, a seu requerimento, ao término da relação entre as partes,


ressalvadas as hipóteses de guarda obrigatória de registros previstas nesta Lei;
Artigo 16, II, MCI: Na provisão de aplicações de internet, onerosa ou gratuita, é vedada a guarda:
II - de dados pessoais que sejam excessivos em relação à finalidade para a qual foi dado consen-
timento pelo seu titular.
417
Thiago Pinheiro Vieira de Souza
a celebração ou execução de contrato entre o titular dos dados e o responsável por
seu tratamento. O objetivo é justamente explorar meios diversificados para fornecer
um maior grau de transparência sobre como os algoritmos tomam decisões que
impactam a vida do indivíduo.
Na GDPR não há menção positiva acerca da comercialização das informações
pessoais protegidas, se mostrando um tema que – talvez – devesse ser estudado de
forma mais profunda antes de uma positivação de tal cunho. Ou seja, em princípio,
o tratamento dessas categorias especiais é vedado. Entretanto, o próprio Regula-
mento elenca dez diferentes hipóteses em que tal vedação é excluída, podendo os
dados sensíveis ser objeto de tratamento, primeiro, nos casos em que haja consen-
timento explícito do seu titular, ou em que este tenha os tornado, previamente,
públicos (artigo 9º, 2, a e e), ou em caso de interesse público ou social relevante
(artigo 9º, 2, b, f, g, h, i e j), de interesse legítimo de entidades sem fins lucrativos,
em relação a seus membros, ou antigos membros, ou pessoas que mantenham com
elas contato regulares relativos a seus objetivos (artigo 9º, d), e de proteção de inte-
resses vitais do próprio titular ou de outra pessoa, se o titular estiver impossibilitado
física ou legalmente de manifestar sua vontade (artigo 9º, c). Apesar disso, existe
previsão na LGPD que permite eventual comercialização de dados sensíveis na
forma como são coletados, tendo como única limitação a finalidade obtenção de
vantagem econômica e a autorização da agência ou estatal supervisora.
A partir do momento em que se inicia o tratamento de dados, as empresas de-
vem levar em conta o tipo de dado que está sendo tratado para adotar as medidas
técnicas e organizacionais compatíveis com o risco a que os titulares desses dados
estão sujeitos. Quanto mais sensível for o dado pessoal tratado, maior deve ser a
preocupação com os riscos à privacidade e direitos fundamentais do titular dos
dados.
O objetivo dessas previsões do Regulamento, mais especificamente os artigos 24
e seguintes, juntamente com os princípios supracitados, é garantir que os dados
pessoais não sejam tratados para qualquer fim, sem o consentimento do usuário e
por um número indefinido de pessoas. Ou seja, apenas os dados pessoais necessá-
rios para cumprir determinado serviço devem ser coletados. O responsável pelo
tratamento dos dados tem a obrigação e a responsabilidade não só de aplicar as

418
A evolução da proteção de dados pessoais...
medidas técnicas e organizacionais necessárias para a proteção dos dados tratados,
mas também de demonstrar que todos os processos do tratamento de dados estão
de acordo com o Regulamento.
A GDPR exemplifica o que pode ser considerado evidência de compliance, como
documentos e logs de controle. Para as empresas que tenham como núcleo da ativi-
dade operações de tratamento que exijam um controle regular e sistemático de da-
dos em grande escala, ou tratem de dados sensíveis ou dados pessoais relacionados
com condenações penais e infrações, é obrigatória a indicação de um encarregado
pela proteção de dados pessoais (Data Protection Officer), que deverá exercer o
controle sobre o cumprimento do Regulamento e responder requisições da autori-
dade de proteção de dados e de outros órgãos governamentais. No Brasil, essa fun-
ção é representada pela figura do Encarregado, nos moldes do artigo 41 da LGPD.
Um dos pontos mais importantes para a eficácia da nova lei, embora vetado do
projeto originalmente aprovado49, é a criação de uma autoridade supervisora fisca-
lizadora, a Agência Nacional de Proteção de Dados (ANPD). A autarquia (órgão
público com personalidade jurídica de direito público indireta) deve ser ligada ao
Ministério da Justiça, que deverá fiscalizar e garantir a aplicação da lei. Nesse ponto
a GDPR se mostrou mais flexível, permitindo um ou mais órgãos de fiscalização
para cada estado-membro do bloco europeu, que deverão manter a comunicação
dos seus atos com a Comissão Europeia, não concentrando todo o poder de fiscali-
zação nas mãos de um só órgão.
Em caso de descumprimento da lei, poderá haver a aplicação de advertências
e/ou multas, que pode variar de 2% do faturamento da empresa, conglomerado ou
grupo no Brasil no seu último exercício, limitando-se em 50 milhões de reais por
infração. Na União Europeia, esses valores podem chegar a 20 milhões de euros, ou
4% do faturamento anual da empresa em nível mundial.

49 O motivo foi de caráter técnico: o governo entendeu que poderia existir vício de inconstitucio-
nalidade na criação, já que esta foi recomendada pelo legislativo (por meio do Projeto de Lei), e
não uma manifestação própria do executivo. A proposta é que a agência seja independente, com
orçamento próprio e capaz de fiscalizar e impor multas, dialogar com empresários de diferentes
setores e estabelecer diretrizes para aquelas partes da lei que desentendem de maior direciona-
mento e interpretação.
419
Thiago Pinheiro Vieira de Souza
Percebe-se que as sanções administrativas impostas pela lei brasileira são quase
uma reprodução exata da GDPR, preservando sua diferença entre na maneira como
as sanções foram impostas. Na GDPR as faltas e penalidades são claras e devida-
mente multadas, enquanto na LGPD é nítida a falta de clareza nas penalidades im-
postas aos agentes infratores, existindo lacuna, inclusive, quando se trata de deter-
minar a cumulatividade das penas quando examinadas as condutas. Ademais,
mesmo após escândalos relacionados à criptografia do caso Whatsapp, no Brasil, a
LGPD não fez qualquer menção ao tema, assunto que é disciplinado objetivamente
nos artigos 6, 32 e 34 da GDPR. Isso, juntamente com alguns outros temas impor-
tantes, tais como a questão da transparência das regras e dos dados e de práticas
de geo-pricing e geo-blocking, bastante utilizadas atualmente, aumenta ainda mais a
lista de temas que não tiveram a devida atenção na nova legislação.
No que diz respeito à transferência internacional de dados, será possível para
todos os países que apresentem legislação de proteção de dados adequada àquela
prevista no ordenamento nacional, ou seja, igual ou mais rigorosa. E isso independe
de onde o tratamento de dados é feito: a norma vale para todas as operações de
tratamento de dados nas quais a coleta de dados tenha sido feita em território naci-
onal. Sendo caso de transferência de dados para uma filial ou sede estrangeira, a
condição é de que o país de destino também tenha leis abrangentes de proteção de
dados ou possa garantir mecanismos de tratamento equivalentes aos que são exigi-
dos no Brasil. Não sendo mais necessários – quando uma conta ou serviço tiver
sido finalizado, por exemplo – a organização tem o dever apagá-los, a menos que
haja alguma obrigação legal ou outra razão justificável para a sua preservação.
As transferências são realizadas com base em uma decisão de adequação50 (em

50 A decisão de adequação é dada pela Comissão Europeia ao considerar que um país, território ou
organização internacional fornece um nível de proteção de dados suficientemente adequado aos
padrões estabelecidos, a partir de uma avaliação periódica que avalia, dentre outros critérios, o
respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais, a existência e o funcionamento efe-
tivo de autoridades de controle da proteção de dados e o compromisso do Estado em relação à
proteção de dados. Atualmente, os países incluídos na lista da Comissão são Andorra, Argenti-
na, Canadá (em relação às organizações comerciais), Ilhas Faroé, Guernsey, Israel, Ilha de Man,
Jersey, Nova Zelândia, Suíça, Uruguai e Estados Unidos (limitado ao Privacy Shield). O Japão e a
Coréia do Sul estão sob análise da Comissão e, a depender do resultado, poderão ser objeto de
420
A evolução da proteção de dados pessoais...
conformidade com o artigo 45 da GDPR), sendo o método mais simples de imple-
mentar uma exportação de dados, uma vez que não há necessidade de autorização
específica da autoridade supervisora para tanto ou de apresentação de demais ga-
rantias toda vez que for necessária realizar uma transferência internacional de da-
dos. Logo, a transferência para um país terceiro considerado adequado se asseme-
lha a uma realizada entre países da União Europeia, justamente em razão dessa
garantia de segurança dada.
Assim, a correta implementação da LGPD projetará o Brasil como país que se
preocupa e regulamenta a proteção dos dados pessoais, seguindo a tendência inter-
nacional capitaneada pela GDPR. Embora a lei brasileira, por si só, não garanta de
imediato a transferência transfronteiriça de dados pessoais da Europa para o Brasil,
futuramente ela poderá ser levada em consideração pela Comissão Europeia para
avaliar se existe garantia de um nível de proteção adequado. Assim, tanto o respon-
sável pelo tratamento (data controller, ou controlador), quanto o subcontratante
(data processor, ou processador) precisam estar adequados não só com a LGPD,
mas também com a GDPR, caso haja interesse em exportar dados pessoais para fora
da União Europeia. Ou seja, todas as empresas de pequeno, médio e grande porte
que têm, por algum motivo, interesse no tratamento de dados pessoais, terão que
investir em cibersegurança e implementar sistemas de compliance efetivos para
prevenir, detectar e remediar violações de dados pessoais, notadamente em razão
da previsão de que a adoção de política de boas práticas será considerada como
critério atenuante das penas, em caso de eventual responsabilização.

Conclusão

Em razão das modificações sociais e da evolução tecnológica que vêm ocorrendo


nos últimos anos, a discussão sobre os danos causados pelo processamento de da-
dos pessoais não se restringe mais apenas à ameaça do abuso do poder pelo Estado,
mas abrange, principalmente, o setor privado, que utiliza massivamente dos dados
pessoais para atingir seus objetivos econômicos. A combinação de diversas técnicas

decisão de adequação no porvir.


421
Thiago Pinheiro Vieira de Souza
automatizadas permite a obtenção de informações sensíveis sobre os cidadãos, o
que passa a fundamentar a tomada de decisões econômicas, políticas e sociais nos
mais diferentes contextos. Destaca-se a técnica de construção de perfis pessoais, a
partir dos quais podem ser tomadas decisões a respeito dos cidadãos que afetam
diretamente suas vidas e influenciam seu acesso a oportunidades sociais e mercado-
lógicas.
Crescem, portanto, os riscos à personalidade do cidadão, na medida em que es-
ses perfis representam informações fragmentadas e descontextualizadas, que po-
dem ser utilizadas de modo a prejudicar a liberdade e as chances do indivíduo na
sociedade. Esses riscos, ampliados pela irrestrita utilização da tecnologia da infor-
mação, tornam imperativa uma regulamentação jurídica da matéria.
Atualmente, o tratamento de dados pessoais de forma autônoma nas legislações
pode ser visto como uma tendência em diversos ordenamentos jurídicos, de forma
que as leis gerais de proteção de dados pessoais vêm se afirmando como umas das
formas mais eficazes de proteção da privacidade nos países mais desenvolvidos, em
razão de nelas se estabelecem os princípios gerais e os direitos subjetivos dos titula-
res, as limitações e as obrigações dos responsáveis, bem como a criação de autori-
dades administrativas competentes para a implementação eficaz da legislação.
Emerge, assim, uma realidade que não comporta apenas uma proteção genérica à
intimidade e da vida privada, não bastando mais que sejam elaboradas legislações
baseadas naquele conceito antigo de um direito geral e flexível sobre a proteção da
privacidade, válido para todas as situações numa sociedade em mutação.
No contexto brasileiro, o Código de Defesa do Consumidor, juntamente com o
Marco Civil da Internet e a própria Constituição Federal, eram as normas que ofe-
reciam a tutela aos indivíduos que tinham suas informações armazenadas em ban-
cos de dados e cadastros de consumo via Internet. No entanto, como consequência
da iniciativa de diversos outros países europeus, se mostrou de extrema importân-
cia a edição de uma Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/18) que protegesse
de forma mais efetiva e generalizada os dados pessoais armazenados ou em circula-
ção, aumentando a privacidade de dados pessoais e o poder das entidades regulado-
ras para fiscalizar organizações (não se limitando, assim, aos dados pessoais utiliza-
dos em ambiente virtual).

422
A evolução da proteção de dados pessoais...
O próximo passo seria a criação de uma efetiva cultura jurídica apta a compre-
ender os dados não só como um direito autônomo, mas também de caráter funda-
mental. O caminho a ser seguido seria aquele trilhado por diversas outras legisla-
ções, implementando uma autoridade independente para tutelar os dados pessoais
dos usuários, na forma de um organismo central de proteção de dados, dotado de
legitimidade normativa, responsável pela tutela dos dados pessoais na sociedade – o
que acabou não sendo possível na edição da referida lei, em razão do veto legislati-
vo no que dizia respeito à criação de uma entidade administrativa reguladora. Mas
não apenas, cumpre, estabelecer uma arquitetura regulatória capaz de fazer emergir
o tema da proteção de dados pessoais como um verdadeiro setor de políticas públi-
cas, composto também por instrumentos estatutários, sancionatórios, bem como
por um órgão administrativo responsável pela implementação e aplicação da legis-
lação. Isso exige, conforme exposto, instrumentos legais próprios, órgãos regulado-
res específicos, uma rede de especialistas e juristas, um robusto grupo de ativistas
dispostos a demonstrar todo tipo de abuso e violações, uma crescente comunidade
acadêmica especializada no tema, bem como uma rede internacional, pela qual se
realiza o intercâmbio de experiências e ideias.

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WACKS, Raymond. Personal information. Oxford: Clarendon Press. 1989.

425
DANO MORAL COLETIVO POR VAZAMENTO
DE DADOS EM REDES SOCIAIS

18
Vinícius Rezende Marra

Introdução

Facebook, Twitter, Instagram, LinkedIn, WhatsApp e inúmeros outros espaços


virtuais compõem hoje a principal forma de interação de milhões de pessoas ao
redor do mundo. A denominada sociedade da informação, conectou de forma to-
talmente inovadora os indivíduos, transformando os paradigmas da comunicação
pelo simples fato de torná-la mais direta, ágil e ininterrupta do que há poucos anos
era possível. As redes sociais atraem multidões não só pelo fato de serem gratuitas
para o usuário, mas por representarem o principal meio de troca de informações
em escala global da contemporaneidade. Desta forma, torna-se fundamental a
adaptação do Direito para acompanhar as novas formas de relações sociais e garan-
tir em todos os espaços a adequada tutela dos direitos aos cidadãos.
Neste trabalho, a proposta é investigar, nessas plataformas de interação, movi-
mentadas economicamente pelo comércio de dados dos usuários, a adequada res-
posta estatal para um possível extravio destes insumos, diante do posicionamento
que aqui se sustentará de que é um prejuízo sofrido de forma coletiva pelos usuá-
rios, e, portanto, passível de uma ação de dano moral coletivo. Preliminarmente,
para dar seguimento ao que será discutido, é necessário diferenciar dois termos que
são comumente utilizados como sinônimos no vulgo, tendo em vista a recorrência
com que aparecerão nas próximas páginas deste escrito. Segundo a conceituação
427
Vinícius Rezende Marra
brilhantemente colocada na obre de Bruno Ricardo Bioni, há uma distinção entre
dados e informações, a despeito de serem tratados de forma sinônima em muitos
casos, mesmo em sua própria obra.
De início, cabe destacar que dados e informação não se equivalem, ainda que sejam
recorrentemente tratados na sinonímia e tenham sido utilizados de maneira inter-
cambiável ao longe deste trabalho. O dado é o estado primitivo da informação, pois
não é algo per se que acresce conhecimento. Dados são simplesmente fatos brutos
que, quando processados e organizados, se convertem em algo inteligível, podendo
deles ser extraída uma informação. 1
Na captação, tratamento, venda, revenda e utilização das características de uma
massa de pessoas que se encontram conectadas via internet, as redes sociais são
apenas um nó de uma trama complexa e intrincada de atores de mercado (players),
que trabalham diuturnamente para induzir os cidadãos ao consumo. A publicidade
evoluiu a níveis antes impensáveis devido à exploração dos dados pessoais, e o que
antes era um conteúdo composto de psicologia de massas lançado em meio impres-
so ou televisivo na expectativa de que intensificasse o consumo de determinado
produto, hoje é uma análise preditiva produzida a partir de um denso aglomerado
de informações contextualizadas extraídas a todo momento e fornecidas de forma
única para cada usuário das plataformas online.2
Desnecessário dizer que para que isso ocorra, a coleta de informações de cada
indivíduo adquire um nível de intrusão colossal em todos os aspectos de sua inti-
midade. A publicidade tem como insumos dados sobre a saúde, desejos, emoções,
sonhos, situação financeira, posicionamento político e uma infinidade de outras
nuances da personalidade de cada um, que, ao ler, compreender e concordar com
os termos de uso de uma rede social, vendem para os provedores de aplicação res-
ponsáveis por esta, recursos valiosos que movem um modelo de negócio altamente
lucrativo baseado no comércio da informação.

1 BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento. Rio
de Janeiro: Forense, 2018, p. 36.
2 SAS (São Paulo). Sas Analytics. Análises preditivas: o que são e qual sua importância? 2018.
Disponível em: http://bit.ly/2V640Ui . Acesso em: 15 jan. 2018.

428
Dano moral coletivo por vazamento de dados em redes sociais
Assim pode-se vislumbrar o objeto de estudo deste trabalho, tendo em vista a
natureza claramente subjetiva, emocional e anímica3 que permeia a publicidade e as
estratégias de mercado que a coleta de dados pessoais visa atender, compreende-se
que o dano decorrente de um possível vazamento desses dados pode afetar, não
exclusivamente, mas de forma mais primordial, a honra e a esfera extrapatrimonial
como um todo, dentro do conjunto de direitos e interesses do cidadão.
Mas o foco deste escrito, dentro de tudo o que foi levantado até então, é produ-
zir uma análise qualitativa de como o dano moral coletivo pode ser aplicado à te-
mática do vazamento de dados em redes sociais. Para isso, será feito um panorama
de como a responsabilidade decorrente de vazamento de dados é construída na
legislação pertinente. Posteriormente, averiguar-se-á a natureza dos interesses tute-
lados nesse tipo de ilícito em relação aos destinatários da reparação (interesse indi-
vidual homogêneo, coletivo ou difuso), tendo em vista trazer consequências para a
ação de dano moral coletivo. A partir daí, será feita uma análise de caso na qual será
relatada uma tentativa de aplicação do dano moral coletivo à problemática do va-
zamento de dados em rede social e ao fim, verificar-se-á a possibilidade de aplica-
ção da fluid recovery (reparação fluida) como uma forma oportuna de reparação
para o dano, em virtude das dificuldades operacionais que hoje ainda se encontra
na fase de liquidação e execução do processo.

1 Panorama normativo da responsabilização

Informações dos usuários de redes sociais são coletadas instantaneamente e a


todo tempo para serem repassadas a uma rede de publicidade que permeia os do-
mínios pelos quais o internauta navega e permite o cruzamento entre o interesse do
indivíduo e os produtos oferecidos pelos publishers, que são aqueles que contratam
terceiros para realizar tal promoção através das aplicações e fazer que os produtos
“persigam” o consumidor em potencial durante sua navegação.4 Por si só, essa

3 BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento. Rio
de Janeiro: Forense, 2018, p. 23-24.
4 BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento. Rio
429
Vinícius Rezende Marra
abordagem já parece bastante invasiva, mas o que a torna preocupante de fato, é
que o manejo dos dados coletados pode afetar o usuário de maneiras extremamente
prejudiciais se não executado de maneira correta, observando o dever de cuidado
previsto em lei e o princípio da boa-fé que se espera em relações consumeristas.
Para regular procedimentos como este, o Brasil conta com uma lei específica que
disciplina o tratamento e proteção dos dados pessoais no território nacional. Tal
diploma é a Lei 13.709, de agosto de 2018, que ainda se encontra em vacância até o
ano de 2020. A partir de sua vigência, passam a vigorar dispositivos que preveem a
responsabilidade civil direcionada a quem maneja os dados pessoais do consumi-
dor. Previamente, é importante observar que o Marco Civil da internet já discipli-
nava a responsabilidade dos provedores de aplicação, citados em seu artigo 5, inciso
VII, e descritos em seu artigo 15, que podem ser responsabilizados por eventuais
falhas na prestação de seus serviços no bojo do artigo 14 do CDC.5
No entanto, tornou-se imperiosa a adaptação da legislação brasileira na tentativa
de aproximação dos parâmetros internacionais de proteção de dados pessoais, que
se tornara uma matéria específica na esfera de abrangência do Direito Digital. Desta
forma, bebendo da fonte da GDPR (General Data Protection Regulation) é que o
legislador brasileiro concebeu a Lei Geral de Proteção de Dados. O que torna o no-
vo regulamento específico mais adequado na tutela da proteção do consumidor
pelos danos decorrentes do extravio de seus dados pessoais é a abordagem mais
completa e atualizada em relação à responsabilização civil para esta relação jurídica
em específico – o tratamento dos dados pessoais, e quem quais são os sujeitos nela
envolvidos e que devem sofrer a sanção em caso de falha na sua execução. O artigo
42 da lei 13.709, é incisivo nesse ponto, destacando a figura do controlador e do
operador de dados enquanto responsáveis pela reparação de “dano patrimonial,
moral, individual ou coletivo, em violação à legislação de proteção de dados pesso-
ais”.
É visível que o dispositivo espelha o que já era previsto no artigo 6° do Código

de Janeiro: Forense, 2018, p. 29.


5 CUNHA, Sérgio Luiz Rodrigues da. A responsabilidade civil sob a ótica do Marco Civil da
Internet: o ambiente corporativo. Disponível em: http://bit.ly/2ZkiYW4. Acesso em: 12 jan.
2019.
430
Dano moral coletivo por vazamento de dados em redes sociais
de Defesa do consumidor em seu inciso VI. Isto possibilita, portanto, tratar do que
se tem como foco neste artigo, a tutela coletiva dos interesses transindividuais em
redes sociais, ante o tratamento displicente por parte dos responsáveis pela segu-
rança dos dados pessoais dos usuários, que pode gerar danos os mais variados aos
consumidores deste tipo de serviço. Sendo assim, o que se pretende, é investigar se
é possível a aplicação de danos morais coletivos ao vazamento de dados em redes
sociais, e para isso, é imperioso aferir os requisitos para tal ação, para então verifi-
car a possibilidade de sua aplicação.

2 Dano moral coletivo em contexto

Como pressuposto fático para a requisição do dano moral coletivo, é necessário


considerar a categoria dos interesses subjetivos os quais se solicita tutela judicial,
podendo ser: a) coletivos em sentido estrito, b) difusos ou c) individuais homogê-
neos; merecendo, se coletivos, a tutela coletiva por parte do Estado, no bojo da
Ação Civil Pública, diploma popularmente chamado de forma homônima, lei n°
7.347.
Desta forma, é necessário que o vazamento de dados em redes sociais viole al-
gum interesse de ordem equivalente à primeira das categorias supracitadas para que
seja passível de uma ação coletiva requerendo reparação dos danos ao consumidor.
Neste intuito, observa-se a seguinte diferenciação: os primeiros, interesses coletivos
strictu sensu, são aqueles transindividuais e de caráter indivisível, mas cujos titula-
res são indicáveis pelo fato de pertencerem a um grupo delimitável, ligado por uma
relação jurídica estabelecida dentre seus membros. Já nos direitos difusos, isto não
se torna possível, visto que os interesses em questão pertencem a todos os indiví-
duos de um grupo indelineável, tornando-os não identificáveis e ligados por cir-
cunstâncias de fato.6 Por último, os individuais homogêneos, definidos pelo CDC
em seu artigo 81 assim como os demais citados, são os que apesar de serem passí-

6 DORETTO, Fernanda Orsi Baltrunas. Fundamento normativo do dano moral coletivo. In: RO-
SENVALD, Nelson; TEIXEIRA NETO, Felipe. Dano moral coletivo. Indaiatuba: Foco, 2018, p.
19.
431
Vinícius Rezende Marra
veis de individualização em seu exercício, possuem uma origem comum para os
titulares.
É visível, assim, que o interesse na segurança dos dados pessoais dos usuários de
redes sociais advém de uma relação dentre os titulares de tal direito e que produz
uma coesão dentre o grupo de tais consumidores que se consolida por estar sob a
égide de um mesmo contrato que contém os termos de uso e a política de proteção
de dados de qualquer rede social em questão, os quais os membros leram, compre-
enderam e concordaram (mesmo que apenas em teoria), e passam então a figurar
uma coletividade que consome os mesmos serviços de forma gratuita, fornecendo
dados pessoais à guisa de remuneração para os provedores de aplicação. Caracteri-
za-se, por conseguinte, interesse coletivo em sentido estrito a segurança e o trata-
mento responsável dos dados dos usuários, observando todas as regras técnicas
para prevenir vazamentos e consequentes utilizações indevidas por parte de tercei-
ros de má-fé.
No entanto, e como será visto na próxima seção, não se pretende aqui tratar
apenas do dano ao consumidor, mas perpassar, de forma não exaustiva, por lesões a
direitos da personalidade em consequência de uma brecha na segurança de dados e
a apropriação indébita destes por terceiros. A perspectiva que se pretende abordar a
seguir é a pretensão de reparação por ação coletiva de danos morais tendo no polo
ativo uma comunidade virtual, que segundo se sustentará, é passível de ter seus
direitos violados pela negligência dos profissionais de tratamento de dados.

3 Identidade digital: uma perspectiva não meramente consumerista do dano

O dano moral não trata, contemporaneamente, da reparação pela dor e sofri-


mento sofridos pelo titular de direito subjetivo, conforme pregava a doutrina tradi-
cional, mas sim da devida compensação pela violação dos direitos à personalidade,
que hoje não encontram como titulares apenas indivíduos, mas também coletivida-
des e mesmo os cidadãos de forma geral. Desta forma de pensar o dano moral é que
resulta sua tutela coletiva, tendo em vista que a coletividade apresenta uma perso-
nalidade própria que não equivale à soma de valores individuais de seus integran-
tes. Sendo assim é possível identificar que a segurança dos dados pessoais é um
432
Dano moral coletivo por vazamento de dados em redes sociais
amálgama que protege inúmeros outros interesses coletivos de uma comunidade.
Comunidade, na definição encontrada em Bittar Filho, é "uma sociedade locali-
zada no espaço, cujos membros cooperam entre si (com divisão de trabalho), seja
utilitaristicamente (para obter melhores, mais eficientes resultados práticos, reais),
seja eticamente (tendo em vista valores humanos - familiais, sociais, jurídicos, reli-
giosos etc.)"7. No âmbito da rede social, pode-se identificar, aliás, não apenas uma
comunidade unida por uma relação jurídica com o provedor de aplicação, mas
coletividades também unidas por relações de direito e situações de fato que tem
seus dados levantados incessantemente.
Exemplos claros de criações de comunidades está em grupos com as mais varia-
das finalidades no Facebook, muitas vezes representando associações ou mesmo
comunidades construídas com base em uma hashtag que simboliza seu propósito
comum. Grupos no WhatsApp entre familiares, amigos, colegas de trabalho, etc.
são de certa forma comunidades que compõem talvez uma das acepções mais con-
temporâneas do termo, dotadas de simpatia parcial, a qual Rogério da Costa (PUC-
SP) faz referência em sua leitura de Hume na análise das redes sociais enquanto
formadoras de coletividades, clãs formados através de filtros inteligentes, papel
desempenhado pelas mídias sociais.8
Pode-se citar ainda como exemplo os fóruns formados no Reddit para discus-
sões acerca de quaisquer temas, que reúnem os interessados em torno de comuni-
dades formadas para discussões e para solucionar problemas de forma conjunta. O
que se pretende visualizar, com esta exemplificação, é de que forma não apenas os
usuários dessas plataformas compõem uma comunidade como um todo, mas que
pela própria natureza dos vínculos desenvolvidos dentro desses espaços de intera-
ção, os indivíduos passam a integrar comunidades9, como colocado por Manuel

7 BITTAR FILHO, Carlos Alberto. Dano moral coletivo no atual contexto jurídico brasileiro.
2009. Disponível em: http://bit.ly/2IGJVNx. Acesso em: 13 jan. 2019.
8 COSTA, Rogério da. Por um novo conceito de comunidade: redes sociais, comunidades pesso-
ais, inteligência coletiva. 2005. Disponível em: http://bit.ly/2IsKBXA. Acesso em: 13 jan. 2019.
9 CASTELLS, Manuel. The rise of the network society. Hoboken: Wiley-Blackwell, 1996, p. 386.

433
Vinícius Rezende Marra
Castells em seu livro The Rise of the Network Society.
Isto é importante para o desenvolvimento do presente trabalho, uma vez que se-
gundo ainda Bittar Filho, tais comunidades são compostas por valores, que são os
fatores culturais que mantém a coesão destas células da sociedade e que determi-
nam que seus interesses não sejam apenas a colisão das vontades e preferências dos
indivíduos, mas parte integrante de uma personalidade própria e que são passíveis
da tutela estatal coletiva em uma ação de dano moral coletivo.
Resultam eles, em última instância, da amplificação, por assim dizer, dos valores dos
indivíduos componentes da coletividade. Assim como cada indivíduo tem sua carga
de valores, também a comunidade, por ser um conjunto de indivíduos, tem uma
dimensão ética. Mas é essencial que se assevere que a citada amplificação desatrela
os valores coletivos das pessoas integrantes da comunidade quando individualmente
consideradas. Os valores coletivos, pois, dizem respeito à comunidade como um to-
do, independentemente de suas partes. Trata-se, destarte, de valores do corpo, valo-
res esses que não se confundem com os de cada pessoa, de cada célula, de cada ele-
mento da coletividade.10
Assim, entram em questão os direitos já reconhecidamente coletivos, como a
honra de um grupo em seu aspecto subjetivo ou objetivo, que pode ser alvo de plei-
tos nocivos em uma época permeada por fake news e outras formas de dissemina-
ção de conteúdo duvidoso e por muitas vezes malicioso. O vazamento dos dados
coletados como comunicação interna, preferências dos membros, geolocalização,
imagens de câmera, gravações de voz, todas podem produzir efeitos danosos se
disponibilizadas de forma inadequada. A publicidade abusiva voltada para estes
grupos em virtude de suas particularidades socioculturais é outro exemplo de danos
que podem ser produzidos pela tutela inadequada das informações auferidas. As-
sim, torna-se adequada a extrapolação do quantum indenizatório, originalmente
aplicado para a reparação individual de dano devidamente comprovado em seu
nexo causal, a fim de propor uma reparação para o grupo lesado devido à ingerên-

10 BITTAR FILHO, Carlos Alberto. Dano moral coletivo no atual contexto jurídico brasileiro.
2009. Disponível em: http://bit.ly/2IGJVNx. Acesso em: 13 jan. 2019, p. 6.

434
Dano moral coletivo por vazamento de dados em redes sociais
cia no tratamento dos dados pelos provedores de redes sociais, visto como o prejuí-
zo decorrente da ingerência não é somente individual para aqueles que tiveram suas
informações extraviadas, mas para a comunidade como um todo.
Ressalta-se, ainda, que o dano moral coletivo não requer uma comprovação de
dano por parte do lesado, ônus probatório que se tornaria inviável devido à titulari-
dade dos direitos violados ser de um grupo de pessoas.
Por isso mesmo, a adequada compreensão do dano moral coletivo não se conju-
ga diretamente com a ideia de demonstração de elementos, como perturbação, afli-
ção, constrangimento ou transtorno no plano coletivo. Estabelece-se, sim, a sua
concepção, de maneira objetiva, concernindo ao fato que reflete uma violação into-
lerável do ordenamento jurídico, a atingir direitos coletivos e difusos, cuja essência
é tipicamente extrapatrimonial.11
Além disso, o intuito deste tipo de tutela, além da óbvia reparação pelos danos é
a da dissuasão quanto à reincidência, e nisto também servindo como exemplo da
resposta estatal para tal conduta ilícita, e da punição pela atitude reprovável e cul-
posa12. Feitas estas observações, parte-se então para a análise de caso concreto, no
intuito de averiguar como a jurisprudência tem tratado tal assunto de vultosa im-
portância para a efetiva garantia dos direitos da personalidade em seu viés coletivo.

4 Caso concreto

Diante das considerações feitas até este ponto, será tomado um caso concreto
para ilustrar a gravidade do assunto discutido. No dia 17 de março de 2018, houve
um vazamento massivo de dados de usuários do Facebook em diversas localidades
do mundo. Segundo dados da Forbes, foram cerca de 50 milhões de pessoas no

11 MEDEIROS NETO, Xisto Thiago de. Dano moral coletivo e o valor de sua reparação. Revista do
Tribunal Superior do Trabalho, Brasília, 2012, p. 288.
12 DORETTO, Fernanda Orsi Baltrunas. Fundamento normativo do dano moral coletivo. In: RO-
SENVALD, Nelson; TEIXEIRA NETO, Felipe. Dano moral coletivo. Indaiatuba: Foco, 2018, p.
14.
435
Vinícius Rezende Marra
total13 e de acordo com a associação brasileira SOS Consumidor, foram 443 mil
usuários brasileiros que tiveram seus dados vazados na ocasião.
O Facebook em virtude das proporções globais do alcance de sua plataforma e
do vulto de dados que são coletados diariamente de seus membros é muito visada
por terceiros de má-fé que pretendem utilizar-se indevidamente e para diversas
finalidades das informações que podem ser obtidas através dos insumos que a rede
social aufere. No caso deste vazamento mais recente, um dos piores da história da
empresa, segundo Kaminsky, serviu para o uso impróprio da empresa de publici-
dade política14, que através de hackers, obteve acesso aos tokens (chaves de acesso)
das contas que tiveram seus dados extraviados15.
As informações foram utilizadas para fins políticos e influenciaram, segundo in-
formante de dentro da própria empresa, na eleição de Donald Trump no ano de
2016. Assim, foram produzidos anúncios com as hoje conhecidas como fake news,
de caráter duvidoso e propensas a influenciar pessoas com personalidade mais forte
a propagarem esse conteúdo em seus próprios perfis nas redes sociais16. Desta for-
ma, emitindo opiniões exaltadas e promovendo debates acalorados acerca dos posi-
cionamentos e atitudes dos candidatos e dando lugar de destaque a eles nas mídias
sociais mesmo que despercebidamente. As notícias eram personalizadas de acordo
com os usuários e seu perfil levantado de acordo com seus dados nas redes sociais, e
com isto a empresa podia mapear para quais internautas encaminhar os conteúdos
aos quais somente estes teriam acesso devido ao seu teor que era feito para provocar
reações em cada persona (termo utilizado por publicitários de conteúdo para definir

13 KAMINSKY, Michelle (Org.). Facebook Faces Class Action Over Security Breach That Affected
50 Million Users. 2018. Forbes. Disponível em: http://bit.ly/2Pjp8RM. Acesso em: 18 jan. 2019.
14 KAMINSKY, Michelle (Org.). Facebook Faces Class Action Over Security Breach That Affected
50 Million Users. 2018. Forbes. Disponível em: http://bit.ly/2Pjp8RM. Acesso em: 18 jan. 2019.
15 COLOMÉ, Jordi Pérez; SANDOVAL, Pablo Ximenes de. Facebook revela que deixou desprote-
gidos os dados de 50 milhões de clientes. 2018. El País. Disponível em: http://bit.ly/2ULJ8SP.
Acesso em: 18 jan. 2019.
16 COLOMÉ, Jordi Pérez. O pior ano do Facebook. 2018. El País. Disponível em:
http://bit.ly/2Zfs5aB. Acesso em: 20 jan. 2019.
436
Dano moral coletivo por vazamento de dados em redes sociais
um perfil detalhado dos destinatários).17
Este tipo de publicidade tem sido cada vez mais comum nos últimos anos e não
é considerado ilícito produzir conteúdo propagandístico a partir de dados. No en-
tanto, o que viola flagrantemente o direito do usuário é a forma indébita de obten-
ção destes insumos. Em solo brasileiro, o ocorrido deu origem a uma ação coletiva
que, ao tempo deste escrito, ainda não obteve sentença. A pedido da associação civil
citada no início desta seção, foi proposta uma ação coletiva postulando indenização
por danos morais em prol dos usuários brasileiros da rede social Facebook que tive-
ram seus dados disponibilizados de maneira ilícita devido a falha no sistema de
proteção da plataforma. As informações a seguir perscrutadas são extraídas da peti-
ção inicial feita pelos defensores jurídicos da SOS Consumidor. O relato dos fatos
será omitido por já se encontrar exposto acima e as custas processuais por não se-
rem pertinentes ao que se pretende aqui tratar.

4.1 Anotações sobre o precedente

Em sua petição, os advogados iniciam fundamentando o cabimento da Ação Ci-


vil Pública com base nos dispositivos 81, parágrafo único, I e II, e 82, IV, abrangen-
do, portanto, direitos difusos e coletivos. Logo a seguir, inicia a fundamentação
fática, na qual expõe os dados de grande vulto envolvendo o escândalo do vazamen-
to de dados e reforça que são informações de conhecimento notório em escala glo-
bal, de forma que no Brasil haveriam milhares de pessoas afetadas de forma preju-
dicial a sua privacidade. Ressaltou-se, ainda, que o próprio Mark Zuckerberg, CEO
da Facebook Inc., teria confessado o ocorrido e assumido responsabilidade pela
imprudência em relação à segurança dos dados dos usuários da plataforma, diante
do Congresso dos Estados Unidos em outubro de 2018, ficando configurada uma
confissão do ilícito em mídia internacional.
Dando sequência, os advogados tratam de configurar a relação dos brasileiros
afetados com a rede social como sendo de natureza consumerista. Refuta, em pri-

17 RABELO, Agnes. Persona: aprenda o que são Buyer Personas e como criá-las. 2018. Rock Con-
tent. Disponível em: http://bit.ly/2IFyzcX. Acesso em: 20 jan. 2019.
437
Vinícius Rezende Marra
meiro lugar, a dúvida existente sobre a incidência do Código de Defesa do Consu-
midor na relação do Facebook com os usuários, visto que estes utilizam a platafor-
ma de maneira gratuita – e, de fato, no que toca à remuneração em dinheiro, esta
inexiste por parte dos membros da rede social. Sustentou-se, então, que o formato
gratuito de rede social, inicialmente utilizado, fora há muito, extinto por não ser
lucrativo. A partir do momento em que o Facebook se consolida como empresa, seu
serviço gratuito ao usuário passa a ser permeado por publicidade, a qual se utiliza
de dados que são fornecidos pelos membros da rede e vendidos pela pelos provedo-
res a terceiros que desejam ter seus produtos promovidos:
4.4. No entanto, Exa., o formato foi abandonado, por não gerar lucros a seu prove-
dor. Posteriormente, com o incremento de usuários, os espaços foram invadidos pe-
la publicidade e os provedores passaram a vender dados, informações e perfis com-
portamentais dos usuários.
4.5. No caso da Ré, sua remuneração ocorre por duas vias principais: a) pela publi-
cidade e b) pela venda de dados, informações e perfis de seus usuários- consumido-
res.
4.6. Em função desse evidente faturamento financeiro feito pela Ré a partir de seus
usuários não há mais, atualmente, nenhuma dúvida da incidência do CDC à relação
existente entre e Ré e seus usuários. (Grifo do autor)
São citados ainda, precedentes do Superior Tribunal de Justiça: o REsp
1398985/MG e REsp 1308830/RS, nos quais o Tribunal reconhece a relação prove-
dor-usuário como sendo de consumo, no caso da rede social, sem prejuízo de sua
gratuidade, reafirmando a aplicação do CDC aos casos citados e no relatado pelos
advogados na petição da ação coletiva. Parte-se, então, para a demonstração da
ilicitude da conduta do Facebook em sua relação com os consumidores brasileiros.
Isto é feito através da citação da tutela da constitucional da dignidade humana e dos
direitos da personalidade, alegando que o vazamento dos dados foi uma clara viola-
ção da “privacidade, intimidade, honra e imagem” dos cerca de 443.000 brasileiros
afetados. Como exposto no presente trabalho, o atentado contra os direitos da per-
sonalidade é requisito para incidência do dano moral coletivo.
Em seguida, o que se dá é uma fundamentação com base no artigo 14 do CDC
para caracterizar o defeito na prestação de serviços por parte do provedor de aplica-

438
Dano moral coletivo por vazamento de dados em redes sociais
ção que não se atentou para a devida segurança esperada pelo consumidor em rela-
ção a seus dados pessoais, causando vício de qualidade por insegurança. Mais adi-
ante, o relato aqui feito será um pouco mais sucinto, visto que o que foi feito consis-
te em fundamentar legalmente o dano moral coletivo e sua tutela na Ação Civil
Pública, além da obrigação civil do causador do dano de repará-lo, e em seguida
sustenta a finalidade do pedido de dano moral coletivo, que já se encontra doutri-
nariamente assente. Reforça, assim, a natureza punitiva do instituto a ser aplicado
em tutela judicial e seu caráter dissuasório para o lesante e exemplaridade para a
sociedade no geral. Por fim, após fazer citações a respeito da tutela de direitos cole-
tivos e difusos, faz menção ao Fundo de Direitos Difusos, para o qual seria destina-
do o quantum indenizatório a que seria condenado a parte Ré, salientando que não
haveria enriquecimento sem causa das vítimas.
Na fixação da quantia, adiante, observa-se que fica esta função a cargo do juiz,
mas os advogados sugerem, com base em critérios objetivamente definidos, um
quantum debeatur que acreditam ser o ideal para a parte que representam, diante
das particularidades do caso concreto. Dentre os fatores observados nesta petição,
estão:
(a) a gravidade da falta;
(b) a situação econômica do ofensor, especialmente no atinente à sua fortuna pes-
soal;
(c) os benefícios obtidos ou almejados com o ilícito;
(d) a posição de mercado ou de maior poder do ofensor;
(e) o caráter antissocial da conduta;
(f) a finalidade dissuasiva futura perseguida;
(g) a atitude ulterior do ofensor, uma vez que sua falta foi posta a descoberta;
e
(h) o número e nível de empregados comprometidos na grave conduta reprovável.
(Grifos do autor)
A ênfase está nos itens “a”, “b”, “c”, “d” e “e”, conforme suscitado pelos advo-
gados. Desta forma, através do cálculo feito com base em dados de divulgação aber-
439
Vinícius Rezende Marra
ta na mídia, aferiram que o lucro líquido obtido pela empresa com os usuários bra-
sileiros anualmente seria de 1,5 bilhões de reais, e que o valor da indenização deve-
ria ser tal que pudesse sancionar punitivamente o lesante, conforme preceituado em
casos de dano moral coletivo. Por fim, os pedidos feitos resumem o que foi exposto
acima, além de isenções de custas e outros encargos, honorários advocatícios, con-
denação a honorários de sucumbência, intimação do Ministério Público, e por fim,
o que se passará a tratar neste artigo a partir de então: o destino do valor da repara-
ção.
Anteriormente, no entanto, é necessário reforçar que o processo, ao tempo em
que se escreve este trabalho, a petição está juntada aos autos, informação presente
no Serviço de Consultas do Tribunal de Justiça de São Paulo. Sendo assim, o pro-
cesso ainda está no primeiro grau e até este ponto, ainda não houveram decisões,
quer de caráter interlocutório, quer definitivo, o que não possibilita chegar a uma
conclusão mais assertiva de como o tema é visto pela magistratura brasileira. O que
se pode dizer é que, julgado o mérito, será prolatada decisão que fará coisa julgada,
instituto que por si só já é um ponto de reflexão nas ações coletivas. Isto porque, em
concordância com Scarpinella Bueno, a sentença tem eficácia jurídica ultra partes
em uma ação desse gênero, ou seja, que extrapola as partes litigantes para produzir
efeitos para pessoas que podem nem sequer ter conhecimento do processo18.
Este é um problema que gera dificuldades operacionais, obstáculos para a fase de
liquidação do processo devido à dificuldade de individualização do que é devido a
quem, como se verá mais detalhadamente adiante. Uma vez definido o valor da
reparação para o grupo em nome de qual se pediu a tutela de direito subjetivo, o
que se questiona é qual o destino adequado do montante a que foi condenado o réu,
uma vez que em ações individuais, a parte lesada é o destinatário legítimo e recebe
sem maiores problemas o quantum indenizatório na fase de execução. Mas quando
se trata de uma coletividade, muitas das vezes a solução não é tão simples, já que,
como suscitado, não está ao alcance, ou mesmo não é sabido por todos os membros
do grupo a respeito da ação proposta pelo legitimado para que se tenha uma inde-

18 BUENO, Cassio Scarpinella. As class actions norte-americanas e as ações coletivas brasileiras:


pontos para uma reflexão conjunta. 1996. Disponível em: < http://bit.ly/2Ir3ytS >. Acesso em: 21
jan. 2019.
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Dano moral coletivo por vazamento de dados em redes sociais
nização individualizada; e sobre a garantia da adequada destinação do valor a ser
indenizado é que se tratará a seguir.

5 Indenização do dano moral coletivo: qual a destinação?

Como ponto crucial deste trabalho, será abordada aquela aqui se considera a via
reparatória mais adequada para a parte lesada em uma ação de dano moral coletivo,
e, por conseguinte, também à aplicação específica que se deu a este tema diante do
problema do vazamento de dados em redes sociais - a reparação fluida, fluid reco-
very ou cy-près. Coloca-se aqui como sendo a alternativa mais desejável porque no
Brasil ela não é a única que se apresenta e tampouco a que jurisprudencialmente é
considerada como a primeira escolha na fase executória desse tipo de ação indeni-
zatória.
O assunto é discutido pelos autores João Victor Rozatti Longhi e José Luiz de
Moura Faleiros Júnior, que aduzem sobre a forma como tradicionalmente é feita a
liquidação e execução em ações coletivas. São determinadas pela natureza dos inte-
resses tutelados. “(i) já abordado artigo 97 do CDC, que gera liquidações e execu-
ções individuais; (ii) o artigo 98 do CDC, que suscita liquidações individuais e exe-
cução coletiva; (iii) o art. 100 do CDC, que propicia liquidação e execução subsidiá-
rias difusas.” 19 Sendo assim, como é de nota, os direitos classificados mais acima
como difusos no caso do vazamento de dados em redes sociais, encaixar-se-iam na
segunda alternativa citada, a dos direitos coletivos, cuja indenização à violação se
liquida de maneira individual e se executa de forma coletiva.
No entanto, ocorre um problema em relação à desproporção em relação ao nú-
mero de vítimas para a possibilidade de habilitações para receber a quantia do dano
moral.
Esta solução, por isso, é digna de críticas, visto que restringe o rol de legitima-
dos, anteriormente ampliado para permitir a tutela coletiva, além disso, de acordo

19 LONGHI, João Victor Rozatti; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. O dano moral coletivo
e a reparação fluida (fluid recovery). In: ROSENVALD, Nelson; TEIXEIRA NETO, Felipe. Dano
moral coletivo. Indaiatuba: Foco, 2018, p. 382.
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Vinícius Rezende Marra
com Ada Pellegrini Grinover, pode até mesmo ser uma violação da proteção do
consumidor pretendida pelo Código, uma vez que a individualização dos danos
apenas pode ser feita pelas vítimas diretamente, e não pelos legitimados processu-
ais.20 Isto é um fato recorrente, ao se tratar de danos provocados por agentes
econômicos de grande porte, como é o ocorrido com o Facebook no caso concreto
relatado.
No que toca às vítimas brasileiras, o número de lesados pelo evento já chega à
casa dos milhares em decorrência da vasta popularidade da rede social no país.
Sendo assim, fica evidente que não é provável um número de habilitações individu-
ais suficientes para liquidar de maneira justa os danos para aqueles que sofreram
com o vazamento de dados, e tampouco para punir de maneira adequada a empresa
que detém poderio econômico significativo em escala global e monopoliza meios de
comunicação em massa, extremamente populares não apenas no Brasil como no
mundo todo.
Nos Estados Unidos, existem outras formas coletivas de compensação, como a
redução de preços dos produtos para compensar a comunidade pelos danos causa-
dos até que se chegue ao limite do saldo não reclamado, o chamado disgorgement,
que de fato possui resultados práticos interessantes, mas mesmo no Direito norte-
americano não é sempre a primeira ratio devido à forte legislação concorrencial que
existe no país, protegendo o mercado dos possíveis desequilíbrios decorrentes dessa
redução.21 Também não seria adequada a aplicação do referido prices rollback ao
tema analisado neste trabalho tendo em vista a gratuidade das redes sociais ao con-
sumidor, o que já descarta a hipóteses de corte de preços.
Assim é que se tem em destaque como sendo fundamental a aplicação da repa-
ração fluida como forma de destinação adequada na indenização coletiva. Basean-
do-se, em suma, na conversão do montante indenizatório em prol de um fundo

20 LONGHI, João Victor Rozatti; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. O dano moral coletivo
e a reparação fluida (fluid recovery). In: ROSENVALD, Nelson; TEIXEIRA NETO, Felipe. Dano
moral coletivo. Indaiatuba: Foco, 2018, p. 381.
21 LONGHI, João Victor Rozatti; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. O dano moral coletivo
e a reparação fluida (fluid recovery). In: ROSENVALD, Nelson; TEIXEIRA NETO, Felipe. Dano
moral coletivo. Indaiatuba: Foco, 2018, p. 384.
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para proteção dos interesses lesados em decorrência da culpa do réu, esta solução
serve ao seu propósito ao garantir uma aplicação eficaz e justa de um instituto já
existente, não possibilitando o enriquecimento sem causa das vítimas, o que pode
dar uma maior liberdade para o julgador em estipular um quantum mais elevado,
extrapolando assim, o que seria destinado individualmente aos cidadãos habilitados
a receber a quantia e reforçando de forma contundente a finalidade punitiva do
dano moral coletivo.
Na petição inicial da ação coletiva brasileira que se relatou, os advogados pedem
que a indenização seja destinada a um fundo coletivo para proteção dos interesses
do consumidor, o que denota já uma atualidade e aprofundamento no assunto,
remontando à reparação fluida em seus pedidos. O que se pode dizer que poderia
ter sido feito de maneira diversa, para este autor – deixando claro que para o propó-
sito dos legitimados que propuseram a ação, o pedido está totalmente coerente – é
que no lugar de destinar o quantum para o Fundo de Direitos Difusos com o pro-
pósito de proteger aos direitos do consumidor, a alocação do saldo fosse feita mais
especificamente na intenção de reforçar a proteção dos dados pessoais dos usuários
brasileiros na internet, o que possibilitaria abranger o tema mais específico onde
houve falha que violou as garantias consumeristas das vítimas.

Considerações finais

No intuito de concluir o que foi exposto até então, cabe recapitular os pontos
primordiais do que foi defendido. O intuito era o de verificar a possibilidade de
aplicação da ação de dano moral coletivo à temática do vazamento de dados em
redes sociais, tendo em vista os indícios de sobreposição de suas particularidades
fáticas. Primeiramente, o que se fez foi observar como a legislação brasileira trata a
responsabilidade civil na internet através de dispositivos específicos de responsabi-
lização de ilícitos no ambiente virtual por meio do Marco Civil da Internet – e a
partir de 2020 – a Lei Geral de Proteção de Dados, que em seus dispositivos traz
transcrito o que prevê o Código de Defesa do Consumidor em relação aos defeitos
de produtos e prestações de serviços, adaptados porém aos serviços que requerem
manejo de dados pessoais do usuário.

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Vinícius Rezende Marra
A partir disto, foi feita menção ao dano moral coletivo em contexto, tendo em
vista de que fundamentação para a proposição desta ação abrangendo o tema espe-
cífico abordado aqui, remete ao próprio CDC e à maneira como este diferencia os
interesses subjetivos de titularidade de mais de um indivíduo, classificando-os co-
mo individuais homogêneos, coletivos em sentido estrito ou difusos, e, tendo em
vista a importância desta classificação para a ação de dano moral coletivo, dedicou-
se aqui a classificar o interesse do consumidor na proteção de seus dados pessoais
enquanto coletivo strictu sensu. A importância da divisão, em si, foi esmiuçada
mais ao final do trabalho para fins didáticos, tendo em vista ser essencial no racio-
cínio exposto em tal momento.
Pelo dano moral coletivo ser por vezes muito associado a uma perspectiva con-
sumerista quando atrelado à ideia de vazamento de dados em redes sociais, foi de-
dicada uma seção deste artigo a levar além da relação de consumo a dimensão do
dano que pode ser causada ao usuário de uma plataforma de interação no meio
digital. A importância da temática foi reforçada mostrando como se formam co-
munidades através do ambiente virtual e a forma como as já existentes encontram
para reforçar sua interação por meio deste. Desta forma, fica explícito que o dano
decorrente de vazamentos de dados pode afetar essas comunidades de maneira
incisiva, como por exemplo através da sua exposição a propaganda comercial e
conteúdo político abusivo, utilizando-se das particularidades que publicitários po-
dem tomar conhecimento de maneira indébita.
Posteriormente, foi relatado um caso concreto para asseverar a maneira que o
assunto se manifesta na jurisprudência brasileira na prática. No entanto, tendo em
vista a falta de decisões a respeito do assunto ao tempo deste escrito, o que se pôs a
fazer foi analisar a argumentação utilizada pelos advogados em sua petição inicial,
constatando-se coerência com o que foi exposto neste artigo até então e dando des-
taque para um dos pedidos feitos – o de que a soma liquidada como saldo indeniza-
tório fosse destinada ao Fundo de Direitos Difusos no intuito doravante servir para
incrementar a proteção aos direitos do consumidor.
Este ponto foi fundamental para que se pudesse encaminhar para a conclusão do
que aqui foi levantado, culminando na destinação do quantum indenizatório, posto
que neste tipo de ação encontra-se dificuldades, muitas das vezes para beneficiar de

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Dano moral coletivo por vazamento de dados em redes sociais
forma satisfatória as vítimas e punir de forma adequada o lesante, desestimulando-
o de praticar futuros ilícitos semelhantes.
A reparação fluida foi uma forma encontrada pelo legislador estrangeiro e im-
portada pelo brasileiro de suprir a dificuldade de liquidação e execução da ação
coletiva que se acredita a mais adequada para a problemática apresentada por bene-
ficiar de fato, mas de maneira indireta, o grupo lesado, independentemente de suas
proporções e da habilitação individual de seus membros e permitindo que o julga-
dor aplique uma sanção considerável ao réu sem provocar o enriquecimento sem
causa dos indenizados. Consequentemente, aumenta a segurança jurídica quanto à
eficácia da resposta estatal para este tipo grave de lesão coletiva.

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