Você está na página 1de 273

LIBER AMICORUM

Homenagem à ABRACRIM
e aos seus fundadores
Reservam-se os direitos desta obra à Editora Porta, registrada sob CNPJ
43.095.972/0001-10
O padrão ortográfico e o sistema de citações e referências bibliográficas são
prerrogativas do autor. Da mesma forma, o conteúdo da obra é de exclusiva
responsabilidade do autor.

CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO


Alexandre Coutinho Pagliarini | Doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC/SP
Ezilda Claudia de Melo | Mestra em Direito Público pela UFBA
Míriam Coutinho de Faria Alves | Doutora em Direito pela UFBA
Nicole Leite Morais | Mestra em Direito pela UFPB
Nelson Cerqueira | Doutor em Literatura comparada pela Indiana University 
Paulo Ferreira da Cunha | Pós-Doutor pela Faculdade de Direito da USP
Roberta Oliveira Lima | Doutora em Ciências Jurídicas e Sociais pela UFF

Diagramação: Editora Porta


Concepção da capa: Editora Porta

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Liber amicorum : homenagem à ABRACRIM e aos seus


fundadores / organização Sheyner Asfora...
et al.]. -- João Pessoa, PB : Editora Porta, 2023.

Outros organizadores: Rodrigo Fuziger, Felipe


Negreiros, José Cezario de Almeida.
Vários autores.
Bibliografia.
ISBN 978-65-85633-01-7

1. Direito - História 2. Direito criminal 3.


Direito penal 4. Homenagem I. Asfora, Sheyner.
II. ABRACRIM - Associação Brasileira dos Advogados
Criminalistas. III. Fuziger, Rodrigo. IV. Negreiros,
Felipe. V. Almeida, José Cezario de.

23-157082 CDU-343(81)
Índices para catálogo sistemático:

1. Brasil : Direito penal 343(81)

Eliane de Freitas Leite - Bibliotecária - CRB 8/8415


LIBER AMICORUM
Homenagem à ABRACRIM e
aos seus fundadores

Felipe Negreiros
José Cezario de Almeida
Rodrigo Fuziger
Sheyner Asfora
(Organizadores)
“Só perde quem desiste de lutar”
Mário Soares, 2005.
“Os ideais que cultivamos, nossos maiores
sonhos e esperanças mais ardentes podem não
se realizar durante nossa vida. Mas isto não é o
principal. Saber que em seu tempo você cumpriu
o seu dever e viveu de acordo com as expectativas
de seus companheiros é em si uma experiência
compensadora e uma realização magnífica”.
Mandela, 1985.
ORGANIZADORES
Sheyner Asfóra
Presidente da ABRACRIM nacional, advogado criminalista,
especialista em direito penal e professor em cursos de pós graduação.

Rodrigo Fuziger
Pós-doutor, Doutor, Mestre e Bacharel em Direito (USP); Doutor em
Governança Global e Estado de Direito (USAL/Espanha); Bacharel em
Filosofia (USP); Professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie;
Advogado; Presidente da Comissão de Pareceres e Estudos Jurídicos
da ABRACRIM.

Felipe Negreiros
Professor Associado da Faculdade de Direito da UFPB nos cursos de
Graduação, Mestrado e Doutorado, Professor do UNIPE, nos cursos
de Graduação e Mestrado, Presidente da Comissão de Assuntos
Acadêmicos da OAB/PB, Mestre e Doutor pela Faculdade de Direito
de Coimbra.

José Cezario de Almeida


Docente do Magistério Superior da Universidade Federal de Campina
Grande, Campus de Cajazeiras. Mestre pela UFPB, Doutor pela
UFPE e Pós-Doutor pela USP. Advogado. Doutorando em Ciências
Jurídicas pel o Centro de Ciências Jurídicas – UFPB, em cotutela com
a Universitá Degli Studi Firenze - Itália.
AUTORES
Adriana Maria G. S. Spengler
Vice-presidente Nacional da ABRACRIM. Advogada criminalista.
Mestre em Ciências Jurídicas (UNIVALI). Especialista em Direito
Penal Empresarial (UNIVALI). Cursou Dogmática Penal Alemã
na Universidade de Göttingen, Alemanha. Membro da Sociedade
Europeia de Criminologia. Professora de Direito Penal e Criminologia
na graduação e de Direito Penal Empresarial na pós-graduação em
Direito na UNIVALI e outras instituições. Participou com trabalho
aprovado no XXV World Congress of Law, Science and Technology
realizado na Johann Wolfgang Goethe – Universität em Frankfurt,
Alemanha. Apresentou trabalhos no EUROCRIM 2013 (Budapeste,
Hungria), EUROCRIM 2016 (Münster, Alemanha) e EUROCRIM 2017
(Porto, Portugal). Coautora de diversas obras em temática penal.
E-mail: adrianaspengler@univali.br

Alberdan Coelho de Souza Silva


Advogado Criminalista. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário
de João Pessoa – (UNIPÊ). Professor da Pós-graduação em Advocacia
Criminal (ESA/PB). Conselheiro Estadual da OAB/PB para o triênio
2022/2024. Conselheiro Estadual da ABRACRIM/PB. Ouvidor da
Comissão de Justiça Criminal da OAB/PB.

Amilson Albuquerque Limeira Filho


Advogado, Doutorando e Mestre em Recursos Naturais pelo
Programa de Pós-graduação em Recursos Naturais (PPGRN/
UFCG), especialista em Direito Internacional pela FMU (Centro
Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas), Bacharel em
Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB),
sendo, atualmente, integrante de Curadoria: Matrizes Energéticas e
Meio Ambiente do Instituto de Estudos da Ásia (IEÁsia), membro
de la Escuela Latinoamericana de Derecho sobre el pensamiento de
Enrique Leff e dos grupos de pesquisa: História, Meio Ambiente e
Questões Étnicas (CNPQ/UFCG), Gestão e Ordenamento Ambiental
(GEOAMB) (CNPQ/UFCG) e Saberes Ambientais e Culturais - Estudos
em Homenagem a Enrique Leff (ESAEL) (CNPQ/UFPB), tendo sido
pesquisador membro pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais
(IBCcrim), pesquisador voluntário (PIVIC) pelo Observatório de
Bioética e Direito Animal (OBDA) da Universidade Federal da Paraíba,
do Laboratório Internacional de Investigação em Transjuridicidade
(LABIRINT) e extensionista voluntário (PROBEX) junto ao Núcleo de
Extensão em Justiça Animal (NEJA).

Antônio Ap. Belarmino Junior


Advogado, Mestre em Direito Penal e Ciências Criminais pela
Universidade de Sevilha – Espanha, Pós-graduado em Ciências
Criminais pela FDRP/USP, Presidente da ABRACRIM – SP (Associação
Brasileira dos Advogados Criminalistas no Estado de São Paulo),
Diretor Nacional de Relações Institucionais da ABRACRIM, Professor
de Direito Penal da Graduação da Faculdade FGP, Professor da Pós-
graduação de Direito Penal e Processo Penal do IEJUR, Coordenador
da Pós-graduação de Direito Penal da Faculdade FGP e Professor
convidado da Pós-Graduação em Performance Advocatícia da ESD,
autor e coautor de 10 (dez) obras jurídicas e parecerista do Instituto
Brasileiro de Direito Penal Econômico.

Caius Lacerda Filho


Advogado especializado em Direito Penal Econômico pela
Universidade de Coimbra em convênio com o IBCCRIM, bacharel em
Direito pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), premiado com
a láurea acadêmica.

Edite Batista de Albuquerque


Policial Penal no Estado do Ceará, Tecnóloga em Gestão de Recursos
Humanos (FAK); Graduanda em Direito pela Faculdades Integradas
do Ceará (UNIFIC). Pós-graduada em Direito Público (LEGALE). Pós-
graduada em Direito Administrativo e Econômico (INTERVALE);
Pós-graduanda em Tribunal do Júri e Execução Penal (LEGALE).
Pós-graduanda em Planejamento Familiar e Sucessório (LEGALE).
E-mail: editealbuquerque1991@gmail.com.
Gustavo Troccoli Carvalho de Negreiros
Procurador do Município de João Pessoa/PB. Advogado. Ex-Procurador
do Município de Parnamirim/RN. Graduado em Direito, com láurea
acadêmica, pelo Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal
da Paraíba. Especialista em Direito Processual Civil. Membro da
Comissão de Advocacia Pública da Ordem dos Advogados do Brasil
Seccional Paraíba. E-mail: gtroccoli@hotmail.com.

Helmo Robério Ferreira de Meneses


Advogado e Docente com atuação no magistério superior, com
experiência em Direito Penal e Processual Penal, e pós-graduado em
Direito Administrativo e Gestão Pública pela Universidade Regional
do Cariri -URCA (2015). Mestre em Sistemas Agroindustriais
e Gestão Ambiental pela Universidade Federal de Campina
Grande (UFCG). Professor e Coordenador do curso de Direito das
Faculdades Integradas do Ceará- UNIFIC, Assistente Jurídico e
membro do comitê editorial da Revista Científica Journal of Law and
Sustainability. Atuou como Coordenador Adjunto do Curso de Direito
e Coordenador do Núcleo de Prática Jurídica da URCA. Presidente da
Escola Superior da Advocacia (ESA) Subsecção da OAB de Iguatu/CE.
E-mail: helmomenesesadv@gmail.com.

José Ideltônio Moreira Júnior


Advogado. Pós-graduação em direito penal e processual penal pelo
UNIPÊ em convênio com a Fundação Escola Superior do Ministério
Público da Paraíba (FESMIP-PB). Graduado em Direito pelo
UNIPÊ. Membro associado da Associação Brasileira de Advogados
Criminalistas (ABRACRIM). e do Instituto Brasileiro de Ciências
Criminais (IBCCRIM).

José Bezerra Montenegro Pires


Advogado com atuação na área penal econômica.
José Cezario de Almeida
Professor do Magistério Superior da Universidade Federal de
Campina Grande, Campus de Cajazeiras. Atua no ensino, pesquisa
e extensão. Orientador de Programas de Pós-graduação stricto
sensu (mestrado e doutorado do PPGGSA-UFCG. Formação em
Ciências Biológicas e Bacharelado em Direito, Especialista em
Direito Penal. Mestre pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB),
Doutor pela Universidade Federal de Pernambuco, Pós-Doutor pela
Universidade de São Paulo (USP), Presidente da Escola Superior da
Advocacia (ESA) Subsecção da OAB de Pombal/PB. Sócio pesquisado
do IBCCRIM e da ABRACRIM. Editor da Revista Brasileira de Direito
e Gestão Pública. Advogado. Doutorando em Ciências Jurídicas pelo
Centro de Ciências Jurídicas – UFPB, em cotutela com a Universitá
Degli Studi Firenze - Itália. E-mail: cezariojus@gmail.com

Luis Eduardo Belarmino


Advogado, Pós-graduando em Direito Desportivo pela Universidade
do Minho em Braga, Portugal, Pós-graduando em Direito Penal
e Processual Penal pela Legale, São Paulo, Coautor do Capítulo
“Do Princípio do Duplo Fator de Autenticação como validador
de elementos probatórios de natureza digital”, no livro Direito,
Cidadania e Aplicação das Leis Criminais. Diretor do Comitê de
Crimes contra a Ordem Econômica da Comissão Estadual dos
Acadêmicos de Direito e Estágio Profissional de São Paulo.

Luiz Pereira do Nascimento Junior


Professor e advogado criminalista. Mestrando em Ciência Política
e Relações Internacionais pela Universidade Federal da Paraíba.
E-mail: advogadosluizpereira@gmail.com.

Pedro Filipe Araújo de Albuquerque


Procurador do Município de João Pessoa/PB. Mestrando em Direito
(Direitos Fundamentais e Democracia) no Programa de Pós-
Graduação em Direito da Unibrasil de Curitiba/PR. Especialista em
Direito Constitucional e Direito e Processo do Trabalho. Graduado
em Direito pela Faculdade de Direito do Recife da Universidade
Federal de Pernambuco. Membro da Comissão de Advocacia Pública
da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Paraíba. E-mail:
pedrofadealbuquerque.adv@gmail.com.

Roberto de Oliveira Nascimento


Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de João Pessoa.
Especialista em Ciências Criminais. Advogado criminalista. E-mail:
advrobertonascimento@gmail.com

Renata Lira de Souza Amaral


Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Paraíba. E-mail:
renatalira.am1@gmail.com.

Rodrigo Fuziger
Pós-doutor, Doutor, Mestre e Bacharel em Direito (USP); Bacharel
em Filosofia (USP); Doutor em Governança Global e Estado de
Direito (USAL/Espanha); Professor da Universidade Presbiteriana
Mackenzie; Advogado; Presidente da Comissão de Pareceres e
Estudos Jurídicos da ABRACRIM.

Romulo Rhemo Palitot Braga.


Doutor e Mestre em Direito Penal pela Universitat de València-
Espanha. Professor Permanente do Programa de Mestrado e
Doutorado do PPGCJ/UFPB; Professor Permanente do Programa em
Direito e Desenvolvimento do Centro Universitário de João Pessoa -
PPGD/UNIPÊ; Advogado e sócio do Escritório Rabay, Palitot & Cunha
Lima - Advogados; Presidente da Associação Nacional da Advocacia
Criminal- PB -ANACRIM; Procurador do Superior Tribunal de Justiça
Desportiva - STJD, da Confederação Brasileira de Automobilismo -
CBA.

Roseana Barbosa da Silva


Bacharela em direito pelo Centro Universitário de João Pessoa –
UNIPÊ. Advogada Criminalista. E-mail: advogadosluizpereira@
gmail.com
SOBRE A OBRA
“Eu vos dou raízes
O seio da perpetuidade
Outros vos darão asas (...)”

José Américo de Almeida é o autor do aforismo acima. Nada


mais apropriado. As raízes da maior Associação, ligada ao direito
penal no Brasil, é fruto, em 17 de setembro de 1993, da deliberação
de 08 presidentes de associações estaduais, assistidos por mais 07
palestrantes magnos e o próprio Presidente da Associação de São
Paulo, também palestrante: (01) Associações Estaduais: Elias Mattar
Assad, Luis Flávio Borges D’Urso, Emanuel Messias de Oliveira Cacho,
Evaldo Sebastião Teixeira, Flávio Teixeira de Abreu, José Américo
Petroneto, Osvaldo de Jesus Serrão de Aquino, Antonio Bento Maia
da Silva; (02) Palestrantes Magnos: José Roberto Batochio, Evaristo
de Moraes Filho, René Ariel Dotti, José Carlos Dias, Paulo Ramalho,
Márcio Thomaz Bastos, Francisco Accyoli Neto.
São eles, os que estiveram nesta memorável noite, os
homenageados nesse Liber Amicorum.
Merecem a homenagem?
Todos têm em comum a discrição, a persistência e a influência
militante em prol da dignidade da pessoa humana na área em que ela
mais tende a ser aviltada: a aplicação da lei penal.
E isso, por si só, justifica a obra que agora se apresenta.
Até porque, tais caraterísticas norteiam a associação brasileira
dos advogados criminalistas (ABRACRIM) e é a razão do seu singular
sucesso.
Muito embora, falar apenas isso não basta.
É necessário, para se ter o real significado da obra que ora
se apresenta, situá-la no contexto sócio-político-jurídico que ora
vivemos. Um contexto em que se nota graves distorções no papel
reservado ao direito penal e de onde se dissemina a perigosa assertiva
de que é preciso passar por cima das garantias constitucionais,
ignorar a ética e os ditames da consciência jurídico democrática para
instrumentalizar um combate ao crime.
Pululam os grupos que ao dramatizar a violência situam-se
em torno da ideia de que a paz e a segurança do cidadão dependem
de se desprezar os direitos humanos, até aqueles mais sagrados,
concretizados em princípios como o da legalidade e da tipicidade,
consagrando e até mesmo privilegiando um conteúdo repressivo de
norma de contextura aberta.
Isso tudo revela o quão importante é o papel exposto no dia
a dia dos homenageados. Um dia a dia que se coloca como uma luta
por criar uma verdadeira escola de Direito Penal (uma luta de 30 anos
que este livro registra), comprometida com os valores da democracia,
com a observância dos direitos e garantias fundamentais e com o
resgate do sentido garantista do Direito Penal.
Como nos diz o célebre escritor Moçambicano:
“Depois da guerra, pensava eu, restavam apenas cinzas,
destroços sem íntimo. Tudo pesando, definitivo e sem reparo.
Hoje sei que não é verdade. Onde restou o homem sobreviveu
semente, sonho a engravidar o tempo. Esse sonho se ocultou no
mais inacessível de nós, lá onde à violência não podia golpear,
lá onde a barbárie não tinha acesso. Em todo este tempo, a
terra guardou, inteiras, as suas vozes. Quando se lhes impôs
o silêncio elas mudaram de mundo. No escuro permaneceram
lunares” (Mia Couto no seu Estórias abensonhadas).

Sem mais, desejamos a todos uma excelente leitura!

Brasília, abril de 2023.


Os Organizadores
SUMÁRIO

DEPOIMENTOS
P. 21

1ª PARTE - EIXO EPISTEMOLÓGICO

O DIREITO AO SILÊNCIO: UMA ANÁLISE DOS JULGADOS DO STJ


P. 31

DA INCOMPATIBILIDADE ENTRE PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E


A PRESUNÇÃO DE ILICITUDE DA ORIGEM PATRIMONIAL NÃO
DEMONSTRADA NO CONFISCO ALARGADO PENAL
P. 55

RACISMO ESTRUTURAL, INSTADOS CRIMINAIS E AÇÕES


AFIRMATIVAS NO BRASIL: QUAL O BEM JURÍDICO TUTELADO?
P. 69

A APLICAÇÃO DA INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA


NO ÂMBITO DA POLÍCIA CIVIL DA PARAÍBA
P. 99

A NECESSIDADE DE EFETIVAÇÃO DO DIREITO À DURAÇÃO


RAZOÁVEL DO PROCESSO
P. 117
2ª PARTE - EIXO DOGMÁTICO E POLÍTICO
CRIMINAL

ESTUDO CRONOLÓGICO SOBRE A EVOLUÇÃO DA JUSTIÇA


ELEITORAL E O AVANÇO DA REPRESENTATIVIDADE
FEMININA PARA QUE PUDESSEM CONTRIBUIR COM OS
VOTOS
P. 137

GUERRA ÀS DROGAS E ENCARCERAMENTO EM MASSA:


REFLEXÕES CRÍTICAS ACERCA DA SUBVERSÃO DO CARÁTER
CAUTELAR DA PRISÃO PREVENTIVA
P. 161

APLICAÇÃO DA DETRAÇÃO PENAL DAS MEDIDAS


CAUTELARES DIVERSAS DA PRISÃO À LUZ DA TEORIA
GARANTISTA
P. 185

REFLEXÕES SOBRE ASPECTOS PENAIS DA NOVA LEI DE


LICITAÇÕES E CONTRATOS
P. 209

CIBERESPAÇO, CIBERCRIMINALIDADE, CRIPTOMOEDAS E O


AMBIENTE PROPÍCIO PARA A LAVAGEM DE CAPITAIS
P. 229

O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NOS CRIMES AMBIENTAIS


ANTROPOGÊNICOS
P. 249
DEPOIMENTOS

- 21 -
A história de luta da ABRACRIM é marcada por grandes
desafios, especialmente, para aqueles que iniciaram a construção
dessa instituição tão honrada e importante, marcando o pioneirismo
e coragem em tempos difíceis. Atualmente, as novas gerações
de advogados e advogadas dão continuidade ao legado deixado,
preservando o que já foi realizado e apresentando novas aspirações,
pois realizar o novo somente se faz possível, olhando paras as pedras
carregadas no passado.
Nos 30 anos de ABRACRIM, a Comunidade Jurídica, a
Democracia, o Estado de Direito e especialmente a advocacia criminal
foram exaltados, celebrados, homenageados e enaltecidos. Nesse
contexto, comemorar o terceiro decênio da ABRACRIM significa
reavivar o espírito dos célebres advogados que tanto lutaram pelas
prerrogativas e direitos dos advogados criminalistas. 
Aameaça em face da atuação do advogado criminalista é histórica,
rememorando a capacidade de superação e representatividade da
ABRACRIM, através de proposição de estudos sobre projetos de lei que
beneficiaram os advogados, criação de comissão para debater e propor
sugestões a lei anticrime e intenso debate sobre delação premiada,
julgamento, prisão em segunda instância, Tribunal do Júri e tantas
outras matérias de extrema relevância para a atuação do advogado
criminalista no que tange a preservação de Direitos Fundamentais e
proteção às normas constitucionais com a interposição de ações no
Supremo Tribunal Federal.
A ABRACRIM tem exercido um papel de extrema relevância
para a primazia de uma advocacia independente, visto que a atuação
da instituição é marcada pela coragem de seus fundadores, os
chamados “soldados” veteranos. 
Destarte, tem-se que gratidão é o sentimento que nós
advogados penalistas nutrimos pelos amigos que triunfaram frente
à ABRACRIM, para a construção de uma instituição nacionalmente
respeitada o que nos desafia a continuar contribuindo e aflorando o
desejo pelo fortalecimento das bandeiras ateadas pela nossa intuição.
Avante a advocacia criminal!

Thaís Moura
Presidente ABRACRIM/AC
Wellington Silva
Vice-Presidente ABRACRIM/AC

- 23 -
O artigo 133 da Constituição Federal de 1988, atualmente
nossa Carta Magna, traz consigo que o advogado é indispensável à
administração da justiça, sendo assim concluímos que a advocacia
deverá ser o amparo de todo cidadão, a certeza de que a injustiça não
o alcançará e o respeito a legislação deverá ser prevalecido.
Então, a fim de unir forças, enaltecer a advocacia Criminal, há 30
anos fora criada a Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas
(ABRACRIM), está que traz como princípio basilar a garantia de
assistência às prerrogativas aos seus associados, abarcando também
os temas mais discutidos que envolvam a advocacia e por muitas
vezes atuando junto às demandas em prol de todo o país.
Inúmeros foram os benefícios a seus associados durante estas
três décadas, desde o networking até o conhecimento de novas
culturas estaduais, já que todo ano é promovido um evento nacional
em um local diferente, fazendo com que o conhecimento chegue a
todos de uma forma mais prazeroso.
Além de que a Abracrim AL, em 2021 saiu a frente e teve
sua Primeira Presidente Mulher, o que possibilita a advocacia
criminal distanciar sua penumbra machista e promover cada vez o
acolhimento de mulheres nesta linda profissão!
Sem mais delongas, neste ano se comemora não apenas 30
anos desta linda associação, mas se faz um reconhecimento de toda
a trajetória de luta, conquistas e realizações que a advocacia criminal
pode ser beneficiada através daquele grupo de amigos que lograram
compartilhar de um sonho e finalmente unir a profissão!
Avante Abracrim, Avante a Advocacia Criminal.

Minghan Chen
Presidente ABRACRIM/AL
Cleto Carneiro
Vice-Presidente ABRACRIM/AL

- 24 -
Em 1993, um grupo de advogados unidos pelo dever e pela
justiça e forjados pela ética, princípios e valores fundou uma
Associação. O ano era emblemático não apenas pelo nascimento
do que viria a ser a maior Associação de advogados criminalistas do
país, mas também porque naquele mesmo ano houve um plebiscito
nacional para o povo escolher a forma e o sistema de governo.
Mesmo havendo a manutenção da República Presidencialista,
surgia uma nova era, um tempo de mudança, de luta e desafio. Aquele
grupo buscava igualdade de direitos e liberdade. Nascia assim uma
irmandade atemporal, cujos laços entrelaçavam a verdade com a
lealdade.
Criminalistas, destemidos e visionários, Guardiões da
Constituição, protetores dos oprimidos, com coragem e sabedoria,
enfrentaram adversários e desafios. Foi assim que fizeram da Justiça
seus mais fiéis ouvidos. E essa mesma Deusa da Justiça, imponente
e exaltada lá do alto do Olimpo, mesmo com uma venda nos olhos,
soube que ao lado do acusado o advogado criminalista também
estaria.
Nas sombras da sociedade, alicerçaram seu escudo,
defendendo os valores da lei e da razão. Sempre juntos, em uma
só voz, repudiaram o absurdo, e construíram um legado de honra e
união.
Desde a fundação desta Associação existe um propósito, uma
esperança que renasceu e um sonho que se fez real. Os advogados
criminalistas, ao lado do acusado, encontraram (e encontrarão!)
redenção.
Agora, a chama da justiça arde em cada coração, e na
solidariedade e força dessa comunhão, os defensores se levantam
com ardor na eterna batalha pela defesa dos princípios e valores da
Constituição.
Assim, da mesma forma como há 30 anos, a ABRACRIM se fez
República! Hoje aqui se faz res publica! Viva a nossa ABRACRIM!

Philipe Benoni
Presidente ABRACRIM/DF
Gabriela Bemfica
Vice-Presidente ABRACRIM/DF

- 25 -
Falar da Advocacia Criminal não é simplesmente falarmos de
suas prerrogativas e Garantias Constitucionais. Vai muito mais além.
Antes mesmo de bramir qualquer citação orgulhosa do papel
fundamentar de todo Advogado Criminalista, é preciso que este
mesmo Advogado sinta, respire e arrogue as dores humanas daqueles
que em alguma medida foi atingido pelo amargor de uma acusação
criminal ao qual agora suplica por Socorro!
Tais lições quanto ao atendo olhar humanista nem de longe
são tratadas nas academias, do mesmo modo que também não são
mencionadas em salas e “cursinhos” ou algo do gênero.
Convém gritar, sorte nossa que então exatamente há 30 anos
esplandecia nossa ABRACRIM das iluminadas mentes e mãos dos
valorosos Advogados Criminalistas que sonharam e concretizaram
respeitável associação.
Servindo de fonte de inspiração, capaz de romper as
normas frias da Lei, e que nesta trajetória de homens e mulheres
Criminalistas de todo o país pactuam grande aliança para melhor
atender os anseios de uma sociedade que clama por aplicação justa
de sua Justiça.
Parabéns ABRACRIM!

Rodrigo F. Batista
Presidente ABRACRIM/RO

- 26 -
No ano de 2023, a ABRACRIM completa sua maturidade,
merecendo todos os louvores por uma trajetória que já impacta
marcantemente o cenário jurídico nacional.
Nascida do sonho de união de seus fundadores e inspirada
na necessidade de congregar os advogados criminalistas de todos
os cantos do país, a associação coloca-se como a casa daqueles que
buscam um acolhimento em suas lutas diárias, que vivenciam as
mazelas do processo penal e resistem na defesa intransigente do
bem mais precioso do ser humano: a sua liberdade.
O que une os membros da ABRACRIM são ideais de justiça,
de igualdade e de humanidade. É a vontade constante e perpétua
de combater os desmandos e os abusos dos agentes públicos. É a
busca por regras claras e pelo respeito às leis e à Constituição. O
advogado criminalista defende o direito de defesa do próximo e, por
isso, muitas vezes precisa se opor ao senso comum e desconsiderar
a opinião pública. Estará ele sujeito a todo tido de arbitrariedade
e a todo tipo de provocação e reprovação, até mesmo pelos seus
pares e pelas pessoas que lhe são mais próximas. Porém, sua eterna
e incansável busca pelo justo supera todas as adversidades.
A ABRACRIM traz em suas origens a preocupação e o
cuidado com todas essas angústias que permeiam o caminho dos
criminalistas. Caminho este que pode ser menos árido quando se
está ao lado de pessoas que têm essencialmente as mesmas crenças
e bebem das mesmas fontes. É neste apoio mútuo, no incentivo a não
desistir, que nasce e cresce a associação.
Onde houver um criminalista enfrentando o arbítrio lá estará
o escudo da ABRACRIM, ao seu lado, somando forças, exigindo a
legalidade.
“Sozinhos somos fortes. Juntos somos imbatíveis.” Eis o
lema que nos une e que tem nos fortalecido ao longo destes 30
anos de existência. Parabéns à ABRACRIM e aos seus fundadores
por manterem vivas as chamas da esperança da advocacia criminal
brasileira.

Fernanda Correa Osório


Presidente ABRACRIM/RS
Carlo Velho Mais
Vice-Presidente ABRACRIM/RS

- 27 -
Muito me orgulha poder explanar sobre o orgulho de
estar como Presidente da Associação Brasileira dos Advogados
Criminalistas no Estado de São Paulo (ABRACRIM-SP), o que ao
longo destes últimos três anos tem sido uma grande honra e uma
grande responsabilidade.
É um privilégio estar a frente desta respeitada associação e
suceder os grandes nomes da advocacia criminal, os quais criaram
a muralha dos indomáveis, em todas as oportunidades sempre fiz
questão de ressaltar que na ABRACRIM, eu não fiz colegas, mas
ganhei amigos, e neste ano, nossa associação, presenteia não só os
associados, mas também o Estado Democrático de Direito com 30
(trinta), anos de existência, e como presidente, tenho orgulho de
representar e ladear ao lado, sim, amigos desta magnifica associação.
Nós advogados criminalistas enfrentamos diariamente as
agruras, assim como cita Carnelutti, o advogado criminalista é
aquele que se senta no último degrau da escada, ao lado do acusado,
enquanto todos apontam, e digo que o advogado criminalista
é o verdadeiro fiscal da Lei, o qual diariamente súplica por sua
aplicação justa e pela defesa do Estado Democrático de Direito, e
como preceitua nosso lema, separados somos fortes, juntos somos
invencíveis.
Ser presidente da ABRACRIM-SP é, portanto, não só uma
responsabilidade, mas uma fonte de grande orgulho, pois não
estamos entre associados, entre cargos, entre hierarquia, mas sim
entre irmãos, unidos e irmanados com o mesmo ideal, a defesa da
advocacia criminal e o ideal de Justiça.

Antonio Belarmino Junior


Presidente da ABRACRIM/SP
Diretor Nacional de Relações Institucionais da ABRACRIM

- 28 -
1ª PARTE - EIXO
EPISTEMOLÓGICO

- 29 -
O DIREITO AO SILÊNCIO: UMA
ANÁLISE DOS JULGADOS DO
STJ
Luiz Pereira do Nascimento Junior1
Roseana Barbosa da Silva2

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O direito de permanecer em silêncio, também conhecido como


o direito ao silêncio, é um elemento fundamental dos processos de
defesa que protegem os acusados e está consagrado, como dito,
no texto constitucional. No âmbito jurídico, considera-se que o
direito de permanecer em silêncio surgiu na Era Moderna como uma
resposta aos horrores causados pela Inquisição na Idade Média. Essa
prática era conduzida pelo Absolutismo Monárquico e pela Igreja e,
frequentemente, utilizava a tortura para obter confissões. O direito
de permanecer em silêncio é uma consequência do brocardo latino
nemo tenetur se detegere, que estabelece que ninguém pode ser
forçado a produzir provas que possam levá-lo à autoincriminação3.
Antes desse período, pode-se citar como um exemplo famoso
de exercício do direito ao silêncio, o comportamento de Jesus
diante das acusações feitas contra ele durante seu julgamento. De
acordo com a tradição cristã, Jesus foi levado diante das autoridades
religiosas e políticas de sua época, acusado de blasfêmia e sedição.
Apesar das pressões para que se defendesse ou se justificasse, Jesus
permaneceu em silêncio diante das acusações. Esse comportamento

1 Professor e advogado criminalista. Mestrando em Ciência Política e Relações Internacionais


pela Universidade Federal da Paraíba. E-mail: advogadosluizpereira@gmail.com
2 Bacharela em direito pelo Centro Universitário de João Pessoa – UNIPÊ. Advogada Crimi-
nalista. E-mail: advogadosluizpereira@gmail.com
3 DIREITO de ficar calado: saiba tudo sobre a lei. Blog Damasio, São Paulo, 2021. Disponível
em: https://noticias.damasio.com.br/direito-de-ficar-calado/. Acesso em: 30 mar. 2023.

- 31 -
é visto como uma afirmação da sua dignidade humana e como um
ato de resistência não violenta contra a injustiça e a opressão.
O silêncio de Jesus também pode ser interpretado como direito
a não autoincriminação. Ao se recusar a falar diante das acusações
injustas, Jesus afirmou sua liberdade e autonomia como ser humano.
Em resumo, o direito ao silêncio é um princípio fundamental
no direito penal e processual penal, que garante a todos os indivíduos
recusar a produzir prova contra si mesmos. O exemplo do silêncio de
Jesus é uma ilustração poderosa desse princípio.
De acordo com Lima4, o direito ao silêncio, estabelecido na
Constituição Federal, é apenas uma das implicações do princípio de
que ninguém pode ser obrigado a produzir provas contra si mesmo.
Segundo o doutrinador, muito embora perdure o alardeado ditado de
que “quem cala consente”, o ato de calar-se não pode ser interpretado
como uma confissão.
Também chamado de princípio da não autoincriminação,
trata-se de uma consequência e complemento da presunção de
inocência garantida pelo art. 5º, LVII da Constituição Federal.
Diversos desdobramentos processuais decorrem desse princípio,
como, por exemplo, a obrigação da acusação de provar a culpa
do réu, o fato de que o silêncio do réu não pode ser interpretado
como confissão ficta, a proibição de compelir alguém a participar de
reconstituição do crime ou realizar qualquer comportamento que
possa levar à produção de prova sem o seu consentimento5.
Antes da entrada em vigor da Lei de Abuso de Autoridade6,
mesmo declinando o exercício do direito ao silêncio, nada impedia
que o acusado fosse questionado sobre quantos quesitos fossem
necessários, isso de acordo com a última parte do art. 186 do Código
de Processo Penal, desde que não houvesse coação para responder
às perguntas.

4 LIMA, R. B. Manual de processo penal: volume único. 5. ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2017.
5 GRECO FILHO, V. Manual de processo penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
6 BRASIL. Lei nº 13.869, de 5 de setembro de 2019. Dispõe sobre os crimes de abuso de autori-
dade. Disponível em: L13869 (planalto.gov.br). Acesso em: 30 mar. 2023.

- 32 -
No entanto, a promulgação da referida lei, que visa combater
os abusos da atuação estatal, tem levado os estudiosos a reexaminar
o direito ao silêncio, inclusive o seletivo, e trazer um novo panorama
jurisprudencial à questão. Neste norte, Lima7 leciona que:
Caso o acusado invoque seu direito de ficar em silêncio, não
pode o magistrado ficar fazendo perguntas, uma após a outra,
consignando as perguntas que o acusado deixar de responder
como se o acusado estivesse cometendo uma irregularidade
ao negar as respostas. Isso poderia servir como forma de
pressionar o acusado. (LIMA, 2023, p. 664).

Da forma como apresenta a questão, Lima (2023) entende


que o simples fato de consignar perguntas após a manifestação de
não respondê-las, resulta em coação e contamina eventual resposta
dada, o que pode ensejar a nulidade do ato. Além disso, a Lei de
Abuso de Autoridade tipificou como crime de constrangimento o
ato de prosseguir com o interrogatório daquele que tenha decidido
exercer o direito ao silêncio.
Inquestionável é que esse direito é uma garantia fundamental
prevista expressamente no paradigma do Estado Democrático de
Direito, tanto na ordem interna do ordenamento jurídico brasileiro,
por exemplo, na Constituição Federal de 1988 e no Código de
Processo Penal, quanto na ordem internacional, como na Convenção
Americana sobre Direitos Humanos ou Pacto de São José da Costa
Rica. Esse direito assegura que o silêncio do acusado não poderá ser
interpretado em prejuízo de sua defesa8.
Muito embora, em sua essência, não tenha sido recepcionado
pela Constituição Federal, o Código de Processo Penal Militar ainda
contém em sua redação que no interrogatório o juiz alertará o
acusado que, embora não esteja obrigado a responder às perguntas,
o seu silêncio poderá ser interpretado em prejuízo da própria defesa9.

7 LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único. 12. ed. São Paulo: Ed.
JusPodivm, 2023.
8 GADELHA, G. M. D. B. KLEIN, L. C. A.; FABRIZ, D. C. Limites constitucionais do direito ao
silêncio: intepretação do Supremo Tribunal Federal com aproximações à doutrina do direito como
integridade de Ronald Dworkin. Revista CNJ, Brasília, v. 6, n. 1, p. 57–69, 2022. Disponível em:
https://www.cnj.jus.br/ojs/revista-cnj/article/view/304. Acesso em: 26 mar. 2023.
9 BRASIL. Código de Processo Penal Militar. Decreto-lei n. 1.002, de 21 de outubro de 1969.

- 33 -
Apesar de tudo, pelo princípio da especialidade, muitos julgadores
ainda aplicam a interpretação negativa à recusa em falar.
Nucci10 ensina que “o silêncio do réu não presta para nada em
matéria de provas destinadas a formar a convicção do julgador”. Isso
quer dizer que embora o silêncio do réu possa gerar desconfiança
por parte do julgador ou dos jurados, isso não é suficiente para
fundamentar uma condenação. O juiz ou tribunal deve analisar as
provas produzidas durante o processo e avaliar se são suficientes
para comprovar a autoria e a materialidade do delito.
Já Lopes Jr.11 defende que o silêncio não se resume apenas ao
falar ou calar. Segundo o autor, o acusado não poderá, como efeito
decorrente desse princípio constitucional, ser obrigado a colaborar
com reprodução simulada dos fatos, participar de acareações ou
fornecer material para exames periciais.
Por ocasião do trigésimo aniversário da Associação Brasileira
dos Advogados Criminalistas – ABRACRIM e do Encontro Brasileiro
da Advocacia Criminal – EBAC, com o tema A redemocratização da
Justiça Penal e o Respeito à Advocacia Criminal, nada mais pertinente
que apresentar uma interpretação sobre o direito ao silêncio a partir
dos julgados do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
A escolha do tema ganha força em razão da especial
homenagem ao paraibano Raymundo Asfóra, exímio advogado
criminalista, defendente dos direitos e garantias constitucionais
daqueles oprimidos pelo incansável e quase invencível poder do
Estado. Além de ser um brilhante orador, Asfóra recebeu elogios de
figuras expressivas nos meios intelectuais e políticos do Brasil, dada
a sua posição contra o arbítrio impiedoso da injustiça. Tornou-se
referência e passou a ser conhecido como o “Tribuno de Campina”,
em razão da sua destacada peroração, que deixou o silêncio de lado

Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del1002.htm Acesso em: 30 de


mar. 2023.
10 NUCCI, G. Condução coercitiva e o julgamento do Supremo Tribunal Federal: o confronto
maniqueísta. Disponível em: https://guilhermenucci.com.br/conducao-coercitiva-e-o-julgamen-
to-do-supremo-tribunal-federal-o-confronto-maniqueista/ Acesso em: 30 mar. 2023.
11 LOPES JR., A. Direito processual penal. 16. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2019.

- 34 -
para ser a altiva voz em defesa dos mais abastados12.
Assim, o objetivo desse artigo é apresentar os julgados do STJ
e analisar como este tribunal tem se posicionado sobre o tema. O
assunto em questão apresenta duas relevâncias: social e jurídica. No
que se refere à importância social, trata de como os agentes estatais
devem agir ao abordar qualquer pessoa em território nacional,
especialmente quando o indivíduo detido é submetido a um
interrogatório informal em caso de prisão em flagrante. Com relação
à relevância jurídica, é possível observar que o tema está intimamente
ligado aos princípios do devido processo legal substantivo, que
são garantias fundamentais para o desenvolvimento da atividade
persecutória em um Estado de Direito13.
Como o STJ é considerado a Corte Cidadã, saber como vem
julgando o direito ao silêncio, garantido por instrumentos nacionais
e internacionais, é a justificativa para a presente pesquisa, ainda
mais para que seja identificada e denunciada eventual relativização
dos direitos e garantias constitucionais.
Para o desenvolvimento metodológico deste estudo, optou-se
pela pesquisa bibliográfica, a qual se baseou na consulta de livros e
artigos científicos de juristas e cientistas que discutem o tema em
questão. A pesquisa qualitativa também foi aplicada, visto que é a
mais adequada para este caso, especialmente em Ciências Jurídicas.
Trata-se de um método que permite a compreensão dos fenômenos
jurídicos a partir das perspectivas dos próprios atores sociais e
políticos envolvidos. Segundo Minayo14, a pesquisa qualitativa é um
tipo de investigação que se concentra na análise das experiências
vividas pelos indivíduos, suas ações, valores e significados
que atribuem aos eventos e aos fenômenos em seus contextos

12 RAYMUNDO Asfora completa 30 anos de saudades para os paraibanos. Jornal da Paraíba,


João Pessoa, 06 de março de 2017. Disponível em: https://jornaldaparaiba.com.br/comunidade/
vida_urbana/raymundo-asfora-completa-30-anos-de-saudades-para-os-paraibanos/ . Acesso em:
30 mar. 2023.
13 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Repercussão Geral no Recurso Extraordinário 1.177.984,
São Paulo. Relator: Min. Edson Fachin. Julgamento: 02/12/2021. Publicação: 03/02/2022. Dis-
ponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=758988240
.Acesso em: 24 mar. 2023.
14 MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 13. ed. São
Paulo: Hucitec, 2014.

- 35 -
socioculturais. Assim, ao estudar as decisões judiciais a partir das
perspectivas dos atores, é possível compreender as motivações, as
estratégias e as dinâmicas políticas que podem ser diferentes das
premissas teóricas e institucionais.
Para o estudo das decisões judiciais, utilizou-se a análise
documental, considerando-se que tais documentos estão abertos
ao público e são de fácil acesso, podendo ser encontrados no banco
de jurisprudências do Superior Tribunal de Justiça. É importante
destacar que todas as decisões judiciais, em sua essência, são de
interesse público, a menos que estejam gravadas sob sigilo, o que
não é o caso. Assim, qualquer interessado pode acessá-las.
Na presente pesquisa, as ementas (texto reduzido aos pontos
essenciais) das decisões judiciais serão submetidas a uma Análise
de Conteúdo (AC), método que permite tanto análises quantitativas
quanto qualitativas. No caso específico do método qualitativo, a AC
é empregada para examinar textos e imagens, a fim de extrair seus
significados e interpretar seu conteúdo. Desta forma, a análise de
conteúdo é uma técnica que se concentra no sentido das mensagens
e pode ser aplicada em diferentes tipos de texto, incluindo decisões
judiciais, textos literários ou científicos15.
A pesquisa foi conduzida com base na metodologia proposta
por Bardin16 para análise de dados, a qual consiste em três fases
organizadas em ordem cronológica: pré-análise, exploração e
tratamento e interpretação dos resultados.
Na sua estrutura, o artigo é composto por quatro capítulos.
O primeiro deles é a introdução, onde são apresentados o tema, os
objetivos, a relevância, a justificativa e metodologia da pesquisa.
No segundo, haverá a apresentação das amostras com descrição do
processo de preparação do material pesquisado, enquanto que no
terceiro capítulo se encontra a análise e interpretação dos achados.
No quarto capítulo temos as considerações finais, que trarão o
posicionamento do STJ quanto ao tema.
15 CAVALVANTE, R. B.; CALIXTO, P.; PINHEIRO, M. M. K. Análise de Conteúdo: considerações
gerais, relações com a pergunta de pesquisa, possibilidades e limitações do método. Informação &
Sociedade, João Pessoa, v. 24, n.1, p. 13-18, jan./abr. 2014.
16 BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977.

- 36 -
PREPARAÇÃO PARA ANÁLISE DOS DADOS
DA PESQUISA

Os achados da pesquisa foram examinados utilizando a


Análise de Conteúdo, na perspectiva de Bardin17, com ênfase no
significado das mensagens contidas nos dados. Durante a análise,
foram consideradas as diferentes perspectivas sobre as informações
e argumentos apresentados, a fim de extrair o sentido e essência dos
textos. A Análise de Conteúdo é uma metodologia flexível que se
preocupa com a interpretação do conteúdo das mensagens e pode
ser aplicada de diversas formas. Assim, o confronto analítico dos
textos tem como objetivo da análise de conteúdo a interpretação do
que o autor do texto quis dizer com o que foi escrito18.
Inicialmente houve uma organização e sistematização das
ideias provenientes do referencial teórico, deveras importante para
a interpretação dos dados coletados. Existiu ainda a definição dos
indicadores que devem orientar a interpretação dos dados.
Com tais indicadores, passou-se a separar, sistematizar e
organizar as decisões judiciais em dois grupos de onde os dados
foram extraídos: Grupo 1- Quinta Turma; e Grupo 2 - Sexta Turma.19
Na sequência, foram relacionadas, para cada grupo, as seguintes
categorias temáticas: a- Referência à Constituição Federal; b-
Inquérito policial/ação policial; c- Acolhimento da tese.
Com tudo isso em mãos, seguiu-se ao tratamento,
interpretação das informações, impressões e inferências dos dados
coletados. Nesta fase haverá atração de conteúdos latentes contidos
no material coletado. Com isso, a partir dos achados significativos,
o pesquisador deverá propor inferências e interpretações, a partir da
análise dos dados.

17 BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977.


18 BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977.
19 De acordo com o Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça, a Quinta e a Sexta Tur-
mas compõem a Terceira Seção, a quem cabe processar e julgar os feitos relativos à matéria penal
em geral, salvo os casos de competência originária da Corte Especial e os habeas corpus de com-
petência das Turmas que compõem a Primeira e a Segunda Seção.

- 37 -
Através do sítio eletrônico do STJ, conseguiu-se acesso ao
seu banco de jurisprudências. Escolheu-se pesquisar as decisões de
Habeas Corpus (HC) em razão de ser um instituto constitucional de
reflexo em matéria penal. Assim, realizou-se uma consulta a partir
do campo de busca com os seguintes indexadores “habeas corpus”
“direito ao silêncio” “ordem concedida”. O resultado apontou 20
decisões. Delas, foram excluídas três, sendo duas porque não abordam
o tema na redação da ementa e uma em razão de ter sito julgada por
outra turma julgadora (1ª Turma). As amostras seguem classificadas
no quadro abaixo, e serão consideradas amostras da pesquisa.
Tabela 1- Sistematização das decisões judiciais referentes ao tema

AMOSTRA DESCRIÇÃO DATA ÓRGÃO


HC 140429 / MG HABEAS
Amostra 1 14/02/2011 5ª TURMA
CORPUS 2009/0124752-8
HC 173545 / SP HABEAS CORPUS
Amostra 2 01/06/2011 5ª TURMA
2010/0092808-7
RHC 39782 / RJ RECURSO
Amostra 3 ORDINARIO EM HABEAS 16/10/2013 5ª TURMA
CORPUS 2013/0249903-7
HC 265602 / SP HABEAS CORPUS
Amostra 4 21/10/2014 5ª TURMA
2013/0056445-7
HC 295176 / SP HABEAS CORPUS
Amostra 5 11/06/2015 5ª TURMA
2014/0120936-5
HC 164704 / SP HABEAS CORPUS
Amostra 6 16/11/2015 6ª TURMA
2010/0041735-7
RHC 61959 / ES RECURSO
Amostra 7 ORDINARIO EM HABEAS 04/12/2015 6ª TURMA
CORPUS 2015/0175777-6
HC 313330 / RS HABEAS CORPUS
Amostra 8 30/08/2016 5ª TURMA
2014/0345875-9
HC 370214 / SP HABEAS CORPUS
Amostra 9 07/11/2016 5ª TURMA
2016/0235564-7
HC 369082 / SC HABEAS CORPUS
Amostra 10 01/08/2017 5ª TURMA
2016/0226409-3

- 38 -
HC 162149 / MG HABEAS
Amostra 11 10/05/2018 5ª TURMA
CORPUS 2010/0024853-2
AgRg no HC 495749 / RJ AGRAVO
Amostra 12 REGIMENTAL NO HABEAS 23/10/2019 6ª TURMA
CORPUS 2019/0058947-8
RHC 88030 / RJ RECURSO
Amostra 13 ORDINARIO EM HABEAS 14/04/2021 6ª TURMA
CORPUS 2017/0196506-9
HC 690179 / SC HABEAS CORPUS
Amostra 14 17/11/2021 5ª TURMA
2021/0277005-7
HC 692152 / RJ HABEAS CORPUS
Amostra 15 19/11/2021 5ª TURMA
2021/0289339-2
HC 704331 / SC HABEAS CORPUS
Amostra 16 16/12/2021 5ª TURMA
2021/0353093-5
HC 742003 / SP HABEAS CORPUS
Amostra 17 27/06/2022 5ª TURMA
2022/0143314-0
Fonte: Elaborado pelo autor (2023), baseado em STJ (2003 a 2022)

Após a coleta das amostras (decisões judiciais), avançou-se


para a fase de interpretação e inferência dos achados. De acordo com
Bardin20, nesta etapa “o analista pode propor inferências e adiantar
interpretações a propósito dos objetivos previstos”. Portanto, os
resultados obtidos na comparação sistemática das informações e
achados contidos nas amostras de julgados serviram como base para
análise.

AS AMOSTRAS DA PESQUISA

Após a seleção, as amostras foram submetidas às duas


primeiras fases sugeridas por Bardin21 (1- pré-análise; 2- exploração
e tratamento), de modo que ao final extraiu-se o seguinte:

20 BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977, p. 101.


21 BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977.

- 39 -
AMOSTRA 1
Trecho 1
Esta Corte de Justiça firmou entendimento no sentido de que
não constitui o crime disposto no art. 307 do Código Penal a
conduta do acusado que se atribui falsa identidade perante
a autoridade policial com intuito de ocultar antecedentes
criminais e manter o seu status libertatis, tendo em vista se
tratar de hipótese de autodefesa, já que atuou amparado pela
garantia constitucional de permanecer calado, consagrada
no art. 5º, inciso LXIII, da Constituição Federal (Precedentes
STJ).
Trecho 2
Dessa forma, verifica-se que a intenção da paciente era
impedir a sua segregação e não ofender a fé pública, que é
o bem juridicamente tutelado pelo tipo penal em apreço,
tendo agido em atitude de autodefesa, amparada, portanto,
no direito ao silêncio - previsto no art. 5º, inciso LXIII, da
Constituição Federal - e no direito de não produzir provas
contra si mesma - assegurado pelo art. 8º, 2, alínea “g”, da
Convenção Americana de Direitos Humanos -, motivo pelo
qual a condenação referente ao delito de falsa identidade não
deve subsistir.
Trecho 3
Ordem concedida

AMOSTRA 2
Trecho 1
Esta Corte de Justiça firmou entendimento no sentido de que
não constitui o crime disposto no art. 307 do Código Penal a
conduta do acusado que se atribui falsa identidade perante
a autoridade policial com intuito de ocultar antecedentes
criminais e manter o seu status libertatis, tendo em vista se
tratar de hipótese de autodefesa, já que atuou amparado pela
garantia constitucional de permanecer calado, consagrada
no art. 5º, inciso LXIII, da Constituição Federal (Precedentes
STJ).
Trecho 2
Dessa forma, verifica-se que a intenção do paciente era
impedir o cerceamento de seu status libertatis e não ofender a
fé publica, que é o bem juridicamente tutelado pelo tipo penal
em apreço, tendo agido em atitude de autodefesa, amparada,
portanto, no direito ao silêncio - previsto no art. 5º, inciso

- 40 -
LXIII, da Constituição Federal - e no direito de não produzir
provas contra si mesmo - assegurado pelo art. 8º, 2, alínea “g”,
da Convenção Americana de Direitos Humanos -, motivo pelo
qual a condenação referente ao delito de falsa identidade não
deve subsistir.
Trecho 3
Ordem parcialmente concedida

AMOSTRA 3
Trecho 1
A mera suposição, sem indicativo fático, de que o direito ao
silêncio e de vista dos autos será desrespeitado não constitui
uma ameaça concreta à liberdade dos recorrentes capaz de
justificar o manejo de habeas corpus para o fim pretendido.
Trecho 2
Recurso improvido.

AMOSTRA 4
Trecho 1
A alegação de que a manutenção da condenação do paciente
se deu unicamente com base em uma única prova, já foi
indiretamente enfrentada no HC n. 224.117/SP também
impetrado em seu favor: o édito condenatório, ao contrário
do alegado pelo Impetrante, não está fundado no silêncio do
Paciente em juízo, mas no farto e variado conjunto fático-
probatório da ação penal, que foi devidamente examinado
pelo Juízo de origem, com observância da legislação e
jurisprudência pátrias, de modo que não há qualquer nulidade
a ser sanada na espécie.
Trecho2
Dessa forma, no referido HC n. 224.117/SP se alegou que a
condenação baseou-se apenas no exercício do direito ao
silêncio pelo paciente e, neste writ, alega-se que esta se baseou
apenas no depoimento (viciado em sua forma e conteúdo) do
correu Michel. Todavia, a análise do acórdão não permite nem
a conclusão que a condenação baseou-se apenas nesta prova,
nem que esta conteria os vícios acoimados pelo paciente.
Na verdade, constata-se que o tribunal a quo manteve a
édito condenatório do paciente fundado na livre apreciação
de toda a prova produzida nos autos, como interrogatórios,
depoimentos de testemunhas, rastreamento de ligações
telefônicas, etc., nos termos dos arts. 155 e 239 do CPP.

- 41 -
Trecho 3
Os vícios alegados pelo impetrante não foram demonstrados.
Consta do acórdão atacado que apesar do correu Michel ter
sido submetido a diversas perícias, não foram encontrados
vestígios de que seu interrogatório teria ocorrido mediante
tortura perpetrada por agentes da polícia judiciária.
Trecho 4
A existência de eventual irregularidade na informação
acerca do direito de permanecer em silêncio, por ocasião
do interrogatório realizado no âmbito do inquérito policial,
é causa de nulidade relativa, cuja declaração depende de
oportuna alegação e de demonstração do prejuízo. No caso
em tela, a matéria não foi suscitada oportunamente e não foi
demonstrado o prejuízo (...)
Trecho 5
Habeas corpus não conhecido.

AMOSTRA 5
Trecho 1
No caso, a alegada ausência de declaração do direito dos
pacientes de permanecerem em silêncio (art. 186 do CPP),
embora arguida já na audiência de instrução, não lhes causou
qualquer prejuízo.
Trecho 2
Habeas corpus não conhecido.

AMOSTRA 6
Trecho 1
O pleito de nulidade pela falta do direito de permanecer em
silêncio não pode ser analisado por este Superior Tribunal
de Justiça, uma vez que a irresignação do paciente não foi
apreciada pelo Tribunal a quo, por ocasião do julgamento do
recurso de apelação, fato que impede a análise da impetração
por esta Corte, sob pena de indevida supressão de instância.
Trecho 2
Habeas corpus não conhecido.

- 42 -
AMOSTRA 7
Trecho 1
Consoante o termo do interrogatório policial, a autuada não
foi informada do direito ao silêncio e à assistência de um
advogado, ex vi do artigo 5º, inciso LXIII, da Constituição
Federal, em franca desatenção aos requisitos formais de
validade do auto de prisão em flagrante.
Trecho 2
Ausentes as formalidades legais, imperiosa a declaração
de nulidade do depoimento extrajudicial, cujo vício formal
ensejaria o relaxamento da prisão em flagrante.
Trecho 3
Ordem de habeas corpus concedida, de ofício (...)

AMOSTRA 8
Trecho 1
Pela garantia da não autoincriminação, ninguém é obrigado
a produzir prova contra si mesmo, não podendo ser
forçado, por qualquer autoridade ou particular, a fornecer
involuntariamente qualquer tipo de informação ou declaração
que o incrimine, direta ou indiretamente.
Trecho 2
Tendo o paciente respondido, voluntariamente, às perguntas
formuladas pelo Parquet e, não se verificando o emprego de
pressão psicológica, ausente violação à garantia do nemo
tenetur se detegere.
Trecho 3
Habeas corpus não conhecido.

AMOSTRA 9
Trecho 1
A alegação de que o ora paciente não foi interrogado na
fase inquisitorial não ficou demonstrada, não se verificando
qualquer nulidade, constando dos autos que, na oportunidade,
“preferiu fazer uso do seu direito ao silêncio”.
Trecho 2
Habeas corpus não conhecido.

- 43 -
AMOSTRA 10
Trecho 1
Os direitos ao silêncio e de não produzir prova contra si
mesmo não são absolutos, razão pela qual não podem ser
invocados para a prática de outros delitos.
Trecho 2
(...) aplica-se ao presente caso a mesma solução jurídica
decidida pela Terceira Seção desta Corte Superior quando
do julgamento do Resp. n. 1.362.524/MG, submetido à
sistemática dos recursos repetitivos, no qual foi fixada a tese
de que “típica é a conduta de atribuir-se falsa identidade
perante autoridade policial, ainda que em situação de alegada
autodefesa”.
Trecho 3
Habeas corpus não conhecido.

AMOSTRA 11
Trecho 1
Inexiste nulidade do interrogatório policial por ausência do
acompanhamento do paciente por um advogado, sendo que
esta Corte acumula julgados no sentido da prescindibilidade
da presença de um defensor por ocasião do interrogatório
havido na esfera policial, por se tratar o inquérito de
procedimento administrativo, de cunho eminentemente
inquisitivo, distinto dos atos processuais praticados em juízo.
Trecho 2
A falta do registro do direito ao silêncio não significa que este
não tenha sido comunicado ao interrogado, pois registro não
exigido pela lei processual.
Trecho3
Habeas corpus não conhecido.

AMOSTRA 12
Trecho 1
A defesa restringiu-se a suscitar a existência de nulidade
pela ausência de garantia de assistência de advogado e
do direito ao silêncio no depoimento prestado perante a
autoridade policial, sem apontar o efetivo prejuízo sofrido
pela agravante, que não se presume porquanto não houve
nenhuma autoincriminação, não tendo o Juízo de origem
sequer utilizado as declarações com vistas à formação do

- 44 -
juízo de culpa.
Trecho 2
Agravo regimental desprovido.

AMOSTRA 13
Trecho 1
O direito ao silêncio é uma garantia constitucional
civilizatória, que reconhece a necessidade de o Estado ter
outras formas de obtenção de provas, independentemente da
palavra do réu, para alcançar a verdade.
Trecho 2
A regra é que a testemunha não tem o direito de ficar calada,
todavia, quando esta é formalmente arrolada nessa condição,
mas tratada materialmente como um investigado, também
deverá incidir a garantia constitucional.
Trecho 3
Sem a comprovação do aviso do direito ao silêncio, nulo está
o depoimento do paciente, e não há sentido em se admitir
que ele possa ser processado pelo crime do art. 342 do Código
Penal.
Trecho 4
Recurso ordinário em habeas corpus conhecido e provido

AMOSTRA 14
Trecho 1
A alegação de inexistência de advertência acerca do direito ao
silêncio não foi debatida pelo eg. Tribunal de origem - o que
impede a apreciação por esta Corte Superior (art. 105, I e II, da
CF; e art. 13, I e II, do RISTJ).
Trecho 2
Habeas corpus não conhecido.

AMOSTRA 15
Trecho 1
Ademais, a alegação defensiva de inexistência de respeito ao
direito ao silêncio não merece prosperar, tendo em vista que
as instâncias ordinárias, mediante exaustivo exame fático-
probatório, concluíram que, na verdade, houve sim a devida
advertência ao paciente e aos demais corréus acerca do direito
ao silêncio e de não produzir provas contra si mesmos.

- 45 -
Trecho 2
(...) e diante da localização de grande quantidade de drogas,
apreender a substância entorpecente e prendê-lo em
flagrante, sem que seja necessário informá-lo previamente
sobre o seu direito ao silêncio, razão pela qual não há falar em
confissão informal ilícita.
Trecho 3
Habeas corpus não conhecido.

AMOSTRA 16
Trecho 1
Por derradeiro, a alegação de inexistência de advertência
acerca do direito ao silêncio não merece prosperar tampouco,
pois não há qualquer indício nos autos de tal ofensa a direitos
do paciente.
Trecho 2
Assente nesta eg. Corte Superior que, “Ocorrendo suspeita
de que o agravante estava praticando o delito de tráfico de
drogas, os policiais militares poderiam, mesmo sem qualquer
informação por ele fornecida, averiguar o local, e diante da
localização de grande quantidade de drogas, apreender a
substância entorpecente e prendê-lo em flagrante, sem que
seja necessário informá-lo previamente sobre o seu direito ao
silêncio, razão pela qual não há falar em confissão informal
ilícita.
Trecho 3
Habeas corpus não conhecido.

AMOSTRA 17
Trecho 1
(...) não há falar em nulidade da prisão em virtude do suposto
descumprimento do “Aviso de Miranda” pois, como bem
observado pela Corte de origem, “também não se cogita
de nulidade em razão da confissão informal mencionada
pelos policiais. Afinal, a condenação não se fundamentou,
exclusivamente, em tal confissão, sendo certo que o apelante
foi devidamente advertido de seu direito ao silêncio nas fases
do inquérito e da ação penal” (fl. 44), ainda mais porque
havia fundadas razões para o ingresso no domicílio, como já
demonstrado.
Trecho 2
Habeas corpus não conhecido.

- 46 -
Cada amostra corresponde à descrição apresentada na tabela
de sistematização das decisões judiciais exposta acima, enquanto
cada “trecho” equivale ao fragmento do texto da amostra da qual
pertence. Foram destacadas apenas as frações que guardam relação
com o tema, além do desfecho final do processo.

INTERPRETAÇÃO DAS AMOSTRAS

Incialmente é preciso dizer que apesar da busca realizada pelos


indexadores “habeas corpus” “direito ao silêncio” “ordem concedida”
ter a intenção de encontrar apenas resultados de concessão da ordem,
revelou-se que a procura derivou em resultado majoritário de “habeas
corpus não conhecido”, somado a “Agravo regimental desprovido”
e “Recurso improvido”. Tem-se que anotar ainda resultados como
“Recurso ordinário em habeas corpus conhecido e provido”, “Ordem
de habeas corpus concedida, de ofício”, “Ordem concedida” e “Ordem
parcialmente concedida”. Todos esses resultados passaram a ser
interpretados dentro da categoria temática c-Acolhimento da tese.
Naquilo que compete à categoria temática a- Referência
à Constituição Federal, a Quinta Turma do STJ tem julgado no
sentido de que a afirmação que o direito ao silêncio é uma hipótese
de autodefesa está correta. Essa garantia constitucional estabelece
que “o preso tem direito à identificação dos responsáveis por sua
prisão ou por seu interrogatório policial”. Além disso, o dispositivo
constitucional assegura que “ninguém será obrigado a produzir
prova contra si mesmo”, o que significa dizer que a pessoa tem o
direito de se recusar a responder perguntas que possam incriminá-
la.22.
Considera ainda que o direito ao silêncio é uma importante
garantia para o exercício da autodefesa, pois permite que o indivíduo
proteja sua liberdade e evite ser forçado a confessar um crime que

22 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 2016.
496 p. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/518231/CF88_Liv-
ro_EC9 1_2016.pdf. Acesso em: 24 mar. 2023.

- 47 -
não cometeu ou incriminar-se de alguma forma. É uma garantia que
deve ser respeitada em todos os momentos do processo penal, desde
o interrogatório policial até o julgamento.
A Quinta Turma tem entendimento de que, em algumas
situações, a recusa em responder pode gerar consequências
negativas, como no caso de testemunhas que se recusam a depor em
um processo penal, podendo sofrer sanções legais por isso.
De igual modo, a Sexta Turma entende que a afirmação
inicial de que o direito ao silêncio é uma garantia constitucional
civilizatória está correta. Essa garantia é importante porque protege
o acusado contra a autoincriminação forçada e reconhece que a
verdade pode ser obtida de outras formas que não dependem apenas
do depoimento do réu.
Ressalta-se ainda que o colegiado tem entendimento que a
falta de informação ao acusado sobre a oportunidade de ficar calado
pode levar à invalidade do auto de prisão em flagrante, frente à
violação da garantia constitucional.
Além disso, a Sexta Turma firma o entendimento de que o
direito ao silêncio é um princípio que visa garantir um julgamento
justo e imparcial, destacando que é importante que as autoridades
respeitem esse paradigma e informem o acusado sobre sua
existência e gravidade, a fim de evitar qualquer violação dos direitos
fundamentais do acusado e garantir a validade dos procedimentos
judiciais.
Muito embora as duas Turmas tenham feito referência à
Constituição Federal em suas ementas, consequência do destaque
do conteúdo do julgado, ambas têm entendimentos sincrônicos
no sentido de que a ofensa a essa garantia deve ficar devidamente
comprovada e, em gerando prejuízo, deve ficar evidenciado de
modo que permita a proteção jurisdicional. O resultado disso seria a
nulidade do ato praticado.
Trata-se de uma nulidade relativa, que é um defeito processual
que não gera a anulação automática do processo, mas que pode ser

- 48 -
declarada mediante alegação oportuna e demonstração de prejuízo.
Isso significa que esta nulidade não é automática, ou seja, não será
declarada se a parte prejudicada não a alegar de forma tempestiva e
não demonstrar que foi efetivamente prejudicada pela irregularidade
processual.
Assim, se o acusado, de fato, invocou o seu direito ao silêncio
e essa invocação não foi devidamente registrada no processo, o
depoimento que prestou pode ser considerado nulo, uma vez que
o acusado foi privado de uma garantia fundamental prevista na
Constituição.
Em síntese, a afirmação apresentada ressalta a importância da
alegação tempestiva e da demonstração do prejuízo para que seja
declarada a nulidade relativa e destaca a relevância da comprovação
do aviso do direito ao silêncio para a validade do depoimento do
acusado.
Quanto à categoria temática b- Inquérito policial/ação
policial, a Quinta Turma entendia que atribuir a si uma identidade
falsa perante a autoridade policial, com o objetivo de ocultar
antecedentes criminais e evitar a prisão, não ofendia a fé pública, pois
o indivíduo estaria exercendo seu direito ao silêncio em autodefesa.
No entanto, a Terceira Seção deste Tribunal Superior, ao julgar o
Resp. nº 1.362.524/MG, que foi submetido à sistemática dos recursos
repetitivos, estabeleceu a tese de que essa conduta é tipicamente
considerada crime, mesmo em situações alegadas de autodefesa.
Os Ministros desta Corte interpretam que ninguém é obrigado
a produzir prova contra si mesmo, o que significa que não se pode
obrigar alguém, seja por autoridade pública ou privada, a fornecer
informações ou declarações que possam incriminá-lo direta ou
indiretamente. No entanto, é necessário comprovar essa alegação.
Se houver qualquer irregularidade na informação sobre o direito
de permanecer em silêncio durante o interrogatório no inquérito
policial, isso pode resultar em uma anulação parcial do processo.
Ainda entendem que não é obrigatória a presença de um
advogado durante o interrogatório policial, razão pela qual não há

- 49 -
nulidade do interrogatório se o acusado estiver desacompanhado da
defesa técnica. Além disso, os policiais podem, independentemente
das informações fornecidas pelo interrogado, investigar um local
e, ao descobrir uma grande quantidade de drogas, apreender a
substância e prender o suspeito em flagrante, sem a obrigação de
informar previamente o direito ao silêncio.
Já a Sexta Turma, quanto à presença de advogado no momento
do depoimento prestado à autoridade policial, a nulidade do ato só
deve ser reconhecida caso seja apontado o efetivo prejuízo herdado.
Isso se dá porque deve ficar evidente que o flagranteado fora coagido
a praticar a autoincriminação na ausência do seu defensor.
Segundo a composição do colegiado, caso não sejam
cumpridas as formalidades legais, torna-se necessário declarar a
nulidade do depoimento extrajudicial. Se houver um vício formal
nesse depoimento, isso poderá levar ao relaxamento da prisão em
flagrante. Se não houver comprovação de que o preso foi informado
sobre seu direito ao silêncio, o depoimento será considerado nulo.
A Turma ainda tem posicionamento no sentido de que embora
a regra seja que uma testemunha não tem o direito de permanecer em
silêncio, quando ela é oficialmente convocada nessa condição, mas
é tratada como se fosse um investigado, a garantia constitucional
também deve ser aplicada.
Por último, naquilo que compete à categoria temática c-
Acolhimento da tese, percebeu-se que a Sexta Turma apresentou
uma maior aceitação das teses apresentadas. Dos quatro julgados
analisados, dois acolheram a tese e concederam a ordem, enquanto
que outros dois denegaram.
Restaram então 13 julgados oriundos da Quinta Turma,
dos quais apenas dois tiveram resultado positivo, ou seja, no
acolhimento da tese apresentada, enquanto que os demais seguiram
desamparando a pretensão.
Na análise das razões postas nos resultados negativos,
percebeu-se que apesar do tema ser relevante, inclusive por ser

- 50 -
princípio constitucional, protegido pelo código de processo penal,
o direito ao silêncio acabou não gerando nulidade ou beneficiando
o acusado em razão da deficiência probatória. Isso quer dizer que
pelo fato de não se conseguir provar a alegação, a tese sucumbiu, não
gerando o efeito esperado que era a proteção jurisdicional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Superior Tribunal de Justiça é o órgão do Poder Judiciário


responsável por uniformizar a interpretação das leis federais no
Brasil, além de julgar recursos especiais e ordinários em matéria
civil, penal, tributária, administrativa e outras áreas do direito. As
decisões do STJ têm grande importância para o direito brasileiro, já
que sua jurisprudência é seguida por tribunais e juízes de todo o país.
Analisar as decisões do STJ é importante por vários motivos.
Em primeiro lugar, as decisões contribuem para a estabilidade e a
segurança jurídica, pois orientam a aplicação uniforme da lei em
todo o território nacional. Dessa forma, a jurisprudência do STJ evita
que haja interpretações conflitantes das leis por parte de diferentes
tribunais e juízes, o que pode gerar insegurança jurídica e prejudicar
o acesso à justiça.
Além disso, as decisões do Superior Tribunal de Justiça são
importantes para a evolução do direito brasileiro, pois a Corte
é responsável por interpretar e aplicar as leis federais de forma
atualizada e adequada às mudanças sociais e econômicas do país.
A jurisprudência é influente na doutrina e na prática jurídica, e
suas decisões muitas vezes são seguidas pelos demais Tribunais
Superiores e pela Suprema Corte.
Por fim, estudar as decisões do STJ é importante para os
profissionais do direito, pois permite que advogados, magistrados,
promotores e demais operadores do direito compreendam melhor
como o tribunal interpreta as leis em diversas áreas e como julga
casos concretos. Isso pode auxiliar na formulação de estratégias de

- 51 -
litígio, na elaboração de teses jurídicas e na tomada de decisões mais
bem fundamentadas, cumprindo a exigência prevista no art. 93, IX,
da Constituição Federal.
Pelo que ficou evidente neste artigo, o direito ao silêncio é
uma garantia fundamental prevista no Estado Democrático de
Direito, tanto na ordem interna quanto internacional, que assegura
que o silêncio do acusado não poderá ser interpretado em prejuízo
de sua defesa.
A doutrina ensina que o silêncio do réu em nada interfere no
que se refere à matéria de provas destinadas a formar a convicção do
julgador, além de que não se resume apenas ao falar ou calar, mas
também abrange a não colaboração em reproduções simuladas dos
fatos, acareações ou exames periciais.
Embora o direito ao silêncio seja uma garantia fundamental
prevista no ordenamento jurídico, sua interpretação e aplicação
ainda geram divergências entre os juristas. De qualquer forma,
o silêncio do acusado não pode ser interpretado em prejuízo de
sua defesa, e o juiz ou tribunal deve analisar as provas produzidas
durante o processo e avaliar se são suficientes para comprovar a
autoria e a materialidade do delito.
Conclui-se ainda que houve mudança de entendimento
quanto a determinados casos em que acusados atribuíam a si
falsa identidade na tentativa de se eximir das responsabilidades
criminais. Entendiam que esse comportamento era uma expressão
do direito ao silêncio, sendo, portando, um fato atípico. No entanto,
essa questão foi pacificada com o debate unificado das duas Turmas
(a Terceira Seção) que editou a Súmula 522 (a conduta de atribuir-se
falsa identidade perante a autoridade policial é típica, ainda que em
situação de alegada autodefesa).
Por fim, as duas Turmas do STJ entendem que o direito ao
silêncio é uma hipótese de autodefesa, e que o indivíduo tem o
direito de se recusar a responder perguntas que possam incriminá-
lo, o que protege sua liberdade e evita que seja forçado a confessar
um crime ou incriminar-se. Além disso, admitem que eventuais

- 52 -
falhas das autoridades que negam esse direito podem ensejar
nulidades, todavia vem julgando no sentido de que apenas quando
estão provados equívocos ritualísticos é que deve existir a proteção
jurisdicional.

REFERÊNCIAS
DIREITO de ficar calado: saiba tudo sobre a lei. Blog Damasio, São Paulo,
2021. Disponível em: https://noticias.damasio.com.br/direito-de-ficar-ca-
lado/. Acesso em: 30 mar. 2023.
LIMA, R. B. Manual de processo penal: volume único. 5. ed. Salvador: Ed.
JusPodivm, 2017.
GRECO FILHO, V. Manual de processo penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva,
2012.
BRASIL. Lei nº 13.869, de 5 de setembro de 2019. Dispõe sobre os crimes de
abuso de autoridade. Disponível em: L13869 (planalto.gov.br). Acesso em:
30 mar. 2023.
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único. 12.
ed. São Paulo: Ed. JusPodivm, 2023.
GADELHA, G. M. D. B. KLEIN, L. C. A.; FABRIZ, D. C. Limites constitucio-
nais do direito ao silêncio: intepretação do Supremo Tribunal Federal com
aproximações à doutrina do direito como integridade de Ronald Dworkin.
Revista CNJ, Brasília, v. 6, n. 1, p. 57–69, 2022. Disponível em: https://www.
cnj.jus.br/ojs/revista-cnj/article/view/304. Acesso em: 26 mar. 2023.
BRASIL. Código de Processo Penal Militar. Decreto-lei n. 1.002, de 21 de
outubro de 1969. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
decreto-lei/del1002.htm Acesso em: 30 de mar. 2023.
NUCCI, G. Condução coercitiva e o julgamento do Supremo Tribunal Fede-
ral: o confronto maniqueísta. Disponível em: https://guilhermenucci.com.
br/conducao-coercitiva-e-o-julgamento-do-supremo-tribunal-federal-o-
-confronto-maniqueista/ Acesso em: 30 mar. 2023.
LOPES JR., A. Direito processual penal. 16. ed. – São Paulo: Saraiva Educa-
ção, 2019.
RAYMUNDO Asfóra completa 30 anos de saudades para os paraibanos. Jor-
nal da Paraíba, João Pessoa, 06 de março de 2017. Disponível em: https://
jornaldaparaiba.com.br/comunidade/vida_urbana/raymundo-asfora-com-
pleta-30-anos-de-saudades-para-os-paraibanos/ . Acesso em: 30 mar. 2023.

- 53 -
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Repercussão Geral no Recurso Ex-
traordinário 1.177.984, São Paulo. Relator: Min. Edson Fachin. Julgamento:
02/12/2021. Publicação: 03/02/2022. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/
paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=758988240 .Acesso em: 24
mar. 2023.
MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saú-
de. 13. ed. São Paulo: Hucitec, 2014.
CAVALVANTE, R. B.; CALIXTO, P.; PINHEIRO, M. M. K. Análise de Conteú-
do: considerações gerais, relações com a pergunta de pesquisa, possibili-
dades e limitações do método. Informação & Sociedade, João Pessoa, v. 24,
n.1, p. 13-18, jan./abr. 2014.
BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977, p. 101.
BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Se-
nado Federal, 2016. 496 p. Disponível: https://www2.senado.leg.br/bdsf/
bitstream/handle/id/518231/CF88_Livro_EC91_2016.pdf. Acesso em: 24
mar. 2023.

- 54 -
DA INCOMPATIBILIDADE
ENTRE PRESUNÇÃO DE
INOCÊNCIA E A PRESUNÇÃO
DE ILICITUDE DA ORIGEM
PATRIMONIAL NÃO
DEMONSTRADA NO CONFISCO
ALARGADO PENAL
Adriana Maria G. S. Spengler23
Rodrigo Fuziger24

“Suponho ser tentador, se acaso a única


ferramenta que se disponha seja um martelo,
tratar a todos como se pregos fossem.”
Abraham Maslow25

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Como todo e qualquer tema relacionado à ingerência sobre


o direito à propriedade, o confisco constitui tema tormentoso,
cujas discussões (apenas em um recorte ocidental) exorbitam dois
milênios, considerando-se sua prática descrita na historiografia da
Roma antiga26, apenas para se tomar exemplo de fenômeno cujas
23 Vice-presidente da ABRACRIM; Advogada criminalista; Mestre em Ciências Jurídicas (Univa-
li); Professora da Universidade do Vale do Itajaí (Univali).
24 Doutor em Governança Global e Estado de Direito (USAL/Espanha); Pós-doutorando, Dou-
tor, Mestre e Bacharel em Direito (USP); Bacharel em Filosofia (USP); Professor da Universidade
Presbiteriana Mackenzie; Advogado; Presidente da Comissão de Pareceres e Estudos Jurídicos da
ABRACRIM.
25 MASLOW, Abraham. Psychology of Science. Nova Iorque: Joanna Cotler Books, 1966, p. 15.
(tradução livre).
26 Vide, por exemplo, ROSTOVZEFF, Michael. The Social and Economic History of the Roman
Empire. Oxford: Oxford University, 1957, p. 257 e ss.

- 55 -
reminiscências até hoje impactam nosso modelo de Direito.
É certo que mesmo no Brasil o tema não é novo. Apenas tendo
um recorte com normas vigentes, destaca-se que a Constituição
Federal prevê o perdimento de bens em seu art. 5º, XLV e XLVI,
sendo certo, ainda, que nossa Carta Magna dispõe, em seu art. 243
sobre a expropriação (como instituto correlato ao confisco) de áreas
utilizadas para a cultura ilegal de plantas psicotrópicas, bem como
de propriedades utilizadas para a exploração de trabalho escravo.
No que concerne ao confisco como efeito da condenação
penal, o Código penal, em seu art. 91 (cuja gênese se deu no âmbito
da reforma da parte geral de 1984) já tratava do tema previamente
à incorporação do art. 91-A em 2019, por meio da Lei 13.964/201927.
Destaca-se que antes do confisco alargado previsto no art.
91-A, acresceu-se, por meio da Lei 12.694/2012, que versa sobre o
processamento e julgamento de delitos praticados por organizações
criminosas) o § 2º ao art. 91, já sinalizando para um movimento de
ampliação da efetivação do confisco de bens, por meio de medidas
assecuratórias que alcançam valores equivalentes àqueles que
podem vir a ser decretados como perdidos.28
Todavia, o advento do confisco alargado (art. 91-A do Código
penal, incorporado por força da Lei 13.964/2019) traz inéditas e
sensíveis questões, que mais se assemelham a aporias, dado o grau de
compatibilização com a estrutura penal e processual penal do Brasil.
Com quase um triênio desde seu advento, já é possível
esboçar um diagnóstico e prognóstico da concretização da previsão
do confisco alargado no Brasil, verificando-se que críticas desde à
época de sua positivação foram certeiras, muito embora tal acurácia
nada tenha de impressionante, considerando-se que a péssima
redação do art. 91-A, somada a premissas incompatíveis com nosso
sistema penal e processual penal, o que evidentemente redundaria

27 A mesma Lei incorporou ainda o art. 63-F à Lei de Tóxicos (Lei n. 11.343/1964), dispositivo
este que também versa sobre o confisco alargado.
28 art. 91, § 2º assim dispõe: “Na hipótese do § 1o, as medidas assecuratórias previstas na legis-
lação processual poderão abranger bens ou valores equivalentes do investigado ou acusado para
posterior decretação de perda.”

- 56 -
em problemas de aplicação do instituto.
Necessário esclarecer, no entanto, que a ideia de incorporação
do confisco alargado ao ordenamento brasileiro não surgiu de uma
epifania (a)técnica e punitivista. Ao contrário - como sua gênese
no bojo da “Lei anticrime” sinaliza e simboliza – eis que pautas
criminalizantes de origem difusas geraram uma amálgama legislativa
que encontrou solo fértil em um contexto de recrudescimento
criminal, como um instrumento populista privilegiado e maciçamente
utilizado nos últimos anos no Brasil.
Não cabe – seja por razões de espaço ou de pertinência
ao recorte proposto – desvelar nas breves linhas deste escrito
uma arqueologia dos influxos internacionais29 e nacionais de
enfrentamento à corrupção e criminalidade organizada, os quais
ganharam contornos cada vez mais decisivos nas últimas décadas.
Fundamental destacar, nessa seara, que a métrica da presunção
como critério legitimador do Direito penal - claramente concretizada
na redação do confisco alargado no Direito penal brasileiro – vem
paulatinamente alcançando, já desde o fim do século passado,
um papel destacado, teoricamente (e supostamente) como forma
de enfrentamento de novas demandas penais sob a égide de uma
sociedade global de riscos30.
Destaca-se, em tal contexto, a massificação da técnica de
imputação a partir de delitos de perigo abstrato, os quais só tem razão
de ser, pois, tolerada a presunção (no caso, de risco a bem jurídico
penalmente relevante) como forma de legitimação do jus puniendi.
O que parece inequívoco, em tal perspectiva de um direito penal

29 Apenas a título exemplificativo, menciona-se aqui o item 8 do Art. 31 da Convenção das Na-
ções Unidas contra a Corrupção (Convenção de Mérida), promulgada em 2003: “Art. 31, item 8º, Os
Estados Partes poderão considerar a possibilidade de exigir de um delinquente que demonstre a
origem lícita do alegado produto de delito ou de outros bens expostos ao confisco, na medida em
que ele seja conforme com os princípios fundamentais de sua legislação interna e com a índole do
processo judicial ou outros processos.”
30 Sobre o tema em sua gênese e evolução no âmbito da Sociologia, vide BECK, Ulrich. La socie-
dad del riesgo: hacia una nueva modernidad. Barcelona: Paidós Ibérica S.A., 2002; No que concer-
ne a uma aproximação entre “sociedade de risco” e Direito penal, vide SPENGLER, Adriana Mª G.
S. A transfiguração da concepção de soberania como reflexo da sociedade de riscos. O que o devir
do século XXI reserva para o Direito penal. In: CONPEDI. XII ed. Curitiba: Funjab, 2013, v. 34, p.
42-61.

- 57 -
cada vez mais operacionalizado a partir de presunções, é notar que
a positivação do confisco alargado tem sua gênese no ordenamento
jurídico brasileiro como concretização normativa reverberante das
pautas “anticorrupção” e “anticriminalidade organizada”, por mais
fluídas e problemáticas que, de partida, se constituam tais categorias
de enfrentamento de tais temas.
Em grande medida, tais pautas que encontram ressonância em
demandas transnacionais acabaram por ganhar contornos peculiares
no Brasil, sendo sequestradas por um populismo penal31 renitente e
em franca ascendência.
Nesse sentido, os problemas de dogmática e processualística
que orbitam em torno do instrumento de confisco alargado
acabam por ser nublados por discursos eficientistas, os quais, por
seu turno, são legitimados pela opinião pública(da), cujo ideário
cuidadosamente incutido na sociedade é o da necessidade de
recrudescimento do Direito penal (com matizes típicas da ideia de
Direito penal simbólico32).
Assim, tal recrudescimento penal passa a ser enxergado
coletivamente como uma necessidade de primeira ordem33, visto que
a pena passa a ser enxergada como panaceia difusa para toda sorte
de problemas sociais34.
31 “O populismo penal tem como referência ético-política as representações sociais punitivas,
que, assim podem influenciar o poder legislativo, por duas maneiras principais: uma, na qual o
parlamento pode estar, sinceramente, envolvido pela ideia punitiva, quando então há uma coinci-
dência entre o pensamento popular e parlamentar; outra, é aquela em que o parlamento – ou, ao
menos, um grupo de parlamentares – pode estar se aproveitando de uma situação momentânea
de clamor público por maior rigor penal, para angariar notoriedade, prestígio ou obter outros
créditos políticos.” GOMES, Luiz Flávio; GAZOTO, Luís Wanderley. Populismo Penal Legislativo: a
tragédia que não assusta as sociedades de massas. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 298.
32 Discute-se se o expediente de recrudescimento é uma solução legítima e, mais do que isso,
efetiva, ou acaba se tornando uma medida carente de instrumentalidade na proteção de bens
jurídicos relevantes, como característica do “Direito penal simbólico”. Nesse sentido, cf. FUZIGER,
Rodrigo. Direito penal simbólico. Curitiba: Juruá, 2015, pp. 177-182.
33 Sobre tal diagnóstico do sentido da pena para sociedade, cf. BATISTA, Nilo. Mídia e sistema
penal no capitalismo tardio. In: Discursos Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade, Rio de Janeiro:
Revan, Instituto Carioca de Criminologia, nº 12, ano 7, julho-dezembro de 2002; MUÑOZ CONDE,
Francisco. Derecho penal y control social. Jerez: Fundación Universitária de Jerez, 1985.
34 “A violência criminal é uma das formas como se expressa a violência nas grandes cidades (...)
No entanto, a própria organização das cidades, a lógica da produção capitalista industrial urbana,
a malha burocrática urbana que sufoca os indivíduos, o tráfego de veículos, a poluição e as condi-
ções precárias de vida no espaço urbano acabam por expressar formas de violência.” DORNELLES,
João Ricardo. Os perigos da dramatização da violência. In: Revista da associação dos juízes para a
democracia, nº 1, São Paulo, Nov. de 1993, p. 4.

- 58 -
DELINEANDO O CONFISCO ALARGADO
PENAL (ART. 91-A DO CÓDIGO PENAL)

Conforme já mencionado, a Lei 13.964/2019 incorporou o


confisco alargado (também denominada de perda alargada ou, ainda,
confisco ampliado) ao Código penal:
Código penal, Art. 91-A. “Na hipótese de condenação por
infrações às quais a lei comine pena máxima superior a 6
(seis) anos de reclusão, poderá ser decretada a perda, como
produto ou proveito do crime, dos bens correspondentes à
diferença entre o valor do patrimônio do condenado e aquele
que seja compatível com o seu rendimento lícito.
§ 1º Para efeito da perda prevista no caput deste artigo,
entende-se por patrimônio do condenado todos os bens:
I - de sua titularidade, ou em relação aos quais ele tenha o
domínio e o benefício direto ou indireto, na data da infração
penal ou recebidos posteriormente; e
II - transferidos a terceiros a título gratuito ou mediante
contraprestação irrisória, a partir do início da atividade
criminal.
§ 2º O condenado poderá demonstrar a inexistência da
incompatibilidade ou a procedência lícita do patrimônio.
§ 3º A perda prevista neste artigo deverá ser requerida
expressamente pelo Ministério Público, por ocasião do
oferecimento da denúncia, com indicação da diferença
apurada.
§ 4º Na sentença condenatória, o juiz deve declarar o valor
da diferença apurada e especificar os bens cuja perda for
decretada.
§ 5º Os instrumentos utilizados para a prática de crimes por
organizações criminosas e milícias deverão ser declarados
perdidos em favor da União ou do Estado, dependendo da
Justiça onde tramita a ação penal, ainda que não ponham em
perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem pública,
nem ofereçam sério risco de ser utilizados para o cometimento
de novos crimes.”

Muito embora os parágrafos 4º e 5º do art. 91-A também


guardem problemas de ordem técnica, por uma questão de recorte

- 59 -
temático e dimensional, este breve escrito lançará luzes para o
conteúdo do caput ao parágrafo 3º do art. 91-A.
Para tanto, de modo a delinear e permitir uma aproximação
crítica ao instituto, faz-se necessário conceituá-lo. Nesse sentido,
o confisco alargado corresponde à “perda de toda parcela do
patrimônio do condenado que se revelar incongruente com seus
rendimentos lícitos e que seja presumivelmente oriunda da prática
de outras infrações penais”.35
Aponta-se que o instituto não constitui qualquer inovação,
sendo previsto e utilizado em dezenas de ordenamentos jurídicos
estrangeiros36. Cabe aqui uma ressalva breve, porém, relevante:
Transmutar categorias jurídico-penais estrangeiras, com
especificidades redacionais e sem observar as idiossincrasias
do sistema penal e processual penal brasileiro corresponde,
efetivamente, a uma reinvenção.
E ao “reinventar a roda”, é sempre prudente verificar o
quão acidentado pode ser seu terreno de utilização, sob pena de
disfuncionalidades, as quais no âmbito jurídico reverberam em
ilegalidades e injustiças.
É certo que uma série de críticas – inclusive prévias à positivação
do instituto - foram feitas ao modelo e redação do dispositivo que
incorpora o confisco alargado no ordenamento brasileiro.
Dentre elas, destacam-se, sem aqui pormenorizá-las:
dificuldades de ordem prática na comprovação da origem lícita
da diferença patrimonial apurada37; problemas relacionados ao
legítimo direito de propriedade de terceiros cuja boa-fé não é
documentalmente comprovável; o alcance do confisco alargado
sobre a extensão patrimonial do condenado; a ausência de critérios
temporais de limitação da depuração patrimonial pelo confisco
35 CARDOSO, Luiz Eduardo Dias. Perda Alargada. In: BESSA NETO, Luis Irapuan Campelo; CAR-
DOSO, Luiz Eduardo Dias; PRADO, Rodolfo Macedo do. Novos instrumentos de prevenção e en-
frentamento à delinquência econômica. Florianópolis: Habitus, 2019, p. 86
36 Por exemplo, na Espanha, com o instituto do “decomiso ampliado” (art. 127 do Código penal
espanhol), ou, ainda, em Portugal, nos arts. 7º a 12 da Lei nº 5/2002.
37 Nesse sentido, basta considerar que, segundo o IBGE, no período de março a maio de 2022, a
taxa de informalidade no Brasil foi de 40,1% da população ocupada.

- 60 -
alargado38 (ao contrário de outros ordenamentos, que estabelecem,
por exemplo, um marco temporal de até cinco anos passados desde
o início das investigações para o alcance da perda alargada)39. É
bastante conhecida e, ademais, central à análise do tema, a crítica
feita à inversão do ônus probatório no âmbito do confisco alargado.
Em que pese sua relevância e sua ligação com a própria ideia de
ofensa à presunção de inocência, não se desenvolverá aqui tal tema,
também já qualitativamente e quantitativamente bem enfrentado
doutrinariamente. Assim, partindo-se de forma semelhante da ideia
de afronta à presunção de inocência, buscar-se-á, demonstrar, a
seguir, que tal afronta ocorre com a utilização do confisco alargado
não apenas em decorrência da inversão do ônus probatório, mas
também da noção de presunção de ilicitude de origem patrimonial
não demonstrada.

A OFENSA À PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA


DECORRENTE DA PRESUNÇÃO QUE
FUNDAMENTE O CONFISCO ALARGADO

No bojo do confisco alargado – aportado ao Brasil a partir


de uma notável tendência, sobretudo de matriz estadunidense de
“patrimonialização” da repressão criminal – surge uma externalidade
que (ao menos) deveria ser uma preocupação de primeira ordem: a
ofensa à presunção de inocência. Muito embora, a partir do problema
da inversão do ônus probatório na demonstração da licitude da
origem patrimonial, tal ofensa seja facilmente evidenciada, há uma

38 Salta aos olhos que até mesmo no PL 4850/2016 (batizado de “dez medidas contra a corrup-
ção”), havia a determinação de limitação de período de alcance do confisco alargado, nos termos
da proposta do art. 91-A, § 1º, II e III do referido projeto.
39 A respeito de tais questões tormentosas, cf. as seguintes análises do tema: BECHARA, Fabio
Ramazzini; SALES, João Paulo. Análise crítica da perda alargada de bens à luz da ordem jurídica
constitucional brasileira. In: Revista de Direito Brasileira, v. 26, n. 10, p. 342-364, 2020; VIEIRA,
Roberto D’Oliveira. Análise de direito comparado do confisco alargado: aportes da perda alargada
para o Brasil. Dissertação de Mestrado em Direito). Universidade Católica de Brasília, Brasília,
2017; LUCCHESI, Guilherme Brenner. Confisco alargado: análise das medidas para recuperação de
bens de origem ilícita na experiência comparada americana. In: LEITE, Alaor; TEIXEIRA, Adriano
(org.) Crime e política: Corrupção, financiamento irregular de partidos políticos, caixa dois eleito-
ral enriquecimento ilícito. São Paulo: FGV Editora, 2017. p. 425-428.

- 61 -
outra razão, mais sutil e até mesmo imperceptível em uma primeira
mirada, muito embora, nem de soslaio, corresponda a problema de
menor monta ou a uma filigrana irrelevante.
E a mencionada sutileza no diagnóstico da ofensa à presunção
de inocência decorre da necessidade de uma desconstrução da ideia
de que as hipóteses de perdimento não constituiriam penas, mas tão
somente consequências cíveis, sob forma de efeitos secundários da
condenação, que surgem a reboque da decisão, de maneira acessória
às penas previstas no art. 32 do Código penal.
Por força de previsão constitucional (Art. 5º, XLVI, “b”), a
perda de bens40 é compreendida como pena. Tal afirmação não se
constitui como mero nominalismo, desprovido de conteúdo material
e consequência. Nesse sentido, no que concerne especificamente ao
confisco alargado, tem-se uma hipótese de origem ilícita de parcela
do patrimônio de um indivíduo que opera a partir de um juízo de
presunção. A partir de tal presunção, se não rechaçada pelo acusado,
surge a legitimação para o confisco da parcela não justificada do
patrimônio no bojo de sentença condenatória.
Nessa toada, não se está expropriando valores a títulos
indenizatórios ou que comprovadamente sejam decorrentes de
atividade ilícita, mas sim confiscando parcela patrimonial cujo
vínculo com conduta penalmente relevante não foi demonstrado,
já que não se evidenciou a materialidade e autoria dos delitos que
ensejaram tal proveito patrimonial ilícito.
O caput do art. 91-A do Código penal descreve que o
perdimento alargado terá por métrica a diferença entre o patrimônio
do condenado versus um parâmetro de compatibilidade de seu
rendimento lícito.

40 Mesmo no bojo de medidas assecuratórias de caráter patrimonial - que podem vir a concreti-
zados em decisão condenatória com trânsito em julgado – há que se observar requisitos e pressu-
postos, o que só reforça a vedação do perdimento a partir de confisco alargado. Nesse sentido: “Os
efeitos automáticos da decisão condenatória, de caráter real, também são assegurados, no curso
do processo penal, por meio de medidas cautelares patrimoniais, as quais não podem ser tomadas
de forma desmotivada, porque devem obedecer a pressupostos e requisitos delimitados, em res-
peito à garantia da presunção de inocência ou proibição de prévia consideração da culpabilidade.”
SAAD, Marta. Prisão processual para recuperação de ativos: uma prática desfuncionalizada. In:
MALAN, Diogo et al (orgs.). Processo penal humanista: escritos em homenagem a Antonio Maga-
lhães Gomes Filho. Belo Horizonte: D’Plácido, 2019, p. 270.

- 62 -
Ainda que com toda sorte de dificuldades, a métrica acima
estabelecida pode ser concretizada, atingindo-se um quantum que
corresponde à diferença patrimonial e a capacidade de renda lícita
do sujeito.
Todavia, o problema é outro e consiste na presunção de que
tudo que não é compatível ao rendimento lícito há de ser fruto de
atividade ilícita (o que até poderia ser, por premissa, algo verdadeiro).
No entanto, o confisco alargado não pressupõe o delineamento de
tais atividades ilícitas e, a reboque disso, impossibilita o direito de
defesa do condenado. Isso porque sequer houve devido processo
legal para tais fatos supostamente ilícitos, mas apenas o alcance
e expropriação de patrimônio encontrado por serendipidade no
âmbito de persecução penal por fato(s) ilícito(s) diversos, este(s) sim
submetido(s) ao âmbito do devido processo legal, com demonstração
de materialidade e autoria suficientes (ao menos assim deveria) à
condenação.
Assim, o confisco alargado não pode ser compreendido
como um efeito secundário da condenação (já que não houve
necessariamente condenação para os fatos supostamente ilícitos
que ensejaram a diferença patrimonial detectada). Na realidade,
o confisco alargado constitui uma espécie anômala de pena por
derivação, que surge no âmbito de um fato criminoso suficientemente
grave41 para presumir que a diferença patrimonial do indivíduo
condenado também tenha origem ilícita, ainda que oriundos de
condutas não submetidas ao devido processo legal e que tenham
gerado sentença(s) condenatória(s) com trânsito em julgado.
Há, por fim, um ponto a se observar e acrescentar. De um
só golpe, o confisco alargado alcança dois resultados deletérios:
afrontando a garantia individual constitucionalmente assentada de
presunção de inocência (Art. 5º, “LVII - ninguém será considerado
culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;”)
e, além disso, sendo um exemplo de manifestação de direito penal

41 Nota-se quanto ao critério de gravidade da conduta processada, que o art. 91-A só permite o
confisco alargado no âmbito de processos que apuram infrações com cominação da pena máxima
superior a 6 (seis) anos.

- 63 -
do autor. Constitui-se o confisco alargado em hipótese de pernicioso
direito penal do autor, eis que se expropria patrimônio daquele
que cometeu crime grave (dentro do deliberado parâmetro de pena
máxima superior a 6 anos), o que o torna, presumivelmente, autor
de outras condutas ilícitas pretéritas que lhe conferiram patrimônio
desproporcional. Cabe aqui, um brevíssimo excurso quanto ao
requisito objetivo de pena máxima cominada para a realização do
confisco alargado. Em um primeiro olhar, poder-se-ia dizer que tal
critério é de matriz puramente utilitarista, já que não permitiria a
utilização do instituto em delitos menos graves, tornando-o mais
assertivo e, portanto, eficiente.
No entanto, aos olhos de quem quer enxergar, basta notar
a teleologia do “Pacote anticrime” (PL 882/2019) - do qual se
originaram boa parte das propostas positivadas na Lei 13.964/2019
– para se observar que medidas excepcionais seriam legitimadas
no enfrentamento de determinados delitos, não à toa, em grande
monta, justamente crimes com pena máxima em abstrato superior a
6 (seis) anos e que, ademais, fazem parte das categorias previstas no
art. 1º42 (não positivado) do denominada “Pacote anticrime”.

CONCLUSÃO (OU PORQUE TAL INSTITUTO


É TEMERÁRIO AO DIREITO DE DEFESA)

Diante do panorama esboçado, a frase de Maslow, transcrita


na epígrafe deste artigo, parece adquirir uma relevância privilegiada
ao contexto de legitimação e utilização do confisco alargado, haja
vista que a quem tão somente (e tantos são) enxerga o Direito penal
como instrumento de punição (e não como conquista civilizatória de
controle do jus puniendi), só conseguirá enxergar os destinatários da
punição como presumivelmente puníveis.
Tal perspectiva gera um cenário em que limites formais e

42 “Art. 1º Esta Lei estabelece medidas contra a corrupção, o crime organizado e os crimes pra-
ticados com grave violência a pessoa.”

- 64 -
materiais passam a ser enxergados como empecilhos à missão de
recrudescimento penal (que, o que pode soar contraintuitivo a olhos
não experimentados, muito pouco tem a ver com a otimização do
combate à criminalidade).
Nessa toada, talvez tenhamos no confisco alargado o exemplo
mais bem construído de instituto aviltante ao Direito de defesa,
eis que desorienta standards a duras custas conquistados no
Estado Democrático de Direito: como a presunção de inocência e a
distribuição do ônus probatório à acusação no processo penal.
Alguns poderão alegar que, cerca de três anos depois de sua
vigência, o confisco alargado ainda tem aplicação incipiente, bastando
verificar os reduzidos precedentes jurisprudências que versam sobre
o tema43. Tal constatação é objetivamente correta. Todavia, quem
faz a alegação acima poderá concluir, equivocadamente, que o nível
incipiente de aplicação do instituto não representa problema à
estruturação do Direito penal e Processo penal brasileiro.
Nada mais equivocado, a uma porque se uma e tão somente
uma pessoa foi submetida a um instituto ilegítimo, já é o quanto
basta para evidenciar um estrago possivelmente irremediável44.
Imprescindível, em tal panorama, considerar que o Direito
penal é instrumento privilegiado do Lawfare45, como estratégia
belicosa que instrumentaliza o Direito e Processo penal para
fins não legítimos, sendo certo que a naturalização da inversão
do ônus da prova, a relativização da presunção de inocência e a
patrimonialização atécnica da repressão penal, tendem a fazer terra
arrasada da já acidentada geografia correspondente ao sistema penal
brasileiro.
Mas, e, sobretudo, o grande risco decorrente da positivação

43 Por exemplo: TRF-5 - Ap: 08092634120214058300, 4ª Turma. Relator: Desembargador Fe-


deral Vladimir Souza Carvalho, D.J. 26/04/2022; E, ainda, de forma colateral ao tema: STJ - RMS:
64559 RS 2020/0237854-6, Relator: Ministro Nefi Cordeiro, D.J. 02/02/2021.
44 E tal possibilidade não está imunizada pela previsão do art. 36 da Lei de abuso de autoridade
(Lei n. 13.869/2019), dentre outras razões, mas sobretudo, pela ausência de possibilidade de sub-
sunção do tipo à conduta de perdimento, por incompatibilidade na tipicidade formal.
45 Sobre o tema, cf. KITTRIE, Orde F. Lawfare: Law as a weapon of war. Oxford University Press,
2016.

- 65 -
do confisco alargado é a quebra de paradigmas que dele decorre. Por
tal razão, compreende-se o confisco alargado de ponto de inflexão
deletério ao Direito de defesa, eis que abre precedente e funciona
como “ovo da serpente” para que novas incorporações (por exemplo,
a tipificação de delito de “enriquecimento ilícito”, já aventada em
alguns projetos legislativos) que trabalhem na chave de relativização
da presunção de inocência e/ou inversão do ônus da prova sejam
naturalizadas em nosso sistema penal.
E tais anteparos (presunção de inocência e distribuição do
ônus probatório à acusação) constituem elementos essenciais ao
próprio Direito de defesa, já aviltado por afrontas de diversas ordens
em um sistema em que, por exemplo, a noção de paridade de armas
é peça de ficção.
Tal constatação de risco ao Direito de defesa, lavrada por
dois acadêmicos (mas também advogados) poderia soar como mero
argumento corporativista. Não é o caso, já que ao fim e ao cabo, tal
percepção equivocada sobre o diagnóstico deste escrito colide com
uma verdade inelutável: o Direito de defesa se concretiza como
instrumento, por excelência, de resguardo de Direitos de todo
e qualquer cidadão. Quem não entende isso, nada entenderá e,
retomando metaforicamente a epígrafe com a frase de Maslow, se
acaso vir a ser prego, possivelmente não fará a menor ideia de como,
quando e porque virou “prego”, tampouco de onde veio o “martelo”
que lhe acertou.

REFERÊNCIAS
BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. In: Discursos
Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade, Rio de Janeiro: Revan, Instituto
Carioca de Criminologia, nº 12, ano 7 julho-dezembro de 2002.
BECHARA, Fabio Ramazzini; SALES, João Paulo. Análise crítica da perda
alargada de bens à luz da ordem jurídica constitucional brasileira. In: Re-
vista de Direito Brasileira, v. 26, n. 10, p. 342-364, 2020.

BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia una nueva modernidad. Barce-

- 66 -
lona: Paidós Ibérica S.A., 2002.
CARDOSO, Luiz Eduardo Dias. Perda Alargada. In: BESSA NETO, Luis Ira-
puan Campelo; CARDOSO, Luiz Eduardo Dias; PRADO, Rodolfo Macedo do.
Novos instrumentos de prevenção e enfrentamento à delinquência econô-
mica. Florianópolis: Habitus, 2019.
DORNELLES, João Ricardo. Os perigos da dramatização da violência. In:
Revista da associação dos juízes para a democracia, nº 1, São Paulo, Nov. de
1993.
FUZIGER, Rodrigo. Direito penal simbólico. Curitiba: Juruá, 2015.
GOMES, Luiz Flávio; GAZOTO, Luís Wanderley. Populismo Penal Legislati-
vo: a tragédia que não assusta as sociedades de massas. Salvador: Juspodi-
vm, 2020.
KITTRIE, Orde F. Lawfare: Law as a Weapon of War. Oxford University
Press, 2016.
LUCCHESI, Guilherme Brenner. Confisco alargado: análise das medidas
para recuperação de bens de origem ilícita na experiência comparada ame-
ricana. In: LEITE, Alaor; TEIXEIRA Adriano (org.) Crime e política: Cor-
rupção, financiamento irregular de partidos políticos, caixa dois eleitoral
enriquecimento ilícito. São Paulo: FGV Editora, 2017. p. 425-428.
MUÑOZ CONDE, Francisco. Derecho penal y control social. Jerez: Funda-
ción Universitária de Jerez, 1985.
ROSTOVZEFF, Michael. The Social and Economic History of the Roman
Empire. Oxford: Oxford University, 1957.
SAAD, Marta. Prisão processual para recuperação de ativos: uma prática
desfuncionalizada. In: MALAN, Diogo et al. (orgs.). Processo penal huma-
nista: escritos em homenagem a Antonio Magalhães Gomes Filho. Belo
Horizonte: D’Plácido, 2019. p. 265-284.
SPENGLER, Adriana Mª G. S. A transfiguração da concepção de soberania
como reflexo da sociedade de riscos. O que o devir do século XXI reserva
para o Direito penal. In: CONPEDI. XII ed. Curitiba: Funjab, 2013, v. 34, p.
42-61.
VIEIRA, Roberto D’Oliveira. Análise de direito comparado do confisco alar-
gado: aportes da perda alargada para o Brasil. Dissertação de Mestrado em
Direito). Universidade Católica de Brasília, Brasília, 2017.

- 67 -
RACISMO ESTRUTURAL,
INSTADOS CRIMINAIS E
AÇÕES AFIRMATIVAS NO
BRASIL: QUAL O BEM JURÍDICO
TUTELADO?
José Cezario de Almeida46
Romulo Rhemo Palitot Braga47

“O Brasil é o país mais racista do mundo”

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

As dores malévolas, contornadas de chagas perpétuas,


incuráveis, intratáveis, invasivas às células, tecidos e órgãos
humanos. A vida sem valoração, indigna, ferida de bordas insanas,
cuja terapêutica se faz à base de flambagem, método cruento de
cauterização pelo metal à brasa incandescente. Cicatrizes indeléveis,
irremovíveis, transponíveis ao corpo ferindo-se à alma condenada
pela negação existencial de “ser racional”. NASCI NEGRO... Estou
condenado!

46 Professor do Magistério Superior da Universidade Federal de Campina Grande, Campus de


Cajazeiras. Atua no ensino, pesquisa e extensão. Orientador de Programas de Pós-graduação stric-
to sensu (mestrado e doutorado do PPGGSA-UFCG. Formação em Ciências Biológicas e Bacharela-
do em Direito, Especialista em Direito Penal. Mestre pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB),
Doutor pela Universidade Federal de Pernambuco, Pós-Doutor pela Universidade de São Paulo
(USP), Presidente da Escola Superior da Advocacia (ESA) Subsecção da OAB de Pombal/PB. Sócio
pesquisado do IBCCRIM e da ABRACRIM. Editor da Revista Brasileira de Direito e Gestão Pública.
Advogado. Doutorando em Ciências Jurídicas pelo Centro de Ciências Jurídicas – UFPB, em cotu-
tela com a Universitá Degli Studi Firenze - Itália. E-mail: cezariojus@gmail.com.
47 Doutor e Mestre em Direito Penal pela Universitat de València-Espanha. Professor Perma-
nente do Programa de Mestrado e Doutorado do PPGCJ/UFPB; Professor Permanente do Programa
em Direito e Desenvolvimento do Centro Universitário de João Pessoa - PPGD/UNIPÊ; Advogado e
sócio do Escritório Rabay, Palitot & Cunha Lima - Advogados; Presidente da Associação Nacional
da Advocacia Criminal- PB -ANACRIM; Procurador do Superior Tribunal de Justiça Desportiva -
STJD, da Confederação Brasileira de Automobilismo - CBA.

- 69 -
Condenação pela cor da pele. Pele tem cor? Não, não tem. Todas
as células, indistintamente, são incolores, translúcidas, justapostas,
formando os tecidos, os órgãos... A pele é o maior órgão do corpo
humano. Explica-se que, a cor atribuída à pele faz-se jus à melanina,
proteína que reluz a pigmentação escura, que em excesso forma a cor
preta e em escassez extrema, os albinos. A cor preta tem origem nos
genes dominantes; a cor branca, atribui-se aos recessivos. Estudos
apontam que a cor preta é menos susceptível a menor número de
patologias clínicas, como o câncer. Mas, infelizmente, carrega o
estigma de uma condenação humana, predestinada ao preconceito,
à discriminação, à injúria. À todas as formas de RACISMO!
Os apanágios de melaninas devem ser, assim consideradas
todas as pessoas detentoras de uma das mais importante proteínas
do organismo humano, preponderantemente sintetizadas pelas
células da epiderme, pelo privilégio genético em produzi-la pela
expressão do gene MC1R presente no cromossomo 16, resultando
nas diversidades de tons da pele, associa-se, também, como barreira
física à sensibilidade cancerígena pela exposição aos raios solares
ultravioletas, sendo, ainda, responsáveis pelo bronzeamento e
o pigmento castanho dos cabelos e olhos. Tais características
fenotípicas identitários são marcadores da negritude associadas à
animalidade e à rusticidade. Contudo, provavelmente são concebidos
por insanos racistas que alcunham negros de “macacos”, “animais”.
São registros odiosos extremistas. Nas palavras de Nelson Mandela
“Ninguém nasce odiando ninguém, a gente aprende a odiar.”
O preconceito é cego de entendimento! Negacionismo
vertente. Ter pele preta é asqueroso para ideólogos e odiosos
racistas. Nós brasileiros carregamos a sensação de alijamento negro,
uma cegueira patológica. Tem sido, assim, sempre! Deste à remonta
concepção de racismo estrutural arraigado à visão de um processo
histórico, advindo do colonialismo e da precursão à dominação
do Século XVI, no Brasil, que por serem caracterizados inferiores
aos brancos, os negros, e também, índios têm sido submetidos à
escravização e impelidos à cultura do desdém social estrutural.
O nosso País é fio condutor de 300 anos de história escravista.

- 70 -
Apenas em 1888, foi a última nação da América a abolir a escravidão,
tempo que construiu no inconsciente coletivo da sociedade do
mais nefasto sentimento de marginalização das pessoas pretas,
impingindo-lhes limitações à plena cidadania ou, mormente,
outrora, considera-las seres brutais, irracionais, como se estes
fossem insensíveis às dores, sofrimento, emoção, amar ou odiar...
Enfim, um vil, abjeto.
O que é racismo? Racismo Estrutural? Àquele, entende-
se, conceitualmente; este, um crime. Como vencê-los? E os bens
jurídicos tutelados? Este estudo tem por objetivos trazer à baila os
novos contornos dos crimes de racismo e de injuria racial tutelados
pela legislação pátria, pela doutrina e pelos precedentes e julgados
do Tribunais Superiores. Enaltece-se, também, o movimento pelas
ações afirmativas, materializadas nas políticas públicas.
Na consecução dessa produção, adotou-se a metodologia de
apresentação histórica, como método historiográfico de abordagem
teórica e de revisitação à historicidade brasileira, contemporizando
à Lei Aurea, perpassando pelos instados da legislação pátria - da
Constitucional às leis esparsas, com ênfase na proteção dos bens
jurídicos tutelados colacionados nas Leis do racismo e da Injúria
Racial, e nesse fito, aludir as ações afirmativas, as redes de proteção e o
sistema de garantias de direitos às pessoas de pele preta, marcadas pela
melanina genética e, profundamente, pela extrusão do estigma social.

ESTIGMATIZAÇÃO SOCIAL, EUFEMISMOS DA


NEGRITUDE E OS CRIMES RACIAIS

A visão do “Atlântico Negro” aposta no imaginário de (GILROY,


2001), em sua obra, acena para o simbolismo das identidades negras
Afro-brasileiras e aponta na direção das políticas positivas de
combate à discriminação racial no Brasil, trazendo-nos a noção nítida
da diáspora negra, formalizada na denúncia do tráfico negreiro para o
ocidente e à América, como razão e resultado da construção política
e histórica marcadas pelas trocas culturais através do Atlântico.
- 71 -
O Navio negreiro do baiano Antônio Frederico de Castro Alves
(1847-1871), segundo o contexto apresentado por Santos (...), em sua
tese doutoral, ao afirmar que representa um dos mais conhecidos
poemas da literatura brasileira, com a riqueza que descreve a trágica
situação dos africanos compulsoriamente subtraídos de suas terras
e famílias, e manejados como animais nos processos de captura,
embarque, travessia e desembarque dos navios negreiros, com a
finalidade de serem mercadorias vendas, exclusivamente para as
formas de trabalhos forçados e degradantes nas Américas.
O poema épico “Os escravos”, de Castro Alves – conhecido
como “o único poeta social do Brasil” -, que incute a poesia “Navio
Negreiros” escrita em 1860, relata em seis partes, a insana tragédia
perpetrada contra vítimas negras africanas traficadas para o Brasil,
sob maus tratados, tortura e mortes:
Bem feliz quem ali pode nest’hora
Sentir deste painel a majestade!
Embaixo — o mar em cima —
firmamento...
E no mar e no céu — a imensidade!
Que importa do nauta o berço,
Donde é filho, qual seu lar?
Ama a cadência do verso
Que lhe ensina o velho mar!
Cantai! que a morte é divina!
Resvala o brigue à bolina
Como golfinho veloz.
Presa ao mastro da mezena
Saudosa bandeira acena
As vagas que deixa após.
Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!
Desce mais ... inda mais... não pode olhar humano
Como o teu mergulhar no brigue voador!
Mas que vejo eu aí... Que quadro d’amarguras!
É canto funeral! ... Que tétricas figuras! ...
Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror!

- 72 -
E ri-se a orquestra irônica, estridente. . .
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais...
Qual um sonho dantesco as sombras voam!...
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
E ri-se Satanás!...

Senhor Deus dos desgraçados!


Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!...
Ó mar, por que não apagas
Co’a esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão! ...

Auriverde pendão de minha terra,


Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança...
Tu que, da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!...

(Castro Alves, 1860).

O poeta brasileiro, em 1860, espelha as dores da escravidão


através do seu sentimento poético, em momento posterior ao fim
do tráfico negro, envolvendo homens e mulheres africados, pela
promulgação da Lei Eusébio de Queirós (1850), definitivamente
ocorreu a cessação do tráfico negreiro intercontinental. Registe-se,
ser a primeira lei brasileira de tutela protetiva da escravidão negra
no País.

- 73 -
Ressalte-se, sobre a estigmatização social, o conceito atribuído
tende a dialogar com o conceito de rótulo, ambos têm a natureza
de marca que tende a evoluir à cicatriz (LOPES, 2019). Nesse bojo,
exige-se a definição de padrões e regras rígidas de pertencimento
social para a caracterização da identidade social do outro. Conforme
este autor, “Assim, deixamos de considerá-lo criatura comum e total,
reduzindo-o a uma pessoa estragada e diminuída. Tal característica
é um estigma.”
O real significado para compreender essa forma de
estigmatização, segundo Lopes (2019), cabe a análise de Goffman
(1963), que sobre o estigma, assinala:
Os gregos que tinham bastante conhecimento de recursos
visuais, criaram o termo estigma para se referirem a sinais
corporais com os quais se procurava evidenciar alguma coisa
de extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os
apresentava. Os sinais eram feitos com cortes ou fogo no corpo
e avisavam que o portador era um escravo, um criminoso
ou um traidor – uma pessoa marcada, ritualmente poluída,
que devia ser evitada, especialmente em lugares públicos.
(GOFFMAN, 1963, p. 11).

Não obstante reverberar, que os rótulos que nomeiam homens


e mulheres negros são arraigados de eufemismos degradantes,
injuriantes, preconceituosos que têm o condão de alijamento social,
gerando complexos, inferiorização social, discriminação e exclusão
do ser humano, levando-o a perda de sua identidade e dignidade.
Impende salientar que, o construto forçado de outros rótulos
físicos, inferem a dor negra cruelmente, a exemplo das ferraduras
aplicadas às penas prisionais de infratores criminais comuns, cujos
métodos constam na clássica obra de Cesare Beccaria - “Dos Delitos
e Das Penas” de 1865. Irrompe, nesse diapasão, um insólito meio de
castigo, o suplício.
Na narrativa do ensaio de Oscar Santana dos Santos, POESIA
E ENSINO DE HISTÓRIA: “Navios negreiros” e o desembarque de
escravos no Brasil depois de 1831” (SANTOS, 2023, p.6), alcança ima
interpretação polissêmica, que vislumbra:

- 74 -
O navio negreiro de Alves como “O trágico barco ligeiro”,
por ser associado a uma catástrofe, a um golfinho veloz,
águia do oceano e descrever a violência, na alma e no corpo
do escravizado, marcado pelos horrores das correntes, dos
açoites, o estalar dos chicotes e a magreza das crianças. Enfim,
o poema ativa a nossa memória com imagens de homens
e mulheres despidos, de vestimentas e de humanidade,
famintos, sedentos, cansados, doentes, desejando a morte
como liberdade, porque, mesmo depois da Lei Feijó de 1831,
os traficantes e outros intermediários do tráfico negreiro,
continuaram desembarcando escravos nas praias brasileiras,
principalmente, em Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro.
(SANTOS, 2023, p.6).

A Lei Feijó em cito, em homenagem ao Padre Diogo Antonio


Feijó, então ministro da justiça do Brasil, teve o condão de tutelar
o bem jurídico da liberdade escravocrata no Brasil, declarando
livres apenas todos os escravos vindos de fora do Império e impôs
pena aos importadores dos mesmos escravos (BRASIL, 1831),
peremptoriamente proibiu o tráfico de escravos transatlântico da
África para o Brasil.
Insigne diploma legal, apesar do pioneirismo normativo e
dos avanços que acenavam para o movimento de fim à escravidão,
lamentavelmente, excepcionou da regra liberatória os escravos
matriculados no serviço de embarcações pertencentes a países,
onde a escravidão constituía-se permitida, enquanto empregados
no serviço das mesmas embarcações e, os escravos fugitivos do
território brasileiro ou embarcação estrangeira, permissivamente
entregues aos senhores que os reclamarem, e reexportados para fora
do Brasil.
O instituto legal em comento, manteve a escravidão negra
pelos navios e atribuía uma severa punição aos fugitivos que se
refugiavam nos quilombos, em busca da liberdade, entregando-os
aos seus algozes e carrascos, sob os açoites das mais cruentas formas
de torturas aplicadas aos fugitivos, dos açoites às mutilações de seus
corpos. Este marco legal, de sorte, imprimiu o desmonte da estrutura
oficial do comércio humano de negros, todavia porejava eficiente
espaço para o contrabando, que nas palavras de El Youssef (2016),

- 75 -
teria ocorrido uma estruturação descentralizadora do comércio
negreiro, distante dos portos do Império. Malograda atividade teve
fim em 1950, com a Lei Eusébio de Queirós.
A escravidão deixou sequelas indeléveis, invencíveis, dores
perpetuas encravadas no memorial das pessoas que as carregam, e
bem evidente no consciente insano, odioso e criminoso de parcela da
população, cuja tutela alça à esfera criminal tutelada na legislação
brasileira. Na época Imperial, lega-se como leis promulgadas: 1850,
Lei Eusébio de Queirós; 1871, Lei do Ventre Livre, dando liberdade aos
filhos de escravos, restrita nascidos aos nascituros a posteriori à lei;
1885, Lei Saraiva-Cotegipe - Lei dos Sexagenários -, tornando livres
os escravos com idade superior a 60 anos; e finalmente em 1888, 13
de maio, a Princesa Imperial Regente (Princesa Isabel), assina a Lei
Áurea, que Declara extinta a escravidão no Brasil (BRASIL, 1888).

RACISMO ESTRUTURAL: DIMENSÃO


CONCEITUAL E SOCIAL

Insta arguir, a compreensão da expressão racismo juridicamente


conceitual. Etimologicamente. Nessa senda, homenageia-se a Revista
Francesa Revue Blanche que faz a mais antiga menção no artigo de
A. Maybon, publicado em 1902 com a insígnia de Racisme. Em inglês,
Racism, aporta por volta de 1936. No Brasil, não se marca cronologia,
mas, provavelmente teria advindo no pós-guerra nazista que o
termo se popularizou, contudo, trazendo as raízes do seu ancestral
“escravidão”, vertente da antiguidade e da idade média, The Oxford
Languages, baseia-se em acepção popular para dizer que racismo:
“é o preconceito, discriminação ou antagonismo por parte de um
indivíduo, comunidade ou instituição contra uma pessoa ou pessoas
pelo fato de pertencer a um determinado grupo racial ou étnico.”
Todavia, sabe-se que cientificamente não se admite essa alcunha
negativa à definição de raça, não mais concebida na nomenclatura
biológica das espécies.

- 76 -
Ressalte-se, faz-se justo enaltecer nesse debate, as inserções
de Alberto Guerreiro Ramos (RAMOS, 1950), que dedicou-se ao
estudo da questão racial no Brasil desde a segunda nda metade da
década de 1940, culminando com o seu livro “A redução sociológica”,
na década de 1950. Assim descreve Shiota (2014), “Apesar disso, o
“racismo” é visto por Guerreiro Ramos como remanescente e difuso
no senso comum, uma ideologia que consagra a dominação política
e social das elites brancas”. Atribui-se a Guerreiro Ramos, a frase “O
Brasil é o país mais racista do mundo”.
Guerreiro Ramos ostenta, no limiar das décadas epigrafadas, o
protagonismo da negritude em relevância à questão racial. Assume:
“sou negro, identifico com o meu corpo em que o meu eu está inserido,
atribuo à sua cor suscetibilidade de ser valorizada esteticamente e
considero a minha condição como um dos suportes de meu orgulho
pessoal [...]” (RAMOS, 1957, p.156).
Na dedução escrita de Shiota (2014), assinala que “o “racismo”
é visto por Guerreiro Ramos como remanescente e difuso no senso
comum, uma ideologia que consagra a dominação política e social
das elites brancas. Em seu livro “A redução sociológica” (RAMOS,
1965) afirma ainda que os conceitos usados pelos sociólogos de seu
tempo, raça, raça-classe, homem marginal, aculturação, estrutura
social, mudança social, categoria ecológica de área, estrutura e
função supõem uma “concepção quietista da sociedade e, assim,
contribuem para a ocultação da terapêutica decisiva dos problemas
humanos em países subdesenvolvidos”
Havia entre as décadas de 1950-60, o mais importante
movimento mundial contra a segregação racial e pelos direitos civis
e sociais desencadeado nos Estados Unidos da América, liderado
por Martin Luther King Jr. um dos principais líderes negros na luta
contra o racismo, visava alcançar a igualdade racial pelo diálogo.
Neste interregno temporal, havia nos EUA legislação que delimitava
a segregação racional entre negros e brancos, evidenciando
julgamentos pela cor da pele. Martin Luther King foi agraciado,
com reconhecimento à luta pacífica, o Prêmio Nobel da Paz de
1964. Todavia, Martin Luther King era alvo de ódio e protestos de

- 77 -
extremistas defensores da segregação estrutural e social. Em 4 de
abril de 1968, foi assassinado à bala por James Earl Ray, na sacada
do Hotel Lorraine, em Memphis, Tennesse, onde se encontrava para
gande evento em defesa da igualdade racial. A vida e morte de King são
instrumentos de lutas pelo combate ao racismo. No liame conceitual,
registre-se que, a Professora Marilena Chauí, no Seminário Temático
“Representação Política e Enfrentamento ao Racismo”, realizado em
Salvador (BA), em 2013, enalteceu suas narrativas sobre o racismo à
condição hierárquica, doutrinariamente concebido:
O racismo é uma crença fundada em uma hierarquia entre
raças. É uma doutrina baseada no direito de uma raça, tida
como pura e superior, de dominar as demais, e ele é um
sistema político. Então ele é uma crença, uma doutrina, e
ele é um sistema político fundado na extrema hostilidade
contra os que são postos como inferiores levando a leis de
discriminação, leis de separação ou apartamento total, o
apartheid, e de legitimação e destruição física dessas pessoas,
isto é, o genocídio. (CHAUÍ, 2013).

Note-se que, na literatura nacional recente, Silvio Almeida,


em seu livro Racismo Estrutural de 2018 (ALMEIDA, 2018), traz a
definição de racismo com base nos dicionários clássicos: “racismo
é preconceito e discriminação direcionados a alguém tendo em
conta sua origem étnico-racial, geralmente se refere à ideologia
de que existe uma raça melhor que outra”. Este autor, ordena o
racismo em três concepções: 1) individualista; 2) institucional
3) estrutural. Na visão individualista, o racismo é tratado como
uma patologia ou anomalia, condição psicológica atribuída a
grupos isolados ou indivíduo que age isoladamente, denominados
“racistas”; na institucional, o autor busca a fonte no livro Black
power: Politics of liberation in America, de Charles V. Hamilton e
Kwame Ture, publicado em 1967, segundo o qual, estaria na base do
funcionamento das instituições públicas e privadas; e, estrutural,
“o racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja,
do modo ‘normal’ com que se constituem as relações políticas,
econômicas e até familiares, não sendo uma patologia social e nem
um desarranjo estrutural”. O racismo estrutural tem assento na
organização social, que segundo Darcy Ribeiro, embora exercida

- 78 -
como controle social cruel, o preconceito e a discriminação no
Brasil se incorporam culturalmente, ensejando desigualdades nas
relações entre os povos, distintos pela sua cor, e exemplifica com a
disparidade salarial entre brancos, pardos e pretos (RIBEIRO, 1995).
Neste contexto, Torodov (1989), assinala que o racismo estrutural
incorpora um conjunto de hábitos, práticas e costumes que regulam
as instituições e a sociedade, com raízes discriminatórias registradas
na antiguidade, e exemplifica a dominação dos povos gregos sobre os
estrangeiros, como bárbaros.

INSTITUTOS BRASILEIROS ANTIRRACISMO E


CRIMES RACIAIS

No Brasil, a primeira lei proposta para o enfretamento do


racismo vige em 1951, denominada “Lei Afonso Arinos”. A Lei
nº 1.390/51, note-se, mais de meio século após à lei imperial
abolicionista. Todavia, não criminaliza o racismo, deixando-o
à esfera das tipificações circunscritas às contravenções penais,
restringindo-se às práticas resultantes de preconceito por raça ou
cor, com previsão de penas de prisão simples, de três meses a um ano
e multa, tutelando, simplesmente, agente da contravenção o diretor,
gerente ou responsável pelo estabelecimento comercial ou de ensino
de qualquer natureza, de hospedar, servir, atender ou receber cliente,
comprador ou aluno (BRASIL, 1951).
Foi, contudo, a Lei nº 7.437, de 20 de dezembro de 1985,
que trouxe inovação à Lei Afonso Arinos, dando-lhe nova redação.
Contudo, ainda, remanescendo que as práticas raciais tipificadas
tuteladas como contravenções penais. Vistos que, insculpido no
preâmbulo, a sua definição legal: “Inclui, entre as contravenções
penais a prática de atos resultantes de preconceito de raça, de cor,
de sexo ou de estado civil, dando nova redação à Lei nº 1.390, de 3
de julho de 1951 - Lei Afonso Arinos, cujas penas de prisão simples
variando, no mínimo, de 15 (quinze) dias e no máximo 1 (um) ano e,
multa irrisória de referencial MVR ou perda de cargo.
- 79 -
Registre-se que, o diploma legal de 1985, elenca 12 artigos
(BRASIL, 1985). O art. 1º define as contravenções e, o 2º, tutela os
agentes agressores, restringindo-os às funções de diretor, gerente ou
empregado. Os demais, listam as contravenções, com exceção do art.
12 que trata das revogações.
Art. 1º. Constitui contravenção, punida nos termos desta lei,
a prática de atos resultantes de preconceito de raça, de cor, de
sexo ou de estado civil.
Art. 2º. Será considerado agente de contravenção o diretor,
gerente ou empregado do estabelecimento que incidir na
prática referida no artigo 1º. desta lei. (BRASIL, 1985).

Antecedente à Lei de Crime Racial Brasileira, no povir


do ano 1989, inaugura-se com maior evento da Assembleia
Constituinte Nacional, a promulgação da Nova Constituição
da República Federativa do Brasil, em 05 de outubro de 1988,
proclamada Constituição Cidadã (BRASIL, 1988), pelo seu alcance
no estabelecimento de direitos fundamentais, jamais contidos nas
Constituições brasileiras. O presidente da Assembleia Constituinte,
Deputado Federal Ulysses Guimarães, em pronunciamento de
proclamação, usando o tempo 10’23”), anuncia com veemência,
que: “A nação deve mudar. A Nação quer mudar”, no chamamento à
cidadania:
Discurso proferido na sessão de 5 de outubro de 1988,
publicado no DANC de 5 de outubro de 1988, p.14380-14382:
“Exmo. Sr. Presidente da República, José Sarney; Exmo. Sr.
Presidente do Senado Federal, Humberto Lucena; Exmo. Sr.
Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Rafael
Mayer; Srs. membros da Mesa da Assembléia Nacional
Constituinte; eminente Relator Bernardo Cabral; (palmas)
preclaros Chefes do Poder Legislativo de nações amigas;
insignes Embaixadores, saudados no decano D. Carlo Furno;
Exmos. Srs. Ministros de Estado; Exmos. Srs. Governadores de
Estado; Exmos. Srs. Presidentes de Assembléias Legislativas;
dignos Líderes partidários; autoridades civis, militares e
religiosas, registrando o comparecimento do Cardeal D. José
Freire Falcão, Arcebispo de Brasília, e de D. Luciano Mendes
de Almeida, Presidente da CNBB; prestigiosos Srs. Presidentes
de confederações, Sras. E Srs. Constituintes; minhas senhoras

- 80 -
e meus senhores:
Dois de fevereiro de 1987. Ecoam nesta sala as reivindicações
das ruas. A Nação quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação
vai mudar. São palavras constantes do discurso de posse como
presidente da Assembléia Nacional Constituinte.
Hoje. 5 de outubro de 1988, no que tange à Constituição,
a Nação mudou. (Aplausos). A Constituição mudou na
sua elaboração, mudou na definição dos Poderes. Mudou
restaurando a federação, mudou quando quer mudar o homem
cidadão. E é só cidadão quem ganha justo e suficiente salário,
lê e escreve, mora, tem hospital e remédio, lazer quando
descansa.
Num país de 30 milhões, 401 mil analfabetos, afrontosos 25
por cento da população, cabe advertir a cidadania começa
com o alfabeto. Chegamos, esperamos a Constituição como
um vigia espera a aurora.
A Nação nos mandou executar um serviço. Nós o fizemos com
amor, aplicação e sem medo.
A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o
confessa ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim.
Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca.
Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o
caminho maldito. Rasgar a Constituição, trancar as portas do
Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a
cadeia, o exílio e o cemitério.
Quando após tantos anos de lutas e sacrifícios promulgamos o
Estatuto do Homem da Liberdade e da Democracia bradamos
por imposição de sua honra.
Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. (Aplausos)
Amaldiçoamos a tirania aonde quer que ela desgrace homens
e nações. Principalmente na América Latina.
Foi a audácia inovadora, a arquitetura da Constituinte,
recusando anteprojeto forâneo ou de elaboração interna.
O enorme esforço admissionado pelas 61 mil e 20 emendas,
além de 122 emendas populares, algumas com mais de 1
milhão de assinaturas, que foram apresentadas, publicadas,
distribuídas, relatadas e votadas no longo caminho das
subcomissões até a redação final.
A participação foi também pela presença pois diariamente
cerca de 10 mil postulantes franquearam livremente as 11
entradas do enorme complexo arquitetônico do Parlamento à
procura dos gabinetes, comissões, galeria e salões.

- 81 -
Há, portanto, representativo e oxigenado sopro de gente,
de rua, de praça, de favela, de fábrica, de trabalhadores, de
cozinheiras, de menores carentes, de índios, de posseiros, de
empresários, de estudantes, de aposentados, de servidores
civis e militares, atestando a contemporaneidade e
autenticidade social do texto que ora passa a vigorar.
Como caramujo guardará para sempre o bramido das ondas de
sofrimento, esperança e reivindicações de onde proveio.
Nós os legisladores ampliamos os nossos deveres. Teremos
de honrá-los. A Nação repudia a preguiça, a negligência e a
inépcia.
Soma-se a nossa atividade ordinária bastante dilatada, a
edição de 56 leis complementares e 314 leis ordinárias. Não
esquecemos que na ausência da lei complementar os cidadãos
poderão ter o provimento suplementar pelo mandado de
injunção.
Tem significado de diagnóstico a Constituição ter alargado
o exercício da democracia. É o clarim da soberania popular
e direta tocando no umbral da Constituição para ordenar o
avanço no campo das necessidades sociais.
O povo passou a ter a iniciativa de leis. Mais do que isso, o
povo é o superlegislador habilitado a rejeitar pelo referendo
os projetos aprovados pelo Parlamento.
A vida pública brasileira será também fiscalizada pelos
cidadãos. Do Presidente da República ao prefeito, do senador
ao vereador.
A moral é o cerne da pátria. A corrupção é o cupim da
República. República suja pela corrupção impune toma nas
mão de demagogos que a pretexto de salvá-la a tiranizam.
Não roubar, não deixar roubar, por na cadeia quem roube, eis o
primeiro mandamento da moral pública. Não é a Constituição
perfeita. Se fosse perfeita seria irreformável.
Ela própria com humildade e realismo admite ser emendada
dentro de cindo anos.
Não é a Constituição perfeita, mas será útil, pioneira,
desbravadora, será luz ainda que de lamparina na noite dos
desgraçados.
É caminhando que se abrem os caminhos. Ela vai caminhar e
abri-los. Será redentor o caminho que penetrar nos bolsões
sujos, escuros e ignorados da miséria.
A sociedade sempre acaba vencendo, mesmo ante a inércia ou
o antagonismo do Estado.

- 82 -
O Estado era Tordesilhas. Rebelada a sociedade empurrou as
fronteiras do Brasil, criando uma das maiores geografias do
mundo.
O Estado encarnado na metrópole resignara-se ante a
invasão holandesa no Nordeste. A sociedade restaurou nossa
integridade territorial com a insurreição nativa de Tabocas
e Guararapes sob a liderança de André Vidal de Negreiros,
Felipe Camarão e João Fernandes Vieira que cunhou a frase
da preeminência da sociedade sobre o Estado: Desobeder a El
Rei para servir El Rei.
O Estado capitulou na entrega do Acre. A sociedade retomou
com as foices, os machados e os punhos de Plácido de Castro
e seus seringueiros.
O Estado prendeu e exilou. A sociedade, com Teotônio Vilella,
pela anistia, libertou e repatriou.
A sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram.
(Aplausos acalorados)
Foi a sociedade mobilizada nos colossais comícios das Diretas
Já que pela transição e pela mudança derrotou o Estado
usurpador.
Termino com as palavras com que comecei esta fala.
A Nação quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação vai mudar.
A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política
da sociedade rumo à mudança.
Que a promulgação seja o nosso grito.
Mudar para vencer. Muda Brasil.”
(DANC, de 5 de outubro de 1988, p.14380-14382).

Revela-se a vontade da não brasileira expressada na sua nova


regulação democrática, cujos prenúncios consignados, desde logo,
no Preâmbulo da Carta Magna brasileira, conforme traslado: “Nós,
representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional
Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a
assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade,
a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça
como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem
preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem
interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias,
promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO
DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.”

- 83 -
Em relevo, cite-se para fins deste estudo prospectivo, dos
princípios fundamentais assentados no inciso VIII, art. 4º da CF/88,
insculpe-se: “VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo”. Destaque-
se o art. 5º, da CF/88, nos direitos e garantias fundamentais que
asseguram os direitos e deveres individuais e coletivos: “Art. 5º
Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:”, em relevo, cite-
se para fins deste estudo, o inciso XLII “o inciso XLII - a prática do
racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena
de reclusão, nos termos da lei;”.
Em 1989, passado 01 (um) ano da Constituição Cidadã e
decorrido 01 (um) século da Lei Áurea, o Brasil promulga a primeira
lei que elenca os tipos penais de racismo, que além das penas
prisionais mais gravosas, elevam as condutas à condição de crimes
inafiançáveis, com penas de até cinco anos de prisão. Alude-se à Lei
nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, que define os crimes resultantes
de preconceito de raça ou de cor. Ressalte-se que, desde o ano 1990,
após 1 (um) ano da promulgação, que a lei anti-racismo brasileira
vem sofrendo alterações, tanto acrescidas quanto supressão por
outros institutos, sendo a mais recente, neste início do ano de 2023.
Destrate salientar, que a Lei nº 7.716/1989, denominada (Lei do
Crime Racial) não há nenhuma previsão para a contravenção penal,
portanto, todos os tipos incriminadores são dados como crimes,
porém afiançáveis. No início, o art. 1º Lei em comento até 1997,
ditava “Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de
preconceitos de raça ou de cor. Redação dada pela Lei nº 9.459, de
15/05/97, que além da revogação, deu nova estrutura legal, passando
à seguinte normativa; “Art. 1º Serão punidos, na forma desta Lei,
os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor,
etnia, religião ou procedência nacional.”, definindo novos delitos
quanto à etnia, religião ou procedência nacional.
No fito das alterações sucessivas, registre-se cronologicamente
as modificações à Lei nº 7.716/1989:

- 84 -
1-LEI Nº 8.081, DE 21 DE SETEMBRO DE 1990. Estabelece
os crimes e as penas aplicáveis aos atos discriminatórios ou
de preconceito de raça, cor, religião, etnia ou procedência
nacional, praticados pelos meios de comunicação ou por
publicação de qualquer natureza;
2-LEI Nº 8.882, DE 3 DE JUNHO DE 1994. Acrescenta parágrafo
ao art. 20 da Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, que “define
os crimes resultantes de preconceitos de raça ou de cor”;
3-LEI Nº 9.459, DE 13 DE MAIO DE 1997. Altera os arts.
1º e 20 da Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, que define
os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, e
acrescenta parágrafo ao art. 140 do Decreto-lei nº 2.848, de 7
de dezembro de 1940;
4-LEI No 10.639, DE 9 DE JANEIRO DE 2003. Altera a Lei no
9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes
e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial
da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e
Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências.
5-LEI Nº 12.288, DE 20 DE JULHO DE 2010. Institui o Estatuto
da Igualdade Racial; altera as Leis nos 7.716, de 5 de janeiro
de 1989, 9.029, de 13 de abril de 1995, 7.347, de 24 de julho de
1985, e 10.778, de 24 de novembro de 2003;
6-LEI Nº 12.519, DE 10 DE NOVEMBRO DE 2011. Institui o
Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra.
7-LEI Nº 12.735, DE 30 DE NOVEMBRO DE 2012. Altera o
Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código
Penal, o Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969 -
Código Penal Militar, e a Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989,
para tipificar condutas realizadas mediante uso de sistema
eletrônico, digital ou similares, que sejam praticadas contra
sistemas informatizados e similares; e dá outras providências.
8-LEI Nº 12.990, DE 9 DE JUNHO DE 2014. Reserva aos negros
20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos
públicos para provimento de cargos efetivos e empregos
públicos no âmbito da administração pública federal, das
autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e
das sociedades de economia mista controladas pela União.
9-LEI Nº 14.532, DE 11 DE JANEIRO DE 2023. Altera a Lei
nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989 (Lei do Crime Racial), e o
Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código
Penal), para tipificar como crime de racismo a injúria racial,

- 85 -
prever pena de suspensão de direito em caso de racismo
praticado no contexto de atividade esportiva ou artística
e prever pena para o racismo religioso e recreativo e para o
praticado por funcionário público.

De maneira que, a nação brasileira tem em concretude


protetiva, a partir de 11 de janeiro de 2023, a sua Lei do Crime Racial
alterada, dada a sua importância, registre-se por inteiro nesta obra:
Presidência da República
Secretaria-Geral
Subchefia para Assuntos Jurídicos

LEI Nº 14.532, DE 11 DE JANEIRO DE 2023


Altera a Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989 (Lei do Crime
Racial), e o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940
(Código Penal), para tipificar como crime de racismo a
injúria racial, prever pena de suspensão de direito em caso
de racismo praticado no contexto de atividade esportiva ou
artística e prever pena para o racismo religioso e recreativo e
para o praticado por funcionário público.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso
Nacional decreta e eu sanciono a seguinte
Lei:
Art. 1º A Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989 (Lei do Crime
Racial), passa a vigorar com as seguintes alterações:
“Art. 2º-A Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o
decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional.
Pena: reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.
Parágrafo único. A pena é aumentada de metade se o crime
for cometido mediante concurso de 2 (duas) ou mais pessoas.”
Art. 20
§ 2º Se qualquer dos crimes previstos neste artigo for
cometido por intermédio dos meios de comunicação social, de
publicação em redes sociais, da rede mundial de computadores
ou de publicação de qualquer natureza:
§ 2º-A Se qualquer dos crimes previstos neste artigo for
cometido no contexto de atividades esportivas, religiosas,
artísticas ou culturais destinadas ao público:
Pena: reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e proibição de
frequência, por 3 (três) anos, a locais destinados a práticas
esportivas, artísticas ou culturais destinadas ao público,

- 86 -
conforme o caso.
§ 2º-B Sem prejuízo da pena correspondente à violência,
incorre nas mesmas penas previstas no caput deste artigo
quem obstar, impedir ou empregar violência contra quaisquer
manifestações ou práticas religiosas.
§ 3º No caso do § 2º deste artigo, o juiz poderá determinar,
ouvido o Ministério Público ou a pedido deste, ainda antes do
inquérito policial, sob pena de desobediência:
(NR)
“Art. 20-A. Os crimes previstos nesta Lei terão as penas
aumentadas de 1/3 (um terço) até a metade, quando ocorrerem
em contexto ou com intuito de descontração, diversão ou
recreação.”
“Art. 20-B. Os crimes previstos nos arts. 2º-A e 20 desta Lei
terão as penas aumentadas de 1/3 (um terço) até a metade,
quando praticados por funcionário público, conforme
definição prevista no Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro
de 1940 (Código Penal), no exercício de suas funções ou a
pretexto de exercê-las.”
“Art. 20-C. Na interpretação desta Lei, o juiz deve considerar
como discriminatória qualquer atitude ou tratamento dado à
pessoa ou a grupos minoritários que cause constrangimento,
humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, e que
usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da
cor, etnia, religião ou procedência.”
“Art. 20-D. Em todos os atos processuais, cíveis e criminais, a
vítima dos crimes de racismo deverá estar acompanhada de
advogado ou defensor público.”
Art. 2º O § 3º do art. 140 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de
dezembro de 1940 (Código Penal), passa a vigorar com a
seguinte redação:
“Art.140.
§ 3º Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes
a religião ou à condição de pessoa idosa ou com deficiência:
Pena - reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.”(NR)
Art. 3º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 11 de janeiro de 2023; 202o da Independência e 135o
da República.
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Flávio Dino de Castro e Costa
Silvio Luiz de Almeida
Anielle Francisco da Silva

- 87 -
Espera-se, contudo, que o novo implemento ao marco legal
da lei do racismo brasileira atinja com eficácia as múltiplas condutas
racistas hodiernamente praticadas no seio da sociedade negra do
País, tutelando os bens jurídicos a que se propõe e cominando as
penas previsíveis no instituto.

AÇÕES AFIRMATIVAS ANTIRRACIAIS

O debate em torno das exigências sociais impulsionou os


ecos pela melhoria das condições de vida e, traduzidas na acepção
de ação afirmativa, e nesse aspecto se constrói o ideário central de
tutela estatal, para além de assegurar leis antissegregacionistas,
garantir melhores condições à população negra. Esse movimento
se fortalece nos Estados Unidos da América, em anos de 1960, não
obstante a circularidade reivindicadora e o estabelecimento dessa
experiência em outras nações (MOEHLECKE, 2002). Depreende-se
que, as propostas de ações afirmativas têm fundamentos emergentes
no movimento negro e sua luta em razão das leis segregacionistas,
expoentes necessários à igualdade para todos.
Escreve Bergmann (1996, p.7), que traz em sua obra uma
definição generalista para ação afirmativa, e tenta justificar a sua
propositura:
“Ação afirmativa é planejar e atuar no sentido de promover a
representação de certos tipos de pessoas aquelas pertencentes
a grupos que têm sido subordinados ou excluídos em
determinados empregos ou escolas. [...]. É a comissão de
admissão da Universidade da Califórnia em Berkeley buscando
elevar o número de negros nas classes iniciais [...]. Ações
Afirmativas podem ser um programa formal e escrito, um
plano envolvendo múltiplas partes e com funcionários dele
encarregados, ou pode ser a atividade de um empresário que
consultou sua consciência e decidiu fazer as coisas de uma
maneira diferente.” (BERGMANN, 1996).

Destaque-se que, o Brasil é Estado membro, com maior


referência junto à diversas nações, sob a égide da Organização

- 88 -
das Nações Unidas, na mobilização internacional em torno das
experiências de políticas públicas de igualdade racial visando a
consolidação de ações afirmativas nas diversas áreas, incluindo
educação, saúde, assistência social e garantias de diretos
fundamentais e direitos humanos. Importa salientar que, o nosso
País incorpora nesse campo, importante destaque na Década
Internacional dos Afrodescendentes (2015-2024), instituída pela
ONU.
As ações afirmativas estruturais motivadas pelas políticas
governamentais brasileira, a partir do governo federal alcançam
primordialmente as estruturas do sistema educacional, conforme
assinalam Gomes e Ximenes (2022), que posicionam essas ações
“seja fomentando mudanças curriculares e na prática pedagógica das
escolas da educação básica. Esse caráter emancipatório de desvelar
a invisibilização imposta a determinados coletivos diversos e suas
práticas talvez seja o que de mais transformador encontremos nas
ações afirmativas.”
O Movimento Negro Educador, na percepção de Gomes (2017)
“tem nos reeducado na compreensão de que os sujeitos das ações
afirmativas trazem para as universidades, institutos federais e
educação básica os seus saberes, os quais são fruto de experiências,
reflexões e memórias proporcionadas, de maneira especial, pelo
contexto da implementação das cotas raciais nas mais variadas
instituições públicas estaduais e federais.”
As ações afirmativas têm base legal instituída no âmbito da
educação superior brasileira, conforme previsão na Lei nº 12.711, de
29 de agosto de 2012 (BRASIL, 2012), que dispõe sobre o ingresso nas
universidades e institutos federais de ensino técnico de nível médio,
além de providências que ampliam a inclusão. Fundamenta-se, no
art. 1º, tutela a inclusão de acesso de estudantes à educação superior
federal, todavia, tem alcance às IES privadas:
Art. 1º As instituições federais de educação superior
vinculadas ao Ministério da Educação reservarão, em cada
concurso seletivo para ingresso nos cursos de graduação, por
curso e turno, no mínimo 50% (cinquenta por cento) de suas

- 89 -
vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o
ensino médio em escolas públicas.
Parágrafo único. No preenchimento das vagas de que trata
o caput deste artigo, 50% (cinquenta por cento) deverão ser
reservados aos estudantes oriundos de famílias com renda
igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo (um salário-mínimo e
meio) per capita.”

No âmbito da educação básica, de nível fundamental, a


política alcança àqueles alunos oriundos de escolas públicas que
pretendem ingresso no ensino técnico federal de ensino médio, art.
4º, inclusive, o único parágrafo, da lei em apreço, privilegia famílias
com renda per capita inferior a 1,5 salário-mínimo, faixa de renda
que situa a maioria dos assalariados negos do País (ALMEIDA, 2018).
Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012:
Art. 4º As instituições federais de ensino técnico de nível
médio reservarão, em cada concurso seletivo para ingresso em
cada curso, por turno, no mínimo 50% (cinquenta por cento)
de suas vagas para estudantes que cursaram integralmente o
ensino fundamental em escolas públicas.
Parágrafo único. No preenchimento das vagas de que trata
o caput deste artigo, 50% (cinquenta por cento) deverão ser
reservados aos estudantes oriundos de famílias com renda
igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo (um salário-mínimo e
meio) per capita.

No assento principiológico das ações afirmativas no Brasil,


reafirma-se pacificado no âmbito Constitucional, como foi definido
em 2012 pelo Supremo Tribunal Federal (STF), e portanto, na
prática, amplamente implementado, dentre as quais as cotas,
amparadas e de valor legal. A Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental -186 - Distrito Federal, teve como relator o
Ministro Ricardo Lewandowski, que foi seguido por unanimidade
do plenário do STF, apenas ausente sob justificativa, Dias Toffoli.
Dada a relevância do julgado e a repercussão a nível nacional, vale
conferir, a ementa e o voto.

- 90 -
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental -186:
EMENTA: ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO
FUNDAMENTAL. ATOS QUE INSTITUÍRAM SISTEMA DE
RESERVA DE VAGAS COM BASE EM CRITÉRIO ÉTNICO-
RACIAL (COTAS) NO PROCESSO DE SELEÇÃO PARA
INGRESSO EM INSTITUIÇÃO PÚBLICA DE ENSINO
SUPERIOR. ALEGADA OFENSA AOS ARTS. 1º, CAPUT, III,
3º, IV, 4º, VIII, 5º, I, II XXXIII, XLI, LIV, 37, CAPUT, 205, 206,
CAPUT, I, 207, CAPUT, E 208, V, TODOS DA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE.
I – Não contraria - ao contrário, prestigia – o princípio da
igualdade material, previsto no caput do art. 5º da Carta da
República, a possibilidade de o Estado lançar mão seja de
políticas de cunho universalista, que abrangem um número
indeterminados de indivíduos, mediante ações de natureza
estrutural, seja de ações afirmativas, que atingem grupos
sociais determinados, de maneira pontual, atribuindo a estes
certas vantagens, por um tempo limitado, de modo a permitir-
lhes a superação de desigualdades decorrentes de situações
históricas particulares.
II – O modelo constitucional brasileiro incorporou diversos
mecanismos institucionais para corrigir as distorções
resultantes de uma aplicação puramente formal do princípio
da igualdade.
III – Esta Corte, em diversos precedentes, assentou a
constitucionalidade das políticas de ação afirmativa. IV
– Medidas que buscam reverter, no âmbito universitário,
o quadro histórico de desigualdade que caracteriza as
relações étnico- raciais e sociais em nosso País, não podem
ser examinadas apenas sob a ótica de sua compatibilidade
com determinados preceitos constitucionais, isoladamente
considerados, ou a partir da eventual vantagem de certos
critérios sobre outros, devendo, ao revés, ser analisadas à
luz do arcabouço principiológico sobre o qual se assenta o
próprio Estado brasileiro.
V - Metodologia de seleção diferenciada pode perfeitamente
levar em consideração critérios étnico-raciais ou
socioeconômicos, de modo a assegurar que a comunidade
acadêmica e a própria sociedade sejam beneficiadas pelo
pluralismo de ideias, de resto, um dos fundamentos do Estado
brasileiro, conforme dispõe o art. 1º, V, da Constituição.
VI - Justiça social, hoje, mais do que simplesmente redistribuir
riquezas criadas pelo esforço coletivo, significa distinguir,

- 91 -
reconhecer e incorporar à sociedade mais ampla valores
culturais diversificados, muitas vezes considerados inferiores
àqueles reputados dominantes.
VII – No entanto, as políticas de ação afirmativa fundadas
na discriminação reversa apenas são legítimas se a sua
manutenção estiver condicionada à persistência, no tempo,
do quadro de exclusão social que lhes deu origem. Caso
contrário, tais políticas poderiam converter-se benesses
permanentes, instituídas em prol de determinado grupo
social, mas em detrimento da coletividade como um todo,
situação – é escusado dizer – incompatível com o espírito de
qualquer Constituição que se pretenda democrática, devendo,
outrossim, respeitar a proporcionalidade entre os meios
empregados e os fins perseguidos.
VIII – Arguição de descumprimento de preceito fundamental
julgada improcedente.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os


Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Sessão Plenária,
sob a Presidência do Senhor Ministro Ayres Britto, na
conformidade da ata de julgamentos e das notas taquigráficas,
por unanimidade e nos termos do voto do ADPF 186 / DF.
Relator, julgar totalmente improcedente a arguição. Votou o
Presidente, Ministro Ayres Britto. Ausente, justificadamente,
o Senhor Ministro Dias Toffoli.

STF. Brasília, 26 de abril de 2012.


RICARDO LEWANDOWSKI – RELATOR.

Neste limiar propulsor de inclusão social das cotas afirmativas,


o governo brasileiro promulga nova lei em 2012 (Lei nº 12.990/2014),
que assegura reserva aos negros de 20% (vinte por cento) das vagas
ofertadas nos certames públicos para o provimento de cargos efetivos
e empregos públicos no âmbito da administração pública federal,
das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das
sociedades de economia mista controladas pela União. Os demais
entes federativos (Estados e Municípios) passaram a adotar a regra
maior, constituindo-se em todo território nacional essa garantia de
direitos.

- 92 -
Ressalte-se, ainda, valorosas efemérides comemorativas,
reconhecidamente institucionais, a saber: Dia Internacional de
Luta contra a Discriminação Racial, instituído pela Organização
das Nações Unidas (ONU), em memória das vítimas do massacre de
Shapevile, África do Sul; 18 de novembro, Dia Nacional de Combate
ao Racismo; e, 20 de novembro Dia da Consciência Negra, criado por
lei federal que institui o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência
Negra (BRASIL, 2011).

CONCLUSÕES

O racismo estrutural decorre de ações estatais e privadas


que acentuam à condição do racismo clássico a que está submetido
a nação negra em todas as dimensões cosmopolitas, em todos os
tempos, acentuadamente na espacialização da escravidão antiga
às formas modernas escravistas; há uma emergente e inadiável
reclamação por mudanças nas ações arraigadas no tecido social
racista de pessoas que maculam os horrores do ódio insano e
destilador sentimento de segregação racial, capazes de práticas
tipificadas como crimes; Tem se verificado a necessidade de mudanças
radicais na legislação, que de forma vagar, não alentam o espectro
chagásico da invisibilidade motora da exclusão dos povos negros,
que ainda, vivem sem garantias de direitos e à condição de modo de
vida insólita pelo subjugo de sua pele; e de um povo que sonha, nos
sonhos de - Martin Luther King (1963) “Eu tenho um sonho. O sonho
de ver meus filhos julgados por sua personalidade, não pela cor de
sua pele”. Evidencia-se nas últimas décadas no Brasil alguns avanços
na legislação que direcionam políticas públicas, ainda insipientes,
na promoção da inclusão da população negra em ações afirmativas
que visam assegurar, precipuamente, garantias de acesso à educação
em todos os níveis, área mais privilegiada, contudo, em outras
verifica-se limitações até escassez. Não há uma rede de proteção
consolidada, apenas, registros de parcas experiências nacionais.
Aguarda-se letivo nesse campo protetivo. No escopo das tutelas

- 93 -
protetivas jurídicas, em análise à legislação pátria das tendências
imperiais à república, evidencia-se desprezo à causa no movimento
negro, pela sua liberdade, inserção social e regras rígidas de combate
ao preconceito, descriminação social, estrutural e normativa na
acepção de total ausência de ato jurídico na tutela dos crimes raciais
e das penas cominadas, circunscrito à esfera das contravenções
penas, sem evidência expressiva punitiva dos fatos; De sorte outra,
vê-se no limiar da legislação pátria, diante dos hodiernos destilados
odiosos e da naturalização eminente de práticas delituosas contra
o povo negro, comemora-se no âmbito legal as inovações à Lei de
Crime Racial, pelas alterações implementadas neste ano 2023,
ao erigi-la na tutela da criminalização do racismo, como delito
inafiançável. Espera-se, contudo, sua efetiva aplicação dos bens
jurídicos tutelados.

REFERÊNCIAS
ALMEIDA, S. Racismo Estrutural. Editora Jandaíra. São Paulo - SP, 2018.
BERGMANN, B. R. In Defense Of Affirmative Action. Basic Books: Reprint
edition. 1996.
BECCARIA, C. Dos Delitos e das Penas. (1764). Tradução original de Torrieri
Guimarães. 7ª. ed. São Paulo, SP: Martin Claret, 2013.
DANC. CÂMARA DOS DEPUTADOS. Discurso proferido na sessão de 5 de
outubro de 1988, publicado no DANC de 5 de outubro de 1988, p. 14380-
14382. Disponível: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/
plenario/discursos/escrevendohistoria/25-anos-da-constituicao-de-1988/
constituinte-1987-1988/pdf/Ulysses%20Guimaraes%20-%20DISCURSO%20
%20REVISADO.pdf. Acesso: 02/abr./2023.
________, N. L. O movimento negro educador: saberes construídos nas lutas
por emancipação. Petrópolis: Vozes, 2017.
GOMES, N. L.; XIMENES, S. B. Ações Afirmativas e a Retomada Democráti-
ca. Educ. Soc., Campinas, n.1, v.43, p.1-5, 2022.
BRASIL. LEI DE 7 DE NOVEMBRO DE 1831. Declara livres todos os escravos
vindos de fôra do Imperio, e impõe penas aos importadores dos mesmos
escravos. Publicada e sellada na Secretaria de Estado dos Negocios da Jus-
tiça em 15 de Novembro de 1831. Disponível: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/leis/lim/LIM-7-11-1831.htm#:~:text=LEI%20DE%207%20DE%20

- 94 -
NOVEMBRO,aos%20importadores%20dos%20mesmos%20escravos. Aces-
so: 10/abr./2023.
________. LEI Nº 3.353, DE 13 DE MAIO DE 1888. Declara extinta a escravi-
dão no Brasil. Disponível: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/
lim3353.htm#:~:text=LEI%20N%C2%BA%203.353%2C%20DE%2013,Art.
Acesso: 06/abr.2023.
________. LEI No 1.390, DE 3 DE JULHO DE 1951. Inclui entre as contraven-
ções penais a prática de atos resultantes de preconceitos de raça ou de côr.
Disponível: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l1390.htm. Acesso:
08/abr./2023.
________. LEI Nº 7.437, DE 20 DE DEZEMBRO DE 1985. Inclui, entre as con-
travenções penais a prática de atos resultantes de preconceito de raça, de
cor, de sexo ou de estado civil, dando nova redação à Lei nº 1.390, de 3 de
julho de 1951 - Lei Afonso Arinos. Disponível: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/leis/l7437.htm. Acesso: 02/abr./2023.
________. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do
Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível: http://www.pla-
nalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso: 25/mar./2023.
________. LEI Nº 7.716, DE 5 DE JANEIRO DE 1989. Define os crimes resul-
tantes de preconceito de raça ou de cor. Disponível: http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/leis/l7716.htm. Acesso:15/mar./2023.
________. LEI Nº 8.081, DE 21 DE SETEMBRO DE 1990. Estabelece os cri-
mes e as penas aplicáveis aos atos discriminatórios ou de preconceito de
raça, cor, religião, etnia ou procedência nacional, praticados pelos meios
de comunicação ou por publicação de qualquer natureza. Disponível:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8081.htm#:~:text=LEI%20N%-
C2%BA%208.081%2C%20DE%2021,por%20publica%C3%A7%C3%A3o%20
de%20qualquer%20natureza. Acesso: 02/abr./2023.
________. LEI Nº 8.882, DE 3 DE JUNHO DE 1994. Acrescenta parágrafo
ao art. 20 da Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, que “define os crimes
resultantes de preconceitos de raça ou de cor”. Disponível: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8882.htm#:~:text=LEI%20N%C2%BA%20
8.882%2C%20DE%203%20DE%20JUNHO%20DE%201994.&text=Acrescen-
ta%20par%C3%A1grafo%20ao%20art.,Art. Acesso: 02/abr.2023.
________. LEI Nº 9.459, DE 13 DE MAIO DE 1997. Altera os arts. 1º e 20 da Lei
nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, que define os crimes resultantes de pre-
conceito de raça ou de cor, e acrescenta parágrafo ao art. 140 do Decreto-lei
nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível: https://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/leis/l9459.htm#:~:text=LEI%20N%C2%BA%209.459%2C%20
DE%2013,7%20de%20dezembro%20de%201940. Acesso: 02/abr.2023.
________. LEI No 10.639, DE 9 DE JANEIRO DE 2003. Altera a Lei no 9.394, de

- 95 -
20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação
nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatorie-
dade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providên-
cias. Disponível: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.
htm. Acesso: 26/mar./2023.
________. LEI Nº 12.288, DE 20 DE JULHO DE 2010. Institui o Estatuto da
Igualdade Racial; altera as Leis nos 7.716, de 5 de janeiro de 1989, 9.029, de
13 de abril de 1995, 7.347, de 24 de julho de 1985, e 10.778, de 24 de novem-
bro de 2003. Disponível: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-
2010/2010/lei/l12288.htm Acesso: 02/abr./2023.
________. LEI Nº 12.519, DE 10 DE NOVEMBRO DE 2011. Institui o Dia Na-
cional de Zumbi e da Consciência Negra. Disponível: https://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12519.htm Acesso: 25/mar./2023.
________. LEI Nº 12.735, DE 30 DE NOVEMBRO DE 2012. Altera o Decreto-
-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, o Decreto-Lei nº
1.001, de 21 de outubro de 1969 - Código Penal Militar, e a Lei nº 7.716,
de 5 de janeiro de 1989, para tipificar condutas realizadas mediante uso
de sistema eletrônico, digital ou similares, que sejam praticadas contra
sistemas informatizados e similares; e dá outras providências. Disponível:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12737.
htm#:~:text=LEI%20N%C2%BA%2012.737%2C%20DE%2030%20DE%20
NOVEMBRO%20DE%202012.&text=Disp%C3%B5e%20sobre%20a%20
tipifica%C3%A7%C3%A3o%20criminal,Penal%3B%20e%20d%C3%A1%20
outras%20provid%C3%AAncias. Acesso: 02/abr.2023.
BRASIL. LEI Nº 12.990, DE 9 DE JUNHO DE 2014. Reserva aos negros 20%
(vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provi-
mento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração
pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas pú-
blicas e das sociedades de economia mista controladas pela União. Dis-
ponível: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/
l12990.htm Acesso: 28/mar./2023.
________. LEI Nº 14.532, DE 11 DE JANEIRO DE 2023. Altera a Lei nº 7.716,
de 5 de janeiro de 1989 (Lei do Crime Racial), e o Decreto-Lei nº 2.848, de 7
de dezembro de 1940 (Código Penal), para tipificar como crime de racismo
a injúria racial, prever pena de suspensão de direito em caso de racismo
praticado no contexto de atividade esportiva ou artística e prever pena para
o racismo religioso e recreativo e para o praticado por funcionário público.
Disponível: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/
l14532.htm Acesso: 02/abr./2023.
________. LEI Nº 14.532, DE 11 DE JANEIRO DE 2023. Altera a Lei nº 7.716,
de 5 de janeiro de 1989 (Lei do Crime Racial), e o Decreto-Lei nº 2.848, de 7
de dezembro de 1940 (Código Penal), para tipificar como crime de racismo

- 96 -
a injúria racial, prever pena de suspensão de direito em caso de racismo
praticado no contexto de atividade esportiva ou artística e prever pena para
o racismo religioso e recreativo e para o praticado por funcionário público.
Disponível: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/
l14532.htm. Acesso: 02/abr./2023.
GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspecti-
va, 1961.
LOPES, R. R. R. Exclusão e estigma [recurso eletrônico]: uma análise do eti-
quetamento social expresso na vida dos sujeitos que passam pelo sistema
carcerário. Ed, Educs. Caxias do Sul, RS: 2019.
MOEHLECKE, Sabrina. Ação Afirmativa:História e Debates No Brasil. Ca-
dernos de Pesquisa, n.117, p.197-217, 2002.
RAMOS, A. GUERREIRO. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de
Janeiro: Editorial Andes Ltda, 1957.
________. A redução sociológica. Introdução ao estudo da razão sociológica.
2 ed. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro Ltda, 1965.
RIBEIRO Darcy. A Formação e o Sentido do Brasil. Companhia das Letras.
São Paulo – SP, 1995.
SANTOS, O. S. Poesia e Ensino de História: “Navios negreiros” e o
desembarque de escravos no Brasil depois de 1831. 2018. Disponí-
vel: https://www.ensinodehistoria2017.bahia.anpuh.org/resources/
anais/8/1505860235ARQUIVOPoesiaeensinodehistoria.pdf. Acesso: 10/
abr./2023.
SHIOTA, R. R. Guerreiro Ramos e a Questão Racial no Brasil. Temáticas,
v.22, n.43, p.73-102, 2014.
YOUSSEF, Alain El. Imprensa e Escravidão. Política e Tráfico Negreiro no
Império do Brasil. Rio de Janeiro. 1822-1850. Ed. Intermeios, São Paulo-SP,
2016.
TODOROV, Tzvetan. Nós e os outros: a reflexão francesa sobre a diversida-
de humana. Trad. Sergio Goes de Paula. 194 pp. Jorge Zahar Editor, Rio de
Janeiro, 1993 (v. 1). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1989.

- 97 -
A APLICAÇÃO DA
INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA
DIVERSA NO ÂMBITO DA
POLÍCIA CIVIL DA PARAÍBA
José Ideltônio Moreira Júnior48

INTRODUÇÃO

O artigo em tela busca analisar a previsão legal da


inexigibilidade de conduta diversa no âmbito das transgressões
disciplinares dos servidores policiais civis da Paraíba, bem como o
raio de alcance essa excludente de culpabilidade para demais tipos
penais, que não raras vezes incidem no agente de segurança pública.
O instituto da inexigibilidade de conduta diversa é tido
pela doutrina majoritária como causa supralegal de exclusão de
culpabilidade, ante a ausência de previsão normativa no direito
penal brasileiro. Diferentemente do que ocorre no campo penal
nacional, a Lei Complementar estadual nº. 85/2008 da Paraíba
previu expressamente o instituto exculpante no seu art. 164,
todavia, ante a natureza administrativa-disciplinar da norma, sua
aplicação fica adstrita às condutas tipificadas como transgressões
disciplinares. Com base em casos concretos, princípios norteadores
do macro processo sancionador e nas garantias constitucionais e
fundamentais, o presente estudo identificará o raio de alcance da
inexigibilidade para além do campo disciplinar, alicerçado, ainda,
nos precedentes e doutrinas, demonstrando que a inexigibilidade é
causa exculpante cada vez mais palpável ao direito sancionador.
48 Advogado. Pós-graduação em direito penal e processual penal pelo UNIPÊ em convênio com
a Fundação Escola Superior do Ministério Público da Paraíba (FESMIP-PB). Graduado em Direi-
to pelo UNIPÊ. Membro associado da Associação Brasileira de Advogados Criminalistas (ABRA-
CRIM). e do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).

- 99 -
BREVES CONSIDERAÇÕES ACERCA
INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA
COMO CAUSA DE EXCLUSÃO DA
CULPABILIDADE

A etimologia da palavra culpa carrega diversos significados,


aplicados nos mais variados ramos do saber (notadamente da
psicologia, da filosofia, da moral, da religião e do direito), sobretudo
no contexto da sabedoria popular.
De bons préstimos para a conceituação simples e analítica
dada por Davi Tangerino (2014, p. 19), para quem “a ideia de culpa
está associada à de responsabilidade, de caráter duplo: trata-se de
tornar o agente responsável por sua ação e, consequentemente,
pelos resultados dela advindos”.
Em caráter exemplificativo, o pai de um delinquente não
deveria responder criminalmente pelo simples fato de ser genitor do
autor de uma infração penal. É a materialização do princípio “nulla
crimen sine culpa”.
Situado enquanto terceiro substrato do crime (ao lado da
tipicidade e da ilicitude) é no estudo da culpabilidade que se avalia
se ao autor de um fato tido por típico e ilícito poderia se projetar
censura diante de sua conduta.
Como preleciona Greco (2011, p. 89), a culpabilidade é o limite
do direito de punir do Estado, notadamente porque “diz respeito ao
juízo de reprovabilidade que se faz sobre a conduta típica e ilícita
praticada pelo agente”.
Reprovável ou censurável é aquela conduta levada a efeito
pelo agente que, nas condições em que se encontrava, podia
agir de outro modo.

E mais uma vez, invocando as lições de Tangerino (2014, p.


22), a inexigibilidade de conduta diversa reside na “exigibilidade
de o agente, dada as circunstâncias, obedecer à norma”. E, ainda,
que a essência da reprovabilidade reside no fato de que o agente

- 100 -
poderia e deveria adotar um comportamento em conformidade ao
comando penal-legal, ao contrário de uma decisão deliberadamente
antijurídica.
O direito exige do homem uma atitude voluntária
psiquicamente dirigida a um fim lícito. Se a ação deum ser humano
ultrapassa o limite imposto pela norma, recairá sobre este o jus
puniendi do Estado. Há, por outro lado, situações onde o indivíduo,
por estar em determinada posição, cuja ação necessariamente violará
a lei, poderá ter a culpabilidade afastada, ou seja, haverá uma causa
excludente de culpabilidade, conforme o caso concreto.
Nesse diapasão e de forma geral, a doutrina nacional
acerca da culpabilidade orienta que ela poderá ser excluída pela
inimputabilidade, potencial consciência da ilicitude ou pela
inexigibilidade de conduta diversa. É justamente esta última o centro
do estudo, porquanto causa supralegal de exclusão da culpa.
Vale registrar, ainda em caráter introdutório, que por
supralegal deve-se compreender, segundo Nahum (2001, p. 85), que
no interior do ordenamento jurídico...
Há critérios de valoração e, consequentemente, desvaloração,
que não são identificados pelas leis positivas, especialmente
as brasileiras, não havendo que se falar aqui em - interpretação
metajurídica, mas sim teleológica, que tem por fundamento o
dever-ser imposto pelo sistema normativo.

Vale anotar que a Teoria da Inexigibilidade de Conduta


Diversa foi aplicada pela primeira vez para resolver um caso no
início do século XIX, o Leinenfänger (cavalo indócil que não obedece
às rédeas), em 1896. Lição essa extraída de Nucci (2012, p. 323):
O proprietário de um cavalo indócil ordenou ao cocheiro
que o montasse e saísse a serviço. O cocheiro, prevendo a
possibilidade de um acidente, se o animal disparasse, quis
resistir à ordem. O dono o ameaçou de dispensa caso não
cumprisse o mandado. O cocheiro, então, obedeceu e, uma
vez na rua, o animal tomou-lhe as rédeas e causou lesões em
um transeunte. O Tribunal alemão absolveu o cocheiro sob
o fundamento de que, se houve previsibilidade do evento,
não seria justo, todavia, exigisse outro proceder do agente.

- 101 -
Sua recusa em sair com o animal importaria a perda do
emprego, logo a prática ação perigosa não foi culposa, mercê
da inexigibilidade de outro comportamento.

A doutrina de Nucci (2012, p. 323), adorna ser possível admitir


que “em certas situações extremadas, quando não for possível aplicar
outras excludentes de culpabilidade, a inexigibilidade de conduta
diversa seja utilizada para evitar a punição injustificada do agente”.
O autor menciona ainda, o ensinamento lançado por Assis Toledo:
A inexigibilidade de outra conduta é, pois, a primeira e mais
importante causa de exclusão da culpabilidade. E constitui
verdadeiro princípio de direito penal. Quando aflora em
preceitos legislados, é uma causa legal de exclusão. Se não,
deve ser reputada causa supralegal, erigindo-se em princípio
fundamental que está intimamente ligado com o problema
da responsabilidade pessoal e que, portanto, dispensa a
existência de normas expressas a respeito (Princípios básicos
de direito penal, p. 328).

Nas cirúrgicas explicações de Nahum (2001, p. 73), ao repetir


não que há uma redução das exigências normativas às circunstâncias
subjetivas do agente, mas essas circunstâncias devem ganhar relevo
na situação normativamente valorada, até como limite da pena a ser
imposta, e arremata:
É que o direito exige que todo sujeito imputável tome decisões
de acordo com o conhecimento da ilicitude que possui.
Porém, há situações anormais em que não se pode exigir
do agente uma decisão conforme o comando normativo. Há
o reconhecimento de que ele se encontra diante do que se
chama inexigibilidade de conduta diversa.

A culpabilidade é excluída ou atenuada quando o agente se


comporta com animus exculpante ou em um contexto exculpante,
de modo que a obediência à norma não é exigível se a motivação
não jurídica do agente imputável, que não acata o fundamento de
validade da norma, se justifica por uma situação que, para o sujeito,
se constitui em uma desgraça, como afiançou Veloso (2013, p. 490).
A inexigibilidade se alicerça na atmosfera fática existente
quando da conduta do indivíduo, pois o caráter ameaçador do

- 102 -
contexto é que faz surgir a inexigibilidade de conduta diversa. É dizer:
nas circunstâncias de um caso concreto flagrantemente ofensivo a
determinado bem jurídico de considerável relevância, não se revela
reprovável desobedecer ao comando normativo sancionador.
Tensionando sob o prisma jurisprudencial, valoroso o
acórdão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, a incidência
da não exigibilidade de comportamento diverso já foi interpretado
para absolver indivíduo quando da dúvida acerca da excludente de
culpabilidade, ou seja, em clara demonstração de que o ônus de
provar a autoria do crime e de sua materialidade, em toda a extensão,
recai sobre o órgão acusador.
EMENTA: PENAL. FALSO TESTEMUNHO.
AUTOINCRIMINAÇÃO. INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA
DIVERSA. EXCLUDENTE DA CULPABILIDADE. DÚVIDA
RAZOÁVEL. ABSOLVIÇÃO. 1. Embora as narrativas
apresentadas pelo apelante durante o inquérito policial e a
ação cível sejam contrapostas, não há nos autos elementos
suficientes para se aferir qual delas é verdadeira. 2. Existindo
a possibilidade de que a versão apresentada no inquérito
policial seja falsa, deve ser ponderado que ninguém é
obrigado a se autoincriminar ou a produzir provas contra
si mesmo (nemo tenetur se detegere), podendo o cidadão
potencial cometedor de um crime não apenas permanecer
calado, mas também tecer alegações inverídicas, narrando a
versão que mais lhe beneficie, sem que, com esse agir, venha
a sofrer persecução criminal. Trata-se de corolário do direito
à autodefesa, erigido pela Constituição Federal de 1988 à
condição de garantia fundamental do cidadão (artigo 5º,
inciso lxiii). 3. Com a alteração do art. 386, VI, do código de
processo penal introduzida pela Lei nº 11.690/08, a dúvida
acerca da excludente de culpabilidade (inexigibilidade de
conduta diversa) resolve-se em benefício do réu, impondo-se
sua absolvição. (TRF 4ª R.; ACr 0001569-28.2008.404.7204;
SC; Oitava Turma; Rel. Des. Fed. Paulo Afonso Brum Vaz; Julg.
22/05/2013; DEJF 07/06/2013; Pág. 336)

Finalizando o argumento que ora se desenha, para que se


verifique a existência da inexigibilidade de conduta diversa como
excludente de culpabilidade, o indivíduo deve praticar uma conduta
típica, ilícita (antijurídica) e não lhe sendo exigível escolher entre

- 103 -
atuar conforme o direito ou não atuar.
Isto é, não se pode cobrar do indivíduo outro posicionamento,
se não o de agir contrário à norma para resguardar outro bem
jurídico tutelado, atuação essa que não é tida pela coletividade como
reprovável a ponto de imputar-lhe uma sanção pelo ato praticado.

A INTERAÇÃO DO DIREITO
ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR E O DIREITO
PENAL: RAMOS DO DIREITO SANCIONADOR

Atualmente, tem sido comum a doutrina, sobretudo do direito


administrativo, se referir ao que se convencionou chamar de direito
sancionador, com sendo um “macro ramo” do direito, do qual se
derivariam os direitos penal, administrativo, eleitoral, tributário
entre outros.
Quando se fala em imposição de sanções, inegavelmente
se busca coadunar e refletir essa postura com as linhas de defesa
possíveis ao sujeito passivo de uma relação processual, ou seja,
aquele que está respondendo algum tipo de acusação e está em vias
de sofrer a sanção.
Não raras vezes se identifica o manuseio de argumentos
defensivos por parte dos acusados em processos eleitorais ou
administrativos disciplinares que buscam a plena aplicação de
princípios, institutos e normais penais nessas searas jurídico-
processuais, justamente por possuírem esse condão sancionador.
Isso porque a sanção a ser experimentada pelo sujeito passivo
dessa relação processual possui uma relevância tamanha na vida do
agente que em termos práticos, são mais danosos muitas vezes dos
que a pena corporal em si (privativa de liberdade) afeta ao direito
penal.
Veja por exemplo o caso de um processo administrativo
disciplinar em que um servidor é acusado de praticar um crime

- 104 -
contra a administração pública (crime funcional, portanto) e na
respectiva ação penal, tomou condenação com pena mínima legal.
Considere ainda nesse exemplo que o órgão acusador e o juiz não
pediram e não condenaram o réu na pena de perda do cargo (art. 92
do Código Penal).
Agora, sobre esse mesmo fato, o servidor veio a responder
o processo administrativo disciplinar, cujas penas se limitariam a
orbitar entre advertência, suspensão e demissão. Inegavelmente, se
a esfera judicial já se manifestou pelo reconhecimento do crime, é
naturalmente mais fácil para a corregedoria seguir a mesma linha
e impor sanção disciplinar, o que, a depender da ficha funcional do
servidor ou da mera discricionariedade julgador administrativo, pode
facilmente ser a de demissão, cuja repercussão da vida do indivíduo
é sabidamente drástica.
Obviamente que cada caso é um caso, mas na singela hipótese
acima descrita, o que se vê é que o direito de defesa do servidor fica
largamente fragilizado por já sofrer uma derrota na seara judicial,
restando-lhe poucas armas para buscar um arquivamento na seara
administrativa.
Convém anotar que o direito de defesa do âmbito de um
processo disciplinar possui alguns complicadores para seu exercício,
podendo citar como exemplos:
A inexistência de trânsito em julgado para execução de uma
sanção disciplinar, seja por ausência de previsão legal, seja
em razão da autoexecutoriedade dos atos administrativos,
bem como sua presunção de veracidade e validade;
A cada vez mais defensiva jurisprudência dos tribunais, no
sentido de não reavaliarem o mérito dos atos administrativos,
limitando-se apenas realizar o chamado controle de legalidade
do ato ou processo administrativo questionado;
Ausência de nulidade no excesso de prazo na tramitação de
um PAD, conforme súmula 592 do STJ, devendo o prejudicado
comprovar o efetivo prejuízo com o excesso.

Por essa razão, defende-se cada vez mais a aplicação de todas


as garantias penais dispostas na Carta Magna e na literatura jurídica

- 105 -
no âmbito dos processos administrativos disciplinares, a fim de que
os servidores processados possam exercer o seu direito de defesa de
forma ampla e a pondo de contrapor a acusação a que respondem
(art. 5º, inciso LX, da CRFB/1988).
Fomenta-se o tema em disceptação a recente transmutação
de princípios, normas e garantias penais à outros ramos do direito
sancionador reconhecida expressamente quando da publicação
da nova Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº. 14.230/2021),
conforme se extrai do art. 1º, §4º:
Art. 1º O sistema de responsabilização por atos de improbidade
administrativa tutelará a probidade na organização do Estado
e no exercício de suas.
§ 4º Aplicam-se ao sistema da improbidade disciplinado nesta
Lei os princípios constitucionais do direito administrativo
sancionador. (grifos apostos).

Com efeito, o direito administrativo sancionador nasce e se


alimenta de muitos dos princípios orientadores do direito penal,
balizando-se, portanto, por princípios normativos constitucionais
que objetivam, em última análise, limitar o arbítrio do Estado, em
respeito às liberdades públicas e individuais dos cidadãos. Leciona
Fábio Medina OSÓRIO (2021, p. 87 e 151):
A norma jurídica não se confunde com o texto legislativo. O
sistema brasileiro adotou a teoria dos precedentes. Direito
Penal e Direito Administrativo confluem para dar nascimento
ao Direito Administrativo Sancionador. Há princípios
constitucionais comuns ao Direito Público punitivo. Ao
Direito Administrativo Sancionador se aplicam os princípios
do direito penal e processual penal, com matizes, por
simetria. A teoria da pena deve ser observada à luz do direito
positivo brasileiro e não de uma perspectiva abstrata do
direito estrangeiro, o que exige um compromisso com os
precedentes da civil law. [...] E é precisamente aqui que se
deve compreender a unidade do Direito Sancionador: há
cláusulas constitucionais que dominam tanto o Direito Penal,
quanto o Direito Administrativo Punitivo. Tais cláusulas, se
bem que veiculem conteúdos distintos, também veiculam
conteúdos mínimos obrigatórios, onde repousa a ideia de
unidade mínima a vincular garantias constitucionais básicas
aos acusados em geral.

- 106 -
Amoldada a essa linha de raciocínio, convém trazer à baila
que a remansosa jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça,
em exemplo da possibilidade-necessidade de garantias penais em
processos de direito sancionador, como no caso da aplicação da
retroatividade benéfica ao acusado em processo administrativo
disciplinar.
EMENTA: PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO
RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA.
ENUNCIADO ADMINISTRATIVO 3/STJ. PROCESSO
ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. PRESCRIÇÃO DA
PRETENSÃO PUNITIVA. NÃO OCORRÊNCIA. AGRAVO
INTERNO NÃO PROVIDO. 1. A sindicância investigativa não
interrompe prescrição administrativa, mas sim a instauração
do processo administrativo. 2. O processo administrativo
disciplinar é uma espécie de direito sancionador. Por essa
razão, a Primeira Turma do STJ declarou que o princípio
da retroatividade mais benéfica deve ser aplicado também
no âmbito dos processos administrativos disciplinares. À
luz desse entendimento da Primeira Turma, o recorrente
defende a prescrição da pretensão punitiva administrativa.
3. Contudo, o processo administrativo foi instaurado em 11
de abril de 2013 pela Portaria n. 247/2013. Independente da
modificação do termo inicial para a instauração do processo
administrativo disciplinar advinda pela LCE n. 744/2013, a
instauração do PAD ocorreu oportunamente. Ou seja, os autos
não revelam a ocorrência da prescrição durante o regular
processamento do PAD. 4. Agravo interno não provido. (STJ
- AgInt no RMS: 65486 RO 2021/0012771-8, Relator: Ministro
MAURO CAMPBELL MARQUES, T2 - SEGUNDA TURMA, Data
de Publicação: DJe 26/08/2021).

De grande valia destacar que nem toda violação ao direito


cometida pelo servidor público policial configura uma conduta
passível de infração funcional. No âmbito do direito administrativo
disciplinar, são aplicadas as mesmas regras utilizadas no direito
penal para a classificação das condutas, o que significa que devem
ser respeitados os princípios da legalidade, da ampla defesa e do
contraditório, do devido processo legal, da presunção de inocência,
da irretroatividade da lei em prejuízo ao réu, entre outros. Como
bem pontuado por Edivan Gervásio Botêlho, é imperioso que as
autoridades administrativas julgadoras poderem:

- 107 -
1. Ocorrência de prejuízo à atividade policial e funções
correlatas;
2. Ofensa ou ameaça ao bem juridicamente tutelado;
3. Se a conduta inicialmente ilícita é tida por “socialmente
inadequada” (segundo o princípio da adequação social de
Hans Welzel).

É nesse espectro que surge a necessidade de adoção mais


efetiva dos institutos penais inerentes ao direito de defesa,
notadamente com sua inserção na letra da lei, a fim de reconhecer e
viabilizar o emprego de mecanismos legais para o exercício de uma
defesa mais justa e capaz de repelir pena disciplinar grave contra o
servidor.

A INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA


NA LEI COMPLEMENTAR Nº 85/2008
DA PARAÍBA E A EXTENSÃO DE SUA
APLICABILIDADE NA CONDUTA DOS
POLICIAIS

Essa evolução, pode-se assim dizer, já se transmutou para o


campo legal do processo disciplinar no Estado da Paraíba, ao menos
no que tange a legislação que regulamenta a atividade dos policiais
civis, qual seja, a Lei complementar estadual nº. 85/2008.
O artigo 164 do enumerado Estatuto da Polícia Civil da
Paraíba dispõe que se constitui circunstância que a sempre excluir a
pena disciplinar a não-exigibilidade de outra conduta do policial na
prática da transgressão.
Trata-se, como se lê, de dispositivo que embora configura ainda
um tipo em aberto – isto é, sem rol taxativo de situações em que se
poderia enquadrar a causa exculpante – é expresso na lei de regência
da atividade policial quanto a essa modalidade de absolvição de um
policial que responder processo disciplinar de qualquer natureza.

- 108 -
De se ter em mente que a atividade policial trilha por
linha tênue, não sendo raras as vezes em que um profissional da
segurança pública precisa adotar medida mais enérgica no seu
exercício funcional, a ponto de precisar se comportar de forma que,
aparentemente, poderia ser configurado como crime ou transgressão
disciplinar, mas que em razão da dinâmica da ocorrência policial, a
culpabilidade fica excluída por não ser possível exigir do servidor
comportamento diverso.
Tomemos como exemplo hipotético o caso em que um delegado
de polícia civil solicita vantagem indevida e ajusta os detalhes com
o agente corruptor, investigado em sede de inquérito. No ajuste, o
pagamento da vantagem espúria se dá em espécie (dinheiro vivo), a
ser entregue a um escrivão de polícia, este que não participou ou teve
ciência de qualquer tratativa criminosa e transgressora. Ocorre que, no
caso imaginado o agente corruptor estava em acordo com o Ministério
Público, de modo a atuar como “colaborador”, visando flagrar toda a
dinâmica do pagamento indevido, filmando toda a dinâmica.
Somente quando da efetiva entrega do numerário sujo é que
o Escrivão desconfia de que aquele valor poderia ser de origem
“duvidosa”. Em dado momento, durante a tomada de termo
(interrogatório) do agente investigado, este entrega envelope
contendo o dinheiro ao escrivão, ocasião em que esse questiona
sobre o teor daquele envelope, limitando-se o delegado de polícia
(superior hierárquico, portanto) a mandar que ele receba o envelope.
Eis que, minutos depois, surgem os agentes da promotoria dando
voz de prisão pelo crime de peculato contra o delegado e contra o
escrivão, por ter este recebido o dinheiro envelopado.
Como se vê, há uma clara situação em que o policial agiu em
estrita obediência hierárquica, atendendo ao comando do seu chefe
imediato (delegado de polícia), não podendo sequer desobedece-
lo, pois não se tinha certeza, naquele instante, de que se tratava
cabalmente de ordem manifestamente ilegal.
Nesse caso hipotético, tem-se um exemplo de que não se
poderia exigir do escrivão policial civil outro comportamento

- 109 -
naquele momento procedimental, visto que estava a exercer suas
atribuições funcionais e deveres legais, e uma vez não tenho ciência
de que se tratava de um pagamento de propina. É o típico caso em
que a culpabilidade do indivíduo deve ser excluída.
Cenário idêntico é do servidor policial civil que presencia um
crime de sequestro, conhecendo os meliantes, e passa a se infiltrar na
organização criminosa para investigar e coletar informações sobre
suas atividades ilícitas. Durante sua infiltração, o policial presencia a
organização planejando um sequestro e, para manter sua identidade
secreta e não colocar em risco a investigação, se vê obrigado a
participar da ação criminosa. Inegável, à primeira vista e de forma
crua do caso, que o policial estaria cometendo um ato ilícito.
Note-se que no exemplo acima, não se está diante de estrito
cumprimento do dever legal (causa excludente de ilicitude), pois o
policial não agiu com ordem de missão, isto é, não havia investigação
em curso ou qualquer outro comando superior que o autorizasse a
participar da empreitada. Também não houve, de sua parte, voz de
prisão em flagrante. Ele optou por atuar ativamente junto ao crime
de sequestro para, ao final, desbaratar a quadrilha.
Nessas circunstâncias específicas do caso, vê-se como
possível alegar a inexigibilidade de conduta diversa. Isso porque,
para preservar sua identidade e não prejudicar a investigação
instantaneamente deflagrada por ele, o policial não teria outra opção
senão participar do sequestro, mesmo sendo uma ação delituosa.
Nesse cenário, o policial civil poderia alegar a inexigibilidade de
conduta diversa como causa excludente de sua culpabilidade.
O tema da inexigibilidade de conduta diversa no âmbito das
carreiras policiais já foi enfrentado por várias vezes nos tribunais do
país. Em pesquisa jurisprudencial, ao longo dos últimos dez anos,
tem-se notado uma maior aplicação do instituto, embora ainda
tímido, seja pelo pouco domínio dos defensores quanto a temática,
seja em razão da complexidade probatória exigida em demonstrar
sua ocorrência no caso concreto.

- 110 -
Não obstante, até mesmo em crime de maior potencial e
relevância criminal, seu emprego tem se notabilizado. É o que se
verifica no julgado que se colaciona abaixo, em que Tribunal de
Justiça Militar de São Paulo reconheceu a inexigibilidade de conduta
diversa em crime de homicídio atribuído a um policial militar.
EMENTA: POLICIAL MILITAR. ABSOLVIÇÃO PELA PRÁTICA
DO DELITO DE HOMICÍDIO CULPOSO COM FUNDAMENTO
NO ESTRITO CUMPRIMENTO DO DEVER LEGAL”
INCONFORMISMO MINISTERIAL. RECURSO DE APELAÇÃO.
ALEGAÇÃO GENÉRICA DE AFRONTA ÀS NORMAS ACERCA
DA IMOBILIZAÇÃO E DE QUE O RESULTADO DEMONSTRA
POR SI SÓ O EMPREGO EXCESSIVO DE FORÇA. NÃO
CONFIGURADOS. DIFICULDADE E INADEQUAÇÃO DO USO
DE ALGEMAS DEVIDAMENTE DEMONSTRADOS. INJUSTA
E ABRUPTA AGRESSÃO QUE SOFRERA DE PESSOA CUJO
FUROR DESMEDIDO TINHA ORIGEM EM ENFERMIDADE
MENTAL. PROVA ORAL EM CONSONÂNCIA COM OS
LAUDOS PERICIAIS E DEMAIS PROVAS DOCUMENTAIS.
CONDUTA ACOBERTA PELAS EXCLUDENTES DE ILICITUDE
DA LEGÍTIMA DEFESA E DO ESTRITO CUMPRIMENTO DO
DEVER LEGAL. ELEIÇÃO DO MEIO MENOS OFENSIVO
DENTRE OS DISPONÍVEIS. EMPREGO DE FORÇA QUE SE
REVELA NA PROPORÇÃO EXIGIDA PELAS CIRCUNSTÂNCIAS.
INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA. EM QUE PESE O
DESFECHO LAMENTAVELMENTE TRÁGICO. DE RIGOR A
ABSOLVIÇÃO. APELO QUE NÃO COMPORTA PROVIMENTO.
Policial Militar - Absolvição pela prática do delito de
homicídio culposo com fundamento no estrito cumprimento
do dever legal” Inconformismo ministerial - Recurso de
Apelação - Alegação genérica de afronta às normas acerca
da imobilização e de que o resultado demonstra por si só o
emprego excessivo de força - Não configurados - Dificuldade
e inadequação do uso de algemas devidamente demonstrados
- Injusta e abrupta agressão que sofrera de pessoa cujo furor
desmedido tinha origem em enfermidade mental - Prova
oral em consonância com os laudos periciais e demais
provas documentais - Conduta acoberta pelas excludentes
de ilicitude da legítima defesa e do estrito cumprimento
do dever legal - Eleição do meio menos ofensivo dentre os
disponíveis - Emprego de força que se revela na proporção
exigida pelas circunstâncias - Inexigibilidade de conduta
diversa - Em que pese o desfecho lamentavelmente trágico -
De rigor a absolvição - Apelo que não comporta provimento.
Decisão: “ACORDAM os Juízes da Segunda Câmara do E.

- 111 -
Tribunal de Justiça Militar do Estado, à unanimidade de votos,
em negar provimento ao apelo ministerial, de conformidade
com o relatório e voto do E. Relator, que ficam fazendo
parte do acórdão. O E. Juiz Clovis Santinon divergia apenas
para absolver o apelado na alínea ‘’e’’ do art. 439 do CPPM”.
(TJMSP; ACr 007472/2018; Segunda Câmara; Rel. Juiz Silvio
Hiroshi Oyama; Julg. 14/06/2018).

De igual forma, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal já


manteve sentença de absolvição a membro de força de segurança
pelo crime de lesão corporal grave, que após agredido, precisou
“usar energia necessária para conter a vítima e seus familiares
enfurecidos”.
EMENTA: PENAL MILITAR. LESÃO CORPORAL GRAVE. USO
DE FORÇA NECESSÁRIA À IMOBILIZAÇÃO DA VÍTIMA.
INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA. ABSOLVIÇÃO
MANTIDA. 1. Age acobertado pela excludente de inexigibilidade
de conduta diversa o policial militar que, após sofrer agressão,
se vê obrigado a usar energia necessária para conter a vítima
e seus familiares enfurecidos, que se opuseram à ação policial
legítima. 2. Recurso improvido. (TJDF; Rec 2010.01.1.108008-
0; Ac. 858.199; Segunda Turma Criminal; Rel. Des. Cesar
Laboissiere Loyola; DJDFTE 06/04/2015; Pág. 96).

No âmbito do Tribunal de Justiça da Paraíba, desconhece-


se a aplicação desse valoroso instituto quanto a policiais civis, no
entanto, nos juízos de primeiro grau, essa causa já fora lançada para
fins de promover arquivamento de inquéritos policiais.
Destaca-se, nesse espectro, decisão do juízo da 1ª Vara do
Tribunal do Júri da Capital, no qual reconheceu, duplamente, a
ocorrência de legítima defesa e de inexigibilidade de conduta diversa
em ação de policiais civis, ocorrida, inclusive, durante a folga dos
mesmos. Faz-se a transcrição do trecho da sentença que faz alusão
ao instituto em estudo, proferido nos autos do Inquérito Policial nº.
0000445-68.2019.8.15.2003, nos quais estão omitidos os nomes dos
agentes de segurança pública, a fim de preservar suas identidades:
[...] Da análise dos elementos probantes encartados aos autos,
há de se concordar com a opinião do dominus litis, impondo-
se o arquivamento deste procedimento inquisitorial,
considerando que as mortes das vítimas ocorreram pela

- 112 -
ação dos policiais amparada por uma causa que afasta a
antijuridicidade. Conforme depoimento do policial civil
C.B.D., no dia 14/02/2019, por volta das 02:00 e 03:00hs,
estava em Companhia do também Policial Civil R., no Bar e
Restaurante G.D.N., quando perceberam que em outra mesa
próxima a sua se encontravam dois indivíduos desconhecidos
em atitude suspeita, tendo o policial Renan percebido que
um deles estava armado, o que os levou a se aproximaram
dos indivíduos, com o intuito de abordá-los. Aduz o policial
C., que se apresentou verbalmente como policial civil,
momento em que um dos indivíduos portadores de uma
grande tatuagem no braço saca uma arma com intenção de
atirar, ocasião que R., ao perceber, efetuou disparos de arma
de fogo, os quais atingiram o suspeito, que veio a óbito no
local, vindo a descobrir-se posteriormente que tal indivíduo
se tratava do policial D.C.N.V. que se encontrava afastado de
suas funções. Paralelamente, o indigitado C.J.O.S. também
tentou empunhar sua arma, todavia, o policial R. conseguiu
contê-lo, efetuando disparos contra ele, que, embora
socorrido pelo SAMU, morreu dias depois em decorrência
dos ferimentos. Registre-se que consta dos autos que R. e C.
acionaram o SAMU e a Polícia Militar, permanecendo até a
chegada de ambos, ocasião em que entregaram à autoridade
policial suas armas particulares e as duas que estavam sendo
portadas ilegalmente pelos suspeitos, demonstrando que o
meio utilizado foi apenas em circunstância de legítima defesa.
Da análise das provas coligidas aos autos, especialmente
dos depoimentos testemunhas que confirmaram a versão
apresentada pelos investigados, verifica-se que os policiais R.
e C. impediram o delito em execução pelos indigitados D. e
C., valendo-se dos meios necessários, de forma proporcional
à ofensa, não podendo se exigir, naquela situação, conduta
diversa do mesmo. Como se vê, portanto, apesar de provadas
a materialidade e a autoria do fato, é de se concordar com o
requerimento ministerial pelo arquivamento deste inquérito
policial, considerando que, de fato, os policiais civis C.B. e
R.B. agiram amparados pela excludente da legítima defesa,
prevista no artigo 23, inciso II, do Código Penal.
DIANTE DO EXPOSTO, com fundamento no art. 18 do Código
de Processo Penal, acolho integralmente a manifestação
ministerial, determinando o ARQUIVAMENTO do presente
inquérito policial. [...]

Como se observa, ante a ausência de dispositivo legal penal,


o juízo da 1ª Vara do Tribunal de Júri da Capital indicou não apenas

- 113 -
a ocorrência da não exigibilidade de conduta diversa, mas também a
da causa excludente de ilicitude da legítima defesa, fundamentando,
assim, no art. 23, inc. II do CP.
No tocante a esfera correcional-administrativa, o caso
acima teve idêntico desfecho, tendo sido promovido o competente
arquivamento, desta feita, com base no art. 164 da Lei Complementar
nº 85/2008, conforme relatório da 2ª Comissão Permanente de
Disciplina da Corregedoria da Segurança Pública da Paraíba,
acolhido pela Delegacia Geral da Polícia Civil da Paraíba (autoridade
decisória). Os dados desse processo administrativo disciplinar, por
serem sigilosos, não serão aqui transcritos. De toda sorte, não se
tem dúvida sobre a possibilidade-necessidade do reconhecimento
disciplinar da inexigibilidade de conduta diversa, imperando que
outros campos sancionadores possam reconhecer sua incidência,
seja como causa legal, seja como causa supralegal de excludente de
culpabilidade.

CONCLUSÃO

Com base nas considerações até aqui tecidas, não se tem


dúvida sobre a importância da inexigibilidade de conduta diversa,
constituindo causa supralegal de exclusão da culpabilidade do ponto
de vista penal, lado outro, com expressão previsão legal no âmbito
do direito administrativo disciplinar dos policiais civis da Paraíba.
Trata-se de elemento negativo, uma vez que, na hipótese, ocorrer-
se-ia a não possiblidade de agir conforme os deveres e direitos.
A culpabilidade é eximida em situação em que o se comporta
com animus exculpante ou em um contexto exculpante, de modo que
a obediência à norma não é exigível se a motivação não jurídica do
agente imputável se alicerça numa situação que, para o sujeito, se
constituiria em desgraça.
Restou aclarada o grau de interação e compatibilidade entre os
direitos penal e administrativo disciplinar, porquanto constituírem

- 114 -
ramos do chamado “macro ramo” do direito sancionador. Não raras
vezes, se identifica o manuseio de argumentos defensivos por parte
dos acusados em processos dessa natureza que buscam a plena
aplicação de princípios, institutos e normais penais nessas searas
jurídico-processuais, justamente por essa similaridade e porque
a sanção a ser experimentada pelo sujeito passivo dessa relação
processual possui uma grande relevo na vida do agente que em
termos objetivos, são mais danosos do que as penas privativas de
liberdade típica do direito penal.
E ainda, tal possibilidade se transmuta por vezes em
necessidade de aplicação mais concreta dos institutos penais afetos
ao direito de defesa, visando reconhecer e viabilizar a adoção de uma
defesa capaz de repelir eventual pena disciplinar grave em desfavor
do servidor.
Essa evolução da aplicação da inexigibilidade aportou na Lei
complementar estadual nº. 85/2008 (Estatuto da Polícia Civil da
Paraíba), ao dispor no seu art. 164 pela não exigibilidade de conduta
diversa como causa que excluir a pena disciplinar no âmbito dos
processos disciplinares dos policiais civis.
Embora ainda consistente em tipo legal aberto, é expresso na
lei tal modalidade de absolvição ou arquivamento de um policial que
responder processo disciplinar de qualquer natureza. Não é demais
lembrar que a atividade policial possui a peculiaridade de sempre
atuar no extremo limite legal, ou seja, andando numa linha muito
tênue, não sendo difícil visualizá-lo em situações em que precisa se
comportar de forma que, aparentemente, poderia se configurar um
crime ou transgressão disciplinar, mas que em razão da dinâmica da
ocorrência policial, sua culpabilidade é retirada, ante a não exigência
de conduta diversa.
Esse cenário já foi reconhecido tanto na jurisprudência
dos tribunais pátrios, bem como em decisões do primeiro grau do
judiciário paraibano, cujo teor se assemelhou ao desfecho do caso
respectivo na seara administrativa disciplinar. Não resta dúvida
sobre a possibilidade-necessidade do reconhecimento disciplinar

- 115 -
da inexigibilidade de conduta diversa, revelando a necessidade de
que outros campos do direito sancionador possam reconhecer sua
incidência, a fim de excluir a culpabilidade pela não exigibilidade de
conduta diversa.

REFERÊNCIAS
BOTÊLHO, Edivan Gervásio. Exigibilidade de conduta diversa no âmbito
administrativo disciplinar. Revista da Defesa Social & Portal Nacional dos
Delegados, 2012. Disponível em < https://www.delegados.com.br/compo-
nent/k2/exigibilidade-de-conduta-diversa-no-ambito-administrativo-dis-
ciplinar> Acesso em 03/04/2023, às 17h43.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. – 13. ed. Rio de Janeiro: Impetus,
2011.
NAHUM, Marco Antonio R. Inexigibilidade de conduta diversa: causa su-
pralegal: excludente de ilicitude. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2001.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal: parte geral: parte
especial - 7. ed. rev., atual. e ampl. - São Paulo : Editora Revista dos Tribu-
nais, 2011.
________. Código penal comentado: estudo integrado com processo e execu-
ção penal: apresentação esquemática da matéria: jurisprudência atualizada
– 14. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro : Forense, 2014.
OSÓRIO, Fábio Medina. Direito administrativo sancionador. Thomson Reu-
ters Revista dos Tribunais. São Paulo, 2021. p. 87 e 151.
TANGERINO, Davi de Paiva Costa. Culpabilidade. 2. ed. São Paulo: Saraiva,
2014.
VELOSO, Roberto Carvalho. Aplicação da inexigibilidade de conduta diver-
sa nos crimes tributários. In: SCARPA, Antonio Oswaldo; HIRECHE, Gamil
Föpel El (Org.). Temas de direito penal e processual penal: estudos em ho-
menagem ao juiz Tourinho Neto. Salvador: Juspodivm, 2013. Cap. 36.

- 116 -
A NECESSIDADE DE
EFETIVAÇÃO DO DIREITO À
DURAÇÃO RAZOÁVEL DO
PROCESSO
Caius Lacerda Filho49

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A tecnologia fez com que as pessoas experimentassem uma


sociedade regida pelo imediatismo. O apreço pelo “agora” é manifesto
e fez com que as comunicações se tornassem instantâneas. Ao
contrário de outrora em que as pessoas se comunicavam por cartas,
atualmente existem diversos aplicativos de celular que permitem
uma interação ao vivo por meio de um simples apertar de botão.
As comidas que consumimos é outro exemplo disso, adquiridas em
fast-foods, podem ser esquentadas rapidamente no micro-ondas,
ou então solicitadas via aplicativos de celular em que prometem
entregas em questões de minutos.
Essa cultura do “instantâneo” se tornou natural. Já a “espera”
é tida como estranha, como inimiga que deve ser refutada a qualquer
custo. É nesse contexto que se insere o apelo da sociedade por um
julgamento ultrarrápido. Somos reféns desse desejo experimentado
por um novo modelo de sociedade e que, inevitavelmente, transmite
ao processo penal a hiper aceleração experimentada diariamente na
vida comum.

Acontece que, se seguirmos esse ritmo, se torna inevitável


49 Advogado especializado em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra em con-
vênio com o IBCCRIM, bacharel em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), premia-
do com a láurea acadêmica.

- 117 -
o atropelo às garantias e direitos fundamentais. No entanto, se
acontecer o inverso e o processo demorar em demasia, a sensação
de impunidade será configurada e a incerteza vai pairar sobre a
sorte do acusado, tendo que viver em sociedade sem saber se será
considerado culpado ou inocente. Além disso, o processo penal
em si já é uma pena, pois o réu já é estigmatizado pelos demais,
tornando a convivência em sociedade árdua, muitas vezes sem
conseguir emprego e sendo observado com olhares diferentes pela
própria família, etiquetado como criminoso e perigoso pelo fato de
responder a um processo criminal.
Como se isso não bastasse, se o processo se alongar por muito
tempo, o sujeito que cometeu o crime não será o mesmo que será
julgado. Isso ocorre por causa das mudanças físicas, sociológicas,
econômicos e do contexto no qual está inserido o acusado. Viver
por si é uma constante mudança e seria injusto julgar uma pessoa
diferente daquela que cometera o suposto delito e é isso que acontece
caso um processo dure muitos anos, uma outra pessoa em contexto
social e histórico será julgada, diferente daquela que cometeu o
ilícito inicialmente.
De igual forma, o acusado pode ficar sujeito a medidas
cautelares como a prisão preventiva, que são extremamente gravosas,
mesmo sem que haja uma sentença definitiva condenatória. Por
fim, a demora na solução do caso pode gerar insegurança jurídica e
dificultar a punição de eventuais culpados com a ocorrência inclusive
de prescrições.
Portanto, a demora do processo penal não interessa a ninguém
que busca verdadeiramente a justiça, e a velocidade ultrarrápida do
processo causará danos inevitáveis aos direitos fundamentos do
acusado. Assim, é imperiosa a busca por um processo com duração
razoável que se opere sem dilações indevidas. Só assim o Direito
resguardará um processo penal justo e eficiente para o acusado,
vítima e sociedade.
Justamente ao perceber a importância da busca dessa duração
razoável, a Emenda Constitucional nº 45 trouxe expressamente esse

- 118 -
direito no art. 5º LXXVIII. Transformou esse entendimento em um
direito fundamental, tornando-o obrigatório a sua aplicação como
uma garantia que torna o processo justo. Destarte, só há processo
justo se ele durar por um tempo razoável, sem dilações indevidas e
sem ânsia de condenação instantânea do acusado.
O grande cerne da questão é a de que a aplicação desse
princípio vem engatinhando a passos curtos, geralmente ignorado
pelos delegados, promotores, juízes e advogados. Porém, o direito
à duração razoável dentro do processo penal possui uma conotação
especial, tendo em vista que requer uma interpretação através de
princípios específicos alusivos à própria natureza penal, inexistente
em outros ramos do Direito.
Aqui há uma ressalva interessante, jamais poderíamos utilizar
o argumento do princípio da duração razoável do processo para
restringir direitos e garantias do réu, mas, pelo contrário, devemos
utilizá-lo para deixar mais eficiente a proteção do acusado frente ao
arbítrio do Estado, ao mesmo tempo em que o Estado deve garantir
os meios necessários para que o processo seja conduzido de forma
ágil, sem que haja procrastinação ou excesso de formalismo, para
que a justiça seja feita de forma rápida e eficiente.
A relevância é manifesta, tanto é que esse princípio está
previsto na Constituição Federal brasileira, bem como em tratados
internacionais de direitos humanos ratificados pelo país, como a
Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
Portanto, resta claro que o princípio da duração razoável do
processo aplicado ao processo penal é fundamental para garantir
justiça.

- 119 -
NORMATIVAS INTERNACIONAIS E
NACIONAL SOBRE O DIREITO À DURAÇÃO
RAZOÁVEL DO PROCESSO

A duração razoável do processo é um direito fundamental


consagrado em diversos documentos jurídicos internacionais de
proteção aos direitos humanos, além disso, é de se notar a presença
desse princípio nos diversos ordenamentos jurídicos internos das
mais variadas nações.
Pois bem, a primeira preocupação legislativa com a celeridade
processual é datada de 1791, quando da elaboração da VI emenda à
Constituição dos Estados Unidos da América, situação em que foi
prevista o direito a um julgamento público e rápido (speedy and
public trial), tornando-o parte das garantias do due process of law.
Segundo Castro (1989, p. 34-35):
Ajunte-se, ainda, as garantias ditadas pela 6a. Emenda, a
saber, o direito a um julgamento rápido e público (speedy
and public trial), por um júri imparcial e com competência
predeterminada, bem como o direito a ser informado acerca
da natureza e causa da ação (fair notice), além do direito
de defesa e ao contraditório, consistente na possibilidade
de confrontar testemunhas de acusação, produzir provas,
inclusive, de obter compulsoriamente o depoimento de
testemunhas de defesa, como de resto o direito à assistência
de advogados. (grifo nosso)

Portanto, o direito à duração razoável do processo nasce


atrelado ao due process of law (princípio do devido processo
legal), ou seja, matriz fundante de todos os outros princípios. Essa
preocupação imediata com os atrasos dos julgamentos demonstra
que não há processo justo sem o respeito à duração razoável do
processo, pois, “como é dito e repetido por gerações de juristas
desde Rui Barbosa, na sua Oração aos Moços: ‘Justiça atrasada
não é Justiça, senão injustiça qualificada e manifesta’.” (KOEHLER,
2013, p. 36).

- 120 -
Hodiernamente, o princípio da duração razoável do processo
se encontra positivado em inúmeras constituições e declarações
internacionais.
A Convenção Europeia para Salvaguarda dos Direitos do
Homem e das Liberdades Fundamentais, de 1950, prevê no art. 6º:
Qualquer pessoa tem direito a que sua causa seja examinada,
equitativa e publicamente, em um prazo razoável, por um
tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o
qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos
e obrigações de caráter civil, quer sobre o fundamento de
qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela. (grifo
nosso)

A Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969, o


Pacto de São José da Costa Rica, preceitua:
Art. 7º - Direito à liberdade pessoal
5. Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida,
sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade
permitida por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de
ser julgado em prazo razoável ou de ser posta em liberdade,
sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade
pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu
comparecimento em juízo.
Art. 8º - Garantias Judiciais
1. Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas
garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou
tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido
anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal
formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos
ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer
outra natureza. (grifo nosso)

O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos,


aprovado pela Assembleia Geral da ONU em 1966, em seu artigo 9.3
diz que
Todo o indivíduo preso ou detido sob acusação de uma
infracção penal será prontamente conduzido perante um
juiz ou uma outra autoridade habilitada pela lei a exercer
funções judiciárias e deverá ser julgado num prazo razoável
ou libertado. (grifo nosso)

- 121 -
Da mesma maneira, “a Carta Africana de Direitos Humanos
de 1981 (Carta de Banjul), prevê, em seu artigo 7º, 1, ‘d’, o direito do
cidadão de ser julgado em prazo razoável por um tribunal imparcial”
(KOEHLER, 2013, p. 39).
Finalmente, a Carta dos Direitos Fundamentais da União
Europeia, de 2000, em seu parágrafo 47 informa que “toda pessoa
tem o direito a que sua causa seja julgada de forma equitativa,
publicamente e num prazo razoável” (UNIÃO EUROPEIA), “o que foi
corroborado de forma idêntica pela própria Constituição Europeia,
em seu artigo II – 107 (KOEHLER, 2013, p. 41). Ora, inclusive o
Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, quando no artigo
16, estabelece que nenhum procedimento criminal poderá ter início
ou durar por mais de doze meses, a contar da data em que o conselho
de segurança assim o tiver solicitado. (grifo nosso)
Como podemos ver, a problemática da morosidade processual
é enfrentada por muitas legislações estrangeiras. Interessante notar
que, na grande maioria dessas legislações estrangeiras, o termo
utilizado é “duração razoável”, pois não podemos ter um processo
penal instantâneo, pelo contrário, não se pode atropelar o direito
de defesa e as garantias fundamentais do acusado. Se faz necessário
o respeito ao artigo 8.2, c, da CADH quando obriga “a concessão
ao acusado do tempo e dos meios necessários à preparação de sua
defesa”.
Essa posição doutrinária é defendida por Giacomolli (2015, p.
344):
É indubitável a tensão jurídica existente entre a necessidade
de um processo rápido (speed trial) e o tempo necessário
na busca da melhor solução para o caso concreto. Entre
essas duas extremidades há de ser mantido o equilíbrio,
determinável em cada caso e em cada situação penal, pois a
duração razoável não significa dar ao caso penal uma solução
instantânea (fast food). O norte desse ponto de equilíbrio há
de estar previsto em lei, para que a dialética processual possa
confrontar a situação fática e jurídica, na busca da melhor
solução para o caso.

- 122 -
Em relação ao Brasil, percebe-se que a solução para essas
questões, tanto é que foi preciso a aprovação da Emenda Constitucional
n.45 de 2004, em que o legislador, para não deixar dúvidas, positivou
o princípio da duração razoável do processo através do artigo 5º,
LXXVIII, da Constituição Federal, local em que se discute os direitos
e garantias fundamentais. Optou-se, através dessa Emenda, deixar
sob holofotes o presente princípio, demonstrando que ele merecia
uma atenção especial e que os juristas não poderiam mais ignorá-lo:
assim, com a EC/45, fica clara a perspectiva de um direito ao
julgamento em um prazo razoável em qualquer área do Direito,
e com maior relevância se estivermos tratando de uma prisão
provisória. E, partindo-se de tal premissa constitucional, há
o direito subjetivo do cidadão e o dever jurídico do Estado,
em prestar jurisdição em tempo razoável no processo, sem
dilações indevidas (SANTOS, 2008). (grifo nosso)

É nessa disposição que o princípio se manifestou: “a todos,


no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável
duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua
tramitação”. Nota-se que, na nossa Constituição a preocupação
foi maior que nos demais ordenamentos jurídicos internacionais,
isso aconteceu porque, além de exigir o prazo razoável no âmbito
judicial, também o fez para os processos administrativos, ou seja, o
presente princípio faz com que se exija um tempo razoável também
aos inquéritos policiais.
Portanto, se faz lógica à seguinte conclusão: “estamos
convencidos de que a consagração do princípio da duração razoável
do processo no art. 5º, LXXVIII, da CF/1988 com certeza foi um
importante passo na caminhada da consolidação dos direitos
fundamentais” (NICOLLIT, 2014, p. 28).
Em suma, verifica-se acertada e acentuada a preocupação
pelo respeito ao princípio da duração razoável do processo, tanto
nos Tratados Internacionais como nas Constituições dos Estados
estrangeiros e também na nossa Constituição Federal, o que deixa
evidente que o respeito a esse princípio se faz obrigatório quando
se quer um devido processo legal. Mostra-se ainda relevante a

- 123 -
utilização do termo “duração razoável”, visto que é preciso encontrar
um equilíbrio entre o processo “speed trial” e o processo moroso.

PRINCIPAIS CAUSAS E SOLUÇÕES DA


DEMORA PROCESSUAL PENAL

A demora processual é um problema que afeta a justiça em


todo o mundo, isso é perceptível na preocupação internacional
em diversos países sobre a temática. Suas causas são diversas
e complexas, no entanto no Brasil envolve fatores estruturais,
processuais e comportamentais.
A primeira e a maior delas é falta de estrutura física,
tecnológica e de recursos humanos do Poder Judiciário, que pode
dificultar a tramitação dos processos e aumentar o tempo necessário
para a conclusão de cada fase do processo (BARBOSA, 2010).
Em seguida, vemos o excesso de recursos processuais,
atrasando significativamente o processo (COUTINHO, 2019). A forma
de atuação das partes envolvidas no processo, advogados e membros
do Ministério Público, pode influenciar na demora processual,
especialmente quando há muitas peças processuais apresentadas
por essas partes em caráter protelatório (WAMBIER; TALAMINI,
2018).
Também há a complexidade dos processos, especialmente em
matéria penal, pode gerar uma grande quantidade de documentos
e testemunhos que precisam ser analisados, tornando o processo
naturalmente mais lento (CARVALHO, 2009).
Por fim, a falta de priorização de processos urgentes pode gerar
atrasos na sua tramitação à tempo de dar um desfecho justo para o
caso concreto, especialmente em casos que envolvem pessoas presas
ou que possuem problemas de saúde, por exemplo (BARBOSA, 2010).
Como podemos perceber, a solução atualmente não reside
mais na criação de leis, mas na busca de efetivar a lei que já existe,

- 124 -
“constitui um equívoco constantemente cometido, tanto por
leigos quanto por juristas, imaginar que as alterações legislativas
trazem consigo a solução imediata para os problemas que afligem
a sociedade” (KOEHLER, 2013, p. 211). Então, se faz necessário a
percepção das lições de Flávio Luiz Yarshell (2004, p.28):
Ingenuidade ou desconhecimento supor que problema de
tal complexidade possa ser resolvido com uma penada do
legislador que, por melhor técnica que tivesse (e nem sempre
tem), não seria capaz de, mantidas as condições estruturais do
sistema, alterar a realidade das coisas ‘por decreto’.

Desse modo, consoante Fábio Leopoldino Koehler (2013, p.


212), é evidente que o problema da morosidade não decorre apenas
da deficiência legal, mas em especial dos aspectos materiais.
Portanto, algumas causas da demora são inerentes ao exercício
da defesa e outras devido à complexidade da causa, apesar disso,
analisando as principais causas, é possível delinear fatores concretos
e imediatos que poderão dar celeridade ao processo penal.
Conforme Chinellato e Monteiro (2018), a utilização de
tecnologia para acelerar o processo penal é fundamental, assim a
melhor das soluções reside na aplicação da tecnologia para dar
velocidade de comunicação entre as partes, segurança da informação
jurídica, e velocidade nas intimações dos atos processuais. A
tecnologia tem desempenhado um papel cada vez mais importante na
modernização do sistema judiciário, especialmente no que se refere
à celeridade do processo penal. A utilização de ferramentas digitais
e sistemas informatizados pode ajudar a acelerar a tramitação dos
processos, sem comprometer os direitos das partes e a garantia do
devido processo legal, vimos isso em especial com a necessidade que
o judiciário teve de se modernizar durante a pandemia do COVID-19.
Uma das principais formas pelas quais a tecnologia pode
ajudar a deixar o processo penal mais veloz é a digitalização de
todos os processos e de inquéritos policiais. Com a digitalização, as
informações processuais podem ser armazenadas e compartilhadas
eletronicamente, o que agiliza a tramitação dos processos e evita
o extravio ou a perda de documentos. Além disso, a digitalização

- 125 -
permite que os advogados, juízes e demais operadores do direito
tenham acesso rápido e fácil às informações processuais, o que ajuda
a reduzir os prazos processuais.
Outra forma de utilizar a tecnologia para acelerar o processo
penal é através do uso de plataformas digitais. Essas plataformas
podem ser utilizadas para facilitar a comunicação entre as partes e
os juízes, permitindo a realização de audiências e a prática de atos
processuais à distância, inclusive despachos. Isso ajudará a reduzir o
tempo e os custos com deslocamentos de testemunhas, advogados e
defensores públicos, além de aumentar a eficiência do processo, bem
como possibilitar que os advogados e os defensores públicos possam
ter acesso mais rápido aos acusados.
Sabe-se que há déficit nos profissionais da Defensoria Pública
em muitos estados, sendo assim, o acesso remoto e à distância aos
presídios, possibilitará que os defensores públicos possam ter acesso
a mais réus e reeducandos, dando-os defesa mais eficiente, além
de possibilitar que façam mais audiências e com mais qualidade,
aumentando o número de pessoas beneficiadas pela Defensoria
Pública. É lógico que em diversas situações será mais prudente ir ao
local pessoalmente para atender às necessidades do acusado, mas
na grande maioria das vezes, a tecnologia vai ajudar a proteção dos
direitos fundamentais e talvez dar acesso à advogados e defensores
públicos de pessoas que jamais iriam ter acesso minimamente a uma
defesa digna.
Faria (2019) destaca que o uso de sistemas eletrônicos de
gestão processual pode ajudar a reduzir a demora processual, já
que esses sistemas permitem uma gestão mais eficiente do fluxo de
trabalho, evitando atrasos e retrabalhos. Além disso, a utilização de
inteligência artificial pode ser uma ferramenta importante na análise
de documentos e informações processuais, tornando a pesquisa e a
análise de dados mais rápidas e precisas.
Outra ferramenta tecnológica que deve ser utilizada para
acelerar o processo penal é o sistema de videoconferência. Segundo
Gomes (2019), essa tecnologia permite que as partes participem

- 126 -
de audiências e sessões de julgamento à distância, o que poderá
reduzir o tempo de espera para a realização dessas atividades, além
de possibilitar que advogados atuem inclusive em outros estados
ou tenha acesso mais rápido de acusado que estão distantes de seu
escritório, facilitando o acesso ao corpo jurídico e possibilitando que
mais pessoas tenham acesso ao STJ e ao STF. Além disso, o sistema
de videoconferência também pode ser utilizado para a realização
de interrogatórios, evitando a necessidade de deslocamento de
presos para a realização desses atos processuais, nesse caso, deve se
considerar que, devido à importância do ato, deverá possibilitar que
tal escolha seja feito pelo acusado assistido por seu defensor, a fim
de que seja sempre assegurado o contato humano, pessoal, já que em
diversas situações esse contato pessoal será imprescindível para que
se chegue a um julgamento justo.
Ademais, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça
(CNJ), o uso de tecnologia nos tribunais pode reduzir em até 70%
o tempo de tramitação dos processos. A utilização de sistemas
informatizados que permitem a automação de tarefas repetitivas, a
criação de alertas para o cumprimento de prazos, a distribuição de
processos de forma mais eficiente, entre outras funcionalidades que
podem acelerar o andamento do processo.
Portanto, a utilização de tecnologia é a ferramenta mais
importante para acelerar o processo penal, no entanto, sempre deve
ser tomado o devido cuidado para garantir a segurança, confiabilidade
das informações e de que os juristas sempre sejam os fiscais do uso
da tecnologia, para evitar abusos e cerceamento ao direito de defesa.
Outro ponto que deve ser levado em consideração é o combate
de uma vez por todas da cultura do não-prazo no processo penal
brasileiro que “perfilha o entendimento de que não é necessária
a fixação de prazos rígidos pelo legislador, afirmando que a
razoabilidade da duração do processo deve ser aferida diante do caso
concreto” (LOPES, 2014).
Faz-se imperioso que, em contraposição, seja adotada a
doutrina do prazo fixo e determinado em lei. Essa última, “congrega

- 127 -
aqueles que defendem a necessidade de o legislador estabelecer
prazos fixos para a duração máxima do processo, rejeitando a tese
de que a verificação da duração indevida deve ficar a cargo de juiz
diante do caso concreto” (LOPES, 2014).
Nota-se que a crítica daqueles que se filiam a doutrina do
prazo fixo é justamente com a falta de critérios claros, que definam
de forma objetiva o “que” seria prazo razoável e o “como” ocorreria
a sua violação. A falta dessas definições deixa o réu completamente
à mercê do decisionismo do magistrado. Na vista desse raciocínio,
“assim como o direito penal está estritamente limitado pelo princípio
da legalidade e o procedimento pelas normas que o regulam,
também a duração dos processos deve ser objeto de regulamentação
normativa clara e bem definida” (LOPES JR.; BADARÓ, 2009, p. 84).
De acordo com Daniel R. Pastor (2005), entendido que a
demora processual penal, em si mesmo, já é uma pena para o
acusado, é devido ao respeito ao princípio da nulla poena sine lege
que esse “tempo razoável” dever ser determinado através de uma
lei, de forma objetiva e clara, dando garantia ao réu de que esse
princípio será respeito pelo seu julgador. Só assim se respeita o
Estado Democrático de Direito.
De acordo com Callegari e Zilio (2019), a falta de sanções
efetivas para o descumprimento de prazos é um dos principais
motivos para a inefetividade da medida de estabelecer prazos mais
rígidos para a conclusão de cada fase do processo penal. Embora
a imposição de prazos possa ser uma solução para combater a
morosidade processual, a ausência de consequências concretas para
o seu não cumprimento acaba por não ter o efeito desejado.
Pois bem, o modo mais eficaz de dar eficiência a essa garantia
fundamental é a exclusão da doutrina do não-prazo do ordenamento
jurídico brasileiro, já que ela é a maior causadora da violação ao
princípio da duração razoável do processo. A norma penal não pode
ficar ao arbítrio e discricionariedade de nenhum julgador.
Como defendido por Aury Lopes Jr. (2016), não adianta de
nada o processo penal brasileiro prever em vários artigos (v.g. arts.

- 128 -
400,412, 531, entre outros) diversos limites de duração sobre os atos,
se esses prazos não apresentam sanções. Ou seja, só se cumprirá
eficazmente esses prazos processuais se existirem sanções em caso
de desrespeito.
De acordo com Callegari e Zilio (2019), a falta de sanções
efetivas pode levar à banalização dos prazos estabelecidos, com os
operadores do direito, incluindo juízes e promotores, ignorando a
sua importância. Nesse sentido, é necessário que sejam adotadas
medidas mais severas, como a responsabilização administrativa,
civil e criminal dos responsáveis pelo descumprimento dos prazos,
para que haja uma real mudança de cultura no sistema processual.
Além disso, esses autores, destacam a necessidade de se estabelecer
prazos mais realistas e adequados à complexidade de cada caso,
evitando-se a imposição de prazos impossíveis de serem cumpridos
e, consequentemente, aumentando-se a sua efetividade. Além disso,
é fundamental que haja uma maior transparência e controle dos
prazos pelos órgãos responsáveis, bem como uma conscientização da
importância do cumprimento dos prazos por parte dos profissionais
do direito.
Por fim, não custa ressaltar que, como aponta Aury Lopes Jr.
e Gustavo Badaró (2009), não se pode confundir prescrição com a
doutrina do prazo fixo, porquanto
no Brasil, os prazos previstos para a ocorrência da prescrição
da pretensão punitiva (pela pena aplicada ou in abstrato)
são inadequadas para o objeto em questão, pois excessivos
(principalmente pela pena em abstrato). Ainda que se cogite
de prescrição pela pena aplicada, tal prazo, em regra, está
muito além do que seria uma duração razoável do processo
penal. Devemos considerar ainda, diante da imensa resistência
dos tribunais em reconhecer a prescrição antecipada, que o
imputado terá de suportar toda a longa duração do processo,
para só após o trânsito em julgado, buscar o reconhecimento
da prescrição pela pena concretizada (LOPES JR.; BADARÓ,
2009, p. 85).

Portanto, precisamos agir para mudar o processo penal


brasileiro e torná-lo mais justo. O réu não pode ficar nas mãos de

- 129 -
um controle autoritário do juiz e o respeito ao princípio da duração
razoável do processo é uma das formas de tornar o sistema prisional
mais humano. À guisa de conclusão, percebe-se o absurdo que é a
permanência da doutrina do não-prazo no ordenamento jurídico
brasileiro, bem como que o fator tecnologia é o principal fator para
que o processo penal tenha um prazo razoável ao passo em que se
resguarde sempre os direitos e garantias fundamentais do acusado.

CONCLUSÃO

Após passar por todo o material estudado em função da


elaboração desse trabalho, ficou provado que esse direito é tratado
na legislação brasileira como garantia fundamental e ganha uma
roupagem diferente quando ele é abordado dentro da seara criminal.
É óbvio que em nenhum momento se procurou esgotar o tema, até
porque o direito à duração razoável do processo penal é debatido,
aplicado e interpretado das mais variadas formas possíveis ao redor
do mundo. Na verdade, o cerne do trabalho foi mostrar o que muitos
sabem, mas que é ignorado diariamente por causa da burocracia
e do sistema penal falido que temos. Apesar dessa necessidade
urgente de se ter um processo mais célere, não se pode atender ao
famigerado clamor social, que busca uma punição imediata, sem que
se respeite aos direitos fundamentais necessários para que se tenha
um processo justo. É preciso equilibrar o processo, para que seja
ágil, mas que se dê a possibilidade de que o réu se defenda e tenha
a ampla defesa e o contraditório assegurados. É possível sim que o
Brasil seja um grande protetor da garantia fundamental à duração
razoável do processo. No entanto, primeiramente precisa adotar a
tecnologia como fator preponderante para eliminação da demora
desnecessárias, já que ela permite a automação de tarefas repetitivas,
a criação de alertas para o cumprimento de prazos, a distribuição de
processos de forma mais eficiente, entre outras funcionalidades que
podem acelerar o andamento do processo. Além disso, a utilização
de sistemas informatizados de gestão processual pode reduzir

- 130 -
significativamente o tempo de tramitação dos processos, como
comprovado por dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). A outra
solução apontada é a superação da tão ardilosa e antiga doutrina
do não-prazo. O entendimento é simples, se não existe sanção para
o descumprimento de uma norma, ela continuará a ser violada. Foi
nesse sentido que percebemos a urgência de estabelecimento de
prazos legais com sanções claras e previamente estabelecidas para
todas as partes processuais. A prova de que pode funcionar é que
tivemos a feliz instauração das audiências de custódia como medida
de política administrativa do sistema carcerário. Ela se tornou
um ótimo mecanismo de respeito à duração razoável das prisões
cautelares, o que prova que o Brasil pode se adequar às exigências
constitucionais e convencionais. O dilema é complexo, mesmo
assim foi possível identificar as principais causas e soluções da
demora processual penal, o que nos dá esperança e certeza de que,
se os juristas se unirem, é possível fazer com que o processo penal
seja mais rápido, eficiente e ainda resguarde os direitos e garantias
fundamentais do acusado.

REFERÊNCIAS
BARBOSA, Rui Portanova. Demora processual e efetividade da tutela juris-
dicional. Revista de Processo, São Paulo, v. 188, p. 63-92, out. 2010.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Bra-
sil: promulgada em 5 de Outubro de 1998. Disponível em: < http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm >. Acesso em 14
de abril de 2023.
________. Decreto nº 592, de julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto In-
ternacional sobre Direitos Civis e Políticos. Promulgação. Disponível em:
< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm >.
Acesso em 14 de abril de 2023.
________. Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992. Convenção Americana
sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica). Promulgação no
dia 22 de novembro de 1969. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/decreto/D0678.htm >. Acesso em 14 de abril de 2023.
CALLEGARI, André Luís; ZILIO, Denilson. Estabelecimento de prazos para
conclusão das fases do processo penal: análise à luz da efetividade do di-

- 131 -
reito fundamental à duração razoável do processo. Revista Eletrônica de
Direito Processual, v. 10, n. 1, 2019.
CARVALHO, Salo de. Garantismo processual penal e morosidade da justi-
ça criminal. Revista da Ajuris, Porto Alegre, v. 36, n. 114, p. 219-231, mar.
2009.
CASTRO, Carlos Roberto de Siqueira. O devido processo legal e a razoabili-
dade das leis na nova Constituição do Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 1989.
CHINELLATO, João Vitor; MONTEIRO, Fernando da Silva. A inteligência
artificial como solução para a morosidade do processo penal. Revista Brasi-
leira de Ciências Criminais, v. 139, p. 325-356, 2018.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Tecnologia pode reduzir em até 70%
o tempo de tramitação dos processos. Disponível em: https://www.cnj.jus.
br/tecnologia-pode-reduzir-em-ate-70-o-tempo-de-tramitacao-dos-pro-
cessos/. Acesso em: 29 mar. 2023.
CONVENÇÃO Europeia para Salvaguarda dos Direitos do Homem e das
Liberdades Fundamentais. Adotada em Roma, no dia 4 de novembro de
1950. Disponível em: <https://www.oas.org/es/cidh/expresion/showarticle.
asp?artID=536&lID=4>. Acesso em 14 de abril de 2023.
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Processo penal brasileiro. 8. ed.
rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.
FARIA, Alexandre Santos de. O processo judicial eletrônico e a celeridade
processual: Uma análise da efetividade do PJe. Revista Jurídica Cesumar, v.
19, n. 1, p. 191-208, 2019.
GIACOMOLLI, Nereu José. O Devido Processo Penal. 2.ed. São Paulo: Edi-
tora Atlas S.A., 2015.
GOMES, Luiz Flávio. Novas tecnologias no processo penal. Boletim IBC-
CRIM, São Paulo, v. 27, n. 327, p. 7-8, 2019.
KOEHLER, Frederico Augusto Leopoldino. A razoável duração do processo.
2a ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2013.
LOPES JR., Aury. A (de) mora jurisdicional e o direito de ser julgado em um
prazo razoável no processo penal. Boletim IBCCRIM. São Paulo, v.13, n.152,
p. 4-5, jul. 2005.
________. Direito Processual Penal. 11.ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
________. Direito Processual Penal. 13.ed. São Paulo: Saraiva, 2016. E-book.
________. Direito à duração razoável do processo tem sido ignorado no país.
Disponível em: < http://www.conjur.com.br/2014-jul-25/direito-duracao-
-razoavel-processo-sido-ignorado-pais >. Acesso em 14 de abril de 2023.
________. Introdução Crítica ao Processo Penal (Fundamentos da Instrumen-

- 132 -
talidade Constitucional). 4a ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006.
________; BADARÓ, Gustavo. Direito ao Processo Penal no prazo razoável.
2.ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009.
________; PAIVA, Caio. Audiência de Custódia aponta para evolução civi-
lizatória do processo penal. Disponível em: < http://www.conjur.com.br/
2014-ago-21/aury-lopes-jr-caio-paiva-evolucao-processo-penal >. Acesso
em 14 de abril de 2023.
LOPES, José Domingos Rodrigues. O direito ao processo sem dilações
indevidas no âmbito penal. Disponível em: < https://jus.com.br/arti-
gos/26440/o-direito-ao-processo-sem-dilacoes-indevidas-no-ambito-pe-
nal/3 >. Acesso em 14 de abril de 2023.
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de direito processual (oitava série).
São Paulo: Saraiva, 2004.
NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil
comentado. 16. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribu-
nais, 2016.
NICOLLIT, André. A Duração Razoável do Processo. 2a.ed. rev. e atual. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014.
PASTOR, Daniel R. Acerca del derecho fundamental al plazo razonable de
duración del proceso penal. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais,
ano 13, n. 52, p. 203-249, jan./fev. 2005.
PASTOR, Daniel R. El Plazo Razonable em el processo del Estado de Dere-
cho. Buenos Aires: Editorial Ad Hoc, 2002.
THEODORO JR., Humberto. Curso de Direito Processual Civil: Teoria geral
do direito processual civil e processo de conhecimento. 56. ed. Rio de Janei-
ro: Forense, 2015.
UNIÃO EUROPEIA. Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia de
2000. Disponível em: < https://op.europa.eu/webpub/com/carta-dos-direi-
tos-fundamentais/pt/. >. Acesso em 14 de abril de 2023.
WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de pro-
cesso civil: processo de conhecimento. 16. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2018.
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de
processo civil: tutela de evidência, formação e extinção do processo. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.

- 133 -
2ª PARTE - EIXO
DOGMÁTICO E POLÍTICO
CRIMINAL
ESTUDO CRONOLÓGICO SOBRE
A EVOLUÇÃO DA JUSTIÇA
ELEITORAL E O AVANÇO
DA REPRESENTATIVIDADE
FEMININA PARA QUE
PUDESSEM CONTRIBUIR COM
OS VOTOS
Antônio Ap. Belarmino junior50
Luis Eduardo Belarmino51

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Quando se falava em justiça eleitoral, automaticamente


pensava-se em um tabu, pois havia a Princesa Isabel com o título de
senadora, mas sem nunca ter assumido a cadeira, assim, apenas os
homens podiam fazer parte da política no país, tendo em vista que
os governantes daquela época visavam proteger o lar conjugal e não
podiam instituir tantos poderes às mulheres.

50 Antônio Ap. Belarmino Junior, Advogado, Mestre em Direito Penal e Ciências Criminais pela
Universidade de Sevilha – Espanha, Pós-graduado em Ciências Criminais pela FDRP/USP, Presi-
dente da ABRACRIM – SP (Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas no Estado de São
Paulo), Diretor Nacional de Relações Institucionais da ABRACRIM, Professor de Direito Penal da
Graduação da Faculdade FGP, Professor da Pós-graduação de Direito Penal e Processo Penal do
IEJUR, Coordenador da Pós-graduação de Direito Penal da Faculdade FGP e Professor convidado
da Pós-Graduação em Performance Advocatícia da ESD, autor e coautor de 10 (dez) obras jurídicas
e parecerista do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico.
51 Luis Eduardo Belarmino, Advogado, Pós-graduando em Direito Desportivo pela Universidade
do Minho em Braga, Portugal, Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal pela Legale,
São Paulo, Coautor do Capítulo “Do Princípio do Duplo Fator de Autenticação como validador
de elementos probatórios de natureza digital”, no livro Direito, Cidadania e Aplicação das Leis
Criminais. Diretor do Comitê de Crimes contra a Ordem Econômica da Comissão Estadual dos
Acadêmicos de Direito e Estágio Profissional de São Paulo.

- 137 -
Em que pese destaca-se que a implementação das mulheres ao
pleito eleitoral ocorreu depois de muita luta e interesse, isto apenas
consolidou-se com Getúlio Vargas, quando este resolveu ouvir e
entender o porquê havia a necessidade da participação feminina,
tendo, assim, considerado uma série de pessoas competentes
para tentar instituir melhorias no país. No entanto, vivia-se em
uma sociedade machista e que prezava pelos princípios morais e
religiosos, sendo assim, com o governo Vargas as mulheres foram
ouvidas em apenas duas ocasiões: uma em 1933 e outra em 1934.
Logo após foi instituído o Estado Novo houve a retirada do direito.
Nesse sentido, algumas dúvidas persistem acerca de como a
sociedade se adaptaria caso as mulheres sempre tivessem possuído
os mesmos direitos que os homens da época e não fossem vistas
apenas como mero objeto, que deveria apenas reproduzir e gerar um
novo herdeiro para o seu marido. As pautas deveriam ser estudadas
mais profundamente e abrangidas de formas mais singelas, talvez
se isso tivesse sido feito desde aquele tempo, não teria esse
descaso atualmente com as mulheres, ressaltando-se que há crimes
praticados todos os dias.
Com o avanço da Internet do Brasil a partir de 1995, observamos
que este movimento contínuo ganhou ainda mais impulso com
a pandemia, fazendo com que no Brasil chegasse a marca de 152
milhões de usuários.
Em suma, busca-se entender o que fez os legisladores da época
alterarem os fatos e persistirem em deixar os direitos igualitários,
desta forma, mudou-se a sociedade da água para o vinho e fez com
que a população em si melhorasse como seres humanos e visassem
buscar além dos seus interesses, como também os dos outros.

EVOLUÇÃO DO DIREITO ELEITORAL

Ressalta-se a observância no sistema eleitoral brasileiro após


a independência do Brasil. Portanto, é imprescindível a relação entre

- 138 -
o estado e a teoria democrática visando a igualdade entre os votantes
para escolher quem mais o representa.
Filomeno Moraes (2008, p.178) expõe: “Os frutos advindos das
assembleias constituintes representam contrapontos importantes
aos surtos de autoritarismo que, periodicamente, marcaram a
história político-constitucional brasileira”.
Todavia, existe uma ordem cronológica que está dividida entre
os períodos que a sociedade enfrentou, nos quais se encontram:
Brasil Império, República Velha, Era Vargas, Redemocratização
Política, Ditadura Militar e a Nova República.
No mesmo sentido, Filomeno aduz: “Todos os passos,
insuficientes na verdade, no caminho das liberdades e da democracia,
nos quase 160 anos de país independente, foram dados pelas
constituintes, que legara à sociedade civil as bandeiras, frustradas e
escamoteadas, de sua emancipação”.
Por fim, ressalta-se a importância do direito eleitoral para o
país atualmente, tendo em vista, que a uma vontade dos votantes em
escolher quem os melhores representam.

Brasil Império
A evolução inicia-se após o Brasil se tornar Império no ano
de 1822, quando Dom Pedro, às margens do Rio Ipiranga, proferiu:
“Independência ou morte”. Mas, vigorou durante esse período a
“Monarchico Hereditário, Constitucional e Representativo”, que
estava regulamentado no artigo 3º da Constituição do Império do
Brasil de 1824 e era tratado como uma forma de Estado.
Referente aos sistemas eleitoras, foram delimitadas algumas
disposições legais nesse período, entre elas: a) Lei datada de 26
de março de 1824: Concedia o direito à população para escolher
os Senadores, Deputados e Membros das Assembleias Legislativas
Provinciais (BRASIL, 1824); b) Lei datada de 1º de outubro de 1828:
previa a obrigatoriedade de se convocar eleições municipais para
eleger os vereadores (BRASIL, 1828); c) Decreto nº. 157, de 4 de maio

- 139 -
de 1842: alistamento prévio e a eleição para membros das Mesas
Receptoras, proibindo o voto por procuração (BRASIL, 1842); d)
Lei nº 387, de 19 de agosto de 1846: regulou o processo eleitoral de
Senadores, Deputados, membros das Assembleias Provinciais, Juízes
de Paz e Câmaras Municipais (BRASIL, 1846); e) Decreto n.º 842,
de 19 de setembro de 1855 ou Lei dos Círculos: determinou que as
províncias fossem divididas em distritos eleitorais, nos quais haveria
um deputado por distrito (BRASIL, 1955); f) Decreto nº. 2.675, de 20
de outubro de 1875 ou Lei do Terço: criou o título de eleitor (BRASIL,
1875); g) Decreto nº. 3.029, de 09 de janeiro de 1881 ou Lei Saraiva:
previu as eleições diretas e instituiu o voto secreto (BRASIL, 1881).
Esta constituição outorgada visava a escolha de representantes
para o poder legislativo e executivo. Sendo assim, apenas eram
considerados eleitos aptos aqueles que pertenciam ao sexo
masculino e possuíam no mínimo 25 anos de idade. No entanto, os
casados, clérigos, militares e os bacharéis formados não estavam no
rol da idade.
Além disso, havia o voto censitário, no qual os cidadãos só
poderiam votar caso tivessem comprovado uma renda mínima
decorrente de empregos, comércios, indústrias ou se fossem donos
de grandes propriedades de terra. Nesse mesmo sentido, apenas o
alto escalação escolhia os representantes que iriam governar para os
menores, uma vez que se tratava de uma sociedade escravista.
Assim, Castellucci (2014, p. 15) explica: “Dos votantes uma
renda anual de cem mil-réis, e dos eleitores, de duzentos mil-réis.
Com a reforma eleitoral de 1846, esses valores foram duplicados,
mas, como veremos, eles não eram suficientemente elevados a
ponto de impedir a qualificação de pessoas relativamente pobres
que aspirassem direitos de cidadania. Além disso, tais rendas
poderiam ser apenas declaradas, dispensando-se ou sendo flexível
sua comprovação. Como demonstraremos mais adiante, até 1881, as
listas de votantes estão repletas de membros das classes operárias em
geral e dos trabalhadores de ofício em particular, mais qualificados e
melhor remunerados.”

- 140 -
Acontece que os aptos a votarem não escolhiam diretamente
os representantes, pois ocorria a divisão dos votos entre eleitores de
paróquia e os eleitores de províncias. Essa distinção era por causa da
renda anual mínima, sendo que o primeiro equivalia a 100 mil réis
para votar nos eleitores de província e os que comprovavam uma
renda maior que 200 mil réis votavam nos candidatos que buscavam
uma vaga de Deputado e Senador.
Joel. J Cândido (2006, p.27.), ensina que: “Dispôs sobre eleições
indiretas para deputados e senadores para a Assembleia Geral e
Conselhos Gerais das Províncias; sobre quem podia, ou não, votar
nas Assembleias Paroquiais e sobre quem era elegível, legando à “lei
regularmente” a missão de marcar o “modo prático das eleições e o
número de deputados relativamente à população do Império.”
No entanto, para se candidatar a deputado, deveria comprovar
que a sua renda anual mínima era de 400 mil réis; para senador,
por sua vez, havia necessidade de 800 mil réis anuais. Portanto,
os principais cargos eram ocupados por quem possuía os maiores
poderes aquisitivos daquela época.
Por fim, a Lei Áurea colocou um ponto final entre a elite do
café e o império, sendo assim, rompe-se com o governo e após esse
ato a monarquia se enfraquece, tornando-se alvo dos militares, os
quais proclamaram a República em 15 de novembro de 1889.
Assim Filomeno (2008, p.179): “Com a instalação da República
em 1889, era o momento de adequar as leis eleitorais à nova forma
de governo. Assim, as primeiras providências foram no sentido de
revogar a Lei Saraiva e de elaborar nova normatividade, que pudesse,
principalmente, garantir eleições de líderes da nova forma de
governo”.

Princesa Isabel como Senadora


Há uma controversa quando se cita que a participação das
mulheres na política apenas veio com Getúlio Vargas, tendo em vista
que a Princesa Isabel é considerada a primeira senadora da história
do País, sendo que esse direito estava previsto na Constituição

- 141 -
Federal da época, vejamos: “Art. 46. Os príncipes da Casa Imperial são
senadores por direito, e terão assento no Senado, logo que chegarem à
idade de vinte e cinco anos”
Instaurado em 1826, o Senado veio com a proposta de que os
senadores seriam vitalícios, sendo assim, o número estava interligado
com os de deputados por província, tendo por base que a cada
dois deputados deveria ter um senador, porém caso esta província
tivesse um deputado, automaticamente, deveria ter um senador.
As listas eram compostas por tríplices e era enviada pela província
ou imperador, sendo que este escolhia quem iria compor a mesa na
Câmara do Senado.” A primeira composição do Senado, (você não
acha que dá para tirar isso ou mudar sua frase ali em cima? Ficou
repetido) contou com membros da nobreza, da magistratura e do
clero. Eram 50 senadores, sendo 23 barões, viscondes ou marqueses;
nove juízes; sete membros da Igreja Católica; quatro do Exército;
além de dois médicos, um advogado e quatro proprietários de terra
(Senado Federal)”.
Por outro lado, o país elegeu a primeira Senadora mulher
apenas em 1979, que era Eunice Michiles e representava o estado do
Amazonas. Ela rompeu a mística de que só homens conseguiam ser
eleitos para compor o senado.
Todavia, os homens não viram como um problema a vitória
no pleito desta mulher e sim com empolgação e entusiasmo, sendo
presenteada e tendo discursos motivacionais que pudessem perceber
a evolução dentre os anos.
O senador Dirceu Cardoso (MDB-ES) discursou no Senado: “Foi
por causa das mulheres guerreiras que galopavam nos seus árdegos
cavalos que se deu ao rio o nome de Amazonas. Tinha, portanto, que
ser da Amazônia a nossa primeira senadora, essa mulher que, como
a estrela nova, desce neste Plenário e asperge luz sobre todos nós.
Saúdo Vossa Excelência como representante da mulher brasileira,
como representante da minha esposa e das minhas filhas. É um
Brasil novo que está nascendo”.

- 142 -
O senador José Lins (Arena-CE) em pleno Senado Federal
gostou das palavras do colega: “Vossa Excelência, o seu discurso
é o buquê de flores que nos faltava para receber adequadamente a
senadora Eunice Michiles”.
Ademais, suas primeiras ideias consistiam em aumentar os
direitos pertencentes as mulheres, contudo refutadas pela sociedade
machista daquela época, como por exemplo sua sugestão de retirar
do Código Civil de 1916 a possibilidade de devolução da noiva caso o
marido descobrisse que esta não seria mais virgem.
Os mandatos eram de oito anos e as opiniões de Eunice sempre
eram barradas ou mal-recebidas pelos políticos da época, sendo que
todas as propostas que vieram a ser aprovadas pelos senadores eram
derrubadas pelos deputados. Por mais popular que fosse, Eunice não
conseguiu aumentar o direito feminino de primeira, porque vivia em
uma sociedade que fora ensinada a ser machista e conviver com o
que estava adaptado e ensinado desde pequeno.
Apesar disso, em pleno Senado, ocorreu a argumentação “Há
quem considere que a princesa Isabel tenha sido a primeira senadora
do Brasil. De fato, a Constituição do Império previa que os príncipes
eram “senadores por direito”. Isabel, no entanto, nunca chegou a
tomar posse no Senado nem a participar de debates ou votações —
“senadora” foi apenas um título.
Por fim, discorre-se a possibilidade de a princesa Isabel ser
considerada a primeira senadora, mas, quem de fato realmente
tomou posse e deu ensejo ao grande avanço feminino na política foi
Eunice, que abriu portas para que atualmente as mulheres tivessem
grande representatividade dentro das casas políticas.

República Velha
Após o golpe militar, em 1981 foi promulgada a primeira
Constituição do Brasil da era republicana, que tinha como pilar a
separação entre os Estados e a Igreja. O país até então estava sendo
direcionado pela Carta Magna de 1824 e necessitava da criação de
uma outra que se adaptasse conforme a atualidade.

- 143 -
Desse jeito, escolheu-se uma Assembleia Legislativa
composta por Rui Barbosa e Prudente de Morais, que dentro de três
meses elaboraram singelamente a Constituição. Tinha como ponto
principal a federalização dos Estados e a descentralização do poder.
Desse modo (NICOLAU, 1986, p. 27) afirmou: “Cada estado
tinha autonomia para organizar o processo eleitoral para escolha
de governadores e representantes das assembleias legislativas, bem
como para, em suas constituições, estabelecer as regras para as
escolhas dos representantes políticos municipais”.
Não obstante, a nova Constituição alterou os modos de
votação, e o direito ao voto era concedido aos homens que possuíam
a maioridade de 21 anos, mas as mulheres e os analfabetos
continuavam proibidos e descartados, além de que o voto continuava
secreto.
O problema é que essas alterações deveriam aumentar os
eleitores, porém havia imposto o critério da leitura e da escrita, logo,
os números foram caindo e isso facilitava a vida de quem queria se
manter no poder.
Nesse mesmo aspecto, Joel J. Cândido (2006, p.28) aduz:
“Esta primeira Constituição do período republicano previu eleições
por “sufrágio direto da nação e maioria absoluta de votos” para
Presidente e Vice-Presidente da República. Exigia maioria absoluta
entre os votados; isso não ocorrendo, o Congresso elegia um entre
os dois mais votados, por maioria dos votos dos presentes. Previu,
também, inelegibilidades para os cargos de Presidente e Vice-
Presidente da República, deixando para a lei ordinária o processo de
eleição e de apuração (art.47)”.
Este período teve diversos contratempos, principalmente após
insatisfações do demais estados federativos, mas, o eixo principal
foi a fraude nas eleições de 1930 envolvendo Júlio Prestes, que, ao
ser eleito, não assumiu o cargo, pois o grupo composto pelas elites
mineira, gaúcha e paraibana, que eram denominadas de Aliança
Liberal, recusaram-se a validar o resultado da eleição. Dessa maneira,
o exército adentrou no poder e expulsou as oligarquias cafeeiras.

- 144 -
A Revolução marcou o fim da Primeira República brasileira
e deu início a um novo período na história política do Brasil,
marcado pela ascensão de Getúlio Vargas ao poder e por profundas
transformações econômicas e sociais.

Era Vargas
Após as fraudes na eleição, Getúlio Vargas assumiu o país,
que se encontrava desacreditado do sistema eleitoral, por isto, em
seu governo visou recuperar a moral das eleições e introduziu coisas
jamais vistas anteriormente.
Em um primeiro momento, criou-se as comissões de reforma
da legislação eleitoral, sendo assim, originou-se o primeiro Código
Eleitoral do Brasil, no ano de 1932. Todavia, com este código houve
a criação da Justiça Eleitoral, que fora designada para cuidar de
tudo que envolvia os trabalhos eleitorais, e iniciou-se no Brasil as
primeiras eleições federais, estaduais e as municipais.
Segundo Joel Cândido (2006, p.28): “Esta Carta teve o grande
mérito de criar, no seio da Constituição- porquanto já havia sido
criada pelo Código Eleitoral (Decreto nº21.076, de 24.2.1932) - a
Justiça Eleitoral como órgão do Poder Judiciário (art. 63, d). Atribui
jurisdição eleitoral plena aos juízes vitalícios, na forma da lei
(art.82§7º). Estabeleceu a competência privativa da Justiça Eleitoral
para o processo das eleições privativa da Justiça Eleitoral para o
processo das eleições federais, estaduais e municiais, inclusive a dos
representantes das profissões (art.83, caput) competência essa que
ia desde organizar a divisão eleitoral do país até o poder de decretar
a perda do mandato legislativo, passando pela competência para
processar e julgar os delitos eleitorais e os comuns que lhes fossem
conexos.”
Ademais, ocasionou-se outras implantações, tais como o voto
secreto, o voto feminino que até então não existia e o sistema de
representação proporcional, o qual seria em dois turnos simultâneos.
No entanto, por mais que houvesse a regulamentação do
voto feminino no código de 1932, este só foi validado em 1933 pela

- 145 -
Assembleia Constituinte, sendo esta que assegurou o direito na lei
máxima desse país, tornando-se este o pioneiro.
Tendo em vista a introdução do voto feminino no código
eleitoral, a primeira mulher a ter o assento garantido trata-se da
médica Carlota Pereira de Queirós, que fora eleita deputada federal
logo após a revolução de 1932. Após três meses ocorreu a promulgação
da Constituição de 1934, momento no qual fora reeleita.
Após vencer ao cargo de deputada federal, esta proferiu: Além
de representante feminina, única nesta Assembléia, sou, como todos
os que aqui se encontram, uma brasileira, integrada nos destinos
do seu país e identificada para sempre com os seus problemas. (…)
Acolhe-nos, sempre, um ambiente amigo. Esta é a impressão que
me deixa o convívio desta Casa. Nem um só momento me senti
na presença de adversários. Porque nós, mulheres, precisamos
ter sempre em mente que foi por decisão dos homens que nos foi
concedido o direito de voto. E, se assim nos tratam eles hoje, é
porque a mulher brasileira já demonstrou o quanto vale e o que é
capaz de fazer pela sua gente. Num momento como este, em que
se trata de refazer o arcabouço das nossas leis, era justo, portanto,
que ela também fosse chamada a colaborar. (…) Quem observar a
evolução da mulher na vida, não deixará por certo de compreender
esta conquista, resultante da grande evolução industrial que
se operou no mundo e que já repercutiu no nosso país. Não há
muitos anos, o lar era a unidade produtora da sociedade. Tudo se
fabricava ali: o açúcar, o azeite, a farinha, o pão, o tecido. E, como
única operária, a mulher nele imperava, empregando todas as suas
atividades. Mas, as condições de vida mudaram. As máquinas, a
eletricidade, substituindo o trabalho do homem, deram novo aspecto
à vida. As condições financeiras da família exigiram da mulher nova
adaptação. Através do funcionalismo e da indústria, ela passou a
colaborar na esfera econômica. E, o resultado dessa mudança, foi
a necessidade que ela sentiu de uma educação mais completa. As
moças passaram a estudar nas mesmas escolas que os rapazes, para
obter as mesmas oportunidades na vida. E assim foi que ingressaram
nas carreiras liberais. Essa nova situação despertou-lhes o interesse

- 146 -
pelas questões políticas e administrativas, pelas questões sociais. O
lugar que ocupo neste momento nada mais significa, portanto, do
que o fruto dessa evolução (TSE/RS).
Após o sucesso em eleger a primeira mulher, Cândido Pessoa
acaba falecendo durante a sua legislatura e passa seu lugar a Bertha
Luz, no entanto, sobrevém-se que Getúlio Vargas fecha o Congresso
e instaura o Estado Novo.

Estado Novo
Com a instauração do Estado Novo, acabou-se por extinguir
a Justiça Eleitoral, sendo que desta forma foram abolidos todos os
partidos políticos que existiam, além de suspender as eleições que
eram consideras livres e estabelecer uma eleição indireta na qual o
presidente da república era o indicado e teria um mandato de seis
anos.
Esse Estado sofreu represália dos estudantes, religiosos e dos
empresários, razão pela qual, no ano de 1945, Getúlio Vargas opta
por anunciar as eleições gerais e lança o seu candidato. Já no ano de
1945 acontece o golpe.

PRINCÍPIOS ELEITORAIS

A luz da constituição há o dever de cumprir o que está


regulamentado na Lei, principalmente para conseguir viver com
harmonia na sociedade, tem-se que a justiça eleitoral foi diversificada
ao longo dos anos, até que na Constituição Federal de 1988
determinou-se definitivamente como iria reger o direito ao voto.
Entende-se, na lição doutrinária de Miguel Reale (1986. p 60).
“Princípios são, pois verdades ou juízos fundamentais, que servem de
alicerce ou de garantia de certeza a um conjunto de juízos, ordenados
em um sistema de conceitos relativos à dada porção da realidade.
Às vezes também se denominam princípios certas proposições, que
apesar de não serem evidentes ou resultantes de evidências, são
- 147 -
assumidas como fundantes da validez de um sistema particular de
conhecimentos, como seus pressupostos necessários”.
Consequentemente a justiça eleitoral redigiu e os criou
visando definir amplamente e claramente os métodos legais a serem
seguidos para que se possa ter discernimento. São eles:

Princípio da democracia
Exsurge como norteador este princípio, principalmente após
as declarações dos Direitos do Homem no ano de 1948 juntamente
com o pacto internacional sobre o direito civil e político em 1966,
que regulamentaram o nível de importância que o princípio da
democracia deveria ter, sendo assim, foi elevado a um status de
direito humano. Segundo Kelsen (2003, p. 406):Politicamente livre
é quem está sujeito a uma ordem jurídica de cuja criação participa.
Um indivíduo é livre se o que ele deve fazer segundo a ordem social
coincide com o que ele quer fazer. Democracia significa que a vontade
representada na ordem jurídica do Estado é idêntica à vontade dos
sujeitos.
Ademais, a oportunidade de todos terem acesso para
escolher os seus representantes adveio depois de muito esforço e
inseguranças da justiça eleitoral, uma vez que esta nunca foi fixa, ela
foi se modificando juntamente com os políticos e a cultura da época,
como por exemplo teve-se um momento no qual o voto feminino era
proibido.

Princípio federativo
Impende ressaltar que este princípio materializa a união dos
Estados autônomos que irão constituir juntos uma forma de estado
sob o manto da Constituição (art. 1º, caput, CF)52.
Para Pedro Nunes a federação é a “união de várias províncias,
Estados particulares ou unidades federadas, independentes entre

52 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Mu-
nicípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como funda-
mentos:

- 148 -
si, mas apenas autônomas quanto aos seus interesses privados,
que formam um só corpo político ou Estado coletivo, onde reside a
soberania, e a cujo poder ou governo eles se submetem, nas relações
recíprocas de uns e outros.”
No contexto da justiça eleitoral, percebe-se que há um retrato,
pois há uma efetiva ligação entre a União e os Estados para obter-se
êxito no funcionamento da justiça eleitoral. Alguns doutrinadores
alegam que a justiça eleitoral é separada em três instâncias, sendo
que a segunda julga o recurso da primeira e a terceira julga os recursos
da segunda, além de que teria uma formação híbrida, podendo ser
composta por juízes e advogados.

Princípio da lisura das eleições


Esse princípio deverá ser observado por todos os entes que
participam da justiça eleitoral, tais como o Ministério Público, os
partidos políticos ou os candidatos, uma vez que, espera-se uma
conduta íntegra dos participantes, de modo que não haja ilícito. Na
prática há notoriedade quanto ao descumprimento desse princípio,
mas, tende a dar uma melhorada após a adição de um meio de
cassação do mandato, que é o das fakes News.
Em tese, dever-se-ia cumprir o estabelecido pela Lei
Complementar nº 64 de 1990, que transcreve em seu art. 23: “o Tribunal
formará a sua convicção pela livre apreciação dos fatos públicos e
notórios, dos indícios e das presunções e prova produzida, atentando
para as circunstâncias ou fatos, ainda que não alegados pelas partes,
mas que preservem o interesse público da lisura eleitoral.”
Aliado ao ensinamento que todo o poder emana do povo
(Constituição Federal, art. 1º, parágrafo único), sabe-se também
que o país adotou o sistema democrático de direito após várias
alterações, motivo pelo qual deverá ser respeitado o interesse da
maioria. Destarte, caso haja um descumprimento legal, os entes
competentes deverão punir os infratores.
Aduz a Constituição Federal de 1988, em seu art. 14, §9 regula:
“Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os

- 149 -
prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa,
a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida
pregressa do candidato, a moralidade e a legitimidade das eleições
contra influência de poder econômico ou abuso do exercício de
função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.”
As autoridades eleitorais devem tomar medidas para garantir
que as pessoas com deficiência possam exercer seu direito ao voto de
maneira adequada e sem barreiras. Isso pode incluir a adaptação de
locais de votação para facilitar o acesso de pessoas com mobilidade
reduzida, a disponibilização de materiais em formatos acessíveis
para pessoas com deficiência visual ou auditiva, e outras medidas
que visem garantir a inclusão dessas pessoas no processo eleitoral.
Essa disposição é uma garantia constitucional que busca
promover a igualdade de oportunidades e o pleno exercício da
cidadania por todas as pessoas, independentemente de suas
condições físicas ou mentais.

Princípio da celeridade
Trazido pelo art. 257, do Código Eleitoral, o princípio da
celeridade rege a atuação do poder judiciário, ao induzir que a
justiça deverá responder rapidamente sobre os atos que possa haver
discórdia quanto as Leis ou os princípios regidos pelos Códigos e
Constituição.

GETÚLIO VARGAS INSTAURA O DIREITO AO


VOTO FEMININO

Reitera-se que as épocas no país em que não havia nada


definido, de tempos em tempos ocorria algum fato novo e que
muda todo o ramo e ensino persistente naquele período. Aqui não
foi diferente, em outubro 1930 um Advogado denominado como
Getúlio Vargas opta por aplicar uma revolução, destituindo o então
presidente Washington Luís.

- 150 -
Frise-se que anteriormente o direito das mulheres ao voto não
existia, portanto, nenhuma delas podia sequer participar da política.
Acontece que, após a revolução, o cenário político ficou incerto, pois
não se sabiam as decisões que seriam impetradas pelo grupo político.
Sendo assim, após o governante Getúlio Vargas mostrar que
pretendia realizar eleições para o poder legislativo, as feministas
da Federação Brasileira Pelo Progresso Feminino, juntamente
com outros, procuraram o presidente e debateram a possibilidade
da participação feminina nas eleições de modo amplo, segundo
(Marques. 2019): “Em junho de 1931, Vargas recebeu as delegadas do
Segundo Congresso Internacional Feminista no Palácio do Catete e
manifestou simpatia à causa. Segundo o chefe do governo provisório,
o país estava preparado para o acolhimento dessas ideias, visto que
elas não contrariavam a tradição da família brasileira).”
Nesse sentido, Vargas constituiu a medida de criar uma
comissão apenas com juristas visando reformar o sistema eleitoral
por completo. Após as reuniões nas comissões, ficou determinado a
presença das mulheres nas eleições, mas, havia ressalvas, tais como:
só poderiam votar as viúvas ou solteiras com a sua renda própria. Por
outro lado, as casadas, por mais que possuíssem sua renda própria,
necessitavam da permissão do marido. O governo implicou essas
medidas, pois prezava as relações familiares e não pretendiam tirar
o comando da residência dos homens.
Filomeno (2008, p.182) alega: “O significado de Código
Eleitoral, no que se refere ao processo de reconstitucionalização,
foi enfatizado por Getúlio Vargas em discurso na sessão solene
de abertura da Assembleia Nacional Constituinte, ao afirmar que
a reforma eleitoral foi compromisso de candidato e “imposição
inadiável ao assumir a chefia do governo revolucionário.”
No entanto, essas restrições não foram bem aceitas pelas
mulheres e após os apelos realizados à Vargas, este de forma pessoal
revisou todo o texto da comissão e o decreto do que seria o novo
Código Eleitoral. Sem embargo, Getúlio entendeu que não havia
motivos para tais restrições e acolheu a permissão do voto feminino

- 151 -
sem limitações, sendo assim, os religiosos integrantes de ordens e
freiras passavam a participar da política, pois em 1891 fora negado
na Constituição.

As primeiras interessadas ao pleito


Após Vargas constituir e permitir a presença das mulheres
na política, houve início a corrida referente a campanha eleitoral,
sendo que em 1933 ocorreu a Assembleia Constituinte. Bertha Lutz
visou imediatamente um vaga para deputada e se filiou ao Partido
Autonomista, então, suas associadas começaram a propagar a
campanha.
Dessa maneira, várias mulheres foram se candidatando,
tais como Leolinda Daltro, Natércia da Silveira, Bertha Lutz, Ilka
Labarte, Georgina Azevedo Lima, Tereza Rabelo de Macedo e Julita
Soares da Gama. Das participantes, o maior número de votos foi para
Bertha Lutz, com uma quantidade de 16.423 votos, entretanto, não
conseguiu assegurar uma cadeira e ficou de suplente.
Com o avanço da participação popular nas eleições, ocorreu o
crescimento, Segundo Carvalho, 2002, p.146): “Em 1930, os votantes
não passavam de 5,6% da população. Na eleição presidencial de
1945, chegaram a 13,4%, ultrapassando, pela primeira vez, os dados
de 1872. Em 1950, já foram 15,9%, e em 1960, 18%. Em números
absolutos, os votantes pularam de 1,8 milhão em 1930 para 12,5
milhões em 1960. Nas eleições legislativas de 1962, as últimas
eleições antes do golpe de 1964, votaram 14,7 milhões.”
O crescimento feminino na política é extremamente
importante por várias razões. Em primeiro lugar, as mulheres são
mais de 50% da população e, portanto, é fundamental que elas
estejam representadas nas decisões políticas que afetam suas vidas.
Quando as mulheres são sub-representadas na política, suas vozes e
necessidades muitas vezes são ignoradas ou não consideradas, o que
pode levar a políticas públicas inadequadas ou injustas.
Além disso, a diversidade de gênero na política pode trazer
perspectivas e soluções diferentes para questões políticas e sociais.

- 152 -
As mulheres trazem suas experiências, pontos de vista e prioridades
únicas para o processo político, o que pode levar a uma política mais
inclusiva e justa para todas as pessoas.
A representação feminina na política também serve como
um modelo para as gerações mais jovens, mostrando às meninas e
mulheres que elas também podem ocupar cargos políticos e liderar
em suas comunidades. Isso pode ajudar a aumentar a autoestima,
confiança e aspirações de jovens mulheres e meninas, e inspirá-las a
buscar seus objetivos e sonhos.
Por fim, o aumento da representação feminina na política
pode levar a mudanças mais amplas na sociedade, à medida que
as políticas e práticas se tornam mais sensíveis ao gênero e à
diversidade. Quando as mulheres estão envolvidas em decisões
políticas, elas podem ajudar a garantir que as questões de gênero
sejam consideradas em todas as esferas da sociedade, desde a saúde
até a educação, trabalho e justiça social. Isso pode levar a uma
sociedade mais justa e igualitária para todas as pessoas.

Carlota Pereira de Queirós


Eleita como primeira deputada, Carlota Pereira de Queirós
nasceu em 1892 em São Paulo e se formou em medicina pela USP,
por sua competência e inteligência foi comissionada pelo governo
de São Paulo para estudar sobre Dialética Infantil em um dos centros
médicos que havia na Europa.
Carlota, ao largar o laboratório, assume após organizar e juntar
mais de 700 mulheres a assistência aos feridos. Por ser atenciosa e
muito dedicada nas suas atividades, a sociedade fora vendo suas
competências e com isso ganhou notoriedade. No ano seguinte, em
1933, haveria eleições e ao se candidatar, obteve a quantidade de 176
mil votos, sendo assim, tornou-se a primeira mulher a ocupar uma
cadeira na Câmara dos Deputados. A sua passagem como deputada
durou cerca de três anos, tendo em vista a instauração do Estado Novo.
Sabe-se que Bertha fora a primeira mulher a se candidatar ao
pleito, mas sem êxito em ocupar a cadeira, acontece que Camila já o

- 153 -
conhecia, por ter estudado com seu irmão na faculdade de medicina.
Por serem minoria, esperava-se que as duas pudessem se juntar e
declarar apoio nas mesmas ideias, mas, foi totalmente ao contrário,
primeiro que Carlota era contra o então presidente Getúlio Vargas;
por outro lado, divergiam sobre a saúde pública, tendo em vista que
Bertha defendia a centralização da saúde, sendo assim, apenas um
ente estaria responsável, contudo, Carlota apoiava que os Estados
pudessem administrar a saúde.
Ainda assim, os fatos incontroversos aumentaram e as
discórdias também, principalmente nas ideias de cidadania. Em
diversos aspectos uma contrariava a outra, percebia-se que não iria
haver uma união das duas para decidirem juntas o principal fato da
época, que seria a consolidação do direito da participação feminina
na política.
Uma das divergências tratava-se do próprio voto, Carlota
defendia a necessidade de alistamento tanto para os homens
como para as mulheres, sendo assim regulamentado no art. 109:
O alistamento e o voto são obrigatórios para os homens e para as
mulheres, quando estas exerçam função pública remunerada, sob as
sanções e salvas as exceções que a lei determinar. (BRASIL, 1934)”
No ano de 1934 ocorreu outra eleição na qual Carlota
novamente concorreu ao pleito e ganhou, por sua vez, Bertha ficou
de novo na lista de suplente, contudo, o titular da cadeira veio a
falecer e por isso assumiu a cadeira. Durante o seu segundo mandato
Carlota integrou a comissão de Saúde Pública.
Ademais, o voto em si das mulheres podia ser considerado como
ineficaz, tendo em vista que as expressões foram permitidas apenas
em duas situações específicas: uma em 1933 e a outra em 1934; fora
isto não havia manifestações quanto as suas ideias. O lado positivo é
que a sociedade visualizou as duas no poder e assim houve diversas
candidaturas femininas e o número de cadeiras foi aumentando
conforme suas vitórias, por mais brando que fosse o sistema.
No ano de 1945 a era Getúlio Vargas acaba e o país retorna
ao posto de democracia, que por sua vez regulamentou: “Art. 133. O

- 154 -
alistamento e o voto são obrigatórios para os brasileiros de ambos os
sexos, salvo as exceções previstas em lei. (BRASIL, 1946)”

A REPRESENTATIVIDADE FEMININA NA
POLÍTICA

Antes de adentrar na análise da porcentagem de


representatividade feminina, observa-se a necessidade de fazer um
adendo no qual esse ano celebra-se os 90 anos em que o Código
Eleitoral permitiu as mulheres o direito do voto.
Com efeito, pode-se afirmar que essa importância decorre
das lutas femininas diretas e consistentes em anos anteriores que
mostravam a importância das pautas e do direito ao voto visando
restaurar e apoiar igualitariamente as premissas realizadas pelos
constituintes.
Depois de muita batalha e sofrimento, as mulheres passaram
a ser vistas com igualdade, as premissas do Código Civil de 1916
foram revogadas com a instituição do código de 2002, que retiravam
as ideias bruscas e adaptava conforme a sociedade estava vivendo.
Atualmente, as mulheres comportam um total de 52,49% de quem
estão aptos ao voto e ocupam o 3º lugar na América Latina quanto a
sua representatividade.
Como já mencionado, o avanço feminino pelo interesse da
política fez com que os governantes visassem alterar e adicionar
algumas legislações que protegiam e aumentavam a possibilidade
do ingresso feminino, tais como: Lei 13.086 de 08 de janeiro de
2015 – “Institui no Calendário Oficial do Governo Federal, o Dia da
Conquista do Voto Feminino no Brasil”; Emenda Constitucional n.
97 de 04 de outubro de 2017 – “Estabelece normas sobre acesso dos
partidos políticos aos recursos do Fundo Partidário – Cota de 30%
para Mulheres”; Portaria n. 791 de 10 de outubro de 2019 – “Institui
a Comissão Gestora de Política de Gênero do Tribunal superior
Eleitoral (TSE), vinculada à presidência da república.

- 155 -
Essas leis são importantes para garantir que as mulheres
tenham mais oportunidades de participação política e para
incentivar a igualdade de gênero nos cargos de poder. Além disso,
o cumprimento dessas leis é fundamental para garantir que a
representação feminina na política seja efetiva e significativa.

CONCLUSÃO

Em razão de todo o exposto, é possível concluir que o


sistema eleitoral está definitivamente consolidado no que tange
a quem poderá votar ou participar do pleito, tendo em vista que a
Constituição optou, juntamente com o Código, em proteger esses
direitos, inclusive tornando-os Cláusula Pétrea. Ademais, expõe-se
a democracia é o interesse da sociedade em eleger quem realmente
defende as suas ideias.
Nesse sentido, vale frisar que os interesses femininos
naqueles tempos contribuíram para o sistema eleitoral atualmente,
com batalhas e foco nas ideias que deveriam ser debatidas, mesmo
com todas as represálias existentes, nunca deixaram de expor a
importância da participação da mulher na política, razão pela
qual conseguiram convencer Getúlio Vargas que possuía um jeito
totalitarista e concedeu o direito a todas.
Portanto, entende-se que as lutas diárias referentes a esse
direito foram predeterminantes para que houvesse um entendimento
social como nos dias atuais, como exposto acima, hoje as mulheres
contam com mais de 50% de aptidão para votar ou participar do pleito
eleitoral, algo que há mais de 100 anos não poderia nem ser pensado,
pois os governantes nem cogitam a ideia e visualizavam uma luta
fraca e sem interesse das classes femininas e até mesmo religiosos,
sendo assim, após as diversas conversas, houve a concessão desse
direito que persistirá.

- 156 -
REFERÊNCIAS
BRASIL. Decreto de 26 de março de 1824. Manda proceder a eleição dos
Deputados e Senadores da Assembleia Geral Legislativa e dos Membros dos
Conselhos Gerais das Províncias-Disponível: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm. Acesso em: 20 jun. 2022.
BRASIL. Lei de 1º de outubro de 1828. Dá nova forma às Câmaras Munici-
pais, marca suas atribuições, e o processo para a sua eleição, e dos Juízes de
Paz. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-1-
10-1828.htm. Acesso em: 20 jun. 2022.
BRASIL. Decreto nº 157, de 4 de maio de 1842. Dá instruções sobre a ma-
neira de se proceder às Eleições Gerais, e Provinciais. Disponível em: <.
https://legis.senado.leg.br/norma/386137/publicação/15633544>. Acesso
em: 21 jun. 2022.
BRASIL. Lei nº 387, de 19 de agosto de 1846. Regula a maneira de proce-
der às Eleições de Senadores, Deputados, Membros das Assembleias Pro-
vinciais, Juízes de Paz e Câmaras Municipais. Disponível em: <. https://
legislacao.presidencia.gov.br/atos/?tipo=LIM&numero=387&ano=1846&a-
to=8df0TPB9ENFRVT97d#:~:text=REGULA%20A%20MANEIRA%20DE%20
PROCEDER,DE%20PAZ%2C%20E%20CAMARAS%20MUNICIPAES>. Acesso
em: 22 jun. 2022.
BRASIL. Decreto nº 842, de 19 de setembro de 1855. Altera a Lei de 19 de
agosto de 1846. Disponível em: <. https://www2.camara.leg.br/legin/fed/
decret/1824-1899/decreto-842-19-setembro-1855-558297-publicacaoori-
ginal-79444-pl.html>. Acesso em 20 jun. 2022.
BRASIL. Decreto nº 2.675, de 20 de outubro de 1875. Reforma a legislação
eleitoral. Disponível em: <. https://www2.camara.leg.br/legin/fed/de-
cret/1824-1899/decreto-2675-20-outubro-1875-549763-publicacaoorigi-
nal-65281-pl.html>. Acesso em: 20 jun. 2022.
BRASIL. Decreto nº 3.029, de 9 de janeiro de 1881. Reforma a legislação
eleitoral. Disponível em: <. https://www2.camara.leg.br/legin/fed/de-
cret/1824-1899/decreto-3029-9-janeiro-1881-546079-publicacaooriginal-
-59786-pl.html>. Acesso em: 20 jun. 2022.
CAMARA, Legislativa. Voto feminino no Brasil. Câmara Legislativa. Brasí-
lia. Disponível em: https://www.camara.leg.br/midias/file/2020/11/voto-fe-
minino-brasil-2ed-marques.pdf. Acesso: 17 de junho de 2022.
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. O longo Caminho. 3ª ed.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

- 157 -
CASTELLUCCI, A. A. S. Muitos votantes e poucos eleitores a difícil con-
quista da cidadania operária no Brasil Império (Salvador, 1850-1881). Varia
História, Belo Horizonte, v. 30, n. 52, abr. 2014. Disponível em: Acesso em:
17 jun. 2022.
CÂNDIDO, Joel J. Direito Eleitoral Brasileiro. 12. ed. Bauru: Edipro, 2006.
ELEITORAL, Tribunal Regional. Memorial da justiça eleitoral biografia
de Carlota Pereira de Queiroz. Rio Grande do sul. Disponível em: https://
www12.senado.leg.br/noticias/especiais/arquivo-s/1a-senadora-tomou-
-posse-ha-40-anos-e-foi-recebida-com-flor-e-poesiaAcesso em 22 de jun.
2022.
FEDERAL, Senado. O senado no Império. Senado. Brasília Disponível em:
https://www12.senado.leg.br/noticias/especiais/arquivo-s/1a-senadora-
-tomou-posse-ha-40-anos-e-foi-recebida-com-flor-e-poesiaAcesso em: 18
jun. 2022.
FEDERAL, Senado. 1ª senadora tomou posse há 40 anos e foi recebida com
flor e poesia. Senado. Brasília. Disponível em: https://www12.senado.leg.
br/noticias/especiais/arquivo-s/1a-senadora-tomou-posse-ha-40-anos-e-
-foi-recebida-com-flor-e-poesia Data do Acesso: 18 de jun. 2022
FUX, Luiz. CASAGRANDE, Luis Fernando. AGRA, Walber de Moura (coord.);
PECCINI.
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Trad. Luis Carlos Bor-
ges, 4. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
RIBEIRO, Luiz Eduardo. Direito Constitucional Eleitoral. Belo Horizonte:
Fórum, 2018.
MARQUES, Teresa Cristina de Novaes. O voto feminino no Brasil. 2. ed.
Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2019.
MORAES, Filomeno. Constituição e Democracia. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2008.
NICOLAU, Jairo Marconi. Multipartidarismo e democracia: um estudo so-
bre o sistema partidário brasileiro (1985-1994). 1. ed. Rio de Janeiro: Fun-
dação Getúlio Vargas, 1996.
NUNES, Pedro. Dicionário de Tecnologia Jurídica, Ed. Freitas Bastos, 12ª. ed.
rev., ampl. e atual., 2ª tiragem, Rio de Janeiro: 1993.
Presidência da República. “Constituição dos Estados Unidos do Brasil de
1934”. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/
constituicao34.htm. Acesso em: 7. abril.2023
Presidência da República. “Constituição dos Estados Unidos do Brasil de
1946”. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/
constituicao46.htm. Acesso em 7. abril.2023

- 158 -
Presidência da República. “Constituição da República Federativa do Brasil
de 1988”. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constitui-
cao/constituicao.htm. Acesso em: 7. abril. 2023.
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 1986. p 60.
Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul. “Carlota Pereira de Quei-
roz”. Disponível:https://www.tre-rs.jus.br/institucional/memorial-da-jus-
tica-eleitoral gaucha/biografias/carlota-pereira-de-queiroz. Acesso em:
18.jun.2022.

- 159 -
GUERRA ÀS DROGAS E
ENCARCERAMENTO EM
MASSA: REFLEXÕES CRÍTICAS
ACERCA DA SUBVERSÃO DO
CARÁTER CAUTELAR DA
PRISÃO PREVENTIVA
Roberto de Oliveira Nascimento53
Renata Lira Amaral54

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Não é novidade que o Brasil possui uma das populações


carcerárias mais expressivas do mundo, a principal razão é a adoção
de uma política criminal voltada para o encarceramento em massa
como estratégia de combate à criminalidade. De acordo com os
dados mais recentes55, atualmente existe o total de 837.443 pessoas
privadas de liberdade no país, das quais, cerca de 215.029 são presos
provisórios.
Noberto Bobbio56 leciona que é a proteção do indivíduo no
âmbito dos processos estatais que diferencia um regime democrático
de uma ditadura. No bojo de um Estado Democrático de Direito,

53 Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de João Pessoa. Especialista em Ciências Cri-
minais. Advogado criminalista. E-mail: advrobertonascimento@gmail.com
54 Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Paraíba. E-mail: renatalira.am1@gmail.
com.
55 BRASIL, Ministério da Justiça e Segurança Pública. Departamento Penitenciário Nacional.
Levantamento nacional de informações penitenciárias: período de janeiro a junho de 2022. 2022.
1 painel interativo. Disponível em: https://www.gov.br/depen/pt-br/servicos/sisdepen
56 BOBBIO, Norberto. T eoria do ordenamento jurídico. Tradução de Maria Celeste Cordeiro Lei-
te dos Santos. 10. ed. Brasília: UnB, 1982.

- 161 -
cujas liberdades individuais representam valores caros, o direito de
ir e vir de qualquer pessoa não pode ser afastado sem a observância
a uma gama de direitos e garantias fundamentais, não por outro
motivo a Constituição Federal celebra o princípio da presunção de
inocência, segundo o qual ninguém é considerado culpado antes de
ser processado e julgado sob o crivo do devido processo legal.
Sendo assim, do ponto de vista formal e principiológico, a
liberdade é a regra até a formação da culpa do agente, contudo, a
própria legislação processual penal prevê situações em que ela pode
ser restringida de forma excepcional e devidamente fundamentada,
por exemplo, na necessidade de proteger bens jurídicos processuais
e resguardar o resultado útil do processo, como é o caso da prisão
preventiva, cujos requisitos e fundamentos autorizadores se
encontram delineados nos artigo 312 do Código de Processo Penal57.
A grande questão é que observando tanto as taxas de
encarceramento no país como a práxis do sistema de justiça criminal,
é possível vislumbrar que a dita excepcionalidade da decretação de
prisão preventiva tem se transformado praticamente em uma regra.
Na prática, os objetivos formais e declarados da medida cautelar
abrem margem para interpretações extensivas e fundamentos
genéricos, razão pelo qual é correto afirmar que o instituto passou a
atender “não ao processo penal, mas sim a uma função de polícia do
Estado, completamente alheia ao objeto e fundamento do processo
penal”58.
Essa problemática se agravou com a ascensão da chamada
“guerra às drogas”, notadamente porque o uso excessivo das prisões
preventivas é apontado como uma das principais características
dessa política, que não é só do Brasil, mas também em diversos
países da América Latina59. O Estado opera com a lógica do
57 Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem
econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal,
quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo
estado de liberdade do imputado.
58 LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2020.
59 CHERNICHARO, Luciana Peluzio. Sobre Mulheres e Prisões: Seletividade de Gênero e Crime
de Tráfico de Drogas no Brasil. Orientador: Prof. Dra. Luciana Boiteux de Figueiredo Rodrigues.
2014. 160 f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Centro de Ciências
Jurídicas e Econômicas, Faculdade de Direito, RIO DE JANEIRO, 2014

- 162 -
encarceramento em massa para lidar com o tráfico de drogas e isso
teve consequências visíveis no aumento da população prisional no
Brasil, de modo que, atualmente, o tráfico de drogas é a segunda
maior causa de encarceramento no país, no percentual de 26,41% do
total de pessoas aprisionadas60.  
Em razão disso, o objetivo do presente trabalho é compreender
as consequências da política de combate e repressão às drogas
adotada no Brasil no fenômeno do encarceramento em massa, tendo
como enfoque a discussão em torno do uso excessivo de prisões
preventivas e as distorções do seu caráter cautelar instrumental
em processos que envolvem o tráfico de drogas. Entendemos que
a problemática ultrapassa a mera questão legal e processual, de
modo que se faz necessário entender como os discursos construídos
em torno do proibicionismo contribuíram para a formação de
uma cultura no sistema de justiça inclinada ao hiperpunitivismo
e a relativização de princípios constitucionais basilares do Estado
Democrático de Direito.

BREVE HISTÓRICO DO PROIBICIONISMO


Historicamente nunca houve um consenso jurídico, político
e científico acerca do uso e comércio de drogas. Na década de 50,
por exemplo, o proibicionismo não era um debate central, primeiro
porque a problemática não tinha a mesma importância econômico-
política, segundo porque o consumo de drogas ainda não era tão
elevado quanto nos dias atuais. Contudo, nas décadas seguintes, a
questão das drogas passou a ser discutida internacionalmente através
dos discursos médico-sanitário e ético-jurídico, que associava o uso
de substâncias entorpecentes, respectivamente, a uma patologia
e à perversão moral, neste último caso sendo representado como
sinônimo de periculosidade61.

60 BRASIL, Ministério da Justiça e Segurança Pública. Departamento Penitenciário Nacional.


Levantamento nacional de informações penitenciárias: período de janeiro a junho de 2022. 2022.
1 painel interativo. Disponível em: https://www.gov.br/depen/pt-br/servicos/sisdepen
61 OLMO, Rosa del. A face oculta da droga. Rio de Janeiro: Revan, 1990.

- 163 -
Logo, o proibicionismo foi legitimado através de discursos
que se complementaram, em diferentes medidas a cada tempo e,
ao se enraizarem no imaginário social, permitiram a construção
de estereótipos justificadores das condutas oficiais de combate às
drogas. Nos EUA, por exemplo, o controle formal e a proibição das
drogas foram diretamente influenciados pelo discurso moral das
ligas puritanas, que reprovava o uso dessas substâncias e também as
associava às minorias e aos grupos étnicos e sociais marginalizados62.
Foi a partir da segunda metade do século XX que a
criminalização das drogas se transformou em uma política criminal
repressiva a nível global, iniciada nos Estados Unidos no governo
de Richard Nixon (e fortalecida no governo de Ronald Reagan),
e que ganhou contornos internacionais através das convenções
sobre repressão ao tráfico de drogas. A pioneira foi a Convenção
única sobre entorpecentes (1961) estabelecida pela Organização
das Nações Unidas, sucedida pela Convenção sobre substâncias
psicotrópicas (1971) e, a principal, a Convenção das Nações Unidas
contra o tráfico ilícito de entorpecentes e substâncias psicotrópicas,
de 198863.
Assim, a partir da década de setenta, o modelo político criminal
de controle das drogas passou a ser conduzido predominantemente
pelo discurso jurídico-político. Salo de Carvalho64 aponta que no
Brasil o quadro do modelo político-criminal de drogas, no plano
legislativo, passou a orientar-se pela ideologia da Defesa Social,
em conjunto, no plano da Segurança Pública, com a militarização
do controle de drogas, ambos legitimados materialmente pelos
discursos acerca da criminalidade e seus estereótipos. 

62 BOITEUX, Luciana. Controle penal sobre as drogas ilícitas: o impacto do proibicionismo no


sistema penal e na sociedade. 2006. 273 f. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade de São
Paulo, Faculdade de Direito, São Paulo, 2006.
63 MARTINS, Carla Benítez. DISTRIBUIR E PUNIR? Capitalismo dependente brasileiro, racismo
estrutural e encarceramento em massa nos governos do Partido dos Trabalhadores (2003-2016).
353 f. Tese (Doutorado em Sociologia) - Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2018.
64 CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: do discurso oficial às razões da
descriminalização. 1996. 365 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Federal de Santa
Catarina, Florianópolis, 1996.

- 164 -
Uma das principais características desses discursos é a
presença da dicotomia entre “bem” e “mal”. Segundo Boiteux65, a
ideologia da defesa social, importada dos EUA e implantada no Brasil
no final da década de 70, dividiu o corpo social em dois grupos: de
um lado, os homens de bem, dignos de proteção legal; do outro,
os homens maus, os criminosos, para os quais se direciona toda a
repressão penal. A propósito:
Colocar o “problema da droga” através destes diversos
discursos só contribuiu para reforçar a confusão reinante e
para ignorar suas reais dimensões psicológicas e sociais, assim
como políticas e econômicas. Os estereótipos servem para
organizar e dar sentido ao discurso em termos dos interesses
das ideologias dominantes; por isso, no caso das drogas se
oculta o político e econômico, dissolvendo-o no psiquiátrico
e individual66.

A principal consequência da importação dessa ideologia para


o Brasil foi o agravamento dos problemas do sistema penitenciário,
como a superlotação das prisões com pessoas advindas dos estratos
menos favorecidos da sociedade, já que essa ideologia também
legitimou o reforço do controle social sobre esses grupos específicos.
Por outro lado, o problema da criminalidade não foi resolvido e suas
razões sociais e econômicas continuaram a ser ignoradas67.

O BRASIL NO COMBATE AO TRÁFICO

No Brasil, o ponta-pé legislativo sobre controle e repressão


de drogas, fundamentado em acordos internacionais, foi o Decreto
11.481, de 10 de fevereiro de 1915, que estabeleceu o cumprimento da
Convenção firmada na Conferência Internacional do Ópio, realizada
em Haia em dezembro de 1911 e da qual o Brasil foi signatário. O
65 BOITEUX, Luciana. Controle penal sobre as drogas ilícitas: o impacto do proibicionismo no
sistema penal e na sociedade. 2006. 273 f. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade de São
Paulo, Faculdade de Direito, São Paulo, 2006.
66 OLMO, Rosa del. A face oculta da droga. Rio de Janeiro: Revan, 1990. p. 25.
67 BOITEUX, Luciana. Controle penal sobre as drogas ilícitas: o impacto do proibicionismo no
sistema penal e na sociedade. 2006. 273 f. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade de São
Paulo, Faculdade de Direito, São Paulo, 2006.

- 165 -
decreto visou inibir o uso do ópio, da morfina e seus derivados, bem
como da cocaína.
A referida norma inaugurou o modelo de política criminal
chamado de “modelo sanitário”, que vigorou por quase meio
século. Nesse período sobrevieram diversas mudanças legislativas
fundamentadas em compromissos assumidos em convenções
internacionais, o que terminou por implantar um sistema médico-
policial com nítida preocupação higienista, reproduzida nas
condutas invasivas em relação aos usuários de drogas: a internação
compulsória, a obrigatoriedade de tratamento e a interdição de
direitos68.
Apesar desse tratamento hostil que já era direcionado aos
usuários, a posse ilícita de drogas só foi efetivamente criminalizada
em 1932, através do Decreto 20.930 de 11 de janeiro de 1932, que
culminou a pena de um a cinco anos de prisão a quem vendesse,
ministrasse, ofertasse, trocasse, cedesse, ou, de qualquer modo,
proporcionasse, induzisse ou instigasse ao uso de substâncias
entorpecentes. O consumo propriamente dito somente passou
a integrar a lista de ações criminalizadas em 1938, por meio do
Decreto-lei 891, de 25 de novembro de 1938.
Somente dois anos depois o Código Penal de 1940 revogou
as disposições penais vigentes relacionadas à matéria, inclusive o
Decreto-lei 891. O artigo 281 do referido Código culminou a pena
de um a cinco anos de reclusão para o tráfico de drogas, prevendo
onze verbos incriminadores que, caso praticados, configurariam o
crime, sendo eles: importar ou exportar, vender ou expor à venda,
fornecer, ainda que a título gratuito, transportar, trazer consigo, ter
em depósito, guardar, ministrar ou, de qualquer maneira, entregar
a consumo substância entorpecente. Observa-se que o consumo
deixou de figurar entre as condutas incriminadas, o que significou
um relativo avanço à época. 

68 RIBEIRO, Juliana Serretti de Castro Colaço. Fronteiras de guerra: um estudo etnográfico com
as mulheres que fazem a travessia de drogas para presídios masculinos reclusas na Penitenciária
Júlia Maranhão. 2017. 201 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Federal da Paraíba,
Centro de Ciências Jurídicas, João Pessoa, 2017.

- 166 -
Posteriormente, o golpe militar de 1964 mudou os rumos da
política de drogas, criando um contexto propício para o surgimento
da política criminal denominada de modelo bélico, que convergiu
para o estabelecimento da militarização no combate às substâncias
psicotrópicas. A primeira mudança legislativa nesse período foi
a introdução, com o Congresso Nacional fechado, do Decreto-lei
385 em 26 de dezembro de 1968, treze dias após a edição do Ato
Institucional nº 5, que, dentre outras modificações, alterou a
redação do art. 281 do Código Penal vigente, equiparando a conduta
do usuário à do traficante.
Com a incorporação da Doutrina de Segurança Nacional
e ascensão do modelo repressivo baseado na militarização e na
lógica bélica, proliferou-se no sistema de segurança pública a
noção de inimigo a ser eliminado ou neutralizado a todo custo,
que eram notadamente os opositores ao regime, classificados como
“subversivos”, “comunistas” e “terroristas”. Nessa conjectura, foi
promulgada a Lei 6.368, em outubro de 1976, que incluiu a figura do
traficante como mais um inimigo político-criminal interno69.
A lei 6.369 revogou o art. 281 do Código Penal e passou a
concentrar as leis de drogas em uma só legislação especial. Essa norma
implementou no Brasil o modelo internacional de guerra contra às
drogas e um pressuposto básico da norma é a visão das drogas como
a representação de um perigo abstrato à saúde pública, motivo pelo
qual o seu comércio e consumo deveriam ser combatidos através da
prevenção e da repressão, inclusive com a previsão da prisão como
pena principal tanto para o comércio como para uso. Essa concepção
é pautada, sobretudo, no discurso eugênico-moralista que prega a
luta do bem contra o mal70.
Por outro lado, a lei de 1976 foi elaborada em um contexto de
início da abertura política, “quando ventos mais liberais sopravam

69 CAVALCANTI, Gênesis Jácome Vieira. A crise estrutural do capital e o encarceramento em


massa: o caso brasileiro. 2019. 164 f. Dissertação (Mestrado em Direitos Humanos, Cidadania e
Políticas Públicas) – Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2019.
70 BOITEUX, Luciana. Controle penal sobre as drogas ilícitas: o impacto do proibicionismo no
sistema penal e na sociedade. 2006. 273 f. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade de São
Paulo, Faculdade de Direito, São Paulo, 2006.

- 167 -
no país”71. Assim, um avanço pontualíssimo trazido pela nova
legislação foi a criação do tipo autônomo do uso de entorpecentes
(Art. 16), fazendo com que houvesse a distinção, para fins penais, da
figura do usuário para o do traficante de drogas (Art. 14)72.
Noutro norte, o caráter repressivo e autoritário da lei ficou
expresso especialmente no alargamento do alcance da norma, tendo
em vista que ela ampliou para dezoito condutas, elaborando um
rol taxativo do tipo penal do tráfico de drogas, além equipará-lo ao
crime hediondo. Ademais, a lei aumentou a pena cominada ao delito
de tráfico de drogas para 03 (três) a 15 (quinze) anos de reclusão.
Também não se pode perder de vista que apesar da diferenciação do
tráfico e do uso próprio, o porte para consumo pessoal continuou
a ser criminalizado, de modo que o controle penal dos usuários
subsistiu através da imposição de pena ou tratamento. 
Essa legislação fortemente repressiva que vigorava em um
contexto de combate ao comunismo, vigorou ainda por trinta anos
sem alterações significativas, dado que a necessidade de combate às
drogas não cessou com o fim da guerra fria, pelo contrário: a ascensão
dos Estados Unidos como a grande potência mundial elevou essas
substâncias ao patamar de maiores inimigos da sociedade a nível
mundial73. Sendo assim, o fim do regime militar não sustou a lógica
militarizada de lidar com os “inimigos internos”, pelo contrário,
na fase pós governo ditatorial, a “guerra às drogas” se torna pauta
central da política repressiva brasileira, ao passo que o inimigo da
nação, que outrora era o “comunista” e/ou o “subversivo”, passou a

71 Ibidem, p. 147.
72 Art. 12. Importar ou exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à
venda ou oferecer, fornecer ainda que gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo,
guardar, prescrever, ministrar ou entregar, de qualquer forma, a consumo substância entorpecente
ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com deter-
minação legal ou regulamentar;  (Vide Lei nº 7.960, de 1989) Pena - Reclusão, de 3 (três) a 15
(quinze) anos, e pagamento de 50 (cinqüenta) a 360 (trezentos e sessenta) dias-multa. [...] Art.
16. Adquirir, guardar ou trazer consigo, para o uso próprio, substância entorpecente ou que deter-
mine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal
ou regulamentar: Pena - Detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e pagamento de (vinte) a  50
(cinqüenta) dias-multa.
73 SANCHES, Raphael Rodrigues. Delenda proibicionismo: apontamentos críticos ao paradigma
de Guerra às Drogas. 2010. 131 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Universidade Estadual
Paulista, São Paulo, 2010.

- 168 -
ser o traficante de drogas74.
Nem mesmo a onda liberalizante observada a partir do
restabelecimento do Estado Democrático de Direito e o advento
da Constituição da República de 1988 freou a política repressiva
de combate às drogas. O fim da Guerra Fria representou o início da
hegemonia mundial das leis do mercado e a expansão comercial em
um nível globalizado, fenômenos que contribuíram para o fomento
do comércio de substâncias psicoativas para além das barreiras
nacionais. Nesse contexto, fortalece-se ainda mais a política
declaradamente militar de combate às drogas, difundida pelos
Estados Unidos75.
Atualmente, a política nacional de drogas é regulamentada pela
Lei n. 11.343, promulgada em 26 de agosto de 2006, popularmente
conhecida como “Lei de Drogas”. De acordo com o seu Artigo 1º, a
Lei instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas
(Sisnad); prescreveu medidas para prevenção do uso indevido,
atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas,
além de ter definido crimes e estabelecido normas para repressão à
produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas.
Um dos avanços da referida lei foi a despenalização do
consumo, retirando a pena de detenção do usuário de drogas. Por
outro lado, a conduta ainda é criminalizada, com previsão no art.
28 da Lei, o qual prevê as penas de advertência sobre os efeitos das
drogas, prestação de serviços à comunidade e medida educativa de
comparecimento a programa ou curso educativo para os que possam
adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trouxer consigo,
para consumo pessoal, drogas sem permissão legal. 
É de relevo frisar que os verbos “adquirir”, “ter em depósito”,
“transportar” e “trazer consigo” estão presentes tanto no artigo 28,

74 CAVALCANTI, Gênesis Jácome Vieira. A crise estrutural do capital e o encarceramento em


massa: o caso brasileiro. 2019. 164 f. Dissertação (Mestrado em Direitos Humanos, Cidadania e
Políticas Públicas) – Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2019.
75 RIBEIRO, Juliana Serretti de Castro Colaço. Fronteiras de guerra: um estudo etnográfico com
as mulheres que fazem a travessia de drogas para presídios masculinos reclusas na Penitenciária
Júlia Maranhão. 2017. 201 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Federal da Paraíba,
Centro de Ciências Jurídicas, João Pessoa, 2017.

- 169 -
como no artigo 33 da Lei. Os critérios de diferenciação entre usuário
e traficante estão estabelecidos no parágrafo segundo do artigo
28, quais sejam: natureza e quantidade da droga apreendida; local
e condições em que se desenvolveu a ação, além de circunstâncias
sociais e pessoais, conduta e antecedentes. Percebe-se que essa
diferenciação atende a parâmetros muito subjetivos e discricionários,
o que dá margem à ocorrência de arbitrariedades. Às autoridades
policiais ganharam grande relevo, vez que os autos de prisão em
flagrante só chegam às demais instituições da justiça criminal após
o crivo da Polícia Militar e da Polícia Civil76.
Sendo assim, a Lei de drogas legitima diversas violações
a direitos fundamentais e intervenções estatais excessivas e
desproporcionais, na medida em que relativiza a comprovação do
dolo e se vale de elementos subjetivos e discursivos para caracterizar
o crime de tráfico de drogas, o que, por si só, facilita a condenação e
o aprisionamento de pessoas apreendidas com substâncias ilícitas.
A construção dessa norma também apresenta irracionalidade ao
criminalizar apenas determinadas substâncias, enquanto outras
permanecem permitidas77.
A Lei 11.343/2006, seguindo os moldes da legislação anterior
(lei 6.368/1976), fortaleceu o modelo repressivo de combate às
drogas, aumentando a pena mínima cominada ao crime de tráfico
de drogas para 5 (cinco) anos e mantendo a pena máxima em 15
(quinze) anos. Quanto aos verbos nucleares do tipo penal, a lei em
vigor também se assemelha a legislação de 1976, mantendo as 18
(dezoito) condutas incriminadoras78.
É notável que se trata de um tipo penal excessivamente amplo
por classificar 18 (dezoito) verbos nucleares, os quais abarcam

76 CAVALCANTI, Gênesis Jácome Vieira. A crise estrutural do capital e o encarceramento em


massa: o caso brasileiro. 2019. 164 f. Dissertação (Mestrado em Direitos Humanos, Cidadania e
Políticas Públicas) – Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2019.
77 VALOIS, Luís Carlos. O direito penal da guerra às drogas. 3. ed. Belo Horizonte, São Paulo:
D’Plácido, 2020.
78 Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à ven-
da, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar
a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com
determinação legal ou regulamentar: Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento
de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.

- 170 -
condutas que vão muito além da mera comercialização. Esse texto
legislativo sem dúvidas contribui para ampliar as possibilidades de
repressão e punição pelo crime de tráfico de drogas. Além do mais,
o crime de associação para o tráfico (art. 35 da Lei de Drogas) foi
classificada como delito autônomo, com pena de 3 (três) a 10 (anos),
de modo que, a depender do caso em concreto, pode ser combinado
com o artigo 33, com chances de elevar assustadoramente a pena
final cominada ao agente. 
É importante destacar que o crime de tráfico de drogas
é classificado tanto na doutrina como na jurisprudência dos
Tribunais como crime de ação múltipla (ou de conteúdo variado
ou plurinuclear), e, como tal, a prática de qualquer um dos verbos
contidos no referido artigo, já é suficiente para a consumação da
infração. Além disso, o tráfico de drogas também é classificado como
crime permanente, cujo estado de flagrância se prolonga no tempo,
sendo a captura possível enquanto não cessada a permanência, fato
que também abre margem para arbitrariedades nas abordagens
policiais.
A extensão da definição legal, materializada na quantidade
excessiva de verbos, bem como sua falta de clareza e objetividade,
afronta o princípio da legalidade; além disso, como efeito da
não obrigatoriedade de comprovação do dolo de comercializar
a substância recai em uma indevida inversão do ônus da prova,
pois sequer é necessário a efetiva comercialização e/ou entrega
do produto a terceiro para que a conduta do agentes se configure
como tráfico de drogas, cabendo à polícia “presumir” e ao judiciário
decidir79.

79 VALOIS, Luís Carlos. O direito penal da guerra às drogas. 3. ed. Belo Horizonte, São Paulo:
D’Plácido, 2020.

- 171 -
A GUERRA E O ESTADO DE EXCEÇÃO
MODERNO

É notável que a política de controle ao tráfico de drogas está


inserida em um modelo militarizado e transnacional de repressão,
legitimado por discursos maniqueístas que dividem a sociedade entre
“homens de bem” e “inimigos”. Logo, a Guerra às Drogas é um tipo
de estado de exceção que supõe a existência de um inimigo que deve
ser combatido a qualquer custo, neste caso, o traficante de drogas80.
O Estado de exceção, para Giorgio Agamben81 “apresenta-se
como a forma legal daquilo que não pode ter forma legal”. Segundo o
autor, a instauração de “estados de exceção permanentes” tornou-se
prática essencial dos Estados contemporâneos, visando o controle
de indivíduos e de grupos de indivíduos indesejáveis, ou seja, os
inimigos, aqueles que por algum motivo não parecem integráveis ao
sistema político82.
A presença de drogas em determinados locais (notadamente
favelas e periferias) justifica a instauração de espaços de exceção
localizados que assume verdadeiros contornos de guerra, onde
as forças policiais são autorizadas a operar em graus desmedidos
de autoridade e violência sem respaldo jurídico-legal, visando a
aniquilação do inimigo. O combate às drogas assume, portanto,
verdadeiros contornos de guerra, sustentados pelas ações extralegais
da polícia, legitimadas pela intolerância das instituições, da imprensa
e de uma “empresa moral” e socialmente justificada83.

80 SANCHES, Raphael Rodrigues. Delenda proibicionismo: apontamentos críticos ao paradigma


de Guerra às Drogas. 2010. 131 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Universidade Estadual
Paulista, São Paulo, 2010.
81 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2002. p. 12.
82 Diante do incessante avanço do que foi definido como uma “guerra civil mundial”, o estado de
exceção tende cada vez mais a se apresentar como o paradigma de governo dominante na política
contemporânea. Esse deslocamento de uma medida provisória e excepcional para uma técnica
de governo ameaça transformar radicalmente — e, de fato, já transformou de modo muito per-
ceptível — a estrutura e o sentido da distinção tradi-cional entre os diversos tipos de constituição.
O estado de ex-ceção apresenta-se, nessa perspectiva, como um patamar de indeterminação entre
democracia e absolutismo (Ibidem, p. 13).
83 SANCHES, Raphael Rodrigues. Delenda proibicionismo: apontamentos críticos ao paradigma
de Guerra às Drogas. 2010. 131 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Universidade Estadual
Paulista, São Paulo, 2010.

- 172 -
A forma como a mídia aborda o tráfico de drogas também
contribui para forjar o traficante no imaginário social como o maior
inimigo da sociedade, a figura que concentra todas as mazelas sociais,
aquele apontado como o responsável pela violência urbana, pela
destruição das famílias brasileiras, por levar o vício do consumo de
droga aos jovens e até mesmo pela dificuldade de acesso dos bairros
periféricos aos serviços sociais que, teoricamente, não chegariam até
lá por desautorização do tráfico84.
Trata-se, portanto, de um terreno fértil para o desenvolvimento
do chamado Direito Penal do Inimigo, doutrina inaugurada por
Gunther Jakobs e que se destina aos indivíduos àqueles que
não se submetem as normas estatais, dentre eles, os indivíduos
voltados para o narcotráfico. Segundo Jakobs, só é considerado
cidadão quem oferece uma garantia cognitiva suficiente de um
comportamento pessoal85, ao passo em que aqueles que apresentam
um comportamento desviante não gozam da mesma condição e,
consequentemente, não possuem os mesmos direitos e garantias do
cidadão, devendo ser combatidos como inimigos.
O tratamento diferenciado voltado para esses inimigos inclui
três elementos principais: antecipação da punição, utilizando
como parâmetro um risco futuro em detrimento a fatos concretos
e contemporâneos; a desproporção na imposição das penas e a
relativização ou supressão de direitos e garantias processuais86.
A edição de legislações específicas direcionadas a neutralização e
repressão desses indivíduos também é uma das facetas do Direito
Penal do Inimigo e neste ponto podemos incluir a Lei de Drogas,
marco importante para a construção de um discurso jurídico-político
que eleva o traficante à figura de inimigo interno da nação.

84 CAVALCANTI, Gênesis Jácome Vieira. BATISTA, Gustavo Barbosa de Mesquita. A política de


“guerra às drogas” no Brasil sob a perspectiva da criminologia crítica. In: Sistema de Justiça e
Genero: diálogos entre as criminologias crítica e feminista. João Pessoa: Editora do CCTA/UFPB,
2020, p. 62-88.
85 JAKOBS, Gunther. MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas. 2ª Ed.
Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2007. p. 45
86 Ibidem, p. 67.

- 173 -
Essa lógica é o que fundamenta e justifica violência
policial e a repressão penal dirigida seletivamente aos segmentos
marginalizados da sociedade, vez que os principais alvos da “Guerra
às drogas”, aqueles combatidos como inimigos são majoritariamente
os jovens negros e pobres oriundos de bairros periféricos, que em sua
maioria são presos com pequenas quantidades de entorpecentes e
atuam em funções subalternas no mercado ilícito de drogas (mula,
vapor, avião, etc), motivo pelo qual são mais vulneráveis e expostos
a abordagem policial.
Nesse contexto, podemos afirmar que a seletividade penal é um
dos aspectos críticos quando se fala em encarceramento em massa
especialmente por crimes relacionados ao tráfico de drogas, vez que
a “guerra às drogas” incide majoritariamente sobre um segmento
social bem definido. O objetivo da política de drogas, portanto,
não diz respeito a desmontar essa economia, pelo contrário, sua
construção contribui para que a repressão incida majoritariamente
sobre as atividades mais básicas e subalternas da rede do tráfico, de
modo que os indivíduos que as desempenham são sistematicamente
mais selecionados pelo sistema penal, pelo simples fato de ocupar
posições mais precárias e tornarem-se mais vulneráveis à repressão
policial87.
A formatação da Política de Drogas contribui para a
seletividade penal também na medida em que concede amplos
poderes as autoridades policiais para filtrar quem será enviado às
prisões, vez que os casos que são levados ao conhecimento do Poder
Judiciário já passaram por um filtro discricionário e arbitrário, que
envolve a distinção entre usuário e traficante, a possibilidade de
efetuar a prisão (muito mais simples em determinados lugares, como
favelas, que em outros como prédios e condomínios) e, não menos
importante, às características socioeconômicas do suspeito88.
Por outro lado, quando se trata do processo penal nos crimes
de tráfico de drogas, observa-se que existe uma padronização, tendo

87 BORGES, Juliana. O que é encarceramento em massa?. Belo Horizonte: Letramento, 2018.


88 CAVALCANTI, Gênesis Jácome Vieira. A crise estrutural do capital e o encarceramento em
massa: o caso brasileiro. 2019. 164 f. Dissertação (Mestrado em Direitos Humanos, Cidadania e
Políticas Públicas) – Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2019.

- 174 -
em vista que a maioria dos casos é de baixa complexidade e inicia-
se com a prisão em flagrante, onde a prova testemunhal costuma
limitar-se a palavra dos agentes de segurança pública que realizaram
a prisão e isso é o suficiente para ensejar a conversão da prisão
em flagrante em prisão preventiva. Grande parte dos processos,
sobretudo aqueles com réus presos, assumem um viés unidirecional,
com um fluxo voltado para a condenação, com escassez de confronto
de provas e contraprovas e de debates entre teses divergentes89.

EXAGERO DAS PRISÕES CAUTELARES

A lógica do encarceramento em massa para lidar com o tráfico


de drogas teve consequências visíveis no aumento da população
prisional no Brasil: no final de 2021 havia 670.714 pessoas privadas
de liberdade no país, ao passo em que, em 2006, ano em que a Lei
de Drogas foi promulgada, esse número era 401.236. Atualmente,
o tráfico de drogas é a segunda maior causa de encarceramento no
país, no percentual de 26,41% do total de presos e presas, dos quais
grande parte sequer foram julgados, dado que demonstra que o
excesso de prisões preventivas é um dos aspectos mais problemáticos
da política de drogas no Brasil.
Por força do princípio da presunção de não culpabilidade, a
liberdade de locomoção do indivíduo só deveria ser restringida após
o trânsito em julgado da sentença condenatória, contudo, durante
a instrução criminal podem existir riscos capazes de comprometer
a eficácia e utilidade do provimento jurisdicional definitivo, o que
justifica a necessidade de adoção de medidas cautelares nesses
casos. A prisão preventiva é uma espécie de prisão cautelar (carcer
ad custodiam) e trata-se de uma medida excepcional que deve estar
obrigatoriamente comprometida com a instrumentalização do
processo penal90.
89 FREITAS, Alexandre José Salles de. Prisão preventiva e drogas: “a polícia prende e a Justiça
não solta”. 2017. 203 f. Dissertação (Mestrado em Ciências sociais) – Universidade Federal de Juiz
de Fora, Juiz de Fora, 2017.
90 LIMA, Renato Brasileiro. Manual de Processo Penal: volume único. 8 ed. Salvador: Editora

- 175 -
Considerando a função cautelar que lhe é inerente, o juízo que
se faz na decretação da prisão preventiva não é de culpabilidade, de
modo que, sob pena de deturpar seu caráter instrumental, a medida
não pode ser decretada de forma automática com a deflagração de
uma investigação policial ou instauração de um processo criminal,
tampouco de pode ser utilizada como cumprimento antecipado de
pena, para satisfazer o clamor social, a opinião pública ou a mídia91.
Ou seja, dado o seu caráter instrumental ao processo principal,
as medidas cautelares não possuem um fim em si mesmas92, mas são
instrumentos a serviço do processo, destinados a garantir o normal
funcionamento da justiça, logo, a prisão preventiva não se destina
a “fazer justiça”93 e sua decretação só é cautelar e constitucional
na medida em que busca exclusivamente servir, resguardar e
assegurar a eficácia do processo de conhecimento, por isso, alguns
autores defendem que as prisões preventivas decretadas com
fundamento na garantia da ordem pública ou da ordem econômica
são substancialmente inconstitucionais por não terem natureza
cautelar.
Todavia, a experiência prática no sistema de justiça criminal,
por si só, revela que a esmagadora maioria das prisões preventivas
decretadas em processos relacionados ao tráfico de drogas traz
a necessidade de garantia da  ordem pública como fundamento
principal. As pesquisas acadêmicas que se debruçam sobre essa
problemática há tempos vêm constatando o excesso de prisões
preventiva decretadas em processo de tráfico com a invocação de
fundamentos genéricos, junto a narrativas que subvertem o caráter
cautelar da medida:
Em todas as decisões que converteram prisões em flagrante
em prisões preventivas, o fundamento da garantia da
ordem pública foi invocado, bem como foi ressaltado a sua
equiparação a crime hediondo. [...]. Expressões genéricas

JusPODIVM, 2020.
91 Ibidem.
92 OLIVEIRA, João Rafael. Contribuições para uma compreensão crítica do uso da prisão preven-
tiva pelos juízos criminais estaduais de Curitiba. 2015. 121 f. Dissertação (Mestrado em Direito)
– Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2015.
93 LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2020.

- 176 -
como “a gravidade do delito”, “crime que vem assolando a
sociedade” são as mais destacadas. Portanto não há uma
individualização dos decretos de prisões preventivas94.

Essas decisões dos juízos de primeiro grau muitas vezes são


mantidas pelos Tribunais. Não é preciso grande aprofundamento
jurisprudencial para constatar que, apesar de avanços pontuais,
esse discurso ainda é reproduzido em todas as instâncias do Poder
Judiciário brasileiro. Vejamos, a título de exemplo, recentes julgados
do Superior Tribunal de Justiça a respeito dessa matéria:
Conforme pacífica jurisprudência desta Corte, a preservação
da ordem pública justifica a imposição da prisão preventiva
quando o agente ostentar maus antecedentes, reincidência,
atos infracionais pretéritos, inquéritos ou mesmo ações
penais em curso, porquanto tais circunstâncias denotam
sua contumácia delitiva e, por via de consequência, sua
periculosidade95. Grifo nosso.
In casu, o decreto prisional encontra-se devidamente
fundamentado em dados concretos extraídos dos autos, que
evidenciam que a liberdade do agravante acarretaria risco
à ordem pública, notadamente se considerada a gravidade
concreta da conduta atribuída ao Agravante, haja vista a
apreensão de significativa quantidade de droga, a evidenciar
o envolvimento, ao menos em tese, do ora Agravante com a
mercancia ilícita de substâncias entorpecentes96. Grifo nosso.
A quantidade, a variedade e a natureza das drogas apreendidas
podem servir para o magistrado reconhecer a gravidade
concreta da ação e a dedicação do agente à atividade
criminosa, elementos capazes de justificar a necessidade
da custódia preventiva para garantia da  ordem pública.
[...] No caso, o decreto prisional está devidamente
fundamentado em dados concretos extraídos dos autos,
tendo a autoridade judicial destacado a quantidade de droga
apreendida, que por si demonstra a perniciosidade social da
ação97. Grifo nosso.

94 FREITAS, Alexandre José Salles de. Prisão preventiva e drogas: “a polícia prende e a Justiça
não solta”. 2017. 203 f. Dissertação (Mestrado em Ciências sociais) – Universidade Federal de Juiz
de Fora, Juiz de Fora, 2017. p. 155.
95 AgRg no HC n. 786.774/RS, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em
20/3/2023, DJe de 24/3/2023.
96 AgRg no RHC n. 172.878/MG, relator Ministro Messod Azulay Neto, Quinta Turma, julgado
em 27/3/2023, DJe de 31/3/2023
97 AgRg no HC n. 785.087/MS, relatora Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, julgado em 13/3/2023,
DJe de 23/3/2023.)

- 177 -
É nítido que quando se trata do tráfico de drogas, existe uma
gama de fundamentos inerentes ao tipo penal que são invocados
para justificar a decretação da custódia preventiva, sendo assim,
analisando os julgados acima, verifica-se que a medida muitas vezes é
justificada na quantidade e natureza da droga, no envolvimento com
a mercancia ilícita de entorpecentes e até mesmo na “perniciosidade
social da ação”.
Importa salientar que existe uma enorme lacuna na definição
da expressão ordem pública, trata-se é um termo vago e que
possibilita conceituações vagas, de modo que o seu significado é
construído a partir do discurso e da retórica98. No núcleo conceitual
da ordem pública, adota-se o seguinte tripé de fundamentos: a)
periculosidade do agente; b) gravidade do delito; c) repercussão
social do delito (clamor público).
O primeiro diz respeito ao risco de reiteração delitiva do
agente, sempre justificado pela presença de maus antecedentes ou
a reincidência concomitante a necessidade de resguarda a própria
credibilidade da justiça. Tal fundamento desconsidera não só a
presunção de inocência como o caráter cautelar-instrumental da
prisão preventiva, visto que nessa hipótese a prisão possuiria um fim
em si mesma99. A propósito:
Quando se prende provisoriamente alguém diante do
argumento da reiteração de delitos e do risco de novas
práticas para garantir a ordem pública, está se atendendo a
uma função de polícia do Estado e não ao processo penal de
conhecimento, ou seja, divorciasse a prisão preventiva de seu
inseparável caráter cautelar-instrumental.100

O Judiciário produz e reproduz o imaginário social do


traficante como inimigo da sociedade. Invoca-se a necessidade de

98 TAPOROSKY FILHO, Paulo Silas. Jurisdição e Retórica: o problema da ordem pública como
fundamento da prisão preventiva. 2019. 161 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Centro Univer-
sitário Internacional, Curitiba, 2019.
99 OLIVEIRA, João Rafael. Contribuições para uma compreensão crítica do uso da prisão preven-
tiva pelos juízos criminais estaduais de Curitiba. 2015. 121 f. Dissertação (Mestrado em Direito)
– Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2015.
100 SILVEIRA FILHO, Sylvio Lourenço da. As medidas cautelares pessoais no projeto de código de
processo penal. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti
(org). O novo processo penal à luz da Constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p.247-270.

- 178 -
garantia da ordem pública em razão da gravidade do delito de tráfico
nos decretos de prisão preventiva, tendo em vista que o perigo se
encontra no que o delito representa para a sociedade e nos possíveis
danos sociais que podem ocorrer se não houver uma ação “efetiva”
do judiciário, como forma de amenizar o clamor público e estimular
a crença no sistema de justiça101.
Nesse sentido, Aury Lopes Junior crítica o uso da prisão
preventiva com fundamento na garantia da ordem pública como
instrumento para controlar o alarme social e fortalecer a credibilidade
nas instituições. A necessidade de segregação para restabelecer a
credibilidade das instituições, segundo o autor, é uma falácia, tendo
em vista que “nem as instituições são tão frágeis a ponto de se verem
ameaçadas por um delito, nem a prisão é um instrumento apto para
esse fim, em caso de eventual necessidade de proteção”102.
Nesses casos, a medida cautelar também tende a assumir uma
dupla natureza de pena antecipada e medida de segurança, vez que
em tese se pretende isolar da sociedade um sujeito supostamente
perigoso com vistas a manter a coesão social e institucional, por
outro lado, o autor chama atenção “por mais respeitáveis que sejam
os sentimentos de vingança, nem a prisão preventiva pode servir
como pena antecipada e fins de prevenção, nem o Estado, enquanto
reserva ética, pode assumir esse papel vingativo”103.
Empreende-se uma verdadeira deturpação da natureza
cautelar da prisão preventiva, na medida em que a medida processual
transforma-se em uma atividade tipicamente de polícia voltada para
a segurança pública, embora esse seja o papel da Administração
e não da Justiça. Com o discurso de combate a criminalidade, o
sistema de justiça empreende uma verdadeira “cruzada contra os
hereges”104 abandonando o papel de proteção dos direitos e garantias
fundamentais do imputado.

101 TANNUSS, Rebecka Wanderley. O corpo como campo de batalha: análises sobre o transporte
de drogas feminino para o sistema prisional. 197 f. Tese (Doutorado em Psicologia) - Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2022.
102 LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2020.
103 Ibidem, p. 1014.
104 Ibidem, p. 1017.

- 179 -
Em um sentido mais amplo, o processo penal, cuja função
está ligada a efetividade dos princípios basilares do Estado
Democrático de Direito, transforma-se em um instrumento para o
combate a criminalidade, onde há a inversão prática do princípio da
presunção de inocência. Como se não bastasse, o sistema acusatório
é corrompido, vez que juízes e promotores deixam de atuar como
sujeitos processuais que são, assumindo posições típicas de agentes
de segurança pública, ambos do mesmo lado lutando contra o
inimigo em comum105.

CONCLUSÕES
Em que pese à proteção aos direitos e garantias fundamentais
no âmbito do processo penal seja uma das premissas basilares do
modelo acusatório e do Estado Democrático de Direito, os discursos
em torno do combate ao tráfico de drogas e de proteção a ordem
pública, na prática, servem para justificar diversas violações a
esses princípios constitucionais. A criação de inimigos sociais que
precisam ser combatidos a todo custo em nome da segurança pública
naturaliza e legitima a subversão do processo penal democrático em
um modelo autoritário e inquisitivo.
A partir da compreensão do histórico do proibicionismo e
da política de drogas, foi possível notar que a “Guerra às Drogas”
é historicamente fundada em discursos que se complementaram ao
longo do tempo e que coloca a figura do traficante como o inimigo
da sociedade. Esse discurso, em conjunto com a ideologia da Defesa
Social, foi responsável pela militarização do controle de drogas, que
assumiu verdadeiros contornos de guerra, e cujo principal aspecto foi
à adoção da lógica do encarceramento como estratégia de combate
ao narcotráfico.
O sistema de justiça contribui consideravelmente nesse processo
de aprisionamento em massa, especialmente no que diz respeito
105 SANTORO, Antonio Eduardo Ramires. BRANCO, Thaynara Silva Castelo. Desenhos proces-
suais de exceção no direito brasileiro. Criminologias e Política Criminal II. Coordenadores: Thais
Janaina Wenczenovicz; Vladia Maria de Moura Soares. – Florianópolis: CONPEDI, 2018. p. 26-44.

- 180 -
à aplicação excessiva da prisão preventiva em processos criminais
relacionados ao tráfico de drogas, quase sempre com fundamento
na garantia da ordem pública e nos desdobramentos conceituais
do termo: periculosidade do agente; gravidade do delito; risco de
reiteração delitiva; “perniciosidade” social da ação; dentre outros.
Conforme foi discutido no presente trabalho, a prisão preventiva
justificada por esses fundamentos distorce completamente o caráter
instrumental e cautelar da medida, cuja função é meramente
acautelar a eficácia do processo de conhecimento. A principal
consequência de instrumentalizar o Poder Judiciário como agente
de combate a criminalidade (papel dos órgãos de segurança pública)
e pacificação dos anseios vingativos sociais é o aumento exponencial
do encarceramento e abarrotamento das prisões com pessoas que
ainda aguardam julgamento.
Sendo assim, é notável que a problemática da superlotação
das prisões com presos provisórios não pode ser resolvida somente
do ponto de vista administrativo ou legislativo, também se faz
necessário uma mudança de paradigma dentro do sistema de justiça.
No nosso ordenamento jurídico existem diversos dispositivos com
vistas a dar efetividade a presunção de inocência e outras garantias
fundamentais, um deles é o §6º do art. 282 do Código de Processo
Penal, segundo o qual a prisão preventiva deve ser aplicada apenas
quando não for cabível sua substituição por outra medida cautelar.
O artigo 319 do Código de Processo Penal elenca uma série
de medidas cautelares diversas da prisão que podem ser utilizadas
para resguardar os mesmos bens jurídicos processuais e evitar os
mesmos riscos que justificam a decretação da medida extrema. Por
exemplo, uma prisão decretada para assegurar a aplicação da lei
penal, com fundamento no risco de fuga, pode ser substituída pelo
monitoramento eletrônico, comparecimento periódico em juízo e/
ou proibição de se ausentar da comarca.
Sendo assim, a curto e médio prazo, o sistema de justiça
pode adotar as seguintes soluções para amenizar o uso de prisões
preventivas, especialmente nos crimes de tráfico de drogas: garantir

- 181 -
que a prisão preventiva seja aplicada como medida realmente
excepcional, priorizando a adoção de medidas cautelares não
privativas de liberdade e assegurar o julgamento célere das pessoas
que se encontram presas preventivamente.

REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2002.
BRASIL, Ministério da Justiça e Segurança Pública. Departamento Peni-
tenciário Nacional. Levantamento nacional de informações penitenciárias:
período de janeiro a junho de 2022. 2022. 1 painel interativo. Disponível
em: https://www.gov.br/depen/pt-br/servicos/sisdepen.
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Tradução de Maria
Celeste Cordeiro Leite dos Santos. 10. ed. Brasília: UnB, 1982.
BOITEUX, Luciana. Controle penal sobre as drogas ilícitas: o impacto do
proibicionismo no sistema penal e na sociedade. 2006. 273 f. Tese (Douto-
rado em Direito) – Universidade de São Paulo, Faculdade de Direito, São
Paulo, 2006.
BORGES, Juliana. O que é encarceramento em massa? Belo Horizonte: Le-
tramento, 2018.
CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: do discurso
oficial às razões da descriminalização. 1996. 365 f. Dissertação (Mestrado
em Direito) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1996.
CAVALCANTI, Gênesis Jácome Vieira. A crise estrutural do capital e o en-
carceramento em massa: o caso brasileiro. 2019. 164 f. Dissertação (Mes-
trado em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas) – Universidade
Federal da Paraíba, João Pessoa, 2019.
CHERNICHARO, Luciana Peluzio. Sobre Mulheres e Prisões: Seletividade
de Gênero e Crime de Tráfico de Drogas no Brasil. Orientador: Prof. Dra.
Luciana Boiteux de Figueiredo Rodrigues. 2014. 160 f. Dissertação (Mestra-
do) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Centro de Ciências Jurídicas e
Econômicas, Faculdade de Direito, RIO DE JANEIRO, 2014.
FREITAS, Alexandre José Salles de. Prisão preventiva e drogas: “a polícia
prende e a Justiça não solta”. 2017. 203 f. Dissertação (Mestrado em Ciên-
cias sociais) – Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2017.
JAKOBS, Gunther. MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções
e críticas. 2ª Ed. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2007. p. 45

- 182 -
LIMA, Renato Brasileiro. Manual de Processo Penal: volume único. 8 ed.
Salvador: Editora JusPODIVM, 2020.
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 17. ed. São Paulo: Saraiva,
2020.
MARTINS, Carla Benítez. DISTRIBUIR E PUNIR? Capitalismo dependente
brasileiro, racismo estrutural e encarceramento em massa nos governos do
Partido dos Trabalhadores (2003-2016). 353 f. Tese (Doutorado em Sociolo-
gia) - Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2018.
OLIVEIRA, João Rafael. Contribuições para uma compreensão crítica do
uso da prisão preventiva pelos juízos criminais estaduais de Curitiba. 2015.
121 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Federal do Paraná,
Curitiba, 2015.
OLMO, Rosa del. A face oculta da droga. Rio de Janeiro: Revan, 1990.
RIBEIRO, Juliana Serretti de Castro Colaço. Fronteiras de guerra: um es-
tudo etnográfico com as mulheres que fazem a travessia de drogas para
presídios masculinos reclusas na Penitenciária Júlia Maranhão. 2017. 201 f.
Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Federal da Paraíba, Cen-
tro de Ciências Jurídicas, João Pessoa, 2017.
SANCHES, Raphael Rodrigues. Delenda proibicionismo: apontamentos crí-
ticos ao paradigma de Guerra às Drogas. 2010. 131 f. Dissertação (Mestrado
em Psicologia) – Universidade Estadual Paulista, São Paulo, 2010.
SANTORO, Antonio Eduardo Ramires. BRANCO, Thaynara Silva Castelo.
Desenhos processuais de exceção no direito brasileiro. Criminologias e
Política Criminal II. Coordenadores: Thais Janaina Wenczenovicz; Vladia
Maria de Moura Soares. – Florianópolis: CONPEDI, 2018. p. 26-44
SILVEIRA FILHO, Sylvio Lourenço da. As medidas cautelares pessoais no
projeto de código de processo penal. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Mi-
randa; CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti (org). O novo processo penal
à luz da Constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p.247-270.
TANNUSS, Rebecka Wanderley. O corpo como campo de batalha: análises
sobre o transporte de drogas feminino para o sistema prisional. 197 f. Tese
(Doutorado em Psicologia) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
Natal, 2022.
TAPOROSKY FILHO, Paulo Silas. Jurisdição e Retórica: o problema da or-
dem pública como fundamento da prisão preventiva. 2019. 161 f. Disserta-
ção (Mestrado em Direito) – Centro Universitário Internacional, Curitiba,
2019.
VALOIS, Luís Carlos. O direito penal da guerra às drogas. 3. ed. Belo Hori-
zonte, São Paulo: D’Plácido, 2020.

- 183 -
APLICAÇÃO DA DETRAÇÃO
PENAL DAS MEDIDAS
CAUTELARES DIVERSAS DA
PRISÃO À LUZ DA TEORIA
GARANTISTA
Alberdan Coelho de Souza Silva106

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O presente capítulo se propõe a tratar da possibilidade de
aplicação da detração penal das medidas cautelares diversas da
prisão, partindo da base teórica da teoria garantista de Luigi Ferrajoli
e observando a aplicação dos princípios garantistas previstos na
Constituição Federal. Desse modo, o objetivo deste trabalho é
analisar, a partir do arcabouço legal brasileiro, a viabilidade de
detrair as medidas cautelares diversas da prisão no tempo da pena
definitiva, a despeito da ausência de previsão legal explícita.
Para tanto, inicialmente são tratadas as medidas cautelares
diversas da prisão, sua natureza jurídica, os princípios mais
importantes que as permeiam, suas espécies, sua finalidade e os
requisitos a serem observados para a sua aplicação.
O tópico seguinte é dedicado ao instituto da detração penal,
partindo de um breve percurso histórico na legislação brasileira,
seguindo para a sua atual previsão no art. 42 do Código Penal, a
conceituação que a doutrina lhe dá e aquela que é adotada neste
capítulo. A partir de então, é exposta a finalidade do instituto, as
hipóteses em que são cabíveis, a natureza jurídica e a sua aplicação
extensiva.

106 Advogado, Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de João Pessoa-(UNIPE)

- 185 -
Ato contínuo, o próximo tópico se dedica à exposição da teoria
garantista de Luigi Ferrajoli, momento em que se faz uma contida
análise das influências sofridas e causadas, bem como das alterações
que provocou na norma jurídica e na jurisdição. Em seguida, já no
campo do Direito Penal, são estudados os elementos constitutivos
do modelo garantista, seus princípios axiológicos fundamentais e
os graus de garantismo. Concluindo com o princípio da equidade
enquanto mecanismo do conhecimento judicial.
Por fim, o ponto alto do debate se encontra na discussão da
possibilidade de detração das medidas cautelares diversas da prisão.
A primeira proposta apresentada é a da interpretação extensiva
do dispositivo que versa sobre a detração, partindo do interesse
de limitar o jus puniendi do Estado, conforme preconiza a teoria
garantista. A segunda proposta é o uso da analogia in bonam partem,
momento em que são traçadas as suas diferenças da interpretação,
assim como se aborda a previsão legal para a sua aplicação diante da
lacuna da lei.
Com fito de aprofundar os temas abordados e sustentar
as saídas propostas, este texto lança mão de artigos e livros; da
legislação internacional e pátria; e da jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça.
Trata-se de um estudo descritivo, com análise qualitativa do
instituto da detração penal e da sua possível aplicação diante das
medidas cautelares diversas da prisão. Não é o alvo exaurir o tema,
e sim oportunizar um debate acerca dessa matéria ainda pouco
debatida na doutrina e, sobretudo, na prática penal no sistema de
justiça criminal.

MEDIDAS CAUTELARES DIVERSAS DA PRISÃO

A Constituição Federal de 1988 (CRFB), por meio do art. 5º,


LVII, trouxe em seu bojo o princípio da presunção de inocência, o
qual preceitua que todo acusado é presumido inocente até o trânsito

- 186 -
em julgado da sentença que o declare culpado107.
Assim, além de garantir que o ônus da prova recaia sobre
a acusação e não sobre a defesa, o referido princípio reforça a
excepcionalidade e a necessidade das medidas cautelares, uma vez
que o sujeito inocente só poderá ter a sua liberdade mitigada quando
realmente for útil à instrução e à ordem pública (NUCCI, 2020)108.
O princípio da presunção de inocência, também conhecido
como estado ou situação jurídica de inocência, não admite qualquer
privação da liberdade do acusado que tenha caráter antecipativo da
condenação, seja na fase investigatória (pré-processual) ou na fase
processual propriamente dita (ação penal).
Entretanto, diante de uma situação de risco concreto e efetivo
ao regular andamento do processo em decorrência de ato do acusado,
é facultado ao Estado adotar medidas que lidem com tais problemas,
inclusive, a privação da liberdade do jurisdicionado antes mesmo do
trânsito em julgado da sentença penal condenatória, desde que essa
medida ostente natureza cautelar e seja imposta por ordem judicial
devidamente fundamentada (PAELLI, 2020)109.
Nesse diapasão, a criação da Lei nº 12.403/11 promoveu
importantes alterações no trato das prisões e da liberdade provisória,
ao inserir uma série de alternativas para que o magistrado assegure
o escopo processual sem a necessidade de adotar medidas com
fim punitivo que antecipam a tutela penal, ao mesmo tempo
que atropelam o princípio da presunção de inocência e do devido
processo legal.
É bem verdade que outras cautelares já existiam e eram
aplicadas desde o início do Código de Processo Penal (CPP),
contudo não ostentavam essa nomenclatura. A exemplo de medidas
cautelares de natureza patrimonial, como a restituição de bens, o
arresto, o sequestro e a instituição de hipoteca legal, cujas regras

107 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.


108 NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de direito processual penal. 17. ed. Rio de Janeiro: Foren-
se, 2020.
109 PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. 24. ed. São Paulo: Atlas, 2020.

- 187 -
estão dispostas no art. 120 e seguintes do CPP110. Foi a partir da Lei nº
12.403/11 que todas as restrições de direitos pessoais e à liberdade de
locomoção previstas no CPP, antes do trânsito em julgado, passaram
a ser chamadas de medidas cautelares.
Assim, as medidas cautelares existem para garantir a eficácia
do processo penal ou da investigação, ou ainda para evitar novas
infrações penais (Art. 282, I, do CPP). Para isso, a aplicação das
medidas cautelares deve ser fundada no fumus comissi delicti, que
pode ser entendido com aparência do fato delituoso, e no periculum
libertatis, significando o perigo gerado pelo estado de liberdade do
imputado.
No que tange à base principiológica das medidas cautelares,
destacam-se: jurisdicionalidade e motivação; contraditório;
provisionalidade; provisoriedade; excepcionalidade; e
proporcionalidade. Os quais terão as suas características abordadas
a seguir.
O princípio da jurisdicionalidade está previsto na Carta Maior
através do art. 5º, LXI, o qual garante que ninguém será preso
senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de
autoridade judiciária competente, salvo nos casos de crime militar.
Ademais, ainda no texto constitucional, o art. 5º, LIV, assegura que
ninguém será privado de liberdade ou de seus bens sem o devido
processo legal. Assim, a aplicação de medidas cautelares requer a
existência de um processo (art. 283, caput, do CPP).
O art. 8.1, da Carta Americana de Direitos Humanos (CADH),
ao abordar as garantias judiciais assegura que “toda pessoa tem
o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um
prazo razoável”111. No plano constitucional, o art. 5º, LV, assegura o
contraditório e a ampla defesa. Já na esfera infraconstitucional, o art.
282, § 3º, do CPP, garante a intimação da parte contrária (da defesa)
assim que o juiz receber o pedido de medida cautelar, resguardando

110 BRASIL. Decreto-Lei n.º 3.689, de 03 de outubro de 1941. Código de Processo Penal.
111 ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Americana de Direitos Humanos
(“Pacto de San José de Costa Rica”), 1969. Disponível em: <https://www.cidh.oas.org/basicos/por-
tugues/c.convencao_americana.htm>. Acesso em 02 abr. 2023

- 188 -
os casos de urgência ou de perigo de ineficácia da medida, em
que o ideal é que o contraditório se dê em momento posterior
(contraditório diferido). É neste robusto lastro legal que o princípio
do contraditório se manifesta nas medidas cautelares.
A provisionalidade prevê que diante do desaparecimento do
suporte fático legitimador da medida cautelar, seja o fumus commissi
e/ou o periculum libertatis, a mesma deverá ser cessada. O referido
princípio basilar está lapidado no CPP, por meio dos parágrafos 4º
e 5º do art. 282, ao determinar que a medida cautelar, seja de prisão
preventiva ou alternativa a ela, poderá ser revogada ou substituída, a
qualquer tempo, quando verificar a falta de motivo para que subsista.
Do mesmo modo, pode o magistrado voltar a decretá-la diante da
verificação de razões que a justifiquem (periculum libertatis atual e
presente).
Em que pese a semelhança na nomenclatura com o princípio
da provisionalidade, o da provisoriedade, distintamente, está
relacionado com a duração das medidas cautelares que, a malgrado
de não ter limites fixados em lei, devem ou, ao menos, deveriam ser
de breve duração e terem prazos para revisão, tendo em vista que
não deixam de limitar direitos do jurisdicionado.
Ato contínuo, o princípio da excepcionalidade é basilar para
a aplicação de qualquer medida cautelar, uma vez que a liberdade
é um direito fundamental dos sujeitos, assim como lhe é garantida
a presunção de inocência. Logo, a aplicação de qualquer medida
cautelar deve ser feita de forma excepcional, quando a lei autorizar o
cerceamento da liberdade do jurisdicionado, a exemplo do art. 282, §
6º, do CPP, que coloca a prisão preventiva como ultima ratio.
Concluindo com o princípio que sustenta as medidas cautelares,
a proporcionalidade pode ser dividida em três subprincípios:
adequação, necessidade e proporcionalidade no sentido estrito. A
adequação propõe que a medida cautelar deve ser apta a atingir os
seus motivos e fins, sopesando a gravidade do crime, as circunstâncias
do fato e as condições pessoais do indiciado ou acusado (art. 282,
II, do CPP). Já a necessidade prega que a medida não deve cometer

- 189 -
excessos para chegar ao resultado esperado, tendo estreita ligação
com os princípios da provisoriedade e da provisionalidade. Por fim,
a proporcionalidade em sentindo estrito requer a ponderação por
parte do magistrado, para que este faça uma análise circunspecta das
diversas medidas cautelares previstas, mantendo a prisão preventiva
como expediente último desse sistema (art. 282, § 6º, do CPP).
Quanto às espécies, as medidas cautelares podem ser reais,
probatórias (ou instrutórias) e pessoais (ou subjetivas). As medidas
cautelares reais estão previstas nos arts. 120 a 144 do Código de
Processo Penal (CPP), e possuem o fito de garantir a eficácia dos
efeitos da condenação.
Já as medidas cautelares probatórias ou instrutórias, a
exemplo da prevista no art. 5º, XII, da CRFB112; art. 217113, arts. 240 a
250, todos do CPP, com objetivo de garantir a integridade do material
probatório e viabilizar a sua coleta.
Enquanto, as medidas cautelares pessoais ou subjetivas estão
previstas no art. 319 do CPP, com o escopo de atenuar os rigores da
prisão ao custo da limitação da liberdade do jurisdicionado. Tais
medidas se subdividem em prisão cautelar/provisória e cautelares
diversas da prisão. Parte da doutrina considera a prisão em flagrante
(art. 301 e seguintes do CPP) como sendo uma cautelar, contudo, este
trabalho segue o entendimento de Aury Lopes Junior (2020)114 que
considera a prisão em flagrante como sendo uma precária detenção
“pré-cautelar”115.
Todas as medidas cautelares, indistintamente, visam lidar
com uma situação de crise processual representada pelo fumus

112 Art. 5º, XII, da CRFB - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráfi-
cas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipó-
teses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual
penal.
113 Art. 217, caput, do CPP - se o juiz verificar que a presença do réu poderá causar humilhação,
temor, ou sério constrangimento à testemunha ou ao ofendido, de modo que prejudique a verdade
do depoimento, fará a inquirição por videoconferência e, somente na impossibilidade dessa forma,
determinará a retirada do réu, prosseguindo na inquirição, com a presença do seu defensor.
114 LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal. 17. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
115 A prisão em flagrante é uma medida precária que não está voltada para a garantia do resulta-
do final do processo, e sim a colocar o detido à disposição da Justiça para a adoção ou não de uma
medida cautelar.

- 190 -
commissi delicti e pelo periculum libertatis. Tendo em vista o caráter
excepcional destas medidas, a sua aplicação requer o binômio
necessidade/utilidade.
Os requisitos da necessidade e da adequação estão
intimamente ligados ao princípio da proporcionalidade, conforme
mencionado anteriormente. Necessária é a medida cautelar que se
mostra imprescindível frente à situação fática delineada. Adequada
é a medida aplicada especificamente para a situação concreta e
determinada dentre todas as outras opções disponíveis116.
Sem embargo de, doutrinariamente, não serem tratadas como
penas, as medidas cautelares correspondem a um cerceamento do
gozo de direitos fundamentais do sujeito, uma vez que a aplicação
de qualquer medida cautelar incide na mitigação do princípio
constitucionalmente previsto da presunção de inocência.
Tal entendimento é ainda mais precário para as medidas
cautelares diversas da prisão que, à primeira vista, podem denotar
exigir um sacrifício menor do jurisdicionado, contudo, são uma
verdadeira sanção antecipada, ao passo que cerceiam os direitos do
mesmo, em detrimento à garantia do princípio basilar da presunção
de inocência.
Importa frisar que as medidas cautelares diversas não são
substitutivas da prisão. Na realidade, são uma alternativa a elas. Em
razão disso, a imposição destas medidas exige os mesmos requisitos
para a decretação da prisão preventiva.
Assim, as medidas cautelares diversas da prisão não podem
ser vistas como um “favor”, tampouco um “preço mínimo” a ser pago
para livra-se da prisão em flagrante (SANCHES, 2020)117, visto que
há uma mitigação da presunção de inocência do jurisdicionado,
diante de restrições a sua liberdade antes mesmo da sentença penal

116 Idem.
117 SANCHES, Nayme Hadad. Aplicação da detração penal sob a luz da constituição federal.
2020. 237 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Nove de Julho, São Paulo: 2020.
Disponível em: <https://bibliotecatede.uninove.br/handle/tede/2392#:~:text=O%20artigo%20
42%20do%20CP,denomina%C3%A7%C3%A3o%20t%C3%A9cnica%20de%20detra%C3%A7%-
C3%A3o%20penal.>. Acesso em 28 mar. 2023.

- 191 -
condenatória transitar em julgado. Ademais, tanto a prisão provisória
quanto as medidas cautelares diversas da prisão são limitadoras de
direitos humanos fundamentais.

DETRAÇÃO 

O instituto da detração penal passa a ser adotado no Brasil


a partir do governo provisório da República, em meados do ano de
1890, quando foi revogado o art. 37 do Código Penal de 1830118, ainda
vigente à época, o qual vedava a detração.
Com o advento do Código Penal de 1890, a detração penal passou
a ser expressamente prevista no art. 60119. Na mesma toada, o Código
Penal de 1940 (CP) manteve o instituto, aprofundado a disciplina
do mesmo em seu art. 34120. Foi com a reforma penal brasileira de
1984, por meio da Lei n º 7.209 do mesmo ano, que o Código Penal de
1940 passou a tratar do tema em seu art. 42: “Computam-se, na pena
privativa de liberdade e na medida de segurança, o tempo de prisão
provisória, no Brasil ou no estrangeiro, o de prisão administrativa e
o de internação em qualquer dos estabelecimentos referidos no artigo
anterior”121. Ademais, a reforma penal também alterou o CPP, o qual
passou a prever a possibilidade da detração em seus arts. 672 e 680.
Mais recentemente, a Lei nº 12.736/12, incluiu o § 2º, ao art.
387, do CPP, assim, passando a prever a possibilidade de a detração
ser computada para fins de determinação do regime inicial de pena
privativa de liberdade. Desse modo, a competência para examinar
o tema não é mais única e exclusivamente do juiz das execuções
penais, visto que, em um primeiro momento, a competência recai

118 Art. 37, do Código Penal de 1830: “Não se considera pena a prisão do indiciado de culpa para
prevenir a fugida, nem a suspensão dos magistrados pelo Poder Moderador, na forma da Consti-
tuição”.
119 Art. 60 do Código Penal de 1890: “Não se considera pena suspensão, a administrativa nem a
prisão preventiva dos indiciados, a qual, todavia, será computada na pena legal”.
120 Art. 34 do Código Penal de 1940, antes da reforma de 1984: “Computam-se na pena privativa
de liberdade o tempo de prisão preventiva ou provisória, no Brasil ou no estrangeiro, e o de inter-
nação em hospital ou manicômio”.
121 BRASIL. Decreto-lei n.° 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal.

- 192 -
sobre o juiz do conhecimento, no momento em que sentencia o
acusado.
Brevemente delineado o percurso histórico da detração na
legislação pátria, interessa abordar a delimitação conceitual do
instituto com base na sua previsão legal (art. 42, do CP).
A detração penal é tratada como uma dedução na pena
privativa de liberdade ou na medida de segurança do tempo em
que o jurisdicionado ficou preso antes da sentença condenatória
definitiva, seja em prisão provisória fruto da prisão em flagrante,
temporária ou preventiva, cumprida no Brasil ou no estrangeiro;
seja em prisão administrativa; ou ainda, na condição de interno em
hospital de custódia e tratamento psiquiátrico.
Nesse sentido, Cezar Bitencourt (2020, p. 235)122 resume que
“através da detração penal permite-se descontar, na pena ou na
medida de segurança, o tempo de prisão ou de internação que o
condenado cumpriu antes da condenação”.
Este capítulo adota uma conceituação extensiva, ao considerar
que a detração penal deve ser vista como o abatimento de toda e
qualquer situação jurídico-penal ou processual que importe num
cerceamento da liberdade do agente na marcha processual penal. O
que engloba não apenas o tempo de prisão ou internação do réu,
mas, também, as situações que lhe foram impostas e restringiram
a sua liberdade, como é o caso das medidas cautelares diversas da
prisão123.
Ou seja, estende o alcance da detração penal para além
daquelas hipóteses previstas no art. 42 do CP – a prisão provisória, a
administrativa e a internação, de modo que atinge demais situações
de supressão de liberdade impostas pelo poder estatal antes do
trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
Destarte, a principal finalidade da detração penal, em
homenagem ao princípio do ne bis in idem, é impedir o excesso de

122 BIENCOURT, Cezar Roberto. Coleção tratado de direito penal volume 1. 26. ed. São Paulo:
Saraiva Educação, 2020.
123 SANCHES, op. cit., 2020, p. 116.

- 193 -
execução, ao limitar o poder-dever estatal de punir, garantindo que
aquele que for condenado criminalmente possa cumprir uma pena
justa, na forma que a Constituição Federal assegura.
Em análise detida de cada uma das hipóteses de detração
prevista no CP, a primeira é o desconto do tempo de prisão provisória
no Brasil ou no estrangeiro, a qual engloba a prisão em flagrante
delito, a prisão temporária, a prisão preventiva, a prisão decorrente
de sentença de pronúncia e a prisão decorrente de sentença
condenatória recorrível.
A despeito da revogação do texto do art. 319 do CPP que
disciplinava a prisão administrativa, Cezar Bitencourt (2020)124
advoga a tese de que a detração ainda pode ser aplicada em
alguns remanescentes desse tipo de prisão, a exemplo das prisões
nos quartéis militares, em razão de indisciplina, ou da prisão
do extraditando enquanto aguarda a tramitação do processo no
Supremo Tribunal Federal (STF) ou no Superior Tribunal de Justiça
(STJ).
Ocupando a terceira hipótese de detração prevista no CP, está
o desconto do tempo de internação em casas de saúde, a exemplo
dos hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico.
Feitas as ponderações acerca das hipóteses de detração
penal previstas no art. 42 do CP, é momentoso destacar a natureza
jurídica benéfica ao jurisdicionado, de modo que a sua aplicação,
em homenagem ao princípio do favor rei, deve ser feita de forma
extensiva, a fim de ampliar direitos, conforme diretriz de norma
constitucional.
Desta forma, não só é permitida, como necessária uma
interpretação analógica, a fim de que as interdições temporárias
de direitos diversas da prisão também possam gozar do mesmo
tratamento das hipóteses previstas no CP.

124 BITENCOURT, op. cit., 2020.

- 194 -
TEORIA GARANTISTA
Na célebre obra “Direito e Razão: teoria do garantismo
penal”, Luigi Ferrajoli (2002)125, após um contexto de turbulência
sócio-política na Itália nas décadas de 1960 a 1980, no que ficou
conhecido como “Anos de chumbo”, apresenta o modelo garantista
de legalidade penal e processual penal como sendo algo recente –
com pouco mais de dois séculos, quando comparado com a esteira da
tradição autoritária, mais antiga e ainda latente.
O modelo garantista clássico serve-se diretamente da tradição
jurídica iluminista e liberal, prova disso são os seus princípios
fundadores que formam um esquema epistemológico, coerente e
unitário, voltado à identificação do desvio penal, a fim de maximizar
o grau de racionalidade e confiabilidade do juízo, limitando o
jus puniendi do Estado ao passo que tutela o sujeito de possíveis
arbitrariedades.
Com o constitucionalismo resultante da positivação dos
direitos fundamentais como limitadores e vinculantes à legislação
positiva, houve uma verdadeira revolução na natureza do direito.
O postulado positivo clássico, no qual uma norma jurídica existia
e era válida se respeitasse as formas em sua construção (dimensão
formal), já não bastava para o Estado constitucional de direito e,
assim, a legalidade positiva deixou de ser condicionante para ser
condicionada em razão dos vínculos de conteúdo impostos pelos
direitos fundamentais (dimensão substancial).
Nesse diapasão, a jurisdição também passou por mudanças,
ela “não é mais simplesmente a sujeição do juiz à lei, mas é também
análise crítica de seu significado para controlar a legitimidade
constitucional” (FERRAJOLI, 2011, p.)126
No campo do Direito Penal, os elementos constitutivos do
modelo garantista, segundo Ferrajoli (2002)127, são divididos em dois:

125 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribu-
nais, 2002.
126 FERRAJOLI, Luigi. Por uma teoria dos direitos e dos bens fundamentais. Porto Alegre: Livra-
ria do Advogado, 2011.
127 FERRAJOLI, op. cit., 2002.

- 195 -
o convencionalismo penal, relativo à definição legislativa do desvio
a ser punido; e o cognitivismo processual, relativo à comprovação
jurisdicional do desvio punível.
O convencionalismo penal resulta do princípio da legalidade
estrita, o qual não admite normas constitutivas, mas, somente,
normas regulamentares que qualifiquem como penalmente
relevantes comportamentos empíricos determinados e identificados
como tais, somadas à presença da culpabilidade do sujeito. Um dos
efeitos fundamentais disso é a garantia da liberdade dos cidadãos,
na medida em que pune apenas o que é coibido pela lei. Outro efeito
decorrente desse convencionalismo é a igualdade jurídica entre os
cidadãos defronte da lei.
Enquanto isso, o cognitivismo processual é assegurado pelo
princípio da estrita legalidade, o qual, visando vedar um juízo
apodítico, exige a verificabilidade e a refutabilidade das hipóteses
acusatórias, bem como a comprovação empírica lastreada em provas
e contraprovas.
A adoção de um modelo garantista em seu grau máximo, nas
palavras de Ferrajoli (2002)128, requer a inclusão de dez princípios
axiológicos fundamentais, são eles: I) princípio da retributividade ou
da consequencialidade da pena em relação ao delito (nulla poena sine
crimine); II) princípio da legalidade, no sentido lato ou no sentido
estrito (nullum crimen sine lege); III) princípio da necessidade ou da
economia do direito penal (nulla lex (poenalis) sine necessitate); IV)
princípio da lesividade ou da ofensividade do evento (nulla necessitas
sine injuria); V) princípio da materialidade ou da exterioridade da
ação (nulla injuria sine actione); VI) princípio da culpabilidade
ou da responsabilidade (nulla actio sine culpa); VII) princípio da
jurisdicionariedade, no sentido lato ou no sentido estrito (nulla
culpa sine judicio); VIII) princípio acusatório ou da separação entre
juiz e acusação (nullu judicium sine accusatione); IX) princípio do
ônus da prova ou da verificação (nulla acusatio sine probatione); e X)
princípio do contraditório ou da defesa, ou da falseabilidade (nulla
probatio sine defensione).
128 Idem.

- 196 -
Observando a ausência e a presença desses axiomas
garantistas, o autor elenca nove graus de garantismo que oscilam
entre dois extremos opostos (direito penal máximo e o direito penal
mínimo), com diversos sistemas intermediários129.
O direito penal máximo, também chamado de incondicionado
e ilimitado, tem como principais características a austeridade
descomedida, a imprecisão e a vicissitude das condenações e das
penas, o que faz dele um sistema de poder irracional que não se digna
a estabelecer limites precisos no arbítrio punitivo. Aqui a certeza
perseguida é a de que nenhum culpado fique impune, ainda que
o custo seja incerteza de que algum inocente porventura também
venha a ser punido.
Doutra banda, o direito penal mínimo é aquele fortemente
condicionado e limitado à tutela das liberdades dos cidadãos, diante
do jus puniendi do Estado e de um ideal de racionalidade, ao passo
que os poderes públicos são limitados e vinculados à lei no plano
substancial, e submetidos a um plano processual. Neste, a certeza
almejada é a de que nenhum inocente seja punido, ao preço de que
algum culpado possa vir a ficar impune.
Um exemplo de norma limitadora do direito penal mínimo
é o critério do favor rei, corolário do in dubio pro reo, em que são
permitidas e exigidas as intervenções e valorações de exclusão ou
de atenuação da responsabilidade, diante de cenário de incerteza
quanto aos elementos cognitivos da pena. Tal critério é exequível
graças ao poder de conotação do juiz, o qual se expressa por meio
de escolhas e valorações discricionárias equitativas (princípio da
equidade), uma vez que o magistrado não julga o tipo de delito
(aquele previsto pelo Legislativo), e sim o delito no plano concreto,
com todas as suas singularidades e especificidades.
O juízo de equidade visa justamente compreender as
características acidentais e próprias do caso particular e não
conotadas pela lei. Ferrajoli (2002)130 ensina que o princípio da

129 Por razões metodológicas, neste trabalho não serão esmiuçados os sistemas intermediários.
130 Idem, p. 129

- 197 -
equidade é “uma rega metajudicial, que prescreve que o juízo conote
da maneira mais precisa e penetrante os fatos denotados pela lei,
compreendendo neles todas as características acidentais, específicas
ou particulares”.
Para o autor, a equidade não é uma fonte alternativa à
legalidade, tampouco uma “muleta” à qual a justiça se socorre diante
de lacunas ou equívocos da lei. De modo que não há razão de ser a
oposição entre equidade e legalidade, visto que são dois aspectos
distintos e indissociáveis do conhecimento judicial.
Sendo a sociedade uma organização viva e em constante
ebulição, o aforismo latino in claris non fit interpretatio (nas
coisas claras não se faz interpretação) não encontra sentido na
contemporaneidade. Uma lei não é clara sem que seja interpretada
a sua clareza. A interpretação das leis e dos atos normativos
conforme a constituição é um critério de exegese constitucional,
que tem como primeiro objetivo garantir a realização da vontade da
constituição, escolhendo dentre os significados apresentados aquele
que melhor a atenda. O seu segundo objetivo é harmonizar as leis
e atos normativos à constituição, excluindo interpretações que a
contrariem131.

DA POSSIBILIDADE DE DETRAÇÃO DAS


MEDIDAS CAUTELARES DIVERSAS DA PRISÃO

Neste capítulo, o ponto de interesse é a interpretação da lei


penal à luz da Constituição Federal de 1988 das normas que versam
acerca da detração penal.
Ao observar na teoria de Ferrajoli a necessidade de limitar o
poder punitivo estatal, é preciso que a interpretação do direito se
dê com uma menor discricionariedade judicial, em observância ao
controle de linguagem e princípio da máxima taxatividade.

131 BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

- 198 -
Por mais que um sistema penal adote normativamente
o modelo cognitivo garantista, jamais será de fato um sistema
fechado que dispense a heterointegração investida de autonomia e
discricionariedade do intérprete. Isso se deve ao reconhecimento do
mito da neutralidade do juiz. Assim, sendo essas escolhas inevitáveis
que elas sejam conscientes, explícitas, informadas em princípios
gerais e expostas ao controle público132.
Nesse diapasão, seria possível a interpretação doutrinária e
extensiva dos artigos que tratam da detração penal no ordenamento
brasileiro, adaptando a norma à nova realidade, em que as medidas
cautelares, ainda que diversas da prisão, representam meios de
limitação de liberdades individuais de investigados e acusados.
Tendo como fito capital a limitação do ímpeto punitivo do Estado.
A interpretação extensiva do termo “prisão provisória”,
colocado no art. 42 do CP, passaria a contemplar as demais medidas
cautelares diversas da prisão, uma vez que também são restritivas de
direitos, ampliando, dessa forma, o alcance do benefício da detração.
Não obstante, diante da remota possibilidade da interpretação
extensiva do art. 42 do CP ser rechaçada, há como promover a
materialização dos princípios garantistas no benefício da detração
através do uso da analogia in bonam partem.
Por mais abrangente que uma legislação seja, ela jamais será
versada de esgotar todas as hipóteses passíveis de serem apresentadas
pela complexa vida social no decorrer do tempo. O direito tem lacunas
na sua estrutura, pois, ainda que seja transformado para acompanhar
as mudanças de uma sociedade em constante metamorfose, a vida
o ultrapassa. Se novas leis não tratam de cobrir esses espaços, é
sobre o magistrado que recaí o dever de preenchê-las diante do caso
concreto, através da analogia133.
Observe que entre a analogia e a interpretação extensiva ou,
até mesmo, a analógica não cabe confusão. A analogia não é uma
modalidade interpretativa, e sim uma forma de aplicar a lei mediante

132 FERRAJOLI, op. cit., 2002.


133 BITENCOURT, op. cit., 2020.

- 199 -
a integração da norma jurídica. Por meio dela, procura-se aplicar
um preceito ou ainda os próprios princípios gerais do direito a uma
hipótese não contemplada na norma em questão. Ou seja, não há
uma obscuridade ou incerteza no texto da lei, e sim uma lacuna para
disciplinar determinada conjuntura.
Ao distinguir a interpretação da analogia, Cezar Bitencourt134
ensina que a finalidade da primeira é encontrar a vontade da lei,
enquanto o alvo da segunda é suprir a ausência de tal vontade. A
suplementação é feita através da extensão da norma jurídica de um
caso previsto para aquele não previsto, mas que detém semelhanças
e se vê contemplada pelo princípio informador da norma a ser
estendida.
No ordenamento jurídico brasileiro, a Lei de Introdução às
normas do Direito Brasileiro (LINDB) em seu art. 4º dispõe que
“Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a
analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”135. Isso não
significa que a analogia é por si só uma fonte do direito, e sim uma
forma de autointegração da lei diante da presença de lacunas, em
que determinada previsão legal já existente é aplicada a casos que
guardam semelhanças entre si.
A doutrina costuma dividir a analogia em duas espécies: a
analogia legal (analogia legis) em que se aplica a norma legal diante
da lacuna no texto da lei; e a analogia jurídica (analogia juris) na
qual o que se aplica são os princípios gerais de direito. A analogia
proposta nesta temática é a legis que, a despeito de ter um objetivo
comum com a juris – o de suprimir uma lacuna na norma, o seu
fundamento se encontra no apotegma ubi legis ratio, ibi eadem legis
dispositio (onde existe a mesma razão fundamental, deve prevalecer
a mesma regra de direito).
Importa destacar ainda que a analogia não é um recurso
ilimitado, passível de ser usado em toda e qualquer lacuna
normativa. Em alguns casos o seu uso não é cabível: i) nas leis penais
134 Idem.
135 BRASIL. Decreto-Lei n.° 4.657, de 04 de setembro de 1942. Lei de Introdução às normas do
Direito Brasileiro. 

- 200 -
incriminadoras (analogia in malam partem) em razão do princípio da
reserva legal, uma vez que elas restringem algum grau da liberdade
do sujeito e o direito penal só admite a analogia em benefício à
defesa (analogia in bonam partem); ii) nas leis excepcionais; e iii) nas
leis fiscais, em razão da similaridade com o caráter das penais.
No contexto tratado neste capítulo, o uso da analogia in bonam
partem para a aplicação do instituto da detração penal nos casos de
medidas diversas da prisão, atende os requisitos supracitados. A
detração penal apresenta natureza benéfica ao jurisdicionado por
limitar o ius puniendi estatal ao garantir o no bis in idem, satisfazendo
o princípio da reserva legal. Ademais, a detração não é prevista em
norma excepcional, uma vez que está localizada na Parte Geral do
Código Penal. Tampouco se trata de lei fiscal.
Passada a análise dos requisitos para o uso da analogia, parte-
se para o estudo da vontade da lei em beneficiar o réu por meio da
detração penal.
Ao prever que o tempo de prisão provisória, seja no Brasil ou
no estrangeiro, de prisão administrativa ou mesmo de internação
em hospital de tratamento e custódia será abatido na contagem do
tempo da pena privativa de liberdade e da medida de segurança,
verifica-se que o intuito da lei é deduzir aquele período em que o réu
teve os seus direitos limitados ou cerceados, para que não incorra no
excesso de execução.
Por se tratar de benefício, e imperioso que as hipóteses de
detração estejam previstas de forma detalhada na lei. Não obstante,
conforme explicado anteriormente, a Lei nº 12.403/2011, dentre
outras inovações, trouxe uma série de medidas cautelares diversas
da prisão que, apesar de serem opções alternativas à segregação
provisória, não deixam de ser uma modalidade de restrição à
liberdade do acusado, o que dá azo para a presente discussão acerca
aplicação analógica da detração penal.

- 201 -
Nesse sentido, MACHADO e OLIVEIRA (2013, p. 74)136 ao
distinguirem medidas cautelares privativas e restritivas de liberdade,
explicam que:
(...) uma medida que priva a liberdade de ir e vir do agente
faz com que seu status libertatis esteja espacialmente limitado
ao cárcere. De outro lado, medidas que restringem a liberdade
são aquelas que, apesar de não manter o agente na prisão,
impõem-lhe condições ao pleno gozo de seu status libertatis.

Ou seja, ainda que, em um primeiro momento, tais medidas


sejam menos gravosas do que as prisões cautelares, elas trazem
onerosidade ao jurisdicionado e podem ser convertidas em prisão
processual no caso de descumprimento. Inclusive, o STF reconhece
que o habeas corpus deve ser utilizado para impugnar medidas
cautelares de natureza criminal diversas da prisão137.
Desse modo, detrair do tempo da pena imposta via
sentença penal condenatória aquele período em que o réu passou
cumprindo medida cautelar diversa da prisão, a despeito de não
estar expressamente prevista em lei, é possível por meio do uso da
analogia in bonam partem.
Nesse sentido, Guilherme Nucci defende a possibilidade
de usar a medida cautelar diversa da prisão para os efeitos da
detração “se e somente se a pena aplicada for idêntica à cautelar
experimentada pelo acusado”138. Assim, a título exemplificativo,
se a cautelar aplicada for a de proibição de acesso ou frequência a
determinados lugares, e a pena restritiva de direitos aplicada for a de
proibição de frequentar tais lugares, é clara a necessidade de aplicar
a detração.

136 MACHADO, Felipe Daniel Amorim; OLIVEIRA, Filipe Costa. Detração nas medidas cautelares
pessoais: é possível? Revista SJRJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 36, p. 63-80, abr. 2013. Disponível em:
<http://bdjur.stj.jus.br/dspace/handle/2011/74777>. Acesso em 30 mar. 2023.
137 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 147.426/AP e HC 147.303/AP. Segunda Turma. Rel.
Ministro Gilmar Mendes. Julgados em 18/12/2017. Informativo 888: “O “habeas corpus” pode ser
empregado para impugnar medidas cautelares de natureza criminal diversas da prisão. [...]”. Dis-
ponível em: <https://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo888.htm #infor-
macao>. Acesso em 30 mar. 2023.
138 NUCCI, Guilherme de Souza. Prisão e liberdade. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 93.

- 202 -
Outrossim, o autor também defende, por meio da analogia
in bonam partem, a possibilidade de detrair ainda que a medida
cautelar estabelecida pelo juiz tenha sido mais gravosa do que a
pena aplicada (NUCCI, 2014)139. A exemplo da imposição de prisão
cautelar no curso de um processo que resulta numa condenação ao
pagamento de multa. Diante da gravidade da prisão, não faz mais
sentido que seja cobrada a sanção pecuniária.
Em que pese o inaudito posicionamento de Guilherme Nucci,
esta exposição propõe que a detração das medidas cautelares
diversas da prisão seja ainda mais ampla, sobretudo no que tange à
medida cautelar de recolhimento domiciliar noturno e nos dias de
folga (art. 319, V, do CP).
Verifica-se que a melhor interpretação a ser dada ao art.
42 do CP é a de que o período em que o jurisdicionado cumprir
medida cautelar de recolhimento noturno e nos dias de folga, deve
ser detraído da pena definitiva a ele imposta. Em observância ao
princípio da proporcionalidade e do non bis in idem.
O Ministro Relator Félix Fischer, da Quinta Turma do STJ,
no HC nº 496.049/MG, por decisão proferida no dia 14/05/2019,
entendeu que:
Embora inexista previsão legal, o recolhimento domiciliar
noturno, por comprometer o status libertatis da pessoa
humana, deve ser reconhecido como pena efetivamente
cumprida para fins de detração da pena, em homenagem ao
princípio da proporcionalidade e em apreço ao princípio do
non bis in idem. Precedentes140.

Partilhando do mesmo entendimento, a Ministra Relatora


Laurita Vaz, da Terceira Seção do STJ, no HC nº 455.097/PR, em
irretocável decisão proferida no dia 14/04/2021, ponderou que:

139 Idem.
140 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC n. 496.049/MG, relator Ministro Felix Fischer, Quin-
ta Turma, julgado em 14/5/2019, DJe de 20/5/2019. Disponível em: <https://processo.stj.jus.br/
SCON/pesquisar.jsp?i=1&b=ACOR&livre=((%27HC%27.clap.+e+@num=%27496049%27)+ou-
+(%27HC%27+adj+%27496049%27).suce.)&thesaurus=JURIDICO&fr=veja>. Acesso em: 02 abr.
2023.

- 203 -
(...) o réu submetido a recolhimento noturno domiciliar e
dias não úteis - ainda que se encontre em situação mais
confortável em relação àqueles a quem se impõe o retorno ao
estabelecimento prisional -, “não é mais senhor da sua vontade”,
por não dispor da mesma autodeterminação de uma pessoa
integralmente livre. Assim, em razão da evidente restrição ao
status libertatis nesses casos, deve haver a detração.141

Em seu brilhante voto, a Ministra reconheceu que a detração


da pena é a medida adequada diante do recolhimento domiciliar,
visto que enseja a privação de liberdade do agente, de modo que o
seu óbice impõe excesso de execução.
Recentemente, na esteira da jurisprudência supracitada, a
Terceira Seção do STJ fixou, por unanimidade, sob o rito dos recursos
repetitivos (REsp. 1.977.135/SC), uma tese dividida em três pontos
sobre o reconhecimento do período de recolhimento obrigatório
noturno e nos dias de folga para fins de detração de pena privativa
de liberdade.
O primeiro ponto defende que, em observância aos princípios
da proporcionalidade e do non bis in idem, o período de recolhimento
domiciliar noturno e nos dias de folga, deve ser detraído da pena
privativa de liberdade e da medida de segurança, uma vez que
compromete o status libertatis do indivíduo142.
Ato contínuo, o segundo ponto afasta o monitoramento
eletrônico como condição imprescindível para a detração dos
períodos em que o agente esteve submetido à medida cautelar de
recolhimento domiciliar noturno e nos dias de folga. Além de ser
dever do Estado disponibilizar a tornozeleira eletrônica, não há
razão para distinguir o investigado ou o acusado ao qual não foi
imposto o uso do aparelho143.
141 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC n. 455.097/PR, relatora Ministra Laurita Vaz, Ter-
ceira Seção, julgado em 14/4/2021, DJe de 7/6/2021. Disponível em: <https://processo.stj.jus.br/
SCON/pesquisar.jsp?i=1&b=ACOR&livre=((%27HC%27.clap.+e+@num=%27455097%27)+ou-
+(%27HC%27+adj+%27455097%27).suce.)&thesaurus=JURIDICO&fr=veja>. Acesso em: 02 abr.
2023.
142 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Terceira Seção. REsp 1.977.135-SC, Rel. Joel Ilan Pacior-
nik, julgado em 23/11/2022 (Tema Repetitivo 1155). Disponível em: <https://processo.stj.jus.br/
repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp?novaConsulta=true&tipo_pesquisa=T&cod_tema_ini-
cial=1155&cod_tema_final=1155>. Acesso em: 02 abr. 2023.
143 Idem.

- 204 -
Por fim, o terceiro ponto versa sobre a contagem da detração
da pena. Para tal, as horas de recolhimento domiciliar noturno e nos
dias de folga devem ser convertidas em dias, desprezando qualquer
fração inferior a vinte e quatro horas144. Feito isso, esses dias serão
abatidos da pena total imposta ao agente145.
Ou seja, o que se verifica é a supressão de uma lacuna por meio
da analogia in bonam partem, estendendo o benefício da detração
penal para situações similares às previstas em lei, fazendo uso do
princípio da proporcionalidade para viabilizar a sua aderência aos
casos concretos.
O escopo da detração penal – evitar abusos no jus puniendi
estatal, é plenamente atendido diante da sua aplicação por meio da
analogia às medidas cautelares diversas da prisão. Pois, conforme foi
demonstrado, tais medidas trazem consigo restrições à liberdade, de
modo que o seu desprezo no momento da fixação da pena levaria o
Estado a punir o sujeito duas vezes pelo mesmo fato, representando
um excesso de execução e uma violação frontal ao princípio do non
bis in idem.
Ademais, conforme ensina Ferrajoli: “A pena não serve
apenas para prevenir delitos injustos, mas, igualmente, as injustas
punições”146. Não é justa a punição aplicada em flagrante excesso.

CONCLUSÃO

Transposto todo o percurso desta explanação, é possível


arrematar alguns pontos para se alcançar a sua conclusão.
O primeiro deles é o fato inequívoco de as medidas cautelares,
mesmo diversas da prisão, incorrem na supressão da liberdade
do investigado ou do acusado. Em segundo lugar, a detração é
um instituto benéfico ao jurisdicionado, o que permite a sua
144 Em observância ao art. 11 do CP.
145 Idem.
146 FERRAJOLI, op. cit. 2002, p. 268.

- 205 -
interpretação extensiva, como também a sua aplicação diante de
medidas cautelares diversas da prisão por meio do uso da analogia
in bonam partem.
A Lei n. 12.403/11 trouxe alternativas à prisão cautelar no
curso do processo. O magistrado ao lançar mão delas não impõe um
“favor” ao jurisdicionado, e sim a observância da norma. Tampouco
é uma benesse/privilégio o desconto do período de cumprimento
de medida cautelar diversa da prisão no tempo total da pena ou da
medida de segurança imposta ao réu.
A analogia é um instrumento previsto em lei, sendo utilizada
na seara penal para preencher lacunas através de normas voltadas
para casos similares. As medidas cautelares previstas no art.
319 do CPP, ainda que não imponham a privação de liberdade do
jurisdicionado em unidade prisional, implicam em restrição ao livre
gozo de direitos fundamentais desse sujeito. Destarte, não é cabível
ignorar tais privações no curso processual, em que deveria se atentar
ao princípio da presunção de inocência em primeiro lugar.
O corpo normativo penal brasileiro não é isolado, estando
sujeito à Constituição Federal e à toda a carpa principiológica
que ela detém. O direito penal máximo não tem lugar no texto
constitucional. O Estado Brasileiro não deve ser movido pela sanha
de aplicar a pena às custas de excessos em sua execução, insultando
o princípio do no bis in idem e punindo duas vezes o sujeito pelo
mesmo fato.

REFERÊNCIAS
BIENCOURT, Cezar Roberto. Coleção tratado de direito penal volume 1. 26.
ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020;
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988;
________. Decreto-lei n.º 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal;
________. Decreto-Lei n.º 3.689, de 03 de outubro de 1941. Código de Proces-
so Penal;

- 206 -
________. Decreto-Lei n.° 4.657, de 04 de setembro de 1942. Lei de Introdu-
ção às normas do Direito Brasileiro;
________. Superior Tribunal de Justiça. HC n. 496.049/MG, relator Minis-
tro Felix Fischer, Quinta Turma, julgado em 14/5/2019, DJe de 20/5/2019.
Disponível em: <https://processo.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcor-
dao?num_registro=201900605788&dt_publicacao=20/05/2019>. Acesso em:
02 abr. 2023;
________. Superior Tribunal de Justiça. HC n. 455.097/PR, relatora Minis-
tra Laurita Vaz, Terceira Seção, julgado em 14/4/2021, DJe de 7/6/2021.
Disponível em: <https://processo.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcor-
dao?num_registro=201801484120&dt_publicacao=07/06/2021>. Acesso em:
02 abr. 2023;
________. Superior Tribunal de Justiça. Terceira Seção. REsp 1.977.135-SC,
Rel. Joel Ilan Paciornik, julgado em 23/11/2022 (Tema Repetitivo 1155).
Disponível em: <https://processo.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetiti-
vos/pesquisa.jsp?novaConsulta=true&tipo_pesquisa=T&cod_tema_ini-
cial=1155&cod_tema_final=1155>. Acesso em: 02 abr. 2023;
________. Supremo Tribunal Federal. HC 147.426/AP e HC 147.303/AP.
Segunda Turma. Rel. Ministro Gilmar Mendes. Julgados em 18/12/2017.
Informativo 888: “O “habeas corpus” pode ser empregado para impugnar
medidas cautelares de natureza criminal diversas da prisão. [...]”. Dispo-
nível:https://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informati-
vo888.htm#informacao. Acesso em 30 mar. 2023;
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. 9. ed. São Paulo:
Saraiva, 2015;
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2002;
________. Por uma teoria dos direitos e dos bens fundamentais. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2011;
LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal. 17. ed. São Paulo: Saraiva
Educação, 2020;
MACHADO, Felipe Daniel Amorim; OLIVEIRA, Filipe Costa. Detração nas
medidas cautelares pessoais: é possível? Revista SJRJ, Rio de Janeiro, v. 20,
n. 36, p. 63-80, abr. 2013. Disponível em: < http://bdjur.stj.jus.br/dspace/
handle/2011/74777>. Acesso em 30 mar. 2023;
NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de direito processual penal. 17. ed. Rio
de Janeiro: Forense, 2020;
________. Prisão e liberdade. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014;
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Americana de

- 207 -
Direitos Humanos (“Pacto de San José de Costa Rica”), 1969. Disponível
em: <https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.
htm>. Acesso em 02 abr. 2023;
PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. 24. ed. São Paulo: Atlas, 2020;
SANCHES, Nayme Hadad. Aplicação da detração penal sob a luz da cons-
tituição federal. 2020. 237 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Univer-
sidade Nove de Julho, São Paulo: 2020. Disponível:https://bibliotecatede.
uninove.br/handle/tede/2392#:~:text=O%20artigo%2042%20do%20CP,de-
nomina%C3%A7%C3%A3o%20t%C3%A9cnica%20de%20detra%C3%A7%-
C3%A3o%20penal.>. Acesso em 28 mar. 2023.

- 208 -
REFLEXÕES SOBRE ASPECTOS
PENAIS DA NOVA LEI DE
LICITAÇÕES E CONTRATOS
Gustavo Troccoli Carvalho de Negreiros147
Pedro Filipe Araújo de Albuquerque148

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Como toda produção científica ou teórica, o direito exige


amadurecimento e sérias divagações sobre a sua aplicação e os
contornos que lhe definem. Em se tratando de direito penal, isso
ainda emerge com mais notoriedade, seja pelo bem jurídico protegido,
seja pelas sensíveis consequências sociais da interpretação dos seus
institutos.
Os crimes contra a Administração Pública, insertos no Título
XI do Código Penal, sempre despertaram inúmeras discussões entre
os juristas, ora pelo espectro midiático que envolve pessoas do alto
escalão da República, ora pelas reprimendas desnudas de coesão que
habitam a legislação criminal.
Entre as situações adversas mais cristalinas e comuns, extrai-
se que o legislador criminal – não tão remoto, diga-se de passagem –
prestigiou, de maneira incompreensível, a equiparação sancionatória
dos crimes de concussão e de corrupção passiva, conforme os arts.

147 Procurador do Município de João Pessoa/PB. Advogado. Ex-Procurador do Município de Par-


namirim/RN. Graduado em Direito, com láurea acadêmica, pelo Centro de Ciências Jurídicas da
Universidade Federal da Paraíba. Especialista em Direito Processual Civil. Membro da Comissão
de Advocacia Pública da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Paraíba. E-mail: gtroccoli@
hotmail.com.
148 Procurador do Município de João Pessoa/PB. Mestrando em Direito (Direitos Fundamentais e
Democracia) no Programa de Pós-Graduação em Direito da Unibrasil de Curitiba/PR. Especialista
em Direito Constitucional e Direito e Processo do Trabalho. Graduado em Direito pela Faculdade
de Direito do Recife da Universidade Federal de Pernambuco. Membro da Comissão de Advoca-
cia Pública da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Paraíba. E-mail: pedrofadealbuquerque.
adv@gmail.com.

- 209 -
316 e 318 do Código Penal, prevendo reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze)
anos, e multa. Como admitir, mesmo que em abstrato, igual repressão
a crimes com núcleos típicos tão distintos, como se exigir vantagem
indevida ou simplesmente solicitá-la ou recebê-la?
Nesse contexto, as incredulidades só tendem a crescer,
quando se volta o olhar para os denominados “crimes em licitações
e contratos administrativos”, no Capítulo II-B do Título XI do
Código Penal, trazendo-se à baila algumas reflexões sobre a sinuosa
conjuntura de aplicação da Lei Federal n.º 14.133/2021.
Ademais, como tipo penal de enorme relevância, serão
apresentados aspectos específicos sobre o crime de omissão grave
de dado ou de informação por projetista, no art. 337-O do Código
Penal Brasileiro, assim como o desafio hermenêutico do princípio da
“ultima ratio” na caracterização do elemento subjetivo do dolo após
a edição da Lei Federal n.º 14.230/2021.
Em suma, em uma legislação ainda repleta de incertezas,
as provocações que aqui se expõem servem para o leitor atento
convencer-se da necessidade de previsibilidade jurídica da legislação
criminal, que, no caso das licitações e contratos administrativos,
detém conceitos diretamente relacionados às instâncias do direito
administrativo.
No tópico II do texto, será comentado sobre a aplicação penal
e a Nova Lei de Licitações e Contratos, trazendo-se uma solução
de sobredireito e de intervenção mínima, sobretudo sob as lentes
hermenêuticas consignadas na Lei de Introdução às Normas do
Direito Brasileiro, cujo teor foi bastante aprimorado pelas alterações
carreadas pela Lei Federal n.º 13.655 de 25 de abril de 2018.
Por sua vez, o tópico III versa sobre o novo tipo penal criado
pela Nova Lei de Licitações e Contratos, ou seja, o crime de “omissão
grave de dado ou de informação por projetista”. Nesse contexto,
serão trazidos comentários sobre aspectos atinentes a tipo objetivo,
tipo subjetivo, condutas vedadas pela lei, sujeitos passivos e ativos,
modalidade culposa, penas, entre outros assuntos relevantes para o
entendimento da nova norma.

- 210 -
Em seguida, apresentar-se-á uma breve conclusão, com traços
hermenêuticos que podem guiar a atuação do Poder Judiciário ao
lidar com casos concretos que envolvam aspectos previstas na Nova
Lei de Licitações e Contratos, que alterou o Código Penal Brasileiro
(Decreto-Lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940).
Ademais, cabe anotar que, no presente texto, adotou-
se o método dedutivo, partindo-se de premissas para se chegar
a algumas conclusões. Nessa toada, a técnica utilizada foi a de
pesquisa bibliográfica, por meio de revisão de literatura jurídica e
não jurídica, mediante análise de diversos livros e textos publicados
por acadêmicos e consagrados escritores.
Por fim, sublinhe-se que o texto conta com reflexões originais,
advindas das facetas filosóficas que envolvem a temática, sobretudo
no que se refere às intersecções inarredáveis entre o Direito
Administrativo e o Direito Penal.

A APLICAÇÃO PENAL E A NOVA LEI DE


LICITAÇÕES E CONTRATOS: UMA SOLUÇÃO
DE SOBREDIREITO E DE INTERVENÇÃO
MÍNIMA

Em 1981, o famoso escritor Gabriel García Márquez escreveu


a interessante “Crônica de uma morte anunciada”149, em que o
assassinato do personagem Santiago Nasar é utilizado para a
sequência de fatos cujo desfecho já é previamente conhecido pelo
leitor.
Sendo o direito uma manifestação cultural, não há como evitar
a incidência criativa da literatura colombiana na definição atual da
Lei n.º 8.666/1993. Trata-se de um diploma vigente, mas com uma
sobrevivência há muito desgastada, diante das inúmeras demandas

149 MÁRQUEZ, Gabriel García. Crônica de uma morte anunciada. Tradução de Remy Gorga, filho.
63. ed. Rio de Janeiro: Record, 2022.

- 211 -
da Administração moderna e da constante interpretação dos tribunais
de contas acerca das normas que regem os certames públicos.
O resultado, culminado com a Lei n.º 14.133/2021, positiva
uma série de entendimentos incorporados à prática diária da
Administração Pública, assim como representa avanços importantes
para contratações eficientes e atuais com a complexidade impelida
pela necessidade social.
A modernidade, de fato, sempre se abre às discussões
interpretativas geradas por legislações antigas e que, em um dado
momento histórico, também tiveram o seu papel de vanguarda.
Ocorre que, no cenário brasileiro, os marcos legais mais
importantes para a proteção de direitos, como a Política Nacional do
Meio Ambiente (PNMA), o Código de Defesa do Consumidor ou a Lei
da Ação Civil Pública, só vieram ao ordenamento a partir da década
de 1980, de sorte que esse avanço demonstra que a legislação penal,
eivada de um viés nitidamente repressivo, tem seu principal diploma
vigente desde 1940.
As constantes reformas legislativas, mesmo que para
abrandamento de reprimendas, enfrentam uma desestrutura
generalizada na execução penal, fruto do desprezo político de toda
uma história imperial e republicana, tornando difícil a “harmônica
integração social do condenado e do internado”, expressa pelo art.
1.º da Lei n.º 7.210/1984.
A sincronia, portanto, entre a realidade e o ideal previsto pela
legislação é um desafio inacabável, pois os limites existenciais da
aplicação da lei penal não encontram eco na dignidade das prisões,
no respeito aos direitos e garantias individuais e na premissa de
reinserção social do preso.
Há de se verificar, ainda, que a legislação penal que rege os
delitos contra a Administração Pública sofre influxos também de
ordem popular, considerando que muitos dos tipos previstos no
Capítulo II-B do Título XI do Código Penal aplicam-se a gestores e
políticos de enorme exposição pública.
Esse é o palco perfeito para violação de direitos e garantias

- 212 -
constitucionais, em que os acusados são condenados sumariamente
pelo meio midiático, à margem do que se deve exigir para qualquer
procedimento sancionatório.
Fere-se, assim, o direito à liberdade, em nome de um mundo
digital amparado por conhecimento superficial e distorcido dos
fatos, no seio da total alienação dos julgadores não togados, que
só enxergam a importância advocacia criminal quando algum
infortúnio tira o sono dos seus familiares.
A importância de instrumentos que auxiliam a efetiva
execução penal, como a própria Ação Civil Pública, pode ser
visualizada em demandas que buscam garantir maior dignidade aos
reclusos, como no caso submetido ao Superior Tribunal de Justiça,
para disponibilização de banhos quentes, in verbis:
PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. GARANTIA DE
BANHO AQUECIDO AOS PRESOS. DIREITOS HUMANOS
FUNDAMENTAIS. ARTS. 12 E 39, IX, DA LEI 7.210/1984 (LEI DE
EXECUÇÃO PENAL). TUTELA PROVISÓRIA DE URGÊNCIA.
ART. 273, I, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 1973 (ART.
300 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015). TUTELA DA
EVIDÊNCIA (ART. 311 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE
2015). SUSPENSÃO DE EFICÁCIA DA TUTELA DE URGÊNCIA.
ART. 4º DA LEI 8.437/1992 C/C O ART. 1º DA LEI 9.494/1997.
OBRIGAÇÃO DE FAZER. ALEGAÇÃO DE
DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA E DE
INCIDÊNCIA DA RESERVA DO POSSÍVEL. PECULIARIDADES
DO CASO CONCRETO. MANIFESTO INTERESSE PÚBLICO
REVERSO. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. FATOS
NOTÓRIOS E CONFESSADOS. SUSPENSÃO QUE VIOLA
REQUISITOS LEGAIS OBJETIVOS PARA A CONCESSÃO.
RECURSO ESPECIAL PROVIDO. (...) 11. Mais do que privilégio
ou leniência do sistema punitivo estatal, a higiene pessoal
representa expediente de proteção de todos os presos, dos
funcionários, dos voluntários sociais e religiosos, e dos
familiares visitantes. Essa a razão para a Lei de Execução
Penal atribuir filiação dúplice a “higiene pessoal e asseio da
cela ou alojamento”, simultaneamente como direito e dever
do condenado (art. 39, IX, da Lei 7.210/1984). 12. Além disso,
a legislação impõe ao Estado o dever de garantir assistência
material ao preso e ao internado, nela incluída “instalações
higiênicas” (Lei 7.210/1984, art. 12), expressão que significa
disponibilidade física casada com efetiva possibilidade

- 213 -
de uso. Assim, não basta oferecer banho com água em
temperatura polar, o que transformaria higiene pessoal em
sofrimento ou, contra legem, por ir além da pena de privação
de liberdade, caracterizaria castigo extralegal e extrajudicial,
consubstanciando tratamento carcerário cruel, desumano
e degradante. 13. Finalmente, as Regras Mínimas para o
Tratamento dos Reclusos, promulgadas pelas Nações Unidas
(Regras de Mandela), dispõem que “Devem ser fornecidas
instalações adequadas para banho”, exigindo-se que seja
“na temperatura apropriada ao clima” (Regra 16, grifo
acrescentado, cf. publicação do Conselho Nacional de Justiça,
com o título “Regras de Mandela”). Irrelevante, por óbvio,
que o texto não faça referência expressa a “banho quente”.
14. Correto, portanto, o juiz de primeira instância quando,
na decisão de concessão da tutela antecipada, concluiu que
“submeter os presos a banhos frios, sobretudo no inverno,
segundo respeitado parecer médico juntado com a inicial,
desencadeia ou agrava uma série de doenças. E, pior, segundo
levantamento do CNJ, a maioria dos estabelecimentos penais
não possuem médicos e enfermeiros em todos os períodos”
(e-STJ, fl. 57) 15. Assim, patente a presença de todos os
elementos para a concessão de tutela antecipada, decisão de
primeiro grau, aliás, em harmonia com precedentes do STJ,
citado pela petição inicial da Defensoria Pública: “A omissão
injustificada da administração em efetivar as políticas
públicas constitucionalmente definidas e essenciais para
a promoção da dignidade humana não deve ser assistida
passivamente pelo Poder Judiciário” (REsp 1.041.197/MS, Rel.
Min. Humberto Martins, Segunda Turma, DJe 16/9/2009). Na
mesma linha, outro precedente mencionado, este do Supremo
Tribunal Federal: “O mínimo existencial, como se vê, associado
ao estabelecimento de prioridades orçamentárias, é capaz de
conviver produtivamente com a reserva do possível” (ADPF
45/DF, Rel. Min. Celso de Mello, j. 29.4.2004). Por isso, impõe-
se restabelecer a integralidade da decisão de primeiro grau.
16. Eventuais dificuldades técnicas particulares insuperáveis,
relacionadas a estabelecimentos específicos, que impeçam
o oferecimento de banho quente, poderão ser submetidas
ao próprio juiz de primeiro grau, a quem caberá apreciar a
necessidade, ou não, de modificação do prazo que fixou, bem
como os contornos e a extensão da sua decisão. CONCLUSÃO
17. Recurso Especial conhecido e provido.
(REsp 1537530/SP, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN,
SEGUNDA TURMA, julgado em 27/04/2017, DJe 27/02/2020)
(Grifos acrescidos)

- 214 -
Essa é a realidade buscada, e nela é que a legislação penal deve
aprender com as normas de sobredireito.
A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, como
denominado o Decreto-Lei n.º  4.657/1942, tem dispositivos
luminares para a aplicação de todo o ordenamento jurídico, inclusive
o penal.
Os arts. 20 e 22, §§1.º e 2.º, da LINDB, com efeito, deixam
claros os contornos da realidade muitas vezes olvidada pelo julgador
criminal, in verbis:
Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial,
não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem
que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.
(Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)
Art. 22. Na interpretação de normas sobre gestão pública,
serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do
gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem
prejuízo dos direitos dos administrados.
§ 1º Em decisão sobre regularidade de conduta ou validade
de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa,
serão consideradas as circunstâncias práticas que houverem
imposto, limitado ou condicionado a ação do agente. (Incluído
pela Lei nº 13.655, de 2018)
§ 2º Na aplicação de sanções, serão consideradas a natureza e
a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem
para a administração pública, as circunstâncias agravantes ou
atenuantes e os antecedentes do agente. (Incluído pela Lei nº
13.655, de 2018)
(Grifos acrescidos)

Nesse sentido, também se impõe ao aplicador da lei penal,


em todas as instâncias, conforme o art. 20 da LINDB, que sejam
consideradas as consequências práticas da decisão, não se podendo
compreender qualquer sanção criminal à luz de valores jurídicos
abstratos, baseados em presunções que sabidamente não sustentam
uma condenação criminal, como prejuízos fictícios ao bem jurídico
protegido.
Outro ponto que merece atenção, à luz do art. 22, §1.º, da
LINDB, refere-se à delimitação dos “obstáculos e dificuldades reais

- 215 -
do gestor”, assim como das “exigências das políticas públicas a seu
cargo”, pois a gestão pública é uma das missões mais complexas que
um trabalhador pode ter.
Um exemplo muito didático é a de um atleta, que, mesmo
que detenha atributos físicos e técnicos excepcionais, não consegue
resolver sozinho o problema do seu time, em caso de esporte coletivo,
ou não obtém êxito nas modalidades individuais, sem uma equipe
multidisciplinar qualificada para lhe garantir a potencialização dos
dons.
Nessa mesma visão, insere-se um gestor público, no âmbito
de qualquer órgão ou setor público existente no país, quando se
depara com demandas incontáveis e complexas, sem uma estrutura
minimamente proporcional ao que se lhe obriga a desempenhar,
situação que pode ser verificado com frequência em pequenos
Municípios, espalhados pelos rincões da República Brasileira.
É de uma enorme surpresa que o legislador, na LINDB, tenha
dito o que deveria ser óbvio: o julgador deve visualizar o panorama
concreto da sua decisão, fazendo justiça, e não injustiça.
Em uma Administração ainda excessivamente burocrática,
marcada por corrupções de ordens variadas, com servidores
insatisfeitos, não há como punir o gestor a título de bode expiatório
dos pecados alheios, pois, não raro, as competências públicas são
maiores do que a capacidade gerencial da entidade.
O art. 23 da LINDB, por oportuno, preconiza que:
Art. 23. A decisão administrativa, controladora ou judicial
que estabelecer interpretação ou orientação nova sobre
norma de conteúdo indeterminado, impondo novo dever
ou novo condicionamento de direito, deverá prever regime
de transição quando indispensável para que o novo dever
ou condicionamento de direito seja cumprido de modo
proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos
interesses gerais.
(Grifos acrescidos)

- 216 -
Essa disposição, com respeito aos que pensam diferentemente,
não pode ser desconectada da conjuntura a ser instaurada pela Nova
Lei de Licitações.
O contexto híbrido, de vigência concomitante das duas
legislações sobre licitações e contratos, só atesta que a exótica forma
de afastar a tradicional “vacatio legis”, atrai para si a necessidade
de maiores deferências à roupagem de transição entre os regimes
jurídicos, notoriamente quando a complexidade do novel diploma
ainda sofrerá interpretações imprevisíveis pelos órgãos de controle
e pelo próprio Judiciário.
Como se não bastasse, a tipificação dolosa das condutas
previstas no Capítulo II-B do Título XI do Código Penal encontra-
se em descompasso com a restrição descrita por ramo sancionatório
mais brando que o direito penal, isto é, a improbidade administrativa.
Em síntese, a Lei n.º 8.429/1992, com a alteração promovida
pela Lei nº 14.230/2021, pontifica, no art. 1.º, §§2.º e 3.º, que:
§ 2º Considera-se dolo a vontade livre e consciente de alcançar
o resultado ilícito tipificado nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, não
bastando a voluntariedade do agente.
§ 3º O mero exercício da função ou desempenho de
competências públicas, sem comprovação de ato doloso com
fim ilícito, afasta a responsabilidade por ato de improbidade
administrativa.
(Grifos acrescidos)

O afastamento da hipótese de improbidade administrativa,


por falta de vontade livre e consciente para alcançar o resultado
ilícito, em que pese a independência de instâncias e eventuais
diferenças entre as condutas, deve ser considerado amplamente
pelo julgador penal, visto que essa é a essência do princípio da
intervenção mínima.
Diante disso, o Capítulo II-B do Título XI do Código Penal,
com aplicação imediata, não seguiu a mesma cautela do legislador
no tocante às normas que regem o próprio conteúdo do bem jurídico
protegido, isto é, as licitações legalmente conduzidas e os contratos

- 217 -
incólumes, o que demonstra a imperativa aplicação das normas de
sobredireito na interpretação da legislação penal.
Por fim, é sempre essencial rememorar que o poder fiscalizador
dos Tribunais de Contas e do Ministério Público deve ser exercido
com atenção às consequências práticas da decisão reguladora,
considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor da coisa
pública e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem se
perderem de vista os direitos dos administrados.
Nessa toada de ideias, é que ocorreu a alteração da Lei de
Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei n.º 4.657,
de 4 de setembro de 1942), por meio da Lei n.º 13.655, de 25 de abril
de 2018), de modo que aquela lei passou a prescrever que:
Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial,
não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem
que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.
Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade
e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato,
contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive
em face das possíveis alternativas.
Art. 22. Na interpretação de normas sobre gestão pública,
serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do
gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem
prejuízo dos direitos dos administrados.
§ 1º Em decisão sobre regularidade de conduta ou validade
de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa,
serão consideradas as circunstâncias práticas que houverem
imposto, limitado ou condicionado a ação do agente.
§ 2º Na aplicação de sanções, serão consideradas a natureza e
a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem
para a administração pública, as circunstâncias agravantes ou
atenuantes e os antecedentes do agente.
§ 3º As sanções aplicadas ao agente serão levadas em conta na
dosimetria das demais sanções de mesma natureza e relativas
ao mesmo fato.
(Grifos acrescidos)

Portanto, “agora a decisão deverá inteirar-se da situação do


gestor e ter em conta a realidade, não bastando a alegação genérica

- 218 -
que a ele cabe dar efetividade a políticas públicas”150. Ora, diria o
celebrado Tobias Barreto que “a teoria é sempre franca e generosa,
a prática sovina e mesquinha”151. É sob esse princípio de realidade
que os órgãos de controle e fiscalização devem exercer seus múnus.

OMISSÃO GRAVE DE DADO OU DE


INFORMAÇÃO POR PROJETISTA

Entre vários crimes, alguns fatos típicos chamam a atenção


do intérprete, presumindo que o incremento de uma hipótese de
incidência decorre de uma necessidade social de maior cuidado.
Nesse pórtico, a Nova Lei de Licitações e Contratos trouxe um
novo tipo penal ao mundo das licitações e contratações públicas,
inaugurando o crime de “omissão grave de dado ou informação por
projetista”, ao incluir o artigo 337-O na parte especial do Decreto-
Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), nos seguintes
termos:
Omissão grave de dado ou de informação por projetista
Art. 337-O. Omitir, modificar ou entregar à Administração
Pública levantamento cadastral ou condição de contorno
em relevante dissonância com a realidade, em frustração ao
caráter competitivo da licitação ou em detrimento da seleção
da proposta mais vantajosa para a Administração Pública,
em contratação para a elaboração de projeto básico, projeto
executivo ou anteprojeto, em diálogo competitivo ou em
procedimento de manifestação de interesse:
Pena - reclusão, de 6 (seis) meses a 3 (três) anos, e multa.
§ 1º Consideram-se condição de contorno as informações e
os levantamentos suficientes e necessários para a definição
da solução de projeto e dos respectivos preços pelo licitante,
incluídos sondagens, topografia, estudos de demanda,
condições ambientais e demais elementos ambientais

150 FREITAS, Vladimir Passos de. Inclusão de dez artigos na Lindb traz importante inovação ao Di-
reito brasileiro. Revista Consultor Jurídico, 29 de abril de 2018. Disponível em: https://www.conjur.
com.br/2018-abr-29/segunda-leitura-mudancas-lindb-inovam-direito-brasileiro#:~:text=O%20arti-
go%2022%20disp%C3%B5e%20que,preju%C3%ADzo%20dos%20direitos%20dos%20administrados.
151 BARRETO, Tobias. Um discurso em mangas de camisa. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1970.

- 219 -
impactantes, considerados requisitos mínimos ou obrigatórios
em normas técnicas que orientam a elaboração de projetos.
§ 2º Se o crime é praticado com o fim de obter benefício, direto
ou indireto, próprio ou de outrem, aplica-se em dobro a pena
prevista no caput deste artigo.
(Grifos acrescidos)

Inicialmente, destaca-se que o sujeito ativo do presente crime


é o particular contratado com o objetivo de elaborar projeto básico,
projeto executivo ou anteprojeto, em diálogo competitivo ou em
procedimento de manifestação de interesse.
Para o adequado entendimento, é necessário que se busque
o significado dos termos utilizados pelo tipo penal na própria Nova
Lei de Licitações e Contratos. Nessa linha, encontram-se definições
essenciais no artigo 5º dessa norma, a seguir reproduzidas:
Art. 5º (...)
XXIV - anteprojeto: peça técnica com todos os subsídios
necessários à elaboração do projeto básico, que deve conter,
no mínimo, os seguintes elementos:
a) demonstração e justificativa do programa de necessidades,
avaliação de demanda do público-alvo, motivação técnico-
econômico-social do empreendimento, visão global dos
investimentos e definições relacionadas ao nível de serviço
desejado;
b) condições de solidez, de segurança e de durabilidade;
c) prazo de entrega;
d) estética do projeto arquitetônico, traçado geométrico e/ou
projeto da área de influência, quando cabível;
e) parâmetros de adequação ao interesse público, de economia
na utilização, de facilidade na execução, de impacto ambiental
e de acessibilidade;
f) proposta de concepção da obra ou do serviço de engenharia;
g) projetos anteriores ou estudos preliminares que embasaram
a concepção proposta;
h) levantamento topográfico e cadastral;
i) pareceres de sondagem;
j) memorial descritivo dos elementos da edificação, dos
componentes construtivos e dos materiais de construção, de
forma a estabelecer padrões mínimos para a contratação;

- 220 -
XXV - projeto básico: conjunto de elementos necessários
e suficientes, com nível de precisão adequado para definir
e dimensionar a obra ou o serviço, ou o complexo de obras
ou de serviços objeto da licitação, elaborado com base nas
indicações dos estudos técnicos preliminares, que assegure
a viabilidade técnica e o adequado tratamento do impacto
ambiental do empreendimento e que possibilite a avaliação
do custo da obra e a definição dos métodos e do prazo de
execução, devendo conter os seguintes elementos:
a) levantamentos topográficos e cadastrais, sondagens e
ensaios geotécnicos, ensaios e análises laboratoriais, estudos
socioambientais e demais dados e levantamentos necessários
para execução da solução escolhida;
b) soluções técnicas globais e localizadas, suficientemente
detalhadas, de forma a evitar, por ocasião da elaboração do
projeto executivo e da realização das obras e montagem,
a necessidade de reformulações ou variantes quanto à
qualidade, ao preço e ao prazo inicialmente definidos;
c) identificação dos tipos de serviços a executar e dos materiais
e equipamentos a incorporar à obra, bem como das suas
especificações, de modo a assegurar os melhores resultados
para o empreendimento e a segurança executiva na utilização
do objeto, para os fins a que se destina, considerados os riscos
e os perigos identificáveis, sem frustrar o caráter competitivo
para a sua execução;
d) informações que possibilitem o estudo e a definição
de métodos construtivos, de instalações provisórias e de
condições organizacionais para a obra, sem frustrar o caráter
competitivo para a sua execução;
e) subsídios para montagem do plano de licitação e gestão
da obra, compreendidos a sua programação, a estratégia
de suprimentos, as normas de fiscalização e outros dados
necessários em cada caso;
f) orçamento detalhado do custo global da obra, fundamentado
em quantitativos de serviços e fornecimentos propriamente
avaliados, obrigatório exclusivamente para os regimes de
execução previstos nos incisos I, II, III, IV e VII do caput do
art. 46 desta Lei;
XXVI - projeto executivo: conjunto de elementos necessários e
suficientes à execução completa da obra, com o detalhamento
das soluções previstas no projeto básico, a identificação de
serviços, de materiais e de equipamentos a serem incorporados
à obra, bem como suas especificações técnicas, de acordo com
as normas técnicas pertinentes.

- 221 -
(Grifos acrescidos)

Além desses conceitos, cabe ainda esclarecer que diálogo


competitivo é uma nova modalidade de licitação, importada do
direito europeu, para contratação de obras, serviços e compras
em que a Administração Pública realiza diálogos com licitantes
previamente selecionados mediante critérios objetivos, com o
intuito de desenvolver uma ou mais alternativas capazes de atender
às suas necessidades, devendo os licitantes apresentar proposta final
após o encerramento dos diálogos (inciso XLII do artigo 5º).
Por seu turno, o procedimento de manifestação de interesse é
um procedimento auxiliar das licitações e das contratações públicas,
por meio que a Administração solicita à iniciativa privada, mediante
procedimento aberto de manifestação de interesse a ser iniciado
com a publicação de edital de chamamento público, a propositura
e a realização de estudos, investigações, levantamentos e projetos
de soluções inovadoras que contribuam com questões de relevância
pública, na forma de regulamento (art. 81 da Lei n.º 14.133/2021).
O sujeito passivo é constituído pela Administração Pública,
os particulares eventualmente lesados pela conduta criminosa e a
coletividade.
Conforme Juarez Cirino dos Santos152, o tipo legal de um crime
constitui na “descrição de um comportamento proibido, com todas
suas características subjetivas, objetivas, descritivas e normativas”.
O tipo objetivo do crime153 envolve defeito relativo a
levantamento cadastral ou condição de contorno em destacada
dissonância quanto à realidade, em frustração ao caráter competitivo
do certame ou em detrimento da seleção da proposta mais vantajosa
para o Poder Público, em contratação pública para a elaboração
de projeto básico, projeto executivo ou anteprojeto, em diálogo
competitivo (modalidade de licitação) ou em procedimento de
manifestação de interesse.
152 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: Parte Geral, 3ª Edição. Curitiba: ICPC, Lumen Juris,
2008, p. 105.
153 JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas. São
Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. p. 1753.

- 222 -
Nesse contexto, “levantamento cadastral” consiste na
obtenção de informações consignadas em bancos de dados ou outros
meios de documentação equivalentes, mantidos por entidades
públicas154.
De outro giro, “condições de contorno” tem seu conceito
definido expressamente na lei (Código Penal, art. 337-O, §1º), que
preceitua que elas são as informações e os levantamentos “suficientes
e necessários para a definição da solução de projeto e dos respectivos
preços pelo licitante, incluídos sondagens, topografia, estudos de
demanda, condições ambientais e demais elementos ambientais
impactantes, considerados requisitos mínimos ou obrigatórios em
normas técnicas que orientam a elaboração de projetos.”
Analisando-se as condutas materiais previstas no tipo,
pode-se afirmar que “omitir” significa a não inclusão de essencial
informação; “modificar”, por sua vez, é alterar essa informação; e,
por fim, “entregar” é remeter à administração pública documento
que contenha omissão, modificação ou informação em relevante
dissonância com a realidade155.
Ainda no que se refere ao tipo, o legislador optou por prever
que deve haver “relevante dissonância com a realidade”. Apesar
de Marçal Justen Filho156 entender que se trata de um conceito
problemático, em seus comentários, anotou, de modo esclarecedor,
que “essa divergência deve ser evidente para qualquer profissional,
que se encontre na mesma condição do agente”.
O tipo penal também pressupõe que haja uma contratação
específica instrumental, isto é, para ser configurado crime, as
condutas devem ser praticadas no âmbito de uma contratação para
a elaboração de projeto básico, projeto executivo ou anteprojeto,
em diálogo competitivo ou em procedimento de manifestação de

154 Ibidem, p. 1754.


155 Idem.
156 Idem.

- 223 -
interesse. Marçal Justen Filho157 anota a ressalva de que “não existe
o crime do art. 337-O quando o defeito se verificar na execução do
próprio contrato ou serviço de engenharia”, ou seja, no contrato
principal.
Além disso, o tipo penal, para ser configurado, exige que haja
frustração do caráter competitivo da licitação ou em detrimento da
seleção da proposta mais vantajosa para a Administração Pública.
Nessa toada, Marçal Justen Filho158 enfatiza que os “defeitos no
trabalho elaborado pelo sujeito devem ser aptos a acarretar dano à
Administração Pública” e que tais danos se constituem na frustração
ao caráter competitivo da licitação ou em detrimento da seleção da
proposta mais vantajosa para a Administração Pública.
O mesmo autor159, ainda, faz relevante ressalva, no sentido
de que “não há necessidade de consumação efetiva do dano, nem
no tocante à redução da competitividade, nem quanto à seleção de
proposta mais vantajosa”. Para verificação do crime, basta que a
conduta típica seja apta a produzir os efeitos danosos indicados na
lei.
De outra banda, quanto ao tipo subjetivo, Juarez Cirino do
Santos160 afirma que “o elemento subjetivo geral dos tipos dolosos é
o dolo, a energia psíquica fundamental dos crimes dolosos”. No que
tange ao tipo penal aqui estudado, Marçal Justen Filho161 anota que
o elemento subjetivo, no presente, é o dolo ou a culpa grave, e que
“é indispensável a consciência no tocante à existência do defeito”.
Quanto ao dolo, pode-se asseverar que, no caso, é formado
pela vontade livre e consciente de omitir, modificar ou entregar à
Administração Pública levantamento cadastral ou condição de
contorno em relevante dissonância com a realidade, em frustração
ao caráter competitivo da licitação ou em detrimento da seleção da
157 Idem.
158 Ibidem, p. 1755.
159 Idem.
160 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: Parte Geral, 3ª Edição. Curitiba: ICPC, Lumen Juris,
2008, p. 134.
161 JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas. São
Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 1755.

- 224 -
proposta mais vantajosa para a Administração Pública, durante a
contratação específica instrumental.
Quanto à culpa, Juarez Tavares162 sustenta que “o delito culposo
contém, em lugar do tipo subjetivo, uma característica normativa
aberta: o desatendimento ao cuidado objetivo exigível ao autor”.
O crime em comento, para Marçal Justen Filho163, admite a forma
culposa quando se verifica que o autor agiu com descumprimento do
seu dever de diligência, durante o exercício de sua atividade técnica
relacionada à contratação para a elaboração de projeto básico,
projeto executivo ou anteprojeto, em diálogo competitivo ou em
procedimento de manifestação de interesse.
Rememore-se que a culpa pode se apresentar por meio
de imprudência, negligência e imperícia. Anote-se que, para
Bitencourt164, “ao estabelecer as modalidades de culpa, o legislador
brasileiro esmerou-se em preciosismos técnicos (distinguindo
imprudência, negligência e imperícia), que apresentam pouco
ou quase nenhum resultado prático”. Apesar disso, esse debate
apresenta contornos interessantes de ordem acadêmicas que devem
ser rememorados.
Por fim, o legislador previu situação de agravamento da
pena, no §2º, ao insculpir que “Se o crime é praticado com o fim
de obter benefício, direto ou indireto, próprio ou de outrem, aplica-
se em dobro a pena prevista no caput” do artigo 337-O do Código
Penal. Trata-se de reprimenda criminal exasperada, tendo em vista
aspectos valorativos levados em conta pelo legislador, ao considerar
a conduta narrada como mais grave que a prevista no caput do artigo
337-O do Código Penal.

162 TAVARES, Juarez. Direito Penal da negligência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985, p. 134.
163 JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas. São
Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 1755.
164 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, 17ª edição. São Paulo: Saraiva, 2012,
p. 143.

- 225 -
CONCLUSÕES

A Nova Lei de Licitações e Contratos (Lei Federal n.º 14.133,


de 1º de abril de 2021) trouxe um novo marco teórico para o Direito
Administrativo, além de ter consignado influxos sobre o Direito Penal.
Inicialmente, procurou-se contextualizar a exposição diante dos
recentes acontecimentos jurídico-normativos relativos aos crimes
que envolvem licitações e contratações públicas, comentando-se
brevemente, na introdução, acerca das novidades acarretadas pela
Nova Lei de Licitações e Contratos.
Em seguida, foi feita uma reflexão oriunda do cotejo dessas
disposições penais com a Lei de Introdução às Normas do Direito
Brasileiro, sobretudo no que tange à sua carga hermenêutica, apta
a ser aplicada também pelos julgadores criminais, tendo em mente
que a essa norma é verdadeira disposição de sobredireito apta a
impactar todos os ramos do ordenamento jurídico brasileiro.
Ressalte-se que, em uma Administração Pública ainda
excessivamente burocrática, marcada por corrupções de ordens
variadas, também com servidores insatisfeitos, não há como se punir
os gestores a título de bodes expiatórios dos pecados alheios, pois,
não raro, as competências públicas são maiores do que a capacidade
gerencial da entidade pública, que por vezes carrega infortúnios de
ordem estrutural, originados a décadas.
Além disso, abordou-se o novo tipo penal criado pela Nova Lei
de Licitações e Contratos, que incluiu, no Código Penal Brasileiro,
o art. 337-O, dispositivo que insculpiu, no ordenamento jurídico
brasileiro, o crime de “omissão grave de dado ou de informação por
projetista”, ao determinar que constitui conduta criminosa omitir,
modificar ou entregar à Administração Pública levantamento
cadastral ou condição de contorno em relevante dissonância com
a realidade, em frustração ao caráter competitivo da licitação
ou em detrimento da seleção da proposta mais vantajosa para a
Administração Pública, em contratação para a elaboração de projeto
básico, projeto executivo ou anteprojeto, em diálogo competitivo ou
em procedimento de manifestação de interesse.

- 226 -
Nesse contexto, foram trazidos comentários sobre os
aspectos penais dessa norma, relativamente a tipo objetivo, tipo
subjetivo, condutas vedadas pela lei, sujeitos passivos e ativos,
modalidade culposa, penas, entre outros aspectos relevantes para o
entendimento da nova norma. Versou-se ainda sobre conceitos do
Direito Administrativo essenciais à boa compreensão do novel tipo
penal, como os de projeto básico, projeto executivo, anteprojeto,
diálogo competitivo e procedimento de manifestação de interesse.
Alguns desses criados pela Nova Lei de Licitações e Contratos, como
ocorre ao famoso “diálogo competitivo”, instituto trazido do Direito
Europeu.
Por fim, a título de admoestação, entende-se que o Poder
Judiciário, quando se deparar com casos concretos que envolvam
aspectos da Nova Lei de Licitações em Contratos, deve ter em mente
que os verdadeiros “vilões” que agem diuturnamente, buscado
interesses escusos e egoístas, em detrimento da busca do interesse
público, não são os servidores que, por vezes, incorrem em erros
de procedimento, seja por ignorância ou por falta de estrutura
administrativa em seu órgão público.
Na realidade, os vilões são aqueles que agem com dolo,
lançando mão de toda malícia, para obter proveitos ilícitos vedados
pelo ordenamento jurídico. Diante disso, pode-se afirmar que a
busca do Poder Judiciário deve-se concentrar principalmente nos
servidores e agentes públicos ímprobos que praticam atos de forma
dolosa, lesando, por conseguinte, o erário público.

REFERÊNCIAS
BARRETO, Tobias. Um discurso em mangas de camisa. Rio de Janeiro: Li-
vraria São José, 1970.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, 17ª edição. São
Paulo: Saraiva, 2012.
FREITAS, Vladimir Passos de. Inclusão de dez artigos na Lindb traz im-
portante inovação ao Direito brasileiro. Revista Consultor Jurídico, 29 de
abril de 2018. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-abr-29/

- 227 -
segunda-leitura-mudancas-lindb-inovam-direito-brasileiro#:~:text=O%20
artigo%2022%20disp%C3%B5e%20que,preju%C3%ADzo%20dos%20direi-
tos%20dos%20administrados.
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações
Administrativas. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021.
MÁRQUEZ, Gabriel García. Crônica de uma morte anunciada. Tradução de
Remy Gorga, filho. 63. ed. Rio de Janeiro: Record, 2022.
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: Parte Geral, 3ª Edição. Curitiba:
ICPC, Lumen Juris, 2008
TAVARES, Juarez. Direito Penal da negligência. São Paulo: Revista dos Tri-
bunais, 1985.

- 228 -
CIBERESPAÇO,
CIBERCRIMINALIDADE,
CRIPTOMOEDAS E O
AMBIENTE PROPÍCIO PARA A
LAVAGEM DE CAPITAIS
José Bezerra Montenegro Pires165

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Onde há riqueza, em regra, há criminalidade. Onde há


sociedade, em regra, há aqueles que quebram as regras do convívio
social harmônio (utópico). Não que ela (a riqueza) seja fruto do crime
em si ou que o usufrutuário dela seja um criminoso.
A criminalidade é atraída pela abundância de patrimônio.
Sempre foi assim, e não seria diferente atualmente.
É amplamente reconhecido que a riqueza atrai a atenção dos
criminosos, especialmente quando, de acordo com a ideia de Gary
Becker, é uma decisão racional a serem considerados, obviamente,
os benefícios e custos do crime. Se aqueles forem maiores que estes,
não há dúvidas, ante a maior probabilidade de sucesso, de que o
agente criminoso irá agir.
A possibilidade de lucrar com crimes financeiros, como a
lavagem de dinheiro, fraude e extorsão, é muito tentadora para
indivíduos que avaliam uma atuação criminosa sob essa perspectiva
econômica do direito penal, sobretudo diante da crescente
digitalização das transações financeiras.

165 Advogado. Atua na área penal econômica.

- 229 -
Com a chegada da Era da Informação, novos meios de usurpar
o patrimônio alheio surgiram, velhos foram aperfeiçoados ou
reinventados, assim como novas modalidades de afastar o produto
criminoso da sua origem a exemplo do uso de criptomoedas, que
permitem transações quase anônimas e dificultam o rastreamento
de fundos. Além disso, criminosos cibernéticos desenvolvem
constantemente novas técnicas para ocultar sua identidade e
localização, dificultando ainda mais a identificação e punição de
seus crimes.
A criminalidade cibernética, a qual tentarei discorrer nas
linhas subsequentes é uma modalidade criminosa relativamente
recente, nascida e desenvolvida com a internet, com não mais trinta
anos, na qual jovens com profundo (ou nem tanto) conhecimento
técnico dos meandros – e falhas – dos sistemas da rede mundial e,
notadamente, das vítimas, subtraem bilhões de reais anualmente.
A temática abordada passa, inicialmente, pelo furto cibernético
ou furto mediante fraude, recentemente introduzido pela Lei n.º
14.155/2022, o qual incluiu o § 4º-B166, ao art. 155, do CP, cujas
vítimas são, à primeira vista, correntistas de instituições financeiras,
finalizando com a lavagem de capitais com o uso de criptomoedas.
É interessante a forma como fora executada a operação de
lavagem dos valores ilicitamente subtraídos, na qual os dados das
vítimas, colhidos internamente por um colaborador da instituição
financeira, foram utilizados para abertura de contas em corretoras
de criptomoedas (passaremos a nomear apenas corretoras ao longo
do artigo), passando por um complexo sistema de apostas on line,
onde se fez um mix de wallets (carteiras), como meio para afastar a
vantagem auferida da sua origem e tentar dar aparência de legalidade.
Isso demonstra uma dupla vulnerabilidade: do sistema
bancário em si, o qual, aparentemente não faz um bom filtro nas
contratações de funcionários e colaboradores e não acompanham a

166 § 4º-B. A pena é de reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa, se o furto mediante fraude é
cometido por meio de dispositivo eletrônico ou informático, conectado ou não à rede de computadores, com
ou sem a violação de mecanismo de segurança ou a utilização de programa malicioso, ou por qualquer outro
meio fraudulento análogo.      (Incluído pela Lei nº 14.155, de 2021)

- 230 -
evolução das tentativas de ataque dos cibercriminosos e outra, ainda
mais grave, das corretoras, as quais demonstraram graves falhas nos
sistemas de autenticação de usuários para abertura e movimentação
dos ativos digitais.
Se no passado estávamos acostumados apenas aos batedores
de carteira nos centros das cidades, pontos de ônibus e metrô, ou,
ainda, a furtos cometidos por funcionários das agências bancárias,
hoje nos deparamos com aplicações tecnológicas especialmente
criadas para ingressar, movimentar e sacar grandes quantias em
questão de segundos, deixando um rastro de prejuízos que assombra
não somente os correntistas (num primeiro momento), mas,
principalmente, as instituições financeiras, porquanto elas serão as
responsáveis por ressarcir a lesão sofrida por seu cliente, arcando,
assim, com a totalidade dos prejuízos.
O conhecimento sempre foi sinônimo de poder. Na Era da
Informação ele vale ouro, e a internet e seu mundo, supostamente
sem limites, fez com que algumas pessoas imaginassem que ela fosse
uma terra sem lei. Mas essa relação entre máquina (ou tecnologia)
e ser humano – que se auto complementam – não se dissocia do
chamado fato social humano, porquanto é ele que “faz com esse novo
meio tecnológico, na consecução de seus objetivos e na transmutação de
sua realidade social” modifique seu meio.
É comum, assim, que o ser humano, suscetível a infringir as
regras sociais, tenha a falsa sensação de que no ambiente virtual
estaria protegido pelo anonimato, passando a agir de forma não usual
se na vida real assim estivesse. Há uma espécie de pseudoliberdade,
de forma que se sinta mais à vontade para cometer delitos.
Todavia, as autoridades investigativas brasileiras, ainda que
de forma incipiente (a depender do ente da federação a qual esteja
vinculada, porquanto, é necessário investimento maciço para dar
conta do avanço da criminalidade cibernética), vem melhorando
as técnicas de apuração e confirmando hipóteses criminais antes
impossíveis, de forma a obter bons resultados no combate aos delitos
cometidos pela internet.

- 231 -
Ante esse panorama se discutirá o tema sob análise, no intuito
de contribuir não só com a atividade acadêmica, mas, também, com
contexto prático da delinquência econômica moderna, no afã de
aperfeiçoar os métodos de combate à lavagem de capitais com o uso
de criptomoedas.
Ressalta-se que o tema não se esgota em si mesmo, muito
menos neste artigo. Arrisco dizer que ainda estamos na gênese
dessas condutas criminosas. Muitas outras surgirão com poder
ainda mais destrutivo, inclusive praticadas por aplicações dotadas
de inteligência artificial, ou seja, sem o fato típico, o fato humano,
o animus, pois apenas ele, em tese, pode praticar uma conduta
penalmente relevante. Porém, isso fica para uma análise posterior.

AMBIENTE DIGITAL E ILICITUDE

A ideia de um ambiente imaterial (conquanto tenha lastro


no mundo real) onde todas as máquinas e pessoas possam interagir
concomitantemente é uma noção do que seja um ciberespaço. As
comunicações, passando por toda a rede e infraestrutura desenvolvida
para esse fim, especialmente a internet, deu vida a esse organismo ou
ecossistema virtual em que habitam softwares, aplicações, pessoas,
governos, empresas e outros entes.
Quanto à ilicitude cometida no ambiente do ciberespaço vamos
nos ater, obviamente, aos cibercrimes, especificamente às falhas que
permitiram a um agente lavar valores subtraídos em grande escala
em um caso concreto, cujos dados sensíveis serão ocultados.
Para o desenvolvimento do tema, porém, é prudente termos
uma noção de algumas características básicas desse ambiente. De
forma resumida, temos a (i) ausência de fixação geográfica, porquanto
não se encontra em qualquer lugar, mas disperso na grande teia; (ii)
inexiste fronteiras, na medida em que o ciberespaço não está sob
tutela ou regência de qualquer soberania estatal; (iii) é um habitat
neutro (neutralidade), onde pessoas, governos e empresas de países

- 232 -
distantes podem se comunicar livremente, sem necessidade de
autorização para tanto, ou visitar websites hospedados em outro
ponto do planeta; (iv) a descentralização, pois, como dito acima, na
ausência de localização geográfica, o ciberespaço é um organismo
disperso na grande rede mundial de computadores, inexistindo um
eixo central, o que impede que uma autoridade central controle
previamente o fluxo das informações e acessos; (v) é universal, um
ambiente popular e democrático, pois pode ser usado compartilhado
por todos (grande massa de particulares), num espaço que antes era
restrito a governos e grandes empresas; (vi) espaço anonimizado,
no qual ferramentas postas à disposição do usuário garantem a
proteção aos seus dados pessoais quando transitam pela rede.
Isso dá margem, obviamente, para que pessoas mal-intencionadas
busquem o anonimato para o cometimento de crimes; (vii) ambiente
em constante evolução, pois é configurado de maneira aberta,
podendo ser alterado por qualquer usuário, seja ele expert ou não da
tecnologia da informação.
Gustavo Testa Corrêa, citando Neil Barret, bem define o
conceito dos crimes digitais como “todos aqueles relacionados às
informações arquivadas ou em trânsito por computadores, sendo esses
dados, acessados ilicitamente, usados para ameaçar ou fraudar; para
tal prática é indispensável a utilização de um meio eletrônico.”
É importante termos em mente esse conceito, sobretudo pelo
momento em que vivemos: cercados por tecnologias que a cada dia
se superam em desenvolvimentos e aplicações.
Quanto à execução, “um cibercrime nada mais é do que a
transmissão de determinados dados que produzem um resultado
penalmente relevante por afetar algum bem jurídico”167 tutelado pela
norma penal.
E a internet, obviamente, é o campo mais propício para o
cometimento de delitos digitais, eletrônicos ou cibernéticos, onde
hackers e crackers vagueiam à procura de falhas capazes de dar-lhes
acesso a locais antes tido como impenetráveis.

167 op. cit. KIST, 2019. p. 108.

- 233 -
Mas o cometimento de delitos utilizando o ciberespaço não
é um privilégio para mentes brilhantes, porquanto qualquer pessoa
com um mínimo de conhecimento é capaz de causar grandes
prejuízos. Basta que a vítima deixe seu sistema vulnerável a esses
ataques, seja interna ou externamente.

CRIPTOMOEDAS. ALTERNATIVA AO
SISTEMA MONETÁRIO TRADICIONAL?
AMBIENTE PROPÍCIO AO COMETIMENTO DE
CRIMES?

O mercado de criptomoedas tem crescido exponencialmente,


atraindo a atenção de investidores e curiosos. A tecnologia
blockchain, que garante a segurança e a transparência das
operações realizadas com criptomoedas, como o Bitcoin, tem sido
um grande atrativo. No entanto, a facilidade de realizar transações
financeiras sem a necessidade de intermediários e burocracias
também tem atraído criminosos, que encontram nas criptomoedas
uma oportunidade para praticar atividades ilícitas, como lavagem
de dinheiro. É preciso, portanto, encontrar maneiras de garantir a
segurança e a transparência do mercado cripto, sem prejudicar sua
principal vantagem: a descentralização.
Eis uma síntese do que é o mercado cripto e suas nuanças,
porquanto não se pretende alongar esse tópico com o conceito, as
características e os pormenores das criptomoedas, especificidades
de conhecimento mediano da maioria do público alvo deste artigo.
Apenas breves considerações serão feitas para que o leitor
tenha um mínimo de informação sobre essa filosofia monetária, se
assim possamos chamá-la.
Sua origem, rezam as lendas cibernéticas, é fruto dos estudos e
aperfeiçoamentos da pessoa conhecida por Satoshi Nakamoto (nunca
se viu essa pessoa, nem mesmo sabe-se se ela ou ele existe), quando

- 234 -
criou um modo seguro (confiável), descentralizado e criptografado
(peer-to-peer) para a transmissão de ativos financeiros digitais,
independentemente de fronteiras ou autoridade monetária central.
Satoshi Nakamoto é o pseudônimo utilizado pela pessoa ou grupo de
pessoas que criou o Bitcoin, a criptomoeda mais conhecida e utilizada
atualmente. A verdadeira identidade de Satoshi Nakamoto ainda é
desconhecida, mas é sabido que ele publicou um artigo intitulado
“Bitcoin: A Peer-to-Peer Electronic Cash System”168 em 2008, no qual
descrevia a tecnologia por trás do Bitcoin.
Em 3 de janeiro de 2009, o primeiro bloco da rede Bitcoin,
conhecido como “bloco gênese”, foi minerado, dando início à
existência do Bitcoin como criptomoeda. A partir daí, Satoshi
Nakamoto se envolveu no desenvolvimento da rede e do protocolo
Bitcoin, participando de fóruns online e enviando e-mails para
outros desenvolvedores.
Em 2011, após contribuir para o desenvolvimento do Bitcoin
por cerca de dois anos, Satoshi Nakamoto se afastou do projeto e
deixou de se comunicar com a comunidade de desenvolvedores. Desde
então, sua verdadeira identidade e seu paradeiro são desconhecidos,
e surgiram diversas especulações sobre quem ele poderia ser.
Economicamente, o Bitcoin oferece uma moeda digital
descentralizada, que não é controlada por nenhum governo ou
instituição financeira. Isso permite a realização de transações mais
rápidas e baratas em comparação com as moedas tradicionais, que
geralmente envolvem taxas e burocracia. Além disso, o Bitcoin tem
um limite máximo de 21 milhões de unidades, o que torna sua oferta
escassa e pode aumentar seu valor no longo prazo.
Individualmente, o Bitcoin permite que as pessoas tenham
mais controle sobre seus próprios ativos financeiros, sem precisar
depender de instituições financeiras tradicionais. Isso significa
que os usuários podem realizar transações sem a necessidade de
intermediários, o que pode tornar o processo mais rápido e menos
suscetível a erros ou fraudes. Além disso, como o Bitcoin é uma

168 Chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://bitcoin.org/bitcoin.pdf

- 235 -
moeda digital, é possível armazená-lo em carteiras virtuais, que são
mais seguras e baratas do que ter a custódia do dinheiro físico.
Do ponto de vista político, o Bitcoin pode ser visto como
uma forma de resistência à hegemonia financeira dos governos e
das instituições tradicionais. Como a moeda não é controlada por
nenhum país ou instituição, ela pode ser vista como uma forma de
descentralização do poder financeiro. Além disso, o Bitcoin pode ser
utilizado para contornar sanções econômicas impostas por governos,
como as que foram aplicadas ao Irã e à Venezuela.
Por fim, socialmente, o Bitcoin pode contribuir para a inclusão
financeira de pessoas que não têm acesso a serviços bancários
tradicionais. Como a moeda é digital e descentralizada, é possível
realizar transações em qualquer lugar do mundo, desde que haja
conexão com a internet. Isso pode ser especialmente útil para
pessoas em países em desenvolvimento, onde o acesso a serviços
financeiros é limitado.
No entanto, é importante destacar que o Bitcoin ainda é uma
moeda volátil e pode apresentar riscos aos investidores. Além disso,
a sua descentralização pode trazer desafios para a regulamentação e
para a proteção dos direitos dos usuários. Por isso, é fundamental que
sejam adotados critérios claros de proteção para a rede e usuários.
O bitcoin, em resumo, é o resultado de quarenta anos de
pesquisa e desenvolvimento.
A filosofia por trás desses cypherpunks é não só a
descentralização do mercado cripto, mas trazer um componente
político e libertário, onde se negociam criptomoedas, em alternativa
(ou contraposição) ao sistema monetário tradicional, na qual o
indivíduo é de fato e de direito dono e custodiante de seus ativos.
Reduzir o poder do Estado e dos grandes conglomerados
financeiros tradicionais também faz parte dessa revolução digital.
Essa segurança ou fidúcia advém da tecnologia conhecida
por blockchain, uma espécie de livro contábil digital incorruptível
e acessível ao público, no qual são registradas todas as transações

- 236 -
com criptomoedas que conhecemos como a quantia negociada, o seu
remetente, o seu destinatário, a data, hora e local dessa transação, de
forma que toda a operação é transparente e rastreável.
Chega-se, até mesmo, a se debater sobre uma suposta ciber
anarquia aos estados soberanos, na medida em que autoridades
monetárias centrais, aos poucos, perdem força e influência ante o
avanço das criptomoedas e sua desregulamentação.
No Brasil, as autoridades regulatórias logo perceberam o
poder dessa novidade tecnológica e estão tentando compreendê-la
e, de alguma forma, regulamentá-la (ironicamente o oposto da ideia
original).
A Comissão de Valores Mobiliários169 (CVM) conceituou as
criptomoedas como sendo:
“Os criptoativos são ativos virtuais, protegidos por
criptografia, presentes exclusivamente em registros digitais,
cujas operações são executadas e armazenadas em uma rede
de computadores. Há situações onde os criptoativos podem
ser caracterizados como valores mobiliários, por exemplo,
quando configuram um contrato de investimento coletivo.
Nessa situação, a oferta deve ser realizada de acordo com a
regulação da CVM. Quando se tratar apenas de uma compra
ou venda de moeda virtual (ex. Bitcoin), a matéria não é da
competência da CVM.”

O Banco Central do Brasil (BCB), por sua vez, assim as define:


“As chamadas “moedas virtuais” ou “moedas criptográficas”
são representações digitais de valor, o qual decorre da
confiança depositada nas suas regras de funcionamento e na
cadeia de participantes. Não são emitidas por Banco Central,
de forma que não se confundem com o padrão monetário do
Real, de curso forçado, ou com o padrão de qualquer outra
autoridade monetária. Além disso, não se confundem com a
moeda eletrônica prevista na legislação, que se caracteriza
como recursos em Reais mantidos em meio eletrônico, em
bancos e outras instituições, que permitem ao usuário realizar
pagamentos e transferências.”

169 Fonte: https://conteudo.cvm.gov.br/menu/investidor/alertas/ofertas_atuacoes_irregulares.html

- 237 -
A Receita Federal do Brasil (RFB), conquanto não as conceitue,
as admite, inclusive sendo mandatória a sua informação na
declaração anual de imposto de renda. Um detalhe curioso é que a
RFB as equipara, para efeitos de ganho de capital e tributação, aos
papéis negociados nas bolsas de valores. É o que se extrai da Solução
de Consulta vinculada à Solução de Consulta COSIT nº 214, de 20 de
dezembro de 2021. Vejamos:
“Assunto: Imposto sobre a Renda de Pessoa Física – IRPF
ALIENAÇÃO DE CRIPTOMOEDAS - INCIDÊNCIA. ISENÇÃO -
OPERAÇÕES DE PEQUENO VALOR. R$ 35.000,00. O ganho de
capital apurado na alienação de criptomoedas, quando uma
é diretamente utilizada na aquisição de outra, ainda que a
criptomoeda de aquisição não seja convertida previamente em
real ou outra moeda fiduciária, é tributado pelo Imposto sobre
a Renda da Pessoa Física, sujeito a alíquotas progressivas, em
conformidade com o disposto no art. 21 da Lei nº 8.981, de 20 de
janeiro de 1995. É isento do imposto sobre a renda o ganho de
capital auferido na alienação de criptomoedas cujo valor total
das alienações em um mês, de todas as espécies de criptoativos
ou moedas virtuais, independentemente de seu nome, seja
igual ou inferior a R$ 35.000,00 (trinta e cinco mil reais).”

Ainda é cedo para afirmar se as criptomoedas substituirão o


modelo tradicional de moeda de curso forçado (padrão monetário
atual). Porém, a possibilidade de uma convivência entre ambos os
sistemas por um período futuro é tendência, sendo certo que as
criptomoedas vieram para ficar.
Por outro lado, pode-se concluir que as criptomoedas,
não são, per se, um fato ilícito ou criado com esse fim, pelo
contrário. Infelizmente, não podemos negar que ante a rapidez
e certa anonimização de suas operações, pessoas e grupos com
intenções escusas as utilizem principalmente para lavar capital
e operacionalizar redes de terrorismo, tráfico de drogas, armas e
pessoas, órgãos e tecidos, principais tipologias associadas.
Os governos não estão inertes e tentam atuar pari passu
com a evolução das organizações criminosas (tradicionais ou
cibercriminosas) que utilizam essa excelente tecnologia para
atividades ilegais.

- 238 -
O INIMIGO TRABALHA AO LADO

Feita essa digressão sobre o mundo cripto, no caso concreto,


o agente que efetuou os furtos eletrônicos já laborou para as
instituições financeiras e, portanto, teve acesso a informações
cruciais para o sucesso da sua empreitada criminosa, conquanto não
tivesse autorização (alçada) interna para isso.
Acontece que dentro das instituições financeiras,as informações
e dados que poderiam facilitar os furtos estavam disponíveis para
qualquer funcionário ou colaborador do departamento de TI, o que
já demonstra uma grave falha interna das corporações.
Havia acesso aos logs dos servidores internos e aos logs de
aplicações via web, a exemplo dos aplicativos para smartphones.
Até mesmo partes do código fonte estavam disponíveis na internet!
Vê-se, portanto, que inexistia um controle efetivo de acesso a
informações relevantes dentro do ambiente corporativo
Para se ter uma ideia da importância desses dados, os logs são
“importantes recursos que os sistemas operacionais mais comumente
utilizados oferecem e que se adequadamente conhecidos e utilizados,
fornecem importante subsídio para segurança, usabilidade, manutenção
e correção de problemas.”170
Com acesso a essas informações cruciais, o agente, por meio
de um computador e utilizando uma VPN (Virtual Private Network)
que o auxiliava a encobrir seus rastros de navegação na internet, a
exemplo do IP (internet protocol), seguia o critério de maior alçada
financeira de transferências para escolher as vítimas, de forma a
maximizar os furtos e, consequentemente, potencializar os ganhos
com a empreitada.
Essa ação durou meses em continuidade delitiva (art. 71, CP),
sem que os sistemas de segurança das instituições conseguissem
inicialmente perceber os desfalques, a não ser quando os clientes
iam reclamar nas agências, descobrir a origem, bloquear os ataques
e corrigir as vulnerabilidades.

170 Fonte: https://www.hostmidia.com.br/blog/logs-do-sistema-operacional/

- 239 -
Importante esclarecer que ele utilizou os dados das próprias
vítimas para abrir as contas, em nome daquelas, nas corretoras, com
o fito de lavar o produto dos furtos, os quais só eram executados após
as contas nas exchanges estarem operantes para as movimentações.
Aí surgiu mais uma grave falha das exchanges. Ficou claro que
elas não estavam promovendo ações necessárias para adequação das
suas atividades operacionais que pudessem evitar o cometimento de
atos de lavagem de capitais, num total descompasso com a legislação
em vigor, especialmente a Lei n.º 9.613/1998.
A maior e mais grave vulnerabilidade estava justamente no
cadastro inicial dos correntistas. Conquanto fossem solicitadas
fotografias de documentos básicos (documento oficial com foto),
uma selfie com o suposto interessado em abrir a conta portando o
respectivo documento com foto, um comprovante de residência, um
e-mail válido e número de telefone, de imediato era liberado um
valor para movimentação, de trinta mil reais, em média.
Sucede que os documentos utilizados para a validação de
abertura eram fotografias de pessoas comuns disponibilizadas na
internet segurando seus respectivos documentos de identidade
(pasmem, a internet está cheia de fotografias dessa forma, basta uma
simples pesquisa). Com isso, ele conseguiu manipular as imagens
dos documentos de identificação em aplicativos próprios, inserindo
os dados verdadeiros naquela fotografia capturada.
E isso foi feito utilizando a fotografia de apenas duas pessoas
(um homem e uma mulher) para inúmeras contas, ainda que a
diferença de idade, comparando as datas de nascimento, com o perfil
morfológico da pessoa contida na foto fosse evidente em alguns
casos, ou seja, v.g., temos a fotografia de uma pessoa que aparente
ter entre 45 e 55 anos de idade e os dados de uma pessoa (vítima)
com 23 anos. O mesmo se diga quanto aos e-mails, apenas dois
foram utilizados para diversas contas.
Nesse ponto fica evidente que o algoritmo utilizado falhava
tanto na entrada (input), coleta das informações e seu tratamento,

- 240 -
como na saída (output)171, haja vista que chancelou a abertura de
inúmeras contas de pessoas diversas, mas com a mesma fotografia
e o mesmo e-mail.
Ou seja, os documentos passaram pelo que chamam de
validação sistêmica automática, que nada mais é do que um algoritmo
validador prévio da biometria facial sem qualquer contestação.
Aqui merece uma informação interessante sobre a sagacidade
do agente criminoso e a comprovada falha de segurança do sistema.
Por vezes, alguns sistemas de autenticação prévia de corretoras
exigiam que o suposto interessado na abertura da conta executasse
movimentos da cabeça ou rosto, a exemplo de piscar os olhos ou
mover a cabeça para um lado ou para o outro. Nessas situações, a
barreira foi rompida simplesmente movendo a fotografia levemente
de um lado para o outro ou mesmo passando e retirando, muito
rapidamente, a ponta do dedo sobre um dos olhos da fotografia para
que o algoritmo não percebesse o engodo.
Isso demonstra a extrema vulnerabilidade do sistema de
autenticação automático das corretoras, não sendo diferente para
abertura de contas em bancos digitais, cujo processo é idêntico na
maioria dos casos. A falha no procedimento KYC (know your client)
ficou evidente.
Com o valor de alçada liberado pelas exchanges, o agente
transferia o produto do crime diretamente da conta da vítima para
sua “própria” conta (fake) na corretora, executando ali, a conversão
de real para criptomoedas, cujo processo é conhecido como on-
ramping, consumando-se, por conseguinte, a primeira das três fases
da lavagem, a ocultação. A partir daí, eram executadas uma série de
novas transferências (dissimulação) para outras wallets (off/hard ou
não), sucessivamente, até o momento do saque, ou off-ramping, tudo
no intuito de afastar o produto do crime da origem e tentar dar uma
aparência de legalidade (integração).
Percebe-se que esse foi um típico caso em que as três fases da
lavagem de dinheiro foram realizadas com sucesso.
171 Crypto On and Off-Ramps - How and Where? | Ledger

- 241 -
É de relevo ressaltar uma estratégia utilizada pelo agente
com o uso de criptomoedas que é de difícil rastreamento. Na esteira
das transferências sequenciais (dissimulação) com o objetivo de
distanciar os valores subtraídos da sua origem, os cripto ativos eram
alocados (transferidos) para casas de cripto jogos (casas de apostas
que envolvem criptografia ou criptomoedas como parte de sua
lógica), cujo anonimato é a regra.
Para apostar, por óbvio, deve-se “casar” os valores transferindo-
os para uma conta de cripto ativos sob custódia da casa de apostas,
cujo endereço é fornecido por ela, ainda que usando a mesma
carteira. Ao transferir esses valores, o rastreamento do blockchain se
perde, pois o numerário dos criptoativos vai para uma conta comum
com milhões de outros criptoativos, de forma que se perde, em tese,
a linha de rastreamento.
Acontece que o agente, no caso concreto, não fazia qualquer
aposta, apenas deixava os criptoativos alguns dias para, em seguida,
realizar o withdraw (que na verdade é uma transferência) para uma
wallet totalmente desvinculada da linha de rastreamento anterior,
limpando, assim, qualquer vestígio que pudesse levar as autoridades
investigativas à sua origem.
Isso porque a criptomoeda que ele recebia após o withdraw
já não era o mesmo que fora inicialmente depositado, ou seja,
possuía uma linha de rastreamento do blockchain diversa da que
ele depositou (original) na casa de aposta, devido ao fato, com
dito acima, de ser uma carteira única com vários endereços, não é
possível, em tese, rastrear o criptoativo depois.
Embora o uso de casas de apostas de criptomoedas possa
dificultar o rastreamento de transações no blockchain, ainda é
possível realizar a análise das transações envolvidas. As autoridades
investigativas podem rastrear as transações até o momento em que
os criptoativos são transferidos para a casa de apostas, e podem
continuar a monitorar as transações subsequentes a partir daí.
Além disso, mesmo que o agente utilize uma nova carteira
para receber a criptomoeda após o saque, ainda é possível rastrear

- 242 -
o histórico de transações dessa carteira para identificar sua origem
e destino. A privacidade das transações é uma característica
importante das criptomoedas, mas isso não significa que elas sejam
completamente anônimas e impossíveis de rastrear.
Entrementes, em uma de suas ações, o agente olvidou-se
de habilitar uma VPN, tornando-se visto aos olhos das evidências
eletrônico-digitais, de forma que com outros elementos de provas
que foram colhidos ao longo do bem instruído inquérito policial,
as autoridades investigativas puderam chegar à autoria dos fatos
investigados, apontando para ele como seu responsável.
Ao final, constatou-se prejuízo superior a um milhão
e quinhentos mil reais para as instituições financeiras, valor
parcialmente recuperado em virtude de medidas cautelares de
bloqueio de bens e ativos que ainda se encontravam em nome do
investigado e de terceiros.

PROPOSIÇÕES PARA APERFEIÇOAMENTO


DO KYC

Desde já, se esclarece que não há pretensões de dar a última


palavra sobre o tema segurança nas operações de cadastro de clientes
em corretoras de criptomoedas. A intenção, sempre coerente com
caso concreto retratado, é contribuir, ainda que academicamente,
com a melhoria do mecanismo de controle e prevenção à lavagem de
dinheiro por meio de criptomoedas.
Porém é fato que tanto as instituições financeiras, como as
corretoras falharam no aspecto preventivo para mitigar as ações
criminosas, um dos pilares dos programas de compliance aplicados
ao combate à corrupção e lavagem de capitais.
A exposição de dados sensíveis de clientes e utilização
desses mesmos dados para as práticas criminosas, deixam claro
a vulnerabilidade dos sistemas de salvaguardas internos desses

- 243 -
segmentos financeiros, em contraposição aos marcos regulatórios
e principiológicos contidos no Marco Civil da Internet (Lei n.º
12.965/2014), em seu art. 3º, II e III172, e na Lei Geral de Proteção de
Dados (Lei n.º 13.709/2018), em seu art. 2º173.
Desse modo, percebe-se que um primeiro ponto de partida
seria a implantação de uma pequena quarentena para a liberação de
alçada de movimentação, ou seja, após o envio da documentação,
a exchange deveria aguardar alguns poucos dias úteis com vistas a
dar tempo aos softwares de autenticação sistêmica de novos clientes
alertarem ao sistema de revisão interna eventual duplicidade ou
evidências de fraude, de forma dificultar ou mesmo obstar o caminho
para a lavagem.
Poder-se-ia, até mesmo, implementar uma identificação
presencial, conquanto fosse mais demorado, burocrático e oneroso.
Em segundo lugar, é vital o aperfeiçoamento dos algoritmos
que processam os dados enviados pelos pretendentes a clientes, de
forma que possam cruzar em tempo real, os dados recebidos com
outros anteriormente recebidos, identificando, como antedito, casos
de duplicidade de fotografias, telefones e/ou e-mails.
Como terceira sugestão, ainda em sede de aperfeiçoamento
dos algoritmos, está o melhoramento quanto aos movimentos faciais,
situação essa que poderia ser resolvida com o envio de vídeos de
poucos segundos, no qual o pretendente a cliente, falaria seu nome
completo, seu RG., seu CPF e endereço. Sem dúvida, tal aplicação
dificultaria bastante a atuação dos cibercriminosos.
A introdução de autenticação de dois fatores, com o envio de
códigos autenticadores por SMS igualmente seria um importante
elemento dificultador das ações ilícitas.

172 Art. 3º A disciplina do uso da internet no Brasil tem os seguintes princípios: (omissis); II - proteção da
privacidade; III - proteção dos dados pessoais, na forma da lei;
173 Art. 2º A disciplina da proteção de dados pessoais tem como fundamentos: I - o respeito à privacidade;
II - a autodeterminação informativa; III - a liberdade de expressão, de informação, de comunicação e de
opinião; IV - a inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem; V - o desenvolvimento econômico e
tecnológico e a inovação; VI - a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor; e VII - os di-
reitos humanos, o livre desenvolvimento da personalidade, a dignidade e o exercício da cidadania
pelas pessoas naturais.

- 244 -
Em quarto lugar estaria a proposição das corretoras de
criptoativos reverem o valor de alçada que é liberado após o primeiro
cadastro, diminuindo-o sensivelmente no início e, à medida que
se percebe um prolongamento no relacionamento, após nova
conferência de dados, ir majorando-o paulatinamente. Isso ganha
relevo, pois no caso concreto, percebeu-se que o agente lavador só
tinha interesse em exchanges que liberassem, de pronto, quantias
maiores, sendo um dos fatores que o estimularam a praticar tal
conduta.
Quanto às instituições financeiras, embora saibamos ser
hercúleo o trabalho de monitoramento diuturno do seu corpo de
TI, é necessário aperfeiçoamento da cadeia de comando e controle
de postos chaves, limitando o acesso de determinadas pessoas a
sistemas e dados essenciais para invasões cibernéticas.
Além disso, constante investimento em educação e
conscientização dos funcionários, através de treinamentos sobre os
riscos de fraudes e a importância da prevenção à lavagem de dinheiro
é fundamental para o sucesso das medidas de controle.
Revisão e atualização periódica das políticas de KYC: as
políticas de KYC devem ser revisadas e atualizadas regularmente,
levando em conta as mudanças regulatórias e os avanços tecnológicos,
a fim de garantir a efetividade dos controles.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tentou-se com o presente artigo, compartilhar, ainda que


sucintamente, uma breve experiência de um caso de delinquência
cibernética. Se antes tínhamos as off shores ou o dólar-cabo ou meios
mais usuais para lavar o dinheiro de atos de corrupção, desvios de
verbas públicas ou crimes financeiros propriamente ditos, hoje
podemos concluir que aqueles meios se tornaram, de certa forma,
obsoletos diante da tecnologia das criptomoedas.

- 245 -
Fez-se uma síntese sobre o caso concreto, onde estavam os
elos da corrente que levaram o agente ativo a cometer os delitos,
reforçando que não se está discutindo, logicamente, a volição do
agente, pois isso jamais se saberá, mas os meios que facilitaram ou,
até mesmo o induziram a praticar.
Em seguida, pontuou-se sobre as criptomoedas, suas origens,
conceitos e a tecnologia blockchain aplicada que dá segurança e
solidez às suas operações, finalizando que elas vieram para ficar,
mas, infelizmente algumas pessoas as utilizam de forma inidônea
para cometer delitos, cibernéticos ou não.
Quanto à lavagem de capitais, ficaram demonstradas inúmeras
falhas das corretoras, especialmente no que tange à parte principal
do KYC, ou seja, no cadastro prévio, em que documentos falsificados,
dados fictícios e incorretamente avaliados pelos softwares de análise,
davam margem para a liberação de limites de movimentação com
criptomoedas desarrazoados para um relacionamento inicial.
Essa errônea avaliação documental mitigou fortemente a
possibilidade de rastreamento da origem das transações criptográficas
e seu real autor. Isto é, afastou-se a ideia original de transparência
e segurança no blockchain de que a primeira compra de criptoativo
é vinculada à sua identidade física (real). Lamentavelmente, deu-se
prioridade ao volume de criptoativos negociados à qualidade dos
clientes.
Ao fim, foram discorridas as proposições para aperfeiçoamento
dos sistemas de duplo check das corretoras, como forma de minimizar
as tentativas de lavagem de capitais e desestimular aqueles que
pretendam utilizar as criptomoedas de forma ilícita.

REFERÊNCIAS
BECKER, Gary S. Crime and punishment: an economic approach, Journal of
Political Economy 76, 1968, p. 169-217.
CAMARA, Maria Amália Oliveira de Arruda. A nova tecnologia da informa-
ção e o direito: um estudo sobre os recursos que ajudam na construção do

- 246 -
Direito de Informática. Recife : Nossa Livraria, 2005, p. 23.
MASSON, Cleber, 1976. Código penal comentado. 10 ed., rev., atual. e ampl.
Rio de Janeiro. Método, 2022, p. 105.
KIST, Dário José. Prova digital no processo penal. JH Mizuno, 2019, p. 47-
50.
CORRÊA, Gustavo Testa. Aspectos jurídicos da internet. 4. ed. rev. e atual.
São Paulo. Saraiva, 2008, p.44.
SOUZA, Luciano Anderson de. Criminal compliance / Luciano Anderson de
Souza, Nathália Regina Pinto. – São Paulo : Thomson Reuters Brasil, 2021,
p. 46.

- 247 -
O PRINCÍPIO DA
INSIGNIFICÂNCIA NOS
CRIMES AMBIENTAIS
ANTROPOGÊNICOS
Helmo Robério Ferreira de Meneses174
José Cezário de Almeida175
Edite Batista de Albuquerque176

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Hodiernamente, as questões referentes ao meio ambiente


despertaram na sociedade a necessidade de discutir as formas de
preservação, de reflorestamento, de combate à extinção de espécies
e de punir os infratores de forma eficiente. Deste modo, a grande

174 Advogado e Docente graduado em Direito pela Universidade Regional do Cariri -URCA (2012),
pós-graduado em Direito Administrativo e Gestão Pública pela Universidade Regional do Cariri
-URCA (2015). Mestre em Sistemas Agroindustriais e Gestão Ambiental pela Universidade Federal
de Campina Grande (UFCG). Professor e Coordenador do curso de Direito das Faculdades Integra-
das do Ceará- UNIFIC, Assistente Jurídico e membro do comitê editorial da Revista Científica Jour-
nal of Law and Sustainability. Atuou como professor e Coordenador Adjunto do Curso de Direito
e Coordenador do Núcleo de Prática Jurídica, lecionando também as disciplinas de Introdução ao
Estudo do Direito, Direito Romano e Processo Civil na Universidade Regional do Cariri - URCA,
Unidade Descentralizada de Iguatu-CE. Lecionou na Faculdade Paraíso - FAP, as disciplinas de Di-
reito Processual Penal e Penitenciário. Tem experiência na área de Direito processual, com ênfase
em Processo Civil e Processo Penal. Presidente da Escola Superior da Advocacia (ESA) Subsecção
da OAB de Iguatu/CE. E-mail: helmomenesesadv@gmail.com.
175 Professor do Magistério Superior da Universidade Federal de Campina Grande, Campus de
Cajazeiras. Atua no ensino, pesquisa e extensão. Orientador de Programas de Pós-graduação stric-
to sensu (mestrado e doutorado do PPGGSA-UFCG. Formação em Ciências Biológicas e Bacha-
relado em Direito, Especialista em Direito Penal. Mestre pela Universidade Federal da Paraíba
(UFPB), Doutor pela Universidade Federal de Pernambuco, Pós-Doutor pela Universidade de São
Paulo (USP), Presidente da Escola Superior da Advocacia (ESA) Subsecção da OAB de Pombal/PB.
Sócio pesquisado do IBCCRIM e da ABRACRIM. Editor da Revista Brasileira de Direito e Gestão
Pública. Advogado. Doutorando em Ciências Jurídicas pelo Centro de Ciências Jurídicas – UFPB,
em cotutela com a Universitá Degli Studi Firenze - Itália. E-mail: cezariojus@gmail.com.
176 Policial Penal no Estado do Ceará, Tecnóloga em Gestão de Recursos Humanos (FAK). Grad-
uanda em Direito pelas Faculdades Integradas do Ceará (UNIFIC). Pós-graduada em Direito Pú-
blico (LEGALE). Pós-graduada em Direito Administrativo e Econômico (INTERVALE). Pós-gradu-
ada em Tribunal do Júri e Execução Penal (LEGALE). Pós-graduada em Planejamento Familiar e
Sucessório (LEGALE). E-mail: editealbuquerque1991@gmail.com.

- 249 -
discussão em tela não está na existência de uma norma penal,
mas sim, até que ponto a punição é justa, sendo ela proporcional
e necessária ao fato cometido. Assim, a ilicitude na prática da caça
de uma zenaida auriculata (avoante) é clara e incontestável, mas a
punição dada a um agricultor familiar, que matou tal animal para
saciar a fome, sua e de sua família, é proporcionalmente justa?
Portanto, considera-se atual e relevante analisar o contexto
dos crimes ambientais cometidos pelos membros do núcleo familiar
no desenvolvimento da agricultura de subsistência e a punição
aplicada pelo poder judiciário. Faz-se necessário refletir sobre
a gestão da agricultura familiar, a qual transcende a discussão de
formas de produção ou uso de tecnologias que aumentam a eficiência
dos resultados no campo, discutindo também todas as ações que
reverberam nas práticas do homem do campo.
Mister se faz, conceituarmos agricultura familiar, que
conforme Abramovay (2007), trata-se de um conjunto de três
atributos básicos: a gestão, a propriedade e o trabalho, oriundos em
sua maioria de indivíduos que mantêm entre si laços sanguíneos
ou de casamento.177 Destarte, o homem do campo, participante
com seus familiares do núcleo da agricultura de subsistência, tem
como característica a baixa produção como descreve a Lei 11.326
(BRASIL, 2006),178e por consequência a baixa arrecadação que o
coloca em relação de hipossuficiência, situação esta, que serve de
gatilho para cometimento de crimes ambientais, de modo a garantir
a manutenção da sua família, seja com a caça de animais silvestres
ou com queimadas de áreas de preservação ambiental.
Não obstante, a Constituição Federal de 1988 (CF), carta
magna da nação, assegura em seu artigo 225 que: “Todos têm direito
ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum
do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder

177 ABRAMOVAY, Ricardo. Paradigmas do Capitalismo Agrário em questão. São Paulo. Edusp,
2007. “Uma nova extensão para a agricultura familiar”. In: Seminário Nacional De Assistência
Técnica e Extensão Rural. Brasília, DF, Anais, 2007, p. 29.
178 BRASIL, Lei Nº 11.326, de 24 de julho de 2006. Estabelece as diretrizes para a formulação da
Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais. Brasília – DF.
2006.

- 250 -
público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para
as presentes e futuras gerações”.179 Por consequência, o princípio
da preservação ambiental é imperativo-atributivo e coercível,
influenciando diretamente na aplicação ou não da pena pelo
judiciário ao homem do campo.
O meio ambiental é de fato um dos temas mais debatidos
atualmente no mundo inteiro. A complexidade da manutenção da
existência humana passa diretamente pela garantia da manutenção
de todos os ecossistemas que o cercam. À vista disso, garantir um meio
ambiente equilibrado é o caminho mais eficaz para desacelerarmos a
extinção da raça humana. Na acepção da, bióloga e escritora, Rachel
Carson, grande ícone na defesa do meio ambiente, em sua obra
prima, o best seller “Primavera silenciosa”, alerta sobre a ganância do
homem e a fragilidade do planeta diante da inescrupulosa busca pela
globalização. Destaca as palavras de Albert Schwietzer “O homem
perdeu a capacidade de prever e prevenir. Ele acabará destruindo a
terra” (SCHWIETZER, apud CARSON,1964).180

PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÃNCIA E O BEM


JURÍDICO TUTELADO

Como consequência das garantias constitucionais para


preservação do meio ambiente, e pelas diretrizes estabelecidas
pelos tratados internacionais em que o Brasil é signatário, o poder
legislativo editou a Lei n º 9.605 de 1988, Lei de crimes ambientais,
que tipifica de forma abstrata e genérica todos os atos que lesem
ou coloquem em risco o meio ambiente, impondo penas duras aos
infratores (BRASIL,1998).181

179 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Senado, 1988.
Diário Oficial da União, Brasília, 5 out. 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 22 jul. 2018.
180 CARSON, Rachel, 1907-1964. Primavera silenciosa / Rachel Carson; (traduzido por Cláudia
SantÁnna Martins), 1ª ed. – São Paulo: Gaia, 2010.
181 BRASI. Lei no 9.605/1998. Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de con-
dutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências, DF, jul.2018.

- 251 -
A Lei é específica ao tipificar como crime tais ações,
independentemente do animus do agente no momento do crime,
vejamos a título de exemplo o que preceitua o art. 29 da Lei n. 9.605
(BRASIL, 1998), in verbis: “Art. 29. Matar, perseguir, caçar, apanhar,
utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória,
sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade
competente, ou em desacordo com a obtida: Pena - detenção de seis
meses a um ano, e multa.
Nesse toar, a grande discussão em tela é se o cometimento
de crimes ambientais em áreas de agricultura familiar pelo homem
do campo, devem ser considerados e punidos igualmente às pessoas
físicas e jurídicas que não gozem desse estado de hipossuficiência e
que não tenham o ânimus bagatelar, por estado de necessidade. Uma
vez que, princípio da insignificância traz em seu conceito a ideia de
que, os crimes de ínfima ofensividade ao bem jurídico tutelado pelo
estado, em nosso caso o meio ambiente, não contempla a relevância
necessária para aplicação de pena.
Nessa conjuntura, o Supremo Tribunal Federal (STF),
em julgamento de Habeas Corpus RHC nº 122.464/BA-AgR,
182
estabeleceu como critérios gerais para a configuração do princípio
da insignificância: (a) mínima ofensividade da conduta do agente,
(b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo
grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade
da lesão jurídica provocada (STF, 2014).Ressalta-se, ainda, que o
STF, fiel intérprete da Constituição Federal, também afirma em
sua jurisprudência a aplicabilidade do princípio em tela ao direito
ambiental:
“Art. 34, parágrafo único, II, da Lei nº 9.605/98. Rei furtivae
de valor insignificante. Periculosidade não considerável
do agente. Crime de bagatela. Caracterização. Aplicação
do princípio da insignificância. Atipicidade reconhecida.
Absolvição decretada. HC concedido para esse fim. Voto
vencido. Verificada a objetiva insignificância jurídica do ato

182 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Ordinário em Habeas Corpus. Princípio da in-
significância, identificação de vetores, cuja presença legitima a descaracterização da tipicidade
penal. Relator: Min. Celso de Mello, Bahia, DJe 12/08/14.

- 252 -
tido por delituoso, à luz das suas circunstâncias, deve o réu,
em recurso ou habeas corpus, ser absolvido por atipicidade do
comportamento183.

Segundo o Superior Tribunal de Justiça (STJ), o julgamento


em tela trata-se de um Habeas Corpus impetrado por um pescador,
flagrado praticando pesca predatória de camarão, por meio de
utensílios proibidos no período de defeso, tipificado no art. 34 da
Lei nº 9.605/1998, o pedido baseava-se na insignificância pelo fato
de, após o flagrante, o pescador devolveu os camarões ao habitat
natural. A quinta turma do tribunal denegou o pedido bagatelar,
informando que a relevância na punição se faz presente devido ao
período de reprodução das espécies184.
É imperioso destacar que o ordenamento jurídico e a doutrina
especializada em direito ambiental ainda discutem o alcance
e a aplicabilidade deste princípio como ditame, a exemplo da
Jurisprudência do STJ, que diverge em alguns pontos do pensamento
do STF. Outrossim, a doutrina penal também discute a temática.
Nesse contexto, Gomes (2013) afirma que as excludentes de
punibilidade são comuns em nosso ordenamento jurídico, com a
aplicação direita do princípio da insignificância, seja na prática dos
crimes de drogas, do dano ao erário público ou de contravenções
penais. 185A discussão está locada na aplicabilidade ao crime
ambiental, a situação econômica do infrator e a mensuração do
impacto ambiental relevante.
É oportuno destacar, que a própria Lei 6.905/98 (lei de crimes
ambientais) traz hipóteses em que o juiz pode não aplicar pena,
no caso do art. 29. §2º, nos casos de guarda doméstica de animais
silvestres, não considerados ameaçados de extinção, assegurando
ainda, em seus artigos 37 e 50-A, §1º que não comete crime quem
abate animal por estado de necessidade186, ou seja para salvar a si
183 Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 112563. Crime ambiental. Pescador flagrado com
doze camarões e rede de pesca, em desacordo com a Portaria 84/02, do IBAMA. Relator: Min Cezar
Peluso, Santa Catarina, DJe 21/08/2012.
184 BRASIL .HC 192.696-SC, Relator: Min. Gilson Dipp, DJe 17/3/2011. Quinta Turma. STJ.
185 GOMES, Luiz Flávio. Princípio da Insignificância e outras excludentes de tipicidade, 3ª ed.
Atual e ampliada, 2013, Revista dos Tribunais. São Paulo.2013.
186 Art. 24 - Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo at-

- 253 -
ou a sua família de perigo atual que não causou, ou para saciar
a fome, ou no caso de desmatamento, exploração econômica ou
degradação de floresta ou planta nativa, em terras de domínio
público ou devolutas, quando praticado para a subsistência do
agente ou de sua família.
Segundo o Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015) em seu
artigo 927, determina que juízes e tribunais observem as decisões
jurisprudenciais, as súmulas vinculantes, os precedentes judiciais e
as orientações dos plenários superiores, com o fim de firmarem um
entendimento que possibilite às partes, aos juízes e aos operadores
do ordenamento jurídico a previsão de resultados e a garantia da
segurança jurídica (BRASIL, 2015).187
A priore, as hipóteses legais já seriam necessárias para a
resolução dos crimes ambientais cometidos pelo homem do campo,
não havendo necessidade da aplicação de um princípio estrangeiro.
Ocorre que a lei traz apenas o tipo penal, ou melhor, a conduta
exigida da norma jurídica como ensina Hans Kelsen, em sua obra
Teoria Pura do Direito (NADER, 2019).188
O problema encontra-se na adequação ao posto na lei com os
fatos, vejamos algumas indicações da necessidade da aplicação da
jurisprudência, o artigo 29, §2º diz que o juiz pode ou não aplicar a
pena, dependendo das circunstâncias, mas não diz o critério que ele
usará para mensurar os fatos e decidir. A mesma coisa ocorre com
os outros dois artigos expostos acima, salvar a vida, saciar a fome
ou quando necessária subsistência imediata, como o juiz julgará a
quantidade e qualidade das ações?
E nos casos, em que a lei trata como crime, mas que
axiologicamente não guarda relevância para a sociedade, deve mesmo
assim ser aplicada a pena? Tais respostas nascem da jurisprudência,
que segundo o jus filosofo Paulo Nader, dentro da acepção latu senso,
consiste apenas na reunião de decisões uniformes, prolatadas pelos

ual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio,
cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se.
187 BRASIL. Lei nº 13.105 de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Brasília – DF. 2015.
188 NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. 36.a ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2014.

- 254 -
órgãos do Poder Judiciário, sobre uma determinada questão jurídica
(NADER, 2019).189
Dessarte, quando o tribunal recebe vários recursos,
decorrentes de várias sentenças que decidiram sobre o mesmo
tema de forma diferente, o tribunal os julgam, e estabelecem um
entendimento baseado na maioria das decisões (jurisprudência
majoritária/dominante) e publicam em sua base de pesquisa, uma
ou várias decisões que serviram de base para nortear os juízes nos
julgamentos futuros que versem sobre o mesmo tema.
Dessa maneira, mediante constatação de que existem
divergências no entendimento penal das penas cabíveis a alguns
tipos de crimes ambientais, surge a necessidade de pesquisar a
interpretação dos tribunais superiores sobre o tema, produzindo
material científico que possibilite ao profissional do direito
uma aplicabilidade para estabelecer a pretensão das partes, de
previsibilidade das decisões, de fomento à hermenêutica jurídica nos
parâmetros dos órgãos jurisdicionais.
A presente pesquisa não visa exaurir o entendimento sobre
a temática, mas sim, apresentar dados que visem proporcionar ao
público um ponto de partida para a melhor reflexão, discussão e
aplicação do princípio da insignificância nos crimes ambientais
cometidos pelos membros da agricultura familiar, analisando o
entendimento jurisprudencial sobre o princípio da insignificância
nos crimes ambientais cometidos pelo agricultor familiar. Por
conseguinte, identificar jurisprudências disponíveis sobre o assunto;
verificando a presença do princípio da insignificância em decisões
jurisprudenciais; e buscando compreender como o princípio da
insignificância tem sido entendido e aplicado neste âmbito.
Trata-se de uma pesquisa exploratória, com abordagem
qualitativa, de cunho documental, conforme Gil, 2018.190 Para tal,
serão pesquisadas as decisões jurisprudências, do STF, STJ e TJCE para
crimes ambientais cometidos no contexto da agricultura familiar, de

189 NADER, op.cit., 2019.


190 GIL, A.C. Como Elaborar Projetos de pesquisa. 6º.ed. São Paulo: Atlas,2018.

- 255 -
modo a investigar a aplicação do princípio da insignificância.
Como critérios de inclusão, considerou-se: jurisprudências
relativas a crimes faunísticos e florais cometidos pelo agricultor
familiar, datadas dos últimos cinco anos. Os dados serão coletados
nas páginas eletrônicas dos referidos tribunais. Para busca das
jurisprudências com a aplicação do princípio da insignificância nos
crimes ambientais em áreas de agricultura familiar, foram usados
termos em diferentes combinações de modo a obter um maior
número de resultados.
Deste modo, as palavras foram: Agricultura familiar; direito
ambiental; princípio da insignificância; crime ambiental; agricultor
familiar; estado de necessidade; crime de bagatela; e Lei.9605/98.
Posteriormente, analisou-se as jurisprudências à luz do princípio
da insignificância, com o escopo de encontrar a exposição fática
de abordagem de crimes ambientais antropogênicos praticados
pelos membros da agricultura familiar, discutindo, posteriormente,
a aplicação ou não do referido princípio e sua interpretação, bem
como elencando os novos entendimentos que emergiram a partir
das decisões. Os dados extraídos foram apresentados em quadros,
sendo posteriormente discutidos com base no ordenamento jurídico
vigente.

EFEITOS JURISPRUDENCIAIS DAS CORTES

Colações do STF
Buscou-se analisar todas as decisões jurisprudenciais do
Supremo tribunal Federal-STF, 191Superior Tribunal de Justiça- STJ
e Tribunal de Justiça do Ceará-TJCE, no tocante à aplicação do
princípio da insignificância nos crimes ambientais antropogênicos
em área de agricultura familiar. As decisões selecionadas consistiram,

191 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Disponível em: http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/


listarJurisprudencia.asp?s1=%28CRIT%C9RIOS+INSIGNIFIC%C2NCIA%29&base=baseAcord-
aos&url=http://tinyurl.com/y4mjakqx. Acesso em: 04 set. 2019.

- 256 -
unicamente, em acórdãos dos tribunais supracitados. No site do
STF, a busca com os descritores obteve um total de 46 acórdãos
jurisprudenciais, dos quais apenas sete atenderam aos critérios de
inclusão desta pesquisa. Assim, dispõe-se no Tabela 1 as principais
características coletas nas decisões jurisprudenciais selecionadas no
site do STF.
Tabela 1: Classificação da jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal para crimes ambientais quanto ao princípio da
insignificância, contexto de subsistência e novo entendimento.
INSIGNIFICÂNCIA

OU AGRICULTURA
JURISPRUDÊNCIA

ENTENDIMENTO
SUBSISTÊNCIA E
APLICAÇÃO DO

CONTEXTO DE
PRINCÍPIO DA

INOVAÇÃO DE
FAMILIAR

a) mínima ofensividade;
b) periculosidade social;
RHC nº 122.464/BA
S Sim c) reprovabilidade; e
d) inexpressividade da
lesão jurídica provocada
AP 439 / SP S Não esclarecido Nenhuma
HC 112563 / SC S Sim Nenhuma
INQ 3788 / DF S Sim Nenhuma
Profissionalismo do
RHC 125566 / PR N Não esclarecido
agente.
Profissionalismo do
HC 135404 / PR N Não esclarecido
agente.
HC 150147 AgR / RS N Não esclarecido Nenhuma
Fonte: Elaborado pelos autores192. Convenções: S (Sim) e N (Não)

192 QUADRO 1. Elaborado pelo autor. Classificação da jurisprudência do Supremo Tribunal Fed-
eral para crimes ambientais quanto ao princípio da insignificância, contexto de subsistência e
novo entendimento. Pombal, Paraíba, 2019. Fontes: RHC nº 122.464, op.cit.,. Supremo Tribunal
Federal. Ação Penal.439. Crime-insignificância-Meio ambiente. Relator: Marcos Aurélio, DJe
12/06/2008, São Paulo. RHC 112563, op.cit.,. Distrito Federal. Inquérito 3788. Denúncia contra
deputado federal. Crime ambiental. Pesca em lugar interditado por órgão competente. art. 34 da
lei n. 9.605/1998. Afastamento da preliminar de inépcia da denúncia. Alegada falta de justa causa

- 257 -
Para entendermos as decisões oriundas de nossa suprema
corte, precisamos antes, depreender qual a sua função dentro da
organização judiciária brasileira, assim trazemos a conceituação do
doutrinador Horácio Rodrigues, vejamos in verbis:
“Supremo Tribunal Federal (STF), corte constitucional
competente para julgar feitos em competência originária e
recursal proveniente de todas as justiças comuns e especiais,
quando houver ofensa à Constituição Federal e repercussão
geral política, jurídica, econômica ou social da matéria
discutida, para a sociedade brasileira” (RODRIGUES, 2018,
pág.274).193

Como garantidor da integridade das diretrizes constitucionais


em nosso ordenamento jurídico, chegou ao STF a discussão sobre a
punibilidade de pessoas que ferem a norma jurídica posta no art.225
da Constituição Federal, que trata o equilíbrio ambiental como
direito difuso, mas que suas ações não causavam dano relevante para
o meio ambiente, restando assim dúvida entre todos os tribunais e
juízes do país de como julgar nessas circunstâncias.
Não obstante, em resposta ao anseio jurídico, e com o escopo
de estabelecer segurança jurídica, o STF criou os requisitos básicos
para aplicação do princípio da insignificância no ordenamento
jurídico brasileiro, especialmente na esfera ambiental. Nas decisões
judiciais é clara a aplicação ou não do princípio da insignificância,
em decorrência da adequação da ação do pescador aos requisitos
estabelecidos pelo STF. Logo, os critérios acima esposados são
necessários para a análise dos magistrados, quando a defesa do réu
alegar incidência do princípio da insignificância.

para o prosseguimento da ação penal Relator: Ministra Carmen Lucia, DJe 01/03/2016. Supremo
Tribunal Federal. RHC 125566. Pesca em período proibido. Crime ambiental tipificado no art. 34,
parágrafo único, inciso I, da Lei nº 9.605/98. Proteção criminal decorrente de mandamento consti-
tucional (CF, art. 225, § 3º). Relator: Mini Dias Toffoli, Paraná, DJe 26/10/2016. Supremo Tribunal
Federal. RHC 150147.Postulado da insignificância. Relações dessa causa supralegal de exclusão da
atipicidade Penal em sua dimensão material com os princípios da fragmentariedade e da inter-
venção mínima do Estado em matéria penal. Relator: Min. Celso de Mello, DJe12/042019. Supremo
Tribunal Federal. RHC 150147.Postulado da insignificância. Relações dessa causa supralegal de
exclusão da atipicidade Penal em sua dimensão material com os princípios da fragmentariedade
da intervenção mínima do Estado em matéria penal.Relator: Min. Celso de Mello, DJe12/042019.
193 RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Teoria Geral do Processo / Horácio Wanderlei Rodrigues,
Eduardo de Avelar Lamy. – 5. ed. rev. e atual. – São Paulo: Atlas, 2018.

- 258 -
Das 46 incidências no site do STF194, apenas 07 embasaram-
se no princípio em tela. Entretanto, nos casos de absolvição pelo
princípio da insignificância, ficou clara a presença de estado de
pobreza dos agentes. Já para os casos de condenação, mesmo
existindo os 04 requisitos criados pelo STF, apresentava-se
claramente a característica de profissionalismo, que inviabilizou a
absolvição dos réus.
Portanto, neste caso, o amadorismo não oriundo de uma prática
diurna e reiterada, é entendido pelo STF pela aplicação do princípio
em tela. Entretanto, a prática comercial, que acompanha todo um
apetrecho de equipamentos profissionais, afasta a aplicação do
princípio no caso concreto. Essas duas características são inovações
na jurisprudência do STF, posteriores aos estabelecimentos dos 04
critérios anteriormente apresentados, podendo classificar-se como
uma jurisprudência prater legis em nosso ordenamento jurídico.

Colações do STJ e Julgados do TJCE


Em seguida, foram coletadas as jurisprudências do site do
Superior Tribunal de Justiça 195sobre a aplicação do princípio da
insignificância nos crimes ambientais em áreas de agricultura
familiar, obtendo-se 89 decisões, das quais 16 atendiam aos critérios
de inclusão da pesquisa e foram classificadas por meio de suas
principais variáveis dispostas (Tabela 2).

194 Supremo Tribunal Federal,op.cit.,


195 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/. Acesso em
out. 2019.

- 259 -
Tabela 2: Classificação da jurisprudência do Superior Tribunal
de Justiça para crimes ambientais quanto ao princípio da
insignificância, contexto de subsistência e novo entendimento.
Pombal, Paraíba, 2019.

INSIGNIFICÂNCIA

OU AGRICULTURA
JURISPRUDÊNCIA

ENTENDIMENTO
SUBSISTÊNCIA E
APLICAÇÃO DO

CONTEXTO DE
PRINCÍPIO DA

INOVAÇÃO DE
FAMILIAR
Adequação as
REsp 1.409.051-SC S Não esclarecido critérios do RHC nº
122.464/BA-AgR
REsp 1770667 S Não esclarecido Nenhuma
AgRg no REsp 1686899 N Não esclarecido Nenhuma
AgRg no AREsp493595 S Sim Nenhuma
RESP. 1409051-sc S Sim Amadorismo.
AgRg no REsp 1591408 Profissionalismo do
N Não esclarecido
/ PR agente.
Não adequação as
HC – 72234/PE S Não esclarecido critérios do RHC nº
122.464/BA-AgR
RESP.1591408-PR N Sim Nenhuma
ARESP 665254 N Não esclarecido Nenhuma
ARESP. 1620778-SC N Não esclarecido Nenhuma
HC72234-PE N Sim Amadorismo.
Profissionalismo do
AgRg no REsp 1591408 N Não esclarecido
agente.
Profissionalismo do
RHC 76446 N Não esclarecido
agente.
Profissionalismo do
RHC 58745 N Não esclarecido
agente.
REsp 1689342 / TO N Não esclarecido Amadorismo
Não adequação as
AREsp 1329204 / SC N Não esclarecido critérios do RHC nº
122.464/BA-AgR
Fonte: Elaborado pelos autores196. Convenções: S (Sim) e N (Não)

196 QUADRO 2. Elaborado pelos autores. Classificação da jurisprudência do Superior Tribunal de

- 260 -
Neste diapasão, o papel do STJ, o qual é instituição na visão da
doutrina processualística brasileira:
“Superior Tribunal de Justiça (STJ), corte infraconstitucional
que possui competências originárias e a quem compete
a uniformização da jurisprudência nas ações e recursos
referentes às leis federais aplicadas pelas justiças comuns
Federal e dos Estados-Membros; esse tribunal, entretanto,
não pertence a nenhuma dessas justiças, mas se sobrepõe a
elas” (RODRIGUES, 2018, pág.274) 197

Como visto acima, o escopo de uniformização do


entendimento jurisprudencial do país está sob a égide desta corte,
logo a interpretação direta das leis está sob seus cuidados, e, de
fato, podemos aferir um maior número de decisões que esclarecem o
entendimento hodierno nas lacunas deixadas pela lei. Nas decisões
acima, o STJ aplica o entendimento do STF quanto aos 04 critérios
de adequação para aplicação ou não do princípio da insignificância
e especifica em vários casos as caraterísticas que definem
profissionalismo.
Os Termos “rede de arrasto”, “petrechos de pesca
profissional”, “grande quantidade de caça”, “pesca”, “equipamento
de desmatamento”, assim como apresenta a tese que mesmo havendo
dificuldade econômica na época do cometimento do crime, só haverá
a desconsideração da antijuridicidade se proporcional a ação com o
resultado. Vejamos a jurisprudência abaixo:
Processo
AgRg no REsp 1591408 / PR
AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL
2016/0089707-3
Relator(a)
Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR (1148)
Órgão Julgador
T6 - SEXTA TURMA
Data do Julgamento

Justiça para crimes ambientais quanto ao princípio da insignificância, contexto de subsistência e


novo entendimento. Pombal, Paraíba, 2019.
197 RODRIGUES, op.cit., p.274.

- 261 -
24/05/2016
Data da Publicação/Fonte
DJe 17/06/2016
Ementa
AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. DIREITO
PENAL. LEGISLAÇÃO EXTRAVAGANTE. CRIME
AMBIENTAL. ART. 34 DA LEI N. 9.605/1998. PRINCÍPIO DA
INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE EM RAZÃO DAS
CIRCUNSTÂNCIAS DO DELITO. ELEVADA QUANTIDADE
DE PEIXES. UTILIZAÇÃO DE PETRECHOS PROIBIDOS.
PESCA DURANTE O PERÍODO DE DEFESO. ESTADO DE
NECESSIDADE NÃO CARACTERIZADO. ACÓRDÃO A QUO
EM CONSONÂNCIA COM A
JURISPRUDÊNCIA DESTE TRIBUNAL.
1. Este Tribunal Superior, tem admitido a aplicação do princípio
da insignificância quando demonstrada, a partir do exame do
caso concreto, a ínfima lesividade ao bem ambiental tutelado
pela norma. 2. Inaplicável o princípio da insignificância in
casu, uma vez que a quantidade do pescado apreendido (25 kg
de peixes de espécies variadas), bem como o fato de a atividade
ter sido praticada em período de defeso e com petrechos
proibidos para pesca, demonstra tanto a lesividade ao bem
jurídico tutelado quanto o elevado grau de reprovabilidade
do comportamento delitivo. 3. O estado de necessidade
não está caracterizado se não esteve presente, em nenhum
momento, o perigo atual e iminente para o réu, condição
essencial ao reconhecimento da excludente de ilicitude,
nos termos do art. 24 do Código Penal. A mera alegação de
dificuldade financeira não justifica a prática delitiva. 4. A
conduta do apenado atendeu tanto à tipicidade formal, pois
constatada a subsunção do fato à norma incriminadora,
quanto à subjetiva, uma vez que comprovado o dolo
do agente; consequentemente, há como reconhecer presente
a tipicidade material, na medida em que o comportamento
atribuído se mostrou suficiente para desestabilizar, em certa
medida, o ecossistema. 5. O acórdão recorrido se encontra
em consonância com a jurisprudência assente do Superior
Tribunal de Justiça, assim sendo, aplica-se ao caso vertente a
Súmula 83/STJ. 6. O agravo regimental não merece prosperar,
porquanto as razões reunidas na insurgência são incapazes
de infirmar o entendimento assentado na decisão agravada. 7.
Agravo regimental improvido (STJ, 2016).

- 262 -
Processo
AgRg no REsp 1689342 / TO
AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL
2017/0200552-0
Relator (a)
Ministro RIBEIRO DANTAS (1181)
Órgão Julgador
T5 - QUINTA TURMA
Data do Julgamento
05/12/2017
Data da Publicação/Fonte
DJe 13/12/2017
Ementa
PENAL E PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO
RECURSO ESPECIAL. CRIME AMBIENTAL. PESCA EM LOCAL
PROIBIDO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. AUSÊNCIA
DE DANO EFETIVO AO MEIO AMBIENTE. ATIPICIDADE
MATERIAL DA CONDUTA. SÚMULA N. 83/STJ. AGRAVO
NÃO PROVIDO. 1. A ausência de pescado cumulada com a
utilização de instrumen os de uso permitido, como vara de
carretilha e isca, demonstram
Amadorismo da conduta do denunciado e, portanto,
mínima lesividade ao bem jurídico. Precedente. 2. “Na
ausência de lesividade ao bem jurídico protegido pela norma
incriminadora (art. 34, caput, da Lei n. 9.605/1998), verifica-se
a atipicidade da conduta.” (REsp 1.409.051/SC, Rel. Ministro
NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 20/04/2017, DJe
28/04/2017). 3. Agravo regimental não provido (STJ, 2017).

Na pesquisa de dados do STJ, das 89 incidências, apenas


16 tiveram como fundamento o princípio da insignificância. Não
obstante, em todos os casos, fica clara nos casos de absolvição
a presença da baixa quantidade de animais apreendidos, assim
como a presença da adequação aos critérios estipulados pelo STF,
complementando os graus jurisdicionais da pesquisa, o Tribunal de
Justiça do Ceará tem como escopo a função de julgar como órgão
de segunda instância os processos julgados e recorridos de todas as
comarcas do Ceará, assim como é órgão competente para julgar os
processos no qual tem competência originária.

- 263 -
Por fim, estão apresentadas as jurisprudências oriundas do
TJCE198, e suas particularidades. Foram captadas 23 decisões pela
busca inicial no site do tribunal, das quais seis atenderam aos
critérios de inclusão da pesquisa dispostas (Tabela 3).
Tabela 3: Classificação da jurisprudência do Tribunal de Justiça
do Ceará para crimes ambientais quanto ao princípio da
insignificância, contexto de subsistência e novo entendimento.
Pombal, Paraíba, 2019.

INSIGNIFICÂNCIA

OU AGRICULTURA
JURISPRUDÊNCIA

ENTENDIMENTO
SUBSISTÊNCIA E
APLICAÇÃO DO

CONTEXTO DE
PRINCÍPIO DA

INOVAÇÃO DE
FAMILIAR

Profissionalismo e
499-11.2017.8.06.0029 N Não esclarecido
reincidência.
22-90.2004.8.06.0029 N Não esclarecido Nenhuma
8679-87.2011.8.06.0154 N Não esclarecido Nenhuma
Adequação as
2811-10.2015.8.06.0035 S Não esclarecido critérios do RHC nº
122.464/BA-AgR
3001049- Inaplicabilidade das
N Não esclarecido
45.2016.8.06.0091 excludentes legais.
Inaplicabilidade das
4322-63.2011.8.06.0122 N Não esclarecido
excludentes legais.
Fonte: Elaborado pelos autores199. Convenções: S (Sim) e N (Não)

Após aplicado os critérios de pesquisa em comento,


apresentou-se 23 jurisprudências sobre as temáticas, sendo uma
de absolvição pela aplicação do princípio e as outras cinco decisões

198 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO CEARÁ. Disponível em: https://esaj.tjce.jus.br/cjsg/resultado-


Completa.do. Acesso em out. 2019.
199 QUADRO 3. Elaborado pelos autores. Classificação da jurisprudência do Superior Tribunal de
Justiça para crimes ambientais quanto ao princípio da insignificância, contexto de subsistência e
novo entendimento. Pombal, Paraíba, 2019.

- 264 -
de condenação, pelo não reconhecimento da insignificância nas
ações dos réus. Nesse toar, vejamos em tela uma decisão da corte
estadual:
Relator (a): RAIMUNDO NONATO SILVA SANTOS; Comarca:
Acopiara; Órgão julgador: 2ª Vara da Comarca de Acopiara;
Data do julgamento: 03/10/2017; Data de registro: 03/10/2017)
PENAL. INCÊNDIO. ART. 250 CP. DESCLASSIFICAÇÃO PARA
O CRIME DO ART. 41, PARÁGRAFO ÚNICO DA LEI 9605/98
– IMPOSSIBILIDADE – DOLO CONFIGURADO. AUTORIA E
MATERIALIDADE DELITIVAS COMPROVADAS. INDENIZAÇÃO
MÍNIMA- AUSÊNCIA DE PEDIDO EXPRESSO- EXCLUSÃO
DE OFÍCIO. RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO. 1.
No caso, o agente ateou fogo na pastagem, atingindo locais
habitados, causando perigo aos moradores da região. As
testemunhas confirmaram não só a grande dimensão do
incêndio, mas também o perigo a que foram submetidas. 2.
Não há que se falar, portanto, em absolvição pelo crime de
incêndio e enquadramento no crime ambiental, na modalidade
culposa, do art. 41, parágrafo único, da Lei nº 9.605/98. O dolo
do acusado restou-se devidamente comprovado pela prova
oral coligida em juízo: a ação do réu foi proposital, expondo
a perigo à vida, à integridade física e/ou ao patrimônio de
pessoas indeterminadas, como minuciosamente relatado
pelas testemunhas ouvidas. 3. No que se refere à indenização
mínima fixada, a doutrina e a jurisprudência pátria entendem
ser necessário o requerimento expresso, oportunizando ao
réu o contraditório e a ampla defesa, o que não ocorreu no
caso. Ausente o pedido expresso, deve ser a indenização
mínima fixada excluída de ofício. 4. Em face do entendimento
do STF, manifestado no julgamento do Agravo em Recurso
Extraordinário nº 964.246/SP, no qual se reconheceu a
repercussão geral do tema, deve o Juízo de primeiro grau, diante
do teor do presente acórdão, verificar a possibilidade de imediato
cumprimento da pena por parte do recorrente. 5. Recurso
conhecido e não provido. Indenização mínima fixada excluída
de ofício. ACÓRDÃO: Vistos, relatados e discutidos estes autos
de Apelação nº 0000499-11.2007.8.06.0029, em que é apelante
Antônio Rodrigues da Silva Sobrinho e apelado Ministério
Público do Estado do Ceará. Acordam os Desembargadores da
3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará,
por unanimidade, em conhecer e negar provimento ao recurso
nos termos do voto do Relator. Fortaleza, 03 de outubro de 2017
DESEMBARGADOR RAIMUNDO NONATO SILVA SANTOS
Relator (TJCE, 2017).

- 265 -
É fato que a decisão do STF, que teve como relator o Ministro
Celso de Melo, o RHC nº 122.464/BA-AgR, 200trouxe uma nova
concepção jurídica sobre a aplicação do princípio da insignificância
criado pelo mestre Claus Roxin, 201estabelecendo critérios para
que todos os juízes tivessem como diretrizes para auxiliá-los
nos julgamentos das ações penais. Como era de se esperar, tais
requisitos foram inseridos também na esfera do direito ambiental,
tal aplicação é reconhecida pela doutrina brasileira, vejamos o relato
do doutrinador Romeu Thomé sobre o tema:
“a lei ambiental não deve ser aplicada para punir as chamadas
“ações insignificantes” (sem potencial ofensivo ao meio
ambiente). A “ Ultima ratio da tutela penal ambiental significa
que esta é chamada a intervir somente nos casos em que as
agressões aos valores fundamentais da sociedade alcancem o
ponto do intolerável ou sejam objeto de intensa reprovação do
corpo social.”71 O direito penal deve incidir somente quando
as demais instâncias - civil e administrativa - se mostrarem
insuficientes para coibir a conduta infracional. Para o Superior
Tribunal de Justiça, “o princípio da insignificância surge como
instrumento de interpretação restritiva do tipo penal que, de
acordo com a dogmática moderna, não deve ser considerado
apenas em seu aspecto formal, de subsunção do fato à norma,
mas, primordialmente, em seu conteúdo material, de cunho
valorativo, no sentido da sua efetiva lesividade ao bem jurídico
tutelado pela norma penal, consagrando os postulados da
fragmentariedade e da intervenção mínima.” (STJ, H C 869 1 3/
PR, Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJ 04/08/2008) (THOMÉ,
2015, pág.719).

Assim, não há controvérsia no tocante à aplicação do


princípio, mas sim de suas diversas faces diante do ordenamento
jurídico vigente. O STJ, assim como o STF, regula as hipóteses
de adequação do caso concreto aos critérios já estabelecidos,
acrescentando a reincidência e o profissionalismo na prática ilícita
dos crimes ambientais como novos critérios para impossibilidade de
absolvição com base no princípio em tela, tornando menor o número
de julgados favoráveis nos últimos 5 anos.

200 RHC 122.464, Op.cit.,


201 ROXIN, Claus. Derecho penal – Parte Geral. Madrid: Editorial Civitas, 1997.

- 266 -
Destacamos, que apenas 22% das jurisprudências do STJ
foram de aplicação do princípio da insignificância, resultando na
absolvição dos réus. Todos os outros casos foram negados, por sua
maioria, como exemplificado no quadro 2, devido às características
de comercialização de espécies nativas pelos réus. Ressalta-se, que
no julgamento da RESP. 1591408-PR, o STJ afastou a aplicabilidade do
princípio bagatelar, mesmo havendo provas concretas da dificuldade
econômica do réu, por haver traços de profissionalismo na ação.
Outrossim, nos casos de pesca irregular, vistos nos RESP
665254, RES. 1558132 e RHC 60419 do STJ, a presença de vários
quilos de camarões pescados na piracema, o uso de equipamentos de
profissionais de pesca, como rede arrasto e a reincidência em crimes,
fizeram o entendimento endurecer, estabelecendo assim, um maior
cuidado com o equilíbrio ambiental (STJ, 2019).
Na mesma corrente, nos últimos 5 anos, encontramos
apenas um caso de absolvição no TJCE, pela aplicação do princípio
da insignificância em crimes ambientais. Por isso, nos chama a
atenção o endurecimento do entendimento jurisprudencial no
tocante à aplicabilidade do princípio da insignificância nos crimes
ambientais, corroborando temos os crimes corriqueiros de nossa
região, tais como queimada, criação de animal silvestre (papagaio),
corte de árvore nativa e carcinicultura, assim como construção em
locais de preservação, não tiveram atendidos os pedidos da defesa
de absolvição com base no princípio objeto do presente trabalho.
(TJCE, 2019).
Como interpretador da norma jurídica, o TJCE ao analisar
no caso concreto hipótese que se enquadraria no art. 29 da Lei
9,605/98202, em que é dada a possibilidade de não aplicação da
punição de acordo com as circunstâncias quando se tratar de criação
de animais silvestres, o tribunal entendeu, que mesmo sendo apenas
um animal, no caso um papagaio, ave comumente criada em nossa
região, entendeu pela manutenção da condenação. (proc. 4322-
63.2011.8.06.0122).

202 Lei 9.605/98 op. cit.,

- 267 -
É imperioso destacar que os pontos convergentes na aplicação
do princípio da insignificância em todos os julgados foram: a) mínima
ofensividade da conduta do agente; b) nenhuma periculosidade
social da ação; c) reduzidíssimo grau de reprovabilidade do
comportamento; e d) inexpressividade da lesão jurídica provocada;
e) amadorismo da ação; f) pobreza como fator de subsistência.
Mesmo não havendo resultado positivo na pesquisa utilizando
os descritores agricultora familiar e agricultor familiar, fica clara as
ações típicas do homem do campo, como criação de animal silvestre,
pesca em período proibido, queimadas em pequenas áreas de terra,
ou corte de arvores nativas, que associadas aos fatores acima geraram
absolvição dos réus.
O endurecimento do entendimento jurisprudencial,
nos mostra que, pelo menos no âmbito do direito ambiental, a
hermenêutica jurídica encontra-se arraigada ao conservadorismo,
sendo que, mesmo havendo as hipóteses de inexpressividade da
lesão jurídica provocada ao meio ambiente, os tribunais mantêm as
decisões de condenação, fortalecendo a ideia de “tolerância zero”
aos atos ilícitos praticados contra os ecossistemas.
Segundo o entendimento do douto professor de direito penal,
Jardel de Freitas Soares, em sua obra La criminalidade ambiental de las
empresas em el mercosur, explica sobre a concepção de ato ilícito “El
ilícito penal refierese a ilícito más oneroso, cuya la intensidade alcanzó
um bien jurídico de gran relevância social penalmente protegido”
(SOARES, 2013, pág. 67).203
O requisito de aplicação do princípio da insignificância,
caracterizado como: reduzidíssimo grau de reprovabilidade do
comportamento, remonta à obra do jurista Miguel Reale, que ao
criar a teoria tridimensional do direito, atribui ao valor, a concepção
axiológica do povo na dialética entre o fato e norma jurídica,
(REALE,2001).204
As divergências jurisprudenciais, aparentam a dualidade

203 REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. - 25ªed. - São Paulo: Saraiva, 2001.
204 REALE, op. Cit.,

- 268 -
trazida ao direito penal, do seu uso como última ratio, a natureza
subsidiária do direito penal implica em seu uso apenas nas últimas
consequências. Logo, ato de baixa relevância social deve ser
controlado por outras áreas do direito.
Tal raciocínio, é defendido pela teoria minimalista do direito
penal, com explica o doutrinador e professor Rogério Greco, que a
punição por meio de pena, principalmente da restritiva de liberdade
é uma intervenção do Estado muito drástica, sendo preferível a ação
de outros ramos do direito. (GRECO,2017)205
“A última entre todas as medidas protetoras que se devem
considerar, quer dizer, que somente pode intervir quando
falhem os outros meios de solução social do problema
– como a ação civil, as sanções não penais, etc., - Por isso,
se denomina a pena como ultima ratio da política social
e se define sua missão como proteção subsidiária de bens
jurídicos” (ROXIN,76, pág.65).

Assim, nos surge a grande pergunta, se a aplicação das penas


da lei de crimes ambientais é o meio mais justo para coibir e preservar
o meio ambiente, nos casos de lesões de pequena expressividade,
como a retirada de 12 camarões do mar em período de defeso, ou
melhor; na criação de um animal silvestre (papagaio) no domicílio
do réu?
Não podemos deixar de falar, que a Lei 6.905/98, traz a
possiblidade de resolução desses conflitos sem aplicação de pena,
usando subsidiariamente a aplicação das medidas da Lei 9.099/95
(lei dos juizados especiais), havendo a possibilidade de transação
penal, suspensão condicional da penal, assim como a substituição
de pena privativa de liberdade por pena restritiva de direito nos
casos de crimes com condenação até 4 anos. Assim, os processos são
extintos sem resolução do mérito, sem aplicação de pena restritivas
de liberdade ou até de direitos, dependendo do caso, mas sempre
havendo a reparação do dano, logicamente quando ainda possível.
O professor Frederico Amado, explica que a lei de crimes

205 GRECO, Rogério. Sistema Prisional: Colapso atual e soluções alternativas / Rogério Greco – 3ª
ed. Ver., ampl, e atual. – Niterói, RJ: Impetus, 2016.

- 269 -
ambientais recepcionou e adotou as formas de acordos nos crimes
de menor potencial ofensivo ao meio ambiente, possibilitando a
extinção do processo sem a discussão de culpa. (AMADO, 2014).206
Considera-se que, ao exemplificar um agricultor processado
por crime ambiental de baixo potencial lesivo, lhe será formulado
proposta de termo de ajustamento de conduta. Caso não aceite, o
parquet continuará com a ação penal, processo este, em que alega
a aplicação do princípio da insignificância como fator absolutório.
Sendo sua tese aceita ou não na sentença, tal ato decisório caberá
recurso. Protocolado tal recurso no TJCE, o tribunal discutirá se a
sentença foi coerente ou não em aplicar tal decisão. Logo, se a ação
do réu respeitar todos os critérios estabelecidos pelo STF, somados
aos acrescidos pelo STJ e regionalizados nos acórdãos-modelo do
TJCE, haverá absolvição do acusado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em análise às jurisprudências dos tribunais superiores


sobre a temática, percebe-se que de forma nítida, o princípio da
insignificância é aplicado em dimensão unânime em todos os
graus de jurisdição, com critérios determinados, verificando-se
uniformização das decisões sobre o tema. Isto posto, constatou-se a
ocorrência hierárquica quanto as decisões proferidas pelo Supremo
Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça e o Tribunal de
Justiça do Ceará, os quais adotaram os seguintes critérios oriundos
de vertente jurisprudencial, a saber:: a) mínima ofensividade da
conduta do agente; b) nenhuma periculosidade social da ação; c)
reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento; e d)
inexpressividade da lesão jurídica provocada; e) amadorismo da
ação; f) pobreza como fator de subsistência.
Dentre as características reveladas na aplicação do princípio
da insignificância em áreas de exploração agrícola no campo
206 AMADO, Frederico Augusto Di Trindade, Direito Ambiental Esquematizado / Frederico Au-
gusto Di Trindade Amado. – 5. ed.– Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014.

- 270 -
familiar, tutelados na esfera dos precedentes jurisprudenciais do
TJCE, revelam-se como condutas reiteradas do homem do campo,
por exemplos, citam-se: queimadas, pesca, criação de animal
silvestre (pássaros), construção em área de proteção ambiental. No
entanto, ressalta-se que não é possível identificar todos os fatos
narrados nas peças iniciais do processo, como por exemplo, idade,
profissão, renda, local de residência, local de trabalho ou o próprio
local do crime, visto que a jurisprudência se trata de um resumo de
uma decisão judicial que representa o entendimento da corte. Desse
modo, é temeroso afirmar que o homem do campo está desprovido da
aplicação do princípio da insignificância, em detrimento da pessoa
residente em meio urbano.
Contudo, revela-se que, os resultados obtidos no presente
estudo de prospecção de aplicação do princípio da insignificância
nos crimes ambientais de ocorrência em áreas rurais de exploração
da agricultura familiar, constando ser notório que a aplicação do
princípio em apreço, revela-se no âmbito do direito ambiental como
de extremamente cauteloso, e que os critérios de adequação não
são oriundos das leis, visto que, como princípio bagatelar não tem
previsão legal em nosso ordenamento jurídico, ou seja; não dispõe-
se de lei conceituando-o e estabelecendo diretrizes na proteção
dos bem jurídico tutelado. De sorte que, incumbe-se aos tribunais
traçarem os requisitos necessários à adequação da insignificância da
ação em casos concretos.
Assim, parece-nos, que o Estado-Juiz, ao se deparar com o
paradoxo de punir ou não o ato ilícito, responde ponderadamente,
assim, o preceito constitucional de equilibro do meio ambiente
cravado no artigo 225 da Constituição Federal de 1988, é
extremamente respeitado, sendo a absolvição por inexpressiva lesão
ao meio ambiente taxado como uma exceção à regra nos julgados
ambientais formados no âmbito dos tribunais do nosso País.

- 271 -
REFERÊNCIAS
ABRAMOVAY, Ricardo. Paradigmas do Capitalismo Agrário em questão. São
Paulo. Edusp, 2007. “Uma nova extensão para a agricultura familiar”. In:
Seminário Nacional De Assistência Técnica e Extensão Rural. Brasília, DF,
Anais, 2007, p. 29.
AMADO, Frederico Augusto Di Trindade, Direito ambiental esquematizado
/ Frederico Augusto Di Trindade Amado. – 5. ed.– Rio de Janeiro: Forense;
São Paulo: Método, 2014.
AMADO, Frederico Augusto Di Trindade, Direito ambiental esquematizado
/ Frederico Augusto Di Trindade Amado. – 5. ed.– Rio de Janeiro: Forense;
São Paulo: Método, 2014.
BRASIL, Lei Nº 11.326, de 24 de julho de 2006. Estabelece as diretrizes
para a formulação da Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreen-
dimentos Familiares Rurais. Brasília – DF. 2006.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília:
Senado, 1988. Diário Oficial da União, Brasília, 5 out. 1988. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Aces-
so em: 22 jul. 2018.
BRASIL. Lei nº 13.105 de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil.
Brasília – DF. 2015.
BRASIL. Lei no 9.605/1998. Dispõe sobre as sanções penais e administra-
tivas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá
outras providências, DF, jul.2018.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: https://scon.stj.jus.
br/SCON/. Acesso em out. 2019.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 192.696-SC, Relator: Min. Gilson
Dipp, DJe 17/3/2011. Quinta Turma. STJ. Disponível em: https://www.jus-
brasil.com.br/jurisprudencia/stj/18236811.Acesso em: 22 jul.2018.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. 150147. Postulado da insignificância.
Relações dessa causa supralegal de exclusão da atipicidade Penal em sua
dimensão material com os princípios da fragmentariedade e da interven-
ção mínima do Estado em matéria penal. Relator: Min. Celso de Mello,
DJe12/042019. Supremo Tribunal Federal. RHC 150147.Postulado da in-
significância. Relações dessa causa supralegal de exclusão da atipicidade
Penal em sua dimensão material com os princípios da fragmentariedade
da intervenção mínima do Estado em matéria penal.Relator: Min. Celso de
Mello, DJe12/042019.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 112563. Crime ambien-
tal. Pescador flagrado com doze camarões e rede de pesca, em desacordo
com a Portaria 84/02, do IBAMA. Relator: Min Cezar Peluso, Santa Catari-

- 272 -
na, DJe 21/08/2012.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Ordinário em Habeas Corpus.
Princípio da insignificância, identificação de vetores, cuja presença legiti-
ma a descaracterização da tipicidade penal. Relator: Min. Celso de Mello,
Bahia, DJe 12/08/14.
BRASIL. Tribunal de Justiça do Ceará. Disponível em: https://esaj.tjce.jus.
br/cjsg/resultadoCompleta.do. Acesso em out. 2019.
CARSON, Rachel, 1907-1964. Primavera silenciosa / Rachel Carson; (tradu-
zido por Cláudia SantÁnna Martins), 1ª ed. – São Paulo: Gaia, 2010.
GIL, Antonio Carlos. Como Elaborar Projetos de pesquisa. 6º.ed. São Paulo:
Atlas,2018.
GOMES, Luiz Flávio. Princípio da Insignificância e outras excludentes de
tipicidade, 3ª ed. Atual e ampliada, 2013, Revista dos Tribunais. São Pau-
lo.2013.
GRECO, Rogério. Sistema Prisional: colapso atual e soluções alternativas /
Rogério Greco – 3ª ed.
NADER, Paulo. INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO. 36.a ed. – Rio de
Janeiro: Forense, 2014.
REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. - 25ªed. - São Paulo: Sarai-
va, 2001.
RODRIGUES, Eduardo de Avelar Lamy. – 5. ED. REV. E ATUAL. – São Paulo:
Atlas, 2018.
RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Teoria Geral do Processo / Horácio Wan-
derlei.
ROXIN, Claus. Derecho Penal – Parte Geral. Madrid: Editorial Civitas, 1997.
Ver., ampl, e atual. – Niterói, RJ: Impetus, 2016.

- 273 -

Você também pode gostar