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2 | Para Onélia Queiroga

FELIPE NEGREIROS
Organizador

Allan Jones Andreza Silva, Allan Vítor


Corrêa de Carvalho, Ana Angélica Bezerra
Cavalcanti, Ana Rafaela Pessoa Alcoforado,
Carlos Augusto Machado de Brito, Débora
Dalila Tavares Leite, Hioman Imperiano de
Sousa, José Cezario de Almeida, Luciana
Amaral da Silva, Maria Marconiete
Fernandes Pereira, Mariana Soares de Morais
Silva, Valdir Delmiro Neves, Werton
Magalhães Costa.
Autores
Liber Discipulorum | 3

FELIPE NEGREIROS
Organizador

Allan Jones Andreza Silva, Allan Vítor Corrêa de Carvalho,


Ana Angélica Bezerra Cavalcanti, Ana Rafaela Pessoa
Alcoforado, Carlos Augusto Machado de Brito, Débora
Dalila Tavares Leite, Hioman Imperiano de Sousa, José
Cezario de Almeida, Luciana Amaral da Silva, Maria
Marconiete Fernandes Pereira, Mariana Soares de Morais
Silva, Valdir Delmiro Neves, Werton Magalhães Costa.
Autores

LIBER DISCIPULORUM:
PARA ONÉLIA QUEIROGA
Versão E-book

EDITORA NORAT
João Pessoa
2022
4 | Para Onélia Queiroga

ISBN 978-65-86183-19-1
© 2022 Direitos autorais resguardados aos autores de cada artigo.
© 2022 Direitos de edição reservados à Editora Norat
Cada artigo é de inteira e exclusiva responsabilidade de seus respectivos autores, incluindo
os ideários, conceitos, apreciações, julgamentos, opiniões e considerações lançados nos
textos dos artigos.

Diretor editorial: Markus Samuel Leite Norat


Conselho Científico e Editorial: Disponível no site da editora.

Dados de Catalogação na Publicação

Liber discipulorum: para Onélia Queiroga / Felipe


Augusto Forte de Negreiros Deodato (Organizador). -João
Pessoa: Editora Norat, 2022. [1,75mb - E-book]
327 p.
Bibliografia.
ISBN 978-65-86183-19-1

1. Dogmática Ontoantropológica
2. Política Criminal Ontoantropológica
I. Título.

CDU-340

Índices para catálogo sistemático:


1. Dogmática Ontoantropológica 340
2. Política Criminal Ontoantropológica 340

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. É proibida a cópia total ou parcial desta obra, por
qualquer forma ou qualquer meio. A violação dos direitos autorais é crime tipificado na Lei
n. 9.610/98 e artigo 184 do Código Penal.

Editado e produzido no Brasil


Edited and produced in Brazil

EDITORA NORAT
Editora Norat - CNPJ 34.158.837/0001-85
www.editoranorat.com.br
Liber Discipulorum | 5

Organizador:

FELIPE NEGREIROS
Professor Associado da Faculdade de Direito da UFPB nos
cursos de Graduação, Mestrado e Doutorado, Professor do
UNIPE, nos cursos de Graduação e Mestrado, Presidente da
Comissão de Assuntos Acadêmicos da OAB/PB, Mestre e
Doutor pela Faculdade de Direito de Coimbra.
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Autores:

ALLAN JONES ANDREZA SILVA


Doutorando e mestre em ciências jurídicas (UFPB),
Especialista em Direitos Fundamentais e Democracia
(UEPB), Bacharel em Direito (UEPB) e Segurança Pública
(PMPB).

ALLAN VÍTOR CORRÊA DE CARVALHO


Advogado Criminalista. Mestrando em Direito e
Desenvolvimento Sustentável pelo Centro Universitário de
João Pessoa - UNIPÊ.

ANA ANGÉLICA BEZERRA CAVALCANTI


Tabeliã e Registradora do Estado da Paraíba. Doutoranda
em Ciências Jurídicas e Sociais pela UMSA - Universidad del
Museo Social Argentino. Mestranda em Direito e
Desenvolvimento Sustentável pelo UNIPÊ. Especialista em
Direito Penal e Processual Penal pela FAERPI - Faculdade
Entre Rios do Piauí. Graduada em Direito pela Universidade
Federal da Paraíba - UFPB.

ANA RAFAELA PESSOA ALCOFORADO


Assistente Jurídica do Tribunal de Justiça da Paraíba.
Mestranda em Ciências Jurídicas e Bacharel em Direito pela
Universidade Federal da Paraíba - UFPB.

CARLOS AUGUSTO MACHADO DE BRITO


Mestrando em Direito e Desenvolvimento pelo Centro
Universitário de João Pessoa – UNIPÊ.
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DÉBORA DALILA TAVARES LEITE


Analista Judiciário do Tribunal de Justiça da Paraíba.
Mestranda em Direito e Desenvolvimento Sustentável pelo
UNIPÊ.

HIOMAN IMPERIANO DE SOUSA


Doutorando em Direito pelo Programa de Pós-Graduação
Stricto Senso em Ciências Jurídicas (PPGCJ) da Universidade
Federal da Paraíba (UFPB). Mestre em Direito pela
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Especialista em Direito pela Universidade Estadual da
Paraíba (UEPB), Escola Superior da Magistratura da Paraíba
(ESMA-PB) e Fundação Superior do Ministério Público da
Paraíba (FESMIP-PB).

JOSÉ CEZARIO DE ALMEIDA


Doutorando em Direito pelo Programa de Pós-graduação
em Ciências Jurídicas (PPGCJ) da Universidade Federal da
Paraíba (UFPB). Doutor pela Universidade Federal de
Pernambuco. Pós-Doutor pela Universidade de São Paulo
(USP). Esp. em Direito Penal. Docente da Universidade
Federal de Campina Grande. Advogado.

LUCIANA AMARAL DA SILVA


Mestranda em Direito e Desenvolvimento Sustentável pelo
Centro Universitário de João Pessoa – UNIPÊ. Graduada em
Direito pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
Registradora e Tabeliã no Estado de Pernambuco.

MARIA MARCONIETE FERNANDES PEREIRA


Doutora em Direito Público pela Universidade Federal de
Pernambuco (2014). Mestre em Ciências Jurídicas pela
Universidade Federal da Paraíba (2009), área de
Concentração em Direito Econômico. Especialista em
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Contabilidade e Auditoria Pública pela Universidade


Federal da Paraíba (1998). Graduada em Ciências Contábeis
pela Universidade Federal de Pernambuco (1990). Graduada
em Direito pelo Centro Universitário de João Pessoa (2005).
Professora Titular da graduação em Direito Tributário e de
Administrativo do UNIPÊ. Professora do Programa de Pós-
Graduação em Direito, Mestrado do Centro Universitário de
João Pessoa/UNIPÊ. Auditora de Contas Públicas –
Controladoria Geral do Estado/PB (1995). Advogada.
Membro Fundadora do Instituto Paraibano de Direito
Administrativo.

MARIANA SOARES DE MORAIS SILVA


Mestranda em Direito e Desenvolvimento Sustentável pelo
Centro Universitário de João Pessoa – UNIPE.

VALDIR DELMIRO NEVES


Médico (1991) e Bacharel em Direito (2020) graduado pela
Universidade Federal da Paraiba. Tem Residência Médica
(1992-1997) em Neurocirurgia no Hospital das Clínicas das
Universidade de São Paulo. Especialização em
Neurorradiologia pelo Centre Universitaire de Nancy (2008-
2009). Aluno do Programa de Pós-Graduação em Direito
(Mestrado) do Centro Universitário de João Pessoa - UNIPÊ.

WERTON MAGALHÃES COSTA


Doutorando e Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em
Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba
(PPGCJ/UFPB). Bacharel em Direito pela UFPB. Professor
adjunto da UFPB. Membro do Ministério Público Federal e
da Academia Paraibana de Letras Jurídicas.
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“O ideal é viver como se fôssemos imortais.


Continuar nossa vida com os mesmos
projetos e as mesmas ilusões com que
começamos a viver. Isso é possível se
fazemos o que gostamos, se nossa vida está
dedicada a materializar uma vocação, o que
significa que a recompensa obtida é o ato
mesmo de exercitar essa vocação”
Mario Vargas Llosa
10 | Para Onélia Queiroga
Liber Discipulorum | 11

APRESENTAÇÃO DA
HOMENAGEADA

“Eu vos dou raízes


O seio da perpetuidade
Outros vos darão asas (...)”

No discurso pronunciado na solenidade de instalação


da Universidade da Paraíba, O Ministro José Américo de
Almeida, legou-nos o aforismo em epígrafe, que simboliza a
própria História da Instituição, desde as suas origens
oficiais, em 1955 e que foi perenizado os dias atuais.
Nesse ano, a Faculdade de Direito da Paraíba já
formava a sua primeira turma, graças ao pioneirismo dos
seus abnegados e sempre corajosos fundadores, professores
reverenciados com o reconhecimento e o respeito de toda a
comunidade.
Onélia Setúbal Rocha de Queiroga, destacou-se pelo
seu trabalho acadêmico, como docente e dirigente da
Faculdade de Direito da Paraíba, liderando a criação do
Centro de Ciências Jurídicas, fiel a máxima norteadora,
fincando novamente raízes, asas e a perpetuidade.
Onélia – Origens: Nasceu em Fortaleza, no Estado do
Ceará, filha de dona Raimunda e do Senhor Antônio
Hortêncio Rocha. Ainda criança, a família radicou-se na
cidade de Pombal, Estado da Paraíba, onde o patriarca criou
uma torrefação de café. Era uma família numerosa, unida e
alegre, que se destacava em toda a região, agregadora.
Onélia – Descendência: Casou-se com o
Desembargador Antônio Elias de Queiroga, também
docente e escritor, jurista admirável, civilista de escol. Do
12 | Para Onélia Queiroga

casamento nasceram os seguintes filhos: Onaldo Rocha de


Queiroga (Juiz de Direito), Antônio Carlos Rocha de
Queiroga (Engenheiro Civil e Bacharel e Direito), André
Rocha de Queiroga (Médico Cardiologista), Antônio
Hortêncio Rocha Neto (atual Procurador Geral de Justiça) e
Antônio Elias de Queiroga Filho (Juiz de Direito), além de
netos e bisnetos muito amados.
Onélia – Atividades Profissionais: Principiou suas
atividades no magistério como professora, ainda na cidade
de Pombal, lecionando para crianças e adolescentes. Com a
vinda para João Pessoa, ingressou no curso de direito, que
terminou em 1976, na Universidade Federal da Paraíba. Em
1983, concluiu o Mestrado em Direito pela Universidade
Federal de Pernambuco. Em 1977, foi admitida como
professora da UFPB, aposentando-se como docente títulos
em 1993, ministrando a disciplina de Direito Penal.
Onélia – Administradora: Na área administrativa da
Instituição, exerceu diversas atividades, como subchefe do
Departamento de Direito Público do CCSA/UFPB,
Coordenadora do Curso de Direito do CCSA/UFPB. Nessa
época, começou a guerrear pela criação do Centro de
Ciências Jurídicas, batalha vitoriosa, com o consequente
retorno do Curso ao vetusto e histórico Mosteiro Jesuíta. Foi
eleita Diretora do Centro de Ciência Jurídicas, numa justa
manifestação dos docentes, discentes e servidores. A sua
gestão foi primorosa, com ações inovadoras e corajosas,
objetivando a melhoria da qualidade de ensino do Direto,
objetivo máximo de todos os estudiosos.
Onélia – Líder: O reconhecimento dos seus esforços e
da sua diuturna dedicação ao mister traduziu-se na sua
escolha para Vice Presidente do Colégio Brasileiro das
Faculdades de Direito, com a participação da Paraíba nos
encontros periódicos, com posicionamentos marcantes e
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indiscutível liderança, inclusive com a realização de cursos e


eventos a nível nacional e internacional.
Onélia e a AEMP: Presidiu a AEMP – Associação das
esposas dos Magistrados e Magistradas da Paraíba, num
biênio de muitas conquistas.
Onélia Advogada: Foi escolhida Diretora da Escola
Superior da Advocacia da Ordem dos Advogados do
Brasil, Seccional da Paraíba, além de eleita Conselheira
Estadual e Presidente de Comissões, sempre colaborando
com elogiável atuação na OAB, Paraíba. Foi também
Presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros da
Paraíba.
Onélia Escritora: Fundou a Academia de Letras de
Pombal, sendo escolhida a sua Presidente de Honra.
Escreveu muitas obras jurídicas e literárias, tais como:
“Aspectos Gerais da Parte Geral do Código Penal”; “Contos
Pombalenses”; “Releitura dos Contos Fluminenses de
Machado de Assis”, “Sinestesia”, “Histórias Orbícolas”,
“Meditações”, “A Origem do Estado Moderno” e “Nelson
Gonçalves: a voz do boêmio”, dentre outros.
Onélia e o UNIPE: Convidada, laborou como
Professora do Curso de Direto do Centro Universitário de
João Pessoa – UNIPE, estando atualmente aposentada do
Magistério Superior, doando-lhe aos seus escritos, às suas
leituras e à sua família.
Onélia – Traços marcantes: Personalidade fascinante,
assertiva, com um amor imenso e imorredouro pelo seu
marido, seus filhos e a concretização dos seus sonhos.
Viagens, novas paisagens, personagens, estórias e culturas,
sem olvidar o seu Sertão, Pombal e a fazenda Acauã. Muito
querida por colegas Professores. Excelente amiga.
Extraordinária Mestra, devotada aos seus alunos.
Reconhecida pelas gerações que formou e por todos que
tiveram a honra da sua convivência. São seus traços
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significativos: a devoção pela leitura e, especialmente, pela


obra de Machado de Assis; a torcida pelo Vasco e pela
Seleção Brasileira. A música e as canções do seu intérprete
favorito, Nelson Gonçalves. O seu bom humor. As suas
risadas. Os seus verdes olhos. O seu estilo e os seus contos e
crônicas, publicados na imprensa paraibana. O amor pelo
cinema, desde a época de menina do Cine Lux.
Onélia Setúbal Rocha de Queiroga merece todas as
homenangens, hoje e sempre. Fiel aos postulados de quem
plantou as nossas raízes acadêmicas; alçou vôos nas asas da
trilogia: ensino, pesquisa e extensão, edificando toda uma
existência, que se perpetuará no exemplo de amor ao
magistério e ao saber.

Fátima Maria Santana Lins Braga


Liber Discipulorum | 15

SOBRE A OBRA

Tanto quanto Recife, a nossa Faculdade tem nome: a


casa de Onélia Queiroga!
E, dito isto, a presente obra merece que se explicite o
sentido e o alcance corporizado neste ‘liber discipulorum’.
De logo, valendo-me das palavras de Costa Andrade
(em sua homenagem a Figueiredo Dias), é fundamental
expor que não se trata do livro dos discípulos de Onélia, mas
de alguns de seus discípulos, eis que esta categoria abrange
milhares e antigos alunos que hoje trilham com sucesso os
caminhos da vida, nas diversas profissões jurídicas. E
também eles levando consigo a mesma e indelével imagem
de uma professora brilhante e afável e a mesma e não
regateada dívida de gratidão.
Este é apenas o encontro daqueles, dentre os
discípulos, que, a diversos títulos e com diferentes graus de
empenhamento vem fazendo carreira acadêmica no contexto
de Universidades Públicas Privadas.
E desse encontro resultou essa coletânea que será
dividida em duas partes.
Uma primeira, onde se realçará a dogmática com um
perfil ontoantropológico, trazendo os trabalhos de autores
clássicos como Beccaria (a obra de leitura obrigatória para a
nossa professora) Feuerbach, Liszt ou Lombroso e até mais
contemporâneos como Jakobs.
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Uma segunda onde se realçará a história da política criminal


e a situação dos sistemas penitenciários no Brasil e no
mundo, um tema, igualmente, tão presente nas
inesquecíveis aulas de nossa homenageada.
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SUMÁRIO

Parte I
Dogmática Ontoantropológica

CAPÍTULO 1
Identificação Criminal: Perspectiva Beccariana à Análise
de DNA Forense na Legislação Brasileira .......................... 023
José Cezario de Almeida

CAPÍTULO 2
Beccaria e Liszt: Breve Introdução aos Seus Contributos
Para o Desenvolvimento do Direito Penal ......................... 060
Werton Magalhães Costa

CAPÍTULO 3
O Alvorecer da Criminologia Moderna .............................. 079
Valdir Delmiro Neves; Maria Marconiete Fernandes Pereira

CAPÍTULO 4
Da História do Direito Penal: (Im)Possibilidade de uma
Visão Desenvolvimentista ..................................................... 111
Débora Dalila Tavares Leite

CAPÍTULO 5
Contributos de Feuerbach e Liszt para a Hodierna
Compreensão do Direito Penal Pátrio ................................. 139
Hioman Imperiano de Souza
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CAPÍTULO 6
Teoria do Domínio do Fato: Considerações Sobre a
Concepção de Hans Welzel e Claus Roxin ......................... 160
Ana Angélica Bezerra Cavalcanti

CAPÍTULO 7
Comentários a Respeito de Günther Jakobs: O
Funcionalismo Sistêmico: O Quem Vem a Ser Essa Visão
do Direito Penal ....................................................................... 203
Carlos Augusto Machado de Brito

Parte II
Política Criminal Ontoantropológica

CAPÍTULO 8
Pena e Estabelecimentos Prisionais: Surgimento e
Evolução Histórica entre Sociedades e Gerações .............. 233
Allan Vítor Corrêa de Carvalho; Mariana Soares de Morais
Silva

CAPÍTULO 9
Construção Histórica da Política Criminal: Violência
Doméstico-Familiar no Brasil ............................................... 254
Allan Jones Andreza Silva

CAPÍTULO 10
O Papel do Direito Penal no Sistema de Proteção ao
Patrimônio Cultural na Paraíba: Aspectos Históricos e
Eficácias Atuais ........................................................................ 288
Ana Rafaela Pessoa Alcoforado
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CAPÍTULO 11
Análise dos Índices de Encarceramento Feminino no Brasil
e no Contexto Internacional, Recorte Racial e Tipologia
Criminal .................................................................................... 311
Luciana Amaral da Silva
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Liber Discipulorum | 21

Parte I
Dogmática Ontoantropológica
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IDENTIFICAÇÃO CRIMINAL: PERSPECTIVA


BECCARIANA À ANÁLISE DE DNA FORENSE NA
LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

José Cezario de Almeida1

RESUMO: O estudo em deslinde se propõe reverberar


extratos da obra de Cesare Beccaria em relação à pessoa sob
prisão na condição de investigada, indiciada, encarcerada
provisoriamente ou condenada à reprimenda penal. Buscar-
se-á possíveis relações das acepções Beccariana com o direito
penal contemporâneo no liame que direciona à compreensão
e à aplicação da biotecnologia genética na identificação de
infratores penais pela análise do DNA criminal, ferramenta
aportada à legislação pátria sob o impacto de relevantes
posições de aplicação na identificação criminal, após
decorridos dois séculos e meio da inconfundível publicação
da obra do marquês de Beccaria - “Dos Delitos e das Penas”,
que preponderantemente influenciou as bases da Escola
Clássica do Direito Penal e do Direito Penal Contemporâneo,
inclusive o brasileiro. No alcance às repercussões dessa obra
e sua influência na legislação pátria concernente à prisão e à
identificação criminal e, fita-se, contudo, nos possíveis
pontos de conexão com o direito brasileiro. Com efeito, fez-
se uma imersão em síntese apertada às normas do direito

1Doutorando em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Ciências


Jurídicas (PPGCJ) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Doutor
pela Universidade Federal de Pernambuco. Pós-Doutor pela
Universidade de São Paulo (USP). Esp. em Direito Penal. Docente da
Universidade Federal de Campina Grande. Advogado.
24 | Para Onélia Queiroga

precursor à Idade Média inclusive, às Constituições


brasileiras do império, república à Carta Cidadã de 1988,
permeando-se pelo Código Criminal do Império (1830),
Códigos Penal (1940) e de Processo Penal (1941) e suas
alterações, bem como pela legislação penal extravagante,
cite-se Lei de Execução Penal (1984), leis nacionais de
identificação criminal de pessoa em organização ou
associação criminosa; pacote anticrimes e à legislação
atinente a identificação criminal das pessoas desde as
marcas a ferro quente aos métodos de análise de DNA atuais
que suscitam intenso debate na doutrina, jurisprudência e na
esfera dos Direitos Fundamentais e de Direitos Humanos.
Nesse diapasão, buscou-se aludir a identificação
criminológica desde o indiciamento à condenação pelos
métodos papiloscópicos e fotográficos e às que envolvem
atualmente os bancos multibiométricos, impressões digitais,
de íris, face e voz dos presos provisórios ou definitivos até a
obtenção compulsória de material biológico para extração de
DNA, a compor o Banco de Dados de Perfis Genéticos em
execução no Brasil e, que pendem de regulamentação
administrativa. Na consecução dessa produção adotou-se a
metodologia de apresentação histórica como método
historiográfico de abordagem teórica em revisitação à obra
de Cesare Beccaria e suas inferências que conectam à
legislação imperial antiga, às legislações moderna e
contemporânea, trazendo à baila o percurso que a
humanidade faz na identificação dos criminosos.
Palavras-chave: Prisão. Identificação Criminal. DNA.
Beccaria. Onélia Queiroga.
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1 INTRODUÇÃO

Uma tarde de sexta-feira, sexto mês do ano 2022,


aguardávamos por volta das quinze horas em sala de aula,
envoltos por uma sensação indescritível, a nossa primeira
aula da disciplina “História do Direito Penal” sob a
titularidade do Professor Doutor Felipe Augusto Forte de
Negreiros no Curso de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas
da Universidade Federal da Paraíba. Adentra à sala, o
professor! Instante de silêncio rompido pelo sonora boa
tarde de alguém esperado a conduzir luzes às expectativas
lançadas ao conhecimento primor dos fundamentos
históricos do direito penal vertido pela sapiência ímpar do
inaudito e prestimoso docente.
Nesses ínterins momentâneos dos primevos contatos
da relação professor-aluno, suficientemente, foram
singulares e norteadores para compreendermos a leva dos
saberes e do cabedal condutor dos conhecimentos do
docente recepcionado. Ao expor o plano de ensino firmou
uma postura salutar, nos fazendo visualizar os caminhos e
trajetos dos inúmeros pontos da matéria sob seu jugo e
vertê-la aos seus alunos como contributo de sua passagem
pela nossa turma.
Na sua preliminar de auto apresentação acadêmica
pouco de si pontuou, todavia, tínhamos previamente à
visualização do seu currículo lattes disponível no quadro de
doutores na plataforma do CNPq. Não havia dúvida a
hesitar estávamos diante de um profissional de grandeza
26 | Para Onélia Queiroga

estelar. Naquela tarde inesquecível nos apresentamos ao


professor novel, referimo-nos simplesmente os nomes, onde
morávamos, o que fazíamos de profissão e, justificando a
nossa percepção em aqui estar no curso de doutorado em
direito e na sua disciplina.
Diálogos salutares e de reciproca atenção. Retomando
à fala, o Dr. Felipe Negreiros disse, em algum momento: “fui
aluno de Onélia Queiroga! Alguém sabe aqui, quem é Dra.
Onélia?” Sem antes que eu chancelasse o meu sim (que a
conhecia), o professor deu continuidade a enaltecer sua
mestra de todos os tempos, professora emérita de direito
penal da Faculdade de Direito da UFPB. As palavras
elogiosas do professor Felipe à Dra. Onélia eram candentes
e, ressoavam fortemente à alma desse aluno.
Em síntese apertada, narro: “Dra. Onélia Setúbal
Rocha de Queiroga, a conheço, sim, uma filha amada da
cidade de Pombal, Sertão paraibano, onde viveu a sua
infância e parte da juventude. Na terra de Celso Furtado, a
nossa querida homenageada, nos lega sua base familiar; sua
história de vida e acadêmica; seus livros e artigos; seu
encanto alegre e efusivo de um ser humano inconfundível; a
Fazenda Nova Acauã; sua primeva residência na Rua João
Pessoa, a Academia de Letras de Pombal, fundadora e
presidente. Nos ensina pelas devoções de fé e de
companheirismo ao lado do seu grande amor, o
Desembargador Antônio Elias de Queiroga e sua família.
Ah! Dra. Onélia temos muito a falar-te! Devoto-lhe gratidão
imensa pelo nome e legado que nos emprestam,
Liber Discipulorum | 27

particularmente a mim, como seu conterrâneo e admirador,


sempre!1”
Ainda falo: “Amiga pombalense querida, seu ex-
aluno Dr. Felipe Negreiros, meu professor, não nos sossega!
Relembra suas aulas hodiernamente. O edito professor
relembra a recepção que a Senhora o fez na sua aula de
direito penal, ao fita-lo com os seus olhos nítidos e
cintilantes, o inquiriu perguntando-lhe: “Você é... finalista
ou causalista?
Ele, não obstante, nos disse o que teria respondido à
Senhora!
O Prof. Dr. Felipe, como professor universitário,
renomado advogado, historiador, escritor, autor de obras,
intelectual [...], integralizou mais de dez anos de estudos em
direito nas Universidades de Coimbra, onde titulou-se em
doutoramento [...], demonstra ter vívida memória das suas
sábias lições e atribui-lhe elevado reconhecimento à
convivência com a Senhora, como ex-aluno da sua disciplina
de Direito Penal e à vida profissional na Capital João Pessoa.
Na senda desse fervor das homenagens à gloriosa
professora Onélia, o seu eterno aluno Felipe Negreiros reúne
uma coletânea de artigos de temas suscitantes e instigantes
em direito penal nessa obra que a protagoniza, tendo como
coautores seus alunos e orientandos do PPGCJ/UFPB e da
Pós-Graduação do Centro Universitário de João Pessoa -
UNIPÊ, como tributos à memória das aulas ministradas pela
inesquecível mestra dos mestres e mestras.
A consecução desse estudo caminha justificadamente,
pelas suscitações aludidas pelo Professor Doutor Felipe
28 | Para Onélia Queiroga

Augusto Forte de Negreiros Deodato, titular da disciplina


“História do Direito Penal”, nas suas instigantes e magnas
aulas, vislumbra-se tributar homenagens à emérita mestra
do Direito Penal, Dra. Onélia Setúbal Rocha de Queiroga,
sua ex-professora, por ocasião do “encerramento do ano
jurídico 2022” homenageá-la com o insigne livro “Liber
Discipulorum”, fazendo-lhe jus essa publicação científica
épica, que reúne a coletânea de temas emergentes em direito
penal, como reconhecimento ao legado da excelsa
professora; secundando justificar a produção desse artigo, a
compor o presente livro, verte à ideia do título e do texto às
orientações do nobilíssimo Professor Doutor Rômulo Rhemo
Palitot Braga, genialíssimo docente do Curso de Direito da
Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e do Centro
Universitário de João Pessoa (UNIPÊ), advogado
criminalista, Presidente da Associação Nacional da
Advocacia Criminal na Paraíba (ANACRIM), consorte, meu
orientador do projeto de tese no PPGCJ/UFPB, que nos leva
à inovadora pesquisa no campo da genética forense penal,
encorpando o estudo da análise de DNA como novo método
de identificação criminal dos encarcerados e as interfaces de
justificação às possíveis violações de direitos fundamentais e
de direitos humanos das pessoas presas.
Na consecução dessa produção adotou-se a
metodologia de apresentação histórica como método
historiográfico de abordagem teórica, que propulsa a
revisitação à obra de Beccaria e às bases indexadas de artigos
temáticos e à legislação brasileira. Contudo, finalizam-se as
discussões e considerações dos autores ao permeá-las com
Liber Discipulorum | 29

os fundamentos teóricos da obra “Dos Delitos e das Penas”,


proposta por Cesare Beccaria, em 1764, basilar
influenciadora do direito penal em todos os tempos, que se
propôs a romper e, superou às arbitrariedades da horda
temporal, avocando a garantia dos direitos do indivíduo.
O presente livro “Liber Discipulorum” visa
precipuamente, nesse giro, ofertar uma leitura
contextualizada e atualizada, dispensando uma revisitação
aos textos tradicionais e esparsos, que dificilmente conectam
à expectativa do leitor, e convictos de que, o diálogo aqui
coligido culmina conclusivamente em homenagem à mestra
dos mestres e das mestras: professora Onélia Queiroga.

2 CESARE BECCARIA: EXTRATOS “DOS DELITOS E DAS


PENAS”

“Um antigo amante da verdade”, assim se autodefinia


Cesare Beccaria, não obstante, a baixa popularidade de sua
obra à época do lançamento “Dos Delitos e das Penas” em
1764, trouxe mordaz crítica ao Direito Romano ao qualificá-
lo "confusos alfarrábios de privados e obscuros intérpretes" apesar
de intenso ceticismo do direito posto se firma protagonizando um
rompimento crudelíssimo, inclusive com as estruturas dogmáticas
ao vislumbrar concepção própria de fontes do direito.
A insigne obra “Dos Delitos e das Penas” emerge no
movimento humanitário que transcende os meandros do século
XVII proposta de artigo que jamais imaginara sê-lo a obra mais
debatida, refutada e criticada pelos preludiados analistas que se
tornaram inimigos do autor Cesare Beccaria (1738-1794), que
imbuído pelos sentimentos dos iluministas penais, não obstante, o
30 | Para Onélia Queiroga

distanciamento que adotou em relação à contestação a ordem social


estabelecida, conduziu suas teses para a reformulação da legislação
e das punições com assento nas concepções filosóficas, morais e
econômicas em vista à natureza humana e a ordem social vigente
(BECCARIA, 1764).
Doutra sorte, Beccaria foi enaltecido por Voltaire, Diderot e
Hume. Contemporâneo de Hobbes, Montesquieu e Rousseau,
destes levando à sua obra pelo fio condutor dos contratualistas, aos
quais ele faz mister mencioná-los em seu livro.
Destarte aludir, que à época as penas impostas
judicialmente carregavam o estilo mais sórdido de crueldade, que
tinham o condão de vingança coletiva de maneira que o infeliz por
condenação recebia castigos exacerbados de maior intensidade
malévola e requintes de crueldade transponíveis à esfera da própria
maldade do criminoso. Cite-se que, “aos crimes mais banais
aplicavam-se as penas de morte, torturas, prisões deploráveis e
banimentos.”
Neste sentido, defende Beccaria “Uma pena, para ser justa,
precisa ter apenas o grau de rigor suficiente para afastar os homens
da senda do crime”. (BECCARIA, 1764). O autor desafia a ordem
social vigente pela refutação contundente a desproporcionalidade
aplicada aos delitos punidos com práticas eivadas de horrores e
sofrimento atormentador aos desafortunados do alijo social pelas
suas condutas ilícitas penalmente, cujas penas públicas se
constituíam grandes espetáculos bizarros.
Nesse diapasão, justifica Beccaria (1764):

“[...] Se for estabelecido um mesmo castigo,


a pena de morte, por exemplo, para aquele
que mata um faisão e para quem mata um
Liber Discipulorum | 31

homem ou falsifica um documento


importante, em pouco tempo não se
procederá a mais nenhuma diferença entre
esses crimes; serão destruídos do coração do
homem os sentimentos de moral [...].”

Nessa senda exemplificativa à baila, conectamos lembrar o


julgamento e a condenação de Damiens, a 2 de março de 1757,
narrado por Michel Foucault, ao iniciar o primeiro capítulo do seu
livro “Vigiar e Punir – Nascimento da prisão”, publicada em 1975
- “o corpo dos condenados” -, que reverbera ser um dos mais
cruentos rituais de uma condenação, inclusive, desde já um
inocente.
A Condenação de Damiens, segundo Foucault (1975):

Damiens [...], a pedir perdão publicamente


diante da porta principal da Igreja de Paris
[aonde devia ser] levado e acompanhado
numa carroça, nu, de camisola, carregando
uma tocha de cera acesa de duas libras; [em
seguida], na dita carroça, na Praça de
Greve, e sobre um patíbulo que aí será
erguido , atenazado nos mamilos,, braços,
cocha e barrigas das pernas, sua mão
direita segurando a faca com o que cometeu
o dito parricídio, queimada com fogo de
enxofre, e às partes em que será atenazado
se aplicarão chumbo derretido, óleo
fervente, piche em fogo, cera e enxofre
derretidos conjuntamente, e a seguir seu
32 | Para Onélia Queiroga

corpo será puxado e desmembrado por


quatro cavalos e seus membros e corpo
consumidos ao fogo, reduzidos a cinzas, e
suas cinzas lançadas ao vento.
Finalmente foi esquartejado [relatara a
Gazette d’Amsterdam]. Essa última
operação foi muita longa, porque os cavalos
utilizados não estavam afeitos à tração; de
modo que em vez de quatro, foi preciso
colocar seis; e como isso não bastasse, foi
necessário, para desmembrar as coxas do
infeliz, cortar-lhe os nervos e retalhar-lhe
as juntas...
Afirma-se que, embora ele sempre tivesse
sido um grande praguejador, nenhuma
blasfêmia, nenhuma lhe escapou dos lábios;
apenas as dores excessivas faziam-no dar
gritos horríveis, e muitas vezes repetia:
“Meu Deus, tende piedade mim: Jesus,
socorrei-me”. Os espetáculos ficaram todos
edificados com a solicitude do cura de
Saint-Paul que, a despeito de sua idade
avançada, não perdia nenhum momento
para consolar o paciente.
[O comissário de polícia de Bouton relata]:
Acendeu-se o enxofre, mas o fogo era tão
fraco que a pele das costas da mão mal e
mal sofreu. Depois, um executor, de
mangas arregaçadas acima dos cotovelos,
tomou umas tenazes de aço preparadas ad
Liber Discipulorum | 33

hoc, medindo cerca de um pé e meio de


comprimento, atenazou-lhe primeiro a
barriga da perna direita, depois a coxa, daí
passando às duas partes da barriga do
braço direito; em seguida os mamilos. Este
executor, ainda que forte e robusto, teve
grande dificuldade em arrancar os pedaços
de carne que tirava em suas tenazes duas
ou três vezes do mesmo lado ao torcer, e o
que ele arrancava formava em cada parte
uma chaga do tamanho de um escudo de
seis libras.
Depois desse suplício, Damiens, que
gritava muito sem blasfemar, levantava a
cabeça e se olhava; o mesmo carrasco tirou
uma colher de ferro de caldeirão daquela
droga fervente e a derramou fartamente
sobre cada ferida. Em seguida, com cordas
menores se ataram as cordas destinadas a
atrelar os cavalos, sendo estes atrelados a
seguir a cada membro ao longo das coxas,
das pernas e dos braços.
O senhor Le Breton, escrivão, aproximou-
se diversas vezes do paciente para lhe
perguntar se tinha algo a dizer. Disse que
não; nem é preciso dizer que ele gritava,
com cada tortura, de forma como
costumamos ver representados os
condenados: “Perdão, meu Deus! Perdão,
Senhor”. Apesar de todos esses sofrimentos
34 | Para Onélia Queiroga

referidos acima, ele levantava de vez em


quando a cabeça e se olhava com destemer.
As cordas tão apertadas pelos homens que
puxavam as extremidades faziam-no sofrer
dores inexprimíveis. O senhor Le Breton
aproximou-se outra vez dele e perguntou se
não queria dizer nada; disse que não.
Achegaram-se vários confessores e lhe
falaram demoradamente; beijava
conformando o crucifixo que lhe
apresentavam; estendia os lábios e dizia
sempre: “Perdão, Senhor”.
Os cavalos deram uma arrancada, puxando
cada qual um membro em linha reta, cada
cavalo segurado por um carrasco. Um
quarto de hora mais tarde, a mesma
cerimônia, e enfim, após várias tentativas,
foi necessário fazer os cavalos puxar da
seguinte forma: os do braço direito à
cabeça; os das coxas voltando para o lado
dos braços, fazendo-lhe romper os braços
nas juntas. Esses arrancos foram repetidos
várias vezes, sem resultado. Ele levantava a
cabeça e se olhava. Foi necessário colocar
dois cavalos, diante dos atrelados às coxas,
totalizando seus cavalos. Mas sem
resultado algum.
Enfim o carrasco Samson foi dizer ao
senhor Le Breton que não havia meio nem
esperança de se conseguir e lhe disse que
Liber Discipulorum | 35

perguntasse às autoridades se desejam que


ele fosse cortado em pedaços. O senhor Le
Breton, de volta da cidade, deu ordem que
se fizessem novos esforços, o que foi feito;
mas os cavalos empacaram e um dos
atrelados às coxas caiu na laje. Tendo
voltado os cavalos os confessores, falaram-
lhe outra vez. Dizia-lhes ele (ouvi-o falar):
“Beijem-me, reverendos”. O senhor cura
Saint-Paul não teve coragem, mas o de
Marsilly passou por baixo da corda do
braço esquerdo e o beijou na testa. Os
carrascos se reuniram, e Demiens dizia-
lhes que não blasfemassem, que
cumprissem seu ofício, pois não lhe queria
mal por isso; rogava-lhes que orassem a
Deus por ele e recomendava ao cura de
Saint-Paul que rezasse por ele na primeira
missa.
Depois de duas ou três tentativas, o
carrasco Samson e o que lhe havia
atenazado atiram cada qual do bolso uma
faca e lhe cortaram as coxas na junção com
o tronco do corpo; os quatro cavalos,
colocando toda força, levaram-lhe as duas
coxas de arrasto, isto é; a do lado direito
por primeiro, e depois a outra, a seguir
fizeram o mesmo com os braços, com as
espáduas e axilas e as quatro partes; foi
preciso cortar as carnes até que quase aos
36 | Para Onélia Queiroga

ossos; os cavalos, puxando com toda força,


arrebataram-lhe o braço direito primeiro e
depois o outro.
Uma vez retirada essas quatro partes,
desceram os confessores para lhe falar; mas
o carrasco informou-lhes que ele estava
morto, embora, na verdade, eu visse que o
homem se agitava, mexendo o maxilar
inferior como se falasse. Um dos carrascos
chegou mesmo a dizer pouco depois que,
assim que eles levantaram o tronco para o
lançar na fogueira, ele ainda estava vivo.
Os quatro membros, uma vez soltos das
cordas dos cavalos, foram lançados numa
fogueira preparada no local sito em linha
reta do patíbulo, depois o tronco e o resto
foram cobertos de achas e gravetos de
lenha, e se pôs fogo à palha ajuntada a essa
lenha.
...Em cumprimento da sentença, tudo foi
reduzido a cinzas. O último pedaço
encontrado nas brasas só acabou de se
consumir às dez e meia da noite. Os
pedaços de carne e o tronco permaneceram
cerca de quatro horas ardendo. Os oficiais,
entre os quais me encontrava eu e meu
filho, com alguns arqueiros formados em
destacamento, permanecemos no local até
mais ou menos onze horas.
Liber Discipulorum | 37

Alguns pretendem tirar conclusões do fato


de um cão ter deitado no dia seguinte no
lugar onde fora levantada a fogueira,
voltando toda vez que era enxotado. Mas
não é difícil compreender que esse animal
achasse o lugar mais quente do que outro.

Vislumbra-se Foucault (1975) ao fim da narrativa aponta


para as mudanças nesse cenário da tirania perpetrada nos
julgamentos espetaculosos e dolorosos, cujas atrocidades
vislumbram ações criminosas. Neste contexto, no julgamento de
Demiens, o autor de “o corpo dos condenados”, incorpora as
concepções críticas de Beccaria, introduzindo uma nota
referenciada com a citação: “Beccaria há muito dissera: O
assassinato que nos é apresentado como um crime horrível, vemo-
lo sendo cometido friamente, sem remorsos”.
Percebe-se que, transcorridos cerca de 200 anos da
publicação entre as obras de Beccaria (1764) - “Dos Delitos e das
Penas”, e Foucault (1975) - “Vigiar e Punir – Nascimento da
prisão”, há forte elo de contato entre as obras que expressam o
condão que nos leva à compreensão da criminalidade e da
delinquência em confronto com a repressão e a punição, que
proclamam o fim dos suplícios.
Todavia, um tocante relevo que a obra de Beccaria é silente
refere às efígies infames que os presos e condenados recebiam como
marcas de identificação, contudo, de forma indireta é possível revê-
las. Essas eram infamantes tanto quanto as penas. Entretanto,
busca-se aqui, inferi-las a partir do conhecimento dos documentos
e da legislação revelada no prefácio do autor, e concretamente
38 | Para Onélia Queiroga

presente nas suas ideias que leva a cabo no conjunto de suas


denúncias acintes na obra “Dos Delitos e das Penas”.
Assim, conforme a tradução da obra original “Dei Delitti e
Delle Pene”, prefaciando diz Cesare Beccaria:

“Fragmentos da legislação de antigo povo


conquistador, compilados por ordem de um
príncipe que reinou, em Constantinopla, há
doze séculos, combinados depois com os
costumes dos lombardos e amortalhados em
um volumoso calhamaço de comentários
pouco inteligíveis, são o antigo acervo de
opiniões que uma grande parte da Europa
prestigiou com o nome de leis; e ainda hoje,
o preconceito da rotina, tão nefasto quanto
difundido, faz que uma opinião de
Carpozou, uma velha prática preconizada
por Claro, um suplício que Francisco
imaginou com bárbara complacência
continuem sendo orientações friamente
seguidas por esses homens, que deveriam
tremer ao decidir da vida e da sorte de seus
concidadãos. É esse código sem forma,
produto monstruoso de séculos mais
bárbaros, que desejo examinar nesta obra”.
(BECCARIA, 1764).

3 IDENTIFICAÇÃO CRIMINAL DO “CORPUS IURIS


CIVILIS ROMANII” E SUA INFLUÊNCIA NA OBRA
BECCARIANA
Liber Discipulorum | 39

Um olhar à Antiguidade Tardia e à Alta Idade Média,


contemplando o desmoronamento do Império Romano do Ocidente
vê-se a Península Itálica surpresa com as invasões e migrações,
notadamente de povos de origem germânica, dentre esses os
“lombardos”, que aportaram à Itália no século 6 d.C sob a manta
de extrema violência empregada nos seus ataques e de lutas
pessoais e vinganças impiedosas. (PORTO, 2015; FRANZONI,
2017).
Contudo, se assenta Beccaria na ênfase que dá à governança
e as leis concebidas de Constantinopla, no contexto, capital do
Império Bizantino, que sobreviveu à desintegração e o colapso do
Império Romano do Ocidente no século V, remanescendo
prosperamente por mil anos, porém fragilizou-se diante da
expansão dos turcos otomanos, culminando com a sua queda em
1453.
Sob qual égide legal regia Constantinopla referida por
Cesare Beccaria? Geralmente decretos imperiais eram os editos
relevantes, adotado por conveniências exigidas contextualmente, as
vezes para regular questões pontuais do Império e, inclusive, editos
eram lançados para atender as questões econômicas, políticas,
religiosas, dentre outras. Cite-se aqui, um Decreto Imperial de 338,
posteriormente incorporado pelo Código de Justiniano, ordenando
que toda população “assumisse o nome de pessoas cristãs” e os que
não cumprissem seriam declaradas “pessoas loucas e tolas
seguidoras de dogmas heréticos”.
O Código Justiniano: foram vários códigos que receberam
compilações e reuniões dos documentos legislativos romanos. Fala-
se, contudo, do período do Império Romano do Oriente de Flávio
Pedro Sabácio Justiniano - Justiniano I ou Justiniano -, o Grande,
40 | Para Onélia Queiroga

imperador bizantino de agosto de 527 até sua morte em novembro


de 565.
Justiniano, no início do seu reinado, viu-se impactado da
necessidade inadiável de constituir uma legislação pertinente a
atender o projeto unificador e de expansão do Império, diante dos
conflitos e relações controversas da população. O Corpus Iuris
Civilis Romanii o mais importante edito limiar do Direito Romano
publicado no século VI, por Justiniano, elaborado e compilado por
uma comissão de juristas nomeada pelo Imperador, no segundo ano
do seu governo (PORTO, 2015).
Os juristas compiladores, representado por Triboniano –
ministro da justiça e importante professor de direito da Escola de
Constantinopla -, conseguiram selecionar, catalogar e compilar
todas as constituições imperiais desde o tempo do Imperador
Adriano (117-138, d.C), trabalho que visava substituir os Códigos
Gregoriano, Hermogeniano, Teodosiano e as Constituições. À
novel codificação Justiniana seguiu-se de alterações, modificações
sucessivas e revogações, messe contexto surge o Código Novo de
534: Codex Justinianus repetitae praelectiones.
A obra Justiniana teve sua estrutura em quatro partes:
Institutas (manual para estudantes de direito); Digesto ou
Pandectas (compilados clássicos da jurisprudência); Codigo
(constituições imperais anteriores); e, Novelas (compilação das
constituições Justinianas posteriores ao ano 535). O romanista
francês Dionisio Godofredo organizou uma edição à qual o
denominou de Corpus Iuris Civilis, universalmente adotada.
Seguindo o critério das compilações reúne 12 livros, que
repartem em títulos. Inicia o Código invocando a Cristo para a
firmar a fé de Justiniano. O livro I retrata as fontes do direito,
direito ao asilo e as funções públicas; o livro II trata do processo; os
Liber Discipulorum | 41

livros III a VIII referem-se ao direito privado; o livro IX trata do


direito penal; os livros X a XII retratam o direito administrativo e
fiscal. As acepções de Cesare Beccaria (1764), recaem sobre o
direito penal: “Ficarei limitado, contudo, ao sistema criminal,
cujos abusos terei a ousadia de apontar aos encarregados de velar
pela felicidade pública [...]”.
O legado jurídico dos lombardos germânicos alude-se o
Édito de Rotário (Edictum Tothari; 643-652), um código que
norteava as relações jurídicas romano-germânica, adotado durante
o reinado de Rotário, visando reduzir os violentos embates clânicos
e a vingança privada de tradição tribal lombarda, todavia,
preservando identidade cultural do seu provo, como as ações
beligerantes, belicosas e a própria vingança pessoal. Essa
codificação ofertou legado à época de Beccaria e, é desta que emerge
a análise do filósofo e jurista italiano. Destarte, lembrar a
influência que o Direito Romano Justiniano, apesar de não mais
ser aplicado e não usual (SOARES; SILVA, 2013), lega ao mundo
e à legislação brasileira contemporânea na perspectiva do civil-law.
Alvitre vislumbrar que, o aporte do direito criminal
visualizada por Cesare Beccaria vai além do direito posto
perpassando por muitas legislações esparsas de sua época
influenciada pelas normas e costumes até mesmo anteriores à
preponderância bizantina, merecedoras dos veementes ataques
reverberados em “Dos Delitos e Das Penas”. Pode-se conduto
imaginar, exemplos das mais mórbidas formas torturantes e
suplicantes clemências pronunciadas por delinquentes ou acusados
submetidos às marcas a ferro quente, impressas sobre o corpo das
pessoas, visando identificá-las.
Entende-se esse método de identificação pela denominação
de “ferrete”, um meio de identificação humana cruel, e consistia ao
42 | Para Onélia Queiroga

carrasco cumprir os editos judiciais, utilizando de um ferro


incandescente à brasa para deixar a marca sem obliteração que
impingia ao criminoso ou até mesmo ao escravo fugitivo. Há
registros de países que o adotaram indiscriminadamente, como a
França até 1562 adotava o ferro com o desenho de uma flor-de-lis,
adotando também, o símbolo das letras V, W, GAL e F. Estados
Unidos da América, em 1718, identificava seus criminosos na
fronte, região do rosto, com a letra M, de ”murderer”, que traduz-
se assassino. Neste contexto temporal se insere Cesare Beccaria
forte oponente à pena capital por considerá-la “perniciosa à
sociedade, pelos exemplos de barbarismo que ela proporciona”. A
marca a ferro quente foi abolida na Inglaterra (1834) e na França
(1832) (Foucault (1975).
Com maior atroz que a marca do ferro a brasa, havia a
lancinante identificação pela “mutilação”, requinte de dores
profundas e duradouras, o mais cruel método utilizado na idade
média que consistia na retirada de pedaços de carne do corpo, como
alvos as pontas dos seios, unhas, órgãos genitais (COSTA et. al.,
2017). Enfatize-se que, tal modalidade cruel de mutilação havia
prescrito no Código de Hamurabi, na extração de orelhas, nariz,
dedos e vazadura dos olhos. A regra da mutilação infligia-se com a
gravidade do crime.
Assinalado, dentre outras marcas mutilantes, no Código
Hamurabi:

193º - Se o filho de um dissoluto ou de uma


meretriz aspira voltar à casa paterna, se
afasta do pai adotivo e da mãe adotiva e
volta à sua casa paterna, se lhe deverão
arrancar os olhos.
Liber Discipulorum | 43

“205º - Se o escravo de um homem livre


espanca um homem livre, se lhe deverá
cortar a orelha.”
194º - Se alguém dá seu filho a ama de leite
e o filho morre nas mãos dela, mas a ama
sem ciência do pai e da mãe aleita um outro
menino, se lhe deverá convencê-la de que
ela sem ciência do pai e da mãe aleitou um
outro menino e cortar-lhe o seio.
195º - Se um filho espanca seu pai se lhe
deverão decepar as mãos.

Registre-se que, o primevo código da história das leis,


iniciado em 1772 a.C. pelo rei Hamurábi, visava às necessidades do
império da Babilônico, maior centro do poder na Mesopotâmia. Na
esfera das normas criminais de Hamurabi imperava a "lex
talionis"; com penas de morte, fogueira, forca, afogamento ou
empalação.

4 IDENTIFICAÇÃO CRIMINAL NA LEGISLAÇÃO


BRASILEIRA DO IMPÉRIO E NA VIGENTE

No âmbito brasileiro, as normas jurídicas anteriores à


Independência (1822), regia-se pela norma lusitana, naturalmente
em atendimento aos reclamos portugueses na definição da pena dos
condenados por crimes. Contudo, as primeiras leis brasileiras, com
a cisão Brasil-Portugal, advindo a primeira Constituição de 1824 -
“Constituição Política do Império do Brasil” -, outorgada pelo
então Imperador Pedro I, tinha como premissas os direitos
individuais e a soberania do nosso País (BRASIL, 1824).
44 | Para Onélia Queiroga

Todavia, a nossa Constituição de 1822 recepcionou o


Código Criminal do Império do Brasil (1830), que previa penas
degradantes e cruéis, além da pena capital, e outras classes de
prisões: perpétua, de trabalhos forçados, banimento, desterro,
degredo, açoites, esta revoga em 1886 etc. reguladas nessa
codificação e admitidas no Brasil até meados do século IX.
Contudo, a Constituição de 1824 aboliu as apenas de açoites, a
tortura, a marca de ferro quente, e todas as demais penas cruéis.
No Brasil, se encerra definitivamente a identificação criminal de
seus acusados e condenados por forro quente, dando lugar a outras
formas identificadoras.
Superada essa fase, com a Proclamação da República
(1889), exsurge um novo Código Penal brasileiro, em 1890, com
grandes transformações ao sistema penal vigente, sob forte
influência do positivismo. As penas, algumas importadas do
Código de 1830, introduzindo-se a prisão celular, reclusão em
fortalezas, trabalho obrigatório e prisão disciplinar para menores,
considerando-os criminosos a partir dos nove anos de idade.
Quanto à identificação dos criminosos, a lei é silente, pressupondo
as anteriormente adotadas.
Em 1890, remanescia a Constituição Imperial de 1824. O
Brasil teve nova Constituição no ano seguinte, proclamada em 15
de novembro de 1891, conhecida como a Constituição Brasil
República (BRASIL, 1891). Foi abolida a pena de morte,
ressalvando casos da legislação militar em tempo de guerra.
Constituição de 1934 (Segunda República) trouxe a
garantia que não haverá pena de banimento, morte, confisco ou de
caráter perpétuo, ressalvadas, quanto à pena de morte, as
disposições da legislação militar, em tempo de guerra com país
Liber Discipulorum | 45

estrangeiro (BRASIL, 1934). Não haverá prisão por dívidas,


multas ou custas.
A Constituição de 1937 (Estado Novo) elimina a previsão
de penas corpóreas perpétuas. Porém, essa nova Carta
Constitucional manteve a pena de morte na legislação militar em
casos de guerra e, estabeleceu penas de morte para mais 10 (dez)
infrações, inclusive por homicídio cometido por motivo fútil ou
com extremos de perversidade. (Lei Nº 1 de 16 de maio de 1938.
Emenda o art. 122, nº 13, da Constituição de 1937). (BRASIL,
1937). Salvaguardando que, as penas estabelecidas ou agravadas
na lei nova não se aplicariam aos fatos anteriores.
A nossa Constituição de 1946, elide todas as formas de
pena de morte e, dita que: “Não haverá pena de morte, de
banimento, de confisco nem de caráter perpétuo. São ressalvadas,
quanto à pena de morte, as disposições da legislação militar em
tempo de guerra com país estrangeiro.” (BRASIL, 1946).
Em 1967, surge nova Constituição no período de governo
do Regime Militar, também manteve a previsão: “Não haverá pena
de morte, de prisão perpétua, de banimento, nem de confisco.
Quanto à pena de morte, esta fica ressalvada a legislação militar
aplicável em caso de guerra externa. A lei disporá sobre o
perdimento de bens por danos causados ao erário ou no caso de
enriquecimento ilícito no exercício de função pública (Redação
dada pelo Ato Institucional nº 14, de 1969). (BRASIL, 1967;
1969).
A nossa recente Constituição de 1988 - Constituição
Cidadã -, quanto às penas e à identificação criminal regula,
respectivamente, nos incisos XLVII, XIX, XLIX e LVIII do art. 5º,
a pena de morte e outras penas:
Art. 5º da CF/88, dita que:
46 | Para Onélia Queiroga

XLVII - não haverá penas: de morte, salvo


em caso de guerra declarada, nos termos do
art. 84 [..].
XIX - de caráter perpétuo; de trabalhos
forçados; de banimento; cruéis.
LVIII - O civilmente identificado não será
submetido à identificação criminal, salvo
nas hipóteses previstas em lei. (BRASIL,
1988).

Portanto, de eficácia contida, a norma Constitucional faz


ressalva à possibilidade de algumas hipóteses que o civilmente
identificado seja submetido à identificação criminal, incumbindo-se
ao legislador infraconstitucional a proposição legal. Ressalte-se,
contudo, a previsão do inciso XLIX da CF/88, que assegura aos
presos o respeito à integridade física e moral.
Destarte salientar, em matéria de identificação criminal, o
Código Penal brasileiro de 1940, que vige atualmente, recebera as
influências da Constituição do Estado Novo (1937), entretanto,
não incorporou as diversas modalidades de penas previstas na
Carta brasileira, instituindo a pena de reclusão no máximo em
trinta anos e a detenção em três anos.
O Código de Processo Penal (BRASIL, 1941), traz a
modalidade de identificação da pessoa indiciada pelo método
datiloscópico, a ser procedida pela autoridade policial durante o
interrogatório do suspeito indiciado. Assinala o art. 6º, inciso VIII:
“ordenar a identificação do indiciado pelo processo datiloscópico, se
possível, e fazer juntar aos autos sua folha de antecedentes”.
Liber Discipulorum | 47

A identificação criminal no processo penal brasileiro e na


legislação penal esparsa compreende à coleta, guarda e recuperação
de todas as informações e dados que corroborem com a identidade
do indiciado ou acusado de fato delituoso. Além das impressões
digitais e a tomada fotográfica, entra como inovação nesse campo, a
identificação genética, por meio da extração do DNA do indivíduo,
conforme se depreende da Lei nº 12.654/2012. (BRASIL, 2012).
Ressalte-se que, a Lei de Combate ao Crime Organizado
(Lei nº 9.034/95) que autorizou, excepcionalmente, a identificação
de civis criminalmente, conforme prevê o art. 5º. (BRASIL, 1995):

Art. 5º - A identificação criminal de


pessoas envolvidas com a ação praticada
por organizações criminosas será realizada
independentemente da identificação civil.

Nessa senda, tendo a identificação criminal restrita às ações


delituosas das organizações ou associações criminosas, o legislador
pátrio, visando regular a matéria excepcional, no ano 2000 lei
específica regulamentou a matéria (Lei 10.054/2000). (BRASIL,
2000). Esse novo instituto legal estabeleceu os casos em que o
civilmente identificado poderia sê-lo identificado criminalmente.
Assim, regra o art. 3º da Lei 10.054/2000:

“Art. 3º O civilmente identificado por


documento original não será submetido à
identificação criminal, exceto quando:
I – estiver indiciado ou acusado pela
prática de homicídio doloso, crimes contra
o patrimônio praticados mediante violência
48 | Para Onélia Queiroga

ou grave ameaça, crime de receptação


qualificada, crimes contra a liberdade
sexual ou crime de falsificação de
documento público;

II – houver fundada suspeita de falsificação


ou adulteração do documento de
identidade;
III – o estado de conservação ou a distância
temporal da expedição de documento
apresentado impossibilite a completa
identificação dos caracteres essenciais;
IV – constar de registros policiais o uso de
outros nomes ou diferentes qualificações;
V – houver registro de extravio do
documento de identidade;
VI – o indiciado ou acusado não
comprovar, em quarenta e oito horas, sua
identificação civil”.

De sorte que, decorridos poucos anos, novo regramento na


identificação criminal veio à baila, revogando-se a norma do ano
2000 em comento, pela Lei nº 12.037/09 (BRASIL, 2009). Com
efeito, inclusive, teve o condão de regulamentar o art. 5º, inciso
LVIII, da CF/88. Antes da regulamentação Constitucional a
identificação criminal submetia-se à Sumula 568 do STJ:

Súmula 568: “A identificação criminal não


constitui constrangimento ilegal, ainda que
o indiciado já tenha sido identificado
Liber Discipulorum | 49

criminalmente”. Até então, a identificação


criminal era sempre permitida.

Em 2012, a Lei nº 12.037/09 e a Lei de Execução Penal (Lei


nº 7.210/84) (BRASIL, 1984), sofreram alterações decorrentes da
Lei 12.654/12 (BRASIL, 2012) pela inserção da nova metodologia
para fins de identificação criminal, com base na aplicação da
inovadora técnica de biologia molecular, por métodos de extração
de material biológico, submetendo o indivíduo à tipagem genética
de DNA, e, bem como, a criação dos bancos de perfis genéticos para
fins criminais.
Em 24 de dezembro de 2019, a legislação brasileira penal e
processual penal é aperfeiçoada em vários aspectos, alcançando,
inclusive os novos métodos de identificação criminal regulados até
2012. Trata-se da Lei 13.964/19 (BRASIL, 2019; NUCCI, 2020),
que passa a viger a partir de 24 de janeiro de 2021.
No aspecto da identificação criminal de perfis genéticos, o
novo instituto legal, introduz à LEP, o art. 9º-A:

Art. 9º-A. O condenado por crime


doloso praticado com violência grave
contra a pessoa, bem como por crime
contra a vida, contra a liberdade sexual
ou por crime sexual contra vulnerável,
será submetido, obrigatoriamente, à
identificação do perfil genético,
mediante extração de DNA (ácido
desoxirribonucleico), por técnica
adequada e indolor, por ocasião do
ingresso no estabelecimento prisional.
50 | Para Onélia Queiroga

[...].
§ 4º O condenado pelos crimes
previstos no caput deste artigo que não
tiver sido submetido à identificação do
perfil genético por ocasião do ingresso
no estabelecimento prisional deverá ser
submetido ao procedimento durante o
cumprimento da pena.
[...].
§ 8º Constitui falta grave a recusa do
condenado em submeter-se ao
procedimento de identificação do perfil
genético.”

As alterações conferidas ao art. 7º da Lei nº 12.037/09, dar-


se pela introdução dos artigos 7º-A e 7ºC, que passam a estabelecer,
respectivamente, os seguintes preceitos:

Art. 7º-A. A exclusão dos perfis genéticos


dos bancos de dados ocorrerá:
I - no caso de absolvição do acusado; ou
II - no caso de condenação do acusado,
mediante requerimento, após decorridos 20
(vinte) anos do cumprimento da pena.”
“Art. 7º-C. Fica autorizada a criação, no
Ministério da Justiça e Segurança
Pública, do Banco Nacional
Multibiométrico e de Impressões
Digitais.
Liber Discipulorum | 51

§ 1º A formação, a gestão e o acesso ao


Banco Nacional Multibiométrico e de
Impressões Digitais serão
regulamentados em ato do Poder
Executivo federal.
§ 2º O Banco Nacional Multibiométrico
e de Impressões Digitais tem como
objetivo armazenar dados de registros
biométricos, de impressões digitais e,
quando possível, de íris, face e voz,
para subsidiar investigações criminais
federais, estaduais ou distritais.
§ 3º O Banco Nacional Multibiométrico
e de Impressões Digitais será integrado
pelos registros biométricos, de
impressões digitais, de íris, face e voz
colhidos em investigações criminais ou
por ocasião da identificação criminal.
§ 4º Poderão ser colhidos os registros
biométricos, de impressões digitais, de
íris, face e voz dos presos provisórios
ou definitivos quando não tiverem sido
extraídos por ocasião da identificação
criminal.
§ 5º Poderão integrar o Banco Nacional
Multibiométrico e de Impressões
Digitais, ou com ele interoperar, os
dados de registros constantes em
quaisquer bancos de dados geridos por
52 | Para Onélia Queiroga

órgãos dos Poderes Executivo,


Legislativo e Judiciário das esferas
federal, estadual e distrital, inclusive
pelo Tribunal Superior Eleitoral e pelos
Institutos de Identificação Civil.
§ 6º No caso de bancos de dados de
identificação de natureza civil,
administrativa ou eleitoral, a
integração ou o compartilhamento dos
registros do Banco Nacional
Multibiométrico e de Impressões
Digitais será limitado às impressões
digitais e às informações necessárias
para identificação do seu titular.
§ 7º A integração ou a interoperação
dos dados de registros
multibiométricos constantes de outros
bancos de dados com o Banco Nacional
Multibiométrico e de Impressões
Digitais ocorrerá por meio de acordo
ou convênio com a unidade gestora.
§ 8º Os dados constantes do Banco
Nacional Multibiométrico e de
Impressões Digitais terão caráter
sigiloso, e aquele que permitir ou
promover sua utilização para fins
diversos dos previstos nesta Lei ou em
decisão judicial responderá civil, penal
e administrativamente.
Liber Discipulorum | 53

§ 9º As informações obtidas a partir da


coincidência de registros biométricos
relacionados a crimes deverão ser
consignadas em laudo pericial firmado
por perito oficial habilitado.
§ 10. É vedada a comercialização, total
ou parcial, da base de dados do Banco
Nacional Multibiométrico e de
Impressões Digitais.
§ 11. A autoridade policial e o
Ministério Público poderão requerer ao
juiz competente, no caso de inquérito
ou ação penal instaurados, o acesso ao
Banco Nacional Multibiométrico e de
Impressões Digitais.”

Assim, depreende-se que, a nova legislação brasileira


encontra-se diante de novos paradigmas no campo da
identificação criminal das pessoas que cometem infrações
penais, e com previsão legal para o armazenamento das
informações e dados em bancos: 1) Bancos de Perfis Genéticos
para fins Criminais e, 2) Banco Nacional Multibiométrico e de
Impressões Digitais.
Imperioso, relatar que os dados do Banco Nacional
Multibiométrico e de Impressões Digitais podem ser
interagidos ou com ele interoperar, os dados de registros dos
cidadãos não incriminados constantes em todos os bancos
de dados vinculados à tutela de gestão dos órgãos dos
Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário das esferas
54 | Para Onélia Queiroga

federal, estadual e distrital, inclusive pelo Tribunal Superior


Eleitoral e pelos Institutos de Identificação Civil (BRASIL,
2019).
Por fim, o debate suscitado na esfera da proteção dos
direitos fundamentais e de direitos humanos das pessoas
presas, mesmo que provisoriamente por fato criminoso,
considerando-as suspeitas, indiciadas, pronunciadas,
condenadas ou em cumprimento de pena processual
submetidas à cessão compulsória de material biológico para
fins de extração de DNA a compor os Bancos de Perfis
Genéticos será objeto de pesquisa em nível de tese doutoral,
em desenvolvimento por este orientando, no Programa de
Pós-graduação em Ciências Jurídicas da Universidade
Federal da Paraíba, João Pessoa, Paraíba.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Depreende-se que, os processos e métodos de


identificação criminal tem registros desde as antigas
sociedades humanas, evolutivamente desde os mais cruéis e
mutilantes que impingiam marcas irreversíveis aos que,
atualmente, podem ser considerados humanizados.
Após decorridos mais de dois séculos e meio da
publicação da Obra de Cesare Beccaria “Dos Delitos e Das
Penas” são nítidas as suas influências no direito penal
moderno e contemporâneo, inclusive no direito penal
brasileiro. Também foi possível inferir da obra Beccariana
elementos informadores sobre a identificação criminal dos
Liber Discipulorum | 55

indivíduos a partir da imersão à legislação pretérita à sua


obra;
Importante apontar que a legislação brasileira vem
inovando os métodos de identificação criminal das pessoas
investigadas, indiciadas e condenadas se utilizando de
metodologias que saem da superfície corporal até à via
interna corporis na busca de material biológico para obtenção
e extração de DNA (como sangue, pele, pelos, cabelo etc.) a
ser armazenado em bancos genéticos de DNA criminal.
Infere-se, contudo, a preocupação de possíveis violações de
direitos fundamentais e de direitos humanos das pessoas
submetidas à cessão compulsória do material, sob pena de
medidas punitivas previstas na legislação;
Registre-se que, esse trabalho de escrita não teve o
propósito de exaurir o campo de exploração dessa
abordagem emergente do Direito Penal, que requer
perfunctória e detida análise, mas o condão de justo registro
à emérita professora de Direito Penal, Dra. Onélia Setúbal
Rocha de Queiroga, com parte singular da obra “Liber
Discipulorum” em sua homenagem.

REFERÊNCIAS

BECCARIA, C. Dos Delitos e das Penas. Tradução original de


Torrieri Guimarães. 7ª. ed. São Paulo, SP: Martin Claret, 2013.
1764.

BRASIL. [Constituição Política do Império do Brazil (1824)],


promulgada em 25 de março de 1824. Disponível em:
56 | Para Onélia Queiroga

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Constituiçao.htm. Acesso em: 30 out. 2022.

BRASIL. Constituição (1891). Constituição dos Estados Unidos


do Brasil. Promulgada em fevereiro de 1891.
Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.ht
m. Acesso em: 30 out. 2022.

BRASIL. Constituição (1934). Constituição dos Estados Unidos


do Brasil, de 16 de julho de 1934.
Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.ht
m. Acesso em: 30 out. 2022.

BRASIL. Constituição (1937). Constituição dos Estados Unidos


do Brasil, de 10 de novembro de 1937.
Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.ht
m. Acesso em: 30 out. 2022.

BRASIL. Constituição (1946). Constituição dos Estados Unidos


do Brasil, de 18 de setembro de 1946.
Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.ht
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BRASIL. Constituição (1967). Constituição da República


Federativa do Brasil, de 1967.
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Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.ht
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BRASIL. Emenda o art. 122, Nº 13 da Constituição Federal de


1937. Lei Nº 1 de 16 de maio de 1938. Disponível em:
https://legislacao.presidencia.gov.br/atos/. Acesso em: 25
out. 2022.

BRASIL. Ato institucional Nº 14, de 5 de setembro de 1969.


Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ait/ait-14-69.htm.
Acesso em: 25 out. 2022.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República


Federativa do Brasil. Promulgada em 5 de outubro de 1988.
Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.ht
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BRASIL. Lei nº 9.034, de 3 de maio de 1995. Disponível em:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9034.htm.
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BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de


1940. Código Penal. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-
lei/del2848.htm. Acesso em: 30 out. 2022.
58 | Para Onélia Queiroga

BRASIL. Decreto-Lei Nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código


de Processo Penal. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-
lei/del3689.htm. Acesso em: 25 out. 2022.

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Império do Brazil. Disponível em:
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1984. Disponível em:
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a Identificação Criminal. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l10054.htm.
Acesso em: 25 out. 2022.

BRASIL. Presidência da República. Lei 12.654, de 28 de maio de


2012. Disponível em:
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2014/2012/Lei/L12654.htm. Acesso em: 25 out. 2022.
Liber Discipulorum | 59

COSTA, J. N. S.; PAIXÃO, G. S.; BEZERRO, E. B. E.


Considerações acerca da Lei n. 12.654/2012: a identificação
criminal como forma mascarada de obtenção de prova.
Colloquium Socialis, v.1, n. Especial, p.523-529, 2017.

FOUCAUT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão.


Tradução: Raquel Ramalhete. 42ª. ed. atual. Petrópolis: Vozes,
2019.

FRANZONI, M. La storiografia italiana e i Longobardi:


orientamento e quesiti. Rouen. 2017.
.
NUCCI, G. S. Pacote Anticrime Comentado. 1ª ed. Rio de Janeiro:
Forense Ltda, 2020.

PORTO, André. O Édito de Rotário (643 d.C.) e a mediação


da faida entre os lombardos. Revista Jus Navigandi, v.20,
n.4247, 2015. Disponível em:
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SOARES, M. L.; SILVA, R. M. Regras do Corpus Iuris Civilis


em Comparação ao Atual Ordenamento Jurídico Brasileiro.
Cadernos de Graduação - Ciências Humanas e Sociais Fits,
v. 1, n.2, p. 87-99, 2013.
60 | Para Onélia Queiroga

BECCARIA E LISZT: BREVE INTRODUÇÃO AOS SEUS


CONTRIBUTOS PARA O DESENVOLVIMENTO DO
DIREITO PENAL

Werton Magalhães Costa2

Resumo: A evolução da humanidade e do pensamento


humano implica ter e testar ideias, em todos os campos do
saber, incluindo o direito penal, em que também se
identificam expoentes da matéria, como Beccaria e Liszt. Há
bilhões de anos formou-se o universo e o planeta que
habitamos, enquanto a civilização, em si, contabiliza uns
poucos milhares de anos e tem constantemente se deparado
com a necessidade de estipular regras para o convívio em
grupo e para a punição de quem as subverte. Superadas as
antigas ideias do “olho por olho, dente por dente”, foi
realizada a transição para um direito penal mais equilibrado,
a partir do iluminismo e com as ideias daqueles que
vivenciaram o momento. A Constituição do Brasil encarta
várias normas decorrentes do iluminismo e, para que se
alcançasse o grau de evolução que se pode perceber em seu
texto, é necessário apontar a contribuição de Beccaria, em
especial com sua obra Dos Delitos e das Penas (Dei Delitti e
Delle Pene), publicado em 1764, bem como a contribuição de

2 Doutorando e Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências


Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba (PPGCJ/UFPB). Bacharel
em Direito pela UFPB. Professor adjunto da UFPB. Membro do
Ministério Público Federal e da Academia Paraibana de Letras Jurídicas.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/1733509822953894 E-mail:
werton.contato@gmail.com
Liber Discipulorum | 61

Liszt, em especial com sua obra Tratado de Direito Penal


Alemão (Lehrbuch des Deustchen Strafrechts), publicado em
1881.

Palavras-chave: Beccaria. Liszt. Contributos ao direito penal.


Dos Delitos e das Penas. Tratado de Direito Penal Alemão.

1 INTRODUÇÃO

A história da humanidade se confunde com a história


das ideias que a própria humanidade desenvolve, concretiza
e aplica na vida prática. Construir a sociedade a partir do
nada em direção a uma determinada forma de organização
estável e mantê-la em constante evolução implica
necessariamente ter ideias ou pensamentos, pô-los todos
constantemente em discussão e à prova e, finalmente,
incorporar na realidade fática, sob o manto de
comportamentos e soluções, as ideias e pensamentos que se
mostrem mais adequados às necessidades do cotidiano,
debaixo de um consenso ou aprovação majoritária, no
escopo justamente da almejada evolução.
Essa observação é válida para todos os aspectos da
organização conforme a qual se estabelece uma sociedade,
incluindo os campos do saber, desde a filosofia, até as
ciências específicas, como a sociologia, a antropologia, a
economia, a medicina, a engenharia e, dentre inúmeras
outras, o direito.
Em cada um desses campos do saber, é sempre
possível tomar nota acerca dos seus expoentes, isto é,
62 | Para Onélia Queiroga

daquelas pessoas que fizeram surgir o interesse inicial por


um determinado estudo ainda não desvendado ou que, pelo
menos, trouxeram valiosos contributos que estimularam a
curiosidade científica em torno de temas que já eram
pesquisados.
Não haveria de ser diferente nas ciências jurídicas
consideradas como um todo, nem muito menos em um
campo específico do direito, que é o direito penal. Neste, não
há dúvidas de que nomes como Beccaria e Liszt merecem e
sempre merecerão a lembrança e o respeito de todos os que
se dedicam ao estudo e ao ensino do direito penal no Brasil e
no plano internacional, sem prejuízo do gigantesco valor
reconhecido aos incontáveis outros mestres das ciências
penais, que só não serão aqui retomados em virtude do
escopo limitado do presente texto.
Convém, antes, recordar brevemente a formação do
universo e das sociedades, com as quais tornou-se premente
regrar a vida em grupo.

2 O MUNDO E SUAS HISTÓRIAS

Na toada do quanto prenunciado na introdução deste


texto, sabe-se que o mundo, no cálculo dos cientistas, é
mundo há bilhões de anos, se considerarmos seus aspectos
físicos e sua própria formação geológica.
Já a história da humanidade, por outro lado, estende-
se por período de tempo absurdamente mais restrito e
recente, quando comparado à formação do planeta ou à
formação do universo em geral.
Liber Discipulorum | 63

A tão estudada teoria do big bang propõe que o


universo teria começado a se formar há cerca de 15 bilhões
de anos. Ainda que não haja relevantes teorias sobre o que
haveria – e se realmente haveria algo – antes do momento da
grande explosão e por mais que perdurem as disputas entre
os que creem e não creem numa força divina superior que
impulsionou toda essa criação, é inegável o fascínio que
imaginar e reconstruir mentalmente essa evolução
geralmente exerce sobre as pessoas.
Muito tempo decorreu, seguindo-se essa linha de
pensamento científico, até que aparecesse a vida na Terra, o
que se deu há cerca de 3,5 bilhões de anos, que os mamíferos
se difundissem há 245 milhões de anos e que o Homem de
Neandertal se firmasse na Terra há 300.000 anos.
Um vislumbre desses dados numéricos e dessa
caminhada pode ser recapitulado com bom humor na
despretensiosa e divertida obra História do mundo sem as
partes chatas (REAR, 2013), podendo-se destacar os
apontamentos vertidos a respeito de como o mundo
finalmente chegou à civilização, por volta de 4.000 a 300 a.C.
(p. 41):

As primeiras verdadeiras civilizações


do mundo surgiram no Iraque, na
extremidade inferior do vale da
Mesopotâmia, próximo à região onde
os rios Tigre e Eufrates deságuam no
Golfo Pérsico. Tabuinhas de barro
remanescentes do período fazem
64 | Para Onélia Queiroga

menção ao rei da Suméria, o que


pareceu um bom nome para o povo
como um todo. Ao longo de um
período de 1.500 anos, os sumérios
desenvolveram cidades, governos, leis,
calendários, templos, o comércio e a
literatura [...].

Naturalmente, ao longo do desenvolvimento das


sociedades, os viventes se depararam com a discussão que
ainda hoje parece ser infinita, no respeitante ao que se deve
fazer com aqueles que descumprem as normas estabelecidas,
seja explícita seja implicitamente, para o convívio grupal
harmônico.
A inobservância de tais regras, inseridas no modo de
vida de indivíduos de determinada comunidade pode levar
a conflitos mais ou menos graves, assim como o
descumprimento de certos acordos e tradições entre países
distintos pode levar à guerra ou a outras consequências
indesejadas no plano do direito internacional.
E se, ao menos potencialmente, tais conflitos podem
surgir, é inescapável dotar a sociedade de mecanismos aptos
a debelá-los e a evitar que se repitam entre os mesmos
conflitantes e também entre novas outras pessoas.
Das várias tentativas que a humanidade exercitou ao
longo dos séculos em busca de medidas equilibradas que
pudessem atender ao desiderato de solucionar conflitos
passados e de afugentar conflitos futuros, Rear (p. 44)
recorda que o Rei Hamurabi, líder dos babilônios, por volta
Liber Discipulorum | 65

de 1.750 a.C., pôs em vigor um conjunto de leis, as primeiras


a serem veiculadas por escrito, mas que acabavam
simplificando odiosamente a lógica das punições ao dar
elevado relevo ao “olho por olho, dente por dente” e que,
além disso, prescreviam excessivamente a pena de morte.
Era de se esperar, portanto, que novos pensamentos e
novas ideias jogassem luzes evoluídas sobre práticas que se
mostravam não mais aceitáveis no curso dos acontecimentos
históricos.
Como veremos no item a seguir, tais ideias foram
difundidas veementemente a partir do iluminismo, com
reflexos firmes em praticamente todos os ordenamentos
jurídicos hodiernos.

3 A DESEJADA TRANSIÇÃO PARA O EQUILÍBRIO NO


DIREITO PENAL

A humanidade não poderia conviver por muito


tempo com aquelas regras brutais e anacrônicas que
cercavam a lógica do “olho por olho, dente por dente”. Aos
poucos, então, olhos se abriram e dentes se tornaram menos
ávidos por vingança rápida, pura e violenta.
Dave Rear (p. 177) também recorda, com bom humor,
como o iluminismo e seus representantes, a exemplo de
Voltaire e Rousseau, surgiu com ideias revolucionárias que
exerceram importante influência no pensamento científico
desde então até os dias atuais.
A Constituição brasileira de 1988, por exemplo,
encarta princípios de direito penal que remetem àquela
66 | Para Onélia Queiroga

época e que, sem o iluminismo, dificilmente estariam nela


plasmados.
Nessa carta constitucional, são extensos os exemplos
que se podem catalogar para ilustrar a conclusão.
No artigo 5º, o inciso II estabelece que ninguém será
obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em
virtude de lei; o inciso III define que ninguém será
submetido a tortura nem a tratamento desumano ou
degradante; o inciso XXXVII veda qualquer juízo ou tribunal
de exceção; o inciso XXXVIII reconhece a instituição do júri,
com a organização que lhe der a lei, assegurando a plenitude
de defesa, o sigilo das votações, a soberania dos veredictos e
a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra
a vida; o inciso XXXIX determina que não há crime sem lei
anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal;
o inciso XL proíbe a retroação da lei penal, salvo para
beneficiar o réu; o inciso XLV prevê que nenhuma pena
passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de
reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser,
nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles
executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido;
o inciso XLVII prescreve que não haverá penas de morte,
salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84,
XIX, de caráter perpétuo, de trabalhos forçados, de
banimento ou cruéis; o inciso XLIX assegura aos presos o
respeito à integridade física e moral; e o inciso LVII ordena
que ninguém será considerado culpado até o trânsito em
julgado de sentença penal condenatória.
Liber Discipulorum | 67

Pode-se afirmar, com base nos princípios e regras


acima transcritos, que o ordenamento jurídico-penal
brasileiro, em termos constitucionais, já sedimentou uma
etapa de equilíbrio quase perfeito entre a necessidade de
punir e a premência de não exagerar nas punições.
No item seguinte, será feita rápida incursão acerca
das contribuições legadas por Beccaria e que influenciaram
positivamente para esse equilíbrio.

4 A CONTRIBUIÇÃO DE BECCARIA

As ideias que chegaram até a atualidade, a partir do


iluminismo, não foram, naturalmente, ideias que surgiram
Deus ex machina, mas por meio de lento – e sólido – processo
de discussões e rediscussões, pensamentos e repensamentos,
até que se alcançasse um certo consenso sobre seu valor.
Assim também se deu com o conjunto de normas,
vistas no item anterior, que findaram incorporadas à
Constituição da República Federativa do Brasil.
Durante a denominada “Assembleia Constituinte”,
incansáveis foram os debates, com idas e vindas, sobre o que
merecia ou não merecia ser alçado ao nível de regra ou
princípio constitucional.
Bem percebida essa realidade de hesitações que cerca
o ato de pensar, pode-se iniciar a referência a Beccaria com
as notas que ele próprio produziu como complemento ao
seu texto mais famoso, Dos Delitos e das Penas (BECCARIA,
1983).
68 | Para Onélia Queiroga

Em conhecido trecho dessas notas, Beccaria retrata-se


de uma ideia anteriormente exposta por ele, em um exemplo
concreto de como as retromencionadas idas e vindas cercam
o processo que envolve o ato de pensar e repensar.
No item 4 das suas notas, o autor reconhece um erro
praticado e afirma que ousou em um pensamento e disso se
envergonhou:

Nas primeiras edições desta obra, eu


também pratiquei esse erro. Ousei
dizer que o falido de boa-fé precisava
ser guardado como garantia de sua
dívida, posto em estado de escravidão
e forçado a trabalhar por conta dos
credores. Envergonho-me de ter escrito
essas coisas atrozes. Acusaram-me de
impiedade e de sedição, sem que eu
fosse sedicioso nem ímpio. Ataquei os
direitos da humanidade, e ninguém se
pôs contra mim. (BECCARIA, 1983, p.
116).

A conduta de reconhecer um erro também foi por ele


ressaltada no próprio prefácio, ao se declarar aberto a
receber críticas, se decentes, e propenso a ser alguém
“menos apressado a fazer a defesa de suas opiniões
particulares do que um sossegado amigo da verdade, pronto
a confessar seus erros” (p. 10).
Liber Discipulorum | 69

Vê-se, no caso, marcante elemento que reforça a


importância de se conhecer sua obra, originalmente
publicada com o título Dei Delitti e Delle Pene, em 1764,
configurando-se como um texto de alerta em face do
despotismo e das arbitrariedades penais.
Seguindo esse caminho, o autor, ainda no prefácio,
refere-se às barbaridades que pretende examinar (p. 7) e, na
introdução (§ I), complementa:

(…) os dolorosos gemidos do fraco,


que é sacrificado à ignorância cruel e
aos ricos covardes; os tormentos
terríveis que a barbárie inflige em
crimes não provados, ou em delitos
quiméricos; a aparência repugnante
dos xadrezes e das masmorras, cujo
horror é acrescido pelo suplício mais
insuportável para os desgraçados, a
incerteza; tantos métodos odiosos,
difundidos por toda parte, teriam por
força que despertar a atenção dos
filósofos, espécie de magistrados que
orientam as opiniões humanas (p. 12).

Em seu livro Dos Delitos e das Penas, Beccaria, em


seguida, inicia o debate sobre temas ainda hoje palpitantes,
como a origem das penas, a origem do direito de punir, a
interpretação das leis e sua obscuridade, a prisão, os
70 | Para Onélia Queiroga

indícios, as testemunhas e seu grau de confiabilidade, as


acusações secretas e a tortura, sobre a qual discorre:

Outra consequência ainda muito


visível advém do uso das torturas: é
que o inocente se encontra em situação
pior que a do culpado. Efetivamente, o
inocente submetido à tortura tem tudo
contra si: ou será condenado, por
confessar o crime que não cometeu, ou
será absolvido, porém após ter passado
por tormentos que não mereceu (p. 35).

Também são abordados tópicos como a duração do


processo, a prescrição, os cúmplices, a impunidade, a
moderação das penas, a pena de morte, a publicidade das
penas, erros e injustiças na legislação e a prevenção dos
crimes.
Assim, conclui-se a obra:

De tudo o que fica exposto, pode-se


deduzir um teorema geral de muita
utilidade, porém pouco adaptado ao
uso, que é o legislador comum dos
países: É que, para não ser um ato de
violência contra o cidadão, a pena deve
ser, de modo essencial, pública, pronta,
necessária, a menor das penas
Liber Discipulorum | 71

aplicáveis nas circunstâncias referidas,


proporcional ao delito e determinada
pela lei (p. 97).

Se é indiscutível a proeminência do pensamento de


Beccaria no aspecto da política criminal, como visto acima,
importa, agora, apontar a relevância de Liszt para a
sistematização do estudo do direito penal, o que será feito
no item seguinte.

5 LISZT E SEU TRATADO

Os fundamentos jusfilosóficos voltados ao


desenvolvimento adequado dos estudos atinentes ao direito
penal moderno remetem, consideravelmente, ao iluminismo
e às contribuições emanadas de escritores como Beccaria,
dentre outros.
As percepções de ordem criminológica, isto é,
concernentes à criminologia, não foram mais as mesmas
desde então, conforme aludido anteriormente, de modo
resumido, neste artigo.
Mas ainda era necessário avançar e desenvolver o
próprio direito penal, estipulando-se quais seriam as
melhores formas e métodos para se estudar esse campo do
saber jurídico.
É nessa seara que não se pode deslembrar o imenso
trabalho executado por Franz von Liszt e seu monumental
72 | Para Onélia Queiroga

Tratado de Direito Penal Alemão (Lehrbuch des Deustchen


Strafrechts), publicado em 1881.
Precursor e inspirador de todos os demais tratados e
manuais que surgiram após sua publicação, o Lehrbuch foi o
primeiro texto de fôlego a cuidar com profundidade dos
temas que ainda hoje permeiam a dogmática penal, razão
pela qual Liszt também se tornou um autor paradigmático
nas ciências penais.
No prefácio redigido pelo Ministro do Superior
Tribunal de Justiça, Edson Carvalho Vidigal, no Tratado de
Direito Penal Alemão (Coleção história do direito brasileiro),
editado pelo Senado Federal e pelo Superior Tribunal de
Justiça, colhe-se a observação:

A exemplo da preciosa contribuição de


seu primo e homônimo húngaro para a
música clássica, a obra do jurista
nascido em Viena elevou-se a
patrimônio universal. Liszt dedicou a
vida ao estudo dos delitos e das penas,
e o presente livro é mostra de seu
legado jurídico. A leitura do Tratado
de Direito Penal confirma a forte
influência dos doutrinadores alemães
na consolidação do Direito Penal
brasileiro. Na introdução, minuciosa e
didática, Liszt desce a detalhes da
história do Direito Penal (LISZT, 2006).
Liber Discipulorum | 73

O tratado parte, em seu primeiro volume, logo na


introdução, da conceituação do direito penal, apresentando
seu objeto (objeto do tratado), explorando, a seguir, no
capítulo I, o panorama da história do direito penal e a ideia
finalística da pena, rememorando o direito penal dos
romanos, o direito penal da Alemanha na Idade Média, a
ordenança de Carlos V sobre a justiça criminal, o Código
Penal francês e o Código Penal do Império da Alemanha.
Nos capítulos seguintes, as lições envolvem política
criminal, incluindo as causas da criminalidade e as fontes do
direito penal, versando sobre a lei, a ordenança e o tratado,
além de detalhar aspectos da lei penal em relação ao tempo,
à matéria e ao espaço.
Encerrada a introdução, o Tratado ingressa na Parte
Geral (Livro Primeiro), quando se examinam o crime, em
seu conceito e divisão, o sujeito do crime, as circunstâncias
do crime, o resultado, a comissão, a omissão e o tempo e
lugar da ação.
O tratado não dispensa comentários sobre a legítima
defesa e sobre o que Liszt denominou de “extrema
necessidade”:

Segundo o direito em vigor, a extrema


necessidade ou o estado de
necessidade é a situação de perigo
atual para a vida ou para a integridade
do corpo que somente pode ser
removida pela lesão de interesses
lícitos de outrem, pouco importando
74 | Para Onélia Queiroga

que essa situação tenha sido produzida


por forças naturais ou por ato de
terceiro. O ato de extrema necessidade
apresenta-se, pois, como salvaguarda
de interesses próprios postos em
perigo imediato com lesar interesses
lícitos de outrem, e só se distingue da
ideia mais ampla da legítima defesa
(“fora dos casos de legítima defesa”,
art. 54 do C. p.) em que não se dirige
contra um agressor injusto (…) (LISZT,
2006)

A obra continua dedicando-se ao estudo do dolo, da


culpa, da imputabilidade, do erro, da tentativa, do crime
impossível (tentativa impossível), da autoria e da
cumplicidade e da pluralidade de crimes.
No Livro Segundo, encerrando o primeiro volume,
estudam-se as penas e seu conceito, os gêneros de pena, a
graduação da pena, a extinção da pena e a prescrição e sua
interrupção.
Já no segundo volume, voltado aos crimes em espécie,
inicia-se, no Livro Primeiro, perscrutando o que foi
denominado de crimes contra os bens do indivíduo,
dividido em cinco capítulos. No capítulo I, examinam-se os
crimes contra o corpo e a vida, que são o homicídio, o
infanticídio, o homicídio a pedido da vítima e o homicídio
culposo, além da ofensa física e da periclitação da vida
(exposição e abandono, envenenamento, abordo, rixa e
Liber Discipulorum | 75

duelo). No capítulo II, são analisados os delitos contra a


honra, contra a liberdade sexual, contra o sentimento moral
(rapto, constrangimento para fim libidinoso, sedução,
lenocínio e incesto), contra os direitos de família (poligamia
e adultério), contra a liberdade de religião e o sentimento
religioso, além da violação de domicílio, a violação de
segredos alheios e os crimes contra a paz jurídica (ameaça e
perturbação da paz). No capítulo III, cuida-se dos delitos
contra os direitos de autor, enquanto direitos individuais,
correspondendo à violação dos direitos de autor em matéria
literária (contrafação e outras violações). No capítulo IV,
têm-se por objeto os crimes contra os direitos reais, como o
furto, o roubo, o desvio ou apropriação indébita, o dano, a
violação do direito de caça, os delitos contra os direitos de
créditos (bancarrota e frustração de execução), a burla, a
extorsão, a loteria e a receptação, dentre outros. Por fim, o
capítulo V ocupa-se de crimes variados, conforme o meio
empregado para seu cometimento, como o de perigo
comum, o incêndio, a inundação, o dano a vias férreas e
telégrafos, o contágio, o envenenamento, o abuso de
matérias explosivas, a falsificação de mercadorias, a moeda
falsa, a falsificação de documentos e a falsa atestação. Esse
segundo volume encerra-se com o Livro Segundo, elencando
e investigando crimes contra os bens jurídicos da
coletividade, quais sejam os crimes contra o Estado (traição,
espionagem…), contra o poder público (intervenção violenta
em atos oficiais, soltura de presos…), contra a administração
pública (crimes de responsabilidade, como a corrupção e o
abuso de poder, o peculato e a concussão, além do
76 | Para Onélia Queiroga

depoimento falso e outros crimes contra a administração da


justiça, como as ações puníveis contra a polícia industrial, as
ações puníveis relativas às rendas do império e os crimes
militares).
O tratado de Liszt, como se percebe, foi a pedra
angular para a construção do importante edifício das
ciências penais. Embora sujeito a certas críticas, como, de
resto, todo pensamento está, o de Liszt tem reservado, para
si, lugar de destaque dentre tantos outros nomes que, por
limitação do escopo deste artigo, deixaram de ser citados.
Tais críticas não desmerecem, nem de longe, a necessidade
de se estudarem e de se compreenderem as ideias que o
autor desenvolveu no âmbito do estudo do direito penal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A história da humanidade é uma história de suas


ideias e do desenvolvimento e aplicação de tais ideias,
sempre postas em discussão, sempre postas à prova, antes
de serem incorporadas à vida prática.
Isso ocorre em qualquer campo do saber e não seria
diferente no campo das ideias penais, o que ensejou a
elaboração deste artigo, com foco em dois nomes de grande
valor nesse orbe, Beccaria e Liszt.
Enquanto a formação do universo e do planeta Terra
levou bilhões de anos para ser concluída, a partir do big
bang, a civilização humana contabiliza não mais do que
alguns poucos milênios, surgindo na extremidade inferior
do vale da Mesopotâmia, levando, desde então, as pessoas a
Liber Discipulorum | 77

debaterem o que deveria ser feito com aqueles que


descumprem as regras de convívio social.
Na época de Hamurabi, as punições para tais
descumprimentos incluíam o “olho por olho, dente por
dente”, mas a humanidade findou por evoluir, em especial
com o iluminismo e seus representantes, como Voltaire e
Rousseau, em direção a um equilíbrio no direito penal.
Assim é que a própria Constituição brasileira elenca
princípios de direito penal que devem sua existência ao
iluminismo.
Para essa evolução, é inegável a importância da
contribuição de dois estudiosos recordados neste texto:
Beccaria e Liszt.
Beccaria tem sua importância como pensador das
políticas criminais, a partir de sua obra mais conhecida, Dos
Delitos e das Penas (Dei Delitti e Delle Pene), de 1764.
Esse autor discorreu primorosamente sobre temas
como a origem das penas, a origem do direito de punir, a
interpretação das leis e sua obscuridade, a prisão, os
indícios, as testemunhas e seu grau de confiabilidade, as
acusações secretas e a tortura.
Por seu turno, Liszt, outro expoente das ciências
penais, foi o inventivo precursor da sistematização do
estudo do direito penal, a partir de sua obra Tratado de
Direito Penal Alemão (Lehrbuch des Deustchen Strafrechts),
publicado em 1881.
A doutrina alemã sempre foi forte influenciadora do
direito penal brasileiro, o que se nota com a constatação de
78 | Para Onélia Queiroga

que a estrutura de seu Tratado perdura como modelo para


tratados e manuais mais recentes.
Em dois volumes, seu tratado aborda temas que ainda
hoje são objeto de estudo dos penalistas, como a história do
direito penal, a finalidade da pena, as causas da
criminalidade, as fontes do direito penal, o conceito de
crime, o sujeito do crime, o resultado, a omissão, a legítima
defesa, o dolo, a culpa, o erro, a autoria, a pena, sua
graduação e os crimes em espécie (homicídio, roubo, furto,
apropriação, dano, extorsão, receptação, envenenamento,
moeda falsa e muitos outros).

REFERÊNCIAS

BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução


Torrieri Guimarães. São Paulo: Hemus, 1983. 117 p.

LISZT, Franz von. Tratado de direito penal alemão. 2 V.


Coleção história do direito brasileiro. Direito penal.
Tradução de Lehrbuch des deutschen stranfrechts. Prefácio
de Edson Carvalho Vidigal; Tradução José Hygino Duarte
Pereira. Ed. fac-sim. Brasília: Senado Federal, Conselho
Editorial: Superior Tribunal de Justiça, 2006.

REAR, Dave. História do mundo sem as partes chatas: os


acontecimentos mais importantes desde o Big Bang até os
nossos dias, contados de uma forma leve, irônica e divertida.
Tradução de A less boring history of the World: From the
Big Bang to Today. 1. ed. São Paulo: Cultrix, 2013.
Liber Discipulorum | 79

O ALVORECER DA CRIMINOLOGIA MODERNA

Valdir Delmiro Neves3


Maria Marconiete Fernandes Pereira4

Resumo: Como ferramenta fundamental da Ciência Penal, a


Criminologia é disciplina de complexa matizes que busca
compreender a etiologia do crime e da delinquência com
objetivo de subsidiar o direito penal no estabelecimento de
condutas para a manutenção da ordem pública diante de
violações de valores sociais resguardados pela lei dentro da
sociedade. A Criminologia teve suas bases científicas
originadas nas ideias de Cesare Lombroso, publicadas em
seu livro “O Homem Delinquente” no ano de 1876, uma
obra dedicada à pesquisa científica, ao estudo do crime, do

3 Médico (1991) e Bacharel em Direito (2020) graduado pela


Universidade Federal da Paraiba. Tem Residência Médica (1992-1997)
em Neurocirurgia no Hospital das Clínicas das Universidade de São
Paulo. Especialização em Neurorradiologia pelo Centre Universitaire de
Nancy (2008-2009). Aluno do Programa de Pós-Graduação em Direito
(Mestrado) do Centro Universitário de João Pessoa/UNIPÊ.
4 Doutora em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco

(2014). Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da


Paraíba (2009), área de Concentração em Direito Econômico. Especialista
em Contabilidade e Auditoria Pública pela Universidade Federal da
Paraíba (1998). Graduada em Ciências Contábeis pela Universidade
Federal de Pernambuco (1990). Graduada em Direito pelo Centro
Universitário de João Pessoa (2005). Professora Titular da graduação em
Direito Tributário e de Administrativo do UNIPÊ. Professora do
Programa de Pós-Graduação em Direito, Mestrado do Centro
Universitário de João Pessoa/UNIPÊ. Auditora de Contas Públicas –
Controladoria Geral do Estado/PB (1995). Advogada. Membro
Fundadora do Instituto Paraibano de Direito Administrativo.
80 | Para Onélia Queiroga

comportamento do criminoso, dos motivos do crime e dos


meios necessários para proteger a sociedade da exposição
aos homens delinquentes. Contrapondo-se a Escola Clássica
e utilizando métodos empírico dedutivo, as inovações de
suas pesquisas o tornariam o nome mais comentado da
criminologia de todos os tempos e lhe conferiu a alcunha de
“pai da criminologia contemporânea”. Esse capítulo versa
sobre o nascimento da criminologia e a importância das
observações de Cesare Lombroso para Criminologia.
Iniciamos por um contexto histórico e geográfico que
fizeram da Itália o berço da criminologia. Em seguida
discorremos sobre as escolas da criminologia, com ênfase às
escolas clássicas e positivista. Após essa contextualização,
descreveremos o trabalho L’uomo Deliquente, de Cesare
Lombroso, enveredando nas suas premissas com foco nas
características psicológicas e físicas do criminoso. Por fim
aontamos alguns legados de Lombroso para Criminologia
Contemporânea.

Introdução

Cumpre, desde cedo posicionar o leitor quanto a


diferenciação entre Direito Penal, Criminologia e Políticas
Criminais, diferentes disciplinas que compõem o universo
da Ciência Penal. A expressão “ciência global do direito penal”
foi incialmente utilizada por Liszt para designar a unidade
de disciplinas com interesse na ciência penal, tentando
conceder-lhes unidade e coerência normativa, a partir de
pressupostos dogmáticos (IBCCRIM; 2011).
Liber Discipulorum | 81

O Direito Penal pode ser conceituado, do ponto de


vista sociológico, como sendo o instrumento utilizado pelo
Estado para controle social. Trata-se, do ponto de vista
formal, do conjunto de normas de comportamentos
humanos definidos como infrações penais. Do ponto de
vista material, é traduzido por comportamentos humanos
considerados reprováveis pela sociedade, por lhe imputar
dano e retardo na evolução como tal. A criminologia é o
ramo da ciência penal que se ocupa do estudo do crime, do
seu autor, da vítima e do comportamento delinquente. Por
sua vez, as políticas criminais são ações que derivam do
estudo do crime e das medidas tomadas pelos órgãos
competentes visando melhorar as estratégias de controle da
violência na sociedade (PINHEIRO, 2019).
Para Khan e Sultana (2021), a criminologia se
preocupa com a mente do criminoso. Tenta entender seus
pensamentos para descobrir a motivação do crime. Seu foco
está na causa e na personalidade do criminoso. Nesse
trabalho nos deteremos apenas aos aspectos ligados ao
nascedouro da criminologia como e um dos três pilares do
que Listz chamou de Ciência Global do Direito Penal.
Apesar de algumas críticas da academia
questionando sua autonomia em relação as outras
disciplinas das ciências naturais, a criminologia é
considerada uma ciência social que tem por objeto o estudo
da causa, da natureza, do comportamento e da extensão do
crime, aspectos derivados de observações empíricas, método
cujo ícone foi Césare Lombroso, um médico forense,
82 | Para Onélia Queiroga

psiquiatra, antropólogo e grande entusiasta da teoria da


evolução (WOLFGANG, 1961; MAZZARELLO,2011).
Lanier e Henry (2010, p. 16) consideram que o campo
da criminologia moderna é vasto e deve ter como cerne os
seguintes aspectos de estudo: (i) a natureza do crime como
comportamento causador de danos; (ii) uma matiz variável
de atividades criminosas; (iii) perfil do(s) ofensor(es) e da(s)
vítima(s); (iv) análise estatística da incidência, padronização
e custos derivados dos crimes; (v) análise da causalidade;
(vi) comportamento da sociedade ao crime; (papel das
vítimas na gênese do crime; e (vii) as proposituras
normativas no campo penal.
Após o estabelecimento do Estado moderno,
assentado sobre a teoria contratualista, o controle social
utilizando o direito penal, passou a ser pensado em termos
gerais e de forma racional. Em seu momento inicial
estabeleceu duas classes de indivíduos representadas pelos
que atendem as demandas do Estado e aqueles que estão à
margem, restando as punições para estes ultimos (COSTA;
SILVA FILHO, 2021).
Liber Discipulorum | 83

Evolução Temporal da Criminologia


Fases Teorias Escolas
Demonologia
Fisionomia
Fase Pré-
Frenologia
científica
Criminologia
Escola Clássica
Clássica
Criminologia
Escola Positivista
Positivista
Fase Científica
Criminologia
Escola de Chicago
Moderna
____________________________
Quadro 1. Adaptado de Hoffmann (2022).

A criminologia moderna como hoje é concebida não


nasceu como tal. Antes trilhou longo e acidentado caminho
com suas fases, teorias e escolas. Neste contexto podemos
dividir temporalmente a criminologia numa fase pré-
científica e numa fase científica. A primeira engloba as
teorias pseudocientíficas representadas pela demonologia,
fisionomia e frenologia, e criminologia clássica. A fase
científica, inaugurada pela obra de Césare Lombroso, é
representada pela criminologia positiva e pela criminologia
moderna (FONTES; HOFFMANN, 2022).

Contexto Histórico

Triplett (2018) em sua obra “The Handbook of the


History and Philosophy of Criminology”, enfatiza a necessidade
84 | Para Onélia Queiroga

de se valer de aspectos marcantes, aos quais chamou de


ideias-chave, traduzidos por pensamentos dos intelectuais e
filósofos e em determinados momentos da história, como
fundamento para construção da estrutura organizacional da
criminologia como ciência.
Dias e Andrade (1997, p. 3,4) chamam a atenção
para a importância do contexto histórico no
desenvolvimento da identidade de qualquer ciência. Essa
premissa é também verdadeira em relação a criminologia,
que tem seus pilares teóricos alicerçados em marcos
geográficos-temporais, que permitem entender as políticas
criminais e as teorias criminológicas em evolução, com certa
defasagem das primeiras em relação as segundas. Além
disso as questões que se consideravam superadas, não raro
voltavam discussão, de modo que a evolução da
criminologia necessitou, não raro, reflexões arqueológicas.
Por volta de metade do século XVIII, a Europa era
palco do movimento iluminista e seus paradigmas centrados
na ciência, na crítica racional e no questionamento filosófico,
que promoveram mudanças na estrutura política, econômica
e religiosa tradicionais. Apesar das mudanças em curso,
ainda eram observadas arcaicas concepções penais e os
respectivos meios punitivos remanescentes da idade média
(SILVA JUNIOR, 2019). Para se ter ideia de tais concepções,
Foucault (2014, p. 9) descreve o suplício de um condenado
no ano de 1757 em Paris. “...e às partes em que será
atenazado se aplicarão chumbo derretido, óleo fervente,
piche em fogo, cera enxofre derretidos conjuntamente, e a
Liber Discipulorum | 85

seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatro


cavalos e seus membros consumidos ao fogo...”.
O apelo pelo término das punições corpóreas
ganhou vulto, sobretudo na Itália, onde a proliferação de
estudos enfocando a necessidade de uma abordagem
filosófica e jurídica do delito e de suas penas, conduziram à
fundação da Escola Clássica da Criminologia (CARDOSO,
2013), que teve como principal expoente Cesare Bonesana, o
Marquês de Beccaria. Curiosamente, Beccaria não estudou
direito e sim matemática e literatura. Desta última recebeu
forte influência de Montesquieu5 e Helvétius6 para
publicação de sua primeira obra “Dos Delitos e das penas”,
que se tornou um estandarte no movimento que reclamou,
dentre outros aspectos, a separação entre os poderes
judiciário e legislativo, o fim de julgamentos obscuros e
sentenças desproporcionais entre o crime e a pena, e
questionou a função social do direito de vingança
(BECCARIA, 2015, p.13).
Embora não estrito, os sistemas punitivos adotados
tiveram relação temporal com os sistemas produtivos
vigentes. A escola clássica da criminologia, surge entre o
ocaso do feudalismo e no crepúsculo da revolução

5 A quem Bonavides (1961, p.55) atribui a responsabilidade pelo


despertar da adormecida crítica política da Europa. Em suas palavras
“Montesquieu é todo êle um sistema de idéias que protesta, uma atitude mental
que se levanta, um pêndulo que oscila para a admoestação de verdades
incômodas”.
6 Claude-Adrien Helvétius (1715-1771), foi filósofo, escritor, moralista

francês, poeta e enciclopedista. A análise da obra de Helvétius e de


Beccaria mostra que este último absorveu as ideias do primeiro.
(MUÑOZ-GARCÍA, 2018).
86 | Para Onélia Queiroga

industrial. Nesta última, a mão de obra livre era exigência da


economia e do comercio. Dessa forma observava-se sensível
mudança na concepção de um regime punitivo cujo corpo
era, na maior parte das vezes, o bem disponível, para
carceragem como método corretivo dos delitos
(FOUCAULT, 2014, p. 28).
Foi nesse contexto que a criminologia desabrochou da
Itália para o mundo com a edição dos trabalhos de Cesare
Lombroso. Naquela ocasião as prisões e a penas privativas
de liberdade já estavam sedimentadas. A proximidade com
o ambiente carcerário e hospitais psiquiátricos, onde
trabalhou desde sua formação como médico, fez Lombroso
criar vínculos com a temática. Dessa experiência, derivaram
várias obras, sendo L’uomo Delinquente a mais expressiva
delas (LOMBROSO, 2016).
Nesta obra, Lombroso focou suas observações no
determinismo. Suas análises observacionais, descrevendo
características físicas e comportamentais dos indivíduos, o
fizeram concluir que os crimes tinham como gênese o caráter
biológico. Exemplos dessa afirmação são vistos em seus
estudos na área de medicina legal em que correlacionou
aspectos físicos e o papel da hereditariedade com detentos,
chegando a afirmar que o homem delinquente é
geneticamente determinado, num processo designado como
atavismo (COSTA; SILVA FILHO, 2021).
Coube ao antropólogo Frances Topinard a utilização
do termo criminologia pela primeira vez, no ano de 1879.
Mas apenas em 1885, esse termo ganhou notoriedade através
da obra “A Criminologia” de Rafaelle Garofalo. Esses
Liber Discipulorum | 87

acontecimentos, precedidos pela publicação da obra “O


homem delinquente” de Lombroso, se mostraram exitosos e
alcançaram outros campos de interesse, a exemplo da
filosofia. Nascia naquele contexto a criminologia, que
embora não podendo ainda de todo ser considerada como
ciência, despertava, através de critérios metodológicos de
análise eiológico-explicativo da delinquência crescente
interesse pela disciplina (DIAS; ANDRADE, 1997, p. 5).
Garland (2002) faz críticas as divisões didáticas da
criminologia em Escolas Classica e Positiva. Além disso
considera que a origem da criminologia só pode ser
identificada de maneira mais clara a partir do final do século
XIX com a observações de Cesare Lombroso, restando a
inclusão de autores como Beccaria e Bentham neste contexto
não é pacificada.
A despeito disso, optamos por incluir nesse trabalho
aspectos da Escola Clássica, pois além de anteceder,
temporalmente, a Escola Positiva, sendo considerada com
parte da pré-história da criminologia, serviu de fomento
para Lombroso e outros simpatizantes da Escola Positivista
buscarem outros caminhos para entendimento e explicação
dos delitos e, além disso, muitos aspectos discutidos por
seus pensadores inovaram conceitos que nos alcançam até a
atualidade.

Escola Clássica da Criminologia

A racionalidade apregoada no século das luzes,


apartando o direito da religião e dos fenômenos metafísicos
88 | Para Onélia Queiroga

e dando-lhe conotação mais humanística e social, associada a


ascensão da burguesia e a necessidade de força de trabalho,
motivaram mudanças nas concepções das penas que
permeavam o Antigo Regime (FUDOLI, 2001).
SILVA JUNIOR (2019) observa que para entender esse
processo de mudanças na esfera penal, há que se observar as
profundas mudanças ocorridas na transição do século XVIII
para o século XIX, motivadas por interesses da classe
burguesa, que utilizou o mote das ideias iluministas para
defender mudanças nas penas, visando a defesa de seus
próprios interesses.
No começo do século XX, Saldaña (1914), admitiu que
a pena seria uma atitude virtuosa para o delito, exercendo
seu efeito de três formas: a primeira pela exposição e
sofrimento do criminoso com anúncio da exposição do crime
e da penalidade a ser cumprida, gerando sensacionalismo; a
segunda deixando a certeza de que, inevitavelmente, o crime
teria punição; e a terceira pela conscientização de que o mal
representado pelo crime deve ter uma pena correlata. Era
essa bandeira defendida Beccaria e pela Escola Clássica.
Baratta (2011, p. 31) afirma que o foco da Escola
Clássica recaia sobre o delito e não considerava o
determinismo como aspecto a ser valorado na análise de um
crime. Antes, considerava o delito em toda sua expressão
como um conceito jurídico, um gesto derivado do livre
arbítrio e da violação das regras pré-estabelecidas entre os
entes de uma sociedade. Não havia, portanto, que se falar
em diferenças entre delinquentes e não delinquentes. Dessa
forma, as penas impostas, para Escola Clássica, deveriam ter
Liber Discipulorum | 89

por objetivo não a correção do indivíduo, mas a proteção


social dos delitos e a prevenção do desfecho criminoso por
parte daqueles que eventualmente estivessem propensos.
Mirabete e Fabbrini (2016, p. 19) afirmam que o termo
“Escola Clássica” foi criado pelos positivistas e tinha
conotação depreciativa às ideias defendidas pelos seus
seguidores, que apregoavam o método lógico-abstrato ou
dedutivo para ciência penal, em detrimento do método
experimental, próprio das ciências naturais. Reconhecem
Francesco Carrara como doutrinador de maior relevância
para o período e Cesare Beccaria como um dos autores mais
relevantes na associação das ideias iluministas aos conceitos
criminológicos da Escola Clássica.
Com sua obra Dei delitti e delle pene publicada em
1764, Cesare Beccaria influenciou e modificou a legislação
penal vigente na Europa. Suas ideias, permeadas de
concepções racionais iluministas, apelavam para a cisão da
justiça divina da justiça humana, até então siamesas,
delimitando pecados e crimes. Questionou, audaciosamente,
a utilidade da pena de morte, ato que considerava
espetaculoso, cruel e menos eficiente do ponto de vista
pedagógico para prevenção de delitos do que a privação de
liberdade duradoura. Considerava que a prisão perpetua
para um crime proporcionava medo e, por conseguinte,
esmaecimento de ideias criminosas por parte da sociedade
(BECCARIA, 2015).
Cesare Bonesana, Marchese di Beccaria (1738-1794) ou
Cesare Beccaria como ficou mais conhecido, teve grande
incentivo dos irmãos e ativistas políticos italianos
90 | Para Onélia Queiroga

Alessandro e Pietro Verri, responsáveis pela criação de um


grupo radical denominado academie del pugni na cidade de
Milão, cujas críticas eram dirigidas a desordem econômica, a
tirania buracrática, a à influência religiosa e a empáfia
intelectual. Graças aos irmãos Verri, Beccaria, ainda muito
jovem conseguiu apoio e publicou sua obra “Dos Delitos e
das Penas”. Curiosamente, a primeira edição foi liberada de
forma anônima, pois Beccaria já temia as reações do Clero
quanto as suas críticas a interferência da Igreja na vida
pública, sobretudo na seara penal. Aparentemente, não foi
difícil ao papa Clemente XIII descobri o autor da obra, pois
baniu Beccaria por considerar sua obra herética, racionalista
e perigosa. O banimento papal foi um fermento para
disseminação da e impacto da obra de Beccaria na Europa.
Aproximadamente, 30 anos depois da primeira publicação,
já havia vinte e três edições italianas, quatorze edições
francesas e onze edições inglesas (LANIER; HENRY, 2010).
Costa e Silva Filho (2021) afirmam que a obra de
Beccaria foi o marco teórico para revisão da relação entre os
delitos e a intensidade das penas adotadas e possibilitou
uma reflexão quanto a utilidade da pena como meio
educativo no sentido de prevenção da delinquência. Além
da utilidade, as penas deveriam ser embasadas na
legalidade e humanidade. Seguem ressaltando que os
defensores da escola clássica acreditavam que ao tornar a
pena pertinente ao crime, conseguiriam redução da
criminalidade pelo efeito didático adotado.
Lanier e Henry (2010) afirmam que a grande
contribuição da Escola Clássica derivou dos pensamentos de
Liber Discipulorum | 91

Cesare Beccaria e Jeremy Bentham. Estes incluíam princípios


como presunção de inocência, igualdade de todos perante a
lei, o devido processo legal, regramento para provas e
testemunho, mitigação do poder discricionário dos juízes,
penas semelhantes para crimes de mesma natureza e direito
de ser julgado por seus pares. Estas ideias centrais, base da
teoria clássica do crime, derivaram de uma visão utilitarista
que almejava mudança do foco da justiça arbitrária para um
sistema equânime, justo e humanitário, são encontradas até
hoje na criminologia contemporânea.

Escola Positivista da Criminologia

Como foi mencionado alhures, o primeiro autor a


fazer uso do termo criminologia foi Topinard, médico e
antropólogo francês, no ano de 1879. Apesar disso, apenas
em 1885, o termo foi disseminado através da publicação de
um livro intitulado “La Criminologia”, de autoria de Raffaele
Garofalo, um jurista italiano que se dedicava ao tema da
criminologia (DIAS; ANDRADE, 1997; LANIER; HENRY,
2010).
Mirabete e Fabbrini (2016, p. 20,21) afirmam que o
surgimento da Escola Positivista derivou da insatisfação
com os caminhos trilhados pelo direito penal, assoberbado
de dogmatismos e indagações racionais próprias do
movimento naturalista do século XVIII, somados ao
pensamento positivo em franca ascensão com reflexões
filosóficas de Comte, a teoria evolutiva de Darwin e Lamark
e o espírito iluminista vigente.
92 | Para Onélia Queiroga

Conhecidos como “os três santos da criminologia”,


Cesare Lombroso, Enrico Ferri e Raffaele Garofalo
destacaram-se como expoentes da Escola Positivista, sendo
os dois últimos alunos do primeiro. Fortemente
influenciados pela teoria da evolução de Charles Darwin,
assumiram posição radical e oposta a da escola clássica, com
críticas dirigidas a ênfase ao livre arbítrio em detrimento do
determinismo como fator gerador do crime. Essa veemente
oposição às ideias da escola clássica recebeu ainda influência
da vivência prática de Cesare Lombroso que exerceu
atividade em hospitais psiquiátricos, de medicina forense e
antropologia criminal e das atividades de Ferri, cuja
dissertação mais difundida, versava sobre o problema do
livre-arbítrio (LANIER; HENRY, 2010).
Mazzarello (2011) afirma que Lombroso teve uma
ascensão precoce e que ainda como acadêmico na faculdade
de medicina de Pavia, onde fora laureado, publicou os
primeiros ensaios com alusão a íntima relação entre a
genialidade e a loucura no ano de 1855. Concluindo o curso
de medicina em 1858, Lombroso aprofundou-se nos estudos
e assistência nas áreas da psiquiatria, da antropologia, da
criminologia e da medicina forense. E foi exatamente no
labor destas atividades que teve contato com a versão
francesa do livro de Darwin, em 1962. Logo alcançaria à
docência na Universidade de Pavia, em 1963, e o posto de
Catedrático na Universidade de Turim.
O grau de influência da teoria da evolução de Darwin
no pensamento de Lombroso foi de tamanha que inicia sua
obra mais famosa – O homem Delinquente – com um
Liber Discipulorum | 93

capítulo dedicado a correlação dos delitos com os aspectos


físicos e fisiológicos de plantas e animais. Neste capítulo
enaltece o trabalho de Darwin e chama atenção para “as
plantas insetívoras, não menos de que onze espécies ... que
comentem verdadeiros assassinatos entre os insetos”
(LOMBROSO; 2016, p.22 – grifo nosso). Segue enfatizando o
mundo animal e asseverando que é exatamente neste que a
analogia com os delitos é mais estreita e justificando que “é
preciso observar que em muitas espécies animais, como em
alguns povos bárbaros, uma inferioridade do corpo pode ser
causa de desprezo e vergonha” (LOMBROSO; 2016, p.27 –
grifo nosso), como justificativa para o devoramento ou
abandono de diferentes filhotes. Esses escritos mostram,
desde logo, a linha de raciocínio que Lombroso trilhou
tentando aplicar a evolução das espécies à antropologia.
Não tardou para que suas ideias, alinhadas ao
importante marco biológico estabelecido pela teoria da
evolução, fossem sedimentadas. Knepper e Ystehede (2013),
relatam que o interesse de Lombroso pela criminologia ficou
evidente quando ele examinou, durante um autopsia, o
crânio de um famoso delinquente chamado Giuseppe Vilella
e encontrou uma deformidade encefálica e imediatamente a
correlacionou com os crimes cometidos previamente pelo
infrator. Essas características, encontradas no morto, haviam
sido descritas em prossímios e motivaram Lombroso a
correlacionar a delinquência às alterações constitucionais,
que segundo ele eram produto da persistência de caracteres
antropológicos dos animais. O criminoso era, dessa forma,
produto de um freio ou um retrocesso evolutivo e suas
94 | Para Onélia Queiroga

condutas derivavam de suas alterações morfológicas. Tais


fatos levaram a termo a convicção de atavismo como
predeterminante de vícios, que permeou a obra mais
marcante da criminologia. Lombroso estava pronto para
iniciar a investigação e defesa de convicções que
sedimentaram a escola positivista da criminologia.
Suas atividades assistenciais e docentes em ambientes
psiquiátricos e penitenciárias o empurraram para correlação
dos recentes achados e conclusões, concebidos como uma
teoria para explicar a delinquência. Lombroso não tardou
em correlacionar o que chamava de bloqueio e/ou regressão
evolutiva com insanidade e genialidade. Isso ficou patente
em seu livro Genio e Loucura, publicado em 1872
(MAZZARELLO, 2011).
Ao observar comportamentos que considerava
derivados de elevada perspicácia e inteligência em
indivíduos delinquentes que passaram pela prisão e dela
escaparam inúmeras vezes, que tiveram sentença de morte
decretada e a driblavam e ainda que falsificavam e além de
não pagar pelos seus crimes ainda conseguiu auferir pecúnia
com seus atos, fizeram Lombroso acreditar que a
genialidade fosse um desvio da natureza que predispunha o
indivíduo a delinquência. Sobre isso escreveu:

“Não se pode negar, todavia, que apareçam,


cá e lá, delinquentes verdadeiramente
geniais, criadores de novas formas de
delito, autênticos inventores do mal.
Certamente era homem genial o Vidocq,
Liber Discipulorum | 95

que conseguiu evadir-se uma vintena de


vezes e fez cair nas mãos da Justiça em
centena de delinquentes e traçar com suas
memórias uma verdadeira psicologia do
delito. Também o era o Caliostro que
roubava e tapeava príncipes e reis, e quase
se fazia passar por um homem inspirado,
um profeta.
Genio especial tinha o Norcino e o
Pierotrotto, que nenhuma prisão da
Toscana conseguiu manter preso por mais
de um mês. Fugiam depois de avisar seus
carcereiros. E também o Duboisce, que, não
só conseguiu, depois de uma condenação a
morte, evadir-se, mas levou também sua
amante, da prisão” (LOMBROSO; 2016,
p. 144,145)

A respeito dos aspectos de genialidade e loucura,


Lombroso teve a oportunidade de conhecer Liev Tolstói7 em
sua ida a Moscou, por ocasião de um congresso médico
internacional. Lombroso iria presidir uma mesa de debate de
doenças mentais e teve ali a oportunidade de discutir seus
conceitos de que a loucura correspondia a uma forma
“evolutiva retrograda” e que o comportamento alienado
seria um mecanismo de compensação. Mazzarelo (2011) nos

7 Escritor russo nascido em 1828. É reconhecido como um dos maiores de


todos os tempos. Entre suas obras mais famosas estão os
romances Guerra e Paz (1869) e Anna Karenina (1877), considerados
verdadeiros auges da ficção realista (WILKIPÉDIA, 2022).
96 | Para Onélia Queiroga

conta que Lombroso decidiu visitar Tosltói e esperava


encontrar um homem de aparência cretina e degenerada,
mas em vez disso encontrou um homem, cujo aspecto em
nada condizia com a imagem preconcebida pelo eminente
médico. Ressalta ainda a decepção de Lombroso ao ouvir de
Tolstói que as ideias ali destiladas era absurdas e considerou
o posicionamento de seu debatedor como mais uma
manifestação de uma mente perturbada.
Em seu livro “The man of genius”, Lombroso faz
referência a precocidade do aparecimento de sinais e
sintomas da genialidade e loucura e deixa cristalino o
quanto o conceito de atavismo e imutabilidade da condição
herdada era preponderante na escola positivista da
criminologia. Escreveu:

“This precocity is morbid and atavistic; it


inay be observed among all savages. The
proverb, “A man who has genius at five is
mad at fifteen” is often verified in asylums.
The children of the insane are often
precocious... Among the children of the
insane are often revealed aptitudes and
tastes - chiefly for music, the arts, and
mathematics — which are not usually
found in other children” 8 (LOMBROSO,
1895, p.16).

8 “Essa precocidade é mórbida e atávica; pode ser observado entre todos os


selvagens. O provérbio: “Um homem que tem gênio aos cinco é louco aos
quinze” é frequentemente verificado nos manicômios. Os filhos dos loucos são
muitas vezes precoces... Entre os filhos de loucos são frequentemente reveladas
Liber Discipulorum | 97

Nessa mesma obra comenta a associação de genialidade e


insanidade com manifestações neurológicas e psiquiátricas
como epilepsia, melancolia, megalomania, folie de doute9 e
insanidade moral, dentre outras.
Nas palavras de Mazzarello (2011) “… according to
Lombroso, a regressive characteristic united the genius, the
madman and the delinquent”10. Essa característica era a
premissa maior do atavismo comentado alhures e que
fundamentou o discurso de Lombroso de que todo homem
delinquente tinha um caráter evolutivo regressivo com
matiz de expressão variável, variando de um polo a outro,
aproximando-o do homem primitivo, quando o componente
atávico é expressivo e do homem desenvolvido, quando tal
componente é menos expressivo. O selvagem para
Lombroso era o polo diametralmente oposto ao Emilio11
descrito por Rousseau.
A estruturação do pensamento de Lombroso o fez
concluir que os delinquentes não teriam recuperação, pois o
crime derivava de algo intrínseco, que não poderia ser
mudado. Nesse prisma, passou a defender que os

aptidões e gostos – principalmente para música, artes e matemática – que


geralmente não são encontrados em outras crianças” (tradução livre).
9 “Loucura da dúvida” ou “mania da dúvida”. Expressão francesa para

condição psiquiátrica, hoje incluída no espectro dos transtornos


obsessivo-compulsivo.
10 ... segundo Lombroso, uma característica regressiva uniu o gênio, o louco e o

delinquente. (tradução livre).


11 Segundo Cabral (2022), Emilio é uma obra pedagógica, de estilo romântico,

que conta mostra a educação do jovem Emílio, um órfão nobre e rico, do seu
nascimento até seu casamento."
98 | Para Onélia Queiroga

criminosos deveriam ser mantidos em prisões ou em asilos


durante de forma perpetua, não importando a gravidade do
delito cometido. Para eventuais casos em que concebia a
ação do ambiente, como enzima catalizadora, sobre a carga
genética do indivíduo, do desencadeamento do
comportamento criminoso, admitia a possibilidade remota
de reabilitação. Esta deveria ser tentada com trabalhos
agrícolas ou industriais. Em sua visão, os indivíduos com
potencial de recuperação eram conhecidos como
“criminalóides” e geralmente apresentavam deformidades
somáticas não observadas em não criminosos. Nessa classe,
Lombroso inclua os contrabandistas, receptores de produtos
roubados ou de drogas, jornalistas que extorquiam
empresários e legisladores que estavam envolvidos com
corrupção com empresários (KNEPPER; YSTEHEDE, 2013).
O fascínio pela evolução fez Lombroso dedicar uma
parte do livro “O Homem Delinquente” para descrever o
comportamento de crianças desde a mais tenra idade. Antes
de serem jocosas, suas descrições casuísticas deixam a
certeza de quanto ele assimilou e defendeu a teoria da
evolução e tentou adequá-la a criminologia.
Comportamentos como raiva, vingança, ciúmes, mentiras,
imitação, próprios da faixa etária infantil, foram
considerados por ele como intrinsicamente delituosos ao
afirmar que “...os germens da demência moral e da delinqüencia
encontram-se, não excepcionalmente, mas normalmente nas
primeiras idades do ser humano” (LOMBROSO; 2016, p. 59).
Em última análise, a criança, filogeneticamente falando,
carreava consigo a figura do homem primitivo. Dessa forma,
Liber Discipulorum | 99

indivíduos que permaneciam fixos no período infantil do


desenvolvimento, representariam uma fase
filogeneticamente ancestral. Essas ideias reforçaram o
conceito de delinquente nato (MAZZARELLO, 2011).
A influência enviesada do ambiente em que
Lombroso desempenhava suas atividades médicas, com
íntimo contato com doentes psiquiátricos (hospitais) e
criminosos em instituições penais, somados ao seu
deslumbre com a teoria da evolução, sem dúvida motivaram
o enveredamento pelas conclusões equivocadas. Em um
cenário descrito por Mazzarelo (2011) como “zoológico
antropológico”, Lombroso não se limitava a descrever seus
“exemplares” vivos, mas também desenterrava ossadas para
observações da craniometria e a divulgação de seus dados
compilados juntos aos discentes de sua responsabilidade na
cidade de Pávia. Em um curto espaço de tempo, já recebia de
ex-alunos e outros entusiastas, ossadas consideradas
“interessantes” para análise. Percebe-se assim, a influência
que Lombroso desenvolveu com seu trabalho.
Nem o mais pragmático dos cientistas questiona a
importância metodológica inaugurada por Lombroso para
criminologia. Em capítulo destinado a correlação de
alterações dos sentidos com a delinquência, Lombroso
escreve sobre a visão que “... em inteligente estudo em meu
laboratório, em 227 criminosos, ... encontrou 15 daltônicos
(6,6%), ... o dobro do que encontrou em 800 estudantes
(3,09%) da mesma faixa etária e em 590 operários (3,89%) –
(LOMBROSO, 2016, p. 49).
100 | Para Onélia Queiroga

Também correlacionou delinquência a uso de


tatuagens. Sobre esta temática asseverou:

“Destes homens que concentram no


organismo humano tantas anomalias,
como nos crimes, tanta constância nas
reincidências, pretendo estudar a
biologia e a psicologia. E começarei da
característica que é a mais psicológica
do que anatômica: a tatuagem”
(LOMBROSO, 2016, p. 30).

Lombroso chegou a descrever 9.234 indivíduos com


tatuagens, sendo 3.886 em pessoas que chamou de
“soldados honestos” e 5.348 criminosos, meretrizes ou
soldados delinquentes. Nas suas observações encontrou
tatuagens com apologia a violência, de cunho vingativo ou
traço despudorado nos delinquentes cerca de 8 vezes mais
nos detentos do que nos soldados livre (LOMBROSO, 2016,
p. 32,33).
Mesmo com limitações, Lombroso desenvolveu um
trabalho espetacular para sua época. Bem próximo ao
término do livro L´uomo Delinquente faz menção aos crimes
por força irresistível, afirmando ser esta, uma característica
derivada de “pervertida afetividade, deste ódio excessivo e sem
causa, desta falta ou insuficiência de freios, desta tendencia
hereditária múltipla deriva irresistibilidade dos atos dos dementes
morais” (LOMBROSO, 2016, p. 217). Esse tipo de crime
desperta até os dias atuais palpitantes debates a cerca da
Liber Discipulorum | 101

condição psiquiátrica e a consciência das consequências


normativas em decorrências do ato e as possíveis sanções
correlatas (CRESSEY, 1954).
O posicionamento de Lombroso contra o livre arbítrio
como gênese do crime encerra o último parágrafo de seu
livro L´uomo Delinquente. Fiel aos seus pensamentos, afirma
que apenas as pessoas sãs têm a capacidade de mitigar
situações que ameaçam o bem-estar social através de
exercícios mentais, a exemplo da meditação quanto ao temor
da sanção. Essa condição, entretanto, está ausente nos
dementes morais e nos delinquentes natos, sendo esta, a
causa das frequentes reincidências da delinquência
(LOMBROSO, 2016, p. 223).

Legado da Escola Positivista para Moderna Criminologia

Os paradigmas de Lombroso, logo seriam


questionados para em seguida serem vencidos. Hoje temos a
compreensão de que suas observações foram inundadas por
um viés metodológico, sobretudo de amostragem, técnica de
coleta de dados e de tratamento estatístico da amostra
(KNEPPER, YSTEHEDE, 2013). Para Mazarello (2011), quase
nada restou das ideias de Lombroso. Entretanto reconhece
que elas foram verdadeiro fenômeno do século XIX, que
abriram as portas para o aparecimento e crescimento da
antropologia criminal e que de forma inovadora permitiram
a compilação de dados observacionais e seu subsequente
tratamento estatístico.
102 | Para Onélia Queiroga

Além do aspecto científico concedido a criminologia,


as premissas defendidas por Lombroso e pela Escola
Positivista tiveram importantes desfechos. A ideia de que a
origem natural do delito estaria, necessariamente, atrelada a
uma personalidade criminosa, concedendo ao delinquente a
condição de doente mental. O crime já não era mais uma
condição encarada como produto de livre arbítrio, antes
estaria relacionado ao comportamento psicobiológico
imaturo e, por conseguinte, instintivo. Essa concepção levou
a se encarar a punição, precipuamente, com forma de defesa
e secundariamente com função de assistência social. Era
outorgado a sociedade a ampla defesa (que incluía até pena
de morte) dos criminosos em nome de sua própria proteção
(MAZARELLO, 2011).
Wolfgang (1961) afirma que difícil encontrar escritos
sobre o trabalho de Lombroso sem elogios ou críticas aos
métodos por ele utilizados, seja por parte de
contemporâneos ou posteriores ao autor. Da parte dos
contemporâneos, a assertiva tem como premissa a
dificuldade de entendimento gerada pela nova abordagem,
pois os métodos de pesquisa e de tratamento estatísticos das
amostras eram precários na época de Lombroso. Da parte
dos que sucederam Lombroso, a crítica tem o embasamento
no avanço das técnicas de pesquisa.

Considerações Finais

A criminologia é disciplina essencial e indissociável


do direito penal, com o qual não se confunde. A primeira
Liber Discipulorum | 103

destina-se a examinar os fenômenos, a etiologia da


criminalidade e aspectos inerentes a conduta e a
personalidade do criminoso, enquanto a segunda tem por
meta o estudo dogmático do sistema normativo penal. A
criminologia é, portanto, observada de vários ângulos por
diversas disciplinas biológicas e socais.
O percurso trilhado pelas origens da Criminologia
nos mostra quão pedregoso foi seu caminho até os dias
atuais. De suas fases históricas, observadas do prisma
ortodoxo, nos detivemos apenas na Escola Clássica e na
Escola Positivista. A primeira, representada por Beccaria,
trilhou um caminho destilando ideias sobre crime e suas
penas sem qualquer caráter científico. A segunda, e
subsequente, representada por Lombroso, destacou-se e tem
o reconhecimento da comunidade científica de que foi o
divisor de águas para evolução da criminologia como
disciplina e ciência, abrindo as portas para muitos métodos
utilizados na pesquisa criminológica contemporânea. Sem
dúvida, a notabilidade de Lombroso passou ao largo em
relação as suas conclusões derivadas de suas observações e
descritivos casuísticos. Entretanto, a metodologia utilizada
(empírico observacional), passou a ser o pressuposto
indispensável o estudo da criminologia.
A escola clássica defendeu o fim das penas
desproporcionais aos crimes, a adoção de penas semelhantes
para crimes semelhantes e nas punições personalizadas e
mais brandas, inclusive com abolição da pena de morte e
acreditando no caráter pedagógico das sanções. A premissa
maior para tal defesa era o livre arbítrio do delinquente na
104 | Para Onélia Queiroga

gênese do crime. Noutro momento, a escola Positivista


afastou o livre arbítrio como causa do crime e enalteceu o
atavismo e as características psicobiológicas como
responsáveis pela gênese do crime.
Lombroso foi o expoente maior da escola
criminológica positivista. Apesar de suas descrições serem
consideradas por muitos hoje como pseudociência, a
metodologia utilizada por ele modificou a forma de se
enxergar a criminologia. Suas conclusões foram
paulatinamente descartadas, pois não tinham fundamento.
Entretanto, os estereótipos e as características
psicobiológicas que ele expôs sob a alcunha de descoberta
científica, são sempre lembradas em todo e qualquer texto
que envolva a criminologia e podem ser observadas em
algumas séries de plataformas de streaming. Para Knepper e
Ystehede (2013), Lombroso sonhou acordado e além das
curiosidades dos casos tentou evidenciar sua existência e
viabilidade científica em suas observações.
Autores como Knepper e Ystehede (2013) consideram
que as ideias de Lombroso são hoje consideradas
“pseudocientíficas” e que as buscas de estereótipos
delinquentes, apesar de refutadas pela criminologia
moderna, estão presentes em nossa vida cotidiana. Séries
televisas mostram de forma reiterada programas que
abordam uma disciplina forense conhecida como “criminal
profiling”, mostrando que o cerne da questão que motivou
Lombroso, representados pela pretensão humana (entenda-
se aqui antropologia, biologia e outros disciplinas afins) de
Liber Discipulorum | 105

se determinar criminosos pelos seus aspectos


biopsicossociais.

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Liber Discipulorum | 111

DA HISTÓRIA DO DIREITO PENAL:


(IM)POSSIBILIDADE DE UMA VISÃO
DESENVOLVIMENTISTA

Débora Dalila Tavares Leite12

RESUMO
O presente artigo buscou entender se, dentro da História do
Direito Penal, é possível perceber certa visão
desenvolvimentista. Partimos da necessidade de diálogo
entre historiadores e historiadores do Direito Penal. Um
diálogo nem sempre fácil de ocorrer, mas necessário.
Passamos, sem esquecer que existem algumas outras
divisões, pelos períodos históricos do Direito Penal: da
vingança, humanitário e científico. O eixo central do nosso
artigo reside no período humanitário: Dos Delitos e Das
Penas, a obra de Beccaria que é considerada como um marco
para o Direito Penal. Dentro da obra, não negligenciamos
que a visão do marquês foi norteada pelo utilitarismo. E, já
na época atual, observamos que, às ideias
desenvolvimentistas mais aceitas, como as de Amartya Sen,
apesar de contrárias ao utilitarismo, poderiam se aproximar
aquelas de Beccaria, à sua época.

Palavras-chave: História do Direito Penal. Utilitarismo.


Desenvolvimento.

12Analista Judiciário do Tribunal de Justiça da Paraíba. Mestranda em


Direito e Desenvolvimento Sustentável pelo UNIPÊ. João Pessoa,
Paraíba, Brasil. E-mail: deboradalila@outlook.com
112 | Para Onélia Queiroga

1 INTRODUÇÃO

A partir do destaque dado pelo Programa de Pós


Graduação em Direito (PPGD) do UNIPÊ para a reflexão
científica dentro do Direito no Desenvolvimento
Sustentável, surgiu-nos a inquietação de como conciliar a
História do Direito Penal com uma visão
desenvolvimentista.
E, principiando por estudos sobre a História do
Direito Penal, vislumbramos em Beccaria, autor da obra que
é, seguramente, um marco para o Direito Penal moderno, a
fumaça necessária para harmonizar nossa inquietação.
Na feitura do nosso artigo, para nossa abordagem
metodológica, usamos o método dedutivo, partindo de
enunciados gerais sobre História, historiadores, História do
Direito, historiadores do Direito para chegar a cada uma das
divisões que conduziram nosso enfoque.
O presente artigo está dividido em cinco seções, onde
a primeira e a última tratam da introdução e considerações
finais, respectivamente.
Na segunda, após explicitarmos sobre a necessidade
de diálogo entre historiadores e historiadores do Direito
Penal, chegamos aos períodos em que comumente é
dividida a história do Direito Penal. Há três subseções:
período da vingança, período humanitário e período
científico. Tratamos um pouco sobre cada um; mas, é na fase
humanitária, que se encontra o eixo de nossos estudos:
Beccaria.
Liber Discipulorum | 113

Assim, na terceira seção, focada no Marquês,


discorremos sobre o surgimento da obra que apresentou
uma nova concepção de humanizar-se as penas: Dos Delitos
e Das Penas.
Dentro da obra, visualiza-se a perspectiva utilitarista.
Tal visão de Beccaria é evidente; mas, hodiernamente, já é
amenizada.
E, sobre este aspecto, detivemo-nos na quarta seção,
na qual buscamos, com os limites da época em que posta,
um quê desenvolvimentista.
Ainda nesta seção, buscamos capturar, sem
aprofundamento para não fugir do foco, sobre a Teoria
Utilitarista para, então, adentrarmos na Teoria do
Desenvolvimento como Liberdade, de Amartya Sen. E,
mesmo sabendo que, hoje, a noção de desenvolvimento se
opõe à de utilitarismo, não podemos olvidar que Beccaria,
dando novo enfoque ao Direito Penal, o fez como marco de
desenvolvimento para sua época.
Ao final, destarte, concluímos que, apesar do vácuo
entre a modernidade do pensamento de Beccaria (1764) e
aquela de Amartya Sen (1999), é possível haver certa
aproximação entre ambos.

2 PERÍODOS HISTÓRICOS DO DIREITO PENAL

A começar pelo título desta seção, já se mostra


evidente a necessidade da ligação da História com o Direito
Penal, e/ou vice-versa, para chegarmos à compreensão
sobre a História do Direito Penal.
114 | Para Onélia Queiroga

Historiadores e historiadores do direito travam um


diálogo nem sempre fácil de ocorrer.
Importante historiador francês, Jacques Le Goof13,
dentre seus inúmeros escritos, discorreu sobre esse difícil
diálogo entre a história medieval e a história do direito. Sem
adentrarmos em seu específico aprofundamento sobre a
Idade Média, colhemos que ele vislumbra que os
historiadores do direito têm buscado suas raízes, mas
entende que devem fazê-lo ao lado dos historiadores:

A última chance, precisamente, é a


febre com a qual os homens,
atualmente, estão à procura de suas
raízes. Raízes não ressecadas, mas
vivas, capazes de fazer nascer novos
florescimentos, não só um futuro, mas
um futuro cheio de valores, de
progresso, e não de decadência. Um
novo Direito para o presente e o futuro,
mas também para o passado. Esse
novo passado da história do direito só
pode emergir ao lado dos
historiadores, segundo renovadas

13 Historiador francês que se dedicou ao estudo da Idade Média. Fez


parte da terceira geração da Escola dos Annales. Publicou mais de 40
livros, dedicando grande parte de sua obra à História das Mentalidades.
Fez estudos aprofundados sobre a cultura e mentalidade do homem na
Idade Média.
Liber Discipulorum | 115

problemáticas. (LE GOFF, 1985, p. 39.


Tradução nossa).14

A importância de se conhecer o arcabouço histórico


do Direito Penal reside na preparação de exegetas mais
firmes e seguros (DEODATO, 2012, p. 79).
Magalhães Noronha, mencionado por Jaques de
Camargo Penteado (2006, p. 629), nos mostra que a história
do Direito Penal é a história da humanidade. O crime surgiu
com o homem e sempre se fez presente na humanidade.
Jacques Le Goof15 se coloca como historiador e
reconhece que não deve se isolar dos historiadores do
direito:

Cabe a nós, historiadores, não


permanecer especialistas em uma
história que, como o kantismo segundo
Hengel, teria mãos puras porque não
teria mãos – sem literatura, sem arte,
sem técnicas ou ciências, sem vida
material nem espiritual , sem valores,
sem Direito. Os historiadores do

14 No original: La dernière chance, précisément, c’est la fièvre avec laquelle les


hommes, aujourd’hui, sont à la recherce de leurs racines. Des racines non
desséchées, mais vivantes, capables de donner naissance à de nouvelles
floraisons, pas seulement à un futur, mais à un avenir gros de valeurs, de
progrès et non de décadance. Un nouveau droit pour le présent et le futur, mais
aussi pour le passé. Ce nouveau passé de l’histoire du droit ne peut émerger
qu’au coude avec les historiens, selon des problématiques renouvelées.
15 Importante historiador francês que se dedicou ao estudo da Idade

Média.
116 | Para Onélia Queiroga

direito devem ser historiadores por


direito próprio, escapando do gueto do
legalismo. (LE GOFF, 1985, p. 41.
Tradução nossa)16.

Ao final, o historiador (1985, p. 40) discorre sobre


proposições, as quais ele próprio menciona como sendo
simples e evidentes, mas difíceis de serem postas em prática.
Aos historiadores, ele pede que entendam que o direito faz
parte da história e que a história do direito faz parte da
história das sociedades. Aos juristas e aos historiadores do
direito, ele diz que a história do direito é indispensável à
ciência juridica como à ciência histórica e que não deve ficar
fechada em si mesma. E, então, fala em uma indispensável
colaboração com espaços científicos comuns, bibliotecas,
revistas, colóquios interdisciplinares etc.
Assim, vista a necessária junção entre História e
História do Direito, vemos que, para o Direito Penal, a
análise histórica mais comum que soi acontecer dá-se em
períodos históricos. Não se tratam de períodos isolados e
separados uns dos outros; não há um limite separador entre
eles. Ao contrário, eles se permeiam; sem, entretanto, perder
suas respcetivas identidades.

16 No original: Il nous appartient à nous, historiens, de ne pas rester des


spécialistes d’une histoire qui, comme le kantisme selon Hengel, aurait
les mains pures parce qu’elle n’aurait pas de mains – sans littérature,
sans art, sans techniques ni scienes, sans vie matérielle ni spirituelle, sans
valeurs, sans droit. Aux historiens du droit il appartient d’être des
historiens à part entière, échappés au ghetto du juridisme.
Liber Discipulorum | 117

Comumente, a História do Direito Penal é dividida


em três períodos: período de vingança, período humanitário
e período científico. Felipe Negreiros (2015, p. 35) mostra
que as mudanças da lei penal é que norteiam tal divisão.
Passemos a nos debruçar sobre eles.

2.1 PERÍODO DA VINGANÇA

A ideia de punição existe desde sempre. Os


primórdios já entendiam que as pessoas que apresentassem
comportamento prejudicial às demais ou à comunidade
deveriam ser punidas.
O Direito Penal buscou estabelecer uma forma de
aplicar as punições devidas. Sempre em desenvolvimento,
ao lado da evolução do próprio homem, as primeiras noções
de Direito Penal tinham caráter de vingança.
Felipe Negreiros (2015, p. 35) nos remete à noção de
que os romanos, apesar de serem muito evoluídos no Direito
Civil, não o eram no Direito Penal; daí as leis penais não
possuírem embasamento científico ou alguma preocupação
com direitos dos cidadãos.
Podemos subdividir o período da vingança em três:
vingança privada, vingança divina e vingança pública.
Durante o período da vingança privada, a reação ao
crime se apresentava desproporcional à ofensa, podendo ser
atingidos, além da pessoa do causador, tanto sua família
como seu grupo de convivência.
No período da vingança divina, acreditava-se que um
crime cometido seria uma afronta aos deuses. A forte
118 | Para Onélia Queiroga

influência da religião na vida das pessoas também


influenciou o Direito Penal, que reprimia o crime por três
fundamentos:

Neste período, acreditava-se que os


Deuses eram guardiões da paz e
eventual crime cometido era
considerado uma afronta às
divindades. Para que a tranquilidade
fosse restaurada, sacrifícios humanos
deveriam ser realizados. Deste modo,
mediante a prática de um único ato,
três medidas eram adotadas: satisfazia-
se o Deus maculado, punia-se o
ofensor e intimidava-se a população
para que não mais praticasse atos
considerados criminosos. (FADEL,
2012, p. 3).

Adveio o período da vingança pública, no qual o


monarca passou a exercer o poder punitivo, em nome de
Deus; o que mostra que ainda havia influência religiosa. Mas
o rei era quem detinha o monopólio da Justiça, podendo
avocar processos, conceder graça, reformar sentenças, impor
condenações e penas, até mesmo sem intervenção do juiz.
As penas tinham o fim de impor obediência ao poder
absoluto do soberano e, ainda, de, como expiação, purificar a
alma do condenado. Para tanto, como discorre Maximiliano
Fuhrer (2005, p. 47) elas eram “desumanas, executadas
Liber Discipulorum | 119

publicamente e sempre acompanhadas de imposição de


sofrimento feroz e desnecessário, faziam parte de um
espetáculo dantesco”, o que incluía a amputação de mãos,
pés, narizes, fogueira, roda, arrastamento pelo chão,
desmembramento em vida, arrancamento das vísceras,
tormentos e mutilações várias. Pondo fim ao período de
vingança, advém o das luzes.

2.2 PERÍODO HUMANITÁRIO

Surgiu durante o século XVIII, o século das luzes que


ampliou o domínio da razão em todas as áreas do
conhecimento humano.
Dentre os pensadores que defendiam a propagação
do uso da razão para conduzir o desenvolvimento da vida
em todos os aspectos, um se destacou no âmbito do Direito
Penal.
O marco deste período é, sem dúvidas, a obra de um
nobre nascido em Milão.
Mas, sobre tal marco nos deteremos na terceira seção
deste trabalho, já que a personalidade de Beccaria é um dos
eixos temáticos centrais deste artigo.
Neste momento, cumpre-nos situá-lo dentro da linha
história do Direito Penal para que não reste prejudicada a
compreensão do seu momento histórico e explicitar que,
depois do manifesto de Beccaria, o Direito Penal passou a se
desenvolver por escolas, doutrinas e correntes de
entendimento, com fundamentos filosóficos (FUHRER, 2005,
p. 47).
120 | Para Onélia Queiroga

2.3 PERÍODO CIENTÍFICO

Trata-se do período no qual os estudiosos passaram a


desenvolver conceitos e teorias jurídicas, sociais e
antropológicas sobre os institutos penais.
Depois das ideias difundidas por Beccaria, aceitas
quando a Europa estava envolvida em um processo de
codificação, o período científico se sobrepôs ao humanitário
e, a partir de estudos, passou-se a ver com outros olhos o
Direito Penal.
Em breves linhas, cumpre-nos expressar que, em
1813, Feuerbach, que absorvera as ideias de Beccaria, faz o
Código Penal da Baviera, que inspirou a legislação penal
que se seguiu. Foi ele quem “inaugurou um verdadeiro
período científico para o Direito Penal. Nesse período,
surgiu o dito manual do direito penal e a sistematização de
palavras (...)” (DEODATO, 2015, p. 39).
Apenas para contextualizar, temos por bem
mencionar que não há consenso na divisão histórica do
Direito Penal nesta fase.
Há divisão em escolas, fases, sistemas.
Por vezes, há confusão entre as nomenclaturas das
escolas. Verbi gratia, quando os manuais tratam de um
embate entre Escola Positiva e Escola Clássica17; mas, na

17 Felipe Negreiros destaca que parte da doutrina, menos consistente,


fala em luta de escolas, clássica e positiva; mas, tal nada mais foi do que
um movimento de contestação ao método dedutivo (DEODATO, 2015, p.
59).
Liber Discipulorum | 121

verdade, o embate que ocorreu na história do Direito Penal


foi entre a Escola Clássica e Escola Técnica.

No que tange à disputa de como se


devia enfocar o Direito Penal, o que,
para a doutrina mais abalizada,
representa a verdadeira guerra entre as
escolas penais, formaram-se aquelas
duas correntes: uma liderada por Liszt,
à qual se deu o nome de escola
causalista; outra sustentada por
Binding e Birkmeyer, à qual se deu o
nome de escola clássica. Essa foi a
verdadeira luta travada entre as
escolas penais. (DEODATO, 2015, p.
59).

Fato é que, a partir de então, o Direito Penal, como


ciência que é, tem buscado fundamentar cientificamente a si
mesmo, deixando de ser usado politicamente como meio de
controle.

3 O PENSAMENTO UTILITARISTA DE BECCARIA


DENTRO DO DIREITO PENAL

Sobre o período humanitário, como dito antes, sem


olvidar que se insere antes do científico, deter-nos-emos com
mais afinco neste momento, dada a importância de seu
maior expoente para o artigo a que nos propusemos.
122 | Para Onélia Queiroga

Dentre as ideias apresentadas pelos pensadores do


período humanitário, algumas influenciaram diretamente o
Direito Penal, modificando, inclusive, as punições, as quais
deveriam passar a serem desvinculadas das apreensões
éticas e religiosas.
O nobre Cesare de Bonesana, mais conhecido como
Marquês de Beccaria, é o autor da obra considerada como
uma fronteira ente o período de vingança e o humanitário.
‘Dei Delitti e Dele Pene’, Dos Delitos e Das Penas, é o
livro que ele escreveu em 1764, influenciado pelas ideias de
Montesquieu, Rousseau, Voltaire, Locke e Helvétius.
Foi o único livro que Beccaria escreveu. O suficiente
para ser considerado como um marco para o Direito Penal,
pois tratou de uma nova concepção para se humanizar as
penas.
E é a partir desta nova proposta de modelo jurídico-
penal que nasce o Direito Penal moderno.
Destacamos que, à época, Beccaria não foi o primeiro
a abordar o tema da humanização da justiça. Mas, é seu o
mérito de expressar-se de forma a despertar a atenção18. Sua
obra foi apresentada em Paris e recepcionada como projeto
de construção de um novo modelo jurídico-penal, em um

18Em acréscimo, vemos que Felipe Negreiros noticia sobre a difusão do


pensamento de Beccaria explicitando que ele foi convidado pela
Accademia dei Pugni para divulgar seu livro em Paris. Da mesma forma,
foram convidados todos os colaboradores da revista Il Caffé. Mas, em
razão de um projeto de reforma na administração de Milão, seus colegas
não puderam viajar e Beccaria, sozinho em Paris, angariou grande
sucesso com sua obra e com as ideias desenvolvidas pelo grupo do qual
fazia parte.
Liber Discipulorum | 123

momento em que a Europa se via impulsionada para um


processo de codificação.
O Código Penal da Baviera surge a partir das ideias
lançadas pelo Marquês, dividido em duas partes: geral e
especial. Esta, com preceitos primários (dos crimes) e
secundários (das penas).
A partir de então, o caminho conduz aos atuais
códigos penais, inclusive o brasileiro. Porém, tal percurso
não é o objeto do presente artigo.
Voltemos ao filósofo-jurista milanês. Em “O espírito
das leis”, Montesquieu, em 1748, já apresentara um esboço
das ideias que viriam a ser propagadas mais tarde por
Beccaria:

O leitor atento de Montesquieu


também pode sentir, nesta obra
publicada em 1748, um esboço das
ideias desenvolvidas em 1764 por
Beccaria, em seu tratado Dos Delitos e
Das Penas, promovendo uma justiça
mais humana, menos diretamente
corporal, nas qual as penas (e não mais
punições, observe a mudança na
terminologia) seriam diretamente
proporcionais aos delitos. Beccaria
condenará radicalmente as penas
infames. Em uma cidade justa, a justiça
tem um objetivo supremo: prevenir o
mal social da crime por leis específicas
124 | Para Onélia Queiroga

e penas moderadas e proporcionais aos


delitos. (HIGELIN-FUSTÉ, 2011, p. 85.
Tradução nossa)19.

De forma que o pensamento de Montesquieu, sobre


racionalização da repressão penal, mitigação das penas,
proporcionalidade entre as penas e os delitos, está presente
em Beccaria, que se serve, a mais, das ideias de Helvétius.
Em especial o utilitarismo que conduz a racionalização do
sistema penal, o qual objetivava fazer com que a pena, além
da finalidade de prevenção do crime, deveria conduzir os
interesses individuais para o interesse comum, que deveria
ser determinado pelo Legislador.
Por óbvio que a filosofia utilitarista extrapola o
campo do Direito Penal. O utilitarismo propõe que a
sociedade é tida por boa quando a média de felicidade20 se

19 No original: Le lecteur attentif de Montesquieu peut en outre sentir,


dans cette oeuvre publiée en 1748, une ébauche des idées développées en
1764 par Beccaria, dans son traité Des délits et des Peines, faisant la
promotion d’une justice plus humaine, moins directement corporelle,
dont les peines (et non plus châtiments, notons le glissement
terminologique) seraient directement proportionnées aux délits. Beccaria
condamnera de manière radicale les peines infâmantes. Dans une cité
juste, la justice vise un but suprême : prévenir le mal social du crime par
des lois précises et des peines modérées et analogiques aux délits.
20 Sobre o que é utilitarismo, John Stuart Mill (2020, “n.p.”) explicita: “O

credo que aceita a utilidade, ou o Princípio da Maior Felicidade, como


fundamento da moralidade, defende que as ações estão certas na medida
em que tendem a promover a felicidade, erradas na medida em que
tendem a produzir o reverso da felicidade. Por felicidade, entende-se o
prazer e a ausência de dor; por infelicidade, a dor e a privação de prazer.
É preciso dizer muito mais para dar uma visão clara do padrão moral
estabelecido por esta teoria - em particular, que coisas inclui ela nas
Liber Discipulorum | 125

mostrar adequada, ainda que exista gritante diferença ente o


sujeito mais feliz e o extremamente feliz. Trata-se, assim, de
maximizar a soma total do bem social.
Sobre o utilitarismo jurídico-penal, Bryan Devos e
Francisco Véras Neto (2019, p. 3) o dividem em utilitarismo
ilustrado, onde inserem Jeremy Bentham e Cesare Beccaria, e
utilitarismo reformado, onde está Luigi Ferrajoli.
Os mencionados autores vislumbram a perspectiva
utilitarista como fundamento para o Direito Penal na obra
de Beccaria:

O utilitarismo jurídico-penal moderno


encontra suas principais formulações
no século XVIII, em especial na
contribuição de dois autores. Em
Milão, Cesare Bonesana, o Marquês de
Beccaria, publica em 1764 o seu tratado
Dos Delitos e Das Penas, no qual se
encontra provavelmente a mais ampla
e aprofundada crítica das práticas
punitivas de seu tempo. Já na
Inglaterra, Jeremy Bentham escreve a
sua Introdução aos princípios da moral

ideias de dor e de prazer e em que medida isso ainda é uma questão em


aberto. Mas essas explicações suplementares não afetam a teoria da vida
em que esta teoria da moralidade se baseia - nomeadamente, a ideia de
que o prazer e a isenção de dor são as únicas coisas desejáveis como fins,
e de que todas as coisas desejáveis (que são tão numerosas no esquema
utilitarista como em qualquer outro) são desejáveis ou pelo prazer
inerente em si mesmas ou enquanto meios para a promoção do prazer e
da prevenção da dor”.
126 | Para Onélia Queiroga

e da legislação em 1780, na qual opera


uma severa defesa da perspectiva
utilitária no âmbito das relações
governamentais. Em ambas as obras,
guardadas suas particularidades,
vislumbramos uma defesa da
perspectiva utilitária para a
fundamentação do Direito Penal, assim
como a designação de uma finalidade
preventista geral negativa à pena.
(DEVOS, VÉRAS NETO. 2019, p. 11).

No mesmo norte, Silva Sanches destaca que


conteúdos econômicos muito precisos são a base das
reconhecidas teses de autores como Bentham, Beccaria ou
Feuerbech, e nos remete à declaração conclusiva de Gary
Becker:

Para que o leitor não se assuste pela


aparente novidade de que a conjuntura
‘econômica’ pode induzir ao
comportamento ilegal, cabe lembrá-lo
de dois importantes estudiosos da
criminologia, durante os séculos
dezoito e dezenove, Beccaria e
Bentham, os quais aplicaram
explicitamente fórmulas econômicas.
Infelizmente, tal abordagem perdeu o
prestígio durante os últimos cem anos,
Liber Discipulorum | 127

e meus esforços podem ser vistos como


uma ressurreição, uma modernização,
e assim espero que haja um
aprimoramento desses estudos
tradicionais e pioneiros. (SILVA
SANCHES, 2004, p. 3).

Entretanto, o autor espanhol vislumbra a dificuldade


para se conciliar cálculos de custo/benefício com princípios
de liberdade, dignidade ou proporcionalidade. E,
especificamente dentro das normas penais, verifica-se que os
custos do delito para o delinquente não são dados
diretamente pela gravidade da pena – se assim o fosse,
bastaria prever pena de morte para todos os delitos. Mas sim
pelo produto da gravidade pela probabilidade de ser
descoberto e punido.
Tal assertiva é atribuída a Cesare Beccaria, que
ressalta a respeito da punição, ainda que menor, sendo certo,
ser mais eficiente:

Não é o rigor do suplício que previne


os crimes com mais segurança, mas a
certeza do castigo, o zelo vigilante do
magistrado e essa severidade inflexível
que só é uma virtude no juiz quando as
leis são brandas. A perspectiva de um
castigo moderado, mas inevitável
causará sempre uma forte impressão
mais forte do que o vago temor de um
128 | Para Onélia Queiroga

suplício terrível, em relação ao qual se


apresenta alguma esperança de
impunidade (BECCARIA, Edição do
Kindle, posição 613-615).

Destarte, nessa acepção utilitária, mais valeria um


castigo leve capaz de prevenir delitos futuros do que a mais
mortificante das penas, se não possuir efeito dissuasório. A
certeza da punição seria mais eficaz do que qualquer
previsão de punição, por mais severa que seja, que pudesse
ser burlada e não cumprida.
Em se considerando que o pensamento de Beccaria se
fulcra em um matiz utilitarista, poderia ser considerado,
para além disso, dentro da época que lhe foi própria, em um
viés desenvolvimentista?
Busquemos entender na seção que se segue.

4 SOBRE IDEIAS DESENVOLVIMENTISTAS EM


BECCARIA

Ao utilitarismo, opõe-se John Rawls, cuja obra “Uma


teoria da justiça”, surgida a partir das teorias
contemporâneas de justiça social, fez nascer as políticas
públicas. É a partir da obra dele que surge o temos hoje
como Teoria do Desenvolvimento.
A solução dada pelo utilitarismo para a solução dos
conflitos dos homens seria o somatório da felicidade
individual com uma média adequada. Tal não é a solução
mais adequada para Rawls, que combatia o utilitarismo
Liber Discipulorum | 129

apresentando a justiça como equidade fulcrada em dois


princípios. O primeiro seria distribuir igualmente as
liberdades básicas, ainda que a soma total seja menor do que
aquela do utilitarismo. O segundo princípio prevê a
possibilidade de desigualdades em outros bens
socioeconômicos quando sejam vantajosas para todos, ainda
que, no somatório, a riqueza total seja menor.
O professor indiano, Amartya Sen, vencedor do
Prêmio Nobel de Economia do ano de 1998, em muito se
baseia nele para fincar sua Teoria do Desenvolvimento como
Liberdade, que concebe a noção de desenvolvimento para
além do crescimento econômico, como processo contínuo de
extensão da liberdade.
A ideia clássica de Amartya Sen é a da capacidade,
para além da liberdade. Esta deve dar condições para que
aquela se desenvolva de forma duradoura. O somatório de
ambas conduz à sustentabilidade.
A dimensão que ele confere à liberdade é a mais
ampla possível, deve significar expansão das capacidades do
indivíduo. E o desenvolvimento a deve considerar como
elemento constitutivo básico:

A análise do desenvolvimento
apresentada neste livro considera as
liberdades dos indivíduos os
elementos constitutivos básicos. Assim,
atenta-se particularmente para a
expansão das “capacidades”
[capabilities] das pessoas de levar o
130 | Para Onélia Queiroga

tipo de vida que elas valorizam – e com


razão. Essas capacidades podem ser
aumentadas pela política pública, mas
também, por outro lado, a direção da
política pública pode ser influenciada
pelo uso efetivo das capacidades
participativas do povo. Essa relação de
mão dupla é central na análise aqui
apresentada. (SEN, posição 379).

Para Amartya Sen, ter a opção de escolha não


significa, necessariamente, ter liberdade. Para além disto,
faz-se mister que haja os meios suficientes para se alcançar a
escolha. Nem todos as pessoas que almejam cursar uma
faculdade, por exemplo, terão tal oportunidade. Nem todos
os indivíduos que desejem aprender a nadar, apesar de ser
naturalmente possível tal aprendizado, terão os meios
necessários para tanto.
Não podemos olvidar que há grande vácuo entre a
modernidade do pensamento de Beccaria (1764) e aquela de
Amartya Sen (1999).
Mas, vejamos que há certa aproximação entre ambos.
O matiz utilitarista de Beccaria é minimizado por
Miguel Tedesco Wedy (2016, p. 117), o qual, após destacar o
perfil utilitarista de Bentham, discorre sobre o marquês. E
verifica que, apesar de apresentar alguma característica
utilitarista, a obra de Beccaria não pode se abater a tal
enfoque, já que seu pensamento é dono de outros critérios
mais aproximados com rudimentos de Justiça.
Liber Discipulorum | 131

Beccaria, lembrado por Miguel Tedesco Wedy (2016,


p. 117), adiante do utilitarismo, prega que a pena deva ser
regida por critérios de necessidade, subsidiariedade e
proporcionalidade. Nisto se verifica o caráter equitativo da
pena – sua feição humana que não se coaduna com a
eficiência garantista.
De fato, Beccaria, já na introdução de sua obra,
expressa que as leis deveriam almejar o bem estar da
maioria:

Abramos a história, veremos que as


leis, que deveriam ser convenções
feitas livremente entre homens livres,
não foram, o mais das vezes, senão o
instrumento das paixões da minoria,
ou o produto do acaso e do momento,
e nunca a obra de um prudente
observador da natureza humana, que
tenha sabido dirigir todas as ações da
sociedade com este único fim: todo o
bem-estar possível para a maioria.
(BECCARIA, edição do Kindle, posição
86-88).

A lei, sendo resultado de pactos entre homens livres,


deveria garantir segurança e igualdade. A modernidade do
pensamento de Beccaria é destacada por Audrey Higelin-
Fusté (2011, p. 115):
132 | Para Onélia Queiroga

Para Beccaria, a lei deve resultar de


“pactos celebrados entre homens
livres”, limitando o despotismo e
assegurando a cada um segurança e
igualdade. Trata-se de um verdadeiro
contrato social dos direitos de punir. A
modernidade do pensamento de
Beccaria é ilustrada de maneira
flagrante em seu combate pela
descriminalização da
homossexualidade e do suicídio. Para o
filósofo, a modernização do direito de
punir deve implicar a secularização
dos delitos que doutrina clássica
qualifica como infrações religiosas ou
morais. (HIGELIN-FUSTÉ, 2011, p. 85.
Tradução nossa)21.

De forma que, diante do cenário histórico que havia


diante de si, Beccaria, indiscutivelmente, deu novo enfoque
ao Direito Penal, fazendo surgir um cânone compreensivo
de verniz utilitário que é visto até hoje, embora em crise
(DEODATO, 2012, p. 83).

21No original: Pour Beccaria, la loi doit résulter de « pactes conclus entre
des hommes libres » limitant le despotisme et assurant à chacun sécurité
et équité. Il s’agit là d’un véritable contrat social des droits de punir. La
modernité de la pensée de Beccaria s’illustre de manière flagrante dans
son combat pour la dépénalisation de l’homosexualité et du suicide.
Pour le philosophe, la modernisation du droit de punir doit impliquer la
sécularisation des délits que la doctrine classique qualifie d’infractions
religieuses ou morales.
Liber Discipulorum | 133

Não se pode negar que foi um marco de


adiantamento, de acréscimo, de modernidade. De
desenvolvimento mesmo. Ainda que o utilitarismo que lhe
tenha servido de base, hoje, já não mais se sustente.
Sempre em evolução, como não poderia deixar de ser,
a noção de desenvolvimento agora se opõe ao utilitarismo.
Mas, não devemos olvidar a riqueza que o Direito Penal
herdou do iluminismo.

Uma nova justiça penal não tem por


que renegar o paradigma de vertente
liberal herdado do Iluminismo. Tem
que o superar. Desde logo – em
primeiro lugar -, tendo em atenção que
as recentes transformações do mundo e
da vida em sociedade – e com elas, os
novos traços da realidade
criminológica – devem ter tradução em
modificações importantes da política
criminal. O direito penal tem de estar
preparado para dar resposta a
solicitações instantes e não se esconder
em falsos purismos. (RODRIGUES,
2006, p. 300).

De forma que a obra de Beccaria, majoritariamente


vista com importância ímpar para a História do Direito
Penal, pode ser vislumbrada sob um viés
desenvolvimentista, aquele possível para a época.
134 | Para Onélia Queiroga

E, da mesma forma, que os hodiernos historiadores


do Direito abram suas visões para as novas concepções de
desenvolvimento, sempre com foco na proteção dos direitos
dos homens. De tal forma que, em alguns séculos, mesmo
quando ultrapassadas as atuais bases, o cerne
desenvolvimentista possa ser vislumbrado.
E não só vislumbrado, mas sempre perseguido.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como dito, a inquietação que originou o presente


artigo residiu em conciliar a História do Direito Penal com o
foco desenvolvimentista do PPGD UNIPÊ.
Iniciadas as pesquisas – apenas iniciadas, uma vez
que o horizonte que pode ser alcançado vai muito além do
que foi visto aqui – vislumbramos em Dos Delitos e Das
Penas um quê desenvolvimentista que fez de Beccaria o
autor ímpar que é para o Direito Penal moderno.
Assim é que, verificando que o tema da humanização
da justiça, em especial das penas, está presente de forma
central no Marquês, vislumbramos certa fumaça
desenvolvimentista em sua obra.
Dentro da época que lhe foi própria, seu cariz é, de
fato, utilitarista. Mas, tal não conduziria necessariamente à
impossibilidade de ser desenvolvimentista.
Hodiernamente, a Teoria do Desenvolvimento como
Liberdade, de Amartya Sen, cuja defesa é a da liberdade com
uma dimensão a mais ampla possível, nos remete ao
moderno pensamento sobre desenvolvimento que tem por
Liber Discipulorum | 135

elemento básico as liberdades dos indivíduos. Liberdade não


só como opção de escolha, mas que tenha meios suficientes
para alcançar tal escolha.
Não olvidamos que há grande vácuo entre a
modernidade do pensamento de Beccaria (1764) e aquela de
Amartya Sen (1999). Mas, entendemos que há certa
aproximação entre ambos.
Ainda que o utilitarismo que serviu de base à
Beccaria, atualmente, já não mais se sustente, é possível
enxergar que ele, à sua época, foi um marco de
adiantamento, de acréscimo, de modernidade. De
desenvolvimento mesmo.

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Edição do Kindle.
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DEODATO, Felipe Augusto Forte Negreiros. Lições de
direito penal: volume I. Curitiba: Juruá, 2015.
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136 | Para Onélia Queiroga

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138 | Para Onélia Queiroga

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Liber Discipulorum | 139

CONTRIBUTOS DE FEUERBACH E LISZT PARA A


HODIERNA COMPREENSÃO DO DIREITO PENAL
PÁTRIO

Hioman Imperiano de Souza22

RESUMO: O presente artigo acadêmico visa apresentar


considerações acerca de teorias derivadas dos pensamentos
de Paul Johann Anselm Ritter von Feuerbach e Franz
Eduard Ritter von Liszt ao direito penal brasileiro, bem
como suas respectivas contribuições e ingerências internas.
Sob um estudo bibliográfico e dedutivo, percebe-se que
ambos os doutrinadores alemães se notabilizaram por suas
especificidades científicas nas respectivas áreas de atuação
teórica, como sendo o desenvolvimento de correntes acerca
dos delitos e também das penas, a partir suas motivações e
erais necessidades. Vê-se ainda que o desenvolvimento de
suas teorias serviu na construção dos alicerces jurídico-
penais nacionais, ao qual se perfazem como verdadeiras
ferramentas de operacionalização e aplicação do direito.
Logo, relevante refletir acerca das conotações e implicações
trazidas por von Feuerbach e von Liszt para melhor
compreender o atual modelo dogmático penal.

22 Doutorando em Direito pelo Programa de Pós-Graduação Stricto


Senso em Ciências Jurídicas (PPGCJ) da Universidade Federal da
Paraíba (UFPB). Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio
Grande do Norte (UFRN). Especialista em Direito pela Universidade
Estadual da Paraíba (UEPB), Escola Superior da Magistratura da Paraíba
(ESMA-PB) e Fundação Superior do Ministério Público da Paraíba
(FESMIP-PB).
140 | Para Onélia Queiroga

Palavras-chave: Feuerbach. Liszt. Dogmática Penal.

1 INTRODUÇÃO

O pensamento dogmático alemão trouxe


incontáveis contribuições ao conhecimento científico ao
longo das eras e dentro do espectro jurídico não foi
diferente, cujas doutrinas inclusive influenciaram
sobremaneira o ordenamento nacional, quer a nível
constitucional, quer legal.
Destacam-se neste trabalho dois notáveis juristas
naturais da Alemanha, os quais, embora tendo vivenciado
épocas distintas, com pensamentos próprios e sob a regência
de circunstâncias peculiares, preconizaram teorias que até os
dias atuais se fazem presentes na sistemática do direito
brasileiro.
Falaremos, a seguir, breve e mais detidamente, de
Paul Johann Anselm Ritter von Feuerbach e Franz Eduard
Ritter von Liszt, expondo suas principais ideias, obras e
reflexões, valendo-se, para tanto, de uma pesquisa
eminentemente documental, seja na literatura internacional
e também pátria.
Veremos, portanto, as ingerências do pensamento
de Feuerbach e Liszt no modelo atual de direito penal, com
referências específicas de igual forma aos textos normativos
de sua inserção.
Liber Discipulorum | 141

2 PRELEÇÕES DE v. FEUERBACH

Paul Johann Anselm Ritter von Feuerbach, jurista


alemão, nascido em Hainichen nos idos de 1775, vivendo até
o ano de 1833, cuja morte ocorreu na cidade de Frankfurt am
Main, classificado pela doutrina como pertencente a um
momento pré-clássico, desenvolveu relevantes tópicos da
dogmática penal.
Em 1808 foi conselheiro privado e no período
compreendido entre 1814 a 1817 escolhido vice-presidente
do Tribunal de Recurso de Bamberg, tendo ainda neste
último ano sido nomeado presidente do Tribunal de Recurso
de Ansbach, cargo que ocupou até sua morte.
Foi ainda foi o autor responsável pela criação do
Código Penal da Baviera no ano de 1813 - Strafgesetzbuch
für das Königreich Bayern - quando ordenado pelo rei
Maximilian Joseph, além de fundador da denominada
“teoria da dissuasão/coação psicológica” (psychologische
Zwangstheorie23) e também de uma psicologia criminal
moderna (Seelenkunde)24 para a investigação de crimes,
circunspecta ao direito penal na Alemanha.
Durante a codificação penal bávara trouxe uma
nova visão/ressignificação à doutrina daquela época,

23 Cf. GRECO, Luís. Lebendiges und Totes in Feuerbachs Straftheorie:


Ein Beitrag zur gegenwärtigen strafrechtlichen Grundlagendiskussion.
Berlim: Duncker & Humblot Verlag, 2009, p. 41.
24 RADBRUCH, Gustav. Feuerbach als Kriminalpsychologe -
Monatsschrift für Kriminologie und Strafrechtsreform, vol. 6, no. 1, 1909,
pp. 1/9. https://doi.org/10.1515/mks-1909-060103.
142 | Para Onélia Queiroga

traduzindo-se em verdadeira humanização da justiça e


abolição formal da tortura.
Mas, von Feuerbach não se limitou a esta
elaboração legislativa penal, como igualmente havia se
comprometido a preparar um Código Civil para a Baviera,
cujo fundamento remontava ao Código Napoleônico de
1804, embora a ideia não tenha realmente chegado ao seu
desiderato.
Pode-se dizer que von Feuerbach detinha ideias
originais de cunho liberal, o qual preconizou um modelo
racional da atuação punitiva estatal a partir da “teoria
objetiva da punição”. Nestes passos, pensava o doutrinador
que o objetivo estatal é a coexistência humana em
consonância às leis jurídicas, de modo que a pena serviria
como meio coercitivo, físico e psicológico, para punir e
evitar o crime.
De modo mais específico, v.g., prelecionava que as
ações utilizadas no crime em sua modalidade tentada
traziam consigo uma relação causalística com o resultado
pretendido, de maneira que, para que fosse comprovado o
perigo concreto causado ao bem jurídico deveria ser tomado
como base uma observação posterior para se poder
efetivamente valorar o perigo. Logo, há restrição da
punibilidade àqueles atos de execução, excluindo-se,
portanto, a possibilidade de punição da tentativa
absolutamente inidônea.
Como se pode observar, Anselm von Feuerbach foi
um pensador influente, o qual revolucionou todos os
conceitos do direito e da ciência penal de seu tempo, sendo o
Liber Discipulorum | 143

responsável por formalizar e definitivamente impulsionar o


surgimento dos brocardos jurídicos “Nulla poena sine
lege”, “Nulla poena sine crimine” , “Nullum crime sine
poena legali”25, tornando-se um verdadeiro princípio no
atual ordenamento jurídico, cuja pretensão era a de
questionar o despotismo e um poder supremo antes sem
quaisquer limitações; além de ser reconhecido igualmente
como um dos fundadores da moderna ciência do direito
penal, fulcrada na ideia de Estado de Direito
(Rechtsstaatsprinzip).26
Percebe-se que, durante sua trajetória de vida,
considerando a vigência do absolutismo monárquico, o
cidadão pouco detinha de influência em seu meio, cujos
poderes se concentravam nas mãos de um único líder,
ilimitadamente, de modo que Feuerbach combateu esta
completa falta de balizas que só beneficiava o governante,
incompatível, pois, com a liberdade e com a lei e que este
desrespeito aos limites desaguava em uma concreta lesão,
caracterizando-se, então, como crime.
Nestas circunstâncias, esta sujeição infinita e
incondicional do povo ao absolutista desaguava tanto em

25 Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de


1988: “Art. 5º. (...)XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina,
nem pena sem prévia cominação legal”. Decreto-Lei n. 2.848, de 07 de
dezembro de 1940 (Código Penal brasileiro): “Art. 1º - Não há crime sem
lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal”.
26 Cf. HÖRNLE, Tatjana, Foundational Texts: P.J.A. Von Feuerbach and

His Textbook of the Common Penal Law (1801) (March 1, 2013). M.


Dubber (ed.), Foundational Texts in Modern Criminal Law, Oxford
University Press 2014, Available at SSRN:
https://ssrn.com/abstract=2999796.
144 | Para Onélia Queiroga

uma impossibilidade moral como em uma impossibilidade


jurídica, referindo-se aquela à viabilidade de se valer dos
indivíduos como simples mecanismo discricionário, é dizer,
a coisificação humana; enquanto que a última se refere à
oposição do direito com a liberdade. Haveria,
sinteticamente, uma contradição do poder consigo mesmo
(na figura do monarca).

Quem excede os limites da liberdade jurídica


comete uma lesão jurídica ou injúria. O que
lesiona a liberdade garantida pelo contrato
social e assegurada por leis penais, comete um
crime. Portanto, crime é, no sentido mais
amplo, uma lesão contida em uma lei penal, ou
uma ação contrária ao direito do outro,
cominada em uma lei penal. Os insultos
também são possíveis fora do Estado, mas os
crimes são unicamente dentro do Estado
(GOMES, 2019, p. 232).

Para Feuerbach, o Estado só protege os direitos,


sendo a liberdade dever do ser humano, por ser justamente
a condição formal de originação de todos os demais direitos
e, portanto, a lesão a liberdade é uma degradação da
natureza racional humana27.

27“Feuerbach desenvolve mais tarde a sua teoria do delito como violação


de direitos – cf. FEUERBACH, Lehrbuch (ob. cit., nota 25), § 21: ‘Quem
transgride os limites da liberdade jurídica, comete uma violação de
direitos, uma injúria (lesão). Quem viola a liberdade garantida pelo
contrato estatal e garantida pelas leis penais, comete um crime’ ”
Liber Discipulorum | 145

Note-se que a sua postura representou um grande


salto de civilidade, pois de algum modo delimitou a
incriminação e o arbítrio estatal-monarquista, posto que o
delito não mais era visto como pura e simples lesão a um
dever para com o Estado, igualmente se despindo de
conotação ético-religiosa, passando a ter fundamento na
violação ao “Contrato Social”28, onde a reprimenda
correlata, i.e, a pena, encontrou seu alicerce na
desvalorização de uma lesão jurídica.
Neste diapasão, à vista do compromisso assumido
pelo indivíduo para com o Estado, depositando neste a
confiança de organizar a sociedade, igualmente cede ao
mesmo a preservação da ordem, em cuja intervenção penal

(RENZIKOWSKI, Joachim. Pena e direito penal em kant: nove teses.


Trad. Beatriz Corrêa Camargo e wagner Marteleto Filho. Revista do
Instituto de Ciências Penais, Belo Horizonte, v. 7, n. 1, p. 1-23, 2022. Doi:
10.46274/1809-192XRiCP2022v7n1p1-23).
28 O denominado pensamento contratualista se consubstancia como

uma corrente filosófica destinada a compreender as condições que


deram origem as sociedades civilizadas. Os doutrinadores desta
concepção, destacando-se o filósofo britânico John Locke, dedicavam-se
a entender questões voltadas a natureza do ser humano e os modelos de
agrupamentos sociais de convivência. Em síntese, o contratualismo tinha
como ponto de partida o fato de o ser humano ser detentor de certas
características inatas a partir de seu nascimento, fruto da própria
condição humana. Neste contexto, o surgimento da sociedade se derivou
de um “acordo tácito” entre a maioria dos indivíduos, que encerrou o
chamado “estado de natureza” onde os seres humanos se encontraram
de início (cuja predominância dos instintos naturais regiam suas
posturas), culminando na fundação do Estado civil. “Toda a
humanidade aprende que, sendo todos iguais e independentes, ninguém
deve lesar o outro em sua vida, sua saúde, sua liberdade ou seus bens”
(LOCKE, J. Segundo Tratado Sobre o Governo Civil. Rio de Janeiro:
Vozes, 1994).
146 | Para Onélia Queiroga

seria realizada apenas na ocorrência da prática criminosa.


Assim, era inaceitável, a princípio, o agir do Estado quando
não houvesse concreta e efetiva violação de bens jurídicos
contra si – “teoria da lesão jurídica”
(Rechtsverletzungstheorie).29
Como se pode observar, ao esboçar um conceito
material de delito, vale dizer, uma “lesão” decorrente de
uma conduta e não simplesmente como descumprimento
mandamento legal, Von Feuerbach estabelece que o crime
seria o vilipêndio de um direito subjetivo anteriormente
previsto em lei que teria como consequência/retribuição
jurídica uma pena.
Ainda dentro de seu espectro cognitivo, este
doutrinador cunhou a denominada “teoria da
restrição/coação psicológica” (psychologische
Zwangstheorie), construindo uma concepção de prevenção
geral, atribuindo à pena o objetivo de intimidar o pretenso
criminoso, mediante ameaças, antes mesmo do cometimento
do delito, sabendo de que a retribuição que teria
posteriormente seria inflexível. Com isso, supunha que

29 “FEUERBACH, [Paul Johann] Anselm (Ritter von). Lehrbuch des


gemeinen in Deutschland gültigen peinlichen Rechts. Giessen: Heyer,
1847, p. 45 ss. Cita-se, frequentemente, o texto de Johann Michael Franz
Birnbaum Über das Erforderniß einer Rechtsverletzung zum Begriffe
des Verbrechens (“Sobre a necessidade de uma violação de direito para o
conceito de crime”) como a origem da doutrina do bem jurídico
(Rechtsgut) na ciência penal alemã” (CASTRO, Alexander de. O
princípio da insignificância e suas vicissitudes entre a Alemanha e Brasil:
análise de um caso de inadvertida criatividade jurídica (1964-2016). Rev.
Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 74, pp. 39-64, jan./jun. 2019).
Liber Discipulorum | 147

eventuais transgressores, diante desta situação, eram


estimulados a não realizar a conduta delitiva.
Para Neto (2018), adota-se a premissa kantiana
sobre a dualidade do Ser Humano, pois “como homo
phaenomenon, como parte do mundo dos sentidos, ele é
determinado; e como homo noumenon, como parte do
mundo das ideias, ele é livre”30.
Logo, para muito além de apenas consistir em uma
retribuição ao criminioso pelo mal causado por sua conduta,
a pena assumiria o escopo de conter um forte efeito
inibitório capaz de atingir a generalidade dos indivíduos,
afastando-os do cometimento de delitos e, por esta razão,
deveria ser preocupação estatal justamente impedir
psicologicamente todo aquele que tem tendências

30 Cf. NETO, Silvio Leite Guimarães. Uma teoria da pena baseada na


vítima – a busca pela satisfação do indivíduo. Dissertação de Mestrado
em Ciências Jurídico-Criminais, apresentada na Faculdade de Direito da
Universidade de Lisboa, Portugal, 2018, pp. 22/23: “GRECO, Luís.
Lebendiges und Totes in Feuerbachs Straftheorie: Ein Beitrag zur
gegenwärtigen strafrechtlichen Grundlagendiskussion. op. cit., pg. 41:
“Os seres humanos pertenceriam ao “mundo dos fenômenos” (Welt der
Phänomene) e ao “mundo das ideias” (Welt der Idee): “Ele pertence
primeiramente ao mundo dos sentidos, ao mundo dos fenômenos, que é
submetido às formas de intuição do espaço e do tempo e à regência
irrefutável da categoria da causalidade” (Ibidem, pg. 41). O mundo das
ideias “está além da nossa sensibilidade e, portanto, não está sujeito à
sua forma, na qual o tempo, como forma de sensibilidade interna, não
tem significado. E porque este mundo está além do tempo, também está
além da causalidade e de qualquer tipo de determinação. Assim,
causalidade e determinação existem apenas quando há uma comparação
entre algo anterior e algo posterior, ou seja, ambas pressupõem o tempo
(...) Assim, no mundo das ideias não há tempo, não há causalidade:
dessa forma, nesse mundo existe a liberdade” (Ibidem, pg. 42)”.
148 | Para Onélia Queiroga

criminosas a se comportar realmente de acordo com essas


inclinações.
Este impulso criminoso (FEUERBACH, 1989), pode
ser cancelado à condição de que cada um saiba que ao fato
que praticou há de seguir, ineludivelmente, um mal que será
maior que o desgosto emergente da insatisfação de seu
impulso ao fato.

Se de todas as formas é necessário que se


impeçam as lesões jurídicas, então deverá
existir outra coerção junto à física, que se
antecipe à consumação da lesão jurídica e que,
provindo do Estado, seja eficaz em cada caso
particular, sem que requeira o prévio
conhecimento da lesão. Uma coação desta
natureza só pode ser de índole psicológica”.
(FEUERBACH, 1989, p. 60).

Portanto, o combate à prática ou à ameaça de


prática delituosa deve ser concretizada tão somente através
da lei, a qual cominaria a respectiva pena a ser infligida.
Vislumbra-se claramente que o legalismo era
fundamentador tanto da limitação do poder de punir do
Estado como da liberdade de agir do cidadão, dispensando
eficácia a esta ameaça punitiva geral, operacionalizado pela
coação psicológica decorrente do comando jurídico (pena).
A pena, explica DOTTI (2010), justifica-se “pelo efeito de
intimidação que a ameaça de sua imposição ou a sua
Liber Discipulorum | 149

aplicação ou a execução concretas possam produzir no seio


da comunidade”.
Cabe seguir pontuando que em sua obra “Revision
der Grundsátze und Grundbegrifle des positiven peinlichen
Rechts”, Feuerbach (1799) definiu com claridade o vínculo
existente entre a finalidade utilitária estatal e a finalidade da
punição, onde ali formula completa e definitivamente de sua
teoria penal. É dizer que “o objetivo do Estado é a liberdade
mutável de todos os cidadãos ou, em outras palavras,
garantir aquela condição em que cada um possa exercer seus
direitos completamente protegidos de ofensas. Cada delito
contraria a natureza e o objetivo do consórcio civil e, para
atingir esse objetivo, é necessário que nenhum delito seja
verificado no Estado”31.
Na verdade, idealizava-se que o crime era típico
mecanismo proporcionador de prazer ao seu agente, ou seja,
a prática delitiva visava a satisfação útil dos interesses
próprios do sujeito, de modo que incumbia ao poder estatal
promover a respectiva resposta, esta, todavia, prévia e
analiticamente descrita em um preceito legal.
Tem-se, como se vê, que os ideais de Paul Johann
Anselm Ritter von Feuerbach percorreram não apenas a
esfera jurídico-penal em sua tecnicidade, é dizer,
preocupando-se de um lado em garantir as demandas de

31 FEUERBACH, Paul Johann Anselm Ritter von. Revision der


Grundsátze und Grundbegrifle des positiven peinlichen Rechts. Ester
Theil. Bayerrichestaats Bibliotehek, 1799 (tradução livre), disponível
em:<https://books.google.com.br/books/about/Revision_der_Grunds
%C3%A4tze_und_Grundbegrif.html?id=Vb5CAAAAcAAJ&redir_esc=y
> acesso em 25 de out de 2022.
150 | Para Onélia Queiroga

defesa social do crime, a partir de uma teoria da punição


eficiente e, também, por outro, em assegurar a máxima
autonomia ao indivíduo contra intervenções estatais
indevidas, tomando-se por base uma legislação clara e
definida voltada para a punição criminosa; mas, ainda, em
um aspecto político, tangente aos direitos fundamentais
individuais, em razão do reconhecimento e proteção de seu
valor face às arbitrariedades do Estado.

3 INCURSÕES DE V. LISZT

Franz Eduard Ritter von Liszt, jurista de


nacionalidade alemã, vivido nos anos de 1851 a 1919,
professor de direito penal e direito internacional na
Universidade de Berlim e membro do Partido Popular
Progressista na Câmara dos Deputados da Prússia e no
Reichstag, tendo iniciado seus estudos jurídicos a partir de
1869, sob forte influência do professor Rudolf von Ihering.32
Em sua obra de destaque no âmbito penal, o “Tratado
de Direito Penal Alemão” (Das deutsche Reichsstrafrecht,
renomeado posteriormente para Lehrbuch des deutschen
Strafrechts), traduziu uma perspectiva sistemática da
doutrina jurídica, embasada sobretudo em ideias liberais,
trazendo como viga mestra a finalidade do direito, é dizer:
tem como objetivo tutelar interesses da vida humana,
compreendendo-se de bens do homem a serem reconhecidos

32Também de origem alemã, trouxe considerável influência jurídica ao


ocidente, cujos estudos jurídicos iniciaram em 1836 na Universidade de
Heidelberg, sendo autor da singular obra Der Kampf ums Recht (A luta
pelo direito), vastamente reproduzida em diversos idiomas.
Liber Discipulorum | 151

pelo direito. Para Liszt (2003), o Direito tem a finalidade de


tutelar os interesses da vida humana, pois a proteção de
interesses é a essência do direito, a ideia finalística, a força
que o produz.
Contribuiu de igual forma na formação das “teorias
da pena”, afirmando que a certeza do ato de punição detém
bem mais eficácia que uma árdua e que o escopo da pena
criminal é a ressocialização social.

Para o indivíduo que pretende cometer um


crime, tanto faz que a pena cominada seja de
um mês ou de dez anos de reclusão, ou mesmo
a prisão perpétua, ou, ainda, a pena de morte.
Ele irá delinquir, seja qual for a pena, desde
que as oportunidades de impunidade lhe
pareçam satisfatórias, desde que suas
aquisições culturais lhe façam crer que o
Sistema Penal não atuará em seu caso
(ARAÚJO JÚNIOR, 1991).

Ademais, foi um dos pensadores do dogmatismo


penal responsáveis por enaltecer a noção de “bem jurídico
protegido” para fins de definição do próprio conceito de
delito, mitigando à sua época a vontade imperativa e
discricionária do Rei, trazendo ao bem jurídico justamente o
aspecto preexistente ao crime (não sendo, pois, criado pela
norma, mas por ela encontrado/reconhecido) para ser
também legitimador da atuação estatal-legislativa na
elaboração de novos tipos penais.
152 | Para Onélia Queiroga

Destarte, o bem jurídico tanto cumpria uma tarefa


dogmática, ao propiciar a interpretação da lei; como também
crítica, no momento em que aponta o que foi alvo de lesão
oriundo do injusto praticado. Vale dizer, pois: é o interesse
juridicamente tutelado (sendo o fim do direito penal), de
sorte que “todos os bens jurídicos são interesses vitais do
indivíduo ou da comunidade” (CARNEIRO, 2021, p. 408).

O direito proíbe também, dados certos


requisitos e dentro de certos limites, que se
ponham em perigo os interesses juridicamente
protegidos.” (Liszt, Franz von. Tratado de
Direito Penal Allemão. t. 1. Rio de Janeiro:
Briguiet & C. Editores, 1899, p. 220; na versão
castelhana, Liszt, Franz von. Tratado de
Derecho Penal. t. 2., 4. ed. Madrid: Editorial
Preus, 1999, pp. 336-338). Liszt refere, ainda,
condutas que envolvem ordinariamente
perigo aos bens jurídicos, mas que não são
necessariamente equivalentes aos pressupostos
gerais da lei penal. Diferente do injusto
criminal (duas primeiras hipóteses: dano e
perigo de dano), corresponderia a um injusto
policial (simples desobediência, p. ex.). (Liszt,
Franz von. Tratado de Direito Penal Allemão.
t. 1. Rio de Janeiro: Briguiet & C. Editores, 1899,
p. 220; na versão castelhana, Liszt, Franz von.
Tratado de Derecho Penal. t. 2., 4. ed. Madrid:
Liber Discipulorum | 153

Editorial Preus, 1999, p. 338). (CARVALHO,


2020, p. 411)

Ainda para Liszt (CARNEIRO, 2021, p. 416):

A ordem jurídica não cria o interesse, ele é


criado pela vida; mas a proteção do Direito
eleva o interesse vital à categoria de bem
jurídico (...) os interesses vitais resultam das
relações da vida entre os mesmos indivíduos
ou entre os particulares e a sociedade
organizada em Estado e vice-versa... a ordem
jurídica delimita as esferas de ação
(Machtgebiete) de cada um... faz da situação da
vida (Lebensverhältnis) uma situação do
Direito (Rechtsverhältnis) (...) a proteção
jurídica que presta a ordem do Direito aos
interesses da vida é a proteção pelas normas
(Normenssachtz). Bem jurídico e norma são os
conceitos fundamentais do Direito.

Inolvidável ainda reconhecer a atuação de von Liszt


na “teoria do crime”, ao tratar do denominado “causalismo
penal” (strafrechtlicher Kausalismus), conceituando ação
como sendo a causa voluntária corpórea - ou não obstativa
de alteração - no mundo fático, o que se certa maneira
transparece o pensamento de sua época, com a utilização de
leis naturais às ciências humanas (MÉDICI, 2004), colocando
o direito em contato direto com a própria vida, sendo que
154 | Para Onélia Queiroga

esta irá oferecer os critérios, os limites e a legitimidade para


intervir (CARNEIRO, 2021).
Neste sentido, em uma visão tipicamente positivista,
o delito necessariamente teria uma relação entre
ação/omissão e resultado, conectados por um liame/nexo
causal – Kausalzusammenhang.33
Para Bitencourt (2012), a partir dos estudos de von
Liszt, o naturalismo detinha consigo uma base legal,
construindo segurança jurídica e, simultaneamente,
analisava o direito in concreto, traçando a realidade no
plano jurídico; sem mencionar a inserção do elemento
“tipicidade”, onde o crime se conceituaria com a ação típica,
antijurídica e culpável.
Logo, a vontade é a causa da conduta e essa a causa
do próprio resultado, não havendo vontade referente à
produção do resultado, pois a ‘voluntas’ (ou elemento
volitivo), interior ao agente, induz a um momento corpóreo
do sujeito ativo, o qual, por certo, produz o resultado.
Trouxe ainda consigo o exame psicológico da
culpabilidade, compreendida como “ligação subjetiva” entre
o agente e o injusto, de modo que:

no direito penal trata-se somente do facto de


incorrer o agente em responsabilidade
criminal; a desaprovação da ação ao mesmo
tempo pronunciada, o juízo sobre o seu valor

33 Decreto-Lei n. 2.848, de 07 de dezembro de 1940 (Código Penal


brasileiro): “Art. 13 - O resultado, de que depende a existência do crime,
somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação
ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido”.
Liber Discipulorum | 155

jurídico ou moral (acentuado por Merkel) é –


em relação aquele facto e portanto à idéia de
culpa(bilidade) – circunstância completamente
accessoria (BATISTA, 2009).

Diz-se, então, que no causalismo penal a


culpabilidade do agente seria psicológica, encorpando os
elementos do “dolo” ou da “culpa”, os quais seriam
vislumbrados como motivações internas/psíquicas do
crime34.
Forçoso por fim pontuar que os aspectos material e
formal imputados à constituição da “antijuridicidade” foram
também introduzidos por este doutrinador, cujo injusto, no
ponto de vista formal, refletiria à violação da norma estatal
proibitivo-imperativa; ao passo que, na ótica material,
estaria consubstanciado no dano efetivo ou no perigo de
dano ao bem jurídico penalmente assegurado. Logo, uma
conduta é formalmente ilícita quando contradiz o preceito
incriminador e é materialmente ilícita quando socialmente
danosa.35

34 Decreto-Lei n. 2.848, de 07 de dezembro de 1940 (Código Penal


brasileiro): “Art. 18 - Diz-se o crime: I - doloso, quando o agente quis o
resultado ou assumiu o risco de produzi-lo; II - culposo, quando o
agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou
imperícia”.
35 “A antijuridicidade material, segundo esta concepção, não é nada mais

do que a antissocialidade da ação; que preexiste à valoração do


legislador, o qual a encontra e não a cria” (CARVALHO, Salo de. A
materialização da antijuridicidade na dogmática jurídico-penal: análise
desde a Teoria Crítica do Delito. Rev. Fac. Direito UFMG, Belo
Horizonte, n. 76, pp. 411-442, jan./jun. 2020, p. 412).
156 | Para Onélia Queiroga

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ante as considerações feitas, notou-se o quão


relevante foram os trabalhos desenvolvidos por Paul Johann
Anselm Ritter von Feuerbach e Franz Eduard Ritter von
Liszt no âmbito do direito, mormente do direito penal.
Inarredável também se aferir que as teorias criadas e
aperfeiçoadas por ambos trouxeram implicações práticas
para a construção do sistema jurídico penal nacional,
apresentando literais exposições em seu corpo normativo
daqueles pensamentos formulados por Feuerbach e Liszt.
Por esta razão, o estudo das correntes trazidas por
estes doutrinadores alemães detém vasta utilidade na
formulação dogmática do direito penal pátrio, cujo
aprimoramento se realiza diuturnamente por seus
operadores e aplicadores, seguindo-se, ainda, os passos da
doutrina e dos entendimentos jurisprudenciais nesta
trajetória construtiva.

REFERÊNCIAS

ARAUJO JUNIOR, João Marcello de. Impunidade & Cia. O


globo, 13 de maio de 1991.

BATISTA, Nilo. Cem anos de reprovação. Revista


Internacional de História Política e Cultura Jurídica, vol. 1,
núm. 1, enero-junio, 2009, Universidade Federal
Fluminense, Rio de Janeiro, Brasil.
Liber Discipulorum | 157

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal –


Parte Geral, v.1. 17ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de


05 de outubro de 1988.

_______. Decreto-Lei n. 2.848 (Código Penal brasileiro), de 07


de dezembro de 1940.

CARNEIRO, Yuri Castro. Bem jurídico penal e cultura em


Carlos Cossio: fundamentos teóricos para a reformulação
típica do art. 268 do Código Penal. Revista Vertentes do
Direito / e-ISSN 2359-0106 / vol 08. N.02 -2021.

CARVALHO, Salo de. A materialização da antijuridicidade


na dogmática jurídico-penal: análise desde a Teoria Crítica
do Delito. Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 76, pp.
411-442, jan./jun. 2020.

CASTRO, Alexander de. O princípio da insignificância e


suas vicissitudes entre a Alemanha e Brasil: análise de um
caso de inadvertida criatividade jurídica (1964-2016). Rev.
Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 74, pp. 39-64,
jan./jun. 2019.

FEUERBACH, Paul Johann Anselm Ritter von. Tratado de


Derecho Penal (trad. de Eugenio Zaffaroni y Irma
Hagemeier). Buenos Aires: Editorial Hammurabi S. R. L.,
1989 (tradução livre para o português).
158 | Para Onélia Queiroga

GOMES, Carla Silene. Bem Jurídico e Teoria Constitucional


do Direito Penal. IBCCrim -DELICTAE, Vol. 4, Nº6, Jan-Jun.
2019.

GRECO, Luís. Lebendiges und Totes in Feuerbachs


Straftheorie: Ein Beitrag zur gegenwärtigen strafrechtlichen
Grundlagendiskussion. Berlim: Duncker & Humblot Verlag,
2009.

HÖRNLE, Tatjana, Foundational Texts: P.J.A. Von


Feuerbach and His Textbook of the Common Penal Law
(1801) (March 1, 2013). M. Dubber (ed.), Foundational Texts
in Modern Criminal Law, Oxford University Press 2014.

LISZT, Franz von. Tratado de direito penal alemão.


Campinas: Russell, 2003. v. 1.

MÉDICI, Sérgio de Oliveira. Aspectos introdutórios da


teoria geral do crime. Revista Uniara, n. 15, 2004.

NETO, Silvio Leite Guimarães. Uma teoria da pena baseada


na vítima – a busca pela satisfação do indivíduo. Dissertação
de Mestrado em Ciências Jurídico-Criminais, apresentada na
Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Portugal,
2018.

NETO, Antônio Salomão e DAVID, Décio Franco. Reflexões


sobre a pena em Hegel: (in)compreensão e dificuldade de
superação. Revista Justiça e Sistema Criminal, v. 10, n. 18, p.
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Liber Discipulorum | 159

RADBRUCH, Gustav. Feuerbach als Kriminalpsychologe -


Monatsschrift für Kriminologie und Strafrechtsreform, vol.
6, no. 1, 1909.

RENZIKOWSKI, Joachim. Pena e direito penal em kant:


nove teses. Trad. Beatriz Corrêa Camargo e wagner
Marteleto Filho. Revista do Instituto de Ciências Penais, Belo
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SILVA, Ivan Luiz da. O bem jurídico-penal como limite


material à intervenção criminal. Revista de Informação
Legislativa do Senado Federal. Ano 50, Número 197
jan./mar. 2013.
160 | Para Onélia Queiroga

TEORIA DO DOMÍNIO DO FATO: CONSIDERAÇÕES


SOBRE A CONCEPÇÃO DE HANS WELZEL E CLAUS
ROXIN

Ana Angélica Bezerra Cavalcanti36

Resumo: A expressão “domínio do fato” e “domínio sobre o


fato” foi empregada por vários autores ao longo dos anos,
considerando-se que foi utilizada pala primeira vez no
Direito Penal em 1915 por Hegler. Posteriormente, outros
autores, cada um com as suas especificidades, foram
delineando o que se entende por tal instituto. Neste ínterim,
podemos citar, além do primeiro, Bruns, Max Weber, Adolf
Berges, Adolf Lobe, Schmidt, Hans Welzel e, finalmente,
Claus Roxin. O presente estudo sobre a teoria do domínio do
fato delimita os seus principais. Primeiramente, partindo-se
da análise histórica da sua nomenclatura e o seu uso pelos
autores citados. Em seguida, apresenta o domínio final do
fato como critério para a delimitação da autoria na
perspectiva finalista Welzeliana, esclarecendo o que tal autor
entende por autoria direta, coautoria e autoria mediata,
mencionando-se ainda as principais críticas à sua concepção.
Na sequência, há a explanação da teoria funcionalista-
normativista de Roxin com todos os seus delineamentos:

36Tabeliã e Registradora do Estado da Paraíba. Doutoranda em Ciências


Jurídicas e Sociais pela UMSA - Universidad del Museo Social
Argentino. Mestranda em Direito e Desenvolvimento Sustentável pelo
UNIPÊ. Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela FAERPI -
Faculdade Entre Rios do Piauí. Graduada em Direito pela Universidade
Federal da Paraíba - UFPB. E-mail: angelicabezerra@hotmail.com
Liber Discipulorum | 161

domínio da ação, domínio da vontade e domínio funcional e


a sua correspondência com as figuras da autoria direta,
coautoria e autoria mediata, e neste último aspecto, explica-
se os desdobramentos do domínio da vontade em virtude de
coação, erro e aparatos organizados de poder. Como
metodologia aplicada, este artigo tem como base o método
dedutivo e a pesquisa bibliográfica.
Palavras-chaves: Domínio do fato. Autoria direta. Autoria
mediata. Coautoria.

1 INTRODUÇÃO

A análise da teoria do domínio do fato pressupõe o


desenvolvimento das expressões “domínio do fato” e
“domínio sobre o fato” e, partindo dessa premissa, podemos
estabelecer que tais conceitos foram utilizados pela primeira
vez em 1915 por Hegler em sua teoria da culpabilidade.
Posteriormente, surgiram as concepções causais,
notadamente, a teoria subjetiva, em Bruns e Weber;
seguindo de uma concepção crítica de Lobe e a noção de
dever em Schmitd. Esses diferentes pontos de início da
análise no que se refere a tal teoria provocou um complicado
cenário histórico-dogmático, de forma que a sua análise
deve partir, de forma mais acertada, da visão de Welzel.
E, na ótica de Welzel, focada em sua concepção
finalista, analisaremos o seu enfoque da autoria direta,
autoria mediata e coautoria. Já na perspectiva de Claus
Roxin também serão analisadas as mesmas dimensões
162 | Para Onélia Queiroga

citadas, mas com outras peculiaridades que a sua teoria


normativa-funcionalista nos apresenta.

2 ANÁLISE HISTÓRICA DA EXPRESSÃO DOMÍNIO DO


FATO

As expressões “domínio do fato” e “domínio sobre o


fato” foram utilizadas pela primeira vez no Direito Penal no
ano de 1915 por Hegler. Ainda que as tenha considerado
como conceitos fundamentais da dogmática, o jurista alemão
estabelecia um conceito totalmente diferente do que
atualmente se entende, uma vez que percebia o domínio do
fato como elemento da personalidade, do sujeito do crime. 37
O elemento “domínio do fato”, mesmo presente na
esfera penal à época, não nasceu como categoria específica
de aferição ou conceituação da autoria e da participação,
pois o domínio do fato integral (“volle tatherrschaft”), na
linguagem de Hegler, era considerado como um atributo
material de culpabilidade, isto é, no entendimento do autor
agia com culpabilidade apenas quem tinha o domínio do
fato38.
Entretanto, posteriormente, o próprio Hegler alterou
um pouco a sua concepção e a aproximou das orientações
atuais, pois ele transferiu o entendimento à teoria da autoria
e passou a considerar que o autor livre e capaz de imputação
era o “senhor sobre o fato em sua condição inerente”. Ainda
que tal relação de proximidade com a atualidade seja mais

37 ROXIN, Claus. Täterschaft und Tatherrschaft, p.60.


38ROXIN, Claus. Täterschaft und Tatherrschaft, p.60.
Liber Discipulorum | 163

verificada no que concerne a autoria mediata como executor


incapaz de imputação, já que não havendo ao instrumento a
capacidade de imputação, faltaria também o domínio do
fato39. No que tange a tal aspecto, Roxin pondera que Hegler
fez uso do conceito para justificar também a ideia de autoria
mediata, estabelecendo que o foco da autoria mediata está
na prevalência do homem de trás, e que, nesse instante em
que o executor age sem culpabilidade ou culposamente,
aquele é o causador ou porque era o “senhor absoluto do
fato” ou porque possuía o “domínio mais acentuado do
fato” 40.
Nesse sentido, colaciono o entendimento de Bruns,
em 1932, que usou a expressão domínio do fato para
diferenciar autoria de participação. O seu ponto principal
era de que a autoria – dolosa ou culposa- necessita, ao
menos, da possibilidade do domínio do fato que, também
deve ser ligado à conduta desde o início, de maneira que o
domínio do fato ocorre apenas quando a ação é apropriada
para provocar o resultado. Pugna ainda que na instigação e
no auxílio não existem o domínio do fato no que se refere ao
resultado final. Sendo assim, estas formas de conduta
humana são tipificadas nos tipos penais como participação
e, em cotejo com a autoria direta, possuem um viés de
injusto mínimo e retratam causas de ampliação da
punibilidade41

39 SCHROEDER, Friedrich-Christian. Der Täter hinter dem Täter.p.59.


40 ROXIN, Claus. Täterschaft und Tatherrschaft, p.61-62.
41 SCHROEDER, Friedrich-Christian. Der Täter hinter dem Täter.p.60.
164 | Para Onélia Queiroga

Roxin faz crítica ao entendimento de Burns,


afirmando que “não se pode falar de Bruns como sendo o
fundador da teoria do domínio do fato”, uma vez que as
suas considerações foram excessivamente superficiais, ao
passo de não conceituar ou delimitar o que se deve entender
como domínio do fato e nem mesmo comprovar os efeitos
práticos de sua concepção 42.
Von Weber, em 1935, também faz uso da
nomenclatura domínio do fato para argumentar o emprego
da teoria subjetiva na delimitação do conceito de autoria e
consequente distinção da participação. Logo, Weber leva o
termo domínio do fato – até então abordado de maneira
objetiva- ao campo subjetivo, afirmando ser autor quem
pratica o fato com vontade própria de dominá-lo, sendo
autor mediato quem se utiliza de outra pessoa que, por sua
vez, atua sem vontade de dominar o fato. Todavia, conforme
Roxin, Weber pratica o mesmo erro de Bruns, já que não
consegue explicar o conceito de domínio do fato por ele
aplicado43.
A ideia de domínio do fato foi ainda citada por Berges
e Lobe44. Berges não apresentou explicitamente uma teoria,
entretanto delineou o seu pensamento na concepção de que
a autoria é dominada pelo autor e que a participação é a
contribuição para o tipo dominado por outrem.
Já Lobe teve uma contribuição mais significativa, já
que delineou, pela primeira vez, um conceito de domínio do

42ROXIN, Claus. Täterschaft und Tatherrschaft, p.62.


43 ROXIN, Claus. Täterschaft und Tatherrschaft, p.63.
44 SCHROEDER, Friedrich-Christian. Der Täter hinter dem Täter.p.60-61.
Liber Discipulorum | 165

fato, estabelecendo que “a autoria se determina de acordo


com elementos objetivos e subjetivos, a saber, o querer o
resultado, o domínio e a condução fática da execução, o
animus domini e o respectivo dominare realmente a
execução”45. Entretanto, segundo o Pablo Rodrigo (2014),
Lobe desliza no conceito de autoria mediata e estabelece
uma convicção puramente formal, já que entende que há a
autoria mediata quando o agente imediato não pode ser
observado como autor. A ideia de Lobe de querer o
resultado e dominar a condução fática da execução abrange
per se a autoria mediata, e a própria concepção apresentada
por Roxin se aproxima bastante dessa interpretação.46
Em sequência, Eb. Schmidt, em 1936, estabelece que
apenas ocorre uma conduta de autor onde a orientação
intencional do agente o aponta como o senhor do fato,
entretanto entende que essa visão intencional que espelha o
domínio do fato pressupõe um dever militar específico 47.
Porém, Schmidt, da mesma forma que os demais, não
delineia, de forma clara, o que é o domínio do fato, já que a
sua subsunção está vinculada aos crimes praticados por
militares.

45SCHROEDER, Friedrich-Christian. Der Täter hinter dem Täter .p.61.


46 LOBE, Adolf; EBERMAYER, Ludwig; ROSENBERG, Werner.
Strafgesetzbuch. Leipziger Kommentar.8.Aufl,1.Bd.,Berlin: Walter de
Gruyter, 1957.p.244
47 SCHMIDT. Eberhard. Die militärische Straftat und ihr Täter, 1936,

apud ROXIN, Claus. Täterschaft und Tatherrschaft.p.53.


166 | Para Onélia Queiroga

3 DOMÍNIO FINAL DO FATO COMO CRITÉRIO PARA A


DELIMITAÇÃO DA AUTORA NA PERSPECTIVA
WELZELIANA

Welzel, em 1939, expôs a sua teoria de domínio do


fato, atrelando-a ao conceito de ação final, utilizando-se
como base duas diretrizes: a diferença entre o justo e o
injusto, calcada na definição ontológica de ação final e na de
culpabilidade; e em segundo plano, a diferença entre os
crimes dolosos e culposos já estabelecidos na tipificação
penal.
O citado autor despreza o conceito causalista da ação
e todos os seus consectários, e determina a sua ideia de ação
como relação final da vontade com o resultado. E seguindo
esta linha, ele parte do critério das estruturas lógico-reais da
‘Natur der Sache’ (natureza das coisas), logo a vontade e a
realização da vontade integravam a própria ação e a vontade
de cometer o fato como próprio sobeja por ser considerado o
elemento principal da autoria, daí afirmar que “autoria final
é a mais ampla forma de domínio do fato” 48.
No que tange ao segundo critério, percebe-se que a
diferenciação entre crimes dolosos e culposos no tipo penal
desencadeia a sua visão de que só se pode falar em autoria,
assim como em teoria do domínio final do fato quando
estamos diante de crimes dolosos, uma vez que este
considera que autor de um crime culposo é qualquer pessoa

48WELZEL, Hans. Studien zum System des Strafrechts. In: Abhandlugen


zum Strafrecht und zur Rechtsphilosophie, Berlin: Walter de Gruyter,
p.161.
Liber Discipulorum | 167

que, através de uma conduta que viola a medida exigível de


cuidado, provoca um resultado típico não desejado. Em
razão disso, a ideia de autoria, na concepção finalista, é
delineada atendendo à tripartição conceitual em autoria
direta (individual), autoria mediata e coautoria.

3.1 AUTORIA DIRETA

Para estabelecer a autoria nos crimes dolosos, Welzel


parte da crítica ao parâmetro adotado pelo Tribunal do
Reich alemã à época – e amplamente difundido por
Kohlrausch e Lange, a saber o critério da vontade do autor
(Täterwillen), isto é, da vontade de cometer o fato como
próprio.
Segundo Alflen (2014), Welzel considera que a
vontade de cometer o fato como próprio pressupõe que ele
seja “realmente” (objetivamente) obra própria do autor e,
portanto, o critério da “vontade de autor” é absolutamente
inútil por duas razões: ele não diz quando o fato é obra
própria do autor e não permite apreender a sua consciência.
O fator preponderante para o estabelecimento da
autoria é o fato objetivo, isto é, o fato que realmente tenha
sido obra do autor, mas há que se considerar como
intrínseco o momento subjetivo, qual seja, o domínio final
do fato.
Assim, para Welzel, possui o domínio do fato quem é
o senhor sobre sua decisão e execução e com isso o senhor
sobre seu ato, o qual age de forma conscientemente final em
sua essência e existência.
168 | Para Onélia Queiroga

E para caracterizar a autoria, ele considera que são


necessários os seguintes pressupostos: 1) Pressupostos
pessoais, decorrentes da estrutura do tipo: a) objetivos, tais
como a posição especial de dever do autor (funcionário
público, militar, comerciante, mãe, médico, advogado etc);
b)subjetivos, tais como intenções especiais, tendências ou
tipos de sentimentos (os chamados elementos subjetivos do
injusto); e 2) Pressuposto fático: o domínio final do fato (o
autor é o senhor sobre a decisão e sobre a execução da sua
vontade final)49
Logo, quando pela característica do tipo penal
analisado, houver a necessidade de se verificar tanto os
pressupostos objetivos como subjetivos, apenas com a
junção deles é que se pode falar em autoria.
Nesse aspecto, Alflen (2014) entende que na
concepção welzeliana, a autoria consiste na realização direta,
voluntária e conscientemente final do fato por quem, tendo
preenchidos os pressupostos pessoais objetivos e subjetivos
exigidos pelo tipo, possui o pleno domínio sobre a sua
decisão e execução.

3.2 COAUTORIA

A coautoria é a própria autoria, diz Welzel, cuja


peculiaridade consiste em que o domínio final do fato sobre
a conduta delitiva encontra-se não com um indivíduo, mas
com vários conjuntamente50

49 WELZEL, Hans. Studien zum System des Strafrechts.p.164.


50 WELZEL, Hans. Studien zum System des Strafrechts.p.169.
Liber Discipulorum | 169

Para esclarecer o assunto, ele nos encaminha à noção


de divisão de papéis (“Rollenverteilung”), explicitando que “a
melhor representação visual desta relação é a da divisão de
papéis em um plano elaborado conjuntamente” 51,
verificando-se que nenhuma das pessoas tem o domínio
pleno do fato, a não ser de seus atos individuais e, como
cada um faz a sua parte na ação, considera-se que
desempenha, também e, concomitantemente, a decisão dos
demais participantes no fato.
Ele resume afirmando que “cada autor possui o
domínio final sobre o fato”, uma vez que é codetentor da
decisão de realizar o fato e facilitar a execução através de
atos parciais organizados finalisticamente, e sendo então
autor do todo e punível pelo todo52.
Ao fixar os pressupostos para à coautoria, Welzel faz
alusão ao § 47 do Código Penal Alemão e estabelece que são
os seguintes:

a) decisão conjunta do fato: corresponde na intenção


recíproca, expressa ou tácita, entre os atores para a
prática do fato, verificando-se que tal intenção pode
ser lavada a efeito durante o curso das ações e não
apenas no seu início. Deste modo, a pessoa não seria
abarcada pelos fundamentos que agravam a pena se
já tivessem sido executados. Nesse contexto, podemos
citar o exemplo de Batista (Batista, p.104-105): A
impõe a B, apontando-lhe de longe um fuzil, que

51 WELZEL, Hans. Studien zum System des Strafrechts.p.169.


52WELZEL, Hans. Studien zum System des Strafrechts. P.170-171.
170 | Para Onélia Queiroga

fique imóvel; na ocasião C aproveita a falta de reação


de B para subtrair-lhe o dinheiro. Ressalta o jurista
brasileiro que sem a decisão comum para o fato, A
teria praticado crime de constrangimento ilegal
qualificado (art.146, §1˚, do CP) e B praticado o crime
de furto (art.155 do CP), na proporção em que com a
decisão comum, ambos teriam praticado crime de
roubo qualificado (art. 157, §2˚, I e II, CP) em
coautoria.

b) a execução conjunta do fato: cada coautor, para


Welzel, deve ser autor e, deste modo, possuir as
características pessoais (objetivas e subjetivas) do
autor, bem como o domínio do fato.

Desse modo, cada coautor deve ter a vontade


absoluta de praticar o ato em conjunto com os demais e
finalizar as contribuições dos demais para o fato, mediante a
sua contribuição. Neste caso, será coautor quem realiza uma
ação de execução, como também quem realiza atos
preparatórios de apoio, contanto que seja codetentor da
decisão conjunta do fato.
Assim, podemos compreender que, na visão
Welzeliana, a coautoria é a realização, repartida entre muitas
pessoas (execução comum), dos atos parciais de uma decisão
de ação levada a efeito por todos de forma conjunta (decisão
comum), ao passo em que cada um tem o domínio de sua
Liber Discipulorum | 171

parte, igualmente possui o domínio pleno do fato (divisão


de papéis).
De forma a deixar o entendimento ainda mais
consolidado, transcrevo o seguinte exemplo: A, no exercício
de suas atribuições de Auditor Fiscal do Tesouro Nacional,
juntamente com B, também Auditor, por ocasião da
fiscalização levada a cabo na sociedade “G” Ltda, a pretexto
de não aplicar multa exorbitante, decidem conjuntamente
exigir de C, diretor da sociedade, um montante em dinheiro,
sendo que B se empenha em convencer C da modicidade do
valor exigido.
A verificação da autoria é verificada baseada no art.
3˚, II, da Lei n˚8.137/9053, considerando em uma primeira
análise, os pressupostos objetivos e subjetivos exigidos pelo
tipo, para, então, constatar o domínio sobre a decisão
(comum) e sobre a execução (comum), por parte de A e B.

3.3 AUTORIA MEDIATA

53 Dispõe o referido artigo: “Art. 3° Constitui crime funcional contra a


ordem tributária, além dos previstos no Decreto-Lei n° 2.848, de 7 de
dezembro de 1940 - Código Penal (Título XI, Capítulo I):
I – extraviar livro oficial, processo fiscal ou qualquer documento, de que
tenha a guarda em razão da função; sonegá-lo, ou inutilizá-lo, total ou
parcialmente, acarretando pagamento indevido ou inexato de tributo ou
contribuição social;
II - exigir, solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou
indiretamente, ainda que fora da função ou antes de iniciar seu exercício,
mas em razão dela, vantagem indevida; ou aceitar promessa de tal
vantagem, para deixar de lançar ou cobrar tributo ou contribuição social,
ou cobrá-los parcialmente. Pena - reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e
multa.
172 | Para Onélia Queiroga

A autoria mediata se estabelece com a noção de


domínio final do fato por quem se encontra por trás do
instrumento, sendo que este último, em nenhuma
circunstância, pode ter o domínio pleno do fato, pois em
sentido oposto, aquele que se encontra por trás será mero
indutor ou instigador.
Welzel entende que, em relação aos três pressupostos
da autoria (pressupostos pessoais, objetivos e subjetivos e
pressuposto fático), existem 3 formatos de autoria mediata,
os quais se pautam na situação de que o instrumento que
atua finalisticamente não apresenta um dos três
pressupostos de autoria citados.
a) A autoria mediata em virtude da “falta de pressupostos
pessoais objetivos”, no caso de instrumento doloso sem a
qualificação exigida pelo tipo”, utilizado para a execução do
delito. De acordo com Welzel, em tal situação, o instrumento
pode agir de maneira consciente e voluntária, entretanto não
possui o pressuposto objetivo da qualificação fixada para o
tipo penal.
b) A Autoria mediata em virtude da falta de pressupostos
pessoais subjetivos por parte de terceiro (instrumento)
utilizado para a execução do delito; na hipótese de
“instrumento doloso sem a intenção” exigida pelo tipo.
c)A autoria mediata em virtude da falta de domínio do fato
pelo terceiro, nos casos em que: uso de terceiro que não atua
dolosamente; uso de terceiro que atua em direção ao
resultado negativo, mas não o faz livremente.
Liber Discipulorum | 173

3.4 CRÍTICAS À TEORIA DO DOMÍNIO DO FATO DE


WELZEL

Roxin critica a teoria proposta por Welzel no que


tange ao seu conteúdo material, considerando-a como um
mero desenvolvedor ulterior da teoria do dolo no sentido de
que ele substituiu o pressuposto vago da vontade do autor
pela necessidade de que o autor seja detentor da decisão
final do fato, baseando-se nas circunstâncias de que o autor
deve ter a vontade incondicionada de realização” e de que o
autor “não reconhece uma vontade dominante à sua54.
A ideia de que a conformação do ato por meio da
realização orientada metodicamente torna um autor em
senhor sobre o ato não prospera, verificando-se que Welzel
reincide no mesmo erro que ele identificou em relação à
teoria subjetiva, já que seria incapaz de responder,
satisfatoriamente, as seguintes questões: como apreender a
vontade do autor? O que significa conformar o ato de acordo
com a sua vontade? Quais circunstâncias tornam alguém em
senhor do ato, ou seja, em peça-chave da causalidade?
Portanto, a teoria do domínio do fato de Welzel não
responde a tais questões, pois o seu excesso de subjetivismo,
sustentado em sua base pela teoria finalista da ação, já que
esta tem como pressupostos ontológicos a vontade orientada
finalisticamente.
Ele considera que a percepção de domínio final do
fato só é possível quando se parte da teoria de ação
finalística e do conhecimento de que apenas possui o

54 ROXIN, Claus. Täterschaft und Tatherrschaft. p.68.


174 | Para Onélia Queiroga

domínio do fato quem domina a vontade final no seu agir,


porém o domínio dessa vontade é objetiva e
pragmaticamente difícil de serem alcançadas.
Diante da carga subjetiva e valorativa de sua
concepção, ele não estabelece um conceito descritivo de sua
teoria. Como bem retrata este ponto, Alflen (2014, p.151):

“(...) Tanto é assim que o próprio


Welzel emprega sua teoria do domínio
do fato exclusivamente em relação aos
crimes dolosos (a autoria culposa seria
a mera causação de um resultado
evitável). Resta evidenciada, portanto a
excessiva carga subjetiva no conteúdo
da concepção Welzeliana, de forma
que o lado objetivo da teoria do
domínio do fato representa unicamente
uma complementação à própria teoria
do dolo.

Aliás, como refere Roxin, o próprio Welzel


reconheceu isso, quando caracterizou sua própria concepção
de “teoria subjetiva ampliada” e disse a respeito que quando
o sentido da teoria subjetiva for compreendido em seu
conteúdo material, então a oposição contra ela cessará. Mas,
sob outro ponto de vista, Roxin chama a atenção para o fato
de welzel, em trabalho publicado em 1947 (Zur Kritik der
subjektiven Teilnahmelehre), rechaça a figura do “autor atrás
do autor”, referindo que a autoria mediata através de um
Liber Discipulorum | 175

sujeito que atua diretamente, que é autor mesmo, é um


contrassenso.
Quem determina um autor ao fato é sempre
instigador e de modo algum a vontade de autor pode torná-
lo autor.
E, quanto a isso, Welzel é absolutamente
contraditório, pois tanto no trabalho publicado em 1939
(Studien zum System des Strafrechts), quanto na edição de 1969
de seu manual (Das Deutsche Strafrecht)55, ele admite a
possibilidade de o instrumento ser um sujeito punível,
como, por exemplo, no caso de autoria mediata em virtude
da falta de pressupostos pessoais objetivo, no caso de
instrumento doloso sem a qualificação exigida do tipo, bem
como no caso de autoria mediata pelo uso de instrumento
que atua culposamente.
Desta maneira, o domínio final do fato se pauta na
ideia de que o homem, através de sua conduta comandada
pela vontade, pode realizar a conformação do futuro (curso
causal) em consonância com o fim estabelecido por si
mesmo e que esta conformação pertence a ele como obra
própria.
No sentido de melhor ponderar que a definição acima
não pode prevalecer como definidor de quem seja o autor,
cite-se o seguinte exemplo: suponha-se que um indivíduo
envia seu filho mentalmente enfermo a uma área situada no
alto de uma colina, em meio a uma tempestade, para que
seja fulminado por um raio, sendo que um raio, de fato,
atinge seu filho.

55WELZEL, Hans. Studien zum System des Strafrechts. p. 165.


176 | Para Onélia Queiroga

Pode-se dizer, com base na ideia de domínio final do


fato, que o pai é o autor? Observa-se que, apesar de o pai
dominar a conduta, estabelecida de acordo com a própria
vontade a um fim, não controlava o resultado, o qual
poderia acontecer ou não, ou ainda ocorrer de maneira
diferente do almejado. Assim, a circunstância de o autor ser
“o senhor sobre sua decisão e execução e com isso senhor
sobre seu ato, não é o bastante para caracterizar a ideia de
domínio do fato, uma vez que lhe carece o domínio acerca
do resultado jurídico-penalmente reprovável.

4 DOMÍNIO DO FATO NO SISTEMA FUNCIONALISTA-


NORMATIVISTA

A teoria acerca do domínio do fato como critério para


a delimitação da autoria desenvolvida por Roxin desde o
ano de 196356 é a maior criação edificada até então sobre o
assunto.
Para Roxin, o delinear da sua teoria assenta em 3
perspectivas fundamentais do conhecimento teórico: o
domínio do fato como conceito indeterminado; o domínio
do fato como conceito fixo e o domínio do fato como
conceito aberto.
No que tange ao primeiro aspecto, a definição de
domínio do fato, como sendo um conceito indeterminado,
deveria ser suficiente per se, sem a vinculação de outros
elementos, a ponto de a contemplação do respectivo fato
concreto já ser o bastante. Ao passo que tal perspectiva

56ROXIN, Claus. Täterschaft und Tatherrschaft, p.25


Liber Discipulorum | 177

permitiria uma decisão justa, por outro lado, teria a


improficuidade da teoria do concurso de pessoas ser
mudada totalmente ao arbítrio judicial, e com essa falta de
transparência nos critérios, desencadearia, possivelmente,
insegurança jurídica. E, nesse ponto, ele pugna que, apesar
da indeterminação, dever-se-ia manter diretrizes rígidas
para a apreciação judicial. Mas, por fim, entende Roxin57,
entretanto que tal teoria não pode ser estabelecida como um
conceito indeterminado, principalmente porque não serve
como modelo de formulação conceitual científica.
Já no que se refere ao segundo aspecto, este tem como
premissa a ideia do domínio do fato como um conceito fixo.
Segundo Roxin 58, “pode-se falar de um conceito fixo
quando ele permite se reportar conceitualmente a
determinados elementos concretos abarcáveis por meio de
um ato de subsunção aferível objetivamente”, de maneira
que, com a sua ajuda, permite-se que se chegue à solução de
qualquer caso isolado através de um procedimento
dedutivo. Mas, obviamente, Roxin não acredita que se possa
fixar uma definição precisa do domínio do fato, uma vez que
estamos diante da análise de fatos empíricos-naturais e
assim os conceitos deixam de ser uma voz absoluta.
No que tange ao terceiro aspecto, parte-se da
premissa do domínio do fato como um conceito aberto e é
considerado, para Roxin, como a mais adequada, já que é

57 O jurista alemão esclarece, no entanto, que o conceito de domínio do


fato não pode significar um conceito indeterminado de conteúdo fluido,
muito menos um conceito indeterminado de conteúdo moldado pré-
juridicamente, nem mesmo um princípio regulativo,.
58 ROXIN, Claus. Täterschaft und Tatherrschaft p.119.
178 | Para Onélia Queiroga

um meio termo das demais. Para tal autor, tal definição


“deve permitir submeter as formas tipicamente
fundamentais da multiplicidade de circunstâncias existentes
a uma regulamentação generalizante” e, ao mesmo tempo,
“oferecer a possibilidade de uma apreciação satisfatória de
casos isolados que se subtraem às normas abstratas” 59. E
isso apenas é plausível partindo-se de um domínio do fato
como conceito aberto e este, por sua vez, deve ter como
particularidades: o procedimento descritivo e o
estabelecimento de regulações.
Um conceito aberto de domínio do fato, além se de
pautar em uma descrição, que elabore conjunturas fáticas no
que se refere a participação de muitas pessoas no delito,
delineia-se também pelo fato de que “por meio do emprego
de princípios deixa em aberto espaços vazios limitados pela
apreciação judicial do caso concreto” 60. Entretanto, é
importante esclarecer que, para Roxin, “nesse contexto o
legislador, isto é, o criador de conceitos, deve se satisfazer
com algumas diretrizes e, por conseguinte, ceder ao
aplicador do direito a apreciação do caso individual de
acordo com as regulamentações dadas61.
Para ele, os tipos penais não são meras abstrações,
mas, em sentido oposto, representam a tentativa de
estabelecer a figura central do acontecimento de uma
conduta típica com todas as suas nuances pessoais, assim, “o

59ROXIN, Claus. Täterschaft und Tatherrschaft, p.123.


60ROXIN, Claus. Täterschaft und Tatherrschaft, p.125.
61ROXIN, Claus. Täterschaft und Tatherrschaft, p.125.
Liber Discipulorum | 179

autor é um componente da descrição do fato”62. E, neste


ponto, filia-se a um conceito restritivo de autor, referindo
que “correto é o conceito restritivo de autor, segundo o qual
a autoria é limitada principalmente à conduta descrita nos
tipos da parte especial.
Posto isso, informa que o legislador distingue 3
formas de autoria, a saber: a autoria direta: quem comete o
fato punível por si mesmo; a autoria mediata quem comete o
fato punível por meio de outrem e a coautoria quando vários
cometem o fato conjuntamente63
Em sua obra Autoria e Domínio do fato, Roxin
delineia a ideia de domínio do fato sob o fundamento de que
“o autor é a figura central (“Zentralgestalt”), a figura-chave
(“schlüsselfigur”) do acontecimento mediado pela
conduta”64. Já em seu Strafrecht, estabelece que o autor é
sempre “a figura central de um acontecimento executório”
(Ausführungsgeschehen”), ou seja, “a figura central da
conduta executória” (“Ausführungshandlung”) e que a
“figura central do processo delitivo é quem domina o
acontecimento dirigido à realização do delito” 65. Dito de
outra forma, declara “tem o domínio do fato e é o autor,
quem aparece como a figura central, a figura-chave na
realização do delito, por meio de sua influência decisiva
para o delito” 66. Porém, para que isso seja feito, faz-se

62ROXIN, Claus. Täterschaft und Tatherrschaft, p.528.


63 ROXIN, Claus. Strafrecht, AT. Bd, p.9.
64ROXIN, Claus. Täterschaft und Tatherrschaft, p.25, 108 e 527.
65 ROXIN, Claus. Strafrecht, AT. Bd, p.9 e14.
66 ROXIN, Claus. Strafrecht, AT. Bd, p.9 e 14.
180 | Para Onélia Queiroga

necessário relacionar o ponto diretivo metódico-formal da


figura central com as descrições do tipo penal.
O jurista acrescenta ainda que o alcance da ideia do
domínio só pode ser justificada com base na análise dos
tipos penais em espécie, já que “o domínio do fato somente
pode caracterizar a figura central do acontecimento delitivo,
quando a conduta analisada pelo legislador como digna de
pena é dominável” 67 e deixa claro que domináveis são todos
os acontecimentos cujos efeitos desaprovados se encontram
no âmbito material ou psíquico, tais como mortes, lesões
corporais, danos materiais, incêndios provocados, roubos,
cujas desfechos externos são acessíveis enquanto
configurações dirigidas.

4.1 TRIPARTIÇÃO TEÓRICA

Partindo da figura central do acontecimento típico,


Roxin descreveu um modelo tripartido de domínio do fato,
diferenciando-o entre as formas (critérios) de domínio da
ação, domínio funcional e domínio da vontade, às quais
correspondem, uma a uma, a forma de autoria: autoria
direta (ou imediata), coautoria e autoria mediata. Desse
modo, vislumbra que é autor:

a) quando realiza em sua própria pessoa a conduta


típica (domínio da ação)

67ROXIN, Claus. Täterschaft und Tatherrschaft, p.336-337.


Liber Discipulorum | 181

b) quando executa o fato por meio de outrem, cuja


vontade, com base nas direções jurídicas, não é
livre e, logo, diferentemente do homem de trás,
não entende o sentido de seu agir ou o
compreende de forma mínima ou ainda, quando
no marco de um aparato organizado de poder, é
substituível (domínio da vontade)

c) quando realiza, no curso da execução, uma


contribuição funcionalmente relevante (domínio
funcional)

4.1.1 AUTORIA DIRETA COMO DOMÍNIO DA AÇÃO

Com base nessa teoria, autor é quem preenche


integralmente o tipo por meio de sua atividade corporal. O
domínio do fato pelo domínio da ação ocorre, assim, na
situação da pessoa que por meio da sua conduta preenche,
por si mesma, todos os pressupostos do delito. Sua vertente
principal é a de que “quem pratica a conduta executória
típica é sempre autor” e “quem preenche outro elemento do
tipo, já não o é, senhor do fato” 68.
A disposição do assunto na legislação alemã aderiu a
um critério puramente objetivo para sua delimitação, como
já fiz referência, entretanto do seu teor resulta ser autor
direto também o executor direto, portanto, também o é o
instrumento no caso da autoria mediata, bastando, assim,
que ele preencha os elementos do tipo.

68ROXIN, Claus. Täterschaft und Tatherrschaft, p.139.


182 | Para Onélia Queiroga

Em relação a tal aspecto, Roxin afirma que “mesmo a


circunstância de que alguém pratique o fato sob coação (§ 35
do Código Penal Alemão) ou em erro de proibição
inescusável (§17 do Código Penal Alemão) permite seu
domínio do acontecimento típico e deixa intacta a autoria” e
disso resulta que “é um autor inculpável, mas é um autor”69.
Por outro lado, aquele que não realiza pelas próprias mãos o
tipo integral, apenas pratica algum de seus elementos, ainda
não é autor. E Exemplifica: “quem, portanto, no roubo, não
emprega a violência, senão apenas subtrai a coisa é autor
imediato de um furto, mas não de um roubo” 70.
Entretanto, há uma certa incorreção nos argumentos
de Roxin, já que o termo “realizar por si mesmo” previsto na
legislação não é o mesmo que “dominar o fato”. Tanto é
assim que, como ele mesmo refere, “é bem provável que o
homem de trás coaja o executor ou o induza em erro de
proibição e, com isso, seja colocado no papel de autor
mediato”71. E ainda a justificativa de que quem não realiza
pelas próprias mãos o tipo integral, senão apenas um de
seus elementos, ainda não é autor, não convence,
principalmente no exemplo citado, pois para avaliar a
autoria é necessário ter em conta um tipo penal específico72,
isto é, o ponto de partida não pode ser o instituto da autoria,
mas sim o tipo penal.

69 ROXIN, Claus. Strafrecht, AT, Bd, II, p.22.


70 ROXIN, Claus. Strafrecht, AT, Bd, II, p.22.
71 ROXIN, Claus. Strafrecht, AT, Bd, II, p.22.
72 Isso significa justamente ter em vista os tipos penais da parte especial

do Código Penal, nesse sentido ROXIN, Claus. Strafrecht, AT, Bd, II,
p.259.
Liber Discipulorum | 183

Diante disso, ao se usar o ponto de partida do crime


de furto, aquele que no roubo apenas subtrai, mas não
exerce violência, é o seu autor e o delito está consumado; por
outro lado, ao se tomar como ponto de partida o tipo penal
do roubo, o delito não estaria consumado. Há que se
averiguar tanto o critério material, a saber, o potencial
ofensivo e outro subjetivo, a intenção do agente, para que
seja feita a imputação do respectivo fato punível.
Logo, não se pode partir da análise do indivíduo e do
seu respectivo agir sem ter em conta, ‘prima facie’, um tipo
penal como suporte de aferição. Assim, objetivamente, para
se falar de um roubo e, principalmente, que um indivíduo
ainda não é autor de um roubo, é preciso detectar, por um
prisma, a intenção do agente e, por outro, a idoneidade do
fazer, calcada no potencial ofensivo da conduta.
Como se perceber, a teoria de Roxin abre margem
para dúvidas em relação a sua idoneidade, enquanto critério
de delimitação de autoria e em situações mais complexas, a
problemática é acentuada.
Como podemos verificar da expressão do
pensamento de Alflen (2014, p. 207)

Todavia, a jurisprudência brasileira


evidencia de maneira muito mais
esclarecedora o déficit da concepção
roxiniana, assentada no critério
puramente objetivo do autor imediato
como figura central que realiza o fato
pelas suas próprias mãos. Assim: em
184 | Para Onélia Queiroga

nome da empresa de Móveis “S” eram


emitidas as notas fiscais sem preencher
todas as vias, ou seja, eram
consignadas nas vias fixas
destinatários diferentes ou valores
inferiores e diversos dos reais
montantes das vendas constantes nas
outras vias do respectivo documento
fiscal. Por ocasião da auditoria,
identificou-se que o ICMS não foi
escriturado nos livros fiscais, nem
informado nas guias informativas e
nem recolhido, de modo que o Fisco
passou a efetuar o lançamento do
imposto. Em face disso, “R”, um dos
sócios-gestores da empresa, foi
considerado autor do crime de
sonegação de tributos, tipificado no art.
1˚ da Lei n˚8.137/90, combinado com
os artigos. 11 e 12, I, da mesma lei, na
forma do art. 71 do Código Penal, por
ter ocultado do Fisco os valores reais
obtidos com as vendas das
mercadorias, a fim de deixar de
recolher o tributo de ICMS, devido e
pertencente ao Estado. O Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul, ao
reexaminar a decisão, ressaltou que
havia sido constatada, durante a
Liber Discipulorum | 185

instrução, a existência de outro sócio, o


qual também respondia pela empresa
e, inclusive, providenciava a vendas
das mercadorias, enquanto “R” ficava
no setor de produção. Em face disso,
entendeu o Tribunal que não se pode
presumir que, tão só por constar no
contrato social da empresa como
responsável pela gerência, “R” fosse o
autor do crime, pois, para tanto é
mister que ele detenha o domínio dos
fatos”. O argumento da figura central,
de Roxin, portanto, não é suficiente
para delimitar a autoria, sendo
imprescindível identificar a posição
ocupada pelo autor nas circunstâncias.

4.1.2 COAUTORIA COMO DOMÍNIO FUNCIONAL

A coautoria é uma forma independente de autoria,


estabelecendo que se muitos cometem o fato conjuntamente,
logo cada um é punido como autor (coautor). Entretanto,
diferencia-se da autoria direta e da autoria mediata, pois
corresponde à realização de trabalhos por meio da execução
da divisão de trabalhos, isto é, aqui relembramos a ideia de
divisão de papéis referida por Welzel.
O domínio do fato pelo coautor decorre de sua função
na execução, na proporção em que “ele assume uma tarefa,
que é essencial para a realização do fato planejado e que lhe
186 | Para Onélia Queiroga

possibilita, por meio de sua parte no fato, o domínio do


acontecimento integral”73. Para explanar seu ponto de vista,
Roxin utiliza o exemplo do roubo, citando: dois ladrões de
banco dividem a execução, de modo que A, com sua pistola,
detém os funcionários do banco, enquanto B arromba o
cofre, um exerce apenas a ameaça e o outro apenas a
subtração”. Nessa situação, se A não neutralizasse os
funcionários, na concepção roxiniana, o roubo fracassaria,
do mesmo modo que se B desistisse de saquear o cofre.
Neste ponto, Roxin restaura a ideia de Welzel de que
cada um tem uma função insubstituível, pois cada um tem a
opção de, por meio de sua recusa em realizar a sua parte,
fazer fracassar o delito orquestrado. Decorre daí a expressão
“domínio funcional”.
E assim, podemos mencionar que os pressupostos da
teoria são os seguintes: a existência de um planejamento
conjunto do fato, visto que a divisão dos trabalhos
pressupõe o cometimento conjunto; a execução conjunta do
fato, não sendo suficiente a sua participação na preparação;
a prática de uma contribuição essencial à etapa da execução.
O primeiro pressuposto decorre da própria ideia de
cometimento conjunto do fato, exigido pelo §25, II, do
Código Penal Alemão, havendo uma divisão de trabalho
que pressupõe o acordo de vontade dos coautores. Logo,
não existirá autoria se os indivíduos que se propõem a
mesma finalidade não sabem um do outro, bem como se não
há a cooperação dos envolvidos, mas apenas o
aproveitamento de um(s) em relação a conduta praticada

73 ROXIN, Claus. Strafrecht, AT, Bd, II, p.77.


Liber Discipulorum | 187

pelo outro (s). Ainda estabelece que não é preciso que o


planejamento do fato seja elaborado e decidido
conjuntamente, necessitando apenas que o acordo aconteça
no momento ou após o início do fato e que ocorra de forma
tácita. De todo modo, o planejamento conjunto não mais
existe se um dos coautores prossegue agindo, depois que se
tiver consumado o fato planejado conjuntamente.
O segundo pressuposto é que é preciso a execução
conjunta do fato, mais claramente, a contribuição na etapa
da execução. Entretanto, a realização de uma contribuição na
etapa da execução não significa que as contribuições dos
diversos coautores devam ser realizadas
concomitantemente, nem mesmo que é imprescindível a
presença no local da realização do resultado.
O terceiro pressuposto consiste na relevância da
contribuição do indivíduo para o fato na etapa da execução.
Nesse sentido, Roxin esclarece “somente quando alguém
exerce uma função da qual pode depender o êxito do
planejado, tem o domínio sobre o acontecimento74, e ele
ainda acrescenta que autor é aquele “cuja contribuição na
etapa da execução constitui um pressuposto imprescindível
para a realização do resultado aspirado”75.
Entretanto, a concepção de Roxin não é imune à
crítica. Dos três pressupostos apresentados apenas o
primeiro se sustenta, já que em relação a execução conjunta
do fato apega-se a uma teoria objetivo-formal, a qual tem se
verificada insuficiente para elucidar o conceito de autoria,

74 ROXIN, Claus. Strafrecht, AT, Bd, II, p.87.


75ROXIN, Claus. Täterschaft und Tatherrschaft.p.280.
188 | Para Onélia Queiroga

bem como de coautoria, naquelas situações em que a


conduta da decisão ou organização relacionada a ela são
mais importantes do que a sua própria execução; e ainda
vale mencionar Lesch76, que argumenta que na coatoria,
defendida por Roxin, “ o domínio sobre o acontecimento
integral não pertence ao autor (ou coautor) individual, senão
apenas ao coletivo como tal” o que em análise, indica a
revogação da tese fundamental”, já que “ se o domínio sobre
o acontecimento integral, por um lado, representa critério
decisivo da autoria, e, por outro, é preenchido na verdade
pelo coletivo em geral, então se exclui a possibilidade de,
com o auxílio desse critério, qualificar o participante
individual como autor77; já a prevalência da contribuição
apresenta um viés causal, pois conforme afirma Lesch78, a
contribuição não se determina com base na causalidade
verificada ex post, porém de acordo com um juízo
hipotético, no sentido de que se um participante assumisse
esta contribuição por si mesmo, e assim, poderia tornar a
contribuição do outro desnecessária. Para esclarecer a
questão, cita o seguinte exemplo: A e B resolvem assaltar um
banco, de modo que A rende o caixa com uma arma de fogo,
enquanto B coloca as cédulas em uma sacola”, nesse aspecto,
“se A também pudesse por si mesmo colocar as cédulas na

76ROXIN, Claus. Täterschaft und Tatherrschaft.p.277.


77LESCH, Heiko Harmut. Gemeinsamer Tatentschluβ als Voraussetzung der
MittXaterschaft?p.76.
78LESCH, Heiko Harmut. Gemeinsamer Tatentschluβ als Voraussetzung der

MittXaterschaft?p.76.
Liber Discipulorum | 189

sacola, a contribuição de B de modo algum seria considerada


imprescindível.” 79

4.1.3 AUTORIA MEDIATA COMO DOMÍNIO DA


VONTADE

Com base no jurista alemão, um tipo penal também


pode ser realizado na medida em que uma pessoa se utiliza
de outra para atingir os seus fins, de maneira que através da
instrumentalização deste, aquele domina o acontecimento de
forma imediata.
O legislador isenta de responsabilidade o executor
imediato e o considera impune, logo se deve pensar que ele
observa o acontecimento nas mãos do homem de trás e o
coloca na figura central do decurso de acordo com a
conduta. Deste modo, a decisão definitiva e,
consequentemente, o domínio da vontade, da maneira como
são compreendidos pela lei, estão com o homem de trás não
só quando ao executor não é possível uma decisão
psiquicamente independente, como também quando o
direito penal não o exige mais dele.
E, neste diapasão, Roxin estabelece que o domínio da
vontade ocorre em 3 situações: domínio da vontade em
virtude de coação; domínio da vontade em virtude de erro e
domínio da vontade em virtude de aparatos organizados de
poder.

LESCH, Heiko Harmut. Gemeinsamer Tatentschluβ als Voraussetzung der


79

MittXaterschaft?p.76.
190 | Para Onélia Queiroga

4.1.3.1 DOMÍNIO DA VONTADE EM VIRTUDE DE


COAÇÃO

Essa hipótese ocorre quando o homem de trás domina


o fato na proporção em que coage o executor imediato à
realização do tipo. O coator domina diretamente o coagido e
este, através de sua conduta, possui o curso do
acontecimento e assim domina também o fato de forma
mediata.
Assim, a coação que confere ao homem de trás o
domínio da vontade e o torna autor mediato, existe tão
somente quando a ordem jurídica exclui a responsabilidade
penal do executor em razão da situação criada pelo homem
de trás80.
Essa hipótese ocorre quando o homem de trás induz o
executor em erro, deixando-o sem saber do seu plano
delitivo. Também acontece quando o homem de trás,
enquanto emissor de ordens em um aparato organizado de
poder, pode se utilizar de órgãos de execução substituíveis
e, por isso, pode dispensar a disposição do autor individual
à execução.

4.1.3.2 DOMÍNIO DA VONTADE EM VIRTUDE DE ERRO

No que se refere ao domínio da vontade em virtude


de erro, Roxin eatabelece uma classificação em 4 níveis
possíveis: a) o executor que age sem dolo (“ohne Vorsatz); b)
o executor que age em erro de proibição (“Verbotsirrtum”); c)

80 ROXIN, Claus. Täterschaft und Tatherrschaft p.169.


Liber Discipulorum | 191

o executor que erra sobre os pressupostos do estado de


necessidade exculpante (“entschuldigenden Notstandes”); d) o
executor que atua de forma “plenamente criminosa”(
“volldeliktisch”).
O primeiro nível de erro acontece quando o homem
de trás “induz o executor em erro de tipo excludente do
dolo, de maneira que age em circunstâncias inculpáveis ou
com culpa inconsciente”81. Assim, o jurista alemão menciona
que A é autor mediato de homicídio se ele encarrega B de
ministrar em C suposta injeção de calmante, que, na
realidade, A encheu com veneno mortal. Esclarece ainda que
haverá autoria mediata ainda na situação em que o homem
de trás não provocou, porém se valeu do erro do executor,
de maneira que a atuação dolosa do intermediador
representa apenas um auxílio e exemplifica que: se A, por
tolice, quer efetuar um disparo em um espantalho, e B, ainda
que perceba que o suposto espantalho é L, empresta-lhe sua
espingarda, mas A em erro mata L com um disparo, tem-se
que B é autor mediato, pois é o único que conscientemente
matou um homem.
O segundo nível refere-se ao executor que age em
erro de proibição e aqui o executor age sem culpabilidade e
não se pode exigir o conhecimento do injusto impeditivo do
cometimento do fato, e neste caso, aquele que induz o
executor em erro para, desta maneira, realizar um
planejamento delitivo, é autor mediato.
O terceiro nível é o do executor que erra sobre os
pressupostos de estado de necessidade exculpante e, nesta

81 ROXIN, Claus. Strafrecht, AT, Bd, II, p.29.


192 | Para Onélia Queiroga

situação, a autoria mediata toma por base o fato de que a


estrutura psíquica do domínio do fato não se diferencia nos
casos de necessidade real ou putativa. Cite-se o seguinte
exemplo: A se salva de um naufrágio utilizando a tábua de
salvação, mas B o empurra para baixo, para se manter sobre
a água com a ajuda da tábua; na verdade, não há um estado
de necessidade como o § 54 do Código Penal alemão, uma
vez que o salva-vidas já estava a caminho para socorrer
ambos. E assim, o homem de trás, C, atuará como autor
mediato se induzir B em erro sobre a situação de estado de
necessidade, comunicando-lhe que o socorro esperado não
virá ou fornecendo-lhe uma arma para que efetue um
disparo contra A e, assim, salvar-se.82
O quarto nível apontado por Roxin do executor que
age de forma “plenamente criminosa”, acontece no caso de o
executor agir não somente típica, antijurídica e
culpavelmente, como ainda sem que haja a incidência de
qualquer redução da culpabilidade. Aqui, Roxin verifica
maior similitude com o instituto da instigação, mas para
esclarecer a situação propõe o seguinte exemplo: se A
engana B, contando-lhe que C cometeu adultério com sua
esposa, e se por meio desta indução em erro, leva a cabo seu
plano de espancar através de B, acontece apenas uma
instigação à lesão corporal”. Esclarece o autor que a
provocação de erro sobre as circunstâncias não modifica em
nada as relações de domínio, logo a ilusão não se refere ao
crime em si, entretanto aos motivos do seu cometimento. 83

82ROXIN, Claus. Täterschaft und Tatherrschaft.p.208.


83 ROXIN, Claus. Strafrecht, AT, Bd, II, p.41.
Liber Discipulorum | 193

Entretanto, adverte que há 3 casos em que se pode


falar na imputação do homem de trás, quais sejam: a) a
indução em erro no tocante a medida do injusto; b) a
indução em erro quanto as circunstâncias fundamentadoras
da qualificação; c) a indução em erro quanto à identidade da
vítima.
No que tange ao erro no tocante a medida do injusto,
Roxin estabelece que se A provoca B a despejar na cerveja de
C um pó, que supostamente causa apenas dores de
estômago por um breve tempo, porém, na verdade, precisa
de intervenção hospitalar da vítima, então B será autor de
lesões corporais, já que as dores no estômago são
subsumíveis ao §223 do Código Penal Alemão (lesão
corporal). Por outro lado, as repercussões mais graves serão
subsumíveis ao §226 do mesmo código (lesão corporal
grave) e serão atribuídas a A, na qualidade de autor mediato
que se serviu de B como um “instrumento cego”. Por outo
lado, no que se refere as lesões leves, Roxin entende A como
instigador na proporção em que o dolo de B abarca os efeitos
da conduta; já em relação as lesões graves, entende que A é
autor mediato.84
Podemos entender que o autor utiliza um método
dedutivo nos seus argumentos e não um método empírico. E
ainda, a justificativa de considerar A como instigador de
lesões leves e, concomitantemente, autor mediato das lesões
graves conduz a um bis in idem.
No que se refere à segunda hipótese – erro quanto às
circunstâncias fundamentadoras da qualificação, Roxin

84 ROXIN, Claus. Strafrecht, AT, Bd, II, p.42.


194 | Para Onélia Queiroga

expõe a seguinte hipótese: se o homem de trás, A, desafia o


agente imediato B a chuviscar nos olhos de um terceiro um
inofensivo gás lacrimogêneo, com sua pistola pulverizadora,
quando A sabe que a substância química deve causar a
destruição da visão, tem-se, então que A é autor mediato de
lesões graves (§226, I,1 do Código Penal Alemão) e B é autor
imediato do crime de lesões leves. (§223 do Código Penal
Alemão).
Entretanto, a justificativa de Roxin não se justifica no
caso, pois até onde se pode afirmar que quem desafia
outrem tem o domínio?
Assim, “o mero uso do instrumento pode não ser
suficiente”, é necessário que haja “uma conduta do autor
que abarque o induzido em erro como instrumento” e cuja
atividade seja compreendida como “realização da própria
vontade do autor”, daí dizer, acertadamente, que estamos
diante de domínio da ação e não de domínio da vontade.85
A terceira situação elencada por Roxin diz respeito ao
error in persona e cita o seguinte exemplo: A quer matar B a
tiros, devido a um erro na pessoa, acaba matando C, porque
um malicioso homem de trás, D, fez-lhe acreditar que se
tratava de B. A autoria mediata se funda, em tal caso, no
redirecionamento da conduta do autor de B à C, ou seja, a
uma nova vítima.

4.1.3.3 DOMÍNIO DA VONTADE EM VIRTUDE DE


APARATOS ORGANIZADOS DE PODER

85 SCHILD, Wolfgang. Tatherrschaftslere.p.18-19.


Liber Discipulorum | 195

Roxin, além do domínio da vontade em virtude do


erro e da coação, apresenta em 1963 em seu artigo com o
título Straftaten in Rahmen organisatorischer Machtapparate, o
domínio da vontade em virtude de aparatos organizados de
poder e que possibilita, ao contrário das anteriores, um
domínio do acontecimento, apesar da plena
responsabilidade do executor.
Esclarecia que tal situação se verificava quando o
crime não era praticado por um autor individual, porém
através de “aparatos organizados de poder” e citava como
exemplos os casos de Eichmann e Staschinskij.86
A teoria do domínio por organização funda-se na
ideia de que em uma organização delitiva, os homens de
trás, que têm poder de comando e ordenam fatos puníveis,
podem ser responsabilizados como autores mediatos, caso
os executores diretos também sejam considerados
plenamente responsáveis. Tais homens de trás, na visão de
Roxin, são os chamados de “autores de escritório”
(Schreibtischtäter).
Para fundamentar tal autoria mediata, o jurista
alemão se baseia em 3 pilares. O primeiro deles é que o
aparato organizado consiste em uma diversidade de pessoas
que estão agrupadas em estruturas preestabelecidas, que
agem em conjunto em diferentes funções condicionadas pela
organização e cuja totalidade confere ao homem de trás o
domínio sobre o resultado. O executor, individualmente,

86 ROXIN, Claus. Straftaten im Rahmen organisatorischer


Machtapparate.p.193; referindo o caso Staschinskj como hipótese em que
já se podia reconhecer a teoria do “autor detrás do autor”.
196 | Para Onélia Queiroga

não pratica nem papel decisivo para a atuação da


organização, porque ele pode dispor de muitos outros
executores solícitos. Assim, Roxin afirma que “nos atos de
extermínio de massa, o emissor da ordem se manifesta como
a figura central”, sendo que a “sua ação de realização típica
constitui o acionamento do aparato de extermínio que de
modo algum aparece desvinculado do seu resultado
pretendido”87.
Em segundo lugar, pugna que o executor e o homem
de trás apresentam formas diferentes de domínio do fato,
pois o primeiro possui o domínio da ação e o segundo, da
organização.
Em terceiro lugar, o domínio do fato do homem de
trás se fundamenta em que por meio de uma ordem sua,
através do aparato existente, ele pode causar o resultado
com a maior segurança, como no próprio caso de domínio
por erro e por coação.
Com o afã de destrinchar dogmaticamente a sua
concepção, ele apresenta 4 pressupostos fundamentais para
a caracterização da autoria mediata no que tange ao domínio
por organização: o poder de comando; a desvinculação do
direito pelo aparato de poder; a fungibilidade do executor
direto e a disposição essencialmente elevada dos executores
ao fato.
O homem de trás possui o poder de comando dentro
de uma organização rigorosamente conduzida e
hierarquicamente estruturada e a exerça para produzir fatos

87ROXIN, Claus. O domínio por organização como forma independente


de autoria mediata. P.78-79.
Liber Discipulorum | 197

típicos. De forma a deixar seu posicionamento mais claro,


Roxin menciona que o comandante de um campo de
concentração nazista era autor mediato dos assassinatos que
ele ordenava, mesmo quando agia com base em uma
instrução de um superior. Daí esclarecer que “muitos
autores podem estar um atrás dos outros, em diferentes
níveis de hierarquia de comando” 88.
A desvinculação do direito pelo aparato de poder
significa que o aparato deve atuar completamente fora da
ordem jurídica89, mas não desvinculado do direito em todos
os seus aspectos, “mas tão somente no marco dos tipos
penais realizados por meio dele” 90.
A fungibilidade do executor direto, ou seja, a opção
de substituir aquele que na conduta delitiva do aparato
organizado de poder praticou os últimos atos parciais de
preenchimento do tipo penal. Desta forma, muitos
potenciais executores estão a postos, de forma que a recusa
ou perda de um indivíduo não impede a realização do tipo.
A disposição essencialmente elevada dos executores
do fato apenas foi apresentada por Roxin em 2006 e,
segundo ele, aquele que executa o último ato de
preenchimento do tipo é diverso de um autor isolado de si
mesmo, pois como entende Roxin, “ele está sujeito a
numerosas influências específicas da organização, que na
verdade não excluem de modo algum a sua

88 ROXIN, Claus. O domínio por organização como forma independente


de autoria mediata. P.81.
89 ROXIN, Claus. Täterschaft und Tatherrschaft.p.249.
90 ROXIN, Claus. O domínio por organização como forma independente

de autoria mediata. P.81.


198 | Para Onélia Queiroga

responsabilidade, mas o tornem mais disposto ao fato que


outro potencial delinquente”, e neste aspecto, “aumentam a
probabilidade do resultado por meio de uma ordem e
contribuem com o domínio do fato do homem de trás.”91.
Vejamos a opinião de Alflen (2014, p. 242):

“ Roxin ressalta, no entanto, que são


várias as circunstâncias que aqui
podem exercer algum papel: ao
integrar uma organização, os membros
sofrem a tendência a se adaptar, o que,
no entanto, pode levar a uma adesão
irrefletida a condutas que jamais
passariam pela cabeça de pessoas;
ademais, um fenômeno típico da
organização é também o “obsequioso
zelo excessivo”, seja pela ambição na
carreira, ostentação, deslumbramento
ideológico ou também por impulsos
sádicos ou criminosos, “os quais um
membro de uma tal organização
acredita poder fornecer
impunemente”. Além dessas
circunstâncias, o jurista alemão faz
menção à reflexão resignada (“se eu
não faço, de qualquer forma, outro o
fará”), bem como ao fato de que o

91 ROXIN, Claus. O domínio por organização como forma


independente de autoria mediata. P.85.
Liber Discipulorum | 199

executor, solícito teme, no caso de


recusa, a perda de sua posição, o
desprezo de seus colegas, outros tipos
de reprovações sociais. Daí afirmar, o
jurista alemão, que todas estas
misturas alternadas de fatores
“conduzem a uma disposição
condicionada dos membros da
organização ao fato” que,
conjuntamente com a fungibilidade,
formam “um elemento essencial de
segurança”, com base no qual o
homem de trás pode confiar no
cumprimento de suas ordens”.

Por fim, mencionamos que Roxin considera que a sua


teoria não deve ser utilizada nos casos de crimes praticados
por meio de organizações empresariais, uma vez que os seus
pressupostos por ele descrito estão presentes somente no
injusto do sistema estatal, no “Estado criminoso dentro do
Estado”, na Máfia e em formas similares de atuação da
criminalidade organizada, não se podendo transmudar este
instituto jurídico aos fatos puníveis em empresas
econômicas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com toda a exposição feita a respeito das teorias do


domínio do fato, passando pela visão de diversos autores,
200 | Para Onélia Queiroga

percebemos que os autores que mais se destacaram nesta


seara foram Welzel e Roxin, cada um com a sua visão
peculiar do instituto.
Para Welzel, o fator crucial para a aferição da autoria
é elemento objetivo, ou seja, o fato que realmente tenha sido
obra do autor, entretanto há que se levar em realce inserido
nesta análise, o elemento subjetivo, qual seja, o domínio final
do fato; já para a coautoria, o que interessa é que o domínio
final do fato sobre a conduta delitiva se verifica não com um
indivíduo apenas, porém com vários de forma conjunta e já
para a autoria mediata, o instituto ocorre com a existência do
homem de trás que se utiliza de outro como mero
instrumento concretizador e não podendo, em nenhuma
circunstância, ter o domínio pleno do fato.
Já com referência a Roxin, considerando a figura
central do acontecimento típico, ele delineia um modelo
tripartido de domínio do fato, distinguindo-se entre os
critérios de domínio da ação, domínio da vontade e domínio
funcional.
O domínio da ação delimita o autor direto como
sendo aquele que realiza a conduta típica por sua própria
pessoa.
O domínio da vontade considera que autor mediato é
aquele que executa o delito através de outra pessoa, cuja
capacidade volitiva, em termos jurídicos, não é livre e assim
não compreende o seu agir ou o entende em pequena monta
ou ainda, quando em um aparato organizado de poder, é
substituível.
Liber Discipulorum | 201

O domínio funcional refere-se à coautoria e possui


como fundamentos: planejamento conjunto do fato,
execução conjunta do fato e a atuação de uma contribuição
essencial ao deslinde do delito.
Assim, podemos afirmar que a contribuição de Roxin
é a mais avançada em tal instituto, sendo inclusive utilizada
em alguns julgamentos proferidos pelo Supremo Tribunal
Federal.

REFERÊNCIAS

ALFLEN, Pablo Rodrigo. Teoria do domínio do fato.São


Paulo: Saraiva, 2014.

LESCH, Heiko Harmut. Gemeinsamer Tatentschluβ als


Voraussetzung der MittXaterschaft?, JA, Heft 1, 2000.

LOBE, Adolf; EBERMAYER, Ludwig; ROSENBERG,


Werner. Strafgesetzbuch. Leipziger
Kommentar.8.Aufl,1.Bd.,Berlin: Walter de Gruyter, 1957.

BATISTA, Nilo. Concurso de agentes. Uma investigação


sobre os problemas da autoria e da participação no direito
penal brasileiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.

BRASIL, LEI Nº 8.137, DE 27 DE DEZEMBRO DE 1990.


Define crimes contra a ordem tributária, econômica e as
relações de consumo, e dá outras providências. Disponível
em
202 | Para Onélia Queiroga

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8137.htm.
Acesso em 20 de set. de 2022.

PABLO RODRIGO ALFLEN DA SILVA. Teoria do domínio


do fato (Locais do Kindle 5101-5103). Saraiva. Edição do
Kindle.

ROXIN, Claus. Täterschaft und Tatherrschaft, 6. Aufl.,


Berlin: Walter de Gruyter, 1994.

ROXIN, Claus. Strafrecht, Allgemeiner Teil. Besondere


Erscheingungsformen der Straftat. Munchen: Verlag Beck,
Bd II, 2003.

ROXIN, Claus. Straftaten im Rahmen organisatorischer


Machtapparate. .GA, 1963.

ROXIN, Claus. O domínio por organização como forma


independente de autoria mediata. Trad Pablo Rodrigo
Alflen. Panóptica. Law E-Journal, n.4, 2009. Disponível em:
www.panoptica.org. Acesso em 20 de set. 2022.

SCHILD, Wolfgang. Tatherrschaftsleren. Berlin: Walter de


Gruyter, 1994.

SCHROEDER, Friedrich-Christian. Der Täter hinter dem


Täter.Ein Beitrag zur Lehre von der mittelbaren Täterschaft.
Berlim: Duncker &Humblot, 1965.

WELZEL, Hans. Studien zum System des Strafrechts. In:


Abhandlugen zum Strafrecht und zur Rechtsphilosophie,
Berlim: Walter de Gruyter, 1975.
Liber Discipulorum | 203

COMENTÁRIOS A RESPEITO DE GÜNTHER JAKOBS –


O FUNCIONALISMO SISTÊMICO: O QUEM VEM A
SER ESSA VISÃO DO DIREITO PENAL

Carlos Augusto Machado de Brito92

RESUMO: O presente artigo busca realizar um breve


comentário sobre o professor alemão Günther Jakobs, a sua
visão da ciência penal e a sobre qual base se sustenta a
legitimidade do direito penal para a consecução de sua
finalidade. Para isso faremos uma pequena biografia do
penalista e filósofo alemão discorrendo sobre sua carreira
acadêmica e suas ideias desenvolvidas dentro da seara
penal. Abordaremos o seu funcionalismo sistêmico, qual a
base teórica que deu origem a tal sistema, no que ele
consiste. Adentraremos na análise de sua visão sobre a
legitimidade do direito penal, qual o seu objetivo, se a tutela
de bens jurídicos ou a proteção da vigência da norma.
Estudaremos a divisão por ele proposta sobre quem é o
cidadão e quem é o inimigo, para fins de um maior
rigorismo penal. Por fim abordaremos as críticas feitas ao
seu sistema, bem como se aos poucos tais pensamento vão
ou não se inserindo nas legislações, em especial na brasileira.
Na elaboração deste trabalho aplicamos o método científico
dedutivo, em conjunto com o método hermenêutico.,
podendo ser classificada como uma pesquisa

92Mestrando em Direito e Desenvolvimento pelo Centro Universitário


de João Pessoa – UNIPÊ.
204 | Para Onélia Queiroga

explicativa, tratando-se de uma abordagem teórica do tema


proposto.
Palavras-chave: Jakobs; Funcionalismo; Sistêmico; Bem
Jurídico; Norma.

1 INTRODUÇÃO

O ano era 2001, agosto. Segunda semana de aula do


terceiro período de direito, estaria por desvirginar meus
conhecimentos na matéria que seria a minha maior paixão e
a razão da minha profissão, Direito Penal.
Primeira cadeira ministrada pela professora, já de
renome conhecido, Professora Onélia Queiroga. Adentrava
em sua sala com duas semanas de atraso, em razão de um
intercambio feito no estrangeiro que me ocupou as duas
primeiras semanas de aula, calado para não ser notado. Mas
já nos minutos iniciais de aula já se apercebeu da minha
presença e, sem perder a sua fama de durona e de dona da
sala, a Mestra me questionou: ‘você, novato, o que vem a ser
bem jurídico penal’?
Tremendo nas bases, ante a ausência de conhecimento
da resposta, gaguejei e propiciei uma resposta que não era a
satisfatória, levando logo, de lição, a indicação de dois livros
para pesquisar e, na aula seguinte trazer a resposta correta.
Tal lembrança da professora Onélia, após mais de
vinte anos não me sai da memória, pois são aqueles casos
que nos levam a estudar com mais afinco e dedicação ante o
desafio que nos é posto.
Liber Discipulorum | 205

Hoje nos dedicamos a estudar o bem jurídico, sua


evolução e como é visto hodiernamente, em especial, pelo
funcionalismo penal na ótica do estudioso alemão Günther
Jakobs, que é o objeto do presente escrito.
Estudaremos quem é Günther Jakobs, a sua carreira
profissional, sua importância como discípulo de Hans
Welzel e herdeiro do finalismo. Analisaremos como ele
avançou em seus pensamentos e acabou por se desvencilhar
dos ensinamentos de se seu preceptor e avançar em uma
dogmática penal moderna fazendo nascer o funcionalismo
penal sistémico.
Abordaremos a base teórica que dá sustentação ao
sistema, a partir da doutrina dos sistemas propugnada por
Niklas Luhmann que dá sustentação ao pensamento do
professor de Bonn. Seguiremos expondo as criações e
inovações trazidas por esse sistema, como a nova visão do
bem jurídico penal, a finalidade do direito penal como
proteção da norma, além do seu direito penal do inimigo.
Como toda nova ideia, o sistema proposto por Jakobs
não é imune a críticas, em especial quando cotejado com o
funcionalismo teleológico doutrinado pelo seu conterrâneo
Claus Roxin, assim abordaremos quais as críticas levantadas
contra este sistema e as razões de existirem.
O tema é bastante efusivo, tendo em vista a ser ordem
do dia ante, e ser o referido autor bastante criticado e por
vezes esquecido pela doutrina, em especial a nacional, em
razão de sua visão do Direito Penal que se afasta um pouco
da tradicional ótica do nosso país. Porém o assunto vem
ganhando força em especial o seu criticado direito penal do
206 | Para Onélia Queiroga

inimigo que já encontra respaldo na legislação em vigor e


em projetos de lei em tramitação.
Logo um novo direito penal se propõe, devemos
entendê-lo para uma melhor aplicação junto à sociedade que
vivemos, pois não podemos manter um direito penal
ancestral quando a comunidade exige um direito penal
moderno e eficiente, assim veremos a visão moderna desse
grande penalista alemão que muito tem a contribuir para
uma dogmática penal aplicável na prática e de forma eficaz,
restabelecendo os valores violados com o cometimento do
crime.

2 QUEM É GÜNTHER JAKOBS?

Ao adentrarmos na ciência do direito penal e, mais


especificamente, na teoria jurídica do crime, passamos a
estudar os sistemas históricos adotados a fim de entender o
funcionamento de tal ciência e a sua dogmática.
Lembro-me dos ensinamentos sobre o causalismo,
sendo sucedido pelo finalismo, bem como sobre seus
expoentes doutrinadores, respectivamente Franz Von Liszt e
Hans Welzel, os quais trouxeram seus avanços para a ciência
penal.
Como todo sistema de pensamento, próprio das
ciências humanas, o direito penal evolui acompanhando os
movimentos filosóficos contemporâneos. Desta forma o
finalismo acabou por ser superado e, hoje, acompanhamos o
desenvolvimento da dogmática penalista com o sistema
funcionalista.
Liber Discipulorum | 207

Ao analisarmos o funcionalismo penal encontramos,


facilmente, na doutrina, nacional e estrangeira, a citação da
superação do finalismo pelo funcionalismo, em razão do
empenho científico dos sucessores e discípulos de Welzel,
sendo eles: Claus Roxin e Günther Jakobs.
Inegavelmente são eles os grandes expoentes do
funcionalismo penal hoje estudado. Cada um possuindo
uma vertente, visão, da finalidade do direito penal. Roxin
possui uma ótica teleológica, enquanto Jakobs tem uma
posição sistêmica. Com essas peculiaridades do pensamento,
apesar de convergirem no ponto de partida, eles divergem
no caminho e na chegada das suas conclusões sobre o direito
penal e sua finalidade e legitimidade.
Nesse sentido CALLEGARI e LINHARES (2017)
escrevem que:

O funcionalismo é considerado uma nova revolução


paradigmática do Direito Penal que não pode ser
atribuído a um só autor. Não se pode falar, assim, em
apenas um funcionalismo no Direito Penal, sendo
diversas as vertentes dessa corrente de pensamento.
Entretanto, dois são os autores apontados como
principais defensores desse paradigma: os alemães
Claus Roxin e Günther Jakobs. A partir desses
autores, duas são as propostas de modelos
funcionalistas no Direito Penal. O primeiro modelo,
com foco na finalidade preventivo-especial da pena,
possui como principais representantes Claus Roxin e
Bernd Schünemann. O segundo modelo, representado
208 | Para Onélia Queiroga

sobretudo por Günther Jakobs, confere especial


destaque para a teoria da prevenção geral positiva da
pena.

Como se observa, tais autores são de grande


importância nos estudos do Direito Penal hodierno. Porém,
desde as cadeiras das universidades, até a abertura dos
livros voltados à ciência penal, seja os simples manuais até
as doutrinas mais aprofundadas, é de se verificar o vácuo
cognitivo no estudo sobre o professor Günther Jakobs e sua
obra.
Sem erro, cem por cento dos livros de doutrina penal
discorre sobre Roxin, sua vida e obra, colocando-o como o
grande representante do Funcionalismo bem como discípulo
e sucessor de Hans Welzel, e, a maioria, silencia quanto a
existência de Jakobs. Uma verdadeira injustiça. Poucos são
os autores que falam sobre Jakobs e seu sistema. Não
podemos afirmar qual o sentido desse esquecimento, se
intencional ou não.
Mas uma coisa é certa, o pensamento de Jakobs, ao
contrário do que ocorre com Roxin, não é aceito com
facilidade. Ele é controverso por tocar em pedras
fundamentais, não só da dogmática penal tradicional, mas
também sobre direitos e garantias fundamentais. Talvez por
isso ele seja colocado, um pouco, de lado, nos estudos da
ciência penal.
A par disso, para entendermos um pouco sua obra,
precisamos entender que ele é, um pouco de sua biografia e
Liber Discipulorum | 209

o que desenvolveu com seus pensamentos em prol da


dogmática penal.
Günter Jakobs é um filósofo penal “para todos e para
ninguém”. Tal expressão fora cunhada pelo, também
alemão, filósofo Friedrich Nietzsche em seu livro ‘Assim
Falou Zaratustra’. Com Nietzsche, Jakobs possui muitas
semelhanças, não só em razão de suas origens germânicas.
Nietzsche, sem dúvida, é o mais polêmico dos
filósofos. Nesse sentido podemos afirmar que,
hodiernamente, Jakobs, seja o mais polêmico dos
doutrinadores penalistas.
No livro A Gaia Ciência, Nietzsche escreveu que:
‘algumas vezes nos queixamos de ser mal-entendidos, pouco
conhecidos, confundidos, difamados, pouco escutados e
ignorados? Eis precisamente a nossa sina’. É, em nosso
entender o que acontece com nosso personagem desse
artigo.
Jakobs, como nenhum outro penalista moderno, é
capaz de ganhar uma admiração tão apaixonada e, ao
mesmo tempo, despertar tanta rejeição. Como Nietzsche,
Jakobs é um doutrinador do futuro, assim observaremos
quando do nascedouro de seu direito penal do inimigo. O
filósofo, apesar de ter escrito no século XIX, teve seu
reconhecimento no final do século XX, sendo, em sua época,
criticado, difamado, afastado dos círculos intelectuais da
época, taxado de louco, e mais tarde, mesmo após a sua
morte, difamado como sendo nazista.
Podemos dizer, claro que reservada as devidas
proporções, que há uma semelhança com o penalista. Jakobs
210 | Para Onélia Queiroga

é criticado, difamado, esquecido. Mas o tempo está a


transformar isso, e fazendo ressurgir a importância de sua
obra para o estudo do direito penal, podendo ver tal reflexo
de ressurgimento e importantes legislações.
Claus Roxin (1983), ao escrever sobre a primeira
edição do livro inaugural de Günther Jakobs, Tratado de
direito penal, disse que:

Trata-se da mais audaz e do esboço mais consequente


de um sistema puramente teleológico existente até a
presente data. Com ele, Jakobs não só elaborou (...) a
evolução dogmática dos últimos 20 anos. A
amplitude de sua obra surpreende o leitor também
com uma avalanche de reflexões originais que, de
certo modo, antecipam os próximos 30 anos.

Günther Jakobs nasceu na Alemanha, na cidade de


Mönchengladbach, em 26 de julho de 1937. É um autor de
livros de Direito, filósofo e professor emérito de direito
penal e Filosofia do Direito. Estudou Direito nas
Universidades de Colônia, Kiel e Bonn, sendo nesta última
aluno de Welzel, onde acaba por tornar-se seu seguidor. Em
1967 apresenta sua tese de doutoramento, sob a orientação
do mestre Hans Welzel, como tema O concurso entre os
delitos de homicídio e de lesão corporal93.

93Título original em alemão: Die Konkurrenz von Tötungsdelikten mit


Körperverletzungsdelikten.
Liber Discipulorum | 211

No ano de 1971, na busca de conseguir sua habilitação


para a cátedra na universidade de Bonn apresentou o
trabalho, elaborado, novamente, sob a batuta de Hans
Welzel, intitulado Estudos sobre o delito culposo de
resultado94.
Na universidade de Bonn exerceu a magistério no ano
de 1986, onde ministrou aulas na cadeira de Direito Penal e
Filosofia do Direito. Na referida universidade também foi
diretor do Seminário de Filosofia do Direito, que também foi
dirigido por Welzel, e a codireção do Instituto de Direito
Penal daquela instituição (AFLEN; 2018).
Hoje é professor aposentado da Universidade de
Bonn, desde o ano de 2002.
Apesar da doutrina nacional falar muito de Roxin
como discípulo e sucessor do mentor do finalismo,
CALLEGARI (2003) assevera que, como visto em sua
pequena biografia, Jakobs também foi aluno de Welzel
sendo ele o seu verdadeiro sucessor, pois o professor de
Bonn foi quem ficou encarregado da atualização e
continuação da obra do mestre, e, posteriormente,
superando as ideias da escola finalista.
O fruto do mérito do seu trabalho no plano
acadêmico, é correspondido pelos inúmeros títulos
honoríficos que lhe forma concedidos, em especial pela
singularidade e brilhantismo do seu pensamento. Vários
títulos de Doutor honoris causa lhe foram outorgados por
Universidades em todo o mundo, em especial na América
Latina, como na Argentina, México, Peru e Colômbia

94 Título original em alemão: Studien zum fahrlässigen Erfolgsdelikt.


212 | Para Onélia Queiroga

(AFLEN; 2018). Faltando-lhe o reconhecimento pelas


universidades brasileiras.
Jakobs, utilizando-se das ideias do sociólogo Niklas
Luhmann, sobre a teoria dos sistemas, apartou-se da
doutrina finalista e criou o funcionalismo sistêmico fundado
na racionalidade comunicativa. Criou, assim, um novo
sistema para o direito penal, baseado numa renormatização
dos conceitos jurídicos-penai, objetivando direcioná-los à
função que corresponde ao direito penal (CALLEGARI;
2003).
Dentro deste funcionalismo desenvolveu várias
teorias que são caros ao direito penal, como: incrementos à
teoria da imputação objetiva; uma nova visão do bem
jurídico penal e a legitimidade do direito penal; e o seu
controverso direito penal do inimigo, em contraposição ao
direito penal do cidadão.
A par disso é que chamamos a atenção para a
importância do estudo das obras desse autor alemão que,
desenvolve um profícuo e aprofundado estudo sobre a
dogmática penal, baseando-se no que há de mais moderno
no comportamento da sociedade, onde, em um campo que a
cada dia mais crescem as teorias abolicionistas, demonstra a
importância da existência desse ramo do direito, e mais, da
necessidade de sua aplicação de forma eficaz para que a
norma penal saia fortalecida e seja restabelecida o seu valor
e vigência, como verdadeiro bem-jurídico penal a ser
protegido.
Jakobs não deve ser esquecido, deve ser estudado
compreendido. Criticado em suas possíveis falhas e
Liber Discipulorum | 213

exageros. Mas sem dúvida, possui um legado a ser cultivado


e explorado não só no campo acadêmico, mas também na
prática dos tribunais na legislação, e dentro deste legado o
seu funcionalismo sistêmico é assunto que deve ser
entendido para uma boa análise de sua obra, razão pela qual
passamos ao estudo do que vem a ser tal entendimento.

3 FUNCIONALISMO SISTÊMICO DE JAKOBS

Muito se discorre sobre o funcionalismo penal como


sendo este uma superação do sistema finalista desenvolvido
por Hans Welzel. Bem como, é farta os escritos que abordam
o funcionalismo teleológico de Claus Roxin e a sua teoria da
imputação objetiva.
Lado outro, o funcionalismo sistêmico ou normativo
propugnado por Günther Jakobs não é assunto corriqueiro
na literatura penal, em especial na nacional, que aborda o
tema ora proposto.
O funcionalismo, em termos geral, pretende não
apenas explicar o sistema jurídico, mas compor também
uma análise global de todo o sistema social, onde seu
objetivo é a ação humana (TAVARES 2019).
Parte, tal ideologia, de uma concepção da sociedade
como um organismo harmônico no qual cada um dos
membros que a integram desempenham uma função
específica e que permite a coerência do sistema, de forma
que o Direito já não tem que delimitar nem proteger certos
valores, mas apenas assegurar a estrutura do sistema social e
garantir sua capacidade de função, encontrando
214 | Para Onélia Queiroga

fundamento no fato de que as ações se veem regidas por


expectativas, as quais encontram nos sistemas seus marcos
delimitadores, correspondentemente a diversas variáveis,
das quais uma delas estaria constituída pelas normas
jurídicas (TAVARES 2019).
Dentro do âmbito penal o funcionalismo se insere em
um contexto metodológico no qual as construções jurídicas
devem ser conscientemente guiadas por determinados
valores e finalidades, sendo estes fornecidos por uma
política criminal do Estado Social e Democrático de Direito,
que acrescenta ao direito penal uma função de tutela
subsidiária de bens jurídicos, através da prevenção geral e
especial, sempre respeitando os direitos e garantias
constitucionalmente assegurados.
As correntes de pensamento funcionalista defendem
uma intervenção finalística segundo conceitos normativos,
visando construir um modelo penal mais poroso às
remodelações político-criminais. Estruturando o ilícito à luz
da função do direito penal.
É exatamente nesse ponto que se afastam os dois
grandes expoentes do funcionalista penal, pois divergem em
qual seria a função, ou legitimidade do direito penal.
No direito penal tradicional a finalidade é a proteção
dos bens jurídicos, sendo eles aqueles valores insculpidos
nas normas, vida, patrimônio etc.
No funcionalismo sistémico ou normativista, extrai-se
o conteúdo conceitual exclusivamente das funções do
sistema social em questão, sua concepção do Direito Penal se
Liber Discipulorum | 215

adapta à política criminal assumindo as modernizações do


Direito Penal. Funcionalidade do sistema vigente.
Günther Jakobs (2003), já no primeiro parágrafo de
sua obra’ Sociedade, norma e pessoa’, na qual lança as bases
do seu sistema, aduz que o funcionalismo jurídico-penal se
concebe como aquela teoria segundo a qual o Direito Penal
está orientado a garantir a identidade normativa, a garantir
a constituição da sociedade.
E, para a garantia da sociedade, Jakobs toma como
ponto de partida ideia da teoria dos sistemas propugnada
por Niklas Luhmann, jurista e sociólogo alemão, pois para
ele este ensinamento é a exposição mais esclarecedora, tendo
consequências para o sistema jurídico.
De uma forma geral a teoria dos sistemas busca uma
unificação das atividades sociais gerando uma noção de
sistemas, estrutura comunicativa, simbolizando a
organização dentro de um processo de informação
(TAVARES 2019). E, dentro desse ideário, Luhmann propõe
o estudo do sistema jurídico. Para ele a sociedade é uma
rede de comunicação composta por vários subsistemas,
sendo um deles o Direito. Onde este atua de forma fechada,
se autoproduzindo e reproduzindo, autopoiese, sendo suas
relações, comunicações, analisadas através de um código
binário, lícito/ilícito (CAVALCANTE FILHO, 2018).
No sentido desta comunicação é que se encontra a
função do direito, pois no sistema jurídico o que está em
relevância é a comunicação sobre todas as formas de
conduta englobadas e reguladas pelo direito, uma vez que ‘a
norma jurídica tem como seu objetivo material a conduta
216 | Para Onélia Queiroga

humana projetada no espaço e no tempo, o que se tem em


vista é a expectativa dessa conduta’ (TAVARES 2019).
Importando para a ciência jurídico-penal tais
pensamentos, Jakobs inova no funcionalismo. Inculta a ideia
do direito penal, e seu sistema normativo, como parte
integrante da sociedade, sendo uma função necessária à
manutenção do sistema.
No funcionalismo sistêmico a finalidade do direito
penal é a proteção da norma violada pelo cometimento do
crime e a sua vigência.
No sentir de Günther Jakobs a função do Direito
Penal é o asseguramento da vigência dos valores positivos
de ação de caráter ético-social, afirmando que: o Direito
Penal obtém sua legitimação material de sua necessidade
para garantir a vigência das expectativas normativas
essenciais (aquelas que depende a própria configuração ou
identidade da sociedade) diante das condutas que
expressam uma regra de comportamento incompatível com
a norma correspondente e colocam nesta, portanto, uma
questão como modelo geral de orientação no contato social.
Nas palavras do autor:
A prestação que realiza o Direito Penal consiste em
contradizer por sua vez a contradição das normas
determinantes da identidade da sociedade. O direito
Penal confirma, portanto, a identidade social. O delito
não é tomado como princípio de uma evolução nem
tão pouco como evento que deva solucionar-se de
modo cognitivo, mas como falha de comunicação,
sendo imputada essa falha ao autor como culpa sua.
Liber Discipulorum | 217

Dizendo de outro modo, a sociedade mantém as


normas e se nega a conceber-se a si mesma de outro
modo. Nessa concepção, a pena não é tão-somente
um meio para manter a identidade social, mas já
constitui essa própria manutenção (JAKOBS, 2003).

Observado o quanto ensinado pelo professor entende-


se que o bem jurídico penal passa a ser a norma e na sua
funcionalidade reside a legitimidade do direito penal. Ou
seja, o direito penal se legitima para fazer valer a vigência e
aplicação da norma penal. O bem a ser protegido é a firmeza
das expectativas normativas essenciais frente à decepção que
tem o mesmo âmbito de vigência da norma posta em prática;
este bem se denominará a partir de agora bem jurídico-
penal.
Explica o autor que a vigência da norma é o bem
jurídico penal. A sua manutenção passa diretamente pela
pena. O valor inserido na norma e, normalmente, citado
como “bem jurídico” – vida, liberdade, patrimônio etc. – é,
em verdade um motivo, a busca de um objetivo para a
norma (JAKOBS, 2021), doutrinando que:
De acordo com isso, o bem jurídico, enquanto um
motivo para a norma ou representação de um fim,
por si só não possui força suficiente; isso porque ao
lado do bem a ser protegido entram o interesse de
liberdade do autor (também um bem jurídico) e o
interesse da sociedade não de obstar, mas sim de
possibilitar o desenvolvimento (JAKOBS, 2021).
218 | Para Onélia Queiroga

Valendo-se, e citando, dos ensinamentos de seu


mestre, Hans Welzel, vaticina que o ‘real sentido do direito
não consiste em afastar todos os efeitos lesivos dos bens
jurídicos idealizados como incólumes, senão em escolher e
proibir os incompatíveis com a existência de uma
comunidade eticamente organizada’ (JAKOBS, 2021).
Dito isto, observa-se que Jakobs faz a distinção entre
bem jurídico penal e bem jurídico. O primeiro como sendo a
vigência da norma penal e o segundo se refere aos objetos
sobre os quais recaem as normas penais. Conclui o autor
afirmando que não é qualquer objeto de regulamentação
normativa que é bem jurídico, mas só aquele que tem de
desempenhar alguma função para a sociedade ou para um
de seus subsistemas.
Para Jakobs ação penalmente relevante é a objetivação
da falta de reconhecimento da vigência da norma, a
expressão no sentido de que a norma em questão não é a
máxima reitora (JAKOBS, 2003).
O crime é a contradição das normas determinantes da
sociedade. E a pena constitui a manutenção da sociedade.
Consistindo na confirmação dessa identidade social,
contradizendo a conduta criminosa do agente,
restabelecendo a vigência normativa.
Assim, a sanção contradiz o projeto do mundo do
infrator da norma onde este afirma a não vigência da norma
para o caso em questão, mas a sanção confirma que essa
afirmação é irrelevante. Logo a função da pena, dentro do
funcionalismo sistêmico é a preservação da norma enquanto
modelo de orientação para contratos sociais (JAKOBS, 2003).
Liber Discipulorum | 219

Em apertada síntese essas são as bases do


funcionalismo sistêmico defendido pelo professor alemão
Günther Jakobs na qual tencionamos abordar e demonstrar a
relevância de seu pensamento, trazendo a lume uma
proposta de debate sobre o tema, bem como ressaltando a
importância de conhecer e explorar esta importante e
inovadora ótica do sistema penal.
Mas não há nada que não seja passível de críticas, em
especial no mundo jurídico. E, com dito anteriormente, tal
concepção funcionalista do direito penal é assaz criticada
pela doutrina, nacional e estrangeira, e, não sendo imune a
elas, merecem a atenção na busca do aperfeiçoamento do
sistema e na aplicação do Direito Penal, tem necessário para
a pacificação social.

4 CRÍTICAS AO SISTEMA

Como toda teoria o funcionalismo sistêmico de Jakobs


não está livre das críticas. E cabe, como todo estudo,
expormos as ideias que se contrapõe ao pensamento
originário do autor posto que é necessário para criar o
ambiente salutar do bom debate, enriquecendo a dialética
cientifica.
Claus Roxin, de início concorda com alguns
posicionamentos de Jakobs quando diz que ele atribui à
conduta um significado social, de modo que ela não se
resume apenas a uma finalidade, com proposta pelo
finalismo, mas para a configuração correta do tipo a
220 | Para Onélia Queiroga

consumação deve estar conectada à lesão do bem (ROXIN,


2018).
Mas, por outro lado, Roxin já aponta contradições no
pensamento do seu conterrâneo ao aduzir que ‘se por um
lado se rechaça a doutrina da lesão do bem jurídico – a qual
é substituída pela desautorização da norma – e, ao mesmo
tempo, se estabelece uma lesão efetiva de um objeto de bem
jurídico como pressuposto para o injusto consumado’ (2018),
uma vez que tal ideia, de proteção da vigência da norma
como bem jurídico penal, não se compatibilizaria com
concepção da finalidade defendida por Jakobs, ou seja,
preservação da norma enquanto modelo de orientação para
contratos sociais.
Para Roxin tal problemática, da proteção do bem
jurídico e vigência da norma penal e da finalidade da pena
para Jakobs, não teria uma modificação de conteúdo na
teoria do injusto tradicional, mas seria apenas um troca de
nomes, explicando que:

Um desvalor da ação pode ser em si uma objetivação


que valha como um injusto completo, caso seja
concebido só como infração da norma. Mas como
num caso normal de fatos consumados só uma lesão
imputável do bem adquiri a condição de um
acontecimento significante para a infração da norma,
o injusto se funda realmente numa lesão ao bem
jurídico. Por esta razão, a tese de Jakobs, em virtude
da qual o Direito penal protegeria a vigência da
Liber Discipulorum | 221

norma e não bens jurídicos, encerra mais um


problema terminológico (ROXIN 2018).

Seguindo esse raciocínio crítico, o professor Felipe


Negreiros também tece seus comentários a respeito da
doutrina posta por Jakobs. Aduz que o pensamento
formulado pelo alemão proporciona um reducionismo
epistemológico, bem como uma objetivação dos sujeitos,
nesse sentido não concordado que:
O direito penal seja apenas resultado de uma
evolução que nos conduz a uma relação entre sujeitos
que, em uma perspectiva global, devem ser vistos
como titulares de algumas obrigações. Tais obrigações
seriam dispostas mediante uma pena que teria por
único ofício confirmar a identidade normativa, como
se fosse possível, pura e simplesmente, substituirmos
o princípio do bem jurídico pelo dogma da
danosidade social (DEODATO, 2012).

Nessa linha, a teoria de Jakobs é contraditória, assim


como pensa Roxin, ao defender o papel que o tipo penal
deve exercer, assim como elenca mais problemas do que
solução, pois faz gerar um processo de diminuição da
essência dos dogmas penais, em especial do bem jurídico, já
conhecidos (DEODATO, 2012).
Na perspectiva de Juarez Cirino dos Santos (2012)
Jakobs despreza o bem jurídico, tanto como objeto de
proteção quanto como critério de criminalização, ao
promover uma normatização dos conceitos ao estabelecer a
222 | Para Onélia Queiroga

finalidade do direito penal como a estabilização da norma.


Ocorreria um esvaziamento do caráter crítico da dogmática
penal e, como consequência, conduziria a uma
funcionalização ilimitada das normas penais, perdendo, o bem
jurídico, o seu caráter limitador da atividade legislativa
gerando uma expansão do direito penal (CALLEGARI;
LINHARES, 2017).
Nesse sentido o funcionalismo sistêmico de Jakobs
teria uma atenção especial com a eficiência do sistema penal
e, não teria a mesma preocupação com a legitimidade dos
meios utilizados para se atingir esta eficiência. Sendo, com
certas mudanças, um maquiavelismo, onde os fins
justificariam os meios.
A postura de Jakobs ante a funcionalidade da pena,
prevenção geral positiva, é também censurada pelos
doutrinadores penais. Os penalistas espanhóis Enrique
Peñaranda Ramos, Carlos Suárez Gonzáles e Manuel Cancio
Meliá (2013), também preocupados com a possível expansão
do direito penal, alerta que a ideia da pena como prevenção
geral positiva possui um caráter acrítico e tecnocrático, pois
encontra-se esvaziada da ideia de ressocialização.
Esses autores entendem que o erro crasso no sentido
da prevenção geral positiva da pena encontra-se no fato de
conceber a pena apenas em um plano simbólico ou
comunicativo. Logo, perde-se de vista o caráter retributivo
da pena, um mal dirigido a quem praticou o delito,
necessitando a pena de uma legitimação em relação ao seu
destinatário. Seguindo tal pensamento os referidos
catedráticos espanhóis escrevem que:
Liber Discipulorum | 223

A tese de Jakobs só serve para fundamentar que a


frustração de uma expectativa deve seguir “uma
consequência jurídica”, mas não diz nada, nem sobre
o tipo nem sobre a intensidade da consequência. De
maneira que a tese de Jakobs não fundamenta o
Direito Penal, senão qualquer forma de Direito
(Ramos; Gonzáles; Meliá 2013).

Ao concluir verifica-se que a grande crítica feita ao


sistema desenvolvido por Günther Jakobs a possibilidade de
ele servir não só em um Estado Democrático de Direito, mas
também podendo ser uma “arma” a ser utilizada com vigor
em um estado totalitário, ditatorial. Reacendendo uma
chama de preocupação ante o que foi o estado nazista e a
sua forma de exercício do ‘jus puniendi’, por meio do direito
penal.
Uma vez que a teoria da prevenção geral positiva
pode tanto legitimar um ordenamento jurídico-penal
garantidor de um modelo de Estado de Direito, como de um
modelo de estado ditatorial, o que dependerá da
“identidade social” em cada caso (CALLEGARI;
LINHARES, 2017).
O receio das críticas levantadas possui seus
fundamentos, como toda e qualquer ideia a concepção do
funcionalismo sistêmico de Jakobs também pode ser
utilizado para o bem ou para o mal. Porém este uso
dependera do sistema político instaurado e não da vontade
do doutrinador, do legislador e do aplicador do direito.
224 | Para Onélia Queiroga

Ao afirmamos isso, é importante assinalar que não


podemos perder de vista que, a teoria do funcionalismo
penal sistêmico, ao cabo, também se dirige à proteção do
indivíduo, e não só da coletividade, uma vez que ao se
preservar a sociedade, como um todo, essa pessoa,
singularmente considerada, também será resguardada em
sua liberdade ante a reafirmação da norma violada com a
aplicação da pena.
A pena, ante a prevenção geral positiva no sistema de
Jakobs, busca o restabelecimento da confiança social da
vigência da norma, e como consequência, acaba por garantir
uma vida livre de perigos à sociedade. Ao proteger o todo, a
sociedade, garante-se também a tutela da parte, o indivíduo,
que também possuem direitos que devem ser respeitados
pelos demais componentes da sociedade.
Dentro deste intricado funcionamento o direito penal,
integrante que é da sociedade, deve atuar de forma a
robustecer a comunicação social no sentido de não deixar a
norma violada com o crime cais no descaso, gerando uma
anomia. Mas sim, ante a ocorrência do fato criminoso
restabelecer a sua vigência, mostrando, através da pena, que
a norma se encontra válida e aplicável. E isso não deve gerar
receio sobre o regime político que fará a sua utilização, mas
sim, corresponde em mais uma teoria em favor de uma
sociedade que deseja ser protegida em seus direitos,
coletivos e individuais.
Liber Discipulorum | 225

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na tratativa do presente trabalho tecemos breves


comentários a respeito do penalista alemão Günther Jakobs,
sobre o seu funcionalismo sistêmico onde nos propusermos
a explanar sobre o que vem a ser tal teoria bem como
analisar a abordagem que ela toma para si do direito penal.
Um assunto palpitante e, como visto, por vezes de difícil
trato.
Para tanto lançamos mão de fazer um relato
biográfico do professor Jakobs, relatando um pouco de sua
origem, carreira acadêmica, bem como se sua relação com o
mestre Hans Welzel do qual foi aluno, discípulo e
responsável pela atualização de sua obra.
Elencamos contribuições feitas por ele para o direito
penal e sua dogmática. Trazendo as inovações e as suas
teorias desenvolvidas em sua produção acadêmica durante
os anos de trabalho tais como o direito penal do inimigo, a
visão sistêmica do funcionalismo e o seu contributo à teoria
da imputação objetiva.
Em sequência passamos a analisar o que se entende
por seu funcionalismo sistêmica. Observamos as suas raízes
filosóficas e sociológicas baseadas na teoria dos sistemas
desenvolvida pelo sociólogo e jurista alemão Niklas
Luhmans, como tais ideias influenciaram Jakobs na
concepção de sua teoria.
Adentramos na análise da teoria exposta por Jakobs
expondo a finalidade do Direito penal, uma vez inserido no
sistema social, é tido como garantidor da vigência dos
226 | Para Onélia Queiroga

valores positivados na norma penal, onde sua legitimidade


se encontra na necessidade de garantir a vigência das
normas, deslocando a própria norma penal para o centro
como o bem jurídico penalmente relevante para a tutela
penal. E a pena passa, perspectiva de prevenção geral
especial, se fundamenta no meio de restabelecimento da
vigência normativa, necessária para a manutenção da
sociedade.
Explanado o ponto central, apontamos que ele é
passível de críticas, e não poucas. Doutrinas nacionais e
estrangeiras tecem rigorosas críticas ao sistema
desenvolvido por Jakobs, em especial por advertirem que tal
construção dogmática leva a um expansionismo do direito
penal e que pode ser utilizado para legitimar um modelo de
estado totalitário, como o nazismo.
A par de tudo isso podemos trilhar como
considerações finais sobre o tema a importância e relevo do
papel de Günther Jakobs na construção de um novo sistema
de direito penal moderno e voltado para os acontecimentos
sociais da atualidade.
Ao lado do seu conterrâneo Roxin, aponta como uma
das grandes mentes criadoras do moderno direto penal,
objetivando uma maior efetivação da norma e uma
prevenção do cometimento dos crimes. E a sua importância
é revelada pelo número de obras que são escritas sobre seu
trabalho. Muito se desenvolvendo no estrangeiro.
Infelizmente, na literatura penalista nacional ainda é
pouco os estudos desenvolvidos sobre Jakobs, onde muitos
são trabalhados para tecer comentários a fim de
Liber Discipulorum | 227

desprestigiar e desqualificar seus pensamentos, e não em


compreender e entender. Objetiva-se mais um preconceito a
fim de afastá-lo de uma possível influencia na produção
legislativa nacional e na produção jurisprudencial e
acadêmica.
A sociedade e o direito evoluem. A ótica do bem
jurídico penal não é mais aquela clássica que aprendemos
nas cadeiras da universidade no início do século XXI.
Causalismo, finalismos foram superados, e o amor ao
passado não deve ser empecilho para o nascer de uma nova
visão dos dogmas penais.
Com este modesto articulado entendemos trazer um
pouco desta, não tão nova, mas instigante visão sobre as
bases do direito penal moderno, que, parafraseando
Nietzsche com sua filosofia a golpes de martelo, são
“chacoalhadas” com as marteladas dogmáticas propostas
por esse grande penalista alemão Günther Jakobs.

REFERÊNCIAS

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livre. Flórida: Wikipedia Fundation, 2021. Disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/G%C3%BCnther_Jakobs.
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como limites à expansão penal. São Paulo: Almedina, 2015.
CALLEGARI, André Luís; Raul Marques Linhares. Direito
penal e funcionalismo um novo cenário da teoria geral do
delito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2017.
228 | Para Onélia Queiroga

CAVALCANTI FILHO, João Trindade. O discurso do ódio


na jurisprudência alemã, americana e brasileira. Como a
ideologia política influencia os limites de expressão. São
Paulo: Saraiva Educação, 2018.
D´AVILA, Fábio Roberto. Ofensividade em direito penal.
Escritos sobre a teoria do crime como ofensa a bens
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DEODATO, Felipe A. F. de Negreiros. Adequação social.
Sua doutrina pelo cânone compreensivo do cuidado-de-
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GOMES, Luiz Flávio; YACOBUCCI, Guillermo Jorge. As
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André Luís Callegari. São Paulo: Revista dos Tribunais,
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direito penal funcional. Tradução: Mauricio Antonio Ribeiro
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______________. Proteção de bens jurídicos? Sobre a
legitimação do direito penal: 2ª ed. rev. Tradução: Pablo
Rodrigo Alflen. Porto Alegre: CDS Editora, 2021.
LLÁCER, Toni. Nietzsche, o super-homem e a vontade de
poder. São Paulo: Salvat, 2015.
LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas: 2ª ed.
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2010.
MOCCIA, Sergio. De la tutela de bienes a la tutela de
funciones: entre ilusiones postmodernas y reflujos iliberales.
Liber Discipulorum | 229

In SILVA SÁNCHEZ, Jesús María (org). Política criminal y


nuevo derecho penal. Libro homenaje a Claus Roxin. Barcelona:
Bosch, 1997.
NASCIMENTO, Diego Leal. Bem jurídico-penal reajustando
as expectativas em torno de sua função crítico-limitadora.
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RAMOS, Enrique Peñaranda; GONZÁLEZ, Carlos Suárez;
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Considerações sobre a teoria da imputação objetiva de
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RIOS, Dernival Ribeiro. Grande dicionário unificado da
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TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal: 4ª ed. São Paulo:
Tirant lo Blanch, 2019.
230 | Para Onélia Queiroga
Liber Discipulorum | 231

Parte II
Política Criminal Ontoantropológica
232 | Para Onélia Queiroga
Liber Discipulorum | 233

PENA E ESTABELECIMENTOS PRISIONAIS:


SURGIMENTO E EVOLUÇÃO HISTÓRICA ENTRE
SOCIEDADES E GERAÇÕES

Allan Vítor Corrêa de Carvalho 95


Mariana Soares de Morais Silva 2

Resumo: Este artigo está inserido no contexto histórico dos


estabelecimentos prisionais, como seu surgimento, estrutura
e para quais fins eram utilizados, como também as formas
de punições adotadas antes do surgimento das prisões,
desde quando se pôde documentar, da idade antiga até a
idade moderna. Possui como objetivo geral analisar em qual
momento histórico se deu o aparecimento das primeiras
prisões no mundo. No desenvolvimento desta pesquisa, foi
adotada como metodologia a pesquisa bibliográfica, de
forma descritiva e natureza qualitativa. Utiliza-se como
fonte de pesquisa doutrinas e artigos científicos, tendo como
principal referência Cesare Beccaria, Michel Foucault e
André Estefam, em parceria com Victor Eduardo Rios
Gonçalves. O que se busca responder é: Como se deu o
surgimento e evolução do sistema prisional? Assim,
embasado nas doutrinas utilizadas, tem como resultado o
descobrimento do surgimento das primeiras prisões na

95Mestrando em Direito e Desenvolvimento Sustentável pelo Centro


Universitário de João Pessoa - UNIPÊ. E-mail: allanvitoradv@gmail.com
2 Mestranda em Direito e Desenvolvimento Sustentável pelo Centro

Universitário de João Pessoa – UNIPE. E-mail:


marianasoaresmoraissilva@gmail.com
234 | Para Onélia Queiroga

história da humanidade, as formas que eram utilizadas e as


críticas que foram tecidas que serviram para sua evolução
até os modelos atuais.

Palavras-chave: História. Prisões. Penas. Estabelecimentos


prisionais. História das prisões.

1 INTRODUÇÃO

Muito se discute nos tempos atuais, quando se trata


de processos criminais e punições, acerca do sistema
prisional, principalmente em razão de nos últimos anos ter
sido pauta em diversos debates, dada a precariedade e
superlotação das prisões.
No entanto, pouco se discute sobre como era a
aplicação das punições antes das cadeias; como também em
qual momento histórico se deu o surgimento das prisões e
qual sociedade foi a responsável pela sua eclosão, para quais
fins serviam e qual era a estrutura das penitenciárias.
O estudo da história é de suma importância a fim de
entender as evoluções que determinadas práticas sofreram
junto à sociedade. Analisando a cronologia histórica se
entende os erros, os acertos, práticas que funcionam e as que
não funcionam. É por meio do estudo da história que se
entende e impede a prática de erros já cometidos pelos
antepassados, evitando-se um retrocesso, e isso também vale
para as prisões e as práticas prisionais.
Motivo cujo inspirou a elaboração do presente
trabalho, na busca de estudar todo o contexto histórico que
Liber Discipulorum | 235

envolve as prisões e as formas de punição das sociedades


antigas, mesmo antes da eclosão do sistema prisional.
O trabalho tem como objetivo geral analisar o
surgimento e evolução das primeiras prisões. Como
objetivos específicos, busca descrever e explorar as formas
de punir antes da existência dos presídios e discorrer acerca
da evolução do Direito Penal dos antepassados.
Na presente pesquisa foi adotada como metodologia
a pesquisa bibliográfica, de forma descritiva e de natureza
qualitativa, utilizando, de forma majoritária, doutrinas como
fontes de pesquisa, mas também utilizando-se de artigos
científicos.
No estudo, são utilizados como principais referências
teóricas os manuais de Direito Penal de Rogério Greco
(2017), Cezar Roberto Bitencourt (2019), Cleber Masson
(2020), Fernando Capez (2018) e André Estefam, em parceria
com Victor Eduardo Rios Gonçalves (2020) para fins de
buscar entender a evolução histórica das formas de punir e o
surgimento das prisões. Assim como foram utilizadas obras
de Cesare Beccaria (2015) e Michel Foucault (2014) para
entender as críticas às falhas dos modelos antepassados e o
que foi necessário para evolução tal qual vemos hoje se
comparado com modelos antigos.
O trabalho percorre um caminho evolutivo na análise
histórica. Parte-se, inicialmente, de uma análise do conceito
e surgimento da pena, imprescindível para aplicação de
punições. Em segundo momento, estuda-se as punições e o
Direito Penal antes do surgimento das prisões.
Posteriormente, debruça-se sobre a evolução do Direito
236 | Para Onélia Queiroga

Penal e da pena. Por fim, é demonstrado o aparecimento das


primeiras prisões pelo que se tem documentado na história,
tecendo uma análise evolutiva até os modelos atuais
existentes.

2 CONCEITO E SURGIMENTO DA PENA

Antes de abordar como e quais eram as punições em


períodos que não existiam as prisões, necessário se faz a
conceituação de pena, dado a relação intrínseca e
interdependente desta com o sistema prisional, ou seja, se
não há imposição de pena, inerte permanece o
estabelecimento prisional.
Como a maioria dos conceitos, este também encontra
dificuldades de definição uniforme em razão das variadas
perspectivas. O socialmente disseminado é que pena é a
medida imposta pelo Estado, ao infrator que comete um ato
típico, ilícito e culpável. Se aprofunda Capez (2018), ao
afirmar que é a imposição por parte do Estado de uma
sanção penal de caráter aflitivo ao delinquente pela prática
de uma infração, como forma de retribuição pelo seu ato,
promoção de sua readaptação social e prevenção de
reprodução da prática pela coletividade. Conceito cujo é a
tradução da teoria mista da pena, adotada no Brasil.
Discute-se, ainda, em qual momento histórico surgiu
a pena no mundo. Garutti e Oliveira (2012) explicitam que
até a religião pode trazer essa resposta, voltando aos
primórdios da existência do homem, com Adão e Eva, que,
proibidos de comer o fruto da árvore do paraíso, acabaram
Liber Discipulorum | 237

cedendo à serpente. Tendo, como consequência da


desobediência, a pena de deixarem o “Jardim do Éden” e
viverem com seus pecados, sendo, assim, Deus o
legitimador da pena.
Trazem, ainda, a explicação científica, que aponta que
o surgimento da pena se deu quando os primatas decidiram
descer das árvores para procurar alimento em solo, sendo
em seguida atacados por algum grupo rival, momento cujo
estariam sendo penalizados pela prática de um ato.
Por mais que não se tenha certeza quanto ao
determinado momento do surgimento da pena, o que se tem
documentado e certo é que desde os primórdios das
sociedades há a utilização de uma sanção aflitiva, seja ela
psicológica ou física, aplicada àqueles que são considerados
desviados segundo as normas, princípios e costumes de
determinada nação em determinado momento histórico.
Como enfatiza Masson (2020, p. 59) “o ponto de
partida da história da pena coincide com o ponto de partida
da história da humanidade”. É evidente que, em todos os
tempos e independentemente da raça, a pena é encarada
como uma intromissão na esfera do poder e da vontade dos
atos dos indivíduos, que foi se desenvolvendo para atender
as necessidades de sua época.

3 ANÁLISE DAS PUNIÇÕES E O DIREITO PENAL PRÉ-


PRISÕES
238 | Para Onélia Queiroga

O que se está documentado e é passível de estudo são


as fases da história da pena, que passaram por uma ordem
evolutiva até atingir o cenário atual.
Conhecida como a fase da vingança penal, época em
que a doutrina tende a identificar o início do
desenvolvimento do Direito Penal, divide-se em três
subfases: a vingança divina, a vingança privada e a vingança
pública. Apesar da doutrina organizar nesta ordem, tão
somente é para fins didáticos, não significando que,
historicamente, aconteceram nesta sequência, ou que
representam um ciclo evolutivo, visto que podem ter
ocorrido simultaneamente em diferentes sociedades
(ESTEFAM e GONÇALVES, 2020).
Portanto, a fim de entender o modelo de punição
atual por meio da utilização dos presídios, demonstra-se
necessário perpassar pelas formas utilizadas por nossos
antepassados durante a história.
Houve épocas que o ser humano não compreendia
completamente os fenômenos espirituais e naturais, fazendo
com que atribuíssem os acontecimentos às forças
sobrenaturais e divindades, que supostamente eram capazes
de premiar ou castigar os cidadãos de acordo com suas
práticas. O que fazia com que o grupo cujo desviante
participasse o punisse, por receio da ira divina estender a
punição a todo agrupamento. Assim, houve a concepção da
vingança divina como forma de pena, que não era aplicada
diretamente pela divindade, mas sim pelo grupo por medo
daquela. Época também de materialização dos totens e
tabus.
Liber Discipulorum | 239

Já a vingança privada decorre do crescimento da


população, que consequentemente gera uma complexidade
social. Essa forma de punição consistia na execução da lei do
mais forte, dado que a justiça era praticada com as próprias
mãos, e esse revide em muitas ocasiões não era dirigido ao
agressor, mas sim à sua família ou tribo, de forma mais
hostil, conhecida como a “vingança de sangue”, onde,
segundo Estefam e Gonçalves (2020), desencadeava um
infindável ciclo de uma verdadeira guerra, dado que a
resposta era sempre replicada pelo outro grupo com ainda
mais sangue.
Quando a transgressão era cometida por um
participante do próprio grupo, a ele era dado a “perda da
paz”, onde o sujeito era banido do convívio do seu grupo e
ficava à própria sorte. A denominação dada era pelo fato de
que estar inserido em uma comunidade e protegido por esta,
trazia sensação de paz ao homem primitivo, razão que ao ser
expulso, perdia sua paz.
Em decorrência da evolução da espécie humana, e por
influência do Direito Romano e do Cristianismo, viu-se a
necessidade das punições se tornarem mais proporcionais,
dado o fato de que alguns grupos estavam sendo
aniquilados. Sabe-se que, desde o início das sociedades, a
punição tinha uma tendência vingativa, de modo que as
penas tinham um elevado grau de severidade. Não havia,
ainda, a ideia de uma privação de liberdade, tampouco de
ressocialização. Em razão disso, surgiu, no Código de
Hamurabi, a Lei do Talião, também conhecida como
vingança limitada, cujo proporcionava a ideia de
240 | Para Onélia Queiroga

proporcionalidade e compatibilidade: “olho por olho, dente


por dente”, entre vítima e autor, e não mais seu grupo ou
familiares, de forma que a penalização deveria equivaler ao
dano causado pelo delito, devendo o sofrimento do agente
delitivo ser o mesmo que este causou ao cometer o ato
delituoso (CASTRO, 2010).
No entanto, com o elevado número de infratores e
populações deformadas, o Talião acaba sendo substituído
pela composição pecuniária em razão do mal produzido
pelo transgressor, sendo uma clara demonstração dos traços
de proporcionalidade do Direito Penal germânico.
Por fim, adentra-se na vingança pública, época
marcada pela evolução política e melhor organização
comunitária, onde o Estado se coloca na posição de manter a
ordem e a segurança social, legitimando aos seus agentes a
função de punir em seu nome, é a nítida assunção do caráter
público da pena (MASSON, 2020).
Não obstante, como cita Garutti e Oliveira (2012), as
punições cruéis ainda se faziam presentes, por meio de
esquartejamento, fogueira, decapitação, forca, mutilações,
suplícios, entre outras, onde os menos abastados eram os
mais afetados.

4 CONTEXTUALIZAÇÃO DA EVOLUÇÃO DO DIREITO


PENAL E DA PENA

Com o Estado retirando a punição da competência do


povo e avocando para si o poder de punir, não significou em
penas mais humanizadas, mas sim em castigos cruéis e
Liber Discipulorum | 241

sofríveis até evoluir para substituição destes por restrição da


liberdade em prisões.
Ganha destaque nessa fase, por volta do ano 1140, o
Direito Penal Canônico, ordenamento jurídico da Igreja
Católica Apostólica Romana. Com o enfraquecimento da
figura do Estado e crescimento da Igreja, as regras eram
aplicadas a religiosos e leigos, instaurando-se um verdadeiro
procedimento de inquisição, com utilização de tortura e
penas cruéis.
Apesar da pena demonstrar caráter retributivo, com a
utilização de crueldade em nome do senhor divino, o intuito
do Direito Penal canônico era de curar o transgressor,
buscando estimular o seu arrependimento. Ainda que a
Igreja tivesse grande responsabilidade, os desviantes
recebiam seu julgamento mediante arbítrio do Estado, que
possuíam íntima vinculação com a ordem cristã. Ademais, o
povo não possuía direito de defesa ou sequer passavam por
um devido processo legal, mas sim por torturas que visavam
confissões, que, geralmente, se findavam em forca, fogueira,
mutilações e afogamentos (MASSON, 2020).
Não obstante a utilização dessa forma de punição,
houve uma contribuição considerável do Direito Penal
Canônico para o surgimento das prisões. Em razão de
objetivarem o arrependimento do transgressor, o cárcere
serviu como forma espiritual de castigo, dado que o homem,
isolado e sozinho, poderia refletir sobre seus atos e passaria
pelo sofrimento que sua alma necessitava para a purificação
diante de Deus.
242 | Para Onélia Queiroga

De acordo com o pensamento da Igreja,


a prisão penal não se destinava a
castigar o condenado, mas levá-lo ao
isolamento propício à reflexão
salvadora, bem como servia para
impedir que ele continuasse a exercer
más influências no rebanho cristão.
(GONZAGA, 1993, p. 135).

Diante das similaridades, busca-se fazer, no


momento, uma breve comparação com as teorias da
finalidade da pena do ordenamento jurídico atual. Seguindo
o entendimento de Roxin em sua obra de Derecho Penal Parte
General, a teoria absoluta traz que a pena é tão somente uma
retribuição ao mal do crime, não se preocupando com o
criminoso, ou seja, não há outro interesse que não seja a
mera penalização, ignora-se o efeito social (GRECO, 2017).
Já na teoria relativa, em resumo, como menciona
Bitencourt (2019), a pena tem fim de evitar a nova prática do
delito e servir de exemplo para a sociedade do que não
fazer, além de buscar a ressocialização do transgressor.
Por fim, a teoria mista, como o próprio nome
demonstra, é a combinação das duas teorias
supramencionadas, tendo a pena, nesse caso, o objetivo de
retribuir o mal causado pela prática do delito, prevenir a
prática de novos delitos e propiciar a ressocialização.
Retornando ao estudo histórico e em exercício de
análise ao Direito Penal Canônico, nota-se que os objetivos
buscados muito se aproximam do que a teoria mista da pena
Liber Discipulorum | 243

propõe, dado que à época em questão, apesar das severas


punições, já buscava-se o arrependimento e purificação do
transgressor por meio da reflexão dentro do cárcere, até
chegar no que se é visto hoje em dia, principalmente no
Brasil, em que a ressocialização é um dos objetivos da pena,
de forma que não há prisão perpétua, tampouco pena de
morte, garantindo os direitos dos apenados enquanto
sujeitos de direito, como preconiza a legislação vigente no
referido país.

4.1 INSTITUIÇÃO DAS PRIMEIRAS PRISÕES E SUA


EVOLUÇÃO HISTÓRICA

Não somente o Direito Penal passou por evoluções,


mas também o sistema prisional. Em verdade, este último se
viu na necessidade de evoluir enquanto a norma jurídica se
transformava.
Na idade antiga, por volta do século VIII a.C até V
d.C, e muito por conta da criação da escrita, é onde se vê
documentado o surgimento das primeiras prisões, ou um
projeto do que particularmente conhecemos de uma.
Por se tratar de um período no qual a pena não
possuía um caráter a não ser o domínio estatal sobre o
sujeito, os locais que serviam para os encarceramentos
visavam os suplícios, ou seja, as pessoas eram postas em
calabouços, masmorras, ruínas e torres de castelos.
Menciona Carvalho Filho (2002) sobre as descrições destes
locais, que revelam a insalubridade, falta de iluminação e
ausência de higiene, no qual os presos quase sempre
244 | Para Onélia Queiroga

adoeciam e corriam o risco de morte antes mesmo de


julgamento e condenação, demonstrando-se, dessa forma, o
interesse estritamente no tormento físico.
Adentrando na idade média, que se passa entre 476 a
1453, é o período cujo a Igreja Católica exerce grande
influência. Nesta fase, as prisões ainda mantêm a
característica de tão somente conservar o preso para garantia
da aplicação das punições, como castigos corporais e pena
de morte, que, seguramente, em algum momento seriam
aplicadas. Permanece, ainda, a realidade que já se via na
idade antiga, com a falta de estrutura e arquitetura
adequada para o encarceramento, utilizando-se de
masmorras e ruínas, tomadas pela escuridão e morbidez. As
punições também se tornaram mais desumanas, como
amputação dos braços, suplício na fogueira, degola e
queimadura a ferro em brasa.
Outrossim, em razão da Igreja, houve o surgimento
da separação entre cárcere do Estado e o cárcere eclesiástico,
onde, basicamente, o primeiro estava destinado àqueles que
estavam encarcerados aguardando sua punição, como já
explanado, enquanto o segundo destinava-se aos clérigos
rebeldes, com o fim de que se arrependessem do mal
praticado. Evidentemente não permaneciam presos no
mesmo ambiente que os cidadãos comuns, mas sim em
mosteiros.
Partindo-se para a análise da Idade Moderna, que
inicia-se a partir de 1453, é que se nota uma mudança de
paradigmas. Constituição do Estado Moderno,
Liber Discipulorum | 245

desenvolvimento político, social, econômico e presença do


Capitalismo foram algumas mudanças sofridas pelo Estado.
Em mesmo passo evoluíram as prisões, as penas, o
porquê e como encarcerar, mas, apenas a partir da segunda
metade do século XVIII. Um movimento que de fato
contribuiu na mudança da pena privativa de liberdade e de
mentalidade no que diz respeito à pena criminal e das
prisões, fora o Iluminismo. Outro fator foi a crise econômica
que elevou o número de delitos patrimoniais, não vendo
mais o Estado efeito na pena de morte e no suplício,
demonstrando-se a prisão como meio mais eficaz de
controle social (ESPEN, 2021).
Do iluminismo nasceram importantes estudiosos, como
Beccaria (2015), o principal humanizador das ciências
penais, cujo tecia críticas à violência e ao vexame das penas
desumanas que eram aplicadas sob um falso princípio da
legalidade, como também à falta de paralelismo entre os
delitos praticados e as penas aplicadas, oportunidade em
que passou a exigir garantias processuais ao acusado
visando sua proteção frente ao sistema. Através das ideias
de Beccaria, observa-se que havia defesa do que hoje no
Brasil chama-se de princípio da reserva legal, elencado no
art. 5°, II, CRFB/88. A pena de morte e penas severas se
consideravam uma guerra declarada contra cidadãos e não
tinha justificativa em nenhum direito (BECCARIA, 2015).
Não somente isso, como também foi importante
militante no que diz respeito à separação dos poderes, visto
que influenciaria diretamente na correta aplicação da pena e
nas garantias processuais do acusado. Para isso,
246 | Para Onélia Queiroga

demonstrava-se necessário a figura de um soberano que


administrasse as liberdades individuais de forma legítima,
sendo esse poder superior representado pelo legislador. Ou
seja, tão somente a lei, determinada pelo soberano, poderia
determinar as penas dos crimes, usurpando do magistrado o
poder de decidir a penalidade a ser aplicada, o que,
consequentemente, impediria a discricionariedade quanto a
aplicação de punições desumanas, desiguais e
desproporcionais - que eram extremamente comuns à época
- por meio de uma lei geral igual para todos (BECCARIA,
2015).
Nota-se, por meio de Beccaria, a sua tentativa de
vincular o magistrado, representante do poder estatal, à
norma escrita, com o fim de garantir, como supracitado, as
garantias processuais e dignidade do acusado.
Outro importante filósofo, Foucault (2014), discorre
que o surgimento das prisões modernas se dá junto a duas
revoluções que marcaram o século XVIII, quais sejam:
Revolução Francesa e Inglesa, e afirma que o modelo
prisional atual tem relação direta com a ascensão da
burguesia ao poder, dado que as prisões foram muito
utilizadas para encarcerar e “educar” aqueles que não se
adequavam ao sistema industrial.
Com o surgimento e críticas de grandes filósofos e
estudantes das ciências criminais no decorrer das gerações,
as prisões não mais pensavam em apenas conservar o preso
a fim de aguardar sua punição, como se fazia no passado,
mas sim o cárcere já se tornara um método de punição, o
Liber Discipulorum | 247

cumprimento da sua pena, cujo encarcerado um dia teria


oportunidade de ser posto novamente em liberdade.

O protesto contra os suplícios é encontrado


em toda parte na Segunda metade do século
XVIII: entre os filósofos e teóricos do
direito; entre juristas, magistrados,
parlamentares; e entre os legisladores das
assembleias. É preciso punir de outro
modo: eliminar essa confrontação física
entre soberano e condenado; esse conflito
frontal entre a vingança do príncipe e a
cólera contida do povo, por intermédio do
supliciado e do carrasco (FOUCAULT,
2014, p. 73).

Sendo assim, observa-se que Foucault vislumbrava


que já na segunda metade do século XVIII existiam
reivindicações contra os chamados suplícios, em que o
transgressor era gravemente ferido e torturado como forma
de punição. Desta feita, contempla-se uma mudança no
modo de punir, de forma que haja uma reintegração do
criminoso na sociedade.
O mesmo autor afirma que o suplício era uma forma
de reavivar o poder, e não promover justiça. Assim sendo, a
partir da segunda metade do século XVIII, as prisões que
conhecemos atualmente começaram a tomar forma,
atribuindo-se um caráter de estabelecimento público para
fins de privação de liberdade, adotando como prerrogativa o
248 | Para Onélia Queiroga

rigor, a regulamentação, a severidade, repressão ao delito e


visando a reinserção social do transgressor.
Foucault (2014) relata que a prisão castigo era um
modo óbvio de punir o delinquente. O mesmo ainda
considera que desde o início do século XIX, havia
consciência sobre a novidade daquela instituição e afirma
que ela surgiu em ligação com a forma que a sociedade
subsistia, afastando e colocando no esquecimento as
punições que foram imaginadas no século XVIII
(FOUCAULT, 2014).
As prisões tornaram-se a essência do modelo
punitivo, e elementos e particularidades da história da
sociedade, como conflitos, erros, críticas, acertos e
mudanças, construíram a base do atual modelo do sistema
carcerário, que visam não só dar uma retribuição ao mal
praticado e afastar o sujeito da sociedade, como também o
recuperar, a fim de que torne, um dia, a novamente ser parte
e contribuir para a sociedade. Permanece atual o
entendimento de Foucault quando se refere que é sabido
todos os inconvenientes da prisão, de forma que ela se
tornou perigosa e inútil, e que é uma solução detestável, mas
que não se pode abrir mão (FOUCAULT, 2014).
Atualmente, no Brasil, a Lei de Execução Penal tem o
intuito de estabelecer diretrizes, tendo “por objetivo efetivar
as disposições de sentença ou decisão criminal e
proporcionar condições para a harmônica integração social
do condenado e do internado” (BRASIL, 1984). A LEP
preocupa-se em reger o processo e fiscalizar o cumprimento
Liber Discipulorum | 249

da sentença, para que evite-se o ócio e traga benefícios aos


apenados, com vistas à ressocialização (AVENA, 2016, p.1).
Acerca do panorama da ressocialização, o autor
Alvino de Sá reforça que a sociedade também possui
responsabilidade, frisando que:

pela reintegração social, a sociedade


(re)inclui aqueles que ela excluiu,
através de estratégias nas quais esses
excluídos tenham uma participação
ativa, isto é, não como meros ‘objetos
de assistência’, mas como sujeitos
(2005, p. 11).

Sendo assim, demonstra-se a importância de incluir a


sociedade no conhecimento e no apoio para o cumprimento
de pena e principalmente para o convívio extramuros dos
presídios, quando o apenado se torna egresso, de forma que,
reforça-se, atualmente, a ressocialização - e não só a punição
- faz parte da realidade encontrada dentro dos ergástulos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Denota-se, pelo que fora debatido, que os modelos


atuais de prisões que conhecemos nem sempre existiram,
assim como o Direito Penal e as formas de punição não são
as mesmas dos antepassados.
Outrossim, restou demonstrado que o Direito Penal,
as punições e as prisões estão diretamente ligados, dado o
250 | Para Onélia Queiroga

fato que estes dois últimos só passaram por mudanças


durante a história da humanidade após a evolução do
primeiro.
No início de tudo, ou a partir de quando se consegue
documentar a história, as prisões não existiam. Os grupos
sociais, quando do cometimento do crime, eram dominados
por uma sangria, que ficou conhecida como a fase da
vingança penal.
A partir disso a formas de punições são analisadas
desde a idade antiga até a idade moderna e só apenas na
idade média que se observa o surgimento das prisões, no
entanto, não sendo utilizada de forma ideal, dado a
inadequabilidade do local e as punições desumanas e
desproporcionais aos delitos praticados.
Chega-se à conclusão de que só apenas com o
surgimento de estudiosos e críticos do sistema atual à época,
iniciou-se a reformulação dos presídios e da forma de punir,
chegando até o que é visto atualmente em todos os sistemas
prisionais do mundo.
Cesare Beccaria, principal representante do
Iluminismo penal e considerado o principal humanizador
das ciências penais, foi de extrema importância para a
mudança - conhecedor dos absurdos do cárcere, visto ter
vivenciado em pessoa por ter sido preso - desde o século
XVIII já defendia a separação dos poderes, previsão de
penas tão somente por meio do legislador, aplicação de
penas proporcionais aos delitos, além de dignas e
humanizadas, extinção da tortura como meio de punição e
Liber Discipulorum | 251

método investigativo, como também, garantias processuais


aos acusados.
Assim, desde após a segunda metade do século XVIII,
as prisões e as formas de punições se amoldaram para os
modelos atuais conhecidos e previstos nas legislações. No
Brasil, observa-se que a Lei de Execução Penal traz questões
relacionadas a totalidade do cumprimento de pena, desde
questões relacionadas à estrutura física dos ergástulos, até
direitos e deveres do apenado, como por exemplo
assistência à saúde, liberdade religiosa, trabalho e educação
no ambiente carcerário, sempre visando preservar a
dignidade do preso enquanto ser humano, visto que não há
pena perpétua no país e haverá o retorno à sociedade após o
cumprimento integral da sentença.

REFERÊNCIAS

A história das prisões e dos sistemas de punições. Escola de


Formação e Aperfeiçoamento Penitenciário. 12 abr. 2021.
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http://www.espen.pr.gov.br/Pagina/historia-das-prisoes-
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esquematizado. 3º ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro:
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252 | Para Onélia Queiroga

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal:


Parte Geral. 25 ed. São Paulo: Saraiva, 2019.
BRASIL. Lei nº. 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei
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http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L7210.htm.
Acesso em: 30.out.2022.
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: Parte geral. 22.
ed. São Paulo: Saraiva, 2018.
CARVALHO FILHO. Luis Francisco. A prisão. São Paulo:
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CASTRO, Flávia Lages de. História do Direito: geral e Brasil.
8. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
ESTEFAM, André; GONÇALVES, Victor Eduardo Rios.
Direito Penal Esquematizado: Parte Geral. 9 ed. São Paulo:
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FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão.
Tradução de Raquel Ramalhete. 45 ed. Rio de Janeiro:
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GARUTTI, Selson; OLIVEIRA, Rita de Cássia da Silva. A
prisão e o sistema penitenciário – Uma visão histórica.
Seminário de Pesquisa do PPE, Maringá, maio 2012.
Disponível em:
http://www.ppe.uem.br/publicacoes/seminario_ppe_2012
/trabalhos/co_02/036.pdf. Acesso em: 13 out. 2022.
GONZAGA, João Bernardino Garcia. A inquisição em seu
mundo. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 1993.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal Parte Geral. 19 ed.
Rio de Janeiro: Impetus, 2017.
Liber Discipulorum | 253

MASSON, Cleber Rogério. Direito penal esquematizado:


Parte geral. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo:
Método, 2020.
ROXIN, Claus. Derecho penal – Parte general. t. 1. Tradução
de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García
Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Civitas, 1997.
SÁ, Alvino de. Sugestão de um esboço de bases conceituais
para um sistema penitenciário. São Paulo: SAP, 2005.
254 | Para Onélia Queiroga

CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DA POLÍTICA CRIMINAL:


VIOLÊNCIA DOMÉSTICO-FAMILIAR NO BRASIL

Allan Jones Andreza Silva96

RESUMO: Este artigo tem o escopo de analisar como,


historicamente, vem sendo estabelecida a política criminal
de enfrentamento à violência doméstica e familiar no Brasil.
Sob o aspecto metodológico, utilizou-se as técnicas de
pesquisa documental e bibliográfica como instrumentos
para possibilitar uma abordagem histórica sobre a evolução
normativa brasileira. Neste norte, observou-se que a
evolução dos direitos femininos no país, protagonizados
sobretudo a partir do século XX, influenciados pelos
movimentos feministas, culminaram na inscrição no
discurso constitucional de 1988 da ideia de igualdade e
paridade de poderes familiares entre os sexos, o que
constituiu o supedâneo para tutela jurídica do ambiente
privado, algo que fora reforçado pela Lei Maria da Penha,
instituindo uma política de enfrentamento à violência
doméstica e familiar por via da proteção integral feminina.

Palavras-Chave: Mulher. Direitos. Cidadania. Violência.

96Doutorando e mestre em ciências jurídicas (UFPB), Especialista em


Direitos Fundamentais e Democracia (UEPB), Bacharel em Direito
(UEPB) e Segurança Pública (PMPB).
Liber Discipulorum | 255

1 INTRODUÇÃO
Segundo a pesquisa elaborada pelo Fórum Brasileiro
de Segurança Pública e Datafolha (2019), 16 milhões de
mulheres com 16 anos ou mais sofreram algum tipo de
violência nos últimos 12 meses da elaboração da pesquisa,
além do que, só em 2017, no Brasil foram assassinadas 4.936
mulheres, correspondendo a uma média de 13 vitimizações
por dia (IPEA; FBSP, 2019). Constata-se, desta maneira, que
a violência contra a mulher ainda é uma prática ainda muito
frequente no Brasil, o que demonstra a necessidade de
debate-la para não só melhor identificar os casos, mas
também estabelecer políticas e ações de enfrentamento.
A violência mencionada não se resume a vitimização
por atos de agressão física, mas também, como bem lembra
Soihet (2009), abarca o desequilíbrio fático das relações de
gênero e a legitimação desta ordem de desigualdade pelo
Direito através da normatização de várias formas de
controle social e político97, de discriminação e submissão
feminina98. Nesta feita, compreende-se que o processo de

97 Segundo Lima e Portela (2022), mesmo sabendo que mais da metade


da população brasileira é feminina (51,13%), correspondendo a 53% do
eleitorado, as mulheres ocupam hoje menos de 15% dos cargos eletivos.
98 As teorias construídas e instauradas por homens - estabelecendo o

duplo discurso do homem sobre o homem e do homem sobre a mulher -,


restritivas da liberdade e da autonomia feminina, que convertem uma
relação de diferença numa hierarquia de desigualdade, configuram uma
forma de violência – a violência simbólica. Importa ressaltar que,
reconhecer nesse particular a incidência sobre as mulheres da violência
simbólica, a qual supõe a adesão dos dominados às categorias que
embasam sua dominação, ajuda a compreender como relação de
dominação – que é uma relação histórica, cultural e linguisticamente
256 | Para Onélia Queiroga

enfrentamento à violência contra a mulher é o produto de


uma luta história por reconhecimento de direitos, pelo
interesse no acesso em igualdade de condições aos espaços
públicos e participação dos diversificados âmbitos de
convivência social, política, econômica, jurídica e cultural,
pela fundamental proteção da sua intimidade, da sua
integridade física, psicológica, moral e sexual, de respeito a
sua liberdade de pensar, ser e agir, da sua possibilidade de
convivência familiar e doméstica segura e saudável, enfim,
da tutela da sua dignidade humana.
Neste contexto, o presente trabalho analisa como vem
sendo historicamente construída a política criminal99 de
enfrentamento à violência doméstica e familiar contra
mulher no Brasil. Para atender tal finalidade, foi realizada
uma pesquisa de caráter histórico-documental, nos termos
de Marconi e Lakatos (2003), a fim de coletar as principais

construída – é sempre afirmada como uma diferença de ordem natural,


radical, irredutível, universal (SOIHET, 2009, p. 167)
99 Para Desmas-Marty (1986, p. 19), “desde que Fuerbach definió la

politica criminal como << el conjunto de métodos repressivos com los


que el Estado reacciona contra el crimen>>, limitándola, así, a uma
espécie de reflexión sobre el Derecho penal, la perspectiva se há
ampliado progresivamente”, desta maneira ela pode ser pensada desde
uma concepção política como “aquel conjunto de medidas, criterios y
estrategias, de caracter juridico, social, educativo, economico y de indole
similar, estabelecidos por los poderes publicos para prevenir y
reaccionar frente al fenomeno criminal, con el fin de mantener bajo
limites tolerables los indices de criminalidad en una determinada
sociedade” (JIMÉNEZ, 2003, p. 148) ou até mesmo como um âmbito
teórico, que é expresso como “aquel sector del conocimiento que tiene
como objeto el estudio el conjunto de medidas, criterios y argumentos
que emplean los poderes publicos para prevenir y reaccionar frente al
fenomeno criminal” (JIMÉNEZ, 2003, p. 148).
Liber Discipulorum | 257

normas que versam sobre o reconhecimento dos direitos


femininos e, por conseguinte, como estes se tornaram objeto
de tutela penal, sobretudo nos âmbitos doméstico e familiar.
Neste ínterim, reconhece-se que durante a evolução
histórico-normativa dos direitos femininos no Brasil duas
normas constituíram marcos que podem ser considerados
como fundamentais: I) a Constituição de 1988, que um
reconhecimento de um vasto rol de direitos, sobretudo ao
reconhecer a igualdade entre os sexos e a importância do
papel social da mulher; II) a lei nº 11.340/2006, conhecida
como Lei Maria da Penha, que estabeleceu os mecanismos
para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher
e medidas de proteção às vítimas, constituindo um pilar da
política nacional de enfrentamento e que serviu de
inspiração para a edição de outras propostas de prevenção e
coibição desta prática.
Desta maneira, o trabalho foi estruturado em três
capítulos: o primeiro trata dos direitos femininos no Brasil
até a promulgação da Constituição de 1988; o segundo versa
sobre o reconhecimento dos direitos femininos após a Carta
Cidadã de 1988; e o terceiro aborda a dogmática penal de
enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a
mulher.

2 ALGUNS APONTAMENTOS SOBRE OS DIREITOS


FEMININOS NO BRASIL ATÉ A CONSTITUIÇÃO DE 1998
258 | Para Onélia Queiroga

O processo de colonização no Brasil foi formulado a


partir de paradigma socio-jurídico excludente100, de
segregação sexual pela via da reprodução de uma cultura
patriarcalista101 com reflexos também econômicos e culturais
no decorrer da história colonial nacional. Esta é uma
circunstância constatada desde as primeiras
regulamentações que vigoraram no Brasil-Colônia (a
exemplo das Ordenações102), as quais legitimavam a
subordinação jurídica e social da mulher ao pai ou marido e
a excluía da participação política, civil e administrativa, de
maneira que ela não podia sequer se candidatar a cargos
eclesiásticos, políticos, públicos etc., uma condição que,

100 A este respeito, descreve Wolkmer (2002, p. 71) que “[...] a


especificidade da estrutura colonial de Justiça favoreceu um cenário
institucional que inviabilizou, desde seus primórdios, o pleno exercício
da cidadania participativa e de práticas político-legais descentralizadas,
próprias de sociedade democrática e pluralista”. Sérgio Souza (2009, p.
28) lembra algumas disposições das Ordenações Filipinas: “A Mulher
tem necessidade de permanente tutela” (Título 61, § 9º); “mulher tem
fraqueza de entendimento” (Título 107); “O marido podia castigar a
mulher” (Títulos 36 3 95); “o marido podia matar a mulher em caso de
adultério” (Título 38).
101 Para Ávila et al (2020, p. 134), nas relações patriarcais o “homem é

reconhecido junto à organização social como aquele que detém o


exercício do poder sobre a mulher, sedimentando as bases da dominação
masculina e das relações desiguais, o que acaba por disseminar a ideia
de naturalização dessa dominação, direcionando ao homem uma
autorização permanente para o exercício do poder violento nas
relações”.
102 “De fato, o Direito vigente no Brasil-Colônia foi transferência da

legislação portuguesa contida nas compilações de leis e costumes


conhecidos como Ordenações Reais, que englobavam as Ordenações
Afonsinas (1446), as Ordenações Manuelinas (1521) e as Ordenações
Filipinas (1603)” (WOLKMER, 2002, p. 48).
Liber Discipulorum | 259

inclusive, ainda ganhou o apoio desde o início da Igreja


Católica (DEL PIORE, 2003)103.
Durante o período imperial não é constatada uma
grande evolução dos direitos das mulheres, uma vez que
não se observa na Constituição de 1824, ou até mesmo nas
legislações editadas durante todo este período, qualquer
previsão normativa que viesse a assegurar um papel ativo
da mulher em âmbito político, econômico ou social, o que
facilmente demonstra a ausência de uma matriz jurídica de
proteção aos interesses femininos104.
Até ao assumir a condição de vítima, o fator sexual
era sopesado, inclusive possibilitando a existência de
justificativas às práticas delituosas masculinas. A este
respeito, por exemplo, o Código Criminal de 1830 dava trato
distinto a vítima de estupro, se mulher “honesta” ou
“prostituta”, o que culminava em sanções diferentes, além
do que permitia a extinção da punibilidade se o acusado
casasse com a vítima.

103 “Sua quase invisibilidade as identificava ‘aos de baixo’. Isso porque a


maioria das mulheres era analfabeta, subordinada juridicamente aos
homens e politicamente inexistente. Sua condição as excluía de qualquer
exercício de função nas câmaras municipais, na administração
eclesiástica, proibindo-as de ocupar cargos de administração que lhes
garantissem reconhecimento social. O sistema patriarcal instalado no
Brasil colonial, sistema que encontrou grande reforço na Igreja Católica
que via as mulheres como indivíduos submissos e inferiores, acabou por
deixar-lhes, aparentemente, pouco espaço de ação explícita” (DEL
PIORE, 2003, p. 09).
104 Segundo aponta Carvalho (2013), a Magna Carta Imperial, além de

adotar um critério censitário, não estendeu o direito ao voto às mulheres


e aos escravos.
260 | Para Onélia Queiroga

Sobre este contexto, Soihet (2009) aponta que, na


história brasileira, inúmeros acusados lançavam mão da
suspeita de adultério para justificar a prática de homicídio
da sua companheira, recorrendo ao argumento da “legítima
defesa da honra”, não obstante o que era criminalizado, até
mesmo após a edição do Código Penal de 1890, era a
infidelidade feminina, não havendo as mesmas restrições ao
homem desde que ele não ameaçasse o patrimônio familiar.
O início do período republicano não foi marcado por
grandes avanços, até porque a Magna Carta de 1891, muito
embora trouxesse no seu art. 72 a previsão de uma ideia de
isonomia perante a lei, esta visava unicamente extinguir os
privilégios e títulos honoríficos de uma nobreza decadente,
não se prestando, na prática, a intentar superar os graves
desníveis sociais. Além disso, o Código Civil de 1916 (em
vigor até 2001), em sua redação original, considerava a
mulher casada como relativamente incapaz105, algo
superado apenas após a edição da Lei nº 4.121/1962
(Estatuto da Mulher Casada).
Pode-se considerar que um dos primeiros avanços do
período republicado foi a aprovação do Código Eleitoral
Provisório de 1932 que reconheceu o direito ao voto
feminino, muito embora ainda persistisse algumas

105 “A mulher, ao casar-se, perdia, portanto, nos termos do artigo 233 do


Código Civil de 1916, a capacidade civil plena, pois só podia trabalhar
ou realizar transações financeiras se tivesse autorização do marido para
tanto. A mulher nos termos do Código Civil de 1916 detinha, ao lado dos
silvícolas, pródigos e menores púberes, capacidade relativa, pois para
gerir os atos da vida civil necessitava da assistência do marido”
(BARRETO, 2010).
Liber Discipulorum | 261

restrições106 ainda assim esta era uma condição a frente de


muitos países, como, por exemplo, da Suíça, que apenas
garantiu esse direito a partir de 1971 (COMPARATO,
2013)107.
A Constituição de 1934 foi a primeira a trazer em seu
texto a ideia de igualdade de sexos e a previsão de alguns
outros direitos femininos108, algo que foi seccionado pela
Constituição de 1937 (a qual manteve apenas o direito ao
voto e a proibição de trabalhos insalubres, omitindo em seu
texto a previsão desta ideia de igualdade). Já a Magna Carta
de 1946 retomou muitos direitos109, que permanecem

106 O Código Eleitoral Provisório de 1932 garantiu o direito ao voto


feminino, mesmo assim de modo ainda bastante limitado, pois só era
possível exercê-lo com a autorização do marido, no caso das mulheres
casadas, e restrito às viúvas e solteiras com renda, ou seja, apenas uma
pequena parcela dispunha da possibilidade de seu exercício. Importante
ainda anotar que apenas a partir da Magna Carta de 1934 que tal direito
ganhou status constitucional.
107 Segundo Comparato (2013, p. 302-303), “Na vida política, a

discriminação contra as mulheres vigorou, também, até o século XX. O


primeiro país a reconhecer às mulheres o direito de voto foi a Nova
Zelândia em 1893. [...] Foi somente após a Segunda Guerra Mundial que
alguns países ocidentais, como a Itália e a França, admitiram as mulheres
no corpo eleitoral. [...] O último país ocidental a reconhecer às mulheres
o direito de votar foi a Suíça, em 1971, mas não em todos os seus
cantões”.
108 A Constituição de 1934 previa em seu art. 113, item 1, que “Todos são

iguais perante a lei. Não havendo privilégios nem distinções, por motivo
de nascimento, sexo [...]”, além de declarar direitos femininos como: o
voto (em seu arts. 108 e 109), proibição de diferenciação de salários para
um mesmo trabalho por motivo de sexo (art. 121, § 1º, alínea “a”) e a
vedação de trabalho em indústrias insalubres (art. 121, § 1º, alínea “d”) e
a garantia do acesso a cargos públicos sem distinção de sexo (art. 168).
109 Dentre os quais: a proibição da diferença salarial por motivo de sexo

(art. 157, II), proibição de trabalho de mulheres em industrias insalubres


262 | Para Onélia Queiroga

previstos nas Constituições subsequentes. Não obstante, as


discussões sobre os direitos femininos, no Brasil pré-
Constituição de 1988, ganhou efervescência nos campos
político e social principalmente durante o Regime Militar,
impulsionadas pelos movimentos feministas110 em prol da
garantia de direitos, superação das restrições e autoritarismo
vivenciados à época (CAMPOS; SEVERI, 2019). Neste
contexto, destacou-se a companha “Quem ama, não mata!”
em repulsa ao assassinato da jovem mineira Ângela Diniz
pelo seu namorado em 1976 (SARDENDERG, 2018).
Há de se considerar ainda que a Declaração Universal
dos Direitos Humanos de 1948111 e os demais tratados
internacionais subsequentes como a Convenção
Interamericana de Concessão de Direitos Civis à Mulher de
1948, a Convenção Internacional sobre a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher de
1979112, dentre outras (BRASIL, 2011), possibilitaram a

(art. 157, IV), igualdade perante a lei (art. 141, §1º), sufrágio para ambos
os sexos (art. 133), além de também ter assegurado direitos trabalhistas
da gestante (art. 157, X), no entanto ainda manteve a isenção feminina do
serviço militar (art. 181, §1º).
110 Segundo Hirata (2009, p. 144), os “movimentos feministas” devem ser

compreendidos “diversas formas de movimento de mulheres, o


feminismo liberal ou ‘burguês’, o feminismo radical, as mulheres
marxistas ou socialistas, as mulheres lésbicas, as mulheres negras e todas
as dimensões categoriais dos movimentos atuais”.
111 Conforme destacam Piovesan e Ikawa (2004), a Declaração Universal

de 1948 garantiu uma proteção geral, baseada numa igualdade formal,


contudo problemáticas como a persistência da violência doméstica,
pequena participação política, entre outras formas vulnerabilidade,
deixam claro a necessidade de meios específicos de proteção à mulher.
112 Aprovada pelo Decreto Legislativo nº 26, de 22 de junho de 1994, e

promulgada pelo Decreto nº 4.377, de 13 de setembro de 2002.


Liber Discipulorum | 263

introjeção na esfera internacional da discussão acerca da


proteção dos direitos femininos, o que, conforme destaca
Piovesan (2000, p. 97), realçou a observação do sujeito a
partir de sua especificidade e concreticidade,
consequentemente representam uma fórmula de
reconhecimento do direito à diferença, essencialmente
pautando-se no objetivo da edificação de uma igualdade
material113.
Destaque-se ainda que a Organização das Nações
Unidas (ONU) definiu o ano de 1975 como Ano
Internacional da Mulher e, a partir deste, a década das
Nações Unidas para as Mulheres, Igualdade,
Desenvolvimento e Paz, circunstância que fomentou debates
sobre os direitos humanos das mulheres (SOUZA, 2013).
Essa matriz normativa internacional ganhou verdadeira
deferência e aderência ao ordenamento pátrio a partir da
Constituição de 1988, sobretudo ao serem consideradas
normas supralegais ou status de emenda constitucional a
depender da forma de aprovação, por força do seu art. 5º, §§
2º e 3º.
Assente-se, por conseguinte, que o amplo
reconhecimento dos direitos femininos é um produto
histórico recente, decorrente sobretudo da mobilização
feminista, em prol da garantia de direitos, redução das

113 Ao tratar sobre a diferença entre igualdade formal e material,


Piovesan e Pimentel (2011, p. 104) destacam: “Se, para a concepção
formal de igualdade, esta é tomada como pressuposto, como um dado e
um ponto de partida abstrato, para a concepção material de igualdade,
esta é tomada como um resultado ao qual se pretende chegar, tendo
como ponto de partida a visibilidade às diferenças”.
264 | Para Onélia Queiroga

desigualdades entre os gêneros. Entretanto, observa-se ainda


neste período que a ausência de instrumentos normativos e
estatais capazes de prevenir a violência em âmbito privado
constituía um contraponto ao usufruto dos direitos que
foram sendo conquistados no decorrer da história,
inviabilizando o exercício de sua cidadania e proteção a sua
dignidade.

3 A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E OS DIREITOS DA


MULHER

A Constituição de 1988, intitulada de Constituição


Cidadã, evidentemente constitui um marco histórico para
sociedade brasileira, não apenas porque pontificou o
processo de redemocratização, mas também por representar
um grande vetor jurídico de proteção da dignidade humana,
seja por prever vasto rol de direitos fundamentais ou por
instituir um papel ativo ao Estado, sobretudo em termos de
prestação de políticas públicas.
Para a história jurídica feminina, a Carta Cidadã de
1988 constituiu um importante avanço114 por reconhecer não

114 É necessário, contudo, esclarecer, que o conjunto normativo


imediatamente estabelecido logo após a promulgação do texto
constitucional acabou enfrentando sérias dificuldades para efetivar a
igualdade entre os sexos e a proteção dos direitos da mulher, sobretudo
no que concerne à sua não vitimização em ambiente doméstico, uma vez
que a conjuntura socioeconômica e cultural, e até mesmo o pensamento
jurídico em vigor no país, alicerçados por uma matriz patriarcalista,
ainda eram desfavoráveis à superação dos desníveis que circundam as
relações de gênero, tanto é que as carências social e econômica
sustentavam contrastes diversos (centro-periferia, ricos-pobres, inclusive
Liber Discipulorum | 265

apenas preceitos de igualdade entre os sexos (art. 5º, §1º),


mas também por intermédio do art. 226 pontifica a
importância do papel social feminino para composição da
sociedade conjugal em igualdade de condições ao homem,
tal circunstância constitui um baluarte para as ações de
prevenção e repressão a violência, pois estabelece uma
relação de paridade de poderes e reconhecimento do âmbito
doméstico e familiar como um espaço de proteção jurídica.
Não obstante, somam-se um rol de direitos tutelados
constitucionalmente, a exemplo do amparo à maternidade, à
saúde, à educação, a erradicação de quaisquer formas de
discriminação e, dentre outras medidas, a proteção à
dignidade humana, estabelecendo, assim, o usufruto ou
acesso a direitos civis, políticos e sociais, concedendo a
mulher um status de membro integral da comunidade, ou
seja, o reconhecimento de sua cidadania (MARSHALL,
1967)115.\
Além do mais, com supedâneo nesses ditames
constitucionais, observa-se um processo de edição de
normas voltadas para a promoção dos direitos femininos,

nas relações entre homens e mulheres) em elevados patamares tanto no


ambiente público como no privado (FADIGAS, 2006). Como por
exemplo, vigorou até 1997, no Código de Processo Penal, o indicativo de
que a mulher necessitaria pedir autorização do marido para prestar
queixa, algo superado apenas através da Lei nº 9.520 deste ano.
115 “A cidadania exige um elo de natureza diferente, um sentimento

direto de participação numa comunidade baseado numa lealdade a uma


civilização que é um patrimônio comum. Compreende a lealdade de
homens livres, imbuídos de direitos e protegidos por uma lei comum.
Seu desenvolvimento é estimulado tanto pela luta para adquirir tais
direitos quanto pelo gozo dos mesmos, uma vez adquiridos”
(MARSHALL, 1967, p. 84).
266 | Para Onélia Queiroga

como: a) a lei nº 9.263/1996 que instituiu o planejamento


familiar e ações voltadas para o cuidado com a mulher,
como assistência à concepção e contracepção, o atendimento
pré-natal, a assistência ao parto, ao puerpério e ao neonato, o
controle das doenças sexualmente transmissíveis, o controle
e prevenção do câncer cérvico-uterino, do câncer de mama,
dentre outros; b) a lei nº 9.278/1996 que disciplina a união
estável e passa a assegurar direitos mútuos como respeito,
assistência moral e material, além da guarda, sustento e
educação dos filhos comuns; c) a lei nº 10.516/2002 criou a
Carteira Nacional de Saúde da Mulher com vistas a
melhorar os mecanismos de atendimento da população
feminina, sobretudo quanto à prevenção e controle do
câncer ginecológico e de mama; d) a lei nº 11.804/2008, que
versa sobre o direito a alimentos gravídicos, considerados
como os valores suficientes para cobrir as despesas
adicionais do período de gravidez, da concepção ao parto, a
serem custeadas pelo futuro pai.
Também deve-se destacar que a partir da década de
1990 foi promovida uma intensificação da discussão sobre os
direitos das mulheres, o que culminou na realização de 04
conferências nacionais para tratar sobre as políticas a elas
direcionadas, além da elaboração do Plano Nacional de
Políticas para as Mulheres e do Pacto Nacional pelo
Enfrentamento à Violência contra Mulheres, algo também
reforçado pela criação da Secretaria de Políticas para as
Mulheres em 2003, com vistas a articular ações
governamentais em prol da efetivação dos direitos da
mulher, dentre eles o enfrentamento à violência, como
Liber Discipulorum | 267

também foi instituído o DISQUE 180 destinado a atender


denúncias116 e foi estabelecida a notificação compulsória dos
atendimentos desta natureza pelos serviços de saúde
públicos ou privados117.
No âmbito internacional, observa-se a Declaração dos
Direitos Humanos de Viena de 1993, a qual foi
posteriormente reiterada pela Plataforma de Ação de
Pequim em 1995, que segundo Piovesan (2012, p. 75), deixa
claro que os direitos humanos das mulheres são
inalienáveis, integrais e indivisíveis, retratando, deste modo,
o reconhecimento da identidade feminina. Além do mais,
observou-se a aprovação da Convenção Interamericana para
Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher,
também chamada de Convenção do Belém do Pará118, que
além de ampliar o rol de direitos da mulher, definiu as
matrizes internacionais de enfrentamento a violência contra
a mulher, servindo de embasamento para a posterior Lei
Maria da Penha.
Desta forma, os avanços sociais, econômicos e
jurídicos patrocinados pela evolução do corpo normativo

116 Lei 10.714/ 2003.


117 Lei nº 10.778/ 2003.
118 “A Convenção de “Belém do Pará” elenca um importante catálogo de

direitos a serem assegurados `as mulheres, para que tenham uma vida
livre de violência, tanto na esfera pública, como na esfera privada.
Consagra ainda a Convenção deveres aos Estados-partes, para que
adotem políticas destinadas a prevenir, punir e erradicar a violência
contra a mulher. É o primeiro tratado internacional de proteção dos
direitos humanos a reconhecer, de forma enfática, a violência contra as
mulheres como um fenômeno generalizado, que alcança, sem distinção
de raça, classe, religião, idade ou qualquer outra condição, um elevado
número de mulheres” (PIOVESAN, 2012, p. 78-79).
268 | Para Onélia Queiroga

amparado pela Constituição Federal de 1988 possibilitou


uma maior difusão da participação da mulher em diferentes
âmbitos, até então timidamente explorados, como na
política, no direito, nos altos cargos administrativos, dentre
outros, além de ter ensejado uma maior reflexão sobre a
condição social da mulher, enquanto sujeito de direitos e
membro da comunidade política. Essa circunstância se torna
importante não apenas para fazer frente às antigas formas
patriarcais de desnível de poder e discriminação social, mas
também estabelecer mecanismos para promoção de uma
igualdade material, para pensar o espaço privado, doméstico
e familiar, como um âmbito passível de intervenção jurídica
e, ainda mais, o reconhecimento das violências que afligem
as mulheres como formas de violação de direitos que
necessitam da intervenção penal, seja para prevenção,
desestímulo ou mesmo o enfrentamento.

4 A POLÍTICA CRIMINAL DE ENFRENTAMENTO A


VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A
MULHER NO BRASIL

Muito embora a expressão “em briga de marido e


mulher, ninguém mete a colher” seja um jargão difundido
sob os auspícios da cultura patriarcalista existente no país,
ele se presta a retratar, de certa maneira, o pensamento
jurídico pátrio quando do trato das violências que incidiam
no âmbito privado, doméstico e familiar, até o final do
século XX. Tal circunstância, apenas começar a tomar outros
contornos a partir das mudanças de caráter social e político
Liber Discipulorum | 269

que construíram o cenário de edição da Carta Constitucional


de 1988 e legislação infraconstitucional elaborada a partir de
então, que possibilitaram reconhecer a necessidade de
superar antigos estigmas de gênero, assegurar e promover a
cidadania feminina e, sobretudo, “meter a colher”, ou seja,
estabelecer vias de enfrentamento às violências em âmbito
doméstico e familiar contra as mulheres, que constituíam
um verdadeiro óbice à sua participação integral da
sociedade e usufruto dos seus direitos.
Neste ínterim, por influência dos movimentos
feministas que expunham em público não só a necessidade
de refletir sobre a condição humana feminina, mas de pensa-
la livre de vitimizações, trazendo a tona o problema da
violência em âmbito privado como violação dos direitos da
mulher, é que, em 1992, foi instalada a primeira Comissão
Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI), que suas
investigações resultaram na verificação da precariedade de
dados sobre os índices de violência contra a mulher e dos
recursos humanos e logísticos nas Delegacias, além do mais
assente-se a falta de um aparato jurídico e administrativo
adequado para lidar com o problema.
Pode-se considerar que uma primeira medida de
intervenção penal específica sobre a questão ocorreu com a
edição da lei nº 10.886, de 17 de junho de 2004, que inseriu
mais uma forma qualificada de lesão corporal no art. 129 do
Código Penal, a denominada “violência doméstica”119, mas

119Necessário observar que a atual redação desta norma foi dada pela
Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), a qual apenas enrijeceu o trato
penal, ao prever uma sanção variando entre 03 (três) meses e 03 (três)
270 | Para Onélia Queiroga

ela não estipulou condições específicas com base no sexo


para os sujeitos passivos ou ativos, requerendo apenas um
vínculo familiar ou doméstico de proximidade entre autor e
vítima, ao dispor da seguinte redação: “se a lesão for
praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou
companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou,
ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de
coabitação ou de hospitalidade”. Tal tipologia, em relação à
lesão corporal de natureza leve, apenas elevou a pena
mínima de 03 meses para 06 meses, não agravando o limite
máximo da sanção.
Neste interim, considera-se que tal formulação
jurídica não representou um grande avanço na tutela da dos
interesses e proteção femininos uma vez que à época já
estava em vigor a Lei de Juizados Especiais (lei nº
9.099/1995), que traz em seu bojo uma série de medidas de
caráter processual voltadas a dar celeridade, assegurar
medidas conciliatórias e trato jurídico-penal descarcerante
(transação penal, suspensão condicional do processo etc.), o
que notadamente revertia-se na possibilidade da frustação
de um possível efeito preventivo da norma e dava azo a
possibilidade de novas vitimizações femininas em âmbito
doméstico e familiar (POSSAMAI; SALVARO, 2020).
Em 2005, a lei nº 11.106 não apenas estipulou
majorantes em razão das condições de parentesco da vítima

anos, não alterando a descrição da tipificação (Art. 129, § 9º, “Se a lesão
for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou
companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda,
prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de
hospitalidade”).
Liber Discipulorum | 271

ou acusado para alguns tipos penais específicos, mas


principalmente revogou artigos discriminatórios, como por
exemplo os incisos VII e VIII do art. 107, que versavam sobre
a extinção da punibilidade do agressor sexual caso este
viesse contrair matrimônio com a vítima, como também
revogou o tipo penal de adultério, dentre outras medidas.
Contudo, o marco nacional da prevenção e repressão
contra a violência contra a mulher veio através da Lei 11.340
de 2006, a qual vem sendo responsável por coibir a violência
doméstica e familiar contra a mulher120. Tal norma é
chamada de Lei Maria da Penha em face do esforço e
perseverança demonstrados pela farmacêutica Maria da
Penha Maia Fernandes em busca de medidas penais hábeis
para punir seu ex-marido pelas duas tentativas de homicídio
que a deixaram paraplégica (SOUZA, 2009; CUNHA;
PINTO, 2011). Tal circunstância, inclusive, foi levada a
Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA que
condenou o governo brasileiro por conta da morosidade no
processamento e responsabilização do agressor, além de
demandar a elaboração de normas voltadas para o
enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a
mulher, o que acabou culminando na edição da lei nº
11.340/2006.
A Lei Maria da Penha não apenas definiu as práticas
de violência doméstica contra a mulher, como também cria
mecanismos de prevenção e repressão, afasta expressamente

120Para Marina Pinheiro (2010), a aprovação da Lei Maria da Penha foi


uma das mais importantes conquistas alcançadas pela Bancada Feminina
no Congresso Nacional.
272 | Para Onélia Queiroga

a aplicabilidade da lei de juizados especiais criminais,


estipula medidas proteção e assistência às vítimas e
reeducação do acusado (CAMPOS; CARVALHO, 2011),
define uma rede atores e políticas públicas para
enfrentamento do problema, percorrendo ações das cearas
penal, administrativa, civil e trabalhista, tal como a Lei
Orgânica espanhola nº 1/2004, que disciplinou medidas de
proteção integral e serviu de inspiração para a legislação
brasileira (MELLO, 2010).
Não obstante, com o fim de monitorar e analisar a
incidência desta violência, em 2012 foi instaurada uma nova
CPMI, cujo relatório final foi apresentado em julho de 2013,
vindo a apontar a ainda precária aplicação de alguns
preceitos estatuídos pela Lei Maria da Penha, não só quanto
a infraestrutura necessária ao atendimento das medidas
assistenciais, mas também a própria aplicação de algumas
prescrições normativas em julgamentos pelos órgãos
jurisdicionais, algumas vezes em desacordo com o
posicionamento do Supremo Tribunal Federal, como a
proposição da suspensão condicional do processo.
Ainda em 2012, o STF julgou a ADI n.º 4424,
diante do que se posicionou pela incondicionalidade da ação
processual apta a jugar os casos de lesão corporal de
natureza leve praticados com violência doméstica e familiar
contra mulher (capitulado no art. 129, §9º do Código Penal),
sobretudo ao considerar que a mulher poderia ser
desestimulada a persistir com a ação pelo agressor, o que
ocasionaria o não atendimento do objetivo da lei.
Liber Discipulorum | 273

Ao considerar que a ainda elevada incidência de


mortes de mulheres por razões de gênero ou decorrentes de
conflitos familiares e domésticos, em 2015 foi elaborada a lei
nº 13.104 que introduziu a qualificadora do feminicídio no
Código Penal.
Em âmbito processual, a Lei nº 13.505, de 2017,
acresceu o art. 10-A, estabelecendo que o atendimento
policial e pericial a mulher vítima, seja preferencialmente
realizado por servidoras do sexo feminino previamente
capacitadas, buscando sempre assegurar sua não
revitimização, além de apontar a possibilidade da
autoridade policial requisitar os serviços públicos
necessários à defesa da mulher em situação de violência
doméstica e familiar e de seus dependentes
Em 2018, outros aperfeiçoamentos foram
introduzidos na Lei Maria da Penha, como a adequação da
definição da violência psicológica121, de modo a acrescentar
a ideia de violação da intimidade feminina como mais uma
manifestação desta prática. Não obstante, neste mesmo ano
a lei nº 13.641 adicionou uma tipologia penal própria aquela
lei, qual seja o crime de “descumprimento de medidas
protetivas de urgência”, atribuindo-o uma pena de detenção
de 03 (três) meses a 02 (dois) anos e restringindo a fiança ao
arbitramento do juízo criminal.
Em 2019, pode-se constatar novas aprimoramentos do
sistema de enfrentamento à violência doméstica e familiar
contra mulher foram aprovados, destacando-se: a) a lei nº
13.894 que, com o fim de garantir a segurança física e

121 Alteração dada pela lei nº 13.772/2018.


274 | Para Onélia Queiroga

psicológica da mulher-vítima, estabeleceu o dever do


magistrado encaminhar à assistência judiciária inclusive
para dissolução de sua união estável ou relação matrimonial;
b) a lei nº 13.871, que conferiu o dever do agressor ressarcir
os custos com a saúde e segurança da mulher provenientes
da sua prática de violência ou da ameaça desta; c) a lei
13.882, a qual concedeu a prioridade para mulher-vítima
matricular seus dependentes em instituição de educação
básica mais próxima de seu domicílio; d) a lei nº 13.827, que
ampliou a possibilidade de intervenção da autoridade
policial sob o caso, inclusive de determinar o afastamento do
agressor do lar, domicílio ou local de convivência da vítima;
e) a lei nº 13.880, a qual estabeleceu a possibilidade do juiz
determinar, em sede de medida protetiva de urgência, a
apreensão de arma de fogo sob a posse do autor.
Avançando nesse processo de enfrentamento, a lei nº
13.984/2020 estabeleceu como medidas protetivas de
urgência ao agressor: a necessidade de comparecer a
programas de recuperação e reeducação, bem como a
possibilidade de receber acompanhamento psicossocial.
Parte-se, por conseguinte, da compreensão de que a
violência doméstica e familiar contra a mulher é um
problema social que necessita de um processo de
enfrentamento que vai muito mais além do o
estabelecimento de penas, mas sim de intervenção,
conscientização e superação de antigos estigmas e
preconceitos culturais de gênero.
Além disso, algumas outras medidas assistenciais ao
longo dos últimos anos foram adotadas como a criação do
Liber Discipulorum | 275

Programa Mulher: Viver sem Violência122, das Casas da


Mulher Brasileira123 e foi autorizada a oferta e realização,
por intermédio do Sistema Único de Saúde (SUS), de
cirurgia plástica reparadora de sequelas de lesão causadas
por atos de violência contra a mulher.
Desse modo, pode ser verificado que a política
criminal de enfrentamento à violência doméstica e familiar
contra a mulher tem, no transcorrer dos últimos anos, sendo
constantemente aprimorada, seja pela construção de
tipologias, seja pelo endurecimento do trato penal, seja pela
implementação de ações de proteção, acolhimento e
assistência sociopsicológica e jurídica às vítimas, além da
constante discussão e articulação de uma rede de

122 Instituído através do Decreto nº 8.086, de 30 de agosto de 2013,


objetiva integrar e ampliar os serviços públicos existentes voltados às
cidadãs femininas, vítimas de violência, mediante a articulação de
atendimentos especializados no âmbito da saúde, da justiça, da rede
socioassistencial e da promoção da autonomia financeira.
123 Segundo a Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da

República (SPM-PR), a Casa da Mulher Brasileira é um “espaço que


reunirá os seguintes serviços: delegacias especializadas de atendimento à
mulher (DEAM), juizados e varas, defensorias, promotorias, equipe
psicossocial (psicólogas, assistentes sociais, sociólogas e educadoras,
para identificar perspectivas de vida da mulher e prestar
acompanhamento permanente) e equipe para orientação ao emprego e
renda. A estrutura física terá brinquedoteca e espaço de convivência
para as mulheres”. Segundo Sardenderg (2018, p. 87), “A Casa foi
apresentada como um “espaço público” concentrando os diferentes
serviços para uma assistência integrada e humanizada às mulheres,
dentre os quais se incluem: Recepção, Acolhimento e Triagem; Apoio
Psicossocial; Delegacia Especializada; Juizado Especializado em
Violência Doméstica e Familiar contra as Mulheres; Promotoria
Especializada; Defensoria Pública; Serviço de Promoção de Autonomia
Econômica; Espaço de cuidado das crianças - Brinquedoteca; Alojamento
de Passagem e Central de Transportes”.
276 | Para Onélia Queiroga

enfrentamento, o que tem culminado na elaboração de um


sistema de proteção integral à mulher e de amplo
enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a
mulher.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A tristeza é um estado psíquico que


leva à alma vontade de chorar, por
lembrar fatos repletos de mágoas e de
desalento.
A tristeza provoca em quem a sente
um desânimo da vida, carregado de
nostalgia, de sentido de abandono, de
desencanto, de perda nunca mais
recuperada.
A tristeza, muitas vezes, leva ao
isolamento, nos momentos mais
sofridos e nas horas mais dolentes
propiciadas pela natureza. Estima-se
que esta compreende o porquê da
solidão de alguém, por isso, também,
ela própria se estremece em
solidariedade àquela que sofre.
Sofrer com resignação talvez
represente um pouco de esperança na
reconquista do bem perdido. Esperar
com calma é preciso; é a magia de
quem põe à prova as forças guardadas
Liber Discipulorum | 277

para esses instantes de transes de cruz.


Tristeza vem, tristeza vai. A tristeza às
vezes, fica por longo tempo de prova
de resistência de cada um. A tristeza
que vai, para nunca mais voltar, é
aquela que já sabe que a dor do outro
está completamente curada, pronta
para acolher um novo dia, uma nova
oportunidade de viver, uma nova era
marcada por planos diferentes dos
existentes outrora.
A tristeza não mora para sempre no
coração do sofredor, porque há dias de
chuva e dias de sol; há dias de escassez
e dias de prosperidade; há dias de
pessimismo e dias de esperança. Há
dias para o fracasso e há dias para
todas as vitórias.
Os que trazem no rosto a marca de
ferro da tristeza, a dor, deve apagá-la.
Deve ir em busca da felicidade que é
alegria, que é luz e bondade. A sua
conquista relacionada está à sabedoria
de cada um. Os que a alcança, terão
sempre um sorriso no semblante. São
chamados de venturosos.
(QUEIROGA, 2019)
278 | Para Onélia Queiroga

Com essa descrição de tristeza, a Profª Onélia


Queiroga retrata não apenas o amargor do sentimento, mas
aponta sua temporalidade e brevidade, trazendo luz e
esperança de sua superação. De igual maneira, o trato da
violência doméstica e familiar constitui uma triste pauta
social, que, em suas multifacetadas formas de concretização,
afeta diariamente milhares de mulheres no Brasil, algo que
necessita ser freado e extirpado, o que só pode ser alcançado
pelo entrelaçamento de ações políticas, sociais e jurídicas,
como via de enfrentamento e proteção dos direitos
femininos.
Logo, de igual maneira as palavras da Profª Onélia ao
lançar mão de uma poética compreensão da necessidade de
resiliência à tristeza, a atual discussão da violência
doméstica e familiar contra mulher vem sendo permeada
por um esforço jurídico para superação da cultura
patriarcalista que sustenta essa forma de violência,
alinhavando-se a um constante empenho para o
aperfeiçoamento de um sistema de proteção integral à
mulher.
Neste interim, constatou-se no transcorrer deste
trabalho que as transformações sociais e jurídicas foram
primordiais para o reconhecimento da necessidade de
superar o histórico desnível social atrelada às questões de
gênero, em especial as distinções de sexo, o que
notadamente implicou não apenas na promoção dos direitos
femininos, mas na identificação das relações domésticas e
familiares como um âmbito que necessita de uma especial
tutela jurídica.
Liber Discipulorum | 279

Notadamente, por se tratar de um âmbito cujas


relações sociais são afetadas por uma arraigada cultura
patriarcalista, com consequências de natureza diversa às
mulheres, inclusive possibilitando até sua morte, o direito
tem lançado mão de sua ‘ultima ratio’, a intervenção penal,
como fórmula para o enfrentamento das violências contra as
mulheres. Contudo, ao encontrar a complexidade da
questão, especificamente às diversificadas matrizes causais e
contingências diversas que corroboram para eclosão e
reprodução deste tipo de violência, o legislador pátrio tem
lançado mão de uma série de outras medidas (de natureza
administrativa, civil, trabalhista), formulando uma política
criminal de enfrentamento à violência doméstica e familiar
contra a mulher alinhada com um sistema de proteção
integral, verdadeiramente dirigido para a promoção de uma
cidadania plena.
Neste sentido, verifica-se que a ordem constitucional
instalada a partir de 1988, ao reconhecer a igualdade entre os
sexos e ampliar a proteção dos direitos femininos, estipulou
as condições necessárias para se pensar essa tutela jurídica
de maneira ampla, inclusive em âmbito doméstico e
familiar, o que ganhou grande impulso a partir da edição da
Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), lei nº 13.104/2015, lei
nº 13.641/2018, dentre tantas formulações normativas que
somadas as medidas voltadas para proteção integral
feminina, tem constituído uma política criminal de
enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a
mulher.
280 | Para Onélia Queiroga

Desta maneira, igualmente preleciona a notável


Professora Onélia Queiroga (2019), quando informa que “os
que trazem no rosto a marca de ferro da tristeza, a dor, deve
apagá-la, deve ir em busca da felicidade”, a política criminal
de enfrentamento à violência doméstica contra a mulher
vem nos últimos anos sendo aprimorada não apenas para
enxugar lágrimas, mas preveni-las, intentando evitar novas
vitimizações, para que o ambiente doméstico e familiar seja
um retrato de alegria, aconchego e amor.

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288 | Para Onélia Queiroga

O PAPEL DO DIREITO PENAL NO SISTEMA DE


PROTEÇÃO AO PATRIMÔNIO CULTURAL NA
PARAÍBA: ASPECTOS HISTÓRICOS E EFICÁCIAS
ATUAIS

Ana Rafaela Pessoa Alcoforado124

RESUMO: A proteção específica dos bens culturais na esfera


criminal foi consolidada e aperfeiçoada ainda em período
recente, e com a aplicação normativa prática que diverge, em
volume, a depender da região do Brasil, não possuindo uma
eficácia homogênea em todo o território nacional. Nesse
contexto, presente artigo busca analisar, por uma
perspectiva histórica, os caminhos tomados pela legislação
penal protetiva ao patrimônio cultural brasileiro,
pormenorizando os tipos penais atualmente vigentes, bem
como sua aplicação prática enquanto instrumento de
prevenção para a tutela dos bens culturais paraibanos, por
meio de análise de julgados do último quinquênio. Neste
norte, observou-se que foram encontrados escassos julgados
sobre o tema no Tribunal de Justiça da Paraíba, e nenhum
julgado no Tribunal Regional Federal competente,
denotando que a função repressiva da pena não está sendo
aplicada, enfraquecendo seu papel preventivo e tornando a
possibilidade de uso do sistema penal como uma possível

124Assistente Jurídica do Tribunal de Justiça da Paraíba. Mestranda em


Ciências Jurídicas e Bacharel em Direito pela Universidade Federal da
Paraíba - UFPB.
Liber Discipulorum | 289

armadura ao patrimônio cultural um instrumento de baixa


efetividade.
Palavras-chave: Patrimônio cultural, História do Direito,
Direito Penal, Paraíba

1 INTRODUÇÃO

No decorrer do século XIX, houve uma


predominância jurídica dos interesses coletivos em face dos
interesses individuais, de modo a levar à priorização da
tutela de direitos que visassem proteger o âmbito da
transindividualidade, com consequente ascensão da terceira
geração de direitos fundamentais. Dentre eles, estão os
direitos culturais, sejam eles materiais sejam imateriais,
consolidados ao longo do século XX, o que levou à
importância da proteção do Patrimônio Cultural e dos Bens
Culturais, imprescindíveis para a memória, a identidade e a
criatividade dos povos e a riqueza das culturas.
Nesse contexto, especialmente após a Convenção
para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural
da UNESCO em 1972, existiu uma tendência de proteção ao
patrimônio cultural em suas mais amplas vertentes, tanto
por mecanismos internacionais quanto por meio de
legislações domésticas em nações distintas, como o Brasil,
em aspectos cíveis, administrativos e, também, penais.
Hoje, o direito penal é um dos instrumentos
utilizados, formalmente, para a proteção do patrimônio
cultural brasileiro. No entanto, a proteção específica dos
bens culturais na esfera criminal nem sempre existiu, sendo
290 | Para Onélia Queiroga

consolidada e aperfeiçoada ainda em período recente,


datando pouco mais de um século. Além disso, a aplicação
prática das normas diverge, em volume, a depender da
região do Brasil, não possuindo uma eficácia homogênea em
todo o território nacional.
A seguir, será feito um estudo da progressão
legislativa de proteção ao patrimônio cultural no Brasil, com
foco nos instrumentos penais, e como podem ser aplicados,
hoje, os dispositivos e mecanismos vigentes. Em seguida,
analisar-se-á a aplicação jurídica destes no Estado da
Paraíba, por meio de pesquisa nos bancos de jurisprudência
acerca de julgados sobre o tema, a fim de constatar a eficácia
da legislação penal enquanto armadura protetiva dos bens
culturais paraibanos.

2 HISTÓRICO DE PROTEÇÃO AO PATRIMÔNIO


CULTURAL E A PERSPECTIVA PENAL

A proteção positivada de direito, objetos e de bens


jurídicos como um todo não é, de modo algum, recente,
possuindo, na história, alguns instrumentos que datam
desde a antiguidade. O primeiro dos conjuntos de normas
escritas que se tem conhecimento é o Código de Hamurabi,
de 1.750 a.C., o qual regulamentava principalmente questões
penais, cíveis e comerciais.

Sobre este, segundo Alcoforado (P. 12, 2020):


Dentre os seus objetivos, além de unificação do reino,
estava também a busca pela garantia de uma cultura e
Liber Discipulorum | 291

identidade comum, além de tornar mais adequada a


compreensão do direito local, até mesmo a partir do
uso do direito comparado (AMARAL, 2017),
ferramenta indispensável para o exercício jurídico
antes da consolidação do próprio Direito enquanto
ciência.

A busca pela identidade comum dos povos, bem


como da proteção desta, perpassa por milênios, desaguando
em debates ainda atuais, como é o caso do patrimônio
histórico-cultural. Conforme trazido por Gordon Childe
(apud OLIVEIRA, 2012, p. 03), ocorrera uma estagnação no
processo evolutivo desde o surgimento do homo sapiens, o
qual fora concomitante ao início do progresso cultural, a
partir do qual o ser humano “buscou não somente
perpetuarse no espaço com a dispersão de indivíduos de sua
espécie e seus genes pelos “cinco” cantos do mundo, como
também pelo tempo com a transmissão de seus modos de
criar, fazer e viver para as gerações futuras.”
Milênios após, tal progresso pôde consolidar o
conceito de patrimônio cultural. Este, conforme trazido por
Prado (et al, 2006, p.01), relaciona-se com a história, com a
memória coletiva e com as múltiplas dimensões culturais de
um povo, perpassando pelo conceito social ou objetivo de
cultura de Miguel Reale (2005, p.02).
Entretanto, ao que pese seu início ainda nos
primórdios da espécie humana, os bens culturais passaram
por períodos denominados por Oliveira (2012, p.03) como “a
fase do abandono”, caracterizada por uma ausência de
292 | Para Onélia Queiroga

políticas públicas de preservação e de incentivo, tampouco


aparato legislativo de proteção.
O fortalecimento do Estado Nacional foi essencial
para a consolidação de medidas protetivas sobre o
patrimônio cultural, ainda que em moldes diversos dos hoje
conhecidos, com a aplicação de uma concepção elitista a
estes bens, abarcando somente aqueles dotados de certa
“excepcionalidade”, ou seja, de que “certo bem somente
integraria a categoria de patrimônio cultural se possuísse
um elevado valor estético sob a ótica da Arquitetura e da
Crítica da Arte” (SANTANA, 2004) – o que levava, por
exemplo, à destruição de outros bens em prol do destaque
de algum monumento considerado excepcional, como
ocorrera nos entornos da Catedral de Notre Dame, em Paris,
com demolição de casarios medievais vizinhos para
construção de uma praça que não retirasse o foco do templo.
No Brasil, porém, os primeiros institutos protetivos
não buscavam a proteção de obras “excepcionais”, mas sim
de questões ambientais. Além disso, ainda que existisse uma
legislação protecionista no Brasil desde o século XVI
(FERREIRA, 2000), esta, além de ineficaz, possuía uma
perspectiva econômica, de cunho extrativista, e não de
conservação dos recursos pátrios (FLACH, 2015). Foi apenas
em 1742 que foi registrada uma primeira e relevante
tentativa de preservação, com uma missiva subscrita por D.
André de Melo e Castro ao então Governador
pernambucano, se insurgindo sobre a preocupação
envolvendo a integridade de alguns edifícios históricos
(SOUZA, 2010).
Liber Discipulorum | 293

Um importante marco legislativo para a proteção do


patrimônio cultural em seu caráter coletivo e de benefício
social foi apenas após os diálogos fomentados pela Semana
de Arte Moderna de 1922, com a Constituição de 1934 e a
atribuição de competência comum aos Estados e à União em
“proteger as belezas naturais e os monumentos de valor
histórico ou artístico, podendo impedir a evasão das obras
de arte”, em seu art. 10, III, e posteriormente com a Carta
seguinte, em 1937, que era expressa na latente necessidade
de conservação dos bens culturais, históricos, artísticos e
naturais e cujo conteúdo normativo foi reproduzido na
Constituição seguinte, de 1967:

Artigo 134 da Constituição Federal de 1937. Os


monumentos históricos artísticos e naturais, assim
como as paisagens ou os locais particularmente
dotados pela natureza, gozam de proteção e dos
cuidados especiais da Nação, dos Estados e dos
Municípios. Os atentados contra eles cometidos serão
equiparados aos cometidos contra o patrimônio
nacional.

Neste mesmo ano surgiu um dos instrumentos


legislativos mais emblemáticos da preservação aos bens
culturais de cunho administrativo, qual seja o Decreto-lei nº
25/1937, que rege, até hoje, o instituto do tombamento.
A seara criminal, por outro lado, já começou a tratar
do tema antes mesmo de tal dispositivo constitucional, ainda
no século XIX, mesmo que sem menção específica ao seu
294 | Para Onélia Queiroga

aspecto histórico-cultural. O Código Criminal do Império do


Brasil em 1830, o qual tipificava as condutas de “Destruir,
abater, mutilar, ou danificar monumentos, edifícios, bens
públicos ou quaisquer outros objetos destinados à utilidade,
decoração, ou recreio público”. O Código seguinte, de 1890,
já especificava, em seu artigo 328, condutas realizadas contra
estátuas e ornamentos, delineando, de certo modo, o início
do conceito da “excepcionalidade” no Direito pátrio. A
redação deste foi replicada na Consolidação das Leis penais
de 1932.
Posteriormente, no ano de 1940, houve a
promulgação da Lei das Contravenções Penais, pelo Decreto
nº3.688/41, e do Código Penal até hoje vigente, o Decreto-lei
nº 2.848/40. Estes, porém, em pouco fortaleceram, em seus
textos originais, a tutela do patrimônio cultural ou mesmo a
proteção ambiental – matéria que também abrangia, mesmo
que indiretamente, os bens histórico culturais, andando, por
vezes, em conjunto. Os artigos 165 e 166 do Código
tipificavam, com pena de detenção ou multa, os atos de
“destruir, inutilizar ou deteriorar coisa tombada pela
autoridade competente em virtude de valor artístico,
arqueológico ou histórico” e de “alterar, sem licença da
autoridade competente, o aspecto de local especialmente
protegido por lei”, respectivamente.
Durante a década de 1960 houve a instituição da Lei
nº 3.924/61, que “estabeleceu a proteção dos monumentos
arqueológicos e pré-históricos, instituindo os meios de
controle das escavações arqueológicas por meio do IPHAN
(Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional)”
Liber Discipulorum | 295

(SOUZA, 2010, p. 51). Tal lei, ainda que não trouxesse


tipificação penal, equiparou, em seu art. 5º, a destruição e
mutilação de monumentos aos de crime contra o patrimônio
nacional.
Atualmente, os dispositivos que tipificam os crimes
contra os bens culturais de forma mais relevante estão
presentes na Lei de Crimes Ambientais, de nº 9.605/98, mais
uma vez demonstrando a estreita relação jurídica na tutela
de meio ambiente e patrimônio histórico-cultural. Os artigos
62 e 63 revogaram tacitamente os artigos 165 e 166 do
Código Penal, trazendo maior abrangência aos bens antes
protegidos. Além disso, foram acrescidos tipos penais nos
artigos 64 e 65.
Portanto, considerando a formação histórico-
normativa do arcabouço penal em matéria de proteção aos
bens culturais, passa-se a avaliar o atual estado destes, bem
como sua aplicabilidade em face aos bens que visa tutelar.

3 O DIREITO PENAL COMO UMA ARMADURA


CULTURAL: TIPOS PENAIS VOLTADOS À PROTEÇÃO

De acordo com Soares (2012, p. 6) “a proteção do


patrimônio cultural por via do Direito se faz indispensável
para fins de sua conservação, seja por previsão
constitucional, penal ou administrativa”. É nesse sentido que
a evolução da proteção normativa penal ao patrimônio
cultural anda em paralelo à consolidação de seu conceito.
Conforme defendido por Izabel Izidoro da Nóbrega (2020, p.
64), o debate sobre o que é o patrimônio cultural é amplo,
296 | Para Onélia Queiroga

complexo e, sobretudo, interdisciplinar – não se pode falar


de patrimônio sem mencionar outras esferas do
conhecimento, como a arte, a história, a antropologia e a
economia.
Pelo viés da Economia, por exemplo, “o patrimônio
cultural é um conjunto composto por diversos bens,
tangíveis e não tangíveis, cuja base comum é a referência à
história ou à arte, estando em incessante processo de
transformação, formando-se pela relação entre a sociedade e
sua história” (IZIDORO DA NÓBREGA, 2020, p. 65) e que
possuem um valor econômico intrínseco potencial, atingido
por meios como o turismo. Já para a sociologia, a noção
patrimonial trata de uma construção social (BARRÈRE et al,
2005, apud BENHAMOU, 2018, p. 15) e teria como função
primordial “faire exister une entité collective, laquelle est
toujours abstraite, en la rendant visible métaphoriquement
par l’exposition des biens qu’elle aurait en commun”
(PALISSE, 2006, p. 5 apud IZIDORO DA NÓBREGA, 2020,
p. 66). Além disso, revela “a memória e identidade de uma
coletividade, a atribuição de valor dado aos acontecimentos
históricos e às práticas, manifestações e marcos culturais e
memoriais” (UCHOA et al, 2019, p. 168), tendo, assim, uma
finalidade de unir indivíduos distintos diante de um
arcabouço histórico e cultural similar, formando uma
identidade única.
Distinto dessa percepção sociológica, Gonçalves
(2009, p. 26 apud PRAGMÁCIO, 2018, p. 34) entende que o
patrimônio seria uma “categoria de pensamento, no sentido
de poder transitar analiticamente com ela por diversos
Liber Discipulorum | 297

mundos sociais e cultuais”, ou seja, indo além de um


elemento fixador de identidade nacional. Por fim, a
definição trazida por Soares (2009, p.11) é de que “o termo
patrimônio cultural abriga todos os bens que tenham ou
possam ter valor e interesse histórico, artístico, científico ou
técnico para a sociedade brasileira como um todo ou para as
comunidades de uma região, de um Estado federativo ou de
um Município”.
Já quanto ao patrimônio imaterial, a definição é
diversa por possuir pré-requisitos específicos distintos.
Segundo Izidoro da Nóbrega (2020, p. 114), o primeiro deles
consiste na presença de valores culturais de relevância
nacional naquele determinado ato sociocultural, o segundo
na vontade da comunidade na qual surgiu aquele costume e
o terceiro, por fim, na transmissão intergeracional e na
necessidade de continuidade histórica. Trata-se de
fundamental especialmente indispensável, tanto que,
segundo a autora:

Para registro pelo IPHAN e ingresso no patrimônio


cultural brasileiro, é exigida uma continuidade desses
processos sociais de, no mínimo, três gerações, ou 65
anos (FONSECA, 2018). Já para ingresso nas listas da
UNESCO de patrimônio imaterial é essencial a
continuidade por duas gerações (LIXINSKI, 2018).
(IZIDORO DA NÓBREGA, 2020, p. 114)

O patrimônio cultural é, portanto, um direito social


fundamental que necessita de devida tutela para
298 | Para Onélia Queiroga

preservação ao longo do tempo, diante de sua


infungibilidade (PRADO et al, 2006, p. 02). É por isso que
todos esses conceitos são analisados, de forma conjunta, ao
determinar qual o bem jurídico-penal protegido pelas
disposições normativas anteriormente mencionadas. Ora,
conforme trazido por Prado (et al, 2006, p. 02), “para um
bem ser objeto da tutela penal não basta que seja
reconhecido como jurídico, mas deve ser elevado à categoria
de interesse social relevante, sendo selecionado pelo
legislador ordinário, o qual tem como diretriz os valores
consagrados no texto constitucional”.
É, desse modo, um bem jurídico distinto daquele
ambiental, sendo abordado por dispositivos específicos –
ainda que integrantes da Lei de Crimes Ambientais –, que
consolidam a modalidade de proteção judicial, ou seja, por
meio de decisões proferidas pela Justiça Estadual ou Federal
(FREITAS, 2015, p. 95). O bem jurídico-penal protegido
pelos artigos da Lei nº 9.605/98 consiste nas próprias
espécies do patrimônio cultural, especialmente nos artigos
62125, 63126 e parágrafo único do art. 65127 daquela legislação

125 Art. 62. Destruir, inutilizar ou deteriorar: I - bem especialmente


protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial; II - arquivo,
registro, museu, biblioteca, pinacoteca, instalação científica ou similar
protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial: Pena - reclusão,
de um a três anos, e multa. Parágrafo único. Se o crime for culposo, a
pena é de seis meses a um ano de detenção, sem prejuízo da multa.
126 Art. 63. Alterar o aspecto ou estrutura de edificação ou local

especialmente protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial,


em razão de seu valor paisagístico, ecológico, turístico, artístico,
histórico, cultural, religioso, arqueológico, etnográfico ou monumental,
sem autorização da autoridade competente ou em desacordo com a
concedida: Pena - reclusão, de um a três anos, e multa.
Liber Discipulorum | 299

(PRADO et al, 2006, p. 03). Este último, ainda, se restringe


àquela espécie de coisas tombadas, enquanto os dois
primeiros trazem um caráter geral.
O art. 64128, por sua vez, possui como bem jurídico-
penal a ordenação do território, ainda que este seja
protegido devido aos valores relativos aos bens culturais, e o
caput do art. 65129 protege o ordenamento urbano ao versar
sobre a integridade estética de construções públicas ou
privadas. Ressalta-se que estes dois dispositivos são
inovações trazidas pela Lei de Crimes ambientais, ao passo
que os outros dois anteriores ampliaram as condutas
anteriormente tipificadas nos arts. 165 e 166 do Código Penal
– estas, revogadas de maneira tácita.
Tais tipificações visam “tanto punir como prevenir as
agressões ao patrimônio histórico-cultural, como
desestimulantes” (MOLLER e ROSSINI, 2014, p. 58), ou seja,
atuando em uma perspectiva tanto punitiva quanto
repressiva dos possíveis danos causáveis ao patrimônio
cultural.

127 Art. 65. (...) § 1o Se o ato for realizado em monumento ou coisa


tombada em virtude do seu valor artístico, arqueológico ou histórico, a
pena é de 6 (seis) meses a 1 (um) ano de detenção e multa.
128 Art. 64. Promover construção em solo não edificável, ou no seu

entorno, assim considerado em razão de seu valor paisagístico,


ecológico, artístico, turístico, histórico, cultural, religioso, arqueológico,
etnográfico ou monumental, sem autorização da autoridade competente
ou em desacordo com a concedida: Pena - detenção, de seis meses a um
ano, e multa.
129 Art. 65. Pichar ou por outro meio conspurcar edificação ou
monumento urbano: Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e
multa.
300 | Para Onélia Queiroga

Observa-se, ainda, que tais artigos consistem em


normas penas em branco, tendo em vista a necessidade de
complementação para a própria constituição do bem jurídico
a ser protegido, qual seja, o ato administrativo ou a decisão
judicial. Segundo COIMBRA (et al, apud FREITAS, 2015, p.
98), a principal vantagem deste tipo de norma é a
estabilidade proporcionada, podendo se moldar às mutações
necessárias por fatores temporais e espaciais
Além disso, outra novidade trazida pela lei foi a
previsão da forma culposa no parágrafo único do art. 62, o
que não existe nos demais artigos mencionados. Todos
abrangem, porém, a forma dolosa – consequentemente,
admitindo a forma tentada. A conduta tipificada no caput
do art. 62 admite, ainda, a ocorrência de crime por omissão
imprópria, em virtude do termo “deteriorar”.
Entretanto, menciona Prado (et al, 2006, p. 05) que,
tendo em vista a utilização no texto apenas do termo “bens”,
parte da doutrina não considera que a proteção prevista nos
artigos 62 a 65 atinge a totalidade do patrimônio cultural,
não abarcando o patrimônio imaterial ou intangível, ainda
que haja expressa previsão constitucional. Resulta-se em
uma legislação, até certo ponto, dúbia, possibilitando
interpretações conflitantes em jurisdições distintas.
De toda forma, é possível concluir que a novidade
legislativa da Lei de Crimes Ambientais, hoje vigente, é
materialmente benéfica:

“(...) embora a colocação da tutela penal do


patrimônio cultural dentro da Lei de dos Crimes
Liber Discipulorum | 301

Ambientais não tenha sido a melhor opção,


reconhece-se que a proteção foi ampliada, atendendo
a moderna concepção constitucional prevista no art.
216, inclusive com a criação, propícia de novos tipos
legais (como pichar ou grafitar, aumentando o ‘leque’
da tutela, bem como a previsão da modalidade
culposa, no art. 62, parágrafo único”. (PRADO et al,
2006, p. 05).

Relevante mencionar, ainda, a existência de mais


alterações no âmbito da proteção penal ao patrimônio
cultural atualmente discutidas no projeto de reforma do
Código Penal, em tramitação no legislativo por meio do
Projeto de Lei do Senado nº 236/2012. Nele, há uma
proposta de melhor localização geográfica para a tutela de
tais bens, tratando a proteção ao patrimônio cultural e a
proteção ao meio ambiente em capítulos distintos, unidos no
título dos “Crimes Contra Interesses Metaindividuais”, mais
especificamente na seção dos “Crimes Contra O
Ordenamento Urbano e o Patrimônio Cultural”.
De todo modo, ao invés de se aprofundar em
discussões acerca da viabilidade e da necessidade de novas
alterações na matéria protetiva penal, o objeto deste trabalho
consiste em analisar a relevância e efetividade das normas
vigentes para salvaguarda do patrimônio cultural,
especialmente no âmbito paraibano, por meio de análise
jurisprudencial da aplicação dessas normas na prática.
302 | Para Onélia Queiroga

4 A APLICAÇÃO DOS INSTITUTOS PENAIS NA


PARAÍBA

Em pesquisa aos bancos de jurisprudência do


Tribunal de Justiça da Paraíba e no do Tribunal Regional
Federal da 5ª Região, buscou-se detectar como – e se – vem
sido feita a aplicação dos institutos protetivos do direito
penal para a salvaguarda formal, e não apenas material, dos
bens culturais do estado.
Ao que pese a ausência de julgados em matéria
criminal no TRF-5 relativos a fatos ocorridos no Estado da
Paraíba, foram localizados, nos últimos cinco anos, dois
processos transitados em julgado no TJPB.
O primeiro deles, mais antigo, foi julgado em maio de
2017:

APELAÇÃO CRIMINAL. DANO QUALIFICADO


(ART. 163, PARÁGRAFO ÚNICO, III, DO CP.
ABSOLVIÇÃO. RECURSO DO MINISTÉRIO
PÚBLICO. ALEGAÇÃO DE IMPOSSIBILIDADE DE
INCIDENCIA DO PRINCIPIO DA
INSIGNIFICÂNCIA, EM CASO DE DANO A BEM
PÚBLICO. PLEITO DE ABSOLVIÇÃO IMPRÓPRIA,
COM APLICAÇÃO DE MEDIDA DE SEGURANÇA
DE TRATAMENTO AMBULATORIAL. APELADO
INTEIRAMENTE INCAPAZ DE ENTENDER O
CARÁTER ILÍCITO DO ATO. DANO PARCIAL DE
DUAS PEDRAS DA ESCADARIA DE TEATRO
MUNICIPAL. PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS
Liber Discipulorum | 303

PARA A ADOÇÃO DO PRINCÍPIO DA


INSIGNIFICÂNCIA. MANUTENÇÃO DA
SENTENÇA QUE SE IMPÕE. PRECEDENTES DO
STJ. DESPROVIMENTO. - Correta a incidência do
princípio da insignificância - ainda que se trate de
crime de dano qualificado, por ter sido praticado em
detrimento de bem público - quando o dano em
questão foi de pequeníssima monta (quebra parcial de
duas pedras da escadaria do teatro municipal) e
praticado por pessoa que era inteiramente incapaz de
entender o caráter ilícito dos atos, cuja conduta não
transparece um eventual desvalor ou menosprezo
para com a coisa pública. (TJPB -
ACÓRDÃO/DECISÃO do Processo N°
00010823320108150031, Câmara Especializada
Criminal, Relator DES. MÁRCIO MURILO DA
CUNHA RAMOS, j. em 2017)
.
Neste, observa-se que não chegou a ser aplicada
qualquer sanção dos institutos penais citados, apesar do ato
em análise (quebra parcial de duas pedras da escadaria do
teatro municipal) se enquadrar na conduta tipificada pelo
art. 63 da Lei de Crimes ambientais, haja vista o dano
causado edificação especialmente protegida, foram
levantadas duas questões: a inimputabilidade do agente, de
forma a excluir sua culpabilidade, e a aplicação do princípio
da insignificância, de modo a afastar a tipicidade material do
ato.
304 | Para Onélia Queiroga

O segundo julgado, ocorrido em 2019, também não


aplicou qualquer pena, ao que pese a alegada realização de
uma série de reformas em prédio tombado localizado no
centro da cidade de Areia, de modo a alterar seu aspecto e
estrutura, sem autorização da autoridade competente.
Entretanto, o motivo jurídico foi diverso:

APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME CAPITULADO NO


ART. 63 DA LEI Nº 9.605/98. DECLARAÇÃO DE
PRESCRIÇÃO PELO JUÍZO SINGULAR.
IRRESIGNAÇÃO MINISTERIAL. 1. ALEGAÇÃO DE
INEXISTÊNCIA DE PRESCRIÇÃO. TRANSCURSO
DO PRAZO PRESCRICIONAL PREVISTO NO ART.
109, IV DO CP, ENTRE O TÉRMINO DA
SUSPENSÃO PROCESSUAL POR FORÇA DO ART.
89 DA LEI Nº 9.099/95 E A NOVA SUSPENSÃO
PROCESSUAL POR FORÇA DO ART. 366 DO CPP.
MANUTENÇÃO DA SENTENÇA 2.
DESPROVIMENTO DO APELO - Considerando que
a pena in abstrato cominada ao delito imputado ao
recorrido é de 01 (um) a 03 (três) anos de reclusão,
nos termos do art. 109, IV2, do CP, o prazo
prescricional, na espécie, é de 08 (oito) anos. - O
Ministério Público propôs a suspensão condicional do
processo pelo prazo de 02 (dois) anos, mediante as
condições especificadas no termo de audiência de f.
64, com termo inicial em 25/09/2003, findando-se,
portanto, em 25/09/2005 (fl.64), sendo esta a data
limítrofe que o réu tinha para implementar as
Liber Discipulorum | 305

condições impostas, recomeçando a contar, do dia


subsequente, o prazo prescricional, pois já em curso,
novamente, a ação penal. - Entre a data do término da
suspensão processual por força do art. 89 da Lei nº
9.099/95 em 25/09/2005 (f.64) e a nova suspensão
processual por força do art. 366 do CPP em
24/10/2016 (f. 133), transcorreu lapso temporal
superior a 08 (oito) anos, sendo indubitável a
prescrição da pretensão punitiva na modalidade
retro. (TJPB - ACÓRDÃO/DECISÃO do Processo Nº
00010854320028150071, Câmara Especializada
Criminal, Relator DES. RICARDO VITAL DE
ALMEIDA , j. em 2019).

Ou seja, o Estado, nesse caso, incorreu em prescrição


da pretensão punitiva, porquanto transcorridos quase vinte
anos desde a apresentação da denúncia até o julgamento,
com constatação da prejudicial mencionada.
Em ambos os casos, a inaplicabilidade dos tipos
penais se deu não por insuficiência normativa, mas por
fatores externos – prejudiciais, excludentes ou de
afastamento. E, ao que pese a existência de diversos julgados
mencionando a responsabilização de danos ao patrimônio
cultural na esfera cível ou administrativa, estes são os únicos
localizados no âmbito criminal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
306 | Para Onélia Queiroga

Ao que pese o extenso caminho para a construção de


um maior aparato legislativo de tutela, bem como a
relevância dos bens jurídicos protegidos pelos dispositivos
penais analisados, a ausência de aplicação de sanções na
esfera penal insinua que, ao menos em dimensões regionais,
o panorama penal de proteção ao patrimônio histórico-
cultural não vem sendo um forte instrumento protetivo.
Conforme verificado, não foram encontrados, na
competência federal, julgados referentes a crimes ocorridos
contra o patrimônio público cultural em território paraibano.
Já no âmbito do Tribunal de Justiça da Paraíba, enquanto um
dos processos analisados trata de fato atípico, tendo em vista
a insignificância dos danos causados face à legislação
aplicável, vê-se que, no seguinte julgado, o prazo
prescricional de oito anos foi fulminado, tendo em vista se
ter transcorrido o período entre os anos 2005 e 2016 sem
conclusão, mostrando travas investigatórias e punitivas,
afastando o cumprimento do papel repressivo da pena no
prazo concreto.
Conclui-se que, na Paraíba, a função repressiva da
pena não está sendo aplicada, enfraquecendo seu papel
preventivo e tornando a possibilidade de uso do sistema
penal como uma possível armadura ao patrimônio cultural
um instrumento de baixa efetividade.
Tal realidade põe em risco uma proteção plena aos
bens em questão, aumentando a possibilidade de atos
comissivos – como depredação – ou omissivos – como
descaso – em relação aos bens paraibanos. Uma prova local é
a da situação das Ruínas da Igreja de Bom Sucesso,
Liber Discipulorum | 307

localizadas no município de Lucena, e que, apesar de


seguirem sendo frequentadas, ocasionalmente, por grupos
de visitantes, as ruínas são abandonadas pelo poder público,
sendo sustentadas apenas por uma árvore130 e sujeitas a
depredação, vandalização e desgastes naturais. Além disso,
o local também possui a presença de bastante lixo nos seus
arredores devido à quantidade de trilhas sem supervisão
que dão acesso ao lugar, conforme reportado por Martins
(2019).
Evidente, portanto, a inefetividade material na
Paraíba da aplicação da legislação penal de proteção ao
patrimônio cultural enquanto método repressivo, ou mesmo
como prevenção a possíveis danos futuros que não sejam
abarcados pelo princípio da insignificância.

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130 A atual situação do bem, tanto externa quanto internamente, foi


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IBDCult, p. 167-181, 2019.
Liber Discipulorum | 311

ANÁLISE DOS ÍNDICES DE ENCARCERAMENTO


FEMININO NO BRASIL E NO CONTEXTO
INTERNACIONAL, RECORTE RACIAL E TIPOLOGIA
CRIMINAL

Luciana Amaral da Silva131

RESUMO: Nos últimos anos, os índices de encarceramento


de mulheres alcançaram visibilidade a nível nacional e
internacional, assim como o recorte racial e a tipologia
criminal semelhante praticado pelo gênero feminino.
Percebe-se que de 2017 a 2022 houve oscilações tanto no que
diz respeito ao aumento como diminuição da população
carcerária do corpo feminizado em alguns países, porém a
questão racial e o ranking do crime de tráfico de drogas
parece ser sempre uma constante. Diante dessa situação,
tem-se a seguinte problemática: quais as peculiaridades
quanto aos índices de encarceramento de mulheres,
inclusive recorte racial e crime mais praticado pelo corpo
feminizado no plano internacional e nacional? A pesquisa
justifica-se ante ao fato de que o aspecto racial,
endurecimento de penas referentes ao crime de drogas,
índice da população geral podem estar impactando o corpo
feminizado. A metodologia aplicada é de cunho
bibliográfico, documental com base em revisão da legislação
nacional, relatórios nacionais e internacionais, artigos,

131- Mestranda em Direito e Desenvolvimento Sustentável pelo Centro


Universitário de João Pessoa – UNIPÊ. Graduada em Direito pela
Universidade Federal da Paraíba - UFPB. Registradora e Tabeliã no
Estado de Pernambuco. E-mail: luamaraladvogada@gmail.com
312 | Para Onélia Queiroga

Websites e E-book que tratam a respeito da temática. O


método utilizado é o hipotético-dedutívo, com caráter
exploratório e abordagem de natureza qualitativa e
quantitativa.

Palavras-Chaves: Mulher. População carcerária. Recorte


racial. Crime de drogas.

1 INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, observou-se um aumento da


população carcerária de mulheres a nível global. Este
aspecto alcançou visibilidade de entidades internacionais e
nacionais que lançaram um olhar diferenciado para esse
grupo com multiplicidade de vulnerabilidades: gênero,
racial e prisional.
Diante deste contexto, tem-se a seguinte
problemática: Quais as peculiaridades quanto aos índices de
encarceramento de mulheres, inclusive recorte racial e crime
mais praticado por este gênero no contexto global e
nacional?
A pesquisa justifica-se ante ao fato de que, o aspecto
racial, endurecimento de penas e aumento populacional em
geral pode estar refletido como causa do aumento carcerário
feminino global, já que as políticas de desencarceramentos
parecem não estarem alcançando o resultado esperado.
O objetivo geral da pesquisa é analisar no Brasil e no
contexto internacional os índices de aprisionamento
Liber Discipulorum | 313

carcerário, recorte racial e tipo de crime que mais


encarceram mulheres.
O objetivo específico encontra-se em 03 (seis) seções
da seguinte forma: 1) análise do encarceramento feminino
no Brasil, recorte racial e tipologia criminal; 2) análise do
encarceramento da população feminina nos continentes,
tipologia criminal e recorte racial, que subdivide em: 2.1)
Oceania, 2.2) América, 2.3) Ásia, 2.4) África e 2.5) Europa e
3) análise geral do aprisionamento global.
A metodologia aplicada é de cunho bibliográfico,
documental com base em revisão da legislação nacional,
relatórios nacionais e internacionais, artigos, Websites e E-
book que tratam à respeito da temática. O método utilizado
é o hipotético-dedutívo, com caráter exploratório e
abordagem de natureza qualitativa e quantitativa.

2 ANÁLISE DO ENCARCERAMENTO FEMININO NO


BRASIL, RECORTE RACIAL E TIPOLOGIA CRIMINAL.

A presente seção analisará o encarceramento de


mulheres no Brasil sob a perspectiva do aumento de
encarceradas, recorte racial e tipologia criminal.
Nesse país verifica-se que foi extraordinário o
aumento de mulheres encarceradas nos últimos anos.
Segundo Levantamento Nacional de Informações –
Infopen Mulheres (2018), realizado pelo Departamento
Penitenciário Nacional (DEPEN) entre os anos de 2000 a
2016, a população carcerária feminina aumentou cerca de
314 | Para Onélia Queiroga

455%, enquanto a população masculina aumentou cerca de


200%.
Segundo Infopen Mulheres (2018) cerca de 62,5% das
encarceradas são negras, enquanto 1% é amarela e 40% são
brancas.
O tráfico de drogas de 2005 a 2016 tem assumido a 1ª
colocação dentre os crimes mais praticados entre as
mulheres, conforme Infopen Mulheres (2018). Este Relatório
aponta ainda que, esse tipo de crime representou em 2016,
cerca de 62% (sessenta e dois por cento) das prisões deste
grupo vulnerável.
A Global Prison Trends (2019) relatou que o
endurecimento das penas devido ao tráfico de drogas em
alguns países impactou desproporcionalmente o gênero
feminino, dentre os quais as mulheres brasileiras
aprisionadas.
É certo que, realmente com o advento da Lei nº
11.343/2016 (Lei de Drogas) houve um agravamento da
pena e não foram suscitados critérios objetivos para
diferenciar o usuário do traficante. No mais, o art. 28, § 2º,
desta Lei e as jurisprudências apresentam critérios vagos e
frágeis quanto essas diferenciações.
Muitas medidas têm sido adotadas no Brasil para
evitar o aprisionamento, inclusive, o feminino, a exemplo da
Lei nº 12.403/2011 que alterou o art. 318, do Código
Processo Penal para estabelecer a prisão domiciliar ao invés
da prisão preventiva e a Lei nº 13.769/2018. Esta Lei
acrescentou ao Código de Processo Penal, o art. 318-A para
fins de estabelecer a substituição da prisão preventiva
Liber Discipulorum | 315

imposta à mulher gestante ou que for mãe ou responsável


por crianças ou pessoas com deficiência por prisão
domiciliar, desde que preenchessem alguns requisitos.
Ademais, a Lei nº 12.403/2011, alterou o art. 319
estabelecendo medidas cautelares diversas da prisão, como
por exemplo, o uso de monitoramento eletrônico.
E ainda, o Supremo Tribunal Federal (2015)
reconheceu o estado de coisa inconstitucional na ADPF n.
347, no qual determinou que os juízes nas decisões, antes da
aplicação da pena, considerassem o estado caótico do
sistema prisional brasileiro onde inexiste vagas e há uma
superlotação e assim, buscassem aplicar penas diversas das
preventivas e audiências de custódia em até 24 horas da
prisão para que pudessem decidir sobre as prisões.
Apesar dessas medidas que vêm sendo tomadas, nos
últimos tempos pelo país, segundo a quarta edição da World
Female Imprisionment List, da World Prision Brief (2017), o
Brasil ocupava a 4ª (quarta) colocação na lista dos países que
mais encarceravam mulheres a nível global. No entanto, na
quinta edição da World Prision Brief (2022), foi observado
que houve uma redução de 4,49% (quatro vírgula quarenta e
nove por cento) da população prisional feminina em
comparação ao índice de 2017.
O Brasil que em 2017 ocupava o 4º lugar no ranking
mundial de encarceramento feminino passou a ocupar em
2022 o 3º lugar deste ranking, ultrapassando a Rússia, como
relatam a quarta e quinta edição da World Female
Imprisionment List, da World Prision Brief (2017 e 2022).
316 | Para Onélia Queiroga

Mesmo com a adoção das medidas alternativas de


prisão e demais políticas públicas para desencarceramento
parece que estas medidas não têm surtido tantos impactos
nas mulheres brasileiras que cometem crimes.

3 ANÁLISE DO ENCARCERAMENTO DA POPULAÇÃO


FEMININA NOS CONTINENTES, TIPOLOGIA CRIMINAL
E RECORTE RACIAL

Nessa seção há uma subdivisão por continente para


analisar o aprisionamento de mulheres, assim serão
estudados: 2.1) Oceania, 2.2) América, 2.3) Ásia, 2.4) África e
2.5) Europa. Serão enfatizados também alguns aumentos e
reduções do número de encarceramentos femininos,
tipologia de crime e questão racial.
Cabe frisar que, essa pesquisa não citará dados sobre
o número de encarceramento feminino no continente da
Antártida, haja vista que não foram encontrados nos
Relatórios pesquisados dados prisionais sobre esse
continente.

3.1 OCEANIA

Iniciando pela Oceania, é de suma importância frisar


que a variante racial entre as prisões de mulheres reflete
bastante quando se trata de indígenas e negras, segundo
informações do Relatório da Global Prision Trends (2019).
Esse Relatório aponta que na Nova Zelândia e Austrália as
mulheres indígenas enfrentam significativas desvantagens
Liber Discipulorum | 317

na justiça criminal. E mais, que na Nova Zelândia mais de


50% (cinquenta por cento) das mulheres que estão
cumprindo pena nas unidades federais por crime de drogas
são indígenas ou negras.
A quarta e quinta edição da World Female
Imprisionment List da World Prision Brief (2017 e 2022)
informam que a Austrália e a Nova Zelândia são os países
da Oceania que mais encarceram mulheres, ocupando,
portanto, a 1ª e 2ª colocação, respectivamente.
A quarta edição da World Female Imprisionment List
da World Prision Brief (2017) informava que na Austrália e
na Nova Zelândia havia uma população feminina
encarcerada de 3,338 e 756, respectivamente. Já a quinta
edição da Lista da World Prision Brief (2022) relatou que
houve nesses dois países da Oceania uma redução do
encarceramento de mulheres, pois a Austrália passou a ter
3,189 e Nova Zelândia 426.
É visível que ocorreu uma leve redução da população
carcerária na Austrália, porém na Nova Zelândia a redução
foi de quase 46% por cento de encarceramentos femininos e
há um recorte racial voltado ao aprisionamento de indígenas
e negras, bem como ao tráfico de drogas.

3.2 AMÉRICA

No continente americano, segundo a Global Prision


Trends (2019) 30% da população mundial de encarceradas
encontra-se nos Estado Unidos.
318 | Para Onélia Queiroga

Na quarta edição da World Female Imprisionment


List, da World Prision Brief (2017), os Estados Unidos
ocupavam a 1ª colocação com 211,870 mulheres
encarceradas. Já na quinta edição da World Prision Brief
(2022) esse país mesmo com uma população carcerária um
pouco reduzida em relação ao levantamento da edição
anterior (2017), ou seja, com uma população carcerária
estimada em 211,375 presas, este país permaneceu ocupando
o 1º lugar dos países que mais encarceram corpos
feminizados no mundo.
Outro aspecto importante em relação aos Estados
Unidos é que, apesar de alguns estados legalizarem o uso de
maconha, o crime de uso e tráfico de drogas permanece a ser
o que mais encarceram mulheres, conforme Relatório Global
Prision Trends (2019).
A Drug Policy Alliance relata que nos Estados Unidos
a questão racial possui relevância, uma vez que as negras
têm duas vezes mais chances de serem encarceradas que as
brancas e as latinas possuem 20% mais chances de serem
aprisionadas em relação as mulheres brancas.
Ainda quanto ao recorte racial, cabe enfatizar que
nesse continente, conforme a Global Prision Trends (2019),
no Canadá destaca-se o encarceramento de mulheres
indígenas que têm enfrentado significativas desvantagens na
criminalização.
Ademais, nos dois relatórios da World Prision Brief
(2017 e 2022) o continente americano é o que mais aprisiona
o corpo feminizado no mundo.
Liber Discipulorum | 319

3.3 ÁSIA

Com base no Global Prision Trends (2019) a Ásia


também sofre com o aumento carcerário de mulheres.
Segundo a quarta edição da World Female
Imprisionment List da World Prision Brief (2017) entre os 12
(doze) países que mais encarceram no mundo 07 (sete)
países estão nesse continente, a saber: Tailândia que
ocupava a 5ª colocação, a Índia que ocupava a 6ª colocação,
Filipinas que ocupava a 7ª colocação, Vietnã que ocupava a
8ª colocação, a Indonésia que ocupava a 9ª colocação e
Mianmar que ocupava a 11ª colocação.
Quanto a Mianmar a quarta e a quinta World Female
Imprisionment List da World Prision Brief (2017 e 2022)
informam que este país manteve a população carcerária de
9,807 presas, no entanto, devido ao aumento da população
carcerária de mulheres na Turquia (Oceania), este país
passou a ocupar a 11ª colocação do ranking dos países que
mais aprisionam mulheres, enquanto Mianmar passou a
ocupar a 12ª colocação global.
Nesse continente, o crime de tráfico de drogas
também ocupa a primeira colocação dos crimes que mais
encarceram mulheres. E mais, o aprisionamento por crimes
de tráfico de droga tem punição bastante rígida, a exemplo
de país como a Tailândia, onde a legislação permite a
aplicação de pena de morte, conforme Global Prision Trends
(2019).

3.4 ÁFRICA
320 | Para Onélia Queiroga

Na África, onde estão localizados os países mais


pobres, é o continente com menor crescimento da população
carcerária feminina em relação ao crescimento populacional
em geral e demais continente.
A quarta edição da World Female Imprisionment List
da World Prision Brief (2017) trazia a informação de que nos
países da África havia uma população de mulheres e
meninas encarceradas na proporção de 3,4. Esse número é
muito baixo em relação aos demais continentes.
Já a quinta edição da World Female Imprisionment
List da World Prision Brief (2022) dispõe que houve uma
redução de mulheres e meninas encarceradas no continente
que passa a ter uma proporção de 3,3% de mulheres
encarceradas.
A quarta edição da World Prision Brief (2017) trazia a
seguinte informação em relação aos países que mais
encarceravam mulheres nesse continente: Etiópia ocupava a
1ª colocação com 4,756 presas, África do Sul ocupava a 2ª
colocação com 4,193 presas, Quênia ocupava a 3ª colocação
com 3,756 e Ruanda a 4ª colocação com 3,526.
A quinta edição da World Prision Brief (2022) trouxe
mudanças no quadro em relação aos países que mais
encarceram mulheres no referido continente, a saber: Etiópia
permaneceu na 1ª colocação com o mesmo número de
encarceradas, Ruanda passou a ocupar a 2ª colocação com
3.537 presas, Uganda ocupou a 3ª colocação com 3,476 e
África passou a ocupar a 4ª colocação com 3.453 presas.
Liber Discipulorum | 321

Cabe ressaltar que, Uganda na quarta edição da


citada lista tinha uma população de 1,848 encarceradas e que
esse número quase dobrou passando este país a figurar na
terceira colocação. Já a África do Sul houve uma redução de
prisão de mulheres e passou da 2ª colocação para ocupar a 4ª
colocação em relação aos países Africanos que mais
encarceram.

3.5 EUROPA

Na relação dos 12 (doze) países no mundo que mais


encarceram mulheres, na quarta e quinta edição da World
Female Imprisionment List da World Prision Brief (2017 e
2022) a Rússia e a Turquia são sempre citadas. Esses países
são intercontinentais, porém as pesquisas da World Prision
Brief os citam na relação do continente europeu.
Mas, há alguns detalhes interessante em relação a
Rússia, na quarta edição da World Female Imprisionment
List da World Prision Brief (2017) o país encontrava-se na 3ª
colocação da lista dos países que mais encarceram mulheres
globalmente, visto que tinha uma população feminina
carcerária de 48,478 de presas.
A quinta edição da World Female Imprisionment List
da World Prision Brief (2022) dispõe que houve uma
diminuição da população carcerária feminina da Rússia que
passou a ter 39,120 presas. Com isso, essa mesma edição
enfatizou que houve uma troca de lugares em relação ao
Brasil e Rússia, pois este país passou a ocupar atualmente a
322 | Para Onélia Queiroga

4ª colocação na lista dos países que mais encarceram


mundialmente, enquanto o Brasil a 3ª colocação.
A Rússia é o país que mais encarcera no continente
europeu. Até 2017 o país ocupava a 3ª colocação entre os
países que mais encarceravam no mundo, conforme Infopen
Mulheres (2018). No entanto, a pesquisa realizada pela
World Prision Brief (2022), constatou-se que enquanto houve
aumento de encarceramento feminino em todo o mundo, a
Rússia apresentou um percentual de diminuição de
aprisionamento carcerário feminino, assim, saiu da 3ª
posição para ocupar a 4ª posição dos países que encarceram
mulheres mundialmente. Considerando que, segundo a
ONU (2019) tem ocorrido nesse país uma diminuição da
população por vários motivos dentre os quais diminuição de
natalidade, aumento de mortalidade e aumento de
emigração esses aspectos podem ser a causa da diminuição
carcerária feminina.
Segundo a quarta edição da World Female
Imprisionment List da World Prision Brief (2022), a Turquia
ocupava a 12ª colocação no ranking mundial de
encarceradas com a população de 9,708 presas e ficava atrás
do país asiático Mianmar. No entanto, a quinta edição,
revelou mudanças onde a Turquia teve um aumento da
população carcerária de mulheres de 11,465 e passou a
ocupar a 11ª colocação no ranking mundial de países que
mais encarceram mulheres ultrapassando Mianmar.
Por fim, a Europa, com base na quinta edição da
World Prision Brief (2022) há uma população prisional de
Liber Discipulorum | 323

mulheres na proporção de 5,9% (cinco vírgula nove por


cento).

4 ANÁLISE GERAL DO CONTEXTO DE


APRISIONAMENTO GLOBAL

Conforme verificado nos Relatórios nacionais e


internacionais citados, dentre os crimes mais praticados
pelas mulheres estão os crimes não-violentos, dentre os
quais ocupam o ranking mundial o uso e tráfico de drogas.
Tal situação se explica porque muitas das vezes o
corpo feminizado é utilizado como “mula”, servindo de
transporte para substâncias entorpecentes. Esse fato pode
estar relacionado ao retorno financeiro rápido e fácil do
tráfico de drogas, muito embora que o crime não compensa.
Essa causa pode se dá devido ao gênero feminino não
possuir os mesmos salários e oportunidades de empregos
que os homens. Assim, buscam no crime obter condições
financeiras para sustentarem suas famílias ou por pressão de
seus companheiros e maridos que as vezes também estão
encarcerados e as sujeitam a pratica dessa espécie de crime.
Outro aspecto, que vale salientar é que o recorte racial
em relação a pessoa negra é uma unanimidade mundial. No
entanto, na Oceania se destaca também o aprisionamento de
mulheres indígenas.
A África, apesar de possuir os países mais pobres do
mundo, se mantém com um baixo número de mulheres
encarceradas em relação a população geral e mundial.
Inclusive entre 2017 e 2022 houve uma leve diminuição de
324 | Para Onélia Queiroga

encarceradas. No entanto, há destaque para Uganda que


quase dobrou o número de presas, conforme a quinta edição
da World Prision Brief (2022).
A Rússia apesar de sair da 3ª para 4ª colocação no
ranking dos países que mais encarceram mulheres no
mundo, de 2000 a 2016 houve uma redução de
encarceramento do corpo feminizado de – 2% (menos dois
por cento) segundo a quarta edição da World Female
Imprisionment List da World Prision Brief (2017). Vale
salientar que, a ONU (2019) tem chamado atenção para o
declínio populacional nesse país. Esse declínio pode estar
associado ao baixo índice de natalidade, aumento de
mortalidade e de emigração. Que provavelmente, pode ter
alguma associação com esse contexto de redução da
população carcerária feminina, portanto, merece pesquisa
mais apurada para se afirmar que essas causas estão
associadas.
A World Prision Brief (2017) na quarta edição, da
World Female Imprisonment List informava que a
população carcerária feminina mundial em 2017 era de
7,0% (sete por cento). No entanto, a quinta edição, da World
Female Imprisonment List (2022) relata que houve uma
pequena redução de encarceramento feminino a nível
global representando atualmente cerca 6,9% (sete por
cento).
Diante desse contexto, verifica-se que tanto no Brasil
como no contexto internacional as políticas de
desencarceramento e endurecimento das penas não têm
impactado os corpos feminizados positivamente, visto que
Liber Discipulorum | 325

ainda permanecem sendo atingidos, principalmente as


negras, tendo tráfico de drogas como principal causa de
encarceramento desse gênero.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Há muitas semelhanças nos aprisionamentos


femininos a nível nacional e internacional quanto ao recorte
racial, prática de crimes não violentos e ausência de políticas
públicas para diminuir a vulnerabilidade das mulheres
encarceradas.
Geralmente, essas mulheres aprisionadas são arrimos
de famílias e únicas ou principais responsáveis pela criação
dos filhos. Diante da ausência de oportunidades
educacionais e de mercado de trabalho, as mesmas se
lançam na prática do tráfico de drogas, na maioria das vezes
como “mulas” nacionais e internacionais, visto que há um
retorno financeiro rápido para garantir o sustento seu e de
seus familiares.
Em muitos dos casos, essas mulheres são de baixa
renda e não possuem condições financeiras para pagarem
fianças ou mesmo para pagarem suas defesas e são
colocadas no cárcere onde permanecem por um longo
período. Período significativo que destrói os liames
familiares, aumentam os preconceitos e as conduzem mais
ainda para as práticas criminosas, pois os sistemas prisionais
têm sido verdadeiras “escolas de crimes” que nada
ressocializam, mas que contribuem para a reincidência e
aumento da população carcerária feminina.
326 | Para Onélia Queiroga

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