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O Laboratório Americano de Estudos Constitucionais Comparados - LAECC

procura aprofundar as discussões temáticas comparativas entre os vários siste-


mas constitucionais americanos. O grupo desenvolve abordagens comparativas
em 4 diferentes linhas, procurando cobrir todas as dimensões materiais do cons-
titucionalismo e fomentar a produção científica nos diversos ramos do direito,
sempre primando pela abordagem de abrangência interdisciplinar.
ESTUDOS EM HISTÓRIA DO DIREITO PENAL
E DA JUSTIÇA CRIMINAL

Apoio Alexandre Walmott Borges


Hugo França Pacheco
José Faleiros Júnior
Moacir Henrique Júnior
Ricardo Padovini Pleti Ferreira
Organização, Diego Nunes
edição e revisão
Imagem da capa Freepik.com/@fanjianhua
Diagramação Alexandre Walmott Borges
José Faleiros Júnior

Laboratório Americano de Estudos Constitucionais Comparados


CNPJ/MF nº 33.097.820/0001-00
Rua Johen Carneiro, 377, Uberlândia – MG
CEP 38.400-070
www.laecc.org.br

Todos os direitos reservados.


Fechamento da edição : 12/2020.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


___________________________________________________________________________________

E82 Estudos em história do direito penal e da justiça criminal / Diego Nunes


2020 (Organizador). Uberlândia: LAECC, 2020.
340 p.

Inclui bibliografia.
Obra coletiva. Vários autores.
ISBN: 978-65-88563-12-0

1. História do Direito. 2. Direito Penal. 3. Justiça Criminal. I. Nunes, Diego.

CDU: 340/CDD: 341.5


___________________________________________________________________________________
Catalogação na fonte
/

Conselho Editorial
Laboratório Americano de Estudos Constitucionais Comparados - LAECC
http://laecc.org.br/conselho-editorial

ADAILTON BORGES DE OLIVEIRA Universidade Católica de São Paulo. Professor do


Doutorando no Programa de Biocombustíveis do Centro Universitário do Planalto de Araxá –
Instituto de Química da Universidade Federal de UNIARAXÁ.
Uberlândia – UFU. Presidente/coordenador da
ANTONIO MADRID PÉREZ
Comissão Permanente de Sindicância e Inquérito
Doutor em Direito pela Universitat de Barcelona
da Universidade Federal de Uberlândia – UFU.
– UB. Professor da Universidade de Barcelona –
ALESSANDRA SILVEIRA UB. Professor do curso de Mestrado Interuniver-
Doutora em Direito pela Universidade de Coim- sitário organizado pelas universidades: Universi-
bra – UC. Professora da Universidade do Minho – dad Rey Juan Carlos, Universidad Carlos III de
Portugal. Madrid, Universitat Autònoma de Barcelona e
Universitat de Barcelona.
ALEX CABELLO AYZAMA
Mestre em Direito pela Universidade Federal de BERNARDO WALMOTT BORGES
Uberlândia (UFU - Brasil). Membro do Grupo de Doutor em Física pela Universidade Federal de
Investigación y Estudios en Derecho Internacional Santa Catarina – UFSC. Professor da Universida-
(GEPDI-UFU-CNPq) e do Laboratorio America- de Federal de Santa Catarina – UFSC.
no de Estudos Constitucionais Comparados
BORJA MUNTADAS FIGUERAS
(LAECC- UFU-CNPq). Advogado
Doutor em Filosofía Contemporánea y Tradición
ALEXANDRE DE SÁ AVELAR Clásica pela Universitat de Barcelona – UB. Pro-
Doutor em História pela Universidade Federal fessor e investigador em Filosofía Moderna y
Fluminense – UFF. Professor da Universidade Contemporánea na Universitat La Salle, Campus
Federal de Uberlândia – UFU. Barcelona, na Universitat de Barcelona – UB e
Professor Convidado na Universidade Federal de
ALEXANDRE WALMOTT BORGES Uberlândia – UFU.
Doutor em Direito pela Universidade Federal de
Santa Catarina – UFSC e em História pela Univer- DIVA JÚLIA SOUSA DA CUNHA
sidade Federal de Uberlândia – UFU. Professor da SAFE COELHO
Universidade Federal de Uberlândia – UFU. Pós-Doutora em Direito Constitucional Compa-
rado pela Universidade Federal de Uberlândia –
ALFREDO JOSÉ DOS SANTOS UFU e Doutora em Ciudadania y Derechos Hu-
Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade manos pela Universidad de Barcelona – UB.
Católica de São Paulo - PUC/SP. Professor da Professora Adjunta DE da Universidade Federal
Universidade Estadual Paulista - UNESP Campus de Goiás – UFG.
Franca.
FABIANA ANGÉLICA PINHEIRO CÂMARA
ALMIR GARCIA FERNANDES Doutora em História Social pela Universidade
Doutor em Direito Comercial pela Pontifícia Federal de Uberlândia – UFU. Mestre em Gestão
Internacional e Desenvolvimento Econômico pela Doutora pela Faculdade de Economia, Adminis-
Universidade de Reading – Inglaterra. tração e Contabilidade da Universidade de São
Paulo – FEA/USP. Professora da Universidade
FRANCIELLE VIEIRA OLIVEIRA Federal de Uberlândia – UFU.
Doutoranda em Ciências Jurídicas Públicas no
âmbito do Doutorado Europeu da Universidade MILLA ALVES BAFFI
do Minho – Portugal. Pós-Doutora em Microbiologia de Alimentos pela
Universidad de Castilla La Mancha – UCLM.
FRANCISCO ILÍDIO FERREIRA ROCHA Doutora em Genética e Bioquímica pela Universi-
Doutor em Direito Penal pela Pontifícia Universi- dade Federal de Uberlândia – UFU. Professora da
dade Católica de São Paulo – PUC/SP. Professor Universidade Federal de Uberlândia – UFU.
do Centro Universitário do Planalto de Araxá –
UNIARAXÁ. MOACIR HENRIQUE JÚNIOR
Doutor em Direito e Ciência Política e Mestre em
GONÇAL MAYOS SOLSONA Criminologia e Sociologia Jurídico-Penal pela
Doutor e Mestre em História da Filosofia pela Universidade de Barcelona – UB. Professor da
Universitat de Barcelona – UB. Professor Titular Universidade do Estado de Minas Gerais –
na Faculdade de Filosofia da Universitat de Barce- UEMG.
lona – UB.
PAULO CÉSAR CORRÊA BORGES
ILTON NORBERTO ROBL FILHO Pós-Doutor em Direito pela Universidade de
Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Sevilla – US. Doutor e Mestre em Direito pela
Federal do Paraná – UFPR. Professor Adjunto da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita
Faculdade de Direito da UFPR e do Instituto Filho – UNESP. Professor da Universidade Esta-
Brasiliense de Direito Público – IDP. Diretor da dual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP
Academia Brasileira de Direito Constitucional Campus Franca.
(ABDConst).
PAULO ROBERTO DE ALMEIDA
JONATAN DE JESUS OLIVEIRA ALVES Doutor em História pela Pontifícia Universidade
Advogado e professor. Doutorando em direito Católica de São Paulo - PUC/SP. Professor da
pela Universidade de Valência. Mestre em Direito Universidade Federal de Uberlândia – UFU.
pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da
Universidade Federal de Uberlândia. RENATO CÉSAR CARDOSO
Pós-Doutor em Filosofia pela Universitat de
JOSÉ CARLOS REMOTTI CARBONELL Barcelona – UB. Doutor em Direito pela Univer-
Doutor em Direito pela Universitat Autònoma de sidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Profes-
Barcelona – UAB. Professor da Universitat Au- sor da Universidade Federal de Minas Gerais –
tònoma de Barcelona – UAB. UFMG.
JOSÉ LUIZ DE MOURA FALEIROS JÚNIOR RICARDO PADOVINI PLETI FERREIRA
Mestre em Direito pela Universidade Federal de Doutor e mestre em Direito Empresarial pela
Uberlândia – UFU. Especialista em Direito Digital Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG.
e Compliance Direito Civil e Empresarial e em Professor da Universidade Federal de Uberlândia
Direito Processual Civil. Advogado e professor. – UFU.
LUCIANA ORANGES CEZARINO RODRIGO VITORINO SOUZA ALVES
Pós-Doutora pelo Politécnico de Milão – POLIMI.
Doutoranto em Direito pela Universidade de THIAGO PALUMA
Coimbra – UC. Mestre em Direito pela Universi- Doutor em Direito Internacional pela Universidad
dade Federal de Uberlândia – UFU. Professor da de Valencia. Professor da Universidade Federal de
Universidade Federal de Uberlândia – UFU. Uberlândia.

SAULO PINTO COELHO VIVIANE SÉLLOS-KNOERR


Pós-Doutor pela Universitat de Barcelona – UB. Pós-Doutora pela Universidade de Coimbra –
Doutor em Direito pela Universidade Federal de UC. Doutora em Direito pela Pontifícia Universi-
Minas Gerais – UFMG. Professor da Universidade dade Católica de São Paulo – PUC/SP. Professora
Federal de Goiás – UFG. do Centro Universitário Curitiba – UniCURITI-
BA.
SÉRGIO AUGUSTO LIMA MARINHO
Mestre em Direito Público pela Faculdade de WELLINGTON MIGLIARI
Direito “Prof. Jacy de Assis” da Universidade Doutor e Mestre em Direito Internacional Público
Federal de Uberlândia com pesquisa fomentada pela Faculdade de Direito, Universitat de Barcelo-
pela CAPES. Professor Universitário. Advogado. na – UB.
Apresentacão
Diego Nunes

1. Com alegria trazemos a lume o presente livro, constituído por um conjunto


de artigos que nos traz questões variadas da história do direito penal e da justiça
criminal a partir da transição para a modernidade e nela se concentrando. A obra
cuida de um arco temporal com aproximadamente dois séculos, englobando a fun-
dação da modernidade jurídica no final do século XVIII, o século XIX e algumas
declinações modernas ao longo do século XX. Os textos alcançam dois espaços
jurídicos ora vistos bem delimitados entre si, ora interconectados, como são os
mundos europeu-continental e o luso-brasileiro, e que, por isso, serão interconec-
tados por alguns autores.
Como mostram os estudos recentes (MECCARELLI, 2018), foi a transição para
a modernidade, por meio do pensamento iluminista, que criou a cisão entre direito
penal e justiça criminal. Até então, esta última continha dentro de si as dimensões
da determinação e administração da justiça; vale dizer, a atividade de facere iustiti-
am era integrada entre saber doutrinal (no caso do direito penal, pela dita praxísti-
ca) e atividade jurisprudencial (por meio do poder de arbitrium) em um quadro
pluralista das fontes jurídicas. Com o advento da separação dos poderes e o estabe-
lecimento do princípio da legalidade, a construção das bases do direito de punir
ficou monopolizada pelos novos órgãos políticos, restando às instâncias judiciárias
a aplicação de um direito pré-estabelecido pela lei do Estado.
Os movimentos penais que se sucederam, como os philosophes iluministas, a
“escola” clássica ou italiana, a escola positiva, a terza scuola e o tecnicismo jurídico
buscaram assentar um novo papel à doutrina penal diante do legislador e dos juízes,
que ia de um reformismo radical, passando por formas de integração e chegando a
uma postura de subserviência. Por isso, ao fim, não importa se a dimensão acentu-
ada pelos artigos ora se debruce sobre as mudanças legislativas ou então se demore
no debate doutrinário: as ausências acabam por refletir, como em um jogo de espe-

IX
Diego Nunes
lhos, como saber e poder no âmbito penal se enxergam e buscam um lidar com o
outro, seja pela deferência ou por tentativas de controle mútuos.
Adicionar a relação entre Europa e Brasil acrescenta a importante questão cen-
tro-periferia, fundamental em um momento histórico em que muda o eixo de cir-
culação das ideias jurídico-penais (NUNES, 2018). Se no modelo pré-moderno do
medievo e Antigo Regime se tratava de uma circulação “compulsória”, dadas as
características do mundo do ius commune, a modernidade jurídica trouxe a forma
código, de cunho nacional, que tornou a circulação “facultativa” aos modelos que
os estados entendiam adequados para as reformas legislativas que grassaram ao
longo do século XIX. Certo que, dadas as necessárias particularidades que os pro-
cessos de transplantes e transferências jurídicas sofrem – que, na realidade, só po-
dem ser vistos como emaranhamentos (DUVE, 2014, p. 3-25) – a divisão se dá para
fins didáticos e organizativos.
Abordam a primeira perspectiva os capítulos de Mario Sbriccoli, Ettore Dezza,
Paolo Marchetti, Arno Dal Ri Júnior & Kristal Moreira Gouveia e Diego Nunes.
Enfatizam os aspectos ligados ao segundo ponto de vista os capítulos de Murilo De
Robbio & Marina Tanabe Livramento, Giácomo Tenório Farias, João Luiz Ribeiro,
Bárbara Madruga da Cunha & Mário Davi Barbosa, Ricardo Ávila Abraham & Car-
los César Rodrigues, Vanilda Honória dos Santos & Biatriz Bittencourt de Assis,
Júlia Farah Scholz e, por fim, Bárbara Klopass Locks de Godoi & Tayná Ferreira.

2. Abrindo a primeira parte, o capítulo de Mario Sbriccoli, embora escrito nos


anos 1980, ainda levanta algumas advertências metodologicamente relevantes ao
criticar a história que toma as fontes judiciárias como simples repositórios de in-
formações, principalmente a velha criminologia histórica, a história quantitativa da
criminalidade e a case history criminal. O problema central de todas essas aborda-
gens, segundo o autor, é que elas negligenciam a dimensão jurídica das fontes em-
pregadas, isto é, deixam na sombra as histórias que tais fontes melhor contam: a
história da justiça criminal e a história do crime como fruto da reação social (atra-
vés do direito) de tais aparatos.
Ettore Dezza apresenta as reações legislativas à obra “Dos delitos e das penas”
nos Estados europeus entre os séculos XVIII e XIX no que tange à justiça penal,

X
Apresentação
consultando as várias legislações penais e de processo penal em países como Áus-
tria, Prússia, França e os estados italianos pré-unitários, comparando-as aos princi-
pais postulados da obra de Cesare Beccaria. Ainda que daquele momento em diante
o novo modelo de justiça penal estivesse sempre em debate, por vezes se negavam a
sua inserção na legislação.
Paolo Marchetti, aproxima os campos da Medicina e do Direito apresentando as
tentativas realizadas por pesquisadores do passado buscar uma explicação biológica
para o comportamento criminoso a partir dos estudos de Cesare Lombroso, bem
como de seus contemporâneos quanto a reprimir e prevenir o comportamento
criminoso pelo meio biológico podem abrir portas desconfortáveis para simplifica-
ções perturbadoras.
Arno Dal Ri Júnior e Kristal Moreira Gouveia trabalham sobre a função da per-
sonalidade jurídica atribuída ao Estado no Código Penal Italiano de 1930 para a
instituição de categorias autoritárias. Especificamente sobre a categoria personali-
dade do Estado, busca-se enquadrar o Código no debate doutrinário. Por meio da
ressignificação da expressão laesa maiestas, busca-se focar na relação entre a nova
figura do Estado no contexto do Código Penal e o deslocamento de tutela de reco-
nhecimento de bens jurídicos posterior, em especial no que se refere à virada puni-
tivista, que coloca o indivíduo como alvo e possível ameaça e não mais como sujeito
da tutela jurídica, alguns ainda presentes na atual legislação penal italiana.
Diego Nunes, encerrando este primeiro bloco, apresenta o tratamento jurídico
dado à extradição na Itália Fascista e no Brasil de Getúlio Vargas para compreender
se o instituto sofreu torsões autoritárias, seja no campo do direito interno como nas
relações diplomáticas entre os dois países. As legislações italiana (Código Penal de
1930) e brasileira (lei de extradição de 1938) continham importantes elementos
para a defesa de um Estado forte. Porém, o tratado Ítalo-Brasileiro de extradição de
1932 estava mais próximo à tradição liberal. O “Direito Penal fascista” não foi exa-
tamente uma revolução, pois apesar de introduzir alterações importantes coabitou
com o Direito Penal liberal.
Iniciando a segunda parte, Murilo De Robbio e Marina Tanabe Livramento ana-
lisam de que forma ocorria o regime de provas no Projeto de Código de Pascoal de
Mello Freire de 1789, verificando a maneira com a qual o jurista lidou com a pro-

XI
Diego Nunes
posta da reforma das Ordenações até então vigentes, principalmente no concernen-
te às provas no processo criminal ante a reformulação do ordenamento jurídico
português. O Projeto de Código elaborado por Mello Freire teve clara influência
dos princípios iluministas e seus dispositivos influenciaram os futuros códigos cri-
minais portugueses.
Giácomo Tenório Farias busca compreender quais modificações legislativas re-
sultantes do movimento iluminista-penal, especialmente, a partir da concepção
humanitária de Beccaria no processo da codificação penal lusitana, especificada-
mente na adoção da morte como espécie de pena. Comparando os diversos diplo-
mas legais portugueses sobre a adoção da morte como pena, foi possível identificar
como se deu a permanência da adoção da morte como espécie de pena nas legisla-
ções portuguesa desde o século XVI até o XIX.
João Luiz Ribeiro faz a transcrição de uma interessante fonte jornalística acerca
do relato sobre a última execução da pena capital que se tem notícia na província do
Rio de Janeiro, em 1860, acompanhada de notas que auxiliam a contextualizar o
documento dentro da história do processo penal brasileiro durante o Brasil impé-
rio.
Bárbara Madruga da Cunha e Mário Davi Barbosa discutem o problema da cri-
minalização da mulher que abortava no Brasil do século XIX, partindo da análise
do Código Criminal do Império de 1830, onde se constata a ausência de criminali-
zação da conduta do autoaborto. Questionou-se o porquê da escolha dos legislado-
res daquela época de não inserir no texto do código esta conduta com ênfase no
escravismo e no patriarcalismo como elementos importantes para reflexão, tendo
como resposta que esta repressão se encontrava circunscrita às esferas privadas de
punição, visto que se tratava de uma conduta que feria o pátrio poder.
Ricardo Ávila Abraham e Carlos César Rodrigues analisam a possível continui-
dade entre o Código Penal de 1890 e leis penais especiais, datadas das primeiras
décadas do século XX, no que se refere à política criminal de drogas no Brasil. Ape-
sar de idênticas as terminologias e construções dogmáticas dos artigos que crimina-
lizavam condutas referentes às drogas nos referidos diplomas normativos, isso não
significou uma continuidade na política criminal de drogas no Brasil, que se iniciou
somente a partir da segunda década do século XX.

XII
Apresentação
Vanilda Honória dos Santos e Biatriz Bittencourt de Assis discutem a cultura ju-
rídica de criminalização das práticas religiosas afro-brasileiras, especialmente o
espiritismo e o curandeirismo, a partir da análise dos Códigos Penais de 1890 e
1940, utilizando a experiência de São Pedro do Uberabinha (atual cidade Uberlân-
dia/MG) pelas disposições do Código de Posturas que vigeu na cidade, de forma a
analisar a relação dos dispositivos penais com a cultura local, no que se refere ao
exercício da liberdade religiosa. As autoras concluíram que predominou a cultura
de preconceito e discriminação por meio da criminalização e punição das religiões,
criadas ou ressignificadas pelos africanos e seus descendentes, com reflexos no
tempo presente.
Júlia Farah Scholz buscou verificar se houve uma reinterpretação dos institutos
defendidos pela Escola Positiva Italiana no Código Penal brasileiro de 1940, especi-
almente em relação às medidas de segurança. A hipótese levantada é de que houve
uma reformulação dos conceitos e ideias propostas pela escola italiana, de modo
que o caráter técnico presente na codificação penal do século XX promoveu uma
adequação de seus institutos à realidade da época.
Enfim, Bárbara Klopass Locks de Godoi e Tayná Ferreira finalizam a segunda
parte com a análise a viabilidade de estudos interseccionais entre a História do Di-
reito Penal e os Pensamentos Feministas sobre a problemática do aborto, adotando
como marco teórico o pensamento feminista de Silvia Federici e tendo como recor-
te empírico as codificações penais brasileiras de 1940 e 1969. Como resultado, veri-
ficou-se o sucesso dessa interlocução para se compreender o aborto como expres-
são da autonomia das mulheres sobre seus corpos.

3. O livro que ora apresentamos faz parte de um esforço coletivo capitaneado


pelo Ius Commune (Grupo de Pesquisa em História da Cultura Jurídica –
CNPq/UFSC), nascido em 2004 e sediado em Florianópolis, com o auxílio do Stu-
dium Iuris (Grupo de Pesquisa em História da Cultura Jurídica – CNPq/UFMG),
nascido em 2015 e sediado em Belo Horizonte e de historiadores do direito do Bra-
sil e da Europa. Este trabalho visa contribuir para a afirmação do campo da história
do direito no Brasil, e da história do direito penal e da justiça criminal em particu-
lar.

XIII
Diego Nunes
Sob a perspectiva teórica, o Ius Commune – bem como os pesquisadores brasi-
leiros e estrangeiros que colaboraram com a presente obra – aborda as experiências
jurídicas ocidentais como fenômenos culturais localizados historicamente, afastan-
do-se simultaneamente de certas abordagens que alçam as juridicidades a uma di-
mensão atemporal, bem como daquelas que reduzem as experiências jurídicas a
reflexos automáticos das formações sociais. Trata-se, portanto, de tomar as experi-
ências jurídicas como fenômenos com uma espessura própria, produtoras de senti-
dos e comportamentos sociais.
Desde sua fundação, o grupo florianopolitano privilegia a história do direito pe-
nal como tema de investigação. Vários seminários, grupos de estudo, pesquisas em
todos os níveis (graduação, mestrado, doutorado e pós-doutorado) e publicações
vem sendo dedicadas à história do direito penal. Dentre as publicações sobre o te-
ma, para além da obra seminal de Arno Dal Ri Jr. (2006), três outras coletâneas
antecederam esta que ora apresentamos: a primeira, focada no iluminismo jurídico-
penal (DAL RI JR. et al, 2009); a segunda, na construção da experiência jurídico-
penal moderna, desde as vésperas medievais, até as declinações específicas da pará-
bola moderna entre o final do século XIX e início do século XX (DAL RI JR.; SON-
TAG; NUNES, 2011); e a terceira, em continuidade com a anterior, vale-se da
mesma cronologia para discutir os confins entre o direito penal e a política (DAL RI
JR.; SONTAG; NUNES, 2020). Destacam-se, ainda, os vários anais de eventos que
trataram das inter-relações entre direito penal e justiça criminal e sua diferenciação
na modernidade (DAL RI JR; SONTAG, 2008; DAL RI JR.; NUNES, 2009; DAL RI
JR., 2010; DAL RI JR.; SONTAG; NUNES; AGUIAR, 2011; DAL RI JR., CORRÊA;
NUNES, 2020).
Desta vez, a preocupação foi articular as pesquisas em história do direito penal e
da justiça criminal do grupo de pesquisa com as atividades de ensino na pós-
graduação. Desde 2018 é oferecida anualmente a disciplina História do Direito Pe-
nal como optativa (Área de Concentração “Teoria e História do Direito”, Linha de
Pesquisa “Historicismo, Conhecimento Crítico e Subjetividade”) do Programa de
Pós-Graduação em Direito da UFSC. Desde então, inúmeras discussões foram tra-
vadas com os vários alunos que nela se matricularam a partir de textos como aque-
les que compõem a primeira parte desta obra. Como resultado, ao final do trimestre
eles produzem papers reagindo a estes textos a partir de fontes brasileiras, que re-
XIV
Apresentação
sultaram em alguns dos capítulos da segunda parte do livro.

4. Ainda, esta obra foi realizada, institucionalmente, pelo entrecruzamento de


várias iniciativas científicas. Em primeiro lugar, no âmbito do projeto de pesquisa
“Direito Penal e dimensão política na modernidade jurídica brasileira” na UFSC;
em segundo, no projeto “História do direito penal brasileiro em perspectiva com-
parada entre os séculos XIX e XX” (FAPEMIG, edital demanda universal 01/2017).
Também foram fundamentais os intercâmbios decorrentes dos acordos internacio-
nais. E, por fim, o programa PROEX/CAPES do PPGD/UFSC de 2020, que possibi-
litou o financiamento por meio de edital pelo qual esta obra foi aprovada.
Esta publicação não teria sido possível, também, sem a colaboração de uma
equipe formada por integrantes do Ius Commune, do Studium Iuris e Ius Gentium.
Nossos agradecimentos, então, ao time de tradutores que trabalhou conosco: prof.
Ricardo Sontag, doutoranda Marja Mangili Laurindo, mestrando Murilo Aparecido
Carvalho da Costa De Robbio e graduando Thales Benassi. Muito obrigado, tam-
bém, à comissão científica que se ocupou do edital de convocação, pareceres e revi-
sões, bem como dos ajustes de formatação em geral dos textos: Carlos César Rodri-
gues, Mário Davi Barbosa e Ricardo Ávila Abraham, além da participação da prof.ª
Mariana de Morais Silveira no processo de double blind peer review.
Por fim, gostaria de agradecer a todos os autores por terem aceitado participar
deste livro. Esperamos que esta coletânea possa, de fato, colaborar para a consolida-
ção da história do direito penal no Brasil.
Florianópolis (SC), 1º de dezembro de 2020.

Referências
DAL RI JR., Arno. O Estado e seus inimigos: a repressão política na história do direito penal. Rio
de Janeiro: Revan, 2006.
DAL RI Jr., Arno; CASTRO, Alexander de; SONTAG, Ricardo; DE PAULO, Alexandre Ribas. Ilu-
minismo e direito penal. Florianópolis: Boiteux, 2009.
DAL RI Jr., Arno; SONTAG, Ricardo (orgs.). ANAIS Encontros de História do Direito da UFSC: A
construção do direito e processo penal modernos. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2008.
DAL RI JR., Arno; NUNES, Diego (Org.). ANAIS Encontros de História do Direito da UFSC: RE-

XV
Diego Nunes
GIMES DE LEGALIDADE E A CONSTRUÇÃO DO DIREITO PENAL MODERNO: a questão
do crime político. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009.
DAL RI JR., Arno (Org.). ANAIS Encontros de História do Direito da UFSC: ORDENAMENTOS
JURÍDICOS E A DIMENSÃO DA JUSTIÇA NA EXPERIÊNCIA JURÍDICA MODERNA E
CONTEMPORÂNEA: Diálogo entre História, Direito e Criminologia. Florianópolis: Fundação
Boiteux, 2010.
DAL RI Jr., Arno; SONTAG, Ricardo (orgs.). História do direito penal entre medievo e moderni-
dade. Belo Horizonte: Del Rey, 2011.
DAL RI JR., Arno; SONTAG, Ricardo; NUNES, Diego; AGUIAR, Márlio (Org.). ANAIS Encontros
de História do Direito da UFSC: PENSAMENTO JURÍDICO E DIMENSÃO INTERNACIO-
NAL: Experiências históricas e itinerários conceituais entre os séculos XIX e XX. Florianópolis:
Fundação Boiteux, 2011.
DAL RI JR., Arno; CORREA, Caetano Dias; NUNES, Diego. ANAIS XVI Encontros de História do
Direito da UFSC: Printing & Iconology as Legal-Historical Sources. Florianópolis: Fundação
Boiteux, 2020.
DAL RI Jr., Arno; SONTAG, Ricardo; NUNES, Diego (orgs.). História do Direito Penal: confins
entre direito penal e política na modernidade jurídica (Brasil e Europa). Florianópolis: Habitus,
2020.
DUVE, Thomas. Entanglements in legal history. Introductory remarks. In: DUVE, Thomas (ed).
Entanglements in Legal History: Conceptual Approaches. Max Planck Institute for European
Legal History. Berlin: Epubit, 2014.
MECCARELLI, Massimo. Criminal law before a State Monopoly (p. 633-655). In: PIHLAJAMÄKI,
Heikki; DUBBER, Markus D.; GODFREY, Mark (eds.). The Oxford Handbook of European Le-
gal History. Oxford: Oxford University Press, 2018.
NUNES, Diego. The “Code Pénal” in the Itinerary of the Criminal Codification in America and
Europe: “Influence” and Circularity of Models. In: MASFERRER, Aniceto. The Western codifi-
cation of Criminal law: A revision of the Myth of its Predominant French Influence. Heidel-
berg, New York, London: Springer, 2018.

XVI
Nota técnica
Carlos César Rodrigues
Mário Davi Barbosa
Ricardo Ávila Abraham

Este trabalho foi rigorosamente regulamentado por meio do método de arbitra-


gem “duplo-cego” pela Comissão Científica, com a participação de pesquisadores
especializados nos temas em questão. A Comissão Científica da obra Estudos em
HISTÓRIA DO DIREITO PENAL E DA JUSTIÇA CRIMINAL é formada por pro-
fessores e pesquisadores de Instituições do Ensino Superior do Brasil. Esta obra
passou por um plano de trabalho distinto em três etapas: recepção dos trabalhos
integrantes da obra, sua revisão e aperfeiçoamento e finalmente a aprovação dos
textos escolhidos para a publicação.
Os estudos de História do Direito Penal há muito possuem ampla tradição na
Europa, com historiografia consolidada, bem como desenvolvimentos contempo-
râneos. Todavia, em que pese a emergência de trabalhos nacionais, ainda se trata de
campo em expansão. Várias questões como a justiça criminal do Brasil colonial, a
escravidão e as penas de natureza criminal e a as punições administrativas como a
expulsão de estrangeiros possuem tratamento pela história política e social, mas
com poucos trabalhos de relevo entre os jus-historiadores. Do mesmo modo, os
trabalhos de história do direito feitos por juristas acerca da codificação do direito
penal nacional, as interfaces entre direito penal e criminologia, a modernização da
legislação penal nacional e a relação entre autoritarismos e justiça criminal são
amostras isoladas dos debates nestes campos de estudos. Fomentar a discussão des-
tes novos temas a partir das novas gerações de acadêmicos é um modo de possibili-
tar a divulgação deste nicho da historiografia jurídica nacional e abrir frente a novas
temáticas que possam exsurgir deste debate.
Assim sendo, esta obra integra uma proposta de trazer abordagens distintas
acerca da História do Direito e da Justiça Criminal não só do cenário brasileiro,

XVII
Carlos César Rodrigues · Mário Davi Barbosa · Ricardo Ávila Abraham
trazendo autores da História do Direito com reconhecimento internacional.
O Comitê Científico da obra foi composto pelos seguintes integrantes:
Dr. Diego Nunes
Professor Adjunto no Departamento de Direito e no Programa de Pós-Graduação
em Direito do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Santa Cata-
rina (Brasil). Membro externo do Ph.D. Program in Diritto & Innovazione - Uni-
versità degli Studi di Macerata (Itália); Foi Professor Adjunto na área de Funda-
mentos do Direito na Faculdade de Direito Professor Jacy de Assis da Universidade
Federal de Uberlândia (Brasil); Doutor em História do Direito pela Università degli
Studi di Macerata (Itália). Mestre em Teoria, Filosofia e História do Direito pela
Universidade Federal de Santa Catarina (Brasil), possui graduação em Direito tam-
bém pela Universidade Federal de Santa Catarina (Brasil); Tem experiência na área
de História do Direito, com ênfase em História do Direito Penal e da Justiça Crimi-
nal e História Constitucional, atuando principalmente nos seguintes temas: crimes
políticos e segurança nacional, Direito Penal em Estados autoritários, tribunais de
exceção, relações entre codificações e leis extravagantes, extradição e defesa inter-
nacional contra o delito; Líder do grupo de pesquisa em História da Cultura Jurídi-
ca Ius commune (UFSC/CNPq); Foi pesquisador visitante no Max-Planck-Institut
für europäische Rechtsgeschichte (Frankfurt, Alemanha) e professor visitante nas
Universidades de Milão (Itália) e Ghent (Bélgica).

Dra. Mariana Moraes Silveira


Professora Adjunta de Teoria da História e História da Historiografia na Universi-
dade Federal de Minas Gerais. Doutora em História Social pela Universidade de São
Paulo (2018). Mestra em História pela Universidade Federal de Minas Gerais
(2013). Possui graduação em História, nas modalidades bacharelado (2010) e licen-
ciatura (2011), pela Universidade Federal de Minas Gerais e graduação em Direito
pelas Faculdades Milton Campos (2011). Atua como colaboradora da linha de pes-
quisa História e Culturas Políticas do Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal de Minas Gerais e integra o Projeto Brasiliana: Escritos e Lei-
turas da Nação (CNPq/UFMG) e o Studium Iuris - Grupo de Pesquisa em História
da Cultura Jurídica (CNPq/UFMG). Foi pesquisadora visitante (abril-junho de
2016) e realizou estágio pós-doutoral (dezembro de 2018-janeiro de 2019) no Max-
XVIII
Nota técnica
Planck-Institut für europäische Rechtsgeschichte, em Frankfurt am Main, Alema-
nha. Suas principais áreas de interesse e atuação são: história intelectual, história do
direito, história da historiografia brasileira e argentina, história dos livros, das edi-
ções e da leitura.

Mestrando Carlos César Rodrigues


Possui graduação em História - Licenciatura e Bacharelado pela Universidade do
Estado de Santa Catarina (2004). Bacharel em Direito pela Universidade Federal de
Santa Catarina (2015). Pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal pela Es-
cola do Ministério Público de Santa Catarina - UNIVALI (2017). Atualmente é
estudante de Mestrado no Programa de Pós-Graduação em Direito na Universida-
de Federal de Santa Catarina - UFSC, na linha de pesquisa Teoria e História do
Direito. Tem experiência nas áreas de História e Direito, atuando principalmente
nos seguintes temas: história do direito penal, processo penal, direito penal, direitos
humanos, justiça e modernidade. Membro do Ius Commune - Grupo Interinstitu-
cional em História da Cultura Jurídica - UFSC/CNPq

Mestrando Mario Davi Barbosa


Mestrando em Teoria e História do Direito pelo Programa de Pós-Graduação em
Direito PPGD/UFSC. Pós Graduado em Direito Penal e Processo Penal pelo CE-
SUSC (2012). Bacharel em Direito pelo CESUSC (2010). Tem experiência na área
de Direito, com ênfase em Direito Público, atuando principalmente nos seguintes
temas: sistemas de justiça, direitos humanos, sistema prisional, história do direito e
escravidão. Membro do Ius Commune - Grupo Interinstitucional em História da
Cultura Jurídica - UFSC/CNPq. Advogado.

Mestrando Ricardo Ávila Abraham


Mestrando em Teoria e História do Direito no Programa de Pós-Graduação da
Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Graduado em Direito pela Univer-
sidade Federal de Santa Catarina. Membro do Ius Commune - Grupo Interinstituci-
onal em História da Cultura Jurídica - UFSC/CNPq. Membro da Associação dos
Advogados Criminalistas de Santa Catarina - AACRIMESC. Sócio do Ferreira &
Schaefer Martins Advogados. Advogado criminalista.

XIX
Sumário

APRESENTACÃO ........................................................................................................................... IX

NOTA TÉCNICA ........................................................................................................................ XVII

SUMÁRIO ....................................................................................................................................XXI

PARTE I
HISTÓRIA DO DIREITO PENAL E DA
JUSTIÇA CRIMINAL EUROPEIA

Capítulo 1 | FONTES JUDICIÁRIAS E FONTES JURÍDICAS: REFLEXÕES SOBRE A FASE ATUAL DOS
ESTUDOS DE HISTÓRIA DO CRIME E DA JUSTIÇA CRIMINAL........................................................ 25
Mario Sbriccoli

Capítulo 2 | A RESPOSTA DO LEGISLADOR: REFORMAS E RESTAURAÇÕES NA JUSTIÇA PENAL APÓS


BECCARIA ..................................................................................................................................... 43
Ettore Dezza

Capítulo 3 | A MARCA DE CAIM: A BUSCA PELO “HOMEM DELINQUENTE” ENTRE MEDICINA E


DIREITO ........................................................................................................................................ 67
Paolo Marchetti

Capítulo 4| A FUNÇÃO DA “PERSONALIDADE DO ESTADO” NA ELABORAÇÃO PENAL DO


FASCISMO ITALIANO: LAESA MAIESTAS E TECNICISMO-JURÍDICO NO CÓDIGO ROCCO (1930) . 85
Arno Dal Ri Jr., Kristal Moreira Gouveia

Capítulo 5 | EXTRADIÇÃO NA ITÁLIA FASCISTA (1922-1943) E NO BRASIL DE GETÚLIO VARGAS


(1930-1945): ENTRE A ASCENSÃO DO “DIREITO PENAL DO FASCISMO” E A SOBREVIVÊNCIA DA
TRADIÇÃO LIBERAL DO DIREITO PENAL .................................................................................... 107
Diego Nunes

XXI
Sumário
PARTE II
HISTÓRIA DO DIREITO PENAL E DA
JUSTIÇA CRIMINAL LUSO-BRASILEIRA

Capítulo 6 | “SEM PROVA PERFEITA E LEGAL NINGUÉM DEVE SER CASTIGADO”: O REGIME DE
PROVAS NO PROJETO DE CÓDIGO CRIMINAL DE MELLO FREIRE ............................................... 129
Marina Tanabe do Livramento, Murilo Aparecido Carvalho de Robbio

Capítulo 7 | REMINISCÊNCIAS DA MORTE COMO PENA NO PROCESSO DA CODIFICAÇÃO PENAL


PORTUGUESA: DAS ORDENAÇÕES FILIPINAS AO CÓDIGO PENAL DE 1886 ............................... 153
Giácomo Tenório Farias

| O ÚLTIMO ENFORCADO NA PROVÍNCIA DO RIO DE JANEIRO (1860): NOTAS À


Capítulo 8
“BIOGRAFIA DE RAMON NIETTO POR UM COMPANHEIRO DE PRISÃO” ................................... 173
João Luiz Ribeiro

Capítulo 9 | AUSÊNCIA DE CRIMINALIZAÇÃO DA MULHER QUE ABORTA NO CÓDIGO CRIMINAL


DE 1830: A PROTEÇÃO DAS ESFERAS PRIVADAS DE PUNIÇÃO DIANTE DO REGIME
ESCRAVOCRATA ......................................................................................................................... 207
Barbara Madruga da Cunha, Mario Davi Barbosa

Capítulo 10 | DOS BOTICÁRIOS AOS TRAFICANTES: A EQUIVOCADA CRENÇA NA IDENTIDADE


TERMINOLÓGICA E DOGMÁTICA COMO CARÁTER DE CONTINUIDADE NA POLÍTICA CRIMINAL
DE DROGAS BRASILEIRA ENTRE O CÓDIGO PENAL DE 1890 E AS LEIS PENAIS ESPECIAIS DAS
DÉCADAS DE 1910 E 1920 .......................................................................................................... 235
Ricardo Ávila Abraham, Carlos César Rodrigues

Capítulo 11 | A CULTURA JURÍDICA DE CRIMINALIZAÇÃO DAS RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS: A


EXPERIÊNCIA DE SÃO PEDRO DO UBERABINHA (MINAS GERAIS).............................................. 263
Vanilda Honória dos Santos, Biatriz Bittencourt de Assis

Capítulo 12 | REFLEXÕES SOBRE A ESCOLA POSITIVA: A REINTERPRETAÇÃO DE SEUS INSTITUTOS


NO CÓDIGO PENAL BRASILEIRO DE 1940................................................................................... 285
Júlia Farah Scholz

Capítulo 13 | O CRIME DE ABORTO NO CÓDIGO PENAL DE 1940 E SEU “SUBSTITUTIVO” DE 1969:


UMA ANÁLISE FEMINISTA DOS DISCURSOS PARA SUA MANUTENÇÃO ..................................... 303
Bárbara Klopass Locks de Godoi, Tayná Ferreira

XXII
PARTE I
HISTÓRIA DO DIREITO PENAL E DA
JUSTIÇA CRIMINAL EUROPEIA
FONTES JUDICIÁRIAS E FONTES JURÍDICAS:
REFLEXÕES SOBRE A FASE ATUAL DOS
ESTUDOS DE HISTÓRIA DO CRIME E DA
JUSTIÇA CRIMINAL*
JUDICIARY SOURCES AND LEGAL SOURCES:
CONSIDERATIONS ON THE CURRENT PHASE OF
STUDIES IN THE HISTORY OF CRIME AND
CRIMINAL JUSTICE

1
Mario Sbriccoli **

Resumo: Embora escrito nos anos 1980, o texto de Abstract: Despite written in the 1980s, Mario
Mario Sbriccoli ainda levanta algumas advertências Sbriccoli’s text still presents some warnings meth-
metodologicamente relevantes ao criticar a história odologically relevant when he criticized history that
que toma as fontes judiciárias como simples reposi- take judiciary sources as mere information thesau-
tórios de informações, principalmente a velha rus, mainly the old historical criminology, the
criminologia histórica, a história quantitativa da quantitative history of criminality and the criminal
criminalidade e a case history criminal (quanto às case history (in the last two cases, he admits they
duas últimas, ele admite que elas podem ter lugar could have place under some conditions). The core
sob certas condições). O problema central de todas of all these approaches is, according to Sbriccoli,
essas abordagens, segundo Sbriccoli, é que elas they neglect the legal dimension of the used
negligenciam a dimensão jurídica das fontes em- sources, i.e., leave in the shadow the histories that
pregadas, isto é, deixam na sombra as histórias que those sources better tell: the history of criminal
tais fontes melhor contam: a história da justiça justice and history of crime like result of social
criminal e a história do crime como fruto da reação reaction (by Law) of that apparatus.

* SBRICCOLI, Mario. Fonti giudiziarie e fonti giuridiche. Riflessioni sulla fase attuale degli studi
di storia del crimine e della giustizia criminale [1988]. In: ______. Storia del diritto penale e
della giustizia: scritti editi e inediti. Vol. 2. Milano: Giuffrè, 2009. p. 1133-1147. Traduzido da
língua italiana por Ricardo Sontag.
** Professor catedrático de História do direito medieval e moderno na Università di Macerata
(Itália). In memoriam (1940-2005).
25
Mario Sbriccoli
social (através do direito) de tais aparatos.
Palavras-chave: fontes judiciárias; fontes jurídicas; Keywords: judiciary sources; legal sources; history
história do crime; história da justiça criminal. of crime; history of criminal justice.

1. Leio no número de “History Today” de fevereiro de 1988 (CURTIS, SHARPE,


1988, p. 23), que, depois de 15 anos de pesquisas acadêmicas sérias e depois da pu-
blicação de uma grande quantidade de resultados, o estudo do crime alcançou tal
maturidade a ponto de permitir aos historiadores declarar-se frutiferamente em
desacordo.
Não é óbvio que tal observação seja adequada à experiência italiana, que não é
tão antiga e que não parece comparável, em termos de resultados, à anglo-
americana, nem tampouco, para mencionar outra igualmente vivaz, ainda que,
talvez, mais prudente, à francesa. Mesmo assim é verdade que, inclusive na Itália,
está objetivamente em curso um confronto, implícito e mediado, entre diferentes
modos de conceber (ou melhor, de fazer) a história criminal: modos que, hoje, é
possível reconhecer na atividade de alguns centros de pesquisa, na produção de
vários jovens pesquisadores que já estão se qualificando como especialistas desse
gênero de estudos, na publicação de números monográficos por parte de revistas de
prestígio, nos resultados obtidos em mais de um congresso importante.
Tal confronto, porém, parece-me que permanece indireto e que continua a se
desenvolver à distância. Não faltaram, e não faltam, oportunidades de verificação
para os nossos historiadores da criminalidade que, talvez em função da especifici-
dade e da relativa novidade do seu campo de investigação, acabaram constituindo
uma pequena congregação, encontrando maneiras de se encontrar com frequência
ao redor de numerosos empreendimentos comuns, feitos de pesquisas coordena-
das, de colóquios e de pequenos (mas também de grandes) congressos focados.
Certamente, considerado o seu grau de estabilização e o seu nível de maturida-
de, ainda não é possível delinear tendências metodológicas consolidadas nas expe-
riências de estudo em curso na Itália no campo da história criminal; e me parece
que os resultados obtidos, ainda que não sejam negligenciáveis, ainda não parecem
oferecer material seguro para uma síntese séria. Mas também é verdade que se per-
cebe a necessidade de alguma reflexão sobre a colocação dessas pesquisas no pano-
26
Fontes judiciárias e fontes jurídicas
rama geral da historiografia, e que não seria ruim pensar um pouco sobre algumas
características recorrentes, que estão na origem, se não estou enganado, do fato de
que esses estudos, malgrado estejam somente no início, parecem já dar alguns pe-
quenos sinais de cansaço.
O papel que atribuo a essas poucas páginas é somente o de pontuar problemas.
O escopo é suscitar uma reflexão que poderia ser desenvolvida entre os interessados
nesses trabalhos, talvez em um enésimo seminário, que seria, porém, o primeiro
que teria como objeto “o que fazer, como fazer, por que fazer”. É com esse espírito
somente que produzo a seguir um elenco levemente brutal de questões que me pa-
recem abertas ou que seria bom abrir.

2. As fontes judiciárias. – Assim como qualquer outro gênero de fonte, aquilo


que conseguimos extrair dos arquivos judiciários possui múltiplas valências, podem
complementar outras fontes (assim como outras fontes podem fazer o mesmo em
relação a essas), e podem ser inseridas, se quisermos, em tratamentos temáticos de
cortes variados1 . Talvez elas sejam mais versáteis do que outras e passíveis de um
uso relacional mais rico (mas todos sabem que, em se tratando de uso, mais do que
de “virtudes” das fontes, o que conta são as “virtudes” de quem trabalha sobre
elas): isso as torna merecedoras de uma utilização provida de coordenadas interpre-
tativas, em contextos de referência bem identificados, nem mais nem menos do que
fontes não judiciárias, digamos, notariais ou eclesiásticas. Depois, quanto ao fato de
que elas são em alto grau lugar de ‘sugestões privadas’, posso convir sem reservas
com quem considera que tal qualidade pode se transformar em uma armadilha: é
preciso, de fato, de muita experiência consumada para extrair de um mérito desse
tipo todas as oportunidades que ele oferece, sem cair na candura do “tratamento
episódico exclamativo”2.
O que se compreende menos é por qual razão tais fontes judiciárias (ou, como se
diz hoje, ‘criminais’) deveriam sustentar uma história social que repele ou negli-

1. Estou usando as palavras recentemente escolhidas por Grendi (1987, p. 695), cujo sentido geral
já tinha sido expresso oito anos atrás na advertência à seção intitulada Per lo studio della storia
criminale no número dos Quaderni Storici (1980, p. 580).
2. A expressão, eficaz e pontual, é, mais uma vez, de E Grendi (1987, p. 695).
27
Mario Sbriccoli
gencia os aspectos de estudo do crime e da justiça criminal. Se é bom louvar a poli-
valência de uma fonte para indicar usos alternativos ou ulteriores, não é tão bom
fazer disso argumento para interditar a sua função natural e originária, que é a de
ser antes de tudo fonte no seu próprio âmbito. Uma das explicações possíveis talvez
esteja no fato de que ainda não providenciamos a estipulação do significado da
expressão história criminal (ou melhor, a área de pertinência, o objeto e os utensí-
lios de tais estudos), de modo que acabaram sendo excluídos dela alguns dos seus
elementos constitutivos, comprimindo-a dentro de uma casinha que não é a sua.
Eu estou mirando, essencialmente, duas presunções. Em primeiro lugar, a sus-
peição de positivismo ritual que acompanha esses estudos, solicitados a se descul-
parem do seu suposto vício criminológico, no sentido de criminologia etiológica
d’antan. Repelindo tal preconceito, acrescento, todavia, que, como sempre, a pre-
sença da suspeição também é fumaça de um incêndio: e eu não vou negar a existên-
cia de ingênuos que concebem a história criminal como a ciência do determinado,
da medida e das quantidades, e que pensam o crime como efeito de algumas causas,
e que se propõem a descobri-las fazendo somas. Ao mesmo tempo, é preciso dizer
que a disponibilidade, pelo menos, de raciocinar em termos quantitativos, se neces-
sário, não pode ser totalmente banida dos estudos de história criminal3. Trata-se,
evidentemente, de uma questão de dose, contextos e medida, especialmente se pen-
sarmos que as principais objeções que foram direcionadas ao serial/quantitativo
dizem respeito à confiabilidade das séries e à presença da cifra oculta: diante de
séries confiáveis e crimes graves (para os quais é de se esperar uma incidência me-
nor do black number), se forem observadas acuradas cautelas, o quantitativo pode
ser relegitimado, considerando a hipótese de que ele serve para alguma coisa. A
discussão entre quem o considera inútil ou deturpador e quem o considera essenci-
al e iluminador já ficou para trás: a terceira posição, que diz “depende”, é a mais

3. Eu acredito que pesquisas capazes de fornecer dados quantitativos conscienciosamente recolhi-


dos, relativos à época pré-estatística, ou publicações de séries estatísticas oficiais (como aquela
em preparação na França por parte do grupo que está ligado à Déviance et Societé, relativa ao
Compte Général de l’Administration de la Justice Criminelle) são de grande utilidade. Como bem
se compreende, o ponto não é ter à disposição dados bem colocados (que, talvez, o problema é
que tenhamos poucos), mas de não os carregar com operações historiográficas que eles não seri-
am capazes de sustentar.
28
Fontes judiciárias e fontes jurídicas
difundida, e provavelmente é a mais justa4.
A questão é diferente, é preciso convir, quando nos referimos à resistência do
paradigma etiológico. A opinião segundo a qual o crime tem causas, e que, portan-
to, é sensível ao surgimento de fatores (o calor e o frio, a penúria e a abundância)
possui toda a força da inércia e da sobrevivência de preconceitos mascarados pela
obviedade. Ora, é verdade que tudo pode influenciar tudo, mas, sobretudo, é verda-
de que os comportamentos criminosos não conhecem leis e que os furtos podem
(aparentemente) aumentar em tempos de carestia, tornando-se, depois, clamoro-
samente inumeráveis na sociedade do bem-estar e do desperdício. Qualquer histo-
riador criminal sabe que, para encher de fascículos um arquivo de tribunal conta
muito mais uma justiça eficiente do que uma sociedade transgressora; e ele sabe,
também, que, quando os processos por furto parecem aumentar em tempos de ca-
restia, isso poderia ser o resultado não tanto da fome dos ladrões, mas do medo – e,
portanto, da vigilância – dos proprietários. Alguém irá dizer: de acordo, mas conti-
nua verdadeiro que a carestia faz aumentar os furtos. Não sei, eu só vejo que au-
menta (quando e se aumenta) o número de fascículos no tribunal; e acrescento que
eu não me sentiria capaz de formular a “lei do aumento dos furtos em tempos de
fome”, não somente porque eu não estou certo dos pressupostos científicos da sua
formulabilidade, mas, sobretudo, porque um princípio criminológico que não
acrescenta absolutamente nada ao patrimônio do nosso senso comum não merece
tanto esforço, tantos cotejos, verificações e controles, que, de qualquer forma, não
poderiam anular a sua margem de erro nada pequena.
O fato é que os exercícios de história criminal conduzidos em bases etiológicas
(frequentemente, inclusive, criptoetiológicas), e/ou com altíssimas dosagens de
serial/quantitativo, repousam todos no falso pressuposto de que nos arquivos judi-
ciários se encontra efetivamente a história da criminalidade, enquanto ali está so-
mente a história da justiça criminal. Esse falso pressuposto não é, obviamente, falso
em absoluto e sem qualquer resíduo: é evidente que elementos para uma história do
fenômeno criminal devem ser recolhidos também interrogando fontes judiciárias,
mas é preciso saber, e não esquecer, que os processos tratam o crime, mas revelam a

4. Palavras equilibradas sobre esse ponto também no citado escrito de T. Curtis e J.A. Sharpe
(1988, p. 24).
29
Mario Sbriccoli
justiça. Os números que podemos extrair de um fundo arquivístico criminal não
quantificam os delitos cometidos, mas os delitos perseguidos, e, assim, não medem
a presença do crime, mas o funcionamento da justiça. Como bem sabemos, uma
grande quantidade de elementos pode ser extraída de tais fontes: a dinâmica dos
processos, a estrutura deles, o caráter ordinário ou extraordinário do procedimento,
as práticas de investigação e de interrogatório, o estilo das cortes; e, ainda, a condi-
ção dos acusados, a cultura dos juízes, o andamento e o conteúdo das sentenças, a
qualidade das penas aplicadas, a seleção dos delitos e dos acusados, a atividade sui
generis de magistraturas especiais, e muito mais. Todos elementos, como bem se vê,
para uma história da justiça criminal.
A segunda presunção é a que toma como óbvia a qualidade de mera história so-
cial dos resultados desta área de pesquisa. Existe relutância em reconhecer na histó-
ria criminal o elemento da autonomia (como se dizia antigamente), considerando o
fato de que um robusto componente histórico-jurídico veda a sua dissipação na
história social tout court, assim como a sua dimensão histórico-social a emancipa
do domínio da história dos meros fatos jurídicos. Parece-me que olhar para a histó-
ria criminal no espírito de admitir a sua autonomia (o que, para certas visões pre-
sentes inclusive entre os historiadores juristas, poderia comportar a passagem pré-
via de admissão da sua legitimidade)5 integra a condição preliminar para a estipula-
ção da sua acepção.
Não acredito que seja possível conceber a história criminal senão como história
dos aparatos complexos (e da atividade) da justiça penal, em relação aos quais o
fenômeno criminal – que deve ser lido como fenômeno ‘social’, mas vinculado aos
seus numerosos contextos – é somente um dos componentes que contribuem para

5. Ao usar palavras como autonomia e legitimidade eu não pretendo, deus me livre, reivindicar
espaço (quiçá acadêmico: número, agrupamento, asterisco) para uma nova disciplina. Eu penso
somente no estatuto científico de uma experiência de pesquisa, que precisa identificar o seu ter-
reno, assinalar limites que lhe sejam úteis para conviver com outras experiências próximas a ela,
permitindo, inclusive, fazer acordos com elas, no caso de um regime, por assim dizer, de ajuda
mútua. Tudo isso para chegar a ser reconhecida, de modo que os seus produtos possam ser ava-
liados, isto é, comparados, mensurados de acordo com algum padrão convencional, talhado se-
gundo um critério que seja “dessa arte”.
30
Fontes judiciárias e fontes jurídicas
marcar os contornos da repressão6. O pressuposto desse modo de ver as coisas está
na forte indicação que vem das fontes judiciárias e no papel que o direito desenvol-
ve na relação entre uma ação ameaçada por uma pena e o sistema punitivo enten-
dido em sentido amplo, ou amplíssimo.
A história criminal, forçosamente, é história de relações, e não história de fatos,
no máximo de fatos enquanto extremidades ou fontes de relações. As relações im-
plicadas são aquelas que atravessam poderes, sociedade e sujeitos, pela mediação do
direito, normas e práticas. Em termos criminológicos muito aproximativos, seria
possível dizer que a história criminal deve ser colocada na perspectiva da “reação
social”, e não na da “passagem ao ato”.
As ações sancionadas penalmente, tomadas em si mesmas, ou no interior de epi-
sódios, espaços e momentos pontuais, se avaliadas fora das suas relações com o
funcionamento dos aparatos repressivos, revestem-se de relevância demasiado tê-
nues. Na experiência da criminologia histórica clássica, vinculada ao princípio epis-
temológico da “criminologia da passagem ao ato”7, essa perspectiva (metodologi-
camente coerente com a história meramente quantitativa do crime) certamente é
responsável pelo seu precoce eclipse, depois de um primeiro florescimento europeu
(sobretudo alemão) nos anos trinta e quarenta [do século XX]. Isso não exclui que
tenhamos hoje reapresentações inconscientes, na substância, de uma criminologia
histórica já irremediavelmente datada. Assim, se penso no gênero historiográfico
chamado de “história do criminoso e do seu ato”, eu consigo reconhecer os seus
traços em mais de um estudo daqueles que agora são publicados como estudos de
história social da criminalidade: o escopo de tal gênero, de fato, era penetrar na
psicologia do criminoso, ou dos grupos criminosos, bem como da vítima, avaliando
motivos e a psicologia das pessoas às quais se demandava a aplicação do direito8.

6. Eu já tive a oportunidade de refletir sobre a história criminal como lugar (em hipótese) privilegi-
ado de uma relação mais estrita entre história social e dimensão jurídica. Quem quiser, pode
consultar M. Sbriccoli (1986, p. 127-148).
7. Eu penso, sobretudo, no fundamental, nessa perspectiva, e, de qualquer forma, um clássico,
estudo de G.Radbruch e U. Gwinner (1951). Ele representa concretamente uma tentativa de fa-
zer história do crime (ou “dos crimes”, como se dizia), sucedido por alguns outros (por exem-
plo, H.Von Hentig (1962)), e, depois, substancialmente abandonada.
8. É assim que ilustra tal método, acreditando nele, W. Middendorff (1980, p. 50).
31
Mario Sbriccoli
É nisso que eu pensava quando fiz alusão, no início, a sinais de cansaço que são
possíveis identificar mesmo nos estudos que vem sendo feitos na Itália sobre o cri-
me e a justiça criminal. Percebe-se certa ânsia, por exemplo, no uso que nesses es-
tudos se pratica do gênero historiográfico chamado de case history. É preciso dizer,
preliminarmente, que se trata de um gênero muito difícil de praticar, ainda que ele
possa assumir a aparência de um gênero fácil de enfrentar. Fortemente envolvido
no risco belletristico, ele possui, ainda, na sua versão histórico-criminal, uma enga-
nadora força de atração, feita, sobretudo, de episódios impressionantes, de fascínio
pelo pouco usual, pelo tom sugestivo dos faits divers. Sob pena de se tornarem ne-
gligenciáveis, o episódio, o exemplum, o fato, o caso, devem possuir, como é fácil de
compreender, um alto grau de representatividade, ou, pelo menos, um bom poder
de representação; ou então não ser nada “exemplar”, mas testemunhar a excepcio-
nalidade em relação à routine da vida e da justiça: isto é, ser verdadeiramente extra-
ordinário, porque os picos da representatividade são dois, o igual absoluto e o es-
tremo desigual. Essas características constituem a paradoxal fragilidade da case
history, porque a falta delas a invalida, enquanto a presença delas a torna árdua e
arriscada.
Depois, se refletirmos em perspectiva sobre a “história feita partindo do aconte-
cimento criminoso”, ou, de maneira mais genérica, “a propósito disso”, a indicação
que se pode extrair parece ser o (necessário) progressivo desgaste do próprio signi-
ficado da case history (of crime) à medida que se procede com a prática do gênero
historiográfico. Isso vale ainda mais na história do crime e da justiça criminal, na
qual a matéria de investigação corresponde (aparentemente) a uma soma de acon-
tecimentos ou de “rationes operandi”, que contém comportamentos e histórias
(isto é, fascículos específicos nos arquivos judiciários) que parecem prestar-se a
serem trazidos novamente à luz um a um. Podemos, assim, com medíocre vanta-
gem para os nossos conhecimentos, produzir numerosas e sucessivas “histórias”, a
partir de diferentes fattispecie do mesmo tipo penal (digamos, o infanticídio), que
acabarão por ir cada vez mais à direção da lógica de uma história unius rei, constru-
ída uno medio. Os acontecimentos crus são diferentes, mas, em termos de princípio
metodológico, eles tendem a se sobrepor e a se parecerem uns com os outros, até se
tornarem, historiograficamente, a mesma coisa. Uma “lei” da história/caso parece
sancionar que, nela, a quantidade procede alimentando-se da qualidade. Os seus
32
Fontes judiciárias e fontes jurídicas
produtos são de grande interesse quando são poucos, de modo que, se o primeiro
estará cheio de insights, sugestões e ensinamentos, o enésimo será totalmente négli-
geable. Ora, já que esse gênero de exercícios demonstra render muito mesmo diante
de modestos investimentos, há o risco do abuso, com o resultado de deixar em hi-
poxemia um setor de investigação que, por si só, mostra ter alguns problemas de
fôlego.
A história/caso do crime e da justiça criminal, entre outras coisas, e eu vou dizer
isso porque sou obrigado, obscurece o momento jurídico e processual, mesmo
quando parece ter sido construída na esteira deles, ou, talvez, tendo como próprio
objeto o segundo. Mas o processo é mudo e não se deixa apreciar quando o caso é
pontual, porque ele pode ser lido (não digo avaliado, digo lido) somente se coloca-
do em perspectiva, comparado, e inserido dinamicamente em cronologias e con-
juntos de casos longos e ponderados. Assim como nenhuma política do direito,
estatal ou pré-estatal, pode ser concebível ou desvelada se aquilo que se está cons-
truindo, na verdade, é o “exemplar” de outra dinâmica, não jurídica, não histórico-
criminal, mas (normalmente) psicológica, ou então, como se diz hoje em dia, con-
flitual. O que aparece, de qualquer forma, muito frequentemente, é um defeito de
problematização, uma história feita como se dizia antigamente, de “lacunas”, que é
bastante frequente e vem se tornando objeto de alguma reflexão nos meios mais
atentos da história criminal, e em toda a Europa.
Refletindo um pouco mais sobre os marcos iniciais destas considerações, per-
maneço convicto de que, com as fontes ditas criminais, é possível fazer muitas coi-
sas, e continuo, assim, achando um pouco ingênua a atitude de quem afasta sem
mais a ideia de empregá-las para a história do crime e da justiça criminal. A uva
deve ser comida ou devemos fazer vinho? Parece-me que podemos atribuir a ela a
dupla prerrogativa. Dito isso, não podemos deixar de perceber como atentos e bem
preparados historiadores (não juristas, de qualquer forma) dão indicações, pro-
põem percursos de pesquisa e questionamentos que se inserem a pleno título9 “no
filão correto da história criminal recente”. Naquelas páginas, salvo a divergência de
ideias sobre o uso e destinação das fontes judiciárias (que deveriam, talvez, passar
por uma verificação, porque o teor das posições provoca fortes suspeitas de mal-

9. Refiro-me a E. Grendi (1987, p. 696).


33
Mario Sbriccoli
entendido), encontro intuições programáticas inteligentes e observações equilibra-
das, e, ao mesmo tempo, não consigo encontrar divergência de visões a não ser
argumentando ex silentio. O silêncio – que, imagino deve-se ao fato de as barreiras
entre as ciências sociais ainda serem altas10, mas que podem derivar também de
uma renúncia – diz respeito ao papel do “penal” nessas pesquisas.
Eu digo “penal” para me referir à experiência jurídica em sentido amplo: positi-
va/substancial e processual, doutrinária e normativa, como pretendo esclarecer
mais adiante, com referência a todos os momentos relevantes da prática da repres-
são: da prevenção (quando existe) à pena, passando pelo julgamento. Não me refi-
ro, porém, a nenhum tipo de história administrativa, que poderia se relacionar com
a história do crime e da justiça criminal somente de maneira mediata e eventual,
como poderia acontecer com qualquer outro ramo especial da pesquisa histórica
possível.
Certamente, é sensível a carência de dimensão jurídica nesses estudos. Por vezes,
ela é aparentemente (ou parcialmente) elidida, dissolvendo o direito em um impre-
ciso espaço ‘ideológico’, de modo a envolvê-lo no raciocínio, mas sem torná-lo
uma presença condicionante, com a qual é preciso, depois, prestar contas tecnica-
mente; outras vezes, o direito é tomado pelo seu lado ‘antropológico’, e considera-
do um medium cerimonial, não sem traços exotéricos, “operando no mesmo regis-
tro que a atividade mágica nas sociedades não reguladas pelo rule of law”11. Mais
frequentemente, expressando uma renúncia, a dimensão normativa dos problemas,
ou pior, as peças jurídicas do mosaico são francamente removidas do quadro da
pesquisa. A renúncia poderia nascer do fato de que o direito, entendido como ciên-
cia, mas, também, somente enquanto ‘presença’ cultural e ideológica, sempre colo-
cou os historiadores sem dupla formação em séria dificuldade. O direito tem uma
complexa linguagem própria, consequência de uma lógica que é sua, específica,
abstrata e rigorosa, para a qual aproximações são erros; tem uma quantidade inde-
finida de aspectos diversos, de institutos, de mecanismos, de princípios gerais e

10. Paráfrase de uma expressão de J. Le Goff (1986, p. 59), que desenvolve uma fértil reflexão sobre a
relação entre direito e história, a qual eu tenho prazer em remeter por inteiro.
11. Nesse sentido, R. Roth (1984, p. 67). É o caso de recordar, como, de resto, também o fez Roth, o
escrito de G.H. Mead (1964, p. 212-239).
34
Fontes judiciárias e fontes jurídicas
particulares, de regras, por assim dizer, idiomáticas, conhecidas somente por aque-
les que o praticam assiduamente12.
Motivos compreensíveis, portanto, fizeram com que a bagagem dos historiado-
res [sociais] acabasse por agregar oportunas fórmulas retóricas e comportamentais
capazes de dar a eles um conjunto de possíveis bypass, através dos quais escapar ou
atravessar ilesos os núcleos jurídicos dos seus objetos de estudo. “O ‘direito’ é mais
ou menos irrelevante para as investigações dos historiadores sociais” – escreveu J.
H. Baker – “exceto na medida em que o sistema legal acaba produzindo registros
para os quais eles dependem para obter informação factual” (1981, p. 17). É dessa
ordem de problemas, isto é, do silêncio/rejeição, ou silêncio/elisão, que emerge a
oportunidade de alargar o discurso que eu venho fazendo sobre as fontes, deslo-
cando-o, agora, para o campo do direito.

3. As fontes jurídicas. Um elemento natural da história criminal é o direito. Digo


natural para dizer essencial e inderrogável. Em primeiro lugar, o direito ritual13,

12. Repito palavras já escritas em Storia del diritto e storia della società (SBRICCOLI, 1986, p.
128ss). A dificuldade de abordar o universo do direito que, leva, por vezes, a ignorar a dimensão
jurídica dos problemas históricos, mesmo quando é evidente para todos que seria necessário en-
frentá-la, é a mesma que – na história da cultura – conduz, às vezes, a amputar os juristas, como
se isso fosse decente, do grupo dos intelectuais levados em consideração. Eu escrevi algo a res-
peito em Il diritto penale liberale. La Rivista Penale di Luigi Lucchini, 1874-1900 (SBRICCOLI,
1987, n. 1).
13. A terminologia jurídica, como sabem bem os historiadores do direito, não é fungível no tempo.
O uso convencional da terminologia contemporânea (vinculada, entre outras coisas, à área cul-
tural de quem se serve dela) para indicar noções jurídicas históricas é tolerado na medida da sua
eficácia, desde que não induza mal-entendidos. O risco de imprecisão, ou de equívoco, é muito
forte no caso da história criminal, quando é necessário fazer referência sinteticamente a fases
longas ou complexas da experiência, que não é possível designar com expressões extraídas do
uso contemporâneo, por causa dos seus significados rigorosos ou historicamente circunscritos.
‘Direito processual’ ou ‘processo penal’, em relação às práticas de justiça do antigo regime são
expressões com forte odor de anacronismo, mas, mesmo que o equívoco fosse evitado pela inte-
ligência do leitor, certamente elas não cobririam todo o complexo conjunto de operações e ritos
judiciais que está dentro dos tantos (e diferentes) “processos” possíveis nas tantas combinações
espaço-temporais possíveis, considerando que se trata de uma miríade de ‘instituições’ judiciá-
rias (várias por Estado em vários Estados) e de um arco temporal de três séculos. O mesmo
35
Mario Sbriccoli
entendido grosso modo como conjunto das regras (ou das práticas) que, em relação
às instituições judiciárias, disciplinam as competências e o procedimento. Depois, o
direito penal substancial, em todas as suas epifanias históricas, a mais decisiva de-
las, do ponto de vista da história criminal, está na fase de emersão14, medieval e
moderna, na qual (ament meminisse periti) o direito vigente é inteiramente Iuris-
tenrecht: um direito de juristas que, por vezes, acaba sendo integrado (do século
XVIII em diante cada vez mais) pela legislação, mas que permanece durante muito
tempo o lintel e o fundamento de toda a ordem jurídico-penal. As normas penais
estão nos livros dos juristas. Mesmo quando as normas vão se tornar lei, nesses
livros ainda permanecerão a cultura dos juízes e a base fundamental da atividade de
interpretação e aplicação deles.
Somente em consequência do ingresso do jurídico, objetos de história social se
transformam em objetos de história do crime e da justiça criminal: e é a inexorável
qualificação jurídica que faz de uma ação socialmente o polo de um vínculo relacio-
nal (com quem tem poderes, com os aparatos de justiça, com a vítima, com o resto
da sociedade, e assim por diante), de modo a impedi-la de ser pensada na perspec-
tiva de uma mera “história [social] da criminalidade”, a qual seria, exatamente,
uma das reedições possíveis da “história das ações criminosas”, que não me parece
que estejamos sentindo falta.
A história criminal se apresenta, então, como produto de uma interface posta
entre a história da sociedade e a história do direito penal e da justiça criminal. E não
se trata somente de afirmar a necessidade de uma sinergia15: a partir do momento

aconteceria com termos como ordo, iudicium, ritus, processus, praxis e outros, que têm significa-
dos demasiado precisos, ou demasiado imprecisos, vinculados a experiências pontuais, ou suge-
ridos por uma exigência de generalidade (ver, sobre isso, a inteligente contribuição de N. Picardi
(1987, p.101 ss.). O historiador, então, deve recorrer a expressões capazes de designar com eficá-
cia, mas puramente inventadas, para evitar equívocos, exclusões ou anacronismos.
14. A fase de emersão do penal (ritual e substancial) abrange um período muito longo que vai do
século XIII até o século XVIII: é evidente, então, que é preciso colocar alguma ordem nesse arco
de tempo. Uma hipótese de trabalho aceitável foi proposta por Ph. Robert e R. Levy (1985, p. 483
ss.), que indicam uma fase do direito penal dito preparatório (na época pré-estatal) e uma fase
protopenal, que poderia ser colocada (na experiência francesa, porém) entre os séculos XVI e
XVIII.
15. Sobre as várias razões de tal necessidade, e sobre as numerosas componentes culturais e discipli-
36
Fontes judiciárias e fontes jurídicas
que o penal se ancora na fase de construção16, isto é, fundamental, ao longo do sécu-
lo XIX, ele produz e governa o crime, um ente cada vez mais jurídico e cada vez
menos “comportamental”; a criminalidade torna-se, efetivamente, um fenômeno
normativo17 e o penal acaba sendo em absoluto um dos termos mais relevantes da
relação entre sujeitos, sociedade e poderes: terreno e objeto de batalhas históricas
sobre civilização, liberdade, igualdade e emancipação, ele não pode deixar de impor
à pesquisa histórica um deslocamento de foco para melhor equilibrá-lo entre a so-
ciedade e o ordenamento.
Não são poucos os historiadores criminais, de Thompson18 a Soman (1980, p. 3-
28), até Hammer19, Hay (1975, p. 17-63), Bellamy (1985) e outros20, que, em rela-
ção à fase de emersão, compreenderam o caráter inelidível dessa passagem, frutifi-
cando, alguns mais outros menos, as suas extraordinárias potencialidades. No en-
tanto, não são muitos os que souberam aproveitar o valor da fase de construção do
penal, que é a do penal em sentido moderno21: impregnado de “estatalidade”, anco-
rado no mito da lei, apoiado em aparatos de justiça muito mais sólidos e autôno-
mos do que no passado; constrangido, enfim, em uma ambiguidade (defesa da soci-
edade, garantia dos particulares) que o coloca até demais na condição objeto de
disputa entre autoridade, ordem e segurança, por um lado, liberdade, legalidade e
garantismo de outra.

nares que a formam, eu escrevi em Storia del diritto e storia della società (1986, p. 145 ss).
16. Uma convincente colocação em perspectiva dessa dinâmica encontra-se, mais uma vez, em Ph.
Robert e R. Levy (1985, p. 481-526).
17. A expressão foi usada por M. Pavarini (1980, p. 36).
18. Sobretudo, E.P. Thompson (1975).
19. C.J. Hammer (1978, p. 3-13), em que a relação de valorização está presente, mas, em certo senti-
do, invertida, já que Hammer ilustra, substancialmente, a contribuição que os estudos sobre
homicídio deram para a história penal.
20. Eu lembro, a puro título de exemplo, os escritos de D. Greenberg (1974); N. Castan (1976, p.
331-361); D.T. Konig (1979); M.R. Weisser (1979); o volume organizado por V.A.C. Gatrell, B.
Lenman e G. Parker (1980), com escritos expressamente voltados a avaliar o conteúdo, papel e
impacto do direito penal em relação ao crime, de B. Lenman e G. Parker, C. Larner, M. Weisser,
J.A. Sharpe, D. Philips, S.J. Davies; a pesquisa de I.A.Cameron (1981), e, por mais de um ângulo,
os mais recentes estudos de J.A. Sharpe (1983; 1984).
21. Sobre essa passagem: Ph. Robert e R. Levy (1984, p. 409).
37
Mario Sbriccoli
Por todas essas razões, na fase de emersão de uma maneira, na de construção de
outra, o penal aparece como fonte primária da história criminal ou, se preferirmos,
da história social que se vale de fontes ditas “criminais”22. Ele é o instrumento de
uma contextualização do objeto da pesquisa. É absolutamente evidente, de fato,
que, para reconstruir, situar e avaliar a transgressão (em si e nas suas relações), o
elemento normativo apresenta-se, por um lado, essencial, e, por outro, antecipador
em relação ao elemento judiciário: o qual, de resto, muito frequentemente exami-
nado em vestes ainda mais reduzidas, que é a estritamente processual, por vezes
limitada, ainda, a uma particular fase do evento processo.
No sistema das fontes penais, possui um lugar especial a obra dos juristas. Não
somente em sentido técnico (porque tais obras, por alguns séculos, e não somente
na área italiana, trouxe em si de maneira direta ou mediata quase toda a normativi-
dade pensável), mas em sentido qualitativo. Talvez ainda passará muito tempo an-
tes que os historiadores não juristas encontrem uma maneira (o tempo? a paciên-
cia? a coragem?) de adentrar nesse território feito de centenas de volumes, difíceis
de enfrentar e dominar, mas densos de indicações e de centelhas; eu estou convicto
de que quando o momento estiver amadurecido e se começar a fazê-lo, encontrar-
nos-emos diante do estabelecimento de uma grande atenção. Seria possível dizer:
mas hoje alguns historiadores do direito trabalham sobre essas fontes, e nada de
similar está acontecendo; é verdade, mas o ingresso em um campo como esse de
novos pontos de vista, guiados por outras competências e estimulados por interes-
ses extrajurídicos, é a condição para a formulação de perguntas inéditas, e, assim,
para a obtenção de novas respostas.

22. Vale também o contrário: pensar, por exemplo, como faz R. Roth (1984, p.66), na extrema im-
portância da história da pobreza para o aprofundamento dos conhecimentos em matéria penal:
“Qui pénètre ce territoire traditionnellement fort e bien exploré a souvent l’impression de tra-
verser le laboratoire de l’histoire pénale stricto sensu. Se rencontrent entre autres phénomènes
connus des spécialistes du pènal, mais à des époques antèrieures et de manière souvent plus
transparente, les mécanismes de répression et d’exclusion (la séparation entre ‘bons’ et ‘mau-
vais’ pauvres), le développement d’institutions de régénération combinant répression pure et ré-
éducation, la rationalisation des méthodes de prise en charge, la bureaucratisation de ces institu-
tions et même la mise au point de politiques d’intimidation qui annoncent l’idéologie pénale de
la prévention générale”.
38
Fontes judiciárias e fontes jurídicas
Não será, certamente, uma escavação fácil. Aqueles intelectuais eram arredios ao
discurso direto, não era do estilo deles falar explicitamente daquilo que acontecia
no mundo, e eles consideravam elegante poupar referências explícitas às relações de
poder, sociais ou interpessoais: poucas pepitas, portanto, para os historiadores do
social, em meio a uma grande quantidade de areia jurídica. Em compensação, mui-
tos daqueles juristas podiam estar com a razão, na realidade deles, entre as cimeiras
da intelectualidade da época: atentos, especializados, providos de autoridade, não
ignoravam o poder e os seus mecanismos, às vezes críticos e muitas vezes preocu-
pados com o grau de racionalidade do ordenamento punitivo: coisas que acabavam
sendo úteis, inclusive, para o seu nível de civilidade.
Dizia-se outrora que nos papeis dos processos penais, bem ou mal, é possível es-
cutar as vozes dos subalternos, se não fosse por isso, emudecidos pela história alta.
Pois bem, nos livros dos juristas falam os intelectuais, os homens do poder, os ho-
mens dos aparatos, e o fazem produzindo o discurso constitutivo da repressão pe-
nal. Tal discurso é, ao mesmo tempo, declarativo e esclarecedor, e, enquanto funda
e explica as engrenagens e as razões de um sistema punitivo, também dá conta lar-
gamente dos contextos que lhe são correlatos. Porque o direito, como bem sabe
quem trabalha com ele pelas perspectivas corretas, tem na sua natureza um extra-
ordinário poder de absorção e uma altíssima capacidade de refração. Em alto grau,
ele é capaz de imprimir sobre si, ainda que de maneira cifrada, os sinais distintivos
das atitudes sociais, para, depois, remetê-los com clareza a quem souber lê-los ou
decodificá-los.

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41
A RESPOSTA DO LEGISLADOR:
REFORMAS E RESTAURAÇÕES NA JUSTIÇA
PENAL APÓS BECCARIA*
THE LEGISLATOR’S ANSWER:
REFORMS E RESTORATIONS IN CRIMINAL
JUSTICE AFTER BECCARIA

2
Ettore Dezza **

Resumo: O trabalho tem como objetivo apresentar Abstract: The work aims to analyze the legislative
as reações legislativas à obra “Dos delitos e das reactions to the book “On crimes and punish-
penas” nos estados europeus entre os séculos XVIII ments” in the European states between the 18th and
e XIX no que tange à justiça penal. Para tanto, 19th Century on criminal justice. For that, it was
consulta as várias legislações penais e de processo consulted many acts on criminal law and criminal
penal de língua italiana, francesa e alemã do perío- procedure in Italian, French and German and
do e compara-as aos principais postulados da obra compare it to the main postulates of Cesare Becca-
de Cesare Beccaria. Como resultado, verificou-se ria’s book. As results, it was verified heterogenous
não se tratar de respostas homogêneas, com vários answers with may movements of reactions and
movimentos de reação e retornos, ainda que daque- returns, even if since then the new model of crimi-
le momento em diante o novo modelo de justiça nal justice always be in debate.
penal estivesse sempre em debate.
Palavras-chave: Iluminismo; Justiça penal; Legisla- Keywords: Enlightenment; Criminal justice; Legis-
ção; Cesare Beccaria. lation; Cesare Beccaria.

* Tradução de DEZZA, Ettore. La risposta del legislatore: riforme e restaurazioni nella giustizia
penale dopo Beccaria. In: PANIZZA, Giorgio (A cura di). Da Beccaria a Manzoni. La riflessione
sulla giustizia a Milano: un laboratorio europeo. Silvana Editoriale: Cinisello Balsamo, 2014 por
Diego Nunes, Professor Adjunto no Departamento de Direito da Universidade Federal de Santa
Catarina, colíder do grupo de pesquisa Ius Commune em história da cultura jurídica
(UFSC/CNPq), doutor em Ciências Jurídicas (currículo História do Direito) pela Universidade
de Macerata (Itália).
** Professor Catedrático de História do Direito na Universidade de Pavia (Itália).
43
Ettore Dezza
1. No exórdio desta breve nota dedicada à discutida penetração a nível legislati-
vo das ideias de Beccaria, convém reclamar em via preliminar o objeto precípuo de
tal recepção, isto é, os princípios essenciais que o “Dos delitos e das penas” põem
como fundamento da pena e do sistema completo da justiça penal. Nos limitamos
nesta sede a uma sintética enumeração, que toma, obviamente, os movimentos
pelos princípios da legalidade, proporcionalidade e humanidade e pela posição
assumida por Beccaria no tema da pena capital.
a) Princípio da legalidade. «Somente as leis – se lê no “Dos delitos e das penas”
– podem decretar as penas sobre os delitos, e esta autoridade não pode residir para
além do legislador» (§ 3). Em outras palavras, as penas devem ser taxativamente
pré-estabelecidas pela lei e exclusivamente por fatos explicitamente previstos pela
mesma. Trata-se do princípio fundante do moderno direito penal, que será em se-
guida comumente expresso mediante a celebríssima fórmula – atribuída a Anselm
Feuerbach – nullum crimen, nulla poena sine lege.
b) Princípio da proporcionalidade. A tarefa do legislado é construir uma “escala
penal” na qual a intensidade das penas corresponda à gravidade dos crimes. De tal
modo, torna-se possível, por um lado, assegurar a pena «menos tormentosa» para o
condenado e, por outro, individualizar o castigo «mais eficaz» em função preventi-
va (§ 12).
O critério para calcular a gravidade do crime foi dado – segundo a clássica filo-
sofia utilitarista – pelo dano objetivamente produzido pelo mesmo: «a única e ver-
dadeira medida dos delitos é o dano feito à nação e, porém, erraram aqueles que
acreditaram que a verdadeira medida dos delitos é a intenção de quem os comete»
(§ 7).
c) Princípio da humanidade. «O fim das penas não é atormentar e afligir um ser
sensível» (§ 12) ou de ser indulgente a uma «inútil prodigalidade de suplícios» (§
28).
Ao contrário, o sistema punitivo deve ser informado pela «doçura das penas»: a
atrocidade das penas é, de fato, contrária aos princípios da humanidade, lesa o
princípio da proporcionalidade e resulta ineficaz de um ponto de vista utilitarista,
posto que isto se acentua para que uma pena obtenha o seu efeito não é a crueldade
dos castigos, mas a sua infalibilidade (§ 27). Como consequência, a sanção a ser

44
A resposta do legislador
imposta pelo cometimento de um crime deve ser «a mínima das possíveis nas dadas
circunstâncias» (§ 47).
d) Ilegitimidade da pena de morte. Trata-se do mais notável tema entre aqueles
afrontados no “Dos delitos e das penas”. Basta rememorar nesta sede como Becca-
ria desenvolveu contra a pena de morte três argumentos. Os dois primeiros são
baseados nos princípios do contratualismo e do utilitarismo, e pretendem demons-
trar a ilegitimidade e a inutilidade da pena de morte. O terceiro argumento é, por
sua vez, de natureza ética e afasta a pena de morte como moralmente injusta pois
contrária à sacralidade da vida humana.
A tais princípios fundamentais são acrescidos outros mais específicos, mas não
menos relevantes, com base nos quais a pena: e) deve ser a mesma para todos os
cidadãos (princípio da igualdade, § 31); f) deve afligir somente quem tenha cometi-
do o crime (princípio da responsabilidade penal pessoal, § 25, pensado particular-
mente para os casos de confisco dos bens); g) deve ser aplicada por organismos
públicos (princípio da titularidade pública exclusiva do magistério punitivo, § 29);
h) deve atingir apenas as ações que tenham relevância externa (princípio da laici-
dade do direito penal, § 7).
Então, no que diz respeito ao processo, Beccaria, movido por uma cerrada críti-
ca aos aspectos de maior iniquidade do tradicional modelo inquisitório, entende
que este deva se basear sobre um ulterior núcleo de institutos basilares, sobre os
quais nos deteremos novamente de modo telegráfico.
a) Publicidade. «Públicos sejam os juízos, – se afirma no “Dos delitos e das pe-
nas” – e públicas as provas do crime, para que a opinião [pública], que talvez seja o
único cimento das sociedades, imponha um freio à força e às paixões, para que o
povo diga “nós não somos escravos e estamos protegidos”» (§ 14). Assim, a prova
dos fatos deve ser verificada não no segredo da inquisição, mas no curso de um
juízo público (§ 15). Não são, por conseguinte, admissíveis as «denúncias secretas»
e as delações (§ 15), enquanto o imputado tem, ao contrário, o direito de conhecer
tanto a acusação quanto os resultados da instrução processual.
b) Celeridade. A «prontidão da pena» é «um dos principais freios aos delitos»
(§§ 19 e 30) e constitui um valor essencial do sistema de justiça imaginado por Bec-
caria, já que consente, por um lado, de verificar na sociedade os seus benéficos efei-

45
Ettore Dezza
tos preventivos e, por outro, de evitar longos e inúteis sofrimentos tanto ao impu-
tado culpado quanto, com maior razão, ao imputado inocente.
c) Formalismo. «As formalidades e as cerimônias» constituem um aspecto ne-
cessário na administração da justiça penal porque, de um lado, «nada deixam ao
arbítrio» do magistrado e, por outro, «dão ideia ao povo de um juízo não tumultua-
do e interessado, mas estável e regular» (§ 38).
d) Presunção de inocência. Todos têm o direito «de ser tido como inocente» (§
13) e, assim, «um homem não pode ser chamado de réu antes da sentença do juiz»
(§ 16). A oposta presunção de culpabilidade comporta, por sua vez, a dupla conse-
quência da inversão do ônus da prova (e, neste modo, «para que alguém seja prova-
do inocente deve ser antes declarado réu») (§ 17), e da privação da liberdade (que,
«sendo uma pena», «não pode preceder à sentença se não quando a necessidade
requerer») (§ 19).
e) Direito à defesa. A defesa é um «direito inalienável» que pertence a todos os
homens (§ 16). A todo acusado, então, «é necessário conceder […] o tempo e os
meios oportunos para justificar-se», compativelmente com o princípio da «pronti-
dão da pena» e sem consentir com o recurso a técnicas meramente dilatórias (§ 30).
f) Imparcialidade do juiz. O processo deve consistir em «aquilo que a razão co-
manda» e, então, na «busca indiferente do fato». Asism, os fatos e as responsabili-
dades devem ser verificados por «um indiferente pesquisador da verdade» e, deste
modo, por um juiz neutro e não interessado no resultado do juízo, encarregado
exclusivamente da decisão e privado de qualquer arbítrio (§ 17).
g) Critério moral na valoração das provas. A decisão do juiz deve se fundar so-
bre o critério moral do livre convencimento e, portanto, da livre valoração das pro-
vas mediante o «simples e ordinário bom senso», que permite adquirir aquela «cer-
teza moral […] que determina todo homem nas operações importantes da vida» (§
14). A rejeição ao tradicional sistema da prova legal, que predetermina o valor de
cada elemento probatório, deriva do fato que tal sistema transformou a confissão
no «centro em torno o qual gira toda a artilharia criminal» (§ 17) e tem, de tal mo-
do, determinado o «cruel império» exercitado sobre o processo pela tortura ad eru-
endam veritatem (§ 31).
h) Separação entre função de acusação e função de juízo. O juiz que se identifica

46
A resposta do legislador
com o acusador «se torna inimigo do réu», já que ele «não busca a verdade do fato,
mas procura no prisioneiro o delito» (§ 17). Como consequência, a acusação deve
ser confiada ou a «promotores, que em nome do público acusem os infratores das
leis» (§ 15), ou mesmo aos cidadãos privadamente.
i) Submissão do juiz à lei. O juiz não deve ser provido de poderes discricionários
e toda a sua atividade deve ser regulada pelas leis. A determinação dos «indícios
para a captura», por exemplo, deve ser subtraída ao «poder do juiz» (§ 17), assim
como deve ser banida toda forma de condenação a penas extraordinárias ou arbi-
trárias.
l) Participação popular na administração da justiça. É oportuno que o juiz seja
ladeado por «assessores» escolhidos por sorteio entre os cidadãos, com a dupla
função de controlar a ação dos magistrados e de levar ao juízo penal o bom senso
dos leigos contraposto ao tecnicismo sapiencial dos togados (§ 14).
m) Abolição da tortura. «Infame cadinho da verdade», a tortura deve ser abolida
porque não é nada mais que uma pena imposta a um cidadão quando ainda «se
duvida se seja culpado ou inocente», enquanto a experiência ensinou que ela se
presta apenas para condenar o «frágil» inocente ou para absolver o «robusto» cul-
pado (§§ 16 e 38).
n) Abolição do juramento. «Para que colocar o homem na terrível contradição,
ou de faltar com Deus, ou de concorrer à própria ruína?». A inutilidade do jura-
mento de veritate dicenda que transforma o acusado em testis contra se foi demons-
trada pela experiência, já que «nenhum juramento nunca fez réu algum dizer a ver-
dade», e pela razão, «que declara inúteis e, por consequência, danosas, todas as leis
que se oponham aos naturais sentimentos do homem» (§ 18).
o) Prescrição. Os crimes (com exceção daqueles «atrozes» cujo responsável seja
«subtraído com a fuga») devem ser submetidos a um regime de prescrição propor-
cional à gravidade do fato. A prescrição encontra fundamento na ineficácia preven-
tiva da pena quando tenha transcorrido demasiado tempo do cometimento do cri-
me e elimina, além disso «a incerteza da sorte de um cidadão» que neste intervalo
pode «tornar-se melhor» (§ 30).
As ideias inspiradas por um modelo de tipo acusatório e os princípios garantis-
tas pouco tempo faz celeremente assumidos constituem o pressuposto de uma ver-

47
Ettore Dezza
dadeira revolução legislativa que se desenvolve entra os séculos XVIII e XIX ao
longo de um itinerário repleto de obstáculos e não ausente de momentos de pausa e
de retornos ao passado. Graças a tal revolução, foram abatidas ou de qualquer mo-
do reformadas as tradicionais estruturas inquisitórias e arbitrárias sedimentadas a
partir dos séculos do baixo Medievo, e vem redesenhado, por vezes em modo radi-
cal, o panorama da justiça penal. A nível normativo, as novas concepções penais,
difusas com extraordinária rapidez na cultura jusfilósofica e juspolítica a partir dos
anos sessenta do século XVIII, manifestam-se primeiramente mediante interven-
ções setoriais que têm como objeto privilegiado a tortura, instituto posto há tempo
em discussão por autores como Christian Thomasius (1705) e já abolido na Prússia
entre 1740 e 1754.
Na Áustria, ao fim de uma complexa jornada que viu como protagonista um se-
guidor de Beccaria, Joseph von Sonnenfels, em 2 de janeiro de 1776, Maria Teresa
decreta nas províncias hereditárias do império a abolição da tortura – depois esten-
dida à Lombardia austríaca em 1785 – e um pouco mais tarde prescreveu a redução
dos casos de aplicação da pena capital (decreto de 19 de janeiro de 1776) e a sua
(programática) substituição por trabalhos forçados (decreto de 17 de fevereiro de
1777). Sobre o tema da tortura, o exemplo teresiano foi seguido por numerosos
Estados da Europa central e também pela França pré-revolucionária, onde a questi-
on préparatoire, com a finalidade de obtenção da confissão, foi abolida por uma
Déclaration royale de 24 de agosto de 1780, seguida, no 1° de maio de 1788, por
uma segunda Déclaration que cancela programaticamente também a question préa-
lable, as quais eram submetidos, nos casos de maior gravidade, os réus confessos ou
culpados, com o fim de conhecer os nomes dos cúmplices ou mandantes.
Estas intervenções setoriais prosseguem por toda a Europa até os primeiros anos
do século XIX e levam a uma quase total abolição da tortura. Tais intervenções fo-
ram muito cedo seguidas por reformas gerais e de caráter sistemático sobre o apara-
to completo da justiça penal e que se desenvolvem em correlação com o fenômeno
mais amplo da codificação e da total refundação do sistema jurídico sobre bases
legalistas, racionais e estatais. Dois são os principais filões deste processo de refor-
ma, geralmente inspirado pelo pensamento beccariano. O primeiro e mais sobres-
saliente se manifesta na zona do absolutismo iluminado centro-europeu e teve no-
vamente como protagonista o Império da Áustria. O segundo tomou forma na
48
A resposta do legislador
França da Revolução e encontra o seu arrimo definitivo na codificação napoleônica.
Intermediária entre estes dois polos é a experiência italiana, que tem como pri-
meiro e extraordinário ponto de referência a Reforma da legislação criminal tosca-
na de 30 de novembro de 1786, comumente denominada Leopoldina, em honra do
grão-duque Pedro Leopoldo, atento leitor do “Dos delitos e das penas” e responsá-
vel por boa parte do texto normativo.

2. A Leopoldina constitui, sem dúvida, a mais relevante entre as concretas ini-


ciativas legislativas advindas das ideias de Beccaria antes da era revolucionária. O
excepcional valor, também simbólico, da Leopoldina é devido em particular ao § LI,
que pela primeira vez suprime oficialmente, com um primado provavelmente pla-
netário, a pena de morte, substituindo-a por trabalhos forçados perpétuos. Esta
supressão pioneira, quista em primeira pessoa por Pedro Leopoldo será, na realida-
de, de breve duração – apenas quatro anos – mas constitui, mesmo assim, uma
pedra angular do itinerário abolicionista a qual a matriz beccariana parece evidente,
especialmente se consultados os projetos legislativos (Prospecto 11 do Projeto inici-
al). De resto, a influência do pensamento de Beccaria está presente em toda a disci-
plina da Leopoldina, que mesmo não comportando uma superação radical da tradi-
ção da criminalística do Antigo Regime, em alguns de seus conteúdos normativos
representa – para usar as palavras de Adriano Cavanna – «uma autêntica bomba de
modernidade». Com efeito, a Leopoldina apresenta um conjunto normativo ainda
pré-codificação e nada exaustivo, que disciplina contextualmente o direito penal
substancial e processual.
O esquema inquisitório do procedimento ex officio não foi modificado estrutu-
ralmente (e, antes, era dado como pressuposto), mas é reformado setorialmente e
internamente também à luz de princípios os quais é possível vislumbrar a matriz
beccariana. Destaca-se nesse sentido a definitiva abolição da tortura (§ 33), junto da
qual, de resto, é oportuno assinalar summo digito posteriores e significativas inter-
venções inovadoras, representadas, em primeiro plano: a) pela abolição da catego-
ria de crimes de lesa majestade (que tinha sido criticada por Beccaria no § 8 do Dei
delitti); b) pela proibição de impor o juramento ao imputado (§ 6); c) o enfraque-
cimento do princípio do segredo e pela afirmação do direito do imputado a conhe-

49
Ettore Dezza
cer as provas em seu desfavor (§ 13); d) pelo direito do imputado a conservar a
liberdade pessoal nos casos de crimes de menor gravidade (§ 15); e) pela proibição
total ao juiz de recorrer a provimentos arbitrários (§§22, 48); f) pela obrigação do
juiz em adquirir também as provas para a absolvição (§§23-24, 26); g) pela abolição
das provas privilegiadas (e, portanto, das provas imperfeitas ou indiciárias que para
específicas categorias de crimes particularmente graves eram mesmo assim consi-
deradas suficientes para aplicação da pena ordinária) (§ 27); h) pela introdução do
princípio da celeridade do procedimento, marcadamente quando o imputado esteja
preso (§§ 29-32); i) pela abolição do confisco dos bens do condenado (§ 45); l) pela
previsão da defesa técnica, em particular a garantida ex officio aos imputados po-
bres e indigentes (§ 50).
Contemporaneamente à Leopoldina, na Lombardia austríaca entra em vigor um
segundo texto normativo na área italiana que consente perceber – por sua vez, em
medida menor – uma série de ecos beccarianos. Nos referimos à Norma Interinale
del Processo Criminale, realizada em 1786 pelo jurista trentino Carlo Antonio Mar-
tini com vistas a uma jamais realizada extensão à Lombardia da codificação penal
do imperador José II. Fruto de uma operação de assemblage legislativo, a Norma
Provisória goza um importante primado histórico, o da primeira definição norma-
tiva do princípio da legalidade penal propugnado por Beccaria. O § 1 do texto lom-
bardo exprime claramente tal princípio mediante uma fórmula – «Não se poderão
[…] reter por delito criminal aquelas ações que não se encontram expressas, e con-
tidas entre as sanções penais» – retomada de modo quase literal pelo projeto do
código penal josefino, que por sua vez entrará em vigor somente alguns meses mais
tarde. De resto, a Norma Provisória se trata de uma revisão da arcaica Constitutio
Criminalis Theresiana del 1768, mas não deixa de apresentar algumas intervenções
de reforma que se encontram decididamente alinhadas com as escolhas leopoldinas
e com as ideias beccarianas: não é mais previsto o recurso à tortura (§ 238); é intro-
duzida a proibição de impor o juramento ao imputado (§ 162) e de formular per-
guntas sugestivas (§ 158); foram estabelecidas normas de salvaguarda contra as
denúncias caluniosas (§ 125-126, 129-130); foram fixados limites à prisão preventi-
va (§ 131-136).
O aceno à Norma Provisória lombarda e aos seus modelos nos consente agora
deslocar a nossa atenção sobre os reflexos que o pensamento penal da era das Luzes
50
A resposta do legislador
teve sobre a legislação penal habsbúrgica, que representa o primeiro e mais saliente
dos dois filões de nível europeu sobre os quais, como acenado precedentemente, se
desenvolve a partir do fim do século XVIII o itinerário de reforma da justiça penal.
No espaço de pouco mais de trinta anos, o império da Áustria impõe e aperfei-
çoa, pela primeira vez na história, uma completa codificação penal e processual,
cujas etapas majoritariamente significativas respondem em um primeiro momento
a uma exigência de centralização e de padronização da justiça penal e, em seguida, a
um programa de racionalização da mesma cujas exigências de eficiência e de funci-
onalidade frequentemente prevalecem sobre aquelas de natureza garantista. A situ-
ação toma vida em 31 de dezembro de 1768, quando a imperatriz Maria Teresa,
depois de uma longa fase de elaboração prolongada por quinze anos, promulga a
Constitutio Criminalis Theresiana, um corpo normativo um tanto trascurado (e
desprezado) a nível historiográfico quanto carente de uma consideração mais ma-
dura e atenta para o papel, todavia fundamental, jogado na fase de implementação
da moderna codificação penal. Estamos de frente a uma substancial recompilação e
fusão dos pré-vigentes direitos territoriais que responde ao objetivo primário de
criar, dentro do Império habsbúrgico, uma disciplina unitária também em matéria
penal. A Teresiana (em vigor desde 1° de janeiro de 1770) é dividida em duas par-
tes, uma processual e outra substancial, e está assaz distante em acolher as instân-
cias garantistas em via de rápida maturação na cultura jurídica europeia da época, e
representada, em primeiro lugar, pelo “Dos delitos e das penas”.
Ausente o princípio da legalidade, ausente a proibição de analogia, são ainda
parcialmente relevantes os status pessoais, enquanto o sistema das penas parece
arcaico e violento, com variadas formas qualificadas de pena capital. A disciplina do
processo se resolve, por sua vez, em uma suma dos principais aspectos que caracte-
rizam o procedimento penal romano-canônico do Antigo Regime, a começar, obvi-
amente, pelo recurso à tortura judiciária, cujas formas de execução são acurada-
mente definidas também por meio de apostos quadros ilustrativos notórias entre os
bibliófilos.
Todavia, a Teresiana é seguida, no passar de poucos anos, por uma série de in-
tervenções normativas setoriais de sinal oposto e de relevante significado simbólico.
Trata-se, particularmente, dos três citados decretos em tema de tortura e de pena
capital de 2 e 19 de janeiro de 1776 e de 17 de fevereiro de 1777 que, marcando uma
51
Ettore Dezza
destacada inversão de tendência, logo tornam necessária uma profunda reelabora-
ção da Teresiana, ordenada pelo imperador José II em 13 de april de 1781, poucos
meses depois da morte da mãe Maria Teresa. Ao fim de uma nova e intensa estação
de projetação normativa, durante a qual desenvolve um papel cardeal um discípulo
de Sonnenfels, Franz Georg von Keess, a Teresiana foi substituída, em 13 de janeiro
de 1787, pelo Allgemeines Gesetz über Verbrechen und derselben Bestrafung (becca-
rianamente: Código Geral sobre os Delitos e as Penas, também conhecido como
Josefina). Trata-se de um texto indubitavelmente inspirado nos princípios iluminis-
tas de legalidade, de racionalidade, de igualdade e, em parte, de laicidade (a blasfê-
mia não é mais configurada como crime), mas que parece muito menos sensível
àqueles do mesmo modo relevantes princípios de proporcionalidade e de humani-
dade e desenha, por isso, mesmo optando por uma quase total abolição da pena
capital, um sistema sancionatório de extremo rigor, que veta de modo taxativo a
prescrição do crime e da pena e apresenta aspectos francamente terroristas. Se, de
fato, a Josefina aboliu quase totalmente ao § 20 a pena capital (prevista pelo § 53
apenas para os crimes de «sedição ou tumulto»), a substitui, porém, com um apara-
to de penas alternativas de extraordinária dureza, chegando a provocar em nume-
rosíssimos casos a morte do condenado ao passar de poucos anos.
A Josefina, dedicada somente ao direito penal substancial, é imediatamente
acompanhada por duas normativas processuais que refletem a bipartição dos cri-
mes, operada pela mesma Josefina, nas duas grandes categorias dos delitos e das
transgressões de polícia. Nos referimos à Instruktion für die politischen Behörden
(Instrução para as Autoridades políticas) de 12 de fevereiro de 1787, que disciplina
o procedimento em matéria contravencional, e à sucessiva Allgemeine Kriminalge-
richtsordnung (Regulamento geral do procedimento judiciário para as causas cri-
minais) do 1° de junho de 1788, que regula o procedimento nos casos criminais.
Trata-se de um acontecimento de não pouca relevância na história do processo
penal.
Se, de fato, o Allgemeines Gesetz über Verbrechen und derselben Bestrafung de
1787 constitui o primeiro moderno código penal, a Kriminalgerichtsordnung repre-
senta, substancialmente, o primeiro moderno código de processo penal e delineia o
modelo de processo penal próprio do Absolutismo iluminado, no qual estatalismo e
garantismo são forçados a conviver em uma espécie de impossível conciliação. Nes-
52
A resposta do legislador
ta precoce codificação processual, as escolhas de clara matriz iluminista são, com
efeito, condicionadas – e frequentemente neutralizadas – por uma difícil, se não
impossível, convivência com os rígidos princípios centralizadores do Absolutismo
estatalista. Isso resulta em um módulo processual certamente racional e baseado no
primado da lei sobre o arbitrium iudicis, mas de natureza estreitamente inquisitó-
ria, fundado na rígida aplicação do sistema da prova legal (e, assim, na busca da
confissão) e no papel central do juiz factotum, que desenvolve pelo interesse públi-
co as três funções, de acusação, de defesa e de juízo, com a consequente completa
impossibilidade de defesa técnica no processo. Um módulo, em outras palavras,
que das ideias beccarianas em matéria processual acolhe, além daquelas da legali-
dade da pena, da submissão do juiz à lei e da titularidade pública do magistério
punitivo, apenas aquele da celeridade do juízo e da abolição do juramento e da tor-
tura.
No tocante a este último ponto também é oportuno asinalar como os §§ 109 e
110 da Kriminalgerichtsordnung permitiam reprimir duramente (e com o extremo
apêndice representada pelo recurso às chibatadas) toda tentativa do acusado em
conservar o silêncio ou de fingir-se louco para evitar a autoincriminação em sede
de interrogatório formal.
A esperiência legislativa habsbúrgica no fim do século XVIII culmina no Straf-
gesetz über Verbrechen und schwere Polizeiübertretungen (Código sobre os delitos e
sobre as graves transgressões de polícia, também conhecido como como Francisca-
na, em honra ao imperador Francisco I) de 3 de setembro de 1803 que retoma, mui-
to melhorada na forma, amansada em alguns conteúdos, mas quase idêntica na
substância e no espírito intimidatório à disciplina da codificação josefina, substi-
tuindo in toto a legislação penal substancial e processual de 1787-1788. Expressão
da fase mais madura do Absolutismo iluminado centro-europeu, a Franciscana
apresentava na parte substancial uma aplicação racional dos princípios da legalida-
de e da proporcionalidade baseada em uma summa divisio dos crimes em delitos e
graves contravenções de polícia, e opera nas normas processuais uma lúcida e raci-
onal revisitação das estruturas processuais penais do Antigo Regime. Depuradas
dos aspectos de maior iniquidade, tais estruturas são baseadas sobre a inquisitio ex
officio de um juiz-funcionário fiel executor das normas legais, sobre a eliminação da
defesa técnica, sobre a total ausência de uma fase de debates e – elemento funda-
53
Ettore Dezza
mental – sobre um rígido sistema de provas legais em verdade não privado, por
força da compressão dos poderes discricionários do juiz, de aspectos garantistas.
Note-se que uma dúzia de anos antes da Franciscana, tinha havido na Lombar-
dia austríaca algumas tentativas tencionadas a realizar um código penal que con-
temporizasse as especificidades da situação lombarda com as exigências de moder-
nização do sistema penal e com os modelos habsbúrgicos. Preparados por um pro-
jeto de 1787, obra do promotor público Luigi Villa, tais tentativas culminaram em
um projeto elaborado em 1791-1792 por uma Junta à qual foi chamado a fazer par-
te o próprio Cesare Beccaria. Mesmo nunca entrando em vigor, este projeto lom-
bardo – muito apreciável sob o ponto de vista técnico – recebe muitas dentre as
ideias enunciadas quase trinta anos antes no “Dos delitos e das penas”, com parti-
cular respeito aos princípios da legalidade (em uma formulação muito mais con-
vincente àquela do modelo josefino), proporcionalidade, personalidade da pena,
publicidade, igualdade diante da lei. Quanto à pena de morte, as discussões realiza-
das em janeiro de 1792 representam a última memorável ocasião na qual Beccaria
teve ocasião de confirmar as próprias convicções abolicionistas. Em tal circunstân-
cia, a corrente minoritária da Junta – formada, além de Beccaria, pelo primeiro de
seus seguidores, o magistrado Paolo Risi, e por Francisco Gallarati Scotti – não
hesita, de fato, a se opor fortemente à invocação da pena capital não apenas porque
a julga, com argumentações já conhecidas, «não justa» enquanto «não necessária» e
«menos eficaz que a pena perpétua», mas também porque ela resulta – como tinha
sugerido poucos anos antes o jurista valtellinese Tommaso Nani – um «irreparável»
produto da «inevitável imperfeição das humanas provas» e dos «limites da certeza
moral».
Tornando à Franciscana, observamos como tal texto seja particularmente inte-
ressante para o observador italiano posto que, a partir do 1° de janeiro de 1816 en-
tra em vigor também no Reino Lombardo-Vêneto. Como consequência de tal ex-
tensão, uma porção consistente da península teve medo de experimentar por várias
décadas os efeitos das escolhas de política legislativa maturadas no ambiente do
absolutismo austríaco. A tal propósito, convém recordar a presença, na tradição
processual penal habsbúrgica, de uma peculiar forma de juízo denominada «proces-
so statario» (§§ 238-249 da Kriminalgerichtsordnung e §§ 500-513 da Franciscana),
que foi utilizada em algumas ocasiões ligadas aos motes do Risorgimento italiano.
54
A resposta do legislador
Instituto de extremo rigor repressivo e dotado, na intenção do legislador, de grande
poder dissuador, o «processo statario» se resolvia em um juízo inapelável de caráter
sumário, imediatamente seguido da execução e da sentença capital. Ao juízo stata-
rio era possível recorrer, segundo o texto da Franciscana, somente em caso de rebe-
lião violenta ou de extraordinário aumento dos crimes comuns de roubo, homicí-
dio e incêndio.
Mesmo continuamente atualizado nas décadas da Restauração, o sistema de jus-
tiça penal rigidamente inquisitório disciplinado pela Franciscana permanece subs-
tancialmente o mesmo até a metade do século XIX, quando também a legislação
habsbúrgica se abre a uma série de institutos que no resto da Europa já se haviam
afirmado há tempo. Também para melhor compreender tais mutações – sobre as
quais tornaremos a seguir – convém agora tomar brevemente em exame o segundo
entre os filões de reforma da justiça penal de inspiração beccariana manifestados na
Europa a nível normativo entre os séculos XVIII e XIX. Tal filão, como acenado,
toma corpo na França da Revolução e após vinte anos de agitadas reviravoltas en-
contra a sua definitiva configuração nos códigos de Napoleão.

3. Por motivos ideológicos facilmente intuídos, a adesão aos cânones beccaria-


nos por parte dos legisladores da França revolucionária foi ampla e convicta. A
vontade de abater as estruturas repressivas do Antigo Regime, a centralidade do
problema penal levantado pelo pensamento iluminista, as palavras de ordem sobre
a tranquilidade e segurança do cidadão, a vontade de garantir o pleno gozo dos
direitos e o exercício das liberdades fundamentais, a desconfiança com relação às
classes tradicionalmente depositárias dos saberes e dos poderes (a começar pela
magistratura), tudo concorre a fazer da reforma da justiça penal um dos objetivos
primários do legislador revolucionário. Em tal contexto, a recepção a nível legislati-
vo das ideias de Beccaria se manifesta, nos primeiros anos da Revolução, de modo
maciço. Depois das afirmações de caráter programático contidas na Declaração dos
direitos do homem e do cidadão de 26 de agosto de 1789 e relativas aos princípios
da igualdade e da legalidade e à presunção de inocência (artigos 6 a 9), o processo
penal foi refundado sobre novas bases de natureza acusatória graças aos decretos de
8 de outubro e de 3 de novembro de 1789 (publicidade, direito à defesa técnica,
abolição do juramento do imputado, abolição definitiva da tortura), 16 e 24 de
55
Ettore Dezza
agosto de 1790 (previsão do júri popular), 16 e 29 de setembro e 29 de setembro e
21 de outubro de 1791 (disciplina do júri popular de pronúncia e de julgamento;
juízo oral, público e em contraditório; princípios do livre convencimento, do juiz
imparcial e da separação entre funções de acusação e de judicatura). Sobre o plano
substancial, o Code pénal de 25 de setembro e 6 de outubro de 1791 resulta ampla-
mente informado pelos princípios da legalidade, proporcionalidade, humanidade,
igualdade, publicidade, personalidade e laicidade, e contempla também o instituto
da prescrição. O Código prevê ainda, como reação ao arbítrio judicial do Antigo
Regime, um sistema de penas fixas pelo qual são por sua vez excluídas as penas
perpétuas, aplicando o princípio da emenda do condenado. Quanto à pena de mor-
te, a sua abolição foi assim prevista pelo autor do projeto Louis Michel Le Peletier
de Saint-Fargeau, fervoroso seguidor de Beccaria, e é sustentada por alguns deputa-
dos radicais como Duport e (paradoxalmente) Robespierre, mas depois de uma
longa e apaixonada discussão, a Assembleia Constituinte decide mantê-la como
simples privação da vida mediante decapitação.
Os decretos e o Código de 1791 marcam o ponto de máxima influência das idei-
as beccarianas (e, em geral, do garantismo penal de matriz iluminista) sobre a legis-
lação penal da França revolucionária. Os sucessivos acontecimentos políticos e
marcadamente o Terror judiciário do período jacobino (durante o qual se renegam
os grandes princípios de 89 mediante a instauração de procedimentos extraordiná-
rios e de um direito penal de exceção contra os «inimigos do povo») e a mesma
reação termidoriana comportam, de fato, em matéria de justiça penal, o início de
uma revirement restauradora destinada a desaguar em uma parcial erosão das con-
quistas realizadas nos trinta meses que sucederam à tomada da Bastilha.
Um primeiro sinal de tal tendência se tem com o Code des délits et des peines do
3 de brumário do ano IV (25 de outubro de 1795), conhecido também como Códi-
go Merlin pelo nome do seu principal artífice, Philippe Antoine Merlin de Douai. O
título, de evidente inspiração beccariana, não engana: excetuado um punhado de
normas substanciais (50 artigos sobre 646), estamos na realidade diante de um có-
digo de processo penal (o primeiro na experiência jurídica francesa) que contém
embrionariamente um tipo de prefiguração daquele processo penal “misto” que,
como veremos em breve, constituirá também fora dos confins franceses o funda-
mental modelo processual da era da codificação. Em particular, o Código Merlin
56
A resposta do legislador
retoma, atualiza e reorganiza racionalmente – após os parênteses do Terror – as
novas regras de matriz garantista e acusatória estabelecidas no biênio constituinte
(1789-1791), mas ao mesmo tempo realiza também um primeiro retorno a deter-
minados cânones de natureza inquisitória quais os recursos ao segredo na fase das
investigações, a relevância da escrita (mediante o valor probatório atribuído aos
autos instrutórios) e a atribuição de poderes discricionários ao juiz «pour découvrir
la vérité» (art. 276).
A tendência restauradora simplesmente acenada pelo Código de 3 de brumário é
destinada a reforçar-se e a tornar-se predominante com a tomada de poder por
parte de Napoleão em 18 de brumário do ano VIII (9 de novembro de 1799). A
partir deste momento, as escolhas de política penal efetuadas na França são com
plena evidência destinadas ao reforço do magistério punitivo estatal com prejuízo
ao sistema de garantias propugnado pelo reformismo de matriz beccariana e levado
a cabo nos primeiros anos da Revolução. O ponto de partida deste itinerário é cons-
tituído pela lei do 7 do pluvioso do ano IX (27 de janeiro de 1801), que restaura a
figura do ministério público responsável pelos inquéritos da polícia judiciária e
reforça ulteriormente o recurso aos critérios de segredo e de escritura. O ponto de
chegada é marcado – após a elaboração em 1802 de um Projet de Code criminel,
correctionnel et de police – pela realização do Code d’instruction criminelle de 1808
e do Code penal de 1810, destinados a entrar em vigor no 1° de janeiro de 1811.
O Código de instrução criminal representa a mais típica expressão daquele mo-
delo de processo penal – tecnicamente definido “misto” – que na França, como
dantes acenado, tinha já começado a delinear-se em 1795 com o Código Merlin.
Também graças ao sucesso planetário da codificação napoleônica, por cerca de
dois séculos o modelo misto será em regra adotado com estrutura processual penal
de referência pela maior parte dos modernos ordenamentos com o direito codifica-
do. Como sugere o nome, o modelo misto é produto da justaposição de duas fases
processuais, cada uma das inspirada em uma das duas formas historicamente as-
sumidas pelo processo penal, a inquisitória e a acusatória.
A primeira fase, denominada instrutória, é voltada à busca do material probató-
rio e é exemplificada por algunas típicas estruturas do processo inquisitório do An-
tigo Regime objeto das críticas de Beccaria. Ela é, de fato, informada pelos princí-

57
Ettore Dezza
pios do segredo e da escritura, a um largo recurso à prisão preventiva e à compres-
são do direito de defesa (e, em particular, à substancial ausência de defesa técnica).
Responsável por esta primeira fase é um juiz instrutor, enquanto a ação penal é
conduzida e exercitada ex officio por funcionários públicos especiais, representados
pelos procuradores de Estado, chamados a exercitar o ministério público e de regra
dotados de amplos poderes de ação frente ao juiz instrutor. A sucessiva fase de de-
bates é, por sua vez, inspirada nos critérios acusatórios da oralidade, da publicidade
e do contraditório e representa, assim, a fase consagrada à verificação das garantias,
durante a qual a defesa (também técnica) teve modo de desdobrar-se com amplitu-
de. Deve-se observar, porém, como no clássico modelo misto o debate não repre-
senta tanto um momento de formação da prova (como nos clássicos exemplos his-
tóricos do rito acusatório, a começa pelo anglo-saxão) quanto na verdade de verifi-
cação e de discussão do material acumulado no curso da instrução escrita e secreta
nos devidos autos processuais, que somente ao término da instrução são abertos ao
imputado e ao seu defensor. A fase de debates é, por sua vez, marcada pela perma-
nência daquele princípio inquisitório da busca pela verdade material que no mode-
lo misto emerge através os quase ilimitados poderes discricionários no exame das
testemunhas e na busca de ulteriores instrumentos probatórios atribuídos ao presi-
dente da corte. Um elemento posterior de avaliação a se ter atentamente conta para
uma melhor compreensão do sistema misto é representado pelo fato que, enquanto
o modelo habsbúrgico é substancialmente baseado, como vimos, em um sistema de
prova legal, o modelo franco-napoleônico retoma da experiência revolucionária o
princípio da livre convicção, confiado a um juiz togado nos casos de menor e média
gravidade (crimes policiais ou contravenções e crimes correcionais ou delitos, se-
gundo a classificação transalpina) e a um júri de cidadãos encarregado de decidir a
questão de fato nos casos de maior gravidade (crimes).
Como o Code d’instruction criminelle, também o Code pénal napoleônico é o
fruto de um compromisso entre a herança revolucionária de marca garantista e as
exigências repressivas de um Estado substancialmente autoritário. Tecnicamente
nem sempre impecável – marcadamente na disciplina da parte especial – o texto de
1810 se conserva, em princípio, fiel aos princípios da legalidade e da proporcionali-
dade, mas reforça de modo sensível o próprio arsenal repressivo, apontando deci-
didamente sobre a função preventiva e intimidatória da pena. Tal concepção de
58
A resposta do legislador
matriz utilitarista é bem presente também no “Dos delitos e das penas”, mas o le-
gislador napoleônico de 1810 a acolhe em detrimento das instâncias de natureza
humanitária que, por sua vez, eram parte essencial do pensamento beccariano. O
claro agravamento do sistema sancionatório é evidente em algumas escolhas fun-
damentais, tais quais o notável aumento dos casos sancionáveis com pena capital e
a repristinação das penas perpétuas e de penas corporais que, em alguns desses
casos recordavam o arsenal repressivo de José II. Em tal contexto, não pode não
chamar a atenção a real exumação da berlinda, da marca com fogo e do confisco de
bens (expressamente abolidos em 1791) como sanções acessórias de cada pena per-
pétua ou de trabalhos forçados e, ainda, do decepamento da mão para o parricida
condenado à morte. O caráter intimidatório do texto em exame se manifesta tam-
bém sob outros aspectos, dentre os quais assinalamos a equiparação da pena entre
autor e cúmplice e entre crime tentado e consumado (entretanto já presente no
ordenamento francês desde 1796) e a dura repressão, por um lado em toda forma
de dissenso político e, por outro, de comportamentos sintomáticos de periculosida-
de, mas por si só não lesivos, como a vagabundagem e a mendicância. Por último, é
oportuno sublinhar como o Código de 1810 restaura certos poderes discricionários
ao juiz na determinação da pena com o escopo de conciliar o princípio da legalida-
de com a necessidade de levar em conta as circunstâncias. Assim, decai o sistema da
pena fixa e se confia ao juiz a tarefa de estabelecer o quantum da pena entre um
mínimo e um máximo em função das agravantes ou das atenuantes eventualmente
presentes.
Como já observado, a codificação imperial de 1810 de um lado comporta o qua-
se definitivo assentamento, na França, do sistema da justiça penal; de outro, se eleva
– também graças ao imperialismo jurídico napoleônico – a ponto de referência para
iniciativas legislativas análogas em grande parte da Europa.

4. No que diz respeito à Itália, após as experiências precoces da Leopoldina e da


Norma provisória lombarda, os legisladores da península se encontram quase sem-
pre a operar em presença de modelos normativos austríacos ou franceses que fre-
quentemente devem a sua autoridade também a fatores de predomínio político.
Surge uma experiência que se desenvolve no enredo de uma densa troca de recípro-
cas influências no que diz respeito ao filão centro-europeu do Absolutismo ilumi-
59
Ettore Dezza
nado e ao filão revolucionário e napoleônico, mas que não impediu o nascimento
de um itinerário autônomo italiano de modernização do sistema penal.
No plano do direito penal substancial, uma genuína tradição codificadora italia-
na se desenvolve a partir dos projetos citados para a Lombardia austríaca de 1787-
1792. Tal tradição se consolida durante a era revolucionária e napoleônica, dando
vida a uma conspícua série de projetos relevantes de código penal (o mais impor-
tante e influente destes foi realizado em Milano em 1806 para o Reino Itálico) e
produzindo alguns resultados concretos, como no caso das leis napolitanas de 1808
e dos códigos de Lucca (1807) e de Piombino (1808). A extensão à Itália do Código
imperial de 1810 põe fim, momentaneamente, à atividade autônoma de projetação,
que por sua vez é retomada com renovada intensidade com a Restauração, chegan-
do enfim à farta série de códigos penais dos Estados pré-unitários realizados em
Napoli (1819), Parma (1820), Roma (1832), Torino (1839) e Firenze (1853), aos
quais podem se juntar os textos do Ticino (1816) e das Ilhas Jônicas (1841).
Não obstante os influxos exercitados pelos modelos habsbúrgicos e, em medida
decididamente maior, do Código imperial de 1810, os códigos supramencionados
permitem enumerar facilmente um ‘modelo italiano’ de codificação penal, em cujo
âmbito a presença do magistério de Beccaria aparece determinante. Para além da
evidente superioridade técnica dos códigos da península (marcadamente em con-
fronto com o texto napoleônico), as características distintivas da tradição penal
italiana são, com efeito, representadas pela recepção dos três clássicos princípios
beccarianos do humanitarismo, do objetivismo penal e da laicidade. O sopro hu-
manitário se manifesta, por exemplo, no limitado recurso à pena capital, na elimi-
nação de penas ‘bárbaras’ como o decepamento da mão, a marca com ferro quente,
a berlinda e o confisco de bens, na maior indulgência com os menores delinquen-
tes, e na disciplina menos rígida da reincidência. Quanto ao objetivismo penal –
que comensura a gravidade do crime ao dano por ele produzido – ele comporta
antes de tudo uma pena menor para tentativa com respeito ao crime consumado,
mas se reconecta ao seu turno à não punibilidade do crime impossível ou da tenta-
tiva inidônea e à relevância apenas objetiva das descriminantes. A tendencial laici-
dade dos códigos penais italianos (laicidade por sua vez presente também no Códi-
go napoleônico de 1810) se revela afinal na separação entre direito e ética e, em
particular, na propensão a não confundir o crime com o pecado (se não com rela-
60
A resposta do legislador
ção à tutela da religião) e a não atribuir relevância penal ao incesto, sodomia, ho-
mossexualidade e suicídio (cuja não punibilidade é profundamente discutida por
Beccaria no § 32 do “Dos delitos e das penas”).
No plano da disciplina processual, o texto de referência da tradição italiana é
constituído pelo Código de Processo Penal do Reino Itálico, que remonta a 1807 e
então – serve sublinhar – antecipa por um ano o homólogo texto processual tran-
salpino. Este código – geralmente conhecido, em homenagem ao seu prestigioso
autor, com a denominação de código Romagnosi – compartilha a opção de fundo
pelo modelo misto, e assim configura uma estrutura processual com duplo arco na
qual a uma fase instrutória inspirada – como visto – aos princípios da escrita e do
segredo e marcada pela compressão dos direitos à defesa e à liberdade pessoal, se-
gue uma fase de debates caracterizada pela presença da defesa técnica e aberta aos
princípios da oralidade, da publicidade e do contraditório. O código Romagnosi se
afasta, por sua vez, do texto transalpino em algumas escolhas qualificantes entre as
quais assinalamos: a) a ausência do júri popular; b) a acurada definição formal dos
institutos processuais, que comporta em particular a compressão – garantida por
um penetrante sistema de nulidades – dos poderes discricionários do juiz e do mi-
nistério público na fase instrutória; c) a possibilidade para o juiz de pronunciar,
para além da condenação ou da absolvição plena, a absolvição de forma dubitativa
mediante a fórmula terceira chamada de non liquet (destinada logo cedo a evoluir
para a absolvição por insuficiência de provas). Em extrema síntese, é possível afir-
mar que no código Romagnosi a diminuição da participação popular na adminis-
tração da justiça penal, e a consequente atribuição do livre convencimento somente
ao juiz togado («arma terrível» fruto de «erro pestilento», segundo um ilustre críti-
co do sistema, Giovanni Carmignani) encontram um eficaz contrapeso garantista:
a) no extraordinário relevo atribuído aos aspectos formais do procedimento, com a
consequente compressão dos amplos poderes arbitrários atribuídos aos magistra-
dos inquirentes no modelo franco-napoleônico de 1808; b) na possibilidade de re-
correr à fórmula dubitativa. O conjunto configura – como observa Franco Cordero
– «um estilo italiano, conotado pelo garantismo inquisitório» e por «previsões mi-
croanaliticamente recortadas» que terá modo de perpetuar-se nos códigos proces-
suais realizados nos anos da Restauração, dentre os quais se destacam pela sua mo-
deração o das Duas Sicílias (1819) e de Parma (1821). O claro influxo do modelo
61
Ettore Dezza
italiano de 1807 e do francês de 1808 não deixará de se manifestar também no pri-
meiro código processual sardo-piemontês de 1847, do qual derivarão o segundo
código sardo-piemontês de 1859 (o código Rattazzi) e o primeiro código unitário
de 1865, caracterizados pela inovação fundamental constituída pela previsão do júri
popular para os crimes comuns de maior gravidade.

5. Concluímos esta breve nota retornando à experiência habsbúrgica, que ao


longo de um amplo arco cronológico condicionou os modos de administrar a justi-
ça penal, primeiro na Lombardia austríaca – a pátria de Beccaria – e depois no Rei-
no Lombardo-Vêneto. Na metade do século XIX, o traço saliente de tal experiência
é representado pelo abandono do modelo racionalmente intimidatório e distinta-
mente inquisitório que foi privilegiado pela codificação josefina de 1787-1788 e
confirmado pela Franciscana de 1803. Esta clara reviravolta epocal é uma conse-
quência direta dos acontecimentos insurrecionais que levaram à promulgação, em 4
de março de 1849, da Constituição Política do Império da Áustria, comumente
denominada Märzverfassung. Os §§ 103 e 120 da nova Constituição prefiguram
uma total ascensão do modelo de justiça penal aplicado até aquele momento e pre-
veem em particular o estabelecimento de novas formas processuais inspiradas nos
princípios acusatórios da oralidade e da publicidade e fundadas na intervenção da
defesa técnica e no instituto do júri popular.
O primeiro fruto desta nova estação na legislação habsbúrgica é representado
pela Strafprozessordung (Regulamento Provisório de Processo Penal) de 17 de ja-
neiro de 1850, que delineia um processo bifásico estruturalmente análogo àquele
franco-napoleônico, mas muito mais rico em garantias e particularmente atento a
limitar os poderes discricionários do magistrado inquirente. O Regulamento de
1850 (nunca aplicado na Lombardia e Vêneto, onde o estado de sítio perdurará até
1854) tem, por sua vez, vida assaz breve e, como nota Werner Ogris, representa a
«primeira vítima sacrificial da reação» neoabsolutista culminada na abolição, medi-
ante a Silvesterpatent de 31 de dezembro de 1851, da Märzverfassung.
Todavia, a ação restauradora não é total, e é conduzida com a consciência de que
os tempos estão decididamente mudando. Com efeito, a velha Franciscana resulta a
essa altura anacrônica e foi definitivamente substituída pela parte substancial do

62
A resposta do legislador
novo Código Penal (Strafgesetz über Verbrechen, Vergehen und Übertretungen) de
27 de maio de 1852 e pela parte processual pelo Regulamento Geral de Processo
Penal (Allgemeine Strafprozessordung) de 29 de julho de 1853. Trata-se de textos de
compromisso que limitam o rigor do sistema sancionatório e que também na disci-
plina processual não oferecem uma integral retomada do modelo inquisitório. Em
particular, o Regulamento de 1853 não prevê o júri popular, limita a publicidade do
juízo e se inspira ainda no sistema da prova legal, mas conserva a forma bifásica
caracterizada pela presença de uma audiência para debates na qual encontra uma
precisa colocação à defesa técnica.
Vinte anos mais tarde, em 23 de maio de 1873, a promulgação de uma nova e
moderna Strafprozessordung, projetada por um dos mais ilustres penalistas euro-
peus da época, Julius Glaser, comportará a definitiva eliminação das mais relevantes
escórias inquisitoriais mediante uma série de escolhas normativas que permitiram
ver finalmente realizado também no campo da justiça penal aquela «limpidez da
civilização austríaca» evocada alguns anos atrás, não sem um véu de nostalgia, por
um famoso escritor italiano de origem espalatina, Enzo Bettiza.

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64
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65
A MARCA DE CAIM:
A BUSCA PELO “HOMEM DELINQUENTE”
ENTRE MEDICINA E DIREITO*
THE MARK OF CAIN:
THE SEARCH OF THE CRIMINAL-MAN
BETWEEN MEDICINE AND LAW

3
Paolo Marchetti **

Resumo: Por meio desta aula ministrada a uma Abstract: Through this lecture given to a class
plateia composta por alunos de Medicina, Paolo composed of students of Medicine, Paolo Marchetti
Marchetti busca aproximar os campos da Medicina seeks to bring the fields of Medicine and Law to-
e do Direito relatando o caso das tentativas realiza- gether by relaying the case of the many attempts, by
das por múltiplos pesquisadores do passado em multiple researchers of the past, to find a biological
achar uma explicação biológica para o comporta- explanation for criminal behaviour. The studies of
mento criminoso. Os estudos de Cesare Lombroso Cesare Lombroso are explored, as are some of his
são explorados, assim como de seus contemporâ- contemporaries such as Francis Galton, Alexander
neos como Francis Galton, Alexander Lacassagne e Lacassagne and Edmund Du Cane, and their impact
Edmund Du Cane, e seus impactos nas disciplinas on the scientific disciplines of Penal Law, Crimi-
científicas do Direito Penal, Criminologia e Psi- nology and Psychiatry are dissected. It is concluded
quiatria são dissecados. Conclui-se que buscar uma that seeking to ease the means with which society
facilitação dos meios usados pela sociedade para employs in order to repress and prevent criminal

* Essa é a versão traduzida do inglês de uma aula dada na Faculdade de Medicina de Ancona em
27 de janeiro de 2010, publicada originalmente em: MARCHETTI, Paolo. The mark of Cain: the
search of the criminalman between medicine and law. In: Giornale di storia costituzionale, n. 21,
v. I (2011). Tradução de Thales Benassi, Acadêmico do curso de Direito da Universidade Federal
de Santa Catarina. E-mail: benassithales@gmail.com. Revisão de Diego Nunes, Professor Adjun-
to no Departamento de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, colíder do grupo de
pesquisa Ius Commune em história da cultura jurídica (UFSC/CNPq), doutor em Ciências Jurí-
dicas (currículo História do Direito) pela Universidade de Macerata (Itália).
** Professor Catedrático de História do Direito na Universidade de Teramo (Itália).
67
Paolo Marchetti
reprimir e prevenir o comportamento criminoso behaviour making use of biological explanations
pelo meio biológico abre portas desconfortáveis can open uncomfortable doors to disturbing simpli-
para simplificações perturbadoras. fications.
Palavras-chave: História do Direito Penal; Crimi- Keywords: History of Criminal Law; Criminology;
nologia; Cesare Lombroso; Criminoso Nato. Cesare Lombroso; Born Criminal.

1. Às vezes, para prevermos o futuro, não é necessário consultar uma bola de


cristal, você só precisa ler um bom livro de ficção científica. Nem sempre a imagi-
nação do autor nos dá uma imagem clara do nosso destino, mas é também inegável
a incrível capacidade que alguns autores possuem de retratar problemas que só
surgirão anos no futuro.
Pois bem, baseando-me nessa declarada fé na ficção científica, começo minha
aula relatando para você duas histórias (uma delas possuindo uma adaptação cine-
matográfica, lançada em 2002) que, de certa maneira, são sobre o tema que hoje
gostaria de abordar.
A primeira (transformada em filme por Steven Spielberg) é Minority Report
(DICK, 2002). Na verdade, o filme difere bastante da trama do livro de Philip K.
Dick, escrito em 1956, mas o cerne da questão é o mesmo. Ambas as obras tratam
de um futuro hipotético onde a humanidade busca se livrar de assassinatos e outros
crimes hediondos por meio de um sistema chamado “Pré-Crime”. Por meio das
premonições de três pessoas, possuidoras de percepção extra sensorial, a habilidade
de prever eventos futuros (os “precogs”, ou pré-cognitivos), a polícia se vê capaz de
prevenir assassinatos antes que aconteçam, prendendo os futuros culpados. Em
outras palavras, a detenção, a condenação e a punição subsequente acontecem antes
da ofensa ser cometida. “Imagine um mundo sem assassinatos”, diz um comercial
do Pré-Crime. Mas o sistema, por vários motivos, não é consenso popular. Suspei-
tava-se que ele possuía falhas. Por isso, o capitão John Anderton, chefe do Pré-
Crime (um extraordinário Tom Cruise no filme), se envolve numa questão – na
verdade uma conspiração que busca incriminá-lo – que o vê revelado pelos precogs
como um futuro assassino. Não te contarei toda a história. Vou me limitar a salien-
tar que o título “Minority Report” se refere à eventualidade que as previsões dos
três precogs não estão sempre de acordo. Uma falha, portanto, que abre o futuro

68
A marca de Caim
mais uma vez para o horizonte da possibilidade, ao invés de trancá-lo num percur-
so inescapável. Além da diferente trama, o filme e o livro são unidos por uma cons-
tante: a consciência de que prever um ato humano, não importa quais os meios que
com os quais essa previsão foi adquirida, não é uma ciência exata. Por sinal, no
livro de Dick, ao fim, o Capitão Anderton frustra a conspiração, sob o custo de ser
banido do planeta Terra. No filme de Spielberg, o heroico Tom Cruise não apenas
desmantela a conspiração, mas também – após contribuir para a demolição do Pré-
Crime – reconstrói sua família e tem um segundo filho, após o primeiro ter desapa-
recido sem deixar rastros. Mas o que você esperava? Hollywood clama por seus
finais felizes.
O segundo livro que gostaria de comentar é “A Philosophical Investigation”, de
Philip Kerr (KERR, 1992). O livro, escrito em 1992, descreve uma sociedade não
distante da nossa; o ano é 2013. Por meio de pesquisa neurocientífica, esta socieda-
de, prevê Kerr, atinge uma incrível descoberta: uma anomalia cerebral específica é a
raiz do comportamento violento e agressivo, especificamente nos homens. Com
base nessa observação, o governo britânico inicia um programa que tem como
acrônimo L.O.M.B.R.O.S.O. (o nome de um famoso psiquiatra italiano, morto há
mais de um século, de quem falarei mais em breve). Decifrado, este acrônimo signi-
fica “Localização de ressonâncias cerebrais medulares incentivadoras da Ortopraxia
Social” (isto é, incentivadoras de bom comportamento). Por meio de um Tomógra-
fo de Emissão de Prótons (a máquina de diagnóstico chamada de PET), o programa
é capaz de detectar quais homens não possuem o “Núcleo Ventro-Medial” (VNM)
que age como inibidor ao “Núcleo Dismófico-Sexual” (NSD), uma área do cérebro
responsável pela agressão masculina. Colocações estas extremamente factíveis, não
concordam? Se vocês não fossem estudantes de Medicina, creio que estariam dis-
postos a pensar que esta é uma situação real. De qualquer forma, tomando como
base uma pesquisa com amostragem de quatro milhões de homens ingleses, é con-
cluído que 0,003% dos homens é VNM-negativo. O programa L.O.M.B.R.O.S.O. é
então direcionado a secretamente alimentar os nomes dessas pessoas à uma base de
dados. Cada indivíduo desse grupo recebe um pseudônimo de uma lista dos autores
da série Penguin Classic, um compilado de grandes obras da literatura que existe
até hoje, publicado pela editora Penguin Books em países anglófonos. A utilidade
desse programa é relacionada à possibilidade de se usar esta base quando um crime
69
Paolo Marchetti
brutal for cometido, limitando o número de possíveis suspeitos. Infelizmente para
os cidadãos ingleses (ou felizmente, dependendo do ponto de vista), o homem que
foi cunhado Wittgenstein (um filósofo que espero que a maioria de vocês conheça,
mesmo que de relance) tem uma grande ideia: depois de retirar seu nome da base
de dados, ele baixa para si todos os nomes ali presentes, e começa a matá-los um a
um. A pessoa responsável pela investigação desse caso, a inspetora-chefe Isadora
“Jake” Jackowicz, trabalhará com afinco para descobrir a identidade do assassino.
No fim, ela ficará fascinada por seu jeito de pensar. Se todos aqueles que se encon-
tram na base do programa L.O.M.B.R.O.S.O. – afirma Joseph Esterhazy, vulgo
Wittgenstein – estão fadados a cometerem crimes brutais por conta de uma anoma-
lia cerebral, por que esperar que eles cometam esses crimes antes de os tornarem
inofensivos à sociedade? Wittgenstein assume que esse é o seu destino, e ele decide
tomar o controle de si mesmo da melhor maneira para a humanidade, ou seja, tor-
nando-se um assassino de futuros assassinos. Mesmo nesse caso, o livro acaba sem
dar ao leitor esperança para o futuro da iniciativa. O Programa L.O.M.B.R.O.S.O. só
é atrasado por esse incidente, aguardando a descoberta de mais efetivas maneiras de
proteger o sistema, e a segurança e segredo dos dados adquiridos. De qualquer for-
ma o programa, como um repórter relata nas últimas páginas do livro, não é um
projeto de apenas uma nação. É apenas parte de uma estratégia política da Comu-
nidade Europeia. E a decisão de prosseguir com o programa foi aprovada e ratifi-
cada por todos os estados-membros do Parlamento europeu. A introdução experi-
mental na Inglaterra pode ser considerada apenas um capricho da sorte.

2. Bom, terminamos com a ficção científica. Passo agora para a ciência. A dis-
tância, como verão, não é tão longa, pelo menos em relação ao livro de Kerr.
Entre as décadas de 80 e 90 do último século, um neurocientista renomado
chamado Benjamin Libet, enquanto estudava a relação temporal que existe entre a
intenção de se mover e a ativação cerebral necessária para tanto, descreveu como a
atividade cerebral no córtex motor suplementar, envolvida na preparação para o
movimento (o chamado “Potencial de prontidão) precede por algumas centenas de
milissegundos a consciência da vontade de se mover (LIBET, GLEASON, et al.,
1983). Os experimentos de Libet, realizados com o uso de um eletroencefalógrafo
(isso porque instrumentos de diagnóstico baseados em neuroimaging ainda não
70
A marca de Caim
existiam), eram muito simples. Foi pedido às cobaias que indicassem, apertando
um botão, o exato momento em que a decisão sobre a escolha dentre algumas ima-
gens foi feita. O fato de que, como acabei de dizer, o potencial de prontidão prece-
deu por algumas centenas de milissegundos a sensação de vontade levou Libet a
afirmar que a vontade consciente não possui um papel central no comportamento
humano, tanto quanto processos cerebrais acontecem de certa forma antes da esco-
lha de agir de tal maneira. Portanto, comportamentos seriam causados pelo cére-
bro, e não pela vontade da pessoa.
Recentemente, os experimentos de Libet foram reiniciados por alguns cientistas,
que com certeza usaram técnicas de análise mais sofisticadas. John-Dylan Haynes,
por exemplo, se manteve nesse caminho, utilizando ressonância magnética funcio-
nal. Corrigindo algumas imperfeições nos testes de Libet, Haynes e outros pesqui-
sadores mostraram que a informação preditiva relacionada à escolha de um movi-
mento já está presente no córtex pré-frontal dez segundos antes do indivíduo ter
consciência dele (HAYNES, SOON, et al., 2008). Claro, o autor do experimento
reconhece a que a complexidade destas decisões não é comparável com aquelas da
vida real. No laboratório, você precisa fazer escolhas extremamente fáceis e limita-
das. Na vida real, ao contrário, algumas decisões possuem um nível enorme de
complexidade, infinitamente maior em comparação com apertar um botão, por
causa da miríade de razões que todos devem avaliar antes de escolher um caminho
ao invés de outro (por exemplo: vou estudar Medicina ou Direito? Vou me casar ou
não? Vou ter um filho ou não?). De qualquer forma, de acordo com Haynes, seus
experimentos teriam o potencial de falsificar a crença do senso comum de que, no
momento em que fazemos uma escolha, o resultado é livre e não inteiramente deci-
dido pela atividade cerebral.

3. Parto agora do campo mais familiar a vocês, a Medicina, para um terreno


mais favorável a mim, o Direito.
Como vocês bem viram, tanto os livros de Dick e Kerr quanto os experimentos
de Libet e Haynes orbitam o questionamento: seriam as ações humanas (boas ou
más) fruto do livre-arbítrio ou, por algum outro motivo (por exemplo, uma certa
estrutura cerebral), estariam elas contidas em nosso destino de antemão? Em ou-

71
Paolo Marchetti
tras palavras, por exemplo, tenho um filho, exerço um trabalho ou cometo um as-
salto, por que escolhi fazer isso, ou por que já fora decidido que essas seriam as
escolhas que eu faria na minha vida? A maioria de vocês pode protestar: isso não
passa de uma fútil disputa filosófica. Afinal, qual o sentido de me interessar em
saber se eu escolho fazer o que quero, ou se sou obrigado a fazê-lo por motivos ex-
ternos? Eu poderia responder que muitas religiões (incluindo aquela que estou
certo que alguns de vocês seguem, o Catolicismo) são fundadas sob o pressuposto
de que todos podem escolher entre o bem e o mal. Se essa escolha não fosse feita de
livre e espontânea vontade, a punição do réu ou a recompensa da proximidade
eterna de Deus não fariam sentido. Seria apenas questão de jogar uma moeda, cara
ou coroa. Cara, vá para o paraíso. Coroa, para o inferno. Mas, é sabido, religião e
filosofia tem uma relação familiar próxima. Elas parecem ser idealizadas para que
vivamos num mundo abstrato. De qualquer forma, se uma descoberta científica
desafiasse algumas opiniões religiosas, o dano causado à humanidade por tal acon-
tecimento não seria expressivo. Já aconteceu antes. Pense em Galileo Galilei ou
Charles Darwin. Porém, há outros campos da vida social que poderiam ser estre-
mecidos por uma irrefutável descoberta da predestinação em nossas vidas. Por
exemplo, o campo do Direito Penal.
Alguns de vocês, provavelmente, deixarão essa Universidade com uma especia-
lização na psiquiatria. E não é impossível que, durante suas carreiras, vocês sejam
convocados por um juiz para realizar um laudo psiquiátrico sobre a capacidade
mental do autor de um crime. Mas por que o Direito Penal necessita de um psiquia-
tra para verificar se uma pessoa é compos sui, como eles dizem em Latim? O Direito
Penal a precisa pelo simples fato de que a aplicação de uma punição (nos sistemas
penais de todos os países do mundo) é baseada na condição de que seja lá quem
cometeu um crime o fez de livre e espontânea vontade. Sem livre arbítrio não há
punição. Você pode ser mandado para uma instituição psiquiátrica. Mas isso não é
realmente uma pena, se aproxima mais de uma regra administrativa, com o objeti-
vo de curar o sujeito e proteger a segurança da sociedade. Uma vez que o perigo
social é findado, também acabam as limitações impostas. Caso o juiz considere,
com base em exame por profissional, que uma pessoa não possui a mente sã (e,
portanto, não age de livre escolha), deve absolvê-la.
Tendo dito isso, alguns de vocês poderiam perguntar se alguma descoberta cien-
72
A marca de Caim
tífica recente, no campo do comportamento humano, teve repercussões no campo
do Direito Penal. Em relação à Europa, diria nem tanto, talvez um pouco mais nos
Estados Unidos. De volta à Europa, não houve nada extraordinário. Não obstante,
eu quero mencionar para vocês o pioneiro julgamento no Tribunal de Recursos do
júri em Triste que, em setembro de 2009, mitigou uma sentença (reforço, “miti-
gou”, não “absolveu”) de uma pessoa que tinha sido condenada por assassinato1.
Essa mitigação foi, em parte, concedida porque um exame psiquiátrico do réu, rea-
lizado pela defesa, revelou um perfil cromossômico distorcido, capaz de induzir em
certas circunstâncias uma pessoa à violência. Particularmente, “ser o portador do
alelo de baixa intensidade 15 para o gene MAOA (MAOA-L) pode fazer do sujeito
– reconheceu o Tribunal – mais suscetível a expressar sua agressividade caso pro-
vocado ou excluído socialmente”. Mesmo que, é preciso ser dito, a sentença não
afirme a existência de uma conexão direta entre o perfil genético cerebral e o come-
timento de um crime. Ela fala apenas do reconhecimento de tal déficit como ele-
mento de causa da insanidade mental, fornecido pelo Código Penal italiano, e esta-
belecido com antecedência apenas por testes psicológicos. O exame por si só, no
qual a sentença foi baseada, usa o indicador genético como um de muitos meios
adotados para que o perito alcançasse sua conclusão (e vejamos aqui que esta afir-
mação está muito longe de declarar “eis aqui o gene assassino” (LAVAZZA e
SAMMICHELI, 2010)). De qualquer forma, o julgamento causou certo frisson, para
além da academia (INIZAN, 2009; AHUJA, 2009; FERESIN, 2009; FAZZINO,
2009; RAINE e YANG, 2006).
Mesmo que sem relação direta com essa discussão, gostaria de mencionar a pes-
quisa de Adrian Raine, segundo quem, com base numa grande quantidade de dados
colhidos nas prisões que visitou, dentre os cérebros de criminosos e psicopatas, e
aqueles do grupo de controle sem condenações prévias, afirma que existem marca-
das diferenças estruturais e funcionais (RAINE e YANG, 2006; RAINE, 2008).

4. Bom, uma pergunta que pode ser feita agora é se a medicina tem se interessa-
do nessa pesquisa apenas recentemente, ou se ela já trilhou esse caminho há muito
tempo.

1. Tribunal de Recursos do júri em Trieste, 01.10.2009, Rivista penale, 2010, 1, ff. 70-75.
73
Paolo Marchetti
De uma certa forma, a ideia de que a “biografia” de cada criminoso já vem escri-
ta previamente, e de certas maneiras pode ser lida antes de ser concretizada, não é
nova. A crença de que certas características do corpo são uma direta expressão das
qualidades morais de cada pessoa já foi expressada, dando aqui apenas dois exem-
plos de muitos, nas teorias fisionômicas de Johan Kaspar Lavater (LAVATER,
1772) (na segunda metade do Século XVIII) e pelo frenologista Franz Joseph Gall,
que, algumas décadas depois, se interessou pelo cérebro e suas funções (GALL e
SPURZHEIM, 1810). Porém, talvez, tenha sido no fim do Século XIX, com o médi-
co veronês Cesare Lombroso, que essas teorias assumiram o apogeu de sua visibili-
dade científica. No geral, elas se interseccionaram com um ramo do saber, o jurídi-
co, que demandou a transferência de seus resultados para o campo da repressão da
criminalidade. Agora você entende por que Philip Kerr invocou o nome de Lom-
broso para imaginar um programa capaz de mostrar as características mentais cul-
padas pelo crime.
A razão pela qual Lombroso entrou na história está conectada à sua insistente
busca pelas características físicas que tornariam possível a detecção de um suspeito
antes que este cometa um crime (o chamado criminoso nato). Se o nome deste ori-
ginal médico e psiquiatra (que viveu há mais de um século) não estivesse indissolu-
velmente ligado a estes estudos, é bem provável que seu destino seria ser confinado
apenas a um conhecimento muito especializado. Mesmo que não possamos omitir
o fato de que os interesses de Lombroso eram legião: da pesquisa sobre a pelagra
(uma doença que flagelou o interior da Itália na época) ao trabalho com medicina
homeopática, do estudo da hipnose ao dos fenômenos espirituais e mediúnicos. As
teorias lombrosianas relacionadas a “o homem delinquente” (título de sua obra
mais famosa, publicada pela primeira vez em 1876, com mais quatro outras edições
subsequentes (LOMBROSO, 1876)) são notórias. Farei aqui uma tentativa de resu-
mi-las2.
Lombroso estava convencido de que os criminosos (ou ao menos a maioria de-
les) eram um tipo de espécie antropológica diferente daquela representada pelas
pessoas “normais” que viviam nos países civilizados. Seres selvagens, mais próxi-

2. Sobre as teorias de Lombroso, veja (GIBSON, 2002) (FRIGESSI, 2009); para uma visão geral ver
(MONTALDO e TAPPERO, 2009).
74
A marca de Caim
mos do estado natural do que das diretrizes comportamentais da civilização ociden-
tal. E como a antropologia do tempo estava interessada em demonstrar as diferen-
ças físicas que caracterizavam as pessoas pertencentes às diferentes partes da terra
(com um desenvolvimento social, econômico e cultural diferentes), da mesma ma-
neira, com base nos mesmos pressupostos, não seria impossível – Lombroso afir-
mou – apontar os traços físicos que diferenciavam, na Europa e nas outras nações
civilizadas do mundo, um criminoso de uma pessoa normal.
A busca de Lombroso, claramente, não veio do nada. No campo da ciência psi-
quiátrica do período, por exemplo, havia discussões se portadores de anomalias
mentais extraordinárias eram realmente humanos, e não algo mais próximo do
reino animal (VIRGILIO, 1875). Vários outros estudos tentaram apontar caracte-
rísticas físicas e fisiológicas que poderiam ser usadas para diferenciar loucos e sãos.
Deste ponto de vista, poderia ser produzido um uso superficial da teoria da evo-
lução de Darwin em apoio a essa hipótese. Então, de acordo com a lei biogenética
de Ernest Haekel (um dos profetas do Darwinismo), a ontogênese (ou seja, o inteiro
composto pelas fases de desenvolvimento da vida humana, assim como dos outros
seres vivos) reproduzia a filogênese (ou seja, a história do desenvolvimento evolu-
cionário dos seres vivos da época em que surgiram na terra até o tempo atual). Por
conseguinte, se uma pessoa, do momento de sua concepção até seu nascimento,
voltasse pelos trilhos da fisiologia dos seres vivos até seu último estágio humano,
seria impossível descartar a possibilidade de que uma parada no crescimento fetal
levaria ao nascimento de uma pessoa pertencente a um estágio diferente da civiliza-
ção comparado com aquele que outros de sua época atingiram. Uma pessoa poderia
conseguir se integrar em algumas sociedades primitivas da África ou da Austrália,
mas seria totalmente incapaz de seguir as regras da vida num país civilizado
(MAUDSLEY, 1870; MORSELLI, 1875).
Afinal, a mais original operação de Lombroso foi a introdução dos criminosos
nesse tipo de matéria, criando uma certa “patologização” do crime (MARCHETTI,
2009). De acordo com ele, o criminoso também era um selvagem, nascido numa
sociedade civilizada; portanto, como um selvagem ele se comportaria de qualquer
maneira. Então, o único problema seria detectar os traços antropológicos que ca-
racterizariam esse tipo de homem, com o intuito de neutralizá-lo antes que este
pudesse causar muito dano à sociedade onde ele vive.
75
Paolo Marchetti
Lombroso expressou sua teoria de modo absolutamente radical, pelo menos nas
duas primeiras edições de O homem delinquente, considerando todo criminoso
como pertencente a este tipo de indivíduo necessariamente relegado ao crime. De-
pois, com base nas críticas, que também vieram de seus mais próximos amigos e
colaboradores, como o advogado e professor de Direito Penal Enrico Ferri, Lom-
broso moderou sua posição. Ele abriu espaço também para a figura do criminoso
ocasional (isto é, da pessoa normal que, em circunstâncias particulares, poderia
cometer um único crime) e para o estudo de causas sociais (e não só das bioantro-
pológicas) do crime.
Sobre as causas sociais, foi precisamente nesses anos que uma disputa surgiu,
dentro da ciência criminológica, que até os dias de hoje ainda não encontrou solu-
ção exata. Seriam as pessoas levadas ao crime por razões ligadas à organização soci-
al, ou, pelo contrário, seriam elas movidas por uma força interior, a qual é impossí-
vel de resistir? Isso significa que optar por uma ou outra destas teorias envolve dife-
rentes consequências no nível da luta contra a criminalidade. No primeiro caso,
para derrotar o crime, precisamos mudar, pelo menos parcialmente, algumas carac-
terísticas da sociedade. No segundo, o crime pode ser derrotado em um combate
corpo a corpo com o criminoso, um sujeito completamente insensível a toda trans-
formação do meio em que vive3. Por sinal, preciso dizer que teorias mistas (ou seja,
aquelas que levam em conta as influências de ambos os fatores) aparentam ser hoje
muito populares no campo da criminologia4.
Os mais resolutos apoiadores da etiologia social do crime, naquela época, eram
aqueles autores conectados aos projetos políticos de transformação da sociedade,
como Fillippo Turati (um dos fundadores do Partido Socialista Italiano). Turati, em
seu livro “O Crime e a questão social” (publicado em 1883 (TURATI, 1883)) tentou
elucidar a enorme desigualdade na distribuição das riquezas, particular da socieda-
de burguesa, que levava as classes baixas a cometerem crimes com o único objetivo
de sobreviver. Nesse contexto, a conquista de uma sociedade fundada em princípios
socialistas iria causar uma forte queda no número de crimes cometidos. Mas tam-

3. Com relação a estas diferentes visões sobre o campo da criminologia, veja (BECKER e
WETZELL, 2006).
4. Veja (MAROTTA, 2004) e (VINCIGUERRA, 2005).
76
A marca de Caim
bém aqueles que não ligavam o conflito contra o crime à palingenesia (lei da reen-
carnação) da sociedade burguesa, como Enrico Ferri (que também se uniu ao Parti-
do Socialista nos últimos anos do Século XIX), que tentou conectar a dimensão da
criminalidade à maneira com que a sociedade da época regulava suas próprias rela-
ções sociais, políticas e econômicas.
O que foi dito por Ferri (num livro famosíssimo escrito em 1881 e intitulado em
sua primeira edição Novos Horizontes do Direito e do Processo Penal, e subse-
quentemente Sociologia Criminal (FERRI, 1881)) foi que caso alguns daqueles seto-
res da sociedade fossem reformados, talvez o crime não fosse erradicado definiti-
vamente, mas permanentemente seria ele limitado a uma dimensão socialmente
aceitável.
Lombroso, como mencionei mais cedo, levou em conta essas críticas (ao menos
aquelas postas por Ferri). Ele também considerou outras objeções em relação a
impossibilidade de se explicar todos os fenômenos criminais por meio da hipótese
de reversão atávica. Portanto, para findar essa conexão entre o crime e a doença
mental, ele fez uso de outras categorias psiquiátricas do tempo, como a insanidade
moral (LOMBROSO, 1884) ou a epilepsia (LOMBROSO, 1889). De qualquer forma,
Lombroso nunca cessou seu olhar às características antropológicas do criminoso
nato. De fato, em certo momento, ele pensou que tinha descoberto numa malfor-
mação do crânio, a “covinha occipital medial” (normalmente presente em alguns
macacos e lêmures), uma das mais importantes características físicas, capaz de pre-
ver a carreira criminosa de uma pessoa.
Os estudos de Lombroso, obviamente, não eram os únicos sobre o assunto na
época. O caminho do psiquiatra veronês foi seguido por muitos pesquisadores.
Querem um exemplo? Listarei agora uma curta seleção de trabalhos, dentre uma
infinidade de obras sobre este assunto específico, que fizeram aparições em uma
revista científica fundada pelo próprio Lombroso em 1880 e intitulada “Achivio di
psichiatria”, largamente prestigiada e geralmente considerada de grande valor cien-
tífico. Vejamos seus títulos: Perracchia, O Andar de Criminosos e Epilépticos
(PERRACHIA, 1887); Ottolenghi, A Mudança de Materiais (ou seja, fezes e urina)
nos Criminosos Natos (OTTOLENGHI, 1888); Ottolenghi de novo, O Olfato dos
Criminosos (OTTOLENGHI, 1888), e mais uma vez, O Paladar dos Criminosos
quando Comparados aos Normais (OTTOLENGHI, 1889); Gradenigo, A Audição
77
Paolo Marchetti
nos Criminosos (GRANDENIGO, 1889); Santangelo Spoto, Polidactilia e Degene-
ração (SANTANGELO SPOTO, 1894); Carrara, Sobre o Desenvolvimento do Ter-
ceiro Molar nos Criminosos (CARRARA, 1895); Ascoli, Sobre o Desenvolvimento
do Dente do Ciso em Criminosos (ASCOLI, 1896); De Sanctis (um dos poucos
médicos italianos mencionados por Sigmund Freud), Sonhos nos Criminosos (DE
SACTIS, 1900); Battistelli, O Sistema Pilífero nos Homens Normais e Degenerados
(BATTISTELLI, 1900); Gay, A Morfologia das Unhas no Degenerado (GAY, 1905).
A teoria do criminoso nato de Lombroso, como você pode imaginar, encontrou
forte resistência. Primeiramente de muitos juristas, não só na Itália5. Caso fosse
aceito que uma pessoa era obrigada, por sua própria estrutura física, a se comportar
como criminoso, toda a tradicional edificação penal ruiria. Um juiz, de frente a um
réu, apenas precisaria verificar em seu corpo a existência das marcas que necessari-
amente o destinavam à uma vida de crime. Uma vez estabelecida essa presença, a
única coisa a se fazer seria decidir qual o melhor caminho para neutralizar o perigo
social representado pela pessoa. Desta maneira, todos os princípios sob os quais a
civilização jurídica ocidental fora construída, pelo menos de Beccaria em diante,
estariam deletados. Primeiramente aquela necessária relação entre a severidade da
punição e a gravidade do crime. Afinal, se uma pessoa fosse necessariamente desti-
nada a desobedecer a lei, por que esperar que ela cometesse um segundo crime?
Seria melhor torná-la inofensiva de uma vez, e pelo maior tempo possível.
O fato de que a maior parte da ciência jurídica italiana era contrária a estas idei-
as foi mostrado pela total ausência das sugestões de Lombroso e sua escola (chama-
da Escola Positiva de Direito Penal) no primeiro código penal da Itália unificada em
1889.
Lombroso também sofreu fortes ataques de colegas de disciplina, como o médi-
co francês Alexander Lacassagne. De fato, ao redor de Lacassagne, vários pesquisa-
dores transalpinos que firmemente rejeitavam a teoria Lombrosiana do criminoso
nato e a existência do estigma antropológico da tendência criminosa se juntaram.
Em particular, na ocasião do segundo Congresso Internacional da Antropologia
Criminal, sediado em Paris em 1889 (e também no próximo, em Bruxelas em
1892), Lacassagne e seus seguidores preferiram uma explicação conectada ao meio

5. Veja (SBRICCOLI, 1974-1975), (SBRICCOLI, 1987) e (SBRICCOLI, 1990).


78
A marca de Caim
social no qual uma pessoa desenvolve sua personalidade ao invés de uma explicação
bioantropológica para as causas do crime. Mesmo assim, caso estes autores sejam
lidos nos dias de hoje, percebemos que os tópicos que distinguiam suas reflexões
daquelas de Lombroso não eram muitos (MUCCHIELLI, 1994). Eles acreditavam
(aplicando uma visão neolamarckiana da transmissão hereditária de características)
que os traços da personalidade socialmente adquiridos eram passados de geração
em geração. Portanto, o hábito de se prostituir não só poderia ser passado de mãe
para filha, por exemplo, mas também por herança. E partindo deste ponto de vista,
precisamos admitir que as diferenças dentre ele e aquilo que Lombroso pregava
sobre criminosos natos não eram muitas, ao menos no nível de atos criminosos. A
hereditariedade das características socialmente adquiridas fazia de uma pessoa um
criminoso desde o nascimento. E essa tendência era a razão pela qual esses sujeitos
deveriam ser tornados inofensivos à sociedade o mais rápido possível. Afinal, real-
mente é pouco relevante a falta de fé destes pesquisadores na covinha occipital co-
mo indicadora de tendência criminal, já que a maioria dos cientistas da época com-
partilhavam dessa falta.
De qualquer forma, a tentativa de Lombroso de encontrar sinais físicos que po-
deriam mostrar a tendência criminosa de uma pessoa não foi uma tentativa isolada
na Europa. Na Inglaterra, por exemplo, duas eminentes figuras da Era Vitoriana,
Edmund Du Cane (presidente da Comissão Carcerária e diretor do Sistema Prisio-
nal) e Francis Galton (primo de Charles Darwin, antropólogo, estatístico e futuro
teórico da eugenia) seguiram, contemporaneamente, o mesmo caminho.
Du Cane, enquanto trabalhava em um censo da população carcerária, conven-
ceu a si mesmo de que cada categoria de crime corresponderia a uma fisionomia
específica. Portanto, um rosto ladrão, um rosto assassino, um rosto estuprador, daí
em diante, existiriam. Portanto, tirar fotos de cada perfil criminal permitiria não
apenas a detecção do culpado em meio a vários suspeitos, mas também tomar o
controle da situação antes mesmo do crime acontecer, tomando conta daqueles que
manifestassem comportamento desviado socialmente.
Em 1877, Du Cane pediu para Francis Galton examinar um conjunto de fotos de
condenados, para estabelecer quais rostos eram associados a quais crimes (Galton,
1908, cap. 18). Revisando essas fotos, Galton pensou em usar a recém descoberta
tecnologia da fotografia para demonstrar mais claramente as características especí-
79
Paolo Marchetti
ficas de cada categoria de criminoso. Então, ele expôs várias fotos de culpados do
mesmo crime em uma placa, tentando evidenciar, em uma única foto, as constantes
fisionômicas de cada categoria criminosa. Essa técnica, chamada de “retratamento
composto”, não rendeu os resultados esperados.
Galton, em 1878, apresentando seus resultados ao Instituto Antropológico de
Londres, foi forçado a admitir que a imagem do “tipo criminoso”, procurada com
tanta abnegação, se manteve um tanto impossível de se achar. As marcas de Caim -
e esta foi a conclusão de Galton – eram muitas, logo, as características particulares
de cada criminoso desapareceram ao invés de se tornarem mais fortes com o retra-
tamento composto.
Francis Galton é hoje principalmente lembrado, além de ser o criador da teoria
eugênica, também como aquele que aperfeiçoou um meio quase infalível de identi-
ficação de pessoas, a datiloscopia (papiloscopia no Brasil) (GALTON, 1892; GAL-
TON, 1895). O estudo de sistemas de identificação, de qualquer forma, se encon-
trava em estado avançado na época6. Antes de Galton, o pesquisador francês Al-
phonse Bertillon tinha descoberto que algumas proporções do corpo humano per-
mitiriam a segura distinção de uma pessoa de outra. Bertillon confessou que come-
çou a se interessar por tais estudos porque a opinião pública e a classe política da
França, por alguns anos, apresentavam preocupação com uma crescente dificulda-
de na identificação dos criminosos mais perigosos. Era costume dos criminosos que
iam a julgamento assumirem falsas identidades, com o objetivo de se esquivar das
graves consequências da reincidência (MARCHETTI, 2008). Com relação a isso,
não podemos esquecer que, em 1885, na França, uma lei foi promulgada que adici-
onava o exílio, como uma medida repressiva suplementar, para aqueles que fossem
sentenciados por crimes de uma seriedade particular (TANGUY, 2006).
O método elaborado por Bertillon (e por esse motivo batizado bertillonagem)
foi testado por alguns países ao redor do mundo, com bons resultados. Porém, cer-
tas imperfeições basais intrínsecas ao método de tomar as medidas do corpo leva-
ram, em alguns e por vezes sensacionais casos, ao cometimento de alguns erros. Por
este motivo, o método de Bertillon foi substituído pela técnica das impressões digi-
tais após alguns anos.

6. Veja (COLE, 2001) e (BEAVAN, 2001).


80
A marca de Caim
Então Francis Galton, partindo do desejo de aprisionar criminosos antes que
pudessem cometer um crime, proveu a todas as forças policiais do mundo um ins-
trumento indispensável de identificação, capaz de atribuir a cada pessoa sua própria
identidade e, não muito tempo depois, até mesmo capaz de constituir prova irrefu-
tável da culpa de um suspeito. Mas, como sabemos, muitas vezes assim opera a
ciência: partindo de premissas erradas, chega-se aos resultados corretos.
Bom, nós começamos da procura por um método de detectar o culpado de um
crime antes dele ser cometidos e chegamos agora às impressões digitais, o que não
nos surpreende. Como Robert Sommer, um famoso estudioso do fim do século XIX
disse, os estudos sobre métodos de identificação pessoal e aqueles relacionados às
marcas distintivas do criminoso nato floresceram das mesmas ideias (SOMMER,
1904).

5. O que podemos concluir ao fim dessa aula? Muitos cientistas e criminólogos


se perguntam, em nosso tempo, com base nos mais recentes resultados de certos
experimentos, se, afinal, Lombroso estaria certo. Quero dizer, se a hipótese do cri-
minoso nato estava correta, mas os meios de seu tempo não permitiam sua valida-
ção no plano científico. Eu deixo a vocês, futuros médicos, a formação de uma opi-
nião sobre esse assunto. Eu diria que esta não é a pergunta mais interessante a se
fazer. Proponho, então, outra: Por que essa aspiração à descoberta das marcas de-
monstrativas do criminoso reaparece em circunstâncias históricas particulares? Em
outras palavras, por que esse sonho acontece de novo na presença das mesmas cara-
terísticas temporais (como a imposição de mudanças socias, processos de transfor-
mação em sistemas econômicos, grande dificuldade na absorção da incontrolável
força de trabalho disponível, grandes saltos populacionais, contestações ideológicas
radicais que ameaçam a estabilidade dos sistemas políticos)? Parece, para mim, que
nestas circunstâncias particulares, escolhemos o atalho do criminoso nato porque
consideramos muito difícil colocar em prática uma repressão penal encaixada nos
direitos e garantias reconhecidos para cada pessoa. Mas é precisamente nestes casos
em que o sonho de detectar o “homem criminoso”, caso não contido por um traba-
lho lógico adequado, pode se tornar, para muitos, um verdadeiro pesadelo.
Eu sei, esse assunto apresentado desta maneira soa muito vago, mas o tempo

81
Paolo Marchetti
que me foi permitido se acabou. E eu poderia, com ele, ministrar toda uma outra
aula.

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84
A FUNÇÃO DA “PERSONALIDADE DO
ESTADO” NA ELABORAÇÃO PENAL DO
FASCISMO ITALIANO: LAESA MAIESTAS E
TECNICISMO-JURÍDICO NO CÓDIGO
ROCCO (1930)
THE FUNCTION OF "STATE
PERSONALITY" IN THE CRIMINAL ELABORATION
OF ITALIAN FASCISM: LAESA MAIESTAS AND THE
TECHNICAL-LEGAL SCHOOL IN THE ROCCO CODE (1930)

4
Arno Dal Ri Jr. *
Kristal Moreira Gouveia **

Resumo: O presente artigo trabalha a função da Abstract: This article studies the role of the legal
personalidade jurídica atribuída ao Estado no personality attributed to the State in the Italian
Código Penal Italiano de 1930 para a instituição de Penal Code of 1930 to the institution of authoritari-
categorias autoritárias e totalizantes. Para isso, an and totalizing categories. To this end, it initially
busca inicialmente localizar a importância do seeks to locate the importance of the Code in the
Código no itinerário fascista de imposição de po- fascist itinerary of power imposition. We analyze
der. Analisa-se quais funções do direito penal foram which functions of criminal law were flexibilized,
flexibilizadas, ignoradas ou atribuídas. Sobre a ignored or attributed. Regarding the specific cate-
categoria específica da personalidade do Estado, gory of the personality of the State, we seek to frame

* Professor de Teoria e História do Direito Internacional na Universidade Federal de Santa Cata-


rina - Brasil. Líder do Ius Commune – Grupo de Pesquisa em História da Cultura Jurídica
(UFSC). Doutor em Direito pela Università Luigi Bocconi (Milão, Itália).
** Professora de História do Direito Constitucional na Centro Universitário Paraíso do Ceará -
Brasil. Líder do Iure Popolum – Grupo de Pesquisa em História da Cultura Jurídica (UniFAP-
CE). Mestra em Teoria e História do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina.
85
Arno Dal Ri Jr. · Kristal Moreira Gouveia
busca-se enquadrar o Código no debate doutriná- the Code in the doctrinary debate, understanding in
rio, compreendendo em especial que institutos particular which institutes remained from the
remanesceram da escola Positiva, localizar o germe Positive school, locating the germ that was refor-
que foi reformulado para servir como fundamento mulated to serve as the theoretical basis of a central-
teórico de uma centralização de poder e protago- ization of power and protagonism of the figure of
nismo da figura do Estado como sujeito de direitos the State as a subject of rights and protection.
e proteção. Através da ressignificação da expressão Through the resignification of the expression "laesa
laesa maiestas, busca-se focar na relação entre a maiestas", we focus the relationship between the
nova figura do Estado no contexto do Código Penal new figure of the State in the context of the Penal
e o deslocamento de tutela de reconhecimento de Code and the displacement of guardianship of
bens jurídicos posterior, em especial no que se recognition of subsequent legal assets, in particular
refere à virada punitivista, que coloca o indivíduo approaching the punitivist turn, that puts the indi-
como alvo e possível ameaça e não mais como vidual as a target and possible threat and no longer
sujeito da tutela jurídica. Por fim, analisa-se os as a subject of legal guardianship. Finally, we ana-
institutos maculados de forma mais visível por essa lyze the tainted institutes of the actual Criminal
característica e sua reminiscência na atual legislação Code, those in which where there are in a more
penal italiana. visibly way reminiscences of this characteristic.
Palavras-chave: História do Direito Penal; Tecni- Keywords: Criminal Law History; Technical-legal
cismo Jurídico; Legislação criminal italiana. school; Italian criminal law.

1. A Codificação Penal como Instrumento do Itinerário Fascista


Italiano
A edificação do regime fascista apoiou-se em uma série de movimentos de or-
dem política, social e jurídica na tentativa de tornar totalizante o domínio sobre os
setores da vida dos indivíduos, utilizando-se das instituições como caixas de resso-
nância dos objetivos de um centro de poder total e unificador. São movimentos
que, segundo Emilio Gentile1, caracterizariam o fascismo italiano imposto por Be-

1. Em que pese a divergência doutrinária sobre a atribuição do termo “totalitarismo” ao regime


fascista italiano (muito embora este tenha sido o único dos regimes nacionalistas europeus con-
temporâneos que autodenominou-se totalitário explicitamente), adota-se aqui o conceito de
Emilio Gentile (2008), que visualizando características religiosas no regime, o compreende como
um sistema de “cesarismo totalitário”, que define como: “[...] a charismatic dictatorship integra-
ted in an institutionalized regime structure, based on the single party and on mass organization
and mobilization, in continuous construction to make it consistent with the myth of the totalita-
rian State, consciously adopted as reference model for the organization of the political system,
and actually operating as fundamental code of beliefs and behaviors imposed on botth the indi-
vidual and the masses”. Vide, também, sobre a ciência jurídica italiana no fascismo italiano
86
A função da “personalidade do Estado” na elaboração penal...
nito Mussolini a partir 1924 como uma modalidade peculiar de totalitarismo.
A produção de um sistema de legislação penal que traduzisse a ideologia política
do regime fascista italiano, portanto, fazia parte desse itinerário2, sendo o ordena-
mento jurídico um reflexo dos princípios que alicerçam uma dada ordem política.
Essa passagem do itinerário fascista materializou-se por meio da emanação de um
conjunto normativo, que em sua ramificação penal foi composto por um novo có-
digo de normas substantivas, um código de normas adjetivas e normas extravagan-
tes voltadas à segurança do Estado e à reforma do ordenamento penitenciário3.
Entre essas espécies legislativas, recorta-se substancialmente, para análise no
presente trabalho, o Código Penal. Dois são os motivos que conduzem a essa deli-
mitação. O primeiro é o fato de que, no seu texto original, o código penal de 1930
pode ser visto como uma autêntica expressão do contexto político no qual foi ema-

COSTA (1999, p. 61 ss).


2. É imprescindível compreender o itinerário das mudanças ocorridas na legislação penal para a
compreensão de seu papel no regime. Sobre isso “I lavori preparatori dei condici italiani – uma
bibliografia” (2013): “L’avvento del Fascismo si innestò sulle prospettive di riforma. Con l. 24
dicembre 1925, n. 2260 [→ CP 49, 1], il ministro Alfredo Rocco ottenne per il governo della
facoltà di modificare i codici penale e di procedura penale. A tal fine, fu nominata una
commissione ministeriale, presieduta da Giovanni Appiani, dalla quale nacque un gruppo
ristretto, presieduto dallo stesso ministro. Un primo articolato data alla fine del 1926 [→ CP 43].
Nei primi mesi del 1927 si lavorò al secondo Libro [→ CP 43, 2] e al terzo «Delle
contravvenzioni in ispecie» [→ CP 44, 3]. Nel giugno del 1927 l’articolato [→ CP 44, 1] venne
ancora rivisto e nell'ottobre successivo esso si concretizzò nel progetto presentato alla
commissione ministeriale (senza relazione) [→ CP 45]. Discusso ed elaborato da questa
commissione [→ CP 49, 4.1-4.4] e dagli operatori e cultori del diritto [→ CP 49, 3.1-3.4, CP 50],
il Progetto definitivo [→ CP 49, 5.1.-5.3] fu indirizzato alla commissione parlamentare
nell’ottobre 1929; questa si divise in tre sottocommissioni e lo prese in esame [→ CP 49, 6].
Quindi, dopo un’ultima revisione tecnica, il testo del nuovo Codice penale fu presentato dalla
Relazione del Guardasigilli [→ CP 49, 7] e pubblicato con R.D. 19 ott. 1930, n. 1398 [→ CP 53]:
entrò in vigore il I lug. 1931, quando erano state emanate le disposizioni di coordinamento e
transitorie [→ CP 54]”.
3. Ao conjunto dessas legislações se atribuía o nome “Código Rocco”, passando a referir-se somen-
te ao Código Penal de 1930 apenas a partir das reformas de 1974 e 1989 que aboliram os dois
demais (DAL RI Jr., 2006, p. 227).
87
Arno Dal Ri Jr. · Kristal Moreira Gouveia
nado. Essa era a visão de Alfredo Rocco4, então Ministro da Justiça, cujo nome bati-
zou o referido código. Em sua obra “La trasformazione dello Stato” (1927), Rocco
compreende a lei penal como o ramo do Direito que melhor define os propósitos
do Estado, visão que por si só demonstra ser possível compreender os traços pre-
tendidos pelo regime por meio das escolhas legislativas penais delineadas no Códi-
go.
O segundo motivo é o fato de que o Código Penal de 1930 acabou por sobreviver
às sequenciais revogações das demais legislações supramencionadas a partir da
derrocada do regime, estando atualmente em vigor, mesmo que tenha sofrido di-
versas reformulações, em especial que excluem os institutos mais visivelmente au-
toritários. Ainda assim, é o código em vigor, fato este atribuído a uma série de ra-
zões tanto de cunho político como jurídico5. Não obstante as reformas que retira-
ram e modificaram institutos fascistas, dadas suas indissociáveis raízes o código é
considerado por muitos como uma "lei maculada"6.

4. O significado da legislação penal no contexto de afirmação do Fascismo pode ser visualizado


claramente no discurso de apresentação do esboço final do Codice por Alfredo Rocco (1930), ao
dizer que “dentre os mais distintos monumentos dessa legislação está a reforma legislativa penal,
uma manifestação impositiva do poder do gênio legal italiano, que a nova consciência nacional
criada pela guerra e pelo Fascismo libertou de todos os rastros de ideias estrangeiras e tradições,
direcionando-a em direção a conceitos que são ainda mais originalmente e genuinamente italia-
nos.” (tradução nossa).
5. A curiosa permanência do Código Rocco em vigência não se deve, conforme explica Stephen
Skinner (2011) a uma ausência de projetos para substituí-lo. O autor justifica o fato de nenhuma
das dezenas de projetos apresentados nas décadas do pós-guerra ter sido implementado devido a
uma série de fatores, tais como falta de vontade política, falhas nas propostas, fraqueza das coali-
sões governamentais; Porém atribui significativa importância às crises enfrentadas na Itália em
relação ao combate ao terrorismo e ao crime organizado, momentos políticos em que utilizar-se
de disposições autoritárias do Código – porém sob outra ótica – foi utilitário. A esse respeito,
explica que “in these difficult circumstances it has sometimes been convenient for the authori-
ties to have recourse to some of the stringent, authoritarian, provisions that were still available in
the Rocco Code”.
6. O termo “lei maculada” é tradução livre para a expressão “tainted law”, trazida por Stephen
Skinner (2011, p. 431) para qualificar o Código atual, por ser derivado/estar conectado com um
regime de violência como o fascismo e naturalmente com o contexto e objetivos do regime, que
originaram este código. Nessa perspectiva, mesmo com as alterações, permanecem elementos
88
A função da “personalidade do Estado” na elaboração penal...
Recortada a análise legislativa ao Código Penal de 1930, o Codice Rocco, delimi-
tamos o estudo sobre seus institutos autoritários que materializam uma das caracte-
rísticas da legislação fascista: a atribuição de uma personalidade ao Estado. Traço
marcante das escolhas legislativas feitas na nova conjuntura ordenatória foi a cen-
tralização do poder ao Estado, com o deslocamento da proteção dos indivíduos,
característico do liberalismo, à proteção deste, em tal nível que se atribui uma per-
sonalidade estatal própria a ser resguardada de forma prioritária à dos utentes.
Thiago Pires Marques indica essa materialização, segundo ele presente em di-
versos artigos, como um resgate da ideia do Antigo Regime de laesa maiestas que
personifica um traço importante do regime autoritário fascista: a centralização es-
trutural da proteção jurídica ao Estado, a escolha de seus elementos como bens
jurídicos tutelados e a definição das condutas puníveis: Estes elementos são repre-
sentações das escolhas conscientes feitas em detrimento da proteção individual,
vista somente como instrumental à vontade do Estado (e muitas vezes oposta à essa
última, caso em que a vontade estatal deveria definitivamente prevalecer)7.
Alguns dos referidos artigos nos quais essas categorias emergem permanecem
vigentes (embora com parciais modificações), conforme será abordado na sequên-
cia.
A localização da função do Código no itinerário fascista, neste âmbito, se reveste
de um particular significado. Por um lado, à função do Código como categoria ele-
mentar da ordem política e, por outro, o seu enquadramento na dinâmica entre

“derivados” que tornam a lei prejudicada desde a origem, maculada, tanto por conta da “violên-
cia fundacional” como pela capacidade contaminatória de sua influência corruptiva (SKINNER,
2011, p. 440).
7. Rocco (1930) opõe-se explicitamente à filosofia contratualista e consequentemente à noção de
que o poder estatal deriva das vontades dos indivíduos, que o delegam de acordo com uma dada
limitação por elas imposta. Essas concepções, que ele chama de “ultra-individualistas” são dia-
metralmente opostas à ideologia do fascismo. Como o próprio autor coloca, em seu discurso de
apresentação do esboço final do projeto: “Para concepções ultra-individualistas do direito de
punir, que constitui, invés, mais em uma negação do que uma afirmação desse direito, conside-
rado como uma Graciosa concessão feita pelos indivíduos para o Estado de uma forma que é
sempre mutável e revogável e tem sempre como limitação a intransponível barreira do direito
natural dos indivíduos à Liberdade, ao menos na extensão de que essse não foi cedido, a filosofia
penal jurídica do Fascismo é tenaz e logicamente oposta”.
89
Arno Dal Ri Jr. · Kristal Moreira Gouveia
Estado e cidadão, por meio da abordagem aplicada ao princípio da legalidade.
A importância central do Código Penal para concretização do ideário fascista é
inegável, de acordo inclusive com elementos já introdutoriamente apresentados8.
Alfredo Rocco, portanto, entendia a lei penal como expressão máxima do direito de
punir, atribuindo importância maior a essa legislação dentre todas as integrantes do
sistema jurídico, por entender o referido direito de punir como um dos maiores
atributos da soberania, e ainda, considerada pelos ancestrais como uma das maiores
manifestações de imperium9.
Uma consideração que merece destaque sobre o regime fascista e já foi bastante
discutida na historiografia do direito é a escolha pela não derrogação do princípio
da legalidade, contrariamente ao que ocorreu nos regimes autoritários da Alema-
nha Nazista e da União Soviética. Essa decisão provém da utilização do princípio da
legalidade como forma de exercício de poder pelo Estado Fascista10. Diversa de uma

8. A estratégia de inovar legislativamente no campo penal, parte do itinerário fascista totalizante


supramencionado e o caráter autoritário e repressivo das disposições legais torna indissociável a
figura do código do contexto de afirmação fascista no qual se localiza. A esse respeito, já em
1933, Mario Bulhões Pedreira explanava que “[...] não é possível isolar o novo código penal itali-
ano, de factura fascista, da obra de renovação legislativa na Italia, modelada à feição deste pen-
samento superior que attribue ao Estado a função dirigente, coordenadora de todas as organiza-
ções individuaes, disciplinando a vida científica, econômica, religiosa e artística do paiz”. Como
se pode ver, nunca houve uma dissimulação em relação aos propósitos do Codice. Ao contrário,
o forte ímpeto nacionalista e impositor vinha explicitamente manifesta no Fascismo Italiano e
verbalizava-se através de seus apoiadores encontrando no Código um fiel retrato do que espírito
nacionalista que buscava-se imbuir nos utentes.
9. Ainda no discurso de apresentação do esboço final do Código Penal, Alfredo Rocco centraliza a
importância da referida legislação nos seguintes termos: “Nella nuova legislazione la riforma
penale eccelle non solo per la sua intrinseca grandiosità, ma altresi per la importanza,
indubbiamente superiore, che essa ha, in confronto di ogni altra riforma legislativa. La potestà di
punire è infatti uno dei massimi attributi della Sovranità, tanto che i nostri anticht ravvisavano
in essa una delle più essenziali manifestazioni dell'imperium, e la assimilavano, nella sua più
completa capacità d'esercizio, al potere di disporre della forza armata dello Stato (jus gladii). E
veramente tale potestà è anch'essa una forma di difesa statuale, é anch'essa una guerra contro
attività nemiche, che devono essere debellate nell'interesse dello Stato e della società”.
10. Sobre esse tema, Diego Nunes (2016, p. 157): “O fascismo via no princípio de legalidade uma
forma de enaltecimento da autoridade do Estado por meio da obediência à legislação. O argu-
mento já foi muito discutido no âmbito da história do direito penal para compreender a opção
90
A função da “personalidade do Estado” na elaboração penal...
limitadora da atuação estatal, a lei, por meio do viés adotado do princípio da legali-
dade, passou a ser utilizada como expressão da vontade coercitiva estatal.
A decisão de não abolir o princípio da legalidade, ao menos não de maneira
completa, não obstante seu uso providencial, é um dos pontos que para alguns au-
tores situa o Código Rocco em uma área anterior à entrega completa ao totalitaris-
mo11. Talvez seja justamente por tal motivo que, em meio as estratégias que tenta-
vam a perversão do princípio da legalidade, algumas categorias liberais consegui-
ram sobreviver, por meio dos poucos elementos que permaneceram desse princí-
pio12.
No entanto, essas categorias devem ser analisadas à luz da utilização dada a estes
institutos. A sobrevivência por si só do princípio da legalidade não significa que a
há uma continuidade clara ou ainda coerente com os princípios que sustentam o
sistema liberal, muito embora haja a continuidade de certos institutos. A sobrevi-
vência desse princípio, portanto, não pode ser vista como um argumento que afaste
do Código Rocco o caráter autoritário e fascista13.

italiana de não se valer da derrogação do princípio de legalidade penal, ao contrário da União


Soviética e da Alemanha nazista. Aqui se deseja tratar do distanciamento da legalidade como
forma de aplicar a lei – rígida como afirmação da autoridade do Estado – da legalidade no pro-
cedimento legislativo – flexível para dar um sentido autoritário aos mecanismos da democracia
liberal”.
11. Esse ponto perfunctoriamente contraditório gera um debate sobre a localização do fascismo
entre aspectos liberais, totalitários e seus diferentes níveis. Emblemática desses embates, a con-
cepção de Fiandaca, por exemplo, contempla o Código como fruto de um processo de continui-
dade do velho sistema liberal, justificando esse pensamento justamente na não renegação do
princípio liberal (DAL RI Jr., 2006, p. 228-229).
12. Sobre o tema, Tiago Pires Marques (2011) defende que o princípio da legalidade juntamente ao
da imputabilidade são elementos que denotam que o modelo de justiça criminal italiano não era
completamente totalitário, não tendo havido um abandono completo desses paradigmas liberais
em favor do chamado “sistema de defesa social”, cujo rumo natural seria uma codificação reco-
nhecidamente desigual, como foi o caso alemão com o nazismo.
13. Isso se deve à função dada ao princípio da legalidade no regime fascista e sua oposição à função
liberal utilizada no regime precedente. Sobre esse tema, Musumeci (2017): “Contrary to appear-
ances, during the Fascist era the ‘glorified’ principle of legal certainty did not perform the same
functions that it would have done in a democratic legal system. The principle provides that one
cannot be subjected to penal sanctions unless these are previously provided for by law. During
91
Arno Dal Ri Jr. · Kristal Moreira Gouveia
Os institutos inseridos no Código para materializar a referida vontade estatal,
porém, dão azo a uma próxima discussão, que é o enquadramento dessa legislação
no debate entre as escolas penais, a ser explanado no próximo tópico.

2. O Código Rocco no Debate entre Escolas Penais


No ambiente historiográfico que se dedica a análise do impacto do fascismo no
direito penal, até os dias de hoje permanece a questão acerca do enquadramento a
ser dado ao Código Rocco entre Positivismo e a Escola Clássica, assim como a sua
possível transposição por meio da adoção de uma terceira escola14/15.
Esse enquadramento guarda sentido diretamente com o reconhecimento de um
caráter eminentemente fascista (ou não) nos institutos do Código.
A tentativa de perpassar os debates e superar ambas as escolas é um fato de clara
percepção devido aos discursos que acompanham a edição e publicação do códi-
go16. É emblemático, neste sentido, o discurso de Arturo Rocco, irmão do ministro

the Fascist regime, however, laws were issued without wide, democratic parliamentary debate,
but instead as the will of a single party, the Fascist Party, which since the beginning of the dicta-
torship had trampled on every kind of political opposition. This then was the ‘law’ – legal, but
not legitimate – to which the principle of legality referred”.
14. Sobre essa afirmação, Daniel Pick (1989, p. 147): "Rocco's code represented the triumph of pe-
nological ecleticism which amalgamated elements of classicism and positivism. It market the rise
of a so-called ‘Third School’, which sought to avoid the metaphysical philosophy of the classical
approach, and the biological or sociological determinism of the positivists. The ‘technico-
juridical’ school, as it has also been termed, made a new appeal to clarity of language in the
framing of law. It sought to establish a 'pure' field of rights and penaltires. Heavily utilitarian in
scope (crime was definied as that which destroys or diminishes a 'good', or which sacrifices a
uman ‘interest’, it sought to produce new rigorous definitions of such terms as 'motive' and 'will'
via a kind of jurisprudential logical positivism”.
15. Não se trata aqui da denominação de terza scuola de Impallomeni e Alimena.
16. Os institutos do Código devem ser lidos e interpretados à luz dos discursos que o acompanha-
ram, para compreensão de que princípios essa lei criminal buscava viabilizar. Sobre a importân-
cia dos discursos (incluindo tanto de Arturo Rocco, 1910, como o de Alfredo Rocco, quando da
publicação do último rascunho do Código), Skinner (2011, p. 450): “Read in this way, the sig-
nificance of the discourse concept as an interpretative tool is particularly apparent, as it underli-
nes the interaction of contextual and ideological forces in Rocco’s representation of criminal
92
A função da “personalidade do Estado” na elaboração penal...
Alfredo Rocco, ainda em 1910, na Universidade de Sassari, intitulado “Il problema
e il metodo della scienza del diritto penale”, quando declara a necessidade de livrar-
se do legado da Escola Positiva estabelecida por Lombroso, culpado de “manchar”
a “pureza” da lei criminal devido à interferência de outras disciplinas17.
Grande parte do movimento ao entorno da publicação do Código baseava-se
também na ideia de que a Escola Clássica deveria ser afastada, devido seus princí-
pios e preceitos serem demasiadamente abstratos e teológicos, assim como de que a
Escola Positiva trazia uma “contaminação” de outras disciplinas à ciência jurídica.
Conforme enunciava Rocco, a partir dessa ocasião18, a concepção da nova lei penal
seria a de garantir um direito “puro”, sem a contaminação positivista de outras
ciências e afastado de conceitos secularizados e dogmáticos da escola Clássica. Essas
influências, ao longo do tempo, tinham tornado o direito penal, para Rocco, um
direito penal sem direito19.

law. In other words, the context, construction and connections of Rocco’s declarations about
criminal law show how he sought to draw on these various levels of significance to create a par-
ticular, Fascist conception of penality anchored in a Fascist perception of the world”.
17. O referido discurso de Arturo Rocco, tal como sua obra “Il problema e il metodo della scienza
del diritto penale” (1910) apontam para o que foi chamado de criação de uma base legal para a
implementação da escola técnica jurídica como base para o futuro código e ainda como “mani-
festo de uma nova abordagem legal técnica para a lei criminal” (MUSUMECI, 2017), no entanto,
a discussão sobre a influência das duas escolas no texto do código (em especial à influência posi-
tivista no instituto da defesa social, que garantia proteção ao Estado ao mesmo tempo que resga-
tava noções de periculosidade e de antecipação de condutas) continua tão presente a ponto de
em 2010 terem sido tema de debate quando do centenário da referida palestra de Rocco. Sobre a
importância dessa questão, Musumeci (2017) ressalta: “Far from being a mere academic disqui-
sition, unravelling the contribution made by Arturo Rocco might shed light on the true nature of
the Rocco Code and its relationship to Italian criminal law doctrines, since Arturo Rocco was the
president of the committee of experts appointed by the Minister of Justice to draw up the pre-
liminary draft of the penal code and supervise the final project”.
18. Sobre a distância entre as concepções presentes nos escritos de Rocco de 1910 para o fascismo,
vide SBRICCOLI (1999, p. 817 ss).
19. Na referida palestra de 1910, Rocco enuncia que a escola a resguardar a lei penal deve ser a
escola do tecnicismo jurídico: “È giunto il momento di tenersi fermi, religiosamente e
scrupolosamente attaccati allo studio del diritto positivo vigente. La scienza giuridica va
circoscritta ad un sistema di principi di diritto...ad una conoscenza scientifica della disciplina
giuridica dei delitti e delle pene [...]È questo l'indirizzo tecnico-giuridico, il solo indirizzo
93
Arno Dal Ri Jr. · Kristal Moreira Gouveia
A intenção era que o Código Rocco fosse pautado total e completamente na téc-
nica jurídica. Razão pela qual seu estilo pode ser enquadrado em uma terceira esco-
la, conhecida entre os penalistas como a escola “técnico-jurídica”, mas o fato é que
o discurso não necessariamente traduz o texto. É possível, portanto, constatar a
existência de institutos das duas correntes repudiadas no âmbito do próprio código.
Tal fenômeno permite, deste modo, compreender como, a partir dessas categorias,
quais elementos delineiam e possibilitam a apresentação de institutos que criaram
forma e força por meio do código, como a própria personalização do Estado.
Mesmo sendo ainda bastante individualista – e, em muitos pontos, até liberal –,
o direcionamento do Código Rocco ao tecnicismo jurídico apresenta, entre seus
objetivos, a necessidade de adequar os institutos jurídicos à utilidade desejada pela
legislação criminal, que é a proteção do Estado com a retirada do foco da questão
penal do indivíduo. Para isso, uma estrutura pautada unicamente na técnica jurídi-
ca é utilitária à medida que afasta concepções que remetem a outros tipos de crimi-
nalidade ou a elementos que vinculem a proteção penal ao sujeito. Trata-se da “vi-
rada tecnicista”20, que trouxe consigo como apoiadores grandes estudiosos do pe-
nal21.

possibile in una scienza appunto giuridica”.


20. É impossível fazer referência à adoção do tecnicismo jurídico e não mencionar o fato de que sob
o manto de uma suposta imparcialidade técnica, muitos juristas aderiram intelectualmente ao
regime fascista. Conforme desenvolve Sbriccoli (2011, p. 478), a virada tecnicista é “benéfica por
um lado, porque contribui para sanear a ciência penal, liberando-a dos detritos da invasão posi-
tivista (terríveis sociologismos, autoritarismo áspero, repressivismo antiliberal), mas também
precursores de um empobrecimento cultural que, a longo, prazo, os penalistas pagarão com um
penoso isolamento.". Sobre a neutralidade dos juristas, Musumeci (2017, p. 5) exalta a ilusão de
um isolamento da lei como garantia de neutralidade, processo que na verdade esconde uma von-
tade política consciente: “the technical legal approach advocated by Arturo Rocco was nothing
more than a moderately sweetened variety of legal formalism that enhanced the isolation of law
from other spheres, entirely separating it from reality, in order to serve the alleged neutrality of
the jurist. In that neutrality, under the cloak of ‘technical’ analysis, is hidden the inevit able sub-
ordination of the law to political power, as actually occurred under the Fascist regime”.
21. É muito importante sublinhar que um dos grandes motores da força do regime foi justamente o
apoio declarado e fundamentações confeccionadas pela classe jurista, apoiados nessa mesma no-
ção de direito por direito, direito neutro, por ser meramente técnico. Essa máscara isentava-os
da responsabilidade de lidar com o significado dos dispositivos que agora apoiavam. Conforme
94
A função da “personalidade do Estado” na elaboração penal...
A questão da presença de elementos de proveniência do positivismo lombrosia-
no no Código Rocco não é unânime mesmo atualmente. A constatação que emerge
como geradora deste postulado advém do fato de que algumas categorias aprofun-
dadas pela Escola Positiva, tais como a “periculosidade”, o “sujeito delinquente” e
“a defesa do Estado” constituíam um discurso frequente na legislação criminal de
1930, remetendo a categorias trazidas pela Escola Positiva. Com isso se mantém o
foco da punição no sujeito e não no ato em si. Além disso, o instituto que prevê as
medidas de segurança22, assim como o caráter de antecipação de condutas de acor-
do com elementos previamente presentes, são visualizados como heranças da Esco-
la Positiva, pois por meio da verificação de circunstâncias prévias, previam medidas
antecedentes um crime. Trata-se aqui da polêmica figura da “medida de seguran-
ça”, um dos institutos que traduz uma guinada pouco liberal que vinha se forman-
do desde o início do século XX, assim como a erosão de direitos e garantias indivi-
duais dos indivíduos e a reversão do foco de proteção jurídica.
O que se discute, porém, é até que ponto estes institutos à primeira vista “her-
dados da Escola Positiva” foram distorcidos. O Código Rocco é pautado em uma
noção fundamental de forte punibilidade pelo Estado em relação ao sujeito, sob a
motivação de garantir uma suposta proteção ao “sujeito Estatal” contra toda e
qualquer ameaça que venha do indivíduo. Para a concretude dessa dada proteção,
muito foi flexibilizado ou mesmo aniquilado no tocante a direitos e garantias fun-
damentais dos indivíduos.
A punição, deste modo, toma contornos mais violentos e fortes. Distancia-se
dos escritos da Escola Positiva, que usava essas categorias como forma para prever
um perfil criminoso. O Código Rocco foi além, fazendo da punição um poder ilimi-
tado e natural derivado da figura forte e protagonista do Estado, atribuída como
consequência de sua própria natureza23 e com um instrumental amplo de aplicação

aborda Sbriccoli (2011, p. 480): "Nada pequena, em tudo isso, como escrevi em outro lugar, fora
a responsabilidade dos juristas. Imersos sem resíduos numa cultura autoritária que lhes tinha
apagado qualquer preocupação pelos direitos."
22. Sobre a presença das medidas de segurança no Código Rocco, uma especial influência é visuali-
zada na redação do Código Brasileiro contemporâneo. A esse respeito, ver SONTAG (2014).
368p.
23. Esse conceito deriva da própria figura de Estado que o fascismo edificou, como será visto a se-
95
Arno Dal Ri Jr. · Kristal Moreira Gouveia
contra ameaças e possíveis ameaças. Subsiste uma cisão, portanto, a título de finali-
dade e princípio fundamental no tocante ao objetivo com o qual os institutos eram
usados.
A questão que emerge, então, é até que ponto as características derivadas da
ideia geral de periculosidade trazida pelo positivismo foram distorcidas e reinter-
pretadas somente para servir de fundamento24 e legitimação para essa nova forma-
tação de Estado. É possível, de fato, reconhecer que existe uma ligação entre as ca-
tegorias da Escola Positiva e alguns institutos inseridos no Código, mas também se
percebe que a forma de emprego desses elementos essenciais é manejada de forma
diferente daquela que faziam uso os seguidores de Lombrosi, Ferri e Garofalo25.
O que se isola nesse debate, para desenvolvimento do tópico final, é uma noção
específica, que possui raízes conceituais na escola positiva, ou seja, o conceito de
“defesa social do Estado”. Utilizado pelo Positivismo26, tal conceito é considerado o

guir. No entanto, por hora, tenha-se em mente a imagem de um ente que “[...] é apresentado
como um organismo ao mesmo tempo econômico, social, jurídico, ético e religioso. Como or-
ganismo econômico-político, por exemplo, o Estado não constitui mais a soma aritmética dos
indivíduos que dele fazem parte, mas sim o resultado, a síntese dos sujeitos, das categorias e das
classes que o constituem. Uma entidade que tem vida própria, necessidades e fins próprios aos
quais estão subordinados os interesses individuais” (DAL RI Jr., 2006, p. 230-231). Assim, o for-
te poder ilimitado do Estado, que reflete na pena não é um instrumento mediador da sociedade
– como no Positivismo, por exemplo, e sim uma consequência da própria visão Fascista de esta-
do – seria de sua natureza possuir este poder.
24. Esse argumento é enfrentado por Musumec (2017), que defende que embora o Código Rocco de
1930 pareça ser um “estranho híbrido entre teorias clássica e positiva”, em especial por conta do
uso dos conceitos positivistas de “periculosidade” e medidas de segurança, essa aparência é ape-
nas um disfarce, uma vez que o Código não aderiu verdadeiramente aos princípios Lombrosia-
nos e tão somente utilizou elementos positivas instrumentalmente (e ao avesso das finalidades
originais dadas a estes pelo positivismo), para fundamentar os institutos repressivos do fascismo.
Como se pode ver, este não é ainda um tema pacífico na historiografia.
25. Para maior aprofundamento da questão, ver: M. ROMANO (1981), G. FIANDACA (1981); E.R.
ZAFFARONI (2006).
26. Sobre o tema, Tiago Pires (2011, p. 79), “The above justifications for the reform of penal and
police institutons carried out in the early 1920s show that criminal positivism and the language
of social defence provided the leading politicians of the fascist regime with a new semantics of
social disorder. Concepts such as the 'born criminal’, the ‘habitual offender’, the ‘instinctive de-
linquent’ and the potentially dangerous juvenile delinguqnt were not unanimously accepted
96
A função da “personalidade do Estado” na elaboração penal...
percussor (em que pese as distorções comentadas, e a nova semântica adotada) de
uma nova noção que surgia na legislação fascista, a de personalidade do Estado. É
este conceito que nos leva à discussão final e principal: Como a personalidade do
Estado é apresentada na legislação criminal de Alfredo Rocco e quais as consequên-
cias desses contornos nos institutos autoritários.

3. Laesa maiestas: as consequências autoritárias da


“personalidade do Estado” no Código Penal italiano de Alfredo
Rocco
A ideia de defesa social, conceito fundamental da Escola Positiva, na legislação
criminal de 1930 é remodelada de acordo com um deslocamento do papel do sujei-
to da proteção da lei penal, assim como de sua finalidade. O Estado, visto na ótica
do regime fascista, não é mais um administrador de interesses individuais e coleti-
vos e sim uma entidade com evidentes trações antropomórficos, que inclui todos
(mas não é a soma deles) e possui uma relevância e importância maior do que a de
todos ao mesmo tempo.
Nessa concepção, que em alguns aspectos faz recordar aquelas utilizadas pelas
correntes organicistas germânicas do final do século XIX, o Estado passa a ser con-
siderado a potência e o verdadeiro sujeito de direitos e para isso deve exercer sua
força e ser protegido por meio da lei. Essa mudança de foco torna claro como foi
delineada a categoria de segurança do Estado no regime fascista, sendo a esta adici-
onada uma nova noção, adotada e reinterpretada do direito público, chamada de
“personalidade do estado”.
A existência de uma personalidade do Estado transforma a dinâmica com os in-
divíduos, modificando-o de mediador para sujeito a ser protegido. Como conse-
quência toda a legislação passar a ter mais uma função: deixa de ser somente uma
ponte entre relações Estado e Indivíduos, passando a lei criminal a ser garantidora
da proteção do Estado, inclusive contra os indivíduos. No bojo das medidas inova-
doras que buscaram garantir essa proteção e sedimentar a essa desproporção de
força estão os dispositivos que possibilitam “antever” comportamentos potencial-

among penal profissionals”.


97
Arno Dal Ri Jr. · Kristal Moreira Gouveia
mente perigosos dos indivíduos, legitimando ao Estado o uso da violência mesmo
antes da execução de uma ação considerada perigosa.
Essa perspectiva apresenta como consequência a configuração do poder de pu-
nir como um diritto di conservazione e di difesa proprio dello Stato, nascente con lo
Stato medesimo27. A imagem do Estado como “o órgão vivo do direito”28, atribui à
lei a função de reprimir e prevenir qualquer ameaça29 ou ato que atente contra os
elementos de sua própria personalidade. Essa função garante tanto a instituição de
medidas preventivas como as medidas de segurança, como a vinculação de penas
mais rigorosas para as ações contra o Estado.
Passa a ser determinante, portanto, o papel do Código em substituir a antiga
ideia de “segurança do Estado”, proveniente da noção de “defesa social do Estado”,
pela ideia de “personalidade do Estado”. Desse modo, por meio da operação acima
descrita, o Estado vem inserido como categoria operacional central do instrumento
punitivo. As consequências desembocam em categorias específicas que vão desde a
estrutura do próprio Código à atribuição de penas mais severas, incluindo a prisão

27. Estes termos foram usados pelo Rocco (1930, p.12).


28. Conforme Corso Bovio (1931, p. 21): “Lo Stato è l’organo vivente del diritto. Esso deve
preservarsi dalla sua distruzione e da quella degli organi fondamentli della sua sovranità, e deve
pertanto antivenire gli sforzi dell'attività criminosa che sotto qualunque forma tendano a
violarne l'autorità. La legge deve porgere allo Stato i mezzi efficienti e concreti per combattere gli
sforzi dei nemici dell'ordine sociale, determinando con rigorosa precisione la nozione giuridica
del delitto di Stato”.
29. É elemento extensivamente presente nos atos preparatórios do Código a discussão sobre a peri-
culosidade do sujeito, e os perigos que podem acometer o Estado. Este termo aparece mais de
100 vezes no tomo VII dos “Lavori preparatori del codice penale”. Esse é o fundamento para o
sistema punitivo do duplo binário e para a adoção de métodos preventivos e repressivos em con-
comitância. Em dada passagem, discute-se: “La pericolosità criminale non è qualcosa di diverso
dalla pericolosità sociale; ne è una specie; ha la stessa sua natura; ed è quindi ovvio che non
possano essere considerate antagonistiche le attività dirette a combattere le due forme di
pericolosità. La obiezione che possa, l'attività ordinaria di sicurezza, avere maggiore flessibilità
d'iniziative e di movimenti, «li quella che sia consentita al giudice, potrebbe avere una qualche
consistenza, se il Progetto avesse aderito all'indirizzo di taluni giuristi fautori della
giurisdizionalizzazione delle misure di sicurezza, e, in secondo luogo, se l'ordinamento delle
misure di sicurezza non lasciasse i più larghi margini alla comune attività di polizia. Ma né l'una
né l'altra di tali ipotesi risponde al sistema adottato dall'attuale Progetto.”.
98
A função da “personalidade do Estado” na elaboração penal...
perpétua e a pena de morte, cujo retorno à legislação marca de forma determinante
o caráter autoritário do Código e, como já mencionado, a instituição das medidas
de segurança e de caráter preventivo com base na periculosidade30.
O progressivo foco direcionado aos delitos contra a personalidade do Estado é o
elemento que define o Código Rocco e justifica sua escolha pelo endurecimento das
sanções a todas as ações que pudessem sugerir ou associar-se com os tipos previstos
(ou ameaças). Essa escolha está presente desde a estrutura do Código. Seu título I
do Livro II prevê a seguinte divisão interna: cinco capítulos que são respectivamen-
te: delitos contra a personalidade internacional do Estado (artigos 241 a 275); Deli-
tos contra a personalidade interna do Estado (artigos 276 a 293); Delitos contra os
direitos políticos do cidadão (art. 294); Delitos contra o Estado estrangeiro, seus
comandantes e representantes (artigos 295 a 300); E por fim disposições gerais e
comuns aos capítulos precedentes (artigos 301 a 313). Desse modo, a elevação da
personalidade do Estado para o bem jurídico31 e sua proteção por meio de tantas
previsões penais que incluem momentos anteriores e posteriores a uma suposta
ofensa à personalidade estatal representam uma característica central do Código
Rocco, em alguns momentos inovadora, garantindo ao Estado um poder de repres-
são mais forte e intenso, além de legitimar a interferência total em vários campos da
vida individual e coletiva.

30. Essa questão é confrontada por Tiago Pires (2011), que demonstra o deslocamento à figura de
“personalidade do Estado” e sua consequência em três vertentes específicas do novo Código,
conforme: “Aside from the hierarchy of values mentioned above, this expressive function of the
penal code was rendered clear though the concept of "state personality", which undoubtedly
offered a stronger representation of the state than the replaced formula of 'state security' ever
did. This is all the more evident as crimes falling within this category entailed particularly harsh
penalties, chief amongst them being capital punishment. Traditionally, the category of crimes
against the state covered three distinct fields: the external dimension of state sovereignty, that is,
its international authority and national autonomy; the state's internal sovereignty, or the con-
crete institutional organization of political power; and the basic rights of citizens in their rela-
tionship with the state”.
31. Sobre o tema, Antonio Giuffrida (2012): “L’elevazione della ‘personalità dello Stato’ a bene
giuridico protetto rappresenta una delle innovazioni del codice Rocco che riflette maggiormente
l’ideologia autoritaria del regime fascista. Invero, nell’ambito dei codici preunitari, vi erano
numerose fattispecie criminose riconducibili al concetto di ‘delitto politico’ identificate, per lo
più, con l’espressione crimen laesae maiestatis [...]”.
99
Arno Dal Ri Jr. · Kristal Moreira Gouveia
Esses delitos que visam resguardar a segurança do Estado32, colocam todos os
que podem vir a opor-se a ele na situação de inimigos, criando uma relação de des-
proporção e oposição que aparentemente resgataria elementos da noção de laesa
maiestas33. Essa expressão, conforme Giuffrida (2012), o insere em uma
“moltitudine di modelli che avevano come denominatore comune quello di punire
ogni comportamento di dissenso o disobbedienza al soverano”.
A noção de “personalità dello Stato”34 denota atribuição a um sujeito, ou seja,
uma conotação que resgata a noção subjetiva de majestade do termo laesa maiestas,
devolvendo ao Estado uma centralidade antes vista no Antigo Regime. A aplicação
desse conceito é fruto da centralidade dada ao Estado nesse novo contexto, no apa-
rato de proteção a ele destinado e especialmente à extensão da centralidade que
receberam no Código as categorias sancionadoras de “ofensas contra a personali-
dade do Estado”35.

32. Essa segurança está vinculada à noção de Estado do qual se imbuiu o Código, conforme Corse
Bovio (1931, p. 22), “[...] non si può parlare dei delitti contro la sicurezza delo Stato, senza tener
presente il carattere che la funzione dello Stato assume nella civiltà moderna per fissare
giuridicamente i vincoli ed obblighi del cittadino nel confronti dello Stato. Lo Stato è la suprema
autorità, anche spirituale”.
33. A expressão laesa maiestas tem como tradução literal "majestade injuriada" Tiago Pires (2011)
explica que essa expressão, que era utilizada na tradição civilista do Antigo Regime, foi posteri-
ormente substituída por “segurança do Estado”. No entanto, com a adoção já explanada do no-
vo conceito de “personalidade do Estado”, seus pressupostos voltam a se manifestar. Conforme
explica o autor (p. 97), “the notion of state personality adopted by the fascist lawmaker restored
the subjective connotation of laesa maiestas. Through this process of juridical personalization of
the State, the criminal law as a right of mediation between individuals was then turned into a
right of the State to self-defence reminiscent of the Old Regime”.
34. personalità s. f. [dal lat. tardo personalĭtas -atis, der. di personalis «personale1»]. – 1. non com.
L’esser personale, tipico, caratteristico di una singola persona: la personalita di un’opinione, di
un’idea; personalita del diritto o della legge
35. Ainda sobre o tema, Tiago Pires Marques (2011) desenvolve: “According to this line of thought,
breaking with the liberal tradition of the nineteenth century, the notion of 'state personality'
adopted by the fascist lawmaker restored the subjetctive connotation of laesa maiestas. Through
this process of juridical personalization of the state, the criminal law as a right of mediation be-
tween individuals was then turned into a right of the state to self-defance reminiscente of the
Old Regime. The most evident imprint of this concept on the Rocco \Code was the extension
100
A função da “personalidade do Estado” na elaboração penal...
Sobre a manifestação objetiva dessa noção nos dispositivos do Código, alguns
pontos específicos são significativos. Da estrutura acima mencionada, perceba-se
que apenas um artigo foi dedicado à proteção dos direitos políticos do cidadão, o
artigo 29436. Atenção redobrada para os delitos que trazem a antecipação da punibi-
lidade, em especial “delitti di attentato, associativi” e “di opinione”, mostrando a
arbitrariedade à liberdade de pensamento, muito embora não se trate de figuras
inovadoras na legislação.
Direitos de liberdade também são feridos por meio da punição exacerbada pre-
vista para os “delitti associativi”, que são conforme o código punidos “per ciò so-
lo”37, ou seja, prescindem de um ato terrorista ou que atentem contra o Estado pos-
terior, sendo clara manifestação autoritária de impedimento de reunião, devido a
um suposto risco de futuro ato criminoso.
O caráter antecipatório se manifesta também no delito previsto o art. 266, de “is-
tigazione e vilipendio”. A instigação de militar a desobedecer à lei é um delito cuja
consumação dá-se na planificação, ou seja, prescinde da obtenção de sucesso em
convencer o suposto militar a desobedecer a lei. Ao passo que na legislação penal a
instigação comum (art. 302) se consumava com a realização do ato posterior.
Outros artigos emblemáticos dos elementos aqui expostos são os artigos 336 e
337, que versam sobre a resistência à ação policial de forma incondicional, tratando

and the centrality given to the category of 'offenses agains the personalit of the state' (the link be-
tween the death penalty with the attempts agains the state personailty depicted the fundamental
asymmetry of forces between the state and single individiduals.; lastly the rebaptized category,
developed in all its potential in the jurisdicion of the Special Tribunal for the Defence of the
State”.
36. O fato foi apontado na proposta di legge de iniciativa dos deputados Turco, Artini, Baldassare,
Barbanti, Bechis, Mucci, Prodani, Rizzeto e Segoni, para a retirada do art. 265, apresentada já em
17 de novembro de 2015: “Si riconosce invece solo un minimo spazio alla tutela dei diritti
politici del cittadino: c’è solo un articolo, l’articolo 294 del codice penale, che con una
formulazione piuttosto ampia persegue l’impedimento anche solo parziale dell’esercizio di un
diritto politico se commesso con l’uso di violenza, minaccia o inganno”.
37. Sobre o tema, Sereni (2012), “Nell’impostazione del 1930, d’altra parte, i delitti associativi del
titolo I del codice dovevano caratterizzarsi per la finalità illecita dell’associazione piuttosto che
per la sua pericolosità oggettiva. Andava da sé che il reato associativo fosse tarato su una
reazione repressiva forte contro movimenti politici antagonistici al regime fascista”.
101
Arno Dal Ri Jr. · Kristal Moreira Gouveia
da impossibilidade de desobediência por meio da força, sem uma especificação das
situações excludentes desse tipo de resistência; Os artigos 268 e 269, que tratam dos
rumores contra a reputação do Estado e das “associações subversivas”; O uso legí-
timo das armas previsto no artigo 53 e que ainda é, em parte, vigente e da pena de
morte, que foi completamente revogada após o fim do regime de todos os tipos
penais às quais se associava. O apontamento está no fato de que se destinava majo-
ritariamente à sancionar tipos penais integrantes dos capítulos acima elencados, ou
seja, ofensivos à personalidade do Estado.
Como já abordado no tópico inicial do primeiro capítulo, a doutrina ainda não
está pacificada quanto ao fato de existirem institutos remanescentes do autoritaris-
mo no atual Código penal italiano, uma vez que se trata de uma versão editada e
parcialmente revogada, mas não um novo Código. O artigo 265, justamente, é em-
blemático deste fenômeno. Estando vigente até pouco tempo e cuja proposta de lei
de ab-rogação é datada apenas de 2015, o conteúdo de tal dispositivo apresenta de
forma bastante clara os delineamentos típicos do caráter autoritário remanescente.
Trata-se da previsão do crime de “disfattismo politico”, que segundo o texto da
referida proposta de lei,
“appare emblematico poiché comprende nella propria fattispecie la diffusione sia di
notizie false, sia di notizie ‘esagerate o tendenziose, che possano destare pubblico
allarme o deprimere lo spirito pubblico o altrimenti menomare la resistenza della
nazione’, annoverando anche attività, quasi per nulla definite, tali ‘da recare
nocumento agli interessi nazionali’”.
Não obstante os institutos ab-rogados e retirados, é possível constatar que, res-
gatando o conceito já explorado por Skinner, uma “mácula” se sobrepõe a essa
legislação, uma vez que remanescem alguns institutos de caráter autoritário e a
própria estrutura do Código, bastante emblemática em refletir suas prioridades.

4. Conclusão
O Código Rocco apresenta como inovação emblemática do momento autoritá-
rio vivenciado pelos universos político e jurídico italiano entre as décadas de 1920 e
1930 a elevação da categoria da personalidade do Estado como fundamento para a
implementação de suas prioridades ideológicas, em particular de objetivos e ações
102
A função da “personalidade do Estado” na elaboração penal...
voltados a legitimar a agressiva política penal do fascismo.
A identificação desse fenômeno, justamente, passou pela localização da função
desempenhada pela legislação criminal no regime fascista italiano, utilizando como
ponto de referência a importância do papel punitivo segundo os matizes teóricos e
políticos do regime autoritário e de acordo com os próprios idealizadores do mes-
mo, Alfredo Rocco, e de seu irmão, Arturo Rocco. As declarações deste último so-
bre o tecnicismo jurídico, assim como suas obras jurídicas, foram essenciais para a
fundamentação técnica do Código.
Por meio da análise das tensões punitivas adotadas nessa legislação criminal e
sua contextualização no processo de consolidação do regime fascista, é possível
verificar que a elevação da figura estatal, sujeito de direitos principal daquela or-
dem, compôs de formar basilar a estrutura autoritária do fascismo. A personifica-
ção estatal, que chega a resgatar o conceito do antigo regime de laesa maiestas foi
um elemento-chave para a justificação autoritária e imposição de institutos violen-
tos e repressivos contra os indivíduos que se enquadrassem em potenciais ofensores
do sujeito principal da ordem jurídica.
Essa orientação base pôde ser identificada nas escolhas legislativas do Código
Penal, que se destinou à tipificação de condutas potencialmente lesivas à personali-
dade do Estado, ainda que somente no campo do planejamento mental dos indiví-
duos. Essas condutas abrangem um rol amplo de ações, cuja previsão viabiliza o
controle da esfera cível pelo Estado em níveis até então desconhecidos.
Em muitos ambientes a referida dinâmica reveste-se do manto da neutralidade
por meio da adoção do estilo do tecnicismo jurídico para redação do Código, ale-
gadamente destinado a eliminar qualquer traço de subjetividade da lei criminal, no
entanto servindo ao propósito de legitimação intelectual e técnica de uma dinâmica
punitiva extremamente autoritária.
Nesse azo, identificou-se o papel central que a subjetivação do Estado como ca-
tegoria central do regime penal tomou na instrumentalização do autoritarismo
fascista, dada a legitimação de institutos repressivos que objetivaram sua autodefe-
sa, por meio da imposição de restrições à liberdade e vida dos indivíduos, ora ini-
migos da ordem estatal.

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Arno Dal Ri Jr. · Kristal Moreira Gouveia
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106
EXTRADIÇÃO NA ITÁLIA FASCISTA (1922-
1943) E NO BRASIL DE GETÚLIO VARGAS
(1930-1945): ENTRE A ASCENSÃO DO
“DIREITO PENAL DO FASCISMO” E A
SOBREVIVÊNCIA DA TRADIÇÃO LIBERAL
DO DIREITO PENAL*
EXTRADITION IN FASCIST ITALY (1922-
1943) AND IN BRAZIL OF GETÚLIO VARGAS
(1930-1945): BETWEEN THE ASCENSION OF
“FASCISM CRIMINAL LAW” AND THE
SURVIVAL OF THE LIBERAL TRADITION
OF CRIMINAL LAW

5
Diego Nunes **

Resumo: O presente artigo tem como objetivo Abstract: This paper aims to present the legal
apresentar o tratamento jurídico dado à extradição treatment given to extradition in fascist Italy and in
na Itália Fascista e no Brasil de Getúlio Vargas para Brazil of Getúlio Vargas to understand if the insti-
compreender se o instituto sofreu torsões autoritá- tute has suffered authoritarian torsions both on the

* Esse texto foi publicado originalmente pelo Forun Historiae Iuris, disponível em:
https://forhistiur.de/media/zeitschrift/Nunes_-_1-fo_YiMiB9W.pdf. Traduzido por Marja Man-
gili. Doutoranda e Mestra em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Membro do
Ius Commune – Grupo de Pesquisa em História da Cultura Jurídica (UFSC/CNPq).
** Professor Adjunto nos cursos de graduação e pós-graduação em Direito da Universidade Federal
de Santa Catarina. Colíder do Ius Commune – Grupo de Pesquisa em História da Cultura Jurídi-
ca (UFSC/CNPq). Doutor em Direito pela Universidade de Macerata (Itália).
107
Diego Nunes
rias, seja no campo do direito interno como nas field of internal law and on the diplomatic relations
relações diplomáticas entre os dois países. No between these countries. On the Codice Rocco, the
Código Penal italiano de 1930, as regras sobre provision on extradition was meant to strengthen
extradição foram pensadas para fortalecer a repres- the repression, but the Italian treaties celebrated
são. Por sua vez, se de um lado a lei brasileira de attached to the liberal paradigm ended up protect-
extradição de 1938 retomava elementos do instituto ing the individual subjected to extradition. On its
quando criado no século XIX, também adicionou turn, if on one side the 1938 Brazilian Extradition
importantes elementos para a defesa de um Estado Act relies on the elements of the institute created in
forte. Porém, o tratado Ítalo-Brasileiro de extradi- the nineteenth century, it also adds important
ção de 1932 aproximou-se do paradigma liberal, elements to the defence of a strong state. Thus, were
resultando em proteção aos indivíduos sujeitos à these rules truly of a fascist origin? The hypothesis
extradição. Assim, tais regras teriam realmente uma is to realize that the “Fascism Criminal Law” is not
origem fascista? A hipótese é a de perceber que o quite a revolution, despite introducing major
“Direito Penal fascista” não foi exatamente uma changes it cohabits with the liberal tradition of
revolução, já que apesar de introduzir alterações criminal law.
importantes, coabitou com a tradição liberal de
Direito Penal.
Palavras-chave: Extradição; Tratados Internacio- Keywords: Extradition; International Treaties;
nais; Autoritarismo. Authoritarianism.

1. Introdução
Extradição é um ato de cooperação, realizado entre Estados soberanos a pedido
de um deles, entregando-se uma pessoa acusada ou condenada de um crime para
ser processada ou para cumprir determinada sentença já imposta1. Como colocado
por Emanuele Carnevale, o final do século XIX e começo do século XX são marca-
dos por grande colaboração na área da assistência legal internacional contra crimes,
independente de onde acontecessem e onde fossem achados suspeitos e/ou acusa-
dos de tais atos:
Noi siamo in tempo piuttosto di collaborazione, che evidentemente è una cosa
diversa di azione: la prima rappresenta sempre un agire distinto, per quanto
associato e coordinato; la seconda, invece, è um tutto unico, è l’apice del movimento
unitario, lo dico quindi azione perchè guardo principalmente alla fase finale, di cui

1. Uma síntese completa sobre os conceitos desse período, também a partir de uma perspectiva
comparativa, pode ser achado em Antonio Bento de Faria (1958, p. 87-88). Ele também foi um
Ministro do Supremo Tribunal Federal.
108
Extradição na Itália fascista (1922-1943) e no Brasil de Getúlio Vargas (1930-1945)
considero la presente come preparatoria, qualunque sia il corso di anni di cui essa
abbia bisogno; e intanto anche per l’oggi la parola può accogliersi, intendendola in
senso largo e non stretamente preciso (CARNEVALE, 1933, p. 873).
Esse trabalho examinará o tratado de extradição entre Brasil e Itália em 1932 e a
legislação nacional de cada país sobre o tema a partir do pensamento penalista à
época. O Brasil possuía lei especial sobre o assunto; a Itália, por outro lado, deixou a
matéria a ser regulada por provisões de seu Código Penal2. O objetivo é compreen-
der como tais leis e tratados entre Brasil e Itália são compostos com relação à ma-
nutenção da tradição legal do século XIX ou à ascensão do autoritarismo experi-
mentado por ambos os países com Mussolini e Vargas na primeira metade do sécu-
lo XX e suas doutrinas.
A relação entre tratado e lei nacional é dialética, visto que ao mesmo tempo em
que a legislação doméstica determina o alcance das possibilidades de tratado
(ALOISI, 1938, p. 689), os acordos internacionais atuam diretamente sobre mudan-
ças nas leis de extradição ao introduzir a dinâmica da prática internacional a uma
ordem em particular, influenciando as novas escolhas do legislador.
Nesse sentido, a doutrina penal é um lugar privilegiado, na medida em que
constrói um cenário específico sobre o tema, refletindo ou se afastando das escolhas
político-penais de cada Estado. Já existe, nesse momento, historiografia que analisa
os impactos do autoritarismo sobre o Direito Penal (SBRICCOLI, 1999). Extradi-
ção, aqui, tem dupla aplicação, devido às reflexões contidas nas leis internas e ex-
ternas. É interessante notar como a apresentação de um novo discurso de matiz
autoritária ou a manutenção de um discurso de tradição liberal se comportam nesse
instituto em particular.
O autoritarismo se apresentou após a Primeira Guerra Mundial como uma linha

2. Entretanto, isso não significa que a doutrina italiana não desejasse uma regulamentação específi-
ca sobre o tema: “Il codice penale attualmente in Italia segna, ache in linea di estradizione, un
grande progresso sulle legislazioni che lo hanno preceduto [...] Queste poche statuizioni non
bastano evidentemente a regolare una materia che presenta casi molteplici, e questioni
oltremodo difficili. Cosicchèm quando si tratta di concedere uma estradizione, bisogna
necessariamente ricorrere al trattato che lega nostro governo allo Stato richiedente e qualora il
trattato manchi o taccia, l’autorità giudiziaria nem prendere la sua deliberazione non è vincolata
da alcuna norma positiva” (CASTORI, 1899, p. 19).
109
Diego Nunes
de frente alternativa ao modelo liberal no contexto de crise global. Nos anos de
1930, o Fascismo se viu arraigado na Itália, direcionando-se a um “caminho italia-
no para o totalitarismo” (COSTA, 1999, p. 61). O Brasil, por sua vez, experimentou
um período de incerteza, visto que havia recentemente atravessado a Revolução de
1930, regulada por um governo provisório que prenunciou a futura ditadura de
Getúlio Vargas, que tomaria lugar em 1937.
Uma reviravolta na área das leis penais foi sentida. O Fascismo tomou o Direito
Penal como legitimador de seu discurso por meio da autoridade de impor uma
legislação rígida. Os penalistas do período, guiados por Arturo Rocco3 e Vicenzo
Manzini4, consolidaram a aproximação legalista que fechou os olhos para o com-
promisso cívico dos juristas do período anterior de manter o papel de intérpretes da
Lei, independente de sua natureza, quando esses não se colocavam diretamente em
defesa do Fascismo (SBRICCOLI, 1990; 1973).
No Brasil, há uma clara sucessão de gerações, pelo qual o importado e artificial
debate entre as escolas clássica e positivista e a preocupação em construir uma ver-
dadeira ciência penal nacional passam a ficar para trás. No entanto, a resposta ao
movimento anterior é muito similar à italiano: o direito penal brasileiro se entrega
ao paradigma dogmático de natureza legalista, pelo qual a ciência penal é reduzida
ao estudo das leis penais em vigor. A figura por excelência é Nélson Hungria, que
nos anos iniciais de 1930 lança vários estudos nessa direção5.
Esse trabalho objetiva analisar os padrões (tratados e leis domésticas) relativos
ao caso ítalo-brasileiro, prestando atenção especial à discussão sobre a possibilidade
de extradição de criminosos políticos.

3. Irmão de Alfredo Rocco, jurista italiano da indirizzo tecnico giuridico de Direto Penal. Ver
Arturo Rocco (1932-1933). Veja também Mario Sbriccoli (1990, p. 147-232).
4. Eminente jurista adepto do legalismo, com muitos trabalhos na área de Direito Penal, especial-
mente seu famoso Trattato di diritto penale (1933). Ver também Mario Sbriccoli (1973, p. 607-
702).
5. Jurista brasileiro mais importante no campo da aproximação legalista da área de Direito Penal.
Foi também Ministro do Supremo Tribunal Federal. Ver Nélson Hungria [Hofbauer] (1958).
Ver também Ricardo Sontag (2009).
110
Extradição na Itália fascista (1922-1943) e no Brasil de Getúlio Vargas (1930-1945)
2. O Tratado e a Legislação Nacional de 1932 entre a Tradição
Liberal e a Ascensão do Autoritarismo
Antes mesmo da ascensão de Vargas, mas já sob o Fascismo, Brasil e Itália co-
meçaram negociações para realização de seu segundo tratado de extradição, a ser
finalizado após a Revolução de 19306. Daqui em diante, a lei brasileira e as esparsas
provisões italianas regulariam apenas as lacunas presentes no recente acordo alcan-
çado.
Àquele tempo, o novo Código Penal italiano de 1930 já estava em vigência. A
extradição regulada pelo Artigo 13 serviu como duplo discurso. Externamente,
almejava colocar a Itália à frente de uma recente colaboração internacional para
combater o crime7, na extensão do calibre de máxima aplicação do discurso do
instituto pela redução de extradições políticas8. Isso, portanto, pôs fim a qualquer
desconfiança com relação à efetividade da justiça estrangeira9, porque não haveria

6. “9. – Entaboladas negociações, conseguiram os dois Estados, ao cabo de longos annos, que pre-
cedeu o do Governo Provisório, forma suspensas as conversações a respeito [...] 11. – O Tratado
em apreço é o primeiro que o Brasil celebra com um paiz não americano, e matéria de extardi-
ção, depois de promulgada a Lei n. 2.416, de 28 de Junho de 1911” (FRANCO, 1932, p. 13).
7. “Si, par contre, comme on l’a souvent affirmé, l’extradition doit être considérée comme um acte
de solidarité humaine, les restrictions que nous venons de mentionner ne se justifient nullement
[…] L'un en extradant, l'autre en jugeant, punissant, reclassant, ils ne font que servir une cause
commune, qui est celle de la défense internationale contre le crime. Un regard sur de pouvoir ti-
rer toutes les conséquences de ces vérités primordiales. Si nous croyons devoir rappeler, ce n'est
pas pour critiquer des textes où des réserves, imposées par les circonstances, atténuant la rigueur
des principes. Nous n'avons d'autre but que de mettre en lumière la pénal” (MAAS GEESTE-
RANUS, 1932, p. 21).
8. “I nuovi codici hanno disciplinato l'istituto della estradizione in conformità dei principî
elaborati dalla scienza, accolti nei trattati e nelle consuetudini e sanciti dalla giurisprudenza dei
paesi più civili […] L'Italia tiene il primo posto sia per le tradizioni storiche, sia per l’opera dei
giuristi a cominciare dal fitto medioevo sino a Cesare Beccaria, a Pasquale Stanislao Mancini, ad
Enrico Ferri, onde furono fermati i quattro cannoni fondamentali regolatori della consegna del
reo” (ADINOLFI, 1932, p. 1).
9. “Il codice vigente ha, inoltre, sprezato la tradizione ed il principio del divieto dell'estradizione
del cittadino. Nel proclamarlo il codice Zanardelli si metteva, in conformità dei tempi, nel solco
della generale diffidenza dello Stato verso la giustizia di un Stato straniero [...]” (DE MARSICO,
1935, p. 87).
111
Diego Nunes
nem mesmo a necessidade para tanto no tratado.
Em nível doméstico, entretanto, tal posição encontrou a proposta de intensifica-
ção da lei penal, símbolo do estado de autoridade, como tantas vezes imaginado
pelo Ministro Alfredo Rocco, bem como pela doutrina afiliada ao Fascismo. Nesse
sentido, celebrou a suposta possibilidade de extradição de infratores políticos, o
principal alvo dessa nova concepção de direito penal.
Do conteúdo à execução, a promessa do plenipotenciário Ministro das Relações
Exteriores era sobre respeito às tradições, porque “moldado sobre os mais liberais
princípios da cultura estrangeira legal de nosso tempo, constitui complemento à
série de atos de aproximação previamente assinados entre os dois países” (FRAN-
CO, 1932, p. 13).
O Memorando Explanatório dá grande proeminência, por exemplo, ao princí-
pio de extradição de nacionais, o que até então parecia como uma ruptura dos
acordos entre nações, sendo o Brasil o primeiro país a lançar tal tratado com Itália,
que havia recentemente permitido tal situação com sua nova codificação (FRAN-
CO, 1932, p. 15-21). No caso da extradição de nacionais, Fascismo e Estado Novo
tomaram direções inversas. A possibilidade de extradição de nacionais inserida pelo
Artigo 13 do novo Código Penal italiano era vista pela doutrina, como também na
questão de crime político, como uma ação de vanguarda do regime sob colaboração
internacional10. Não haveria receio, porque estava condicionada à existência de um

10. “Rilevi particolari. 1o) La estradizione deve di regola applicarsi per tutti i delitti. Le eccezioni
debbono contemplarsi nelle convenzioni e nelle leggi interne, ed è preferibile che tali eccezioni si
precisino non mediante il nomen iuris, ma per la quantità e la specie delle pene […] 6o) La
estradizione del cittadino non è consentita se non sia concessa per convenzione. I più eminenti
scrittori – da Bernard a Fauchille, da Holzendorf a Bluntschly, da Pessina a Fiore, da Garofalo a
Longhi – invocavano la soppressione del divieto [di estradizione dei cittadini] in conformità del
voto espresso nel congresso di Oxford [...] Pertanto la nuova disposizioni legislativa merita le
maggiore lode” (ADINOLFI, 1932, p. 14); “Condizioni dell'estradizione – la quale è regolata
dalla legge penale italiana, dalle convenzioni, e dagli usi internazionali – sono (art. 13): … 3º)
che l'estradando non sia cittadino italiano, salvo che l'estradizione non sia espressamente
consentita nelle convenzioni internazionali. Qui è riprodotto il divieto del codice passato, ma
non in via assoluta, come in quello, perchè si ammette che pattuizioni espresse internazionali
possano intervenire. Per tal modo è agevolata la via ad eliminare, con meditata cautela, uno dei
più vecchi e forti ostacoli alla ammissibilità dell'estradizione, che non dipendeva da ragioni
112
Extradição na Itália fascista (1922-1943) e no Brasil de Getúlio Vargas (1930-1945)
tratado, e não meramente dependente de uma declaração de reciprocidade e, até
mesmo em caso de suspeição, o sistema administrativo de autorização garantiria
proteção posterior11.
Entre os tratados que funcionariam sob tal lógica, o primeiro a ser assinado pela
Itália para tais efeitos foi justamente com o Brasil (MANZINI, 1933, p. 420-421). À
época, a Constituição de 1891 e a lei de 1911 permitiram ao Brasil tal acordo. Colo-
car-se no mesmo nível internacional de países que deram efetiva contribuição ao
combate do crime foi grande motivação12.
Respeitando a corrente lei brasileira de 1911 e a cláusula aberta do Artigo 13 do
Código italiano, bem como a tendência de tratados de extradição do começo do

scientifiche, ma da diffidenze politiche” (MAGGIORE, 1932, p. 120-121).


11. “Notevole anche la disposizione del nuovo Codice (art. 13, ultimo capoverso), secondo cui la
estradizione del cittadino non è ammessa, salvo che essa sia espressamente consentita nelle
convenzioni internazionali. L'estradizione potrà essere domandata soltanto da quegli Stati, che
saranno ritenuti dallo Stato italiano idonei a giudicare com le necessarie garanzie di giustizia; né
ciò esclude la possibilità di rifiutare la estradizione in casi eccezionali, essendo dal nostro diritto
interno riconosciuto al Governo un potere discrezionale in tal campo, anche quando esista
trattato speciale e sia stato dall'Autorità giudiziaria manifestato parere favorevole
all'estradizione” (PIROMALO, 1932, p. 68-69).
12. Na Itália: “Per l’art. 9 del codice abrogato il Governo del Re poteva offire o concedere
l'estradizione di un delinquente nel concorso di tre condizioni: che l'estradando non fosse
cittadino italiano; che il delitto, pel quale l’estradizione fosse offerta o domandata, non
costituisse un delitto politico po un altro reato a questo connesso; che dovesse precedere la
deliberazione conforme dell'autorità giudiziaria del luogo, ove l'estradando si trovava. L'art. 13
ha posto nell'ultimo capoverso la prima la prima delle predette condizioni e cioè che
l'estradando non sia cittadino italiano, mitigando però il divieto, nel senso che permette al
Governo di estradare anche il cittadino, quando tale facoltà è espressamente consentita dalla
convenzione di estradizione stipulata col paese nel quale il cittadino ha commesso il delitto. In
tal modo il codice, orientandosi decisamente verso il sistema della legislazione inglese e di quella
nord-americana, permette al Governo di assumere, mediante convezioni internazionali e quindi
con sicurezza di piena reciprocità di diritti e di doveri da parte degli Stati contraenti un impegno
di collaborazione internazionale sempre maggiore, nella lotta contro il delito” (SALTELLI;
ROMANO-DI FALCO, 1930, p. 117); in Brazil: “Com Sobejas razões tem-se impugnado, como
injustificável, semelhante restrição, verdadeiro resquício do direito de asilo, incompatível de
todo com os sentimentos de solidariedade internacional, cerceadora de procedimento eficaz
contra os delinquentes” (SIQUEIRA, 1947, p. 216).
113
Diego Nunes
século XX, deixa-se o modelo de lista exaustiva em troca de uma cláusula genérica
que mantém o emprego do instituto capaz de englobar todos os crimes ordinários
(Artigo 2).
As exceções contidas no Artigo V são as mesmas já apresentadas pela legislação
nacional. Isso excluiu a possibilidade de extradição de crimes “especiais”, dentre os
quais os cometidos pela imprensa, políticos e militares (Artigo V, 5)13.
Uma interessante nova característica foi a inclusão da impossibilidade de extra-
dição se o crime no país requerente fosse de jurisdição de corte de exceção (Artigo
6, b). Tal artigo assume importância por tal extensão que, ao tempo em que entrou
em vigor o tratado na Italia, criou-se o Tribunale speciale per la difesa dello Stato e,
alguns anos depois, o Brasil faria o mesmo com a criação do Tribunal de Segurança
Nacional.
Ainda que as duas cortes tivessem jurisdição para processar crimes políticos,
poderia haver discussão em casos de aplicação da cláusula “suíça” (de predominân-
cia entre crimes comuns e políticos) sob o novo tratado. No entanto, com a possibi-
lidade de extradição pelo entendimento que a ofensa era particularmente comum, a
questão seria se as cortes poderiam julgar tais crimes. Ambas as cortes foram cria-
das como temporárias, mas transformaram-se em permanentes. Seria estranho para
um país considerar excepcional um tribunal que ele próprio mantém14.

13. “Artigo V. Não será concedida a extradição [...] 5) por delitos políticos ou conexos com tais
delitos, salvo si o fato incriminado constituir principalmente infração da lei penal comum. Neste
caso, concedida a extradição, a entrega ficará dependente de compromisso, por parte do Estado
requerente, de que o fim ou motivo político não concorrerá para agravar a penalidade. Qualquer
apreciação sobre a natureza política dos fatos cabe exclusivamente ás autoridades do Estado re-
querido”.
14. Nesse sentido, a interessante opinião de Bento de Faria: “Que se deve entender por Tribunal ou
Juízo de exceção? Evidentemente, são os criados fora da organização judiciária do Estado reque-
rente, sem caráter de estabilidade, para julgamento de determinados casos, não apresentando as
garantias da boa administração da justiça, pouco importando que na sua composição entrem Ju-
ízes do quadro da magistratura regular [...] Não se devem confundir, porém, a jurisdição de ex-
ceção com juízes ou tribunais especiais, aos quais incumbe, normalmente, como integrantes da
organização judiciária, o processo e julgamento de certos fatos, v.g. o Tribunal de Segurança Na-
cional, hoje extinto” (1958, p. 160-161). Como se pode ver infra, não é o único conflito do autor
entre conceito e realidade.
114
Extradição na Itália fascista (1922-1943) e no Brasil de Getúlio Vargas (1930-1945)
Pelo investigado até então, não havia referência à aplicação dessa cláusula no
tratado. Por um lado, ver-se-á que a expansão do conceito de crimes políticos em
ambas jurisdições limita o escopo externo. Por outro, há estudos que mostram uma
ligação na política que permitiria uma ação subterrânea aos meios judiciais, típica
de regimes autoritários15.
O tratado também previu a impossibilidade de extradição para a pena de morte,
permitida na Itália, a não ser por meio de comprometimento de conversão em apri-
sionamento (Artigo 7, 2ª parte). Mesmo depois de uma emenda à Constituição
Brasileira de 1937, tal possibilidade estava aberta para os crimes políticos mais sé-
rios e assassinatos. O Protocolo Adicional de 1937 lidou apenas com a impossibili-
dade de extradição de nacionais, um necessário ajuste à Constituição de 1934 que
havia sido mantida pela letra da Constituição de 1937.
Com o golpe de 10 de novembro de 1937, o Brasil se volta para o autoritarismo.
Afirmado na ideia de nacionalismo, o discurso de marginalização do estrangeiro foi
colocado em prática e refletido nas leis de extradição e deportação (DAL RI JR.,
2006).
O Decreto-Lei n. 394, de 28 de abril de 1938, buscou dar nova forma à extradi-
ção no Brasil. Contudo, diferentemente da lei de 1911, não denunciou os tratados
em vigência, como o ítalo-brasileiro de 1932 com o Protocolo Adicional de 1937.
Suas linhas mestras foram usadas como ferramenta na omissão de provisões sobre
as questões aí tratadas e indicaram as condições para o estabelecimento de novos
acordos bilaterais.
A ênfase da legislação estava na regulação sobre a impossibilidade de coopera-

15. O estreitamento das relações fez até com que o jornal "O Globo" estampasse com grande desta-
que a denúncia de Maurício de Medeiros, de que haveria uma cláusula secreta entre Brasil e Itá-
lia, onde o Brasil empenhava-se em expulsar sumariamente de seu próprio território, e a conse-
lho da Itália, os italianos indicados pelo governo fascista. Na verdade, embora não haja qualquer
evidência sobre a existência desta cláusula secreta, que visava a repressão política policial, o pró-
prio tratado, firmado entre os dois países, em 28 de novembro de 1931, era visto como uma es-
pécie de escândalo repressivo. As principais críticas recaiam sobre o Artigo IV, que previa a “ex-
tradição de seus próprios cidadãos” […] Havia muita boa vontade das autoridades italianas em
relação às brasileiras. Afinal, ambas comungavam o mesmo ódio aos comunistas” (CANCELLI,
2003, p. 13).
115
Diego Nunes
ção, tal como acordada com a Itália em 1931. O Brasil garantiu punir agentes es-
trangeiros em seu próprio território. A regulação também realçou a impossibilidade
de extraditar criminosos políticos, e também as exceções à regra, apesar de a garan-
tia de não-extradição desses mesmos, que apareceu pela primeira vez na Constitui-
ção Brasileira de 193416, mas não se repetiu na letra da outorgada Constituição de
1937.

3. A (Im)possibilidade de Extradição por Crimes Políticos na Era


do Autoritarismo
Ponto sensível com relação à extradição eram os crimes políticos. As mudanças
que Brasil e Itália impuseram em suas leis em tal categoria nos anos de 1930 trouxe-
ram mais discussões ao tópico.
A alteração do conceito de crime político, prevista no Artigo 8 do novo código
italiano gerou inúmeras discussões no campo da extradição. Porém, essa constru-
ção que modifica prescrições do código anterior é tema recorrente no pensamento
penalista à época, tendo em vista o consenso internacional no que concerne sobre o
aumento de colaboração, inclinada a restringir o conceito de crimes políticos17.
Doutrina considerável – geralmente entusiasta do fascismo – defendeu a tese de
que a Itália teria começado a permitir extradição de crime político ao ter omitido
em seu Artigo 1318 a proibição do Artigo 9 do Código de Zanardelli19. Saltelli e Di

16. “Art. 113 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabili-
dade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à proprieda-
de, nos termos seguintes: [...] 31) Não será concedida a Estado estrangeiro extradição por crime
político ou de opinião, nem, em caso algum, de brasileiro”.
17. “Ma la tendenza odierna dottrinale, in ogni modo, in relazione alla pratica degli Stati, sembra
accertabile nel senso di una dichiarazione delle eccezioni all'eccezione, non lasciando più passare
sotto il manto della delinquenza politica reati che veramente non vi rientrano, onde vien meno
la ragione dell'esclusione dell'estradizione” (CONTI, 1927, p. 356).
18. “Articolo 13. Estradizione. L’estradizione è regolata dalla legge penale italiana, dalle convenzioni
e dagli usi internazionali. L’estradizione non è ammessa, se il fatto che forma oggetto della
domanda di estradizione, non è preveduto come reato dalla legge italiana e dalla domanda di
estradizione, non è preveduto come reato dalla legge italiana e dalla legge straniera.
L’estradizione puó essere conceduta od efferta, anche per reati non preveduti nelle convenzioni
116
Extradição na Itália fascista (1922-1943) e no Brasil de Getúlio Vargas (1930-1945)
Falco enfatizaram que essa escolha reflete a grande desaprovação que o Estado fas-
cista dá aos crimes políticos, merecedores de punição severa em qualquer lugar20.

internazionali, purchè queste non ne facciano espresso divieto. Non è ammessa l’estradizione
del cittadino, salvo che sia espressamente consentita nelle convenzioni internazionali”.
19. “I codici precedenti che la proibivano si ispiravano ad una ideologia che il nostro Regime ha
sorpassata e secondo la quale il delitto politico era considerato una violazione di una norma
attuale, e, ad un tempo, preparazione di un diritto futuro […] Anche le situazioni ideali, voi
vedete, ed una di questa era lo stato della coscienza giuridica verso il delitto politico, non
rimangono com quelle storiche” (DE MARSICO, 1935, p. 84); 'Nel nostro diritto interno non
esiste divieto di estradizione per i delitti politici, come, invece, era sancito nell'art. 9 dell'abrogato
codice. I trattati e le convenzioni possono contenere, e in effetti, contengono, limitazioni, in
proposito” (PANNAIN, 1942, p. 138); “Non vi è alcun limite oltre quello indicato, circa la
natura del fatto oggetto della richiesta di estradizione: quindi è possibile l'estradizione anche per
reati politici. L'innovazione della legge italiana è conseguente alla nozione adottata del delitto
politico in dipendenza di quella sullo Stato. Le difficoltà di attuazione della norma dati i trattati
che diversamente stabilivano secondo le precedenti dottrine, non ne diminuiscono certo l’alto
significato di affermazione di um principio d’ordine civile, per cui non è possibile ritenere che
uno Stato costituisca asilo contro i sovvertitori di altro Stato e per cui si possa ritenere in via
generale meno pericolosa delinquenza quella così detta politica, senza nessun esame della
personalità del reo, unico criterio che in materia possa indirizzare a una equità di giudizio. Onde
è che la nostra legge deve attuarsi anche contro il criminale politico con tutti i mezzi di difesa
individualizzata secondo i principi di questo códice” (MANFREDINI, 1931, p. 26); “Non è stata
riprodotta l'altra condizione del codice passato, cioè il divieto di estradizione per delitto politico
o con questo connesso e che occorra una previa deliberazione dell'autorità giudiziaria del luogo
dove l'estradando si trova. La nuova valutazione che il nuovo codice fa del delitto politico, a
differenza delle altre legislazioni a tipo individualista, lo porta a considerare questo delitto con
maggiore rigore e perciò ad escludere ogni forma di favore” (MAGGIORE, 1932, p. 120-121).
20. “La condizione che non si tratti di reati politici o di reati che a questi siano connessi, era
incompatibile com la concezione fascista dello Stato, secondo la quale, nel conflitto fra interessi
dello Stato e interessi del cittadino, quelli dello Stato debbono in ogni caso prevalere. In
conseguenza, il divieto di estradizione per reati politici non è stato riprodotto nell'articolo in
esame. Come a suo tempo abbiamo visto, la nuova legislazione penale italiana há affermato
risolutamente il suo disfavore per iul delitto politico o per il delitto comune commesso anche
soltanto in parte per motivi politici, e quindi era inammissibile per il delitto politico qualsiasi
norme di favore, come quella dell'art. 9 del codice abrogato” (SALTELLI; ROMANO-DI
FALCO, 1930, p. 118); E outros: “Il codice penale abrogato (art. 9, primo capoverso), non
ammetteva la estradizione del straniero per delitti politici, né per reati che a questi fossero
connessi […] Il nuovo Codice repudia qualunque limitazione al riguardo, coerentemente alla
117
Diego Nunes
Galdino Siqueira (1947, p. 219) e Eduardo Espíndola Filho ([1954] 2000, p. 193)
aceitaram esse posicionamento no Brasil. Esse último se fundamentou na frase de
Ugo Aloisi retirada do artigo “Extradição” do Nuovo Digesto Italiano, enciclopédia
jurídica de grande circulação durante o período fascista21. Entretanto, parece que o
autor brasileiro não observou o texto como um todo, pois o próprio Aloisi, apesar
de parecer estar em favor da medida, asseverou o contraditório efeito oposto, de
maior favor aos delinquentes políticos, que a definição do Artigo 8 produziu a nível
externo22.
A preocupação do fascismo em expandir o conceito de crime político criou um
efeito de discrepância entre os planos interno e externo. Por um lado, providenciou
uma grande possibilidade de punição na Itália quando expandiu o rol de compor-
tamentos passíveis de serem enquadrados na categoria particular de crimes que

severa concezione del delitto politico da esso accolta. La Relazione Ministeriale sul Progetto
definitivo pone giustamente in rilievo la contraddizione flagrante delle consuete convenzioni di
estradizioni, in cui il maggiore impegno è promesso per quanto riguarda l'assistenza giudiziaria
internazionale in ordine ai delitti comuni” (PIROMALO, 1932, p. 68-69); “L’estradizione può
essere in linea generali conceduta ad offerta anche per reati politici (art. 8), nessun divieto
essendovi al riguardo nella legge penale italiana; ma se le convenzioni internazionali ne facciano
espresso divieto, l'estradizione non è ammissibile. In tal caso, nella determinazione di reato
politico si deve aver riguardo alla nozione che ne dà la legge italiana” (LEVI, 1934, p. 140-141).
21. In verbis: “Pela inovação (que talvez mais exatamente possa se qualificar de verdadeira revolução
a respeito dos principias unanimemente professados no passado), que realizou o Código Penal
em vigor, parece termos chegados ao ponto terminal do ciclo de exceções, cuja evolução traça-
mos através das legislações dos vários países. O art. 13 não reproduz a proibição relativa aos
crimes políticos, que se encontrava no art. 9 do Código revogado” (ALOISI, 1938, p. 696).
22. “A questa premessa è da aggiungere un’altra, quella cioè che anche in materia di estradizioni noi
siamo vincolati dall’art. 8 dello stesso c. p., il quale dispone che “agli effetti della legge penale” è
delitto politico ogni delitto che offende un interesse politico dello Stato, ovvero un diritto
politico del cittadino; ed è considerato come delitto politico il delitto comune determinato, in
tutto o in parte, da motivi politici. Il contratto, evidentemente esistente fra la nostra legislazione
interna e le convenzioni internazionali, porta alla strana conseguenza: che disposizioni, come
quelle ora riferite dell’art. 8, le quali secondo lo spirito dei nuovi tempi, furono dettate per
irrogare ai delinquenti politici un trattamento penale di maggiore asprezza rispetto ai
delinquenti comuni, possono tradursi, nella realtà, in altrettanti coefficienti di attenuazione”
(ALOISI, 1938, p. 697).
118
Extradição na Itália fascista (1922-1943) e no Brasil de Getúlio Vargas (1930-1945)
tinham uma corte específica com procedimento de exceção23. De outro, a segunda
parte do Artigo 8 do Código de Rocco24 foi contra o princípio de preponderância.
Desta forma, evitava a colaboração internacional por parte da Itália, uma vez que ao
estabelecer o crime político de maneira subjetiva aceitou a preponderância mesmo
que parcialmente. Em adição a Aloisi, tal corrente contou também com o apoio de
Vincenzo Manzini25.
Além disso, a Itália não concordou com tal possibilidade em qualquer tratado,
pelo contrário, como no caso do tratado entre Itália e Brasil (MANZINI, 1933, p.
423). O tratado de 1931 teria deixado as partes na posição do consenso internacio-
nal sobre a matéria. Nas palavras do Chanceler Afranio de Mello Franco, “Verifica-
se do exposto que o Tratado de Extradição com a Itália, ainda no que se refere aos

23. Legge 25 novembre 1926, n. 2008. Provvedimenti per la difesa dello Stato (pubblicata nella
Gazzeta ufficiale n. 281 del 6 dicembre 1926): “Art. 7 [...] Nei procedimenti pei delitti preveduti
dalla presente legge si applicano le norme del codice penale per l'esercito sulla procedura penale
in tempo di guerra. tutte le facoltà spettanti, ai termini del detto codice, al comandante in capo,
sono conferite al ministro per la guerra. Le sentenze del tribunale speciale non sono suscettibili
di ricorso, né di alcun altro mezzo di impugnativa, salva la revisione. I procedimenti pei delitti
preveduti dalla presente legge, in corso al giorno della sua attuazione, sono devoluti, nello stato
in cui si trovano, alla cognizione del tribunale speciale, di cui alla prima parte del presente
articolo”.
24. “Articolo 8. Delitto politico commesso all’estero. Il cittadino o lo straniero, che commette in
territorio estero un delitto politico non compreso tra quelli indicati nel n. 1 dell’articolo
precedente, è punito secondo la legge italiana, a richiesta del Ministro della giustizia. Se si trata
di delitto punibile a querela della persona offesa, occorre, oltre tale richiesta, anche la querela.
Agli effetti della legge penale, è delitto politico ogni delitto, che offende un interesse politico
dello Stato, ovvero um diritto politico del cittadino. È altresì considerato delitto politico il delitto
comune determinato, in tutto o in parte, da motivi politici”.
25. “Con ciò non si esclude che anche in altri reati possa esservi siffatta offesa e quindi il carattere
politico obiettivo. Non sembra che questa nozione sia conveniente, almeno per ciò che concerne
l'estradizione, perchè è manifesto che un fatto delittuoso, ancorchè attentante ad ordinamenti
politici, può essere mezzo per conseguire un scopo meramente individuale, che con la politica
nulla ha da fare. In secondo luogo “sono considerati” politici (soggettivamente politici) i delitti
comuni “determinati, in tutto o in parte, da motivi politici”. Qui i possibili inconvenienti sono
ancora maggiori, sempre con riguardo all’estradizione, perchè basta il concorso di um
qualunque motivo per qualificare come politico un reato che è in sè stesso comune, dando così
motivo agli Stati di negarci l'estradizione” (MANZINI, 1933, p. 425).
119
Diego Nunes
crimes políticos, seguiu a nossa lei, o direito convencional em que o Brasil é parte e
antigas tradições nossa na prática do instituto”26.
De fato, concordou-se em manter a proteção ao criminoso político, contraria-
mente ao que já havia sido estabelecido na Itália, em posição de vanguarda no es-
trangeiro, mas reacionária internamente. A extradição de criminoso político pela
Itália restringiria a possibilidade de uma promessa de reciprocidade baseada na
desobediência à comparação mútua entre os Artigos 8 e 1327. Ainda que com ape-
nas uma abertura inserida no tratado pela cláusula suíça, Manzini não se conven-
ceu, pois a discricionariedade estrangeira custeada pelo Estado requerido facilmen-
te tornaria o arranjo inútil28.
A lei brasileira de 1938, já imbuída do espírito autoritário das leis de segurança
nacional e da Constituição de 1937, apresentou as possibilidades de abertura à im-
possibilidade de extradição de criminosos políticos no parágrafo do seu Artigo 2.º,
§ 2.º, inovador ao colocar uma série de movimentos políticos, se eles agissem com

26. “Verifica-se do exposto que o Tratado de Extradição com a Itália, ainda no que se refere aos
crimes políticos, seguiu a nossa lei, o direito convencional em que o Brasil é parte e antigas tradi-
ções nossa na prática do instituto” (FRANCO, 1932, p. 32).
27. “È inutile dire che la omissione internazionale dell’art. 13 fece apparire il legislatore del 1930
come inovatore e, quasi, rivoluzionario. Ma la fretta di questa deduzione è evidente. Anche nel
vigore del c.p. 1889 un trattato Internazionale avrebbe potuto obligare l’Italia ad estradarre per i
delitti politici, non potento il codice penale, che è una semplice legge, sopprimere tale possibilità.
Lo stesso deve dirsi per il c.p. 1930, mutatis mutandis [...] L’art 13 era dunque tutt’al più una
manifestazione implicita di intenzione con riguardo ad eventuali trattative diplomatiche e niente
altro di questo; ma come manifestazone di intenzione doveva considerarsi deplacé. In ogni
modo la prassi diplomatica dello Stato italiano successiva al c.p. 1930, confermò pienamente il
principio della non estradabilità per i reati politici come dimostrano le Convenzioni con [...] il
Brasile del 28 novembre 1931 (art. 5)” (QUADRI, 1967, p. 38).
28. “Reati connessi a reati politici. – Questi reati non sono presi in considerazione del vigente codice
penale (e però non sono considerati reati politici), bensì invece dalla maggior parte delle
convenzioni d'estradizione, che li equiparano, date certe condizioni, ai reati politici. Le
convenzioni italo-brasiliana del 1931 […] ad es., escludono dall'estradizione i reati connessi a
reati politici, “salvo che il fatto costituisca principalmente un reato comune”, lasciando alle
Autorità dello Stato richiesto ogni apprezzamento in proposito. Si è così stabilito un criterio di
prevalenza assai vago e indeterminato” (MANZINI, 1933, p. 427).
120
Extradição na Itália fascista (1922-1943) e no Brasil de Getúlio Vargas (1930-1945)
violência, no lugar de serem excluídos do subsídio da não-extradição29.
Bento de Faria entendeu que tais crimes, por violarem um sentimento universal
sobre a ordem estabelecida, mereciam punição em qualquer lugar30. Esse argumen-
to é baseado em um consenso doutrinal sobre o assunto desde que os ataques anar-
quistas apareceram no final do século dezenove. A punição, segundo o autor, vale-
ria realmente a pena se tais movimentos tivessem um programa político e fossem
aceitos por algumas nações civilizadas31. É interessante, pois, que, ao final, o autor
diz que a única modificação referente à lei prévia era a questão da extradição de
nacionais.
Importante, de maneira diversa do caso italiano, que toda a discussão sobre o
conceito de crimes políticos no Brasil está fora do novo Código Penal de 1940, que
os deixou em legislação excepcional. Assim sendo, o dissenso político seria comba-
tido criminalmente ao duplicar-se o “nível de legalidade”32 da ordem penal. A força
material do princípio da legalidade foi mitigada com a criação das leis excepcionais
de controle de dissenso político, incluídas também as inovações na extradição de

29. “Não se consideram crimes políticos os atentados contra chefes de Estado ou qualquer pessoa
que exerça autoridade, nem os atos de anarquismo, terrorismo e sabotagem, ou que importem
propaganda de guerra ou de processos violentos para subverter a ordem política ou social”.
30. “Pouco importa que essas formas de delinqüência (anarquismo, niilismo, comunismo, socialis-
mo ou as que lhes sejam equiparáveis com outras denominações), resultem do desenvolvimento
de um programa qualificado como – político [...] Sendo tais criminosos universalmente perigo-
sos, daí resulta para os Estados o dever de direito internacional – da prestação da maior assistên-
cia recíproca em persegui-los” (FARIA, 1958, p. 137).
31. “É certo que certa nação européia adota princípios subversivos das instituições sociais, como a
abolição completa do direito de propriedade. Nem por isso, nos países como o nosso, a propaga-
ção de tal credo há de perder o aspecto de atentado contra a sociedade'” (FARIA, 1958, p. 137-
138).
32. “Entra così nell’ordinamento, frutto quase di una ineluttabile fisiologia, un duplice livello di
legalità [...] Il dualismo nelle regole e nelle pratiche repressive che si viene affermando non
riguarda, peraltro, la sola tutela dell’ordine pubblico: non si tratta soltanto di giurisdizione
contro amministrazione, di codice penale contro legge di pubblica sicurezza, di giudici da un
lato (che amministrano il diritto) e polizia dall’altro (che tutela l’ordine e la sicurezza). Il duplice
livello di legalità discerne i “galantuomini” dai “birbanti” destinandoli a differenti filières
punitive, fa prevalere l’opportunità politica sulla regola giuridica, lo scopo sul diritto”
(SBRICCOLI, 1998, p. 139-141).
121
Diego Nunes
crimes políticos.
Nélson Hungria encarou o assunto em diversas ocasiões. Um exemplo disso foi
seu comentário à Lei de Segurança Nacional de 1935. Ele estava desapontado com
as novas disposições que conflitaram com a legislação tradicional sobre o assunto
(HUNGRIA, 1935, p. 318). Para justificar a situação, citou o Programma di Diritto
Criminale de Francesco Carrara, quando o penalista italiano explicava como era
difícil construir cientificamente tal matéria (HUNGRIA, 1943). Nas palavras clássi-
cas de Carrara, “quando a política entra pela porta, a justiça corre pela janela”33.
Conforme o jurista italiano, se era impossível construir um Direito Penal filosófico
sobre os crimes políticos, era preciso focar no Direito Penal positivo; portanto, Car-
rara se posicionou em relação às leis de seu tempo. Contudo, Hungria se afastou
dos pensadores da penalistica civile34 ao se aproximar do tecnicismo penal quando
se isentou de julgar o trabalho do legislador, que não fez qualquer diferenciação
entre comunistas, anarquistas e outros tipos de dissenso político35.
O resultado é que os principais crimes políticos listados nas leis brasileiras de
segurança nacional e no Código de Rocco, em outras palavras, os crimes de tentati-
va de subversão da ordem36, deixaram de ser crimes políticos de extradição se prati-

33. “Ingenuo, un tempo io credetti che la politica dei liberi reggimenti non fosse la politica dei
despoti: ma le novelle esperienze mi hanno pur troppo mostrato che sempre e dovunque quando
la politica entra dalla porta del tempio, la giustizia fugge impaurita dalla finestra per tornarsene
al cielo” (CARRARA, 1898, p. 674-675).
34. “Una caratteristica permanente dell’esperienza penalistica italiana sta dunque nella durevole
centralità delle questioni penali nelle diverse fasi della vita politica del Paese. Ad essa si correla
un tratto distintivo che riguarda la vocazione, per così dire, della scienza e della cultura giuridica
penali, impegnate con un loro spirito peculiare, storicamente caratterizzato, intorno alle ragioni
ed ai modi del proibire, del prevenire, del giudicare e del punire. Si tratta di quella specifica
attitudine dei penalisti italiani [...] che ho gia `avuto modo di designare come penalistica civile”
(SBRICCOLI, 1998, p. 145).
35. “Haja vista a nossa recente lei de segurança – dec. N. 38, de 4 de Abril de 1935 – que, na defesa
da ordem político-social entre nós dominante, não faz descrime algum entre os brutaes discípu-
los de Bacunine e o “olho de Moscou” ou o mystico sigma do integralismo indígena [...] Deixe-
mos, porém, de lado o aspecto reaccionario do decreto numero 38, apadrinado, aliás, pela Cons-
tituição de 16 de julho, para o apreciarmos como parte integrante do nosso direito constituído,
que é o que é, e não o que devia ser” (HUNGRIA, 1935, p. 312).
36. Embora na Era Vargas (1935-1945) estes não tinham sido os crimes políticos mais frequentes,
122
Extradição na Itália fascista (1922-1943) e no Brasil de Getúlio Vargas (1930-1945)
cados por membros desses movimentos políticos. Temos aqui um verdadeiro ab-
surdo, porque o Artigo V do tratado designou o Estado requerido como autoridade
competente para tal decisão.
Dado o contexto do Artigo 8 do Código Penal Italiano e o desenho conceitual
das sucessivas leis de segurança nacional brasileiras37, em ambos os casos do espec-
tro geral, tal conduta seria sempre considerada crime político no território, pois o
comunismo era a principal oposição aos regimes autoritários no Brasil e na Itália de
então. Não surpreende que os principais defensores do processo político perante as
cortes dos dois países fossem líderes dos partidos comunistas nacionais, Prestes e
Gramsci.
Mesmo restringindo a interpretação aos anarquistas, a situação asseverou-se
porque as ações compreendidas como clássicas ao movimento anarquista eram
punidas pela mesma lei doméstica que punia crimes políticos. Assim, para Manzini,

porque a dificuldade do enquadramento legal e a sua perpetração, comparado com os crimes de


propaganda e associativos (NUNES, 2014). Todavia, aqueles eram os crimes mais sérios, porque
uma vez cometivos poderiam modificar a ordem política e causar uma revolução, e então os acu-
sados não seriam mais criminosos, mas vitoriosos.
37. Os conceitos da primeira Lei de Segurança Nacional (Lei n. 38/1935) vieram como complemen-
tos à propaganda do crime de subversão no Art. 22, mas terminou por tornar-se geral: “Art. 22.
Não será tolerada a propaganda de guerra ou de processos violentes para subverter a ordem poli-
tica ou social (Const., art. 113, n. 9). § 1º A ordem política, a que se refere este artigo, é a que re-
sulta da independencia, soberania e integridade territorial da União, bem como da organização e
actividade dos poderes politicos, estabelecidas na Constituição da Republica, nas dos Estados e
nas leis organicas respectivas. § 2º A ordem social é a estabelecida pela Constituição e pelas leis
relativamente aos direitos e garantias individuaes e sua protecção civil e penal; ao regimen jurí-
dico da propriedade, da família e do trabalho; á organização e funccionamento dos serviços pu-
blicos e de utilidade geral; aos direitos e deveres das pessoas de direito publico para com os indi-
viduos e reciprocamente”. O conceito permaneceu virtualmente inalterado no Decreto-Lei n.
431/1938: “Art. 1º Serão punidos na forma desta lei os crimes contra a personalidade internaci-
onal do Estado; a ordem política, assim entendidos os praticados contra a estrutura e a seguran-
ça do Estado, e a ordem social, como tal considerada a estabelecida pela Constituição e pelas leis
relativamente aos direitos e garantias individuais e sua proteção civil e penal, ao regime jurídico
da propriedade, da família e do trabalho, à organização e ao funcionamento dos serviços públi-
cos e de utilidade geral, aos direitos e deveres das pessoas de direito público para com os indiví-
duos, e reciprocamente”.
123
Diego Nunes
a expansão do conceito de crime político pelo Artigo 8 terminou considerando os
atos de anarquia e de terrorismo como crimes políticos38.

4. Conclusão
O autoritarismo do fascismo alcançou a instituição pelo Código Penal de 1930.
Se a ideia original era a extinção da cláusula, o conceito de crime político desenvol-
vido no mesmo código evitou sua própria eficácia, visto que a excessiva amplitude
interna era expressa como uma restrição em nível internacional. Ademais, houve
até mesmo resistências que impediram ações de serem realizados sem tal cláusula,
da qual o tratado ítalo-brasileiro é exemplar.
A lei de extradição brasileira de 1938 também trouxe influxos de autoritarismo.
Ela tinha por objetivo específico combater o movimento comunista, o inimigo do
regime constitucional, como notado no preâmbulo da Constituição de 1937. A in-
tenção era que a expansão libertasse o país de elementos indesejados.
No entanto, percebeu-se que tal busca pela maior aplicação possível do Direito
Penal, no caso de crimes políticos, criou um paradoxo: quanto mais repressivo em
nível nacional, menos poderoso no exterior. O caso ítalo-brasileiro se mostra inte-
ressante. A inclusão de elementos autoritários na legislação interna, mascarada por
uma posição de vanguarda liberal, possível apenas na dualidade que a extradição
permite, não alcança sucesso internacionalmente. Nesta arena, ambos os países
terminaram por tomar posições mais conservadoras.
Assim sendo, não há como falar sobre Direito Penal fascista como um monólito.
Ele não apenas se usou de princípios de tradição liberal, mas teve, também, de se
desfazer dela de modo a se manter ativo no tempo quando teve maior apoio.

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38. “Per il vigente codice penale i delitti anarchici, o terroristici in genere, sono indubbiamente
delitti politici. Qualche convenzione, peraltro, li esclude dal novero dei delitti politici, agli effetto
dell’estradizione” (MANZINI, 1933, p. 432).
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126
PARTE II
HISTÓRIA DO DIREITO PENAL E DA
JUSTIÇA CRIMINAL LUSO-BRASILEIRA
“SEM PROVA PERFEITA E LEGAL NINGUÉM
DEVE SER CASTIGADO”: O REGIME DE
PROVAS NO PROJETO DE CÓDIGO
CRIMINAL DE MELLO FREIRE
“WITHOUT PERFECT AND LEGAL EVIDENCE NO ONE
SHOULD BE PUNISHED”: THE SYSTEM OF
EVIDENCE IN THE MELLO FREIRE
CRIMINAL CODE PROJECT

6
Marina Tanabe do Livramento *
Murilo Aparecido Carvalho de Robbio **

Resumo: O presente trabalho busca analisar de que Abstract: This paper aims to analyze how the sys-
forma ocorria o regime de provas no Projeto de tem of evidence occurred in the Pascoal de Mello
Código de Pascoal de Mello Freire de 1789, verifi- Freire Code Project from 1789, verifying the way in
cando a maneira com a qual o jurista lidou com a which the jurist handled the proposal for the reform
proposta da reforma das Ordenações até então of the Ordinances until then in force, mainly re-
vigentes, principalmente no concernente às provas garding the evidences in criminal process towards
no processo criminal ante a reformulação do orde- the Portuguese legal system reformulation. From
namento jurídico português. Da análise da fonte the main source analysis, the Freire Code Project,
principal, o Projeto de Código de Freire, e das and from other literature about the subject, it was
demais bibliografias existentes sobre o assunto, concluded that, the Code Project created by Mello
concluiu-se que, o Projeto de Código elaborado por Freire had clear influence of illuminists principles

* Mestranda em Teoria e História do Direito no Programa de Pós Graduação em Direito da Uni-


versidade Federal de Santa Catarina - UFSC. E-mail: marinatanabel@gmail.com
** Mestrando em Teoria e História do Direito no Programa de Pós Graduação em Direito da Uni-
versidade Federal de Santa Catarina – UFSC, bolsista da CAPES e membro do Ius Commune,
Grupo Interinstitucional de História da Cultura (CNPq). E-mail: muri-
lo_derobbio@hotmail.com
129
Marina Tanabe do Livramento · Murilo Aparecido Carvalho de Robbio
Mello Freire teve clara influência dos princípios and its legal provisions influenced future Portu-
iluministas e seus dispositivos influenciaram os guese criminal codes. The main innovations
futuros códigos criminais portugueses. Como brought about the system of evidence, there is a
principais inovações trazidas em relação às provas defense of the existence of a legal and perfect evi-
têm-se a defesa da existência de uma prova legal e dence, without which no one could be punished,
perfeita, sem a qual nenhum indivíduo poderia ser the essential elements in the judicial processes
castigado, a definição de elementos essenciais às definition and the observation of the proportionali-
provas nos processos judiciais e a observação da ty between punishment and crimes committed.
proporcionalidade entre punição e delitos cometi-
dos.
Palavras-chave: Sistema de provas; Mello Freire; Keywords: System of evidence; Mello Freire; Penal
Iluminismo penal; Projeto de Código Criminal. enlightenment; Criminal Code Project.

1. Introdução
Durante toda a sua existência, o que se conhece por processo penal de origem
europeia, revelou como um de seus objetos a obtenção da verdade sobre os fatos
comunicados e levados a juízo. O referido fato pode ser observado em inúmeros
diplomas legais, inclusive, de tradições jurídicas aparentemente distintas. Apesar
das transformações ocorridas ao longo do tempo em relação aos métodos de obten-
ção da prova, como modificação de práticas processuais e pluralização de perspec-
tivas sobre a verdade buscada no processo, aquele objetivo inicial, de certa maneira,
ainda permanece como uma das metas do processo, prestando-se a realização de
valores distintos ao decorrer do tempo. Nesse contexto, tem-se que as práticas pro-
cessuais que são condicionadas pela cultura e hábitos de diferentes comunidades
jurídicas acabam transformando-se historicamente (SOUZA, 2014, p. 10). No que
concerne os métodos de obtenção de justiça no processo penal existente atualmen-
te, o mesmo autor assevera:
O que diferencia o processo penal da atualidade de métodos sumários de obtenção
de justiça é o fato de que este persegue, através do conjunto de seus procedimentos,
duas finalidades: a punição do culpado pela prática de um delito e a tutela do ino-
cente. A história do direito penal pode ser exprimida como a história do conflito en-
tre aquelas duas finalidades, que são logicamente complementares, mas que se mos-
tram, na prática, contrastantes. (...) O que muda entre elas, em essência, são os mo-
dos de compreensão da capacidade que o Estado, enquanto detentor do jus punien-

130
“Sem prova perfeita e legal ninguém deve ser castigado”
di, possui para atingir aquelas finalidades gerais do processo (SOUZA, 2014, p. 11).
A respeito das transformações ocorridas com o passar do tempo no processo
penal, Lima Lopes (2014, p. 532) traz em sua obra características de determinadas
épocas. Afirma que durante a Idade Média havia o problema político central da
separação entre Igreja e Estado, momento em que surgiram instituições e a súplica
por justiça diante de uma autoridade tornou-se elemento fundante do direito dos
príncipes de realizar justiça. (LIMA LOPES, 2014, p. 532). No período medieval
havia disputas entre Igreja e Sacro Império. Nessa época os juristas se tornaram
intelectuais a serviço de uma nova ordem, as formas tradicionais de julgamento
foram abandonadas, dando espaço a formas mais burocratizadas, o julgamento foi
formalizado e o processo passou a ter fases precisas (LIMA LOPES, 2014, p. 553). O
processo canônico deu forma familiar ao processo hoje conhecido, posto que insti-
tucionalizou os recursos (LIMA LOPES, 2014, p. 553). Durante o Antigo regime
surgiu uma definição de regras procedimentais relativas a provas e procedimentos
de recurso, com o objetivo de racionalização e uniformização (LIMA LOPES, 2014,
p. 535, 536). No Estado Liberal, teve início a ideia de universalização da cidadania,
todos passaram a ser iguais perante a lei, e a lei seria uma para todos os indivíduos.
A legitimidade para julgar foi universalizada no Estado (LIMA LOPES, 2014, p.
536-537). No século XI os ordálios, juízos de Deus e outras modalidades de prova
eram questionadas pelos canonistas. A Igreja desenvolveu um esforço de racionali-
zação das provas (LIMA LOPES, 2014, p. 539). A partir do IV Concílio de Latrão
foi preciso racionalizar de vez o sistema probatório. “Duas foram as possibilidades
então existentes: a institucionalização da prova testemunhal na forma do júri (...)
ou a institucionalização da investigação conduzida por comissários do rei (inquisi-
dores), privilegiando o testemunho individual” (LIMA LOPES, 2014, p. 539), o
processo continental foi marcado pelo processo inquisitorial. No modelo inquisitó-
rio o procedimento foi burocratizado (LIMA LOPES, 2014, p. 540-542), e para faci-
litar a atividade, impôs-se a uniformização do processo (LIMA LOPES, 2014, p.
546.)
Portanto, observa-se que a principal importância do Código de Processo Penal
ao longo do tempo encontra-se na reorganização e reforma do funcionamento do
judiciário, adaptando-se a diversas sociedades e culturas ao longo dos anos, pas-
sando por inúmeras transformações.
131
Marina Tanabe do Livramento · Murilo Aparecido Carvalho de Robbio
Paschoal José de Mello Freire dos Reis (1738-1798) figura entre os grandes juris-
tas da tradição portuguesa, tendo exercido magistratura e a docência na Universi-
dade de Coimbra, na qual assumiu a cadeira de Direito Pátrio, criada pelo Marquês
de Pombal. Esse fato é um marco importante, uma vez que a partir daí Mello Freire
iniciou uma sistematização e modernização da antiga e da moderna legislação, do-
tando-a de um sistema doutrinal (CUNHA, 2015, p. 107).
Um ponto interessante de análise sobre a biografia de Mello Freire é o que Paulo
Ferreira da Cunha (1992, p. 34) coloca como “devoção ao pombalismo”, sendo
também o grande teórico-jurista desse período. E embora tenha sido convidado
para elaborar o Código de Direito Público e o Código Criminal após o fim do perí-
odo pombalino, Cunha coloca que Mello Freire nunca abandonou a esfera mental
do pombalismo, sendo responsável por ter se dado a:
[...] tarefa impossível de arquitetar um pombalismo sem Pombal, um despotismo
sem déspota. Dir-se-ia até mais: uma república (monárquica) ilustrada, sem despo-
tismo e com absolutismo iluminado. Enfim, uma utopia - enquanto quimera e en-
quanto sonho racionalista (CUNHA, 1992, p. 34).
O objetivo deste artigo foi lançar uma investigação sobre o regime de prova no
Projeto de Mello Freire, uma vez que constatamos um gap na historiografia jurídica
penal sobre esse tema, como demonstrado no capítulo de revisão bibliográfica.
Apesar de nunca ter sido discutido e, portanto, aprovado e posto em prática (HES-
PANHA, 1993, p. 289; CASTRO, 2015, p. 125-126), o Projeto de Mello Freire foi
imensamente importante para a cultura jurídica não só portuguesa, servindo de
modelo para as próximas tentativas de codificação penal portuguesas (HESPA-
NHA, 1993; ZAFFARONI, 1989), assim como para o caso brasileiro, uma vez que
serviu de “inspiração”1 para o Código Criminal brasileiro 18302 (CRUZ, 2014, p.
224; SILVEIRA, SOUZA, 2015, p.52). Outro ponto importante retratado por Hes-
panha (1993, p. 289) é do fato desse Projeto ter se colocado de confronto a tradição

1. Mais importante que a verificação de uma influência é a demonstração de circulação de ideias,


como do “Code Pénal” francês de 1810 e do próprio Código Criminal do Império do Brazil de
1830. Para uma análise crítica sobre esse fenômeno ver NUNES (2018).
2. Em sentido contrário pela não influência de Mello Freire no Projeto Vasconcelos: BATISTA
(2016, p. 48-49).
132
“Sem prova perfeita e legal ninguém deve ser castigado”
legislativa europeia. Ponto este que é observável na introdução do Projeto de Mello
Freire quando este ressalta que:
Nada interessa mais á humanidade doque hum bom Codigo Criminal: porém eu
não sei onde o há. As leis antigas e modernas da Europa comparadas entre si são a
maior prova desta verdade: porque em todas vemos decisões não só injustas e cruéis,
mas inconsequentes, e contradicções monstruosas entre as mesmas leis e suas cir-
cumstancias, entre os principios da natureza e entre as mesmas instituições civis
(sic) (MELLO FREIRE, 1823, p. I.).
No juizo das penas necessariamente hei de consultar as nossas leis e as visinhas, e a
pratica das nações: mas protesto já não me embaraçar muito com o que ellas dizem:
porque tendo o livro quinto das nossas Ordenações poucas regras que se aprovei-
tem, as leis criminaes estrangeiras ainda tem muito menos (sic) (MELLO FREIRE,
1823, p. XIIII).
É com base no aporte metodológico da História Textual utilizado por Hespanha
(1993) que nos apropriamos de tal lente para um estudo da história do crime e da
pena, nesse caso, com foco no regime de provas dentro do processual penal. Nesse
sentido, os textos jurídicos, para Hespanha (1993, p. 289-290), não seriam sim-
plesmente textos por si só, mas também correspondem a realidades próprias da
história jurídica e institucional. Essas realidades seriam capazes de exercer relações
com as realidades sociais, uma vez que é destas que se dão os pontos de origem para
as reconstruções. Analogicamente, podemos dizer que, para o autor, o projeto de
Mello Freire seria a chave para se analisar a tradição textual (portuguesa) para cons-
truirmos uma história dos fatos empíricos. Levando em conta, também, o fato deste
objeto em questão ser um fato social historiável3, pensamos no contexto da elabora-

3. “Mas, mais do que isto, parece importante sublinhar como os textos, em si mesmos, são factos
sociais <historiáveis>. Como não são apenas receptáculos neutros e disponíveis de ideias ou de
coisas, mas realidades internamente estruturadas, dotadas, por assim dizer, de uma vida e lógica
evolutiva próprias. Realidades que seleccionam as coisas (os objectos) de que neles se pode falar;
que atribuem um certo estatuto sócio-institucional ao autor e que pré-figuram um certo auditó-
rio; que autorizam certa maneira de argumentar ou de provar e excluem as outras; que, entre si,
autonomamente dialogam, convidando à leitura de outros textos e, em contrapartida, interdi-
tando certas referências (i. e., que criam uma certa intertextualidade)”. in HESPANHA (1993, p.
291).
133
Marina Tanabe do Livramento · Murilo Aparecido Carvalho de Robbio
ção desse projeto que pretendia substituir as Ordenações Filipinas, em especial o
Livro V, implementando um conjunto de ideias iluminadas, a partir de uma nova
filosofia política, para modernizar e reestruturar a legislação criminal do reino por-
tuguês. Processo esse já iniciado anos antes com a Lei da Boa Razão, de 1769, e
pelas reformas jurídicas pombalinas, com destaque para a reforma dos estatutos da
Universidade de Coimbra, de 1772 (CASTRO, 2015).
As principais fontes históricas utilizadas neste trabalho foram o próprio Projeto
de Código Criminal, encomendado pela Rainha Maria I entregue à comissão de
revisão em 1789, como parte de um projeto de reestruturação legislativa do reino de
Portugal, de forma que Mello Freire também foi responsável pela elaboração de um
projeto de código de direito público. Utilizamos também o seu livro Instituições de
direito criminal português (no original, encontrado a partir da versão latina “Insti-
tutiones Iuris Criminalis Lusitani”), escrito anos antes do projeto, no qual o autor
reorganiza os princípios direito criminal lusitano sob a influência do novo saber
jurídico-penal proveniente da transição paradigmática iluminista (CASTRO, 2015,
pp. 122-123), utilizando como base as referidas Ordenações Filipinas, fontes roma-
nas e autores como Filangieri e Beccaria. Para complementar, utilizamos bibliogra-
fia da história do direito penal com enfoque nos temas relativos ao Antigo Regime,
Iluminismo penal e codificações, com enfoque em Portugal, nas mencionadas Or-
denações Filipinas e na obra de Mello Freire.
O itinerário deste trabalho é composto de uma revisão bibliográfica do estado da
arte da pesquisa sobre o projeto de Mello Freire na historiografia jurídico-penal.
Em seguida, tecemos algumas linhas gerais sobre o regime de provas nas Ordena-
ções Filipinas para então adentrar no foco desta pesquisa, o regime de provas do
projeto de Código Criminal de Mello Freire, no qual analisamos as principais cate-
gorias, levantando os destaques e identificando a influência do paradigma iluminis-
ta na reformulação da legislação régia de Portugal. A ideia não é esgotar a análise
sobre todos os meios de prova trabalhados por Mello Freire, dado ao nosso limitado
número de páginas, de forma que pretendemos somente lançar algumas linhas ge-
rais sobre o regime de provas elaborado por Mello Freire em seu projeto de Código
Criminal.

134
“Sem prova perfeita e legal ninguém deve ser castigado”
2. A historiografia sobre o Projeto Mello Freire em debate
Existem alguns trabalhos que têm como objeto central a análise do Projeto de
Código Criminal de Mello Freire, suas principais disposições e seu contexto históri-
co, porém, no que tange especificamente a questão do regime de provas no referido
Projeto, não foi possível verificar uma variedade bibliográfica considerável. Até o
momento, observa-se que a historiografia ainda não tratou de forma aprofundada
sobre as características do regime de provas estritamente no Projeto de Código
Criminal elaborado por Pascoal José de Mello Freire.
Há considerável literatura que analisa as características do “Novo Código” de
modo amplo, sem, no entanto, especificar pontos relativos ao regime de provas.
Dentre tantos, cabe citar o discurso de António Manuel Hespanha (1993, p. 289),
que confirma a lacuna existente na história quando observado que o projeto do
Código Criminal de Mello Freire não tem despertado considerável atenção, sendo
que se trata de peça muito relevante, uma vez que serviu como modelo para futuras
tentativas de codificação penal em Portugal. Ainda, ressalta que Freire incluiu em
seu código disposição que se destinavam exclusivamente à definição dos cidadãos e
deu início a valorização de tópicos que destacavam os valores dominantes sociais.
Outra mudança significativa apontada, diz respeito às modificações normativas e
institucionais concernentes ao modo como a punição manifestava-se publicamente.
Nesse contexto, era necessário que a pena passasse a legitimar-se aos olhos da
opinião pública (HESPANHA, 1993, p. 325). Vale ainda destacar o que declarou
Basílio Alberto de Sousa Pinto a respeito do criador do código (PINTO, p. 30-31),
quando atribui a Freire a glória de ser o primeiro, em Portugal, a levantar a voz
contra as bárbaras disposições de uma legislação cruel e vingativa, criando funda-
mentos louváveis para o direito, possibilitando através do “Novo Código”, que o
povo tomasse conhecimento a respeito de sua própria força e dignidade, lançando
fundamentos para uma ciência nova em Portugal. Além disso, verificou-se a exis-
tência de alguns trabalhos acadêmicos a respeito de parte dos assuntos aqui trata-
dos, como a dissertação de mestrado de Eduardo Emanoel Dall’Agnol de Souza,
citada em diversos trechos do presente artigo, principalmente por abranger temas
como as Ordenações Filipinas, as que antecederam o para o Projeto de Código
Criminal de Mello Freire e, por isso, são mencionadas após a introdução do traba-

135
Marina Tanabe do Livramento · Murilo Aparecido Carvalho de Robbio
lho.
Assim, como já trabalhado na introdução deste texto, o que se buscará fazer,
ainda que de modo pontual, no presente trabalho, é verificar de que maneira ocor-
ria o regime de provas no projeto de código criminal de Pascoal José de Mello Frei-
re, posto que foi a partir da elaboração de tal instrumento que surgiu a necessidade
da existência de provas consideradas perfeitas e legais para que um indivíduo pu-
desse, por fim, ser castigado. Portanto, ante a pertinência de uma pesquisa historio-
gráfico-jurídica a respeito de como se dava o regime de provas no projeto de Códi-
go Criminal elaborado pelo jurista Mello Freire no ano de 1786, em contraste com
o que dispunham as Ordenações anteriores acerca do mesmo assunto, que será
analisado o disposto no referido código.

3. O regime de provas nas Ordenações Filipinas


Sabe-se que Pascoal de Mello Freire foi o encarregado pela reestruturação do Li-
vro Quinto das Ordenações do Reino através do Decreto de 31 de março de 1778,
de D. Maria I, que criou uma Comissão para a reforma de toda a legislação existente
em Portugal no período (SUBTIL, 1991, p. 80). Contudo, para que se compreenda o
motivo pelo qual fazia-se necessária uma completa modificação das Ordenações até
então vigentes, é fundamental o conhecimento das principais características das
Ordenações que antecederam o “Novo Código” e suas tentativas de mudanças
drásticas, as Ordenações Filipinas. A respeito desta, Freire, logo na introdução do
projeto cita a necessidade de pronunciar os sérios defeitos que possuía o livro V, o
considerando omisso quanto a ordem e a matéria. (MELLO FREIRE, 1823, p. II).
As Ordenações Filipinas sucederam as Ordenações Afonsinas e Manuelinas,
sendo que o sistema de penas previsto pelas Ordenações Filipinas acompanhou o
previsto nas demais Ordenações anteriormente existentes e suas Leis Extravagantes,
mantendo as ideias de desigualdade das penas. Destaca-se aqui a pena de morte,
que conforme ocorria nas Ordenações anteriores, continuou a ser amplamente
utilizada (FIGUEIREDO, 2015, p. 31). Outras espécies de sanções graves também
vigoravam nas Filipinas, como as penas corporais de mutilação, corte de membros,
açoites, degredos, galés, prisão, entre outras (FIGUEIREDO, 2015, p. 33).
Assim sendo, Freire passa a dirigir inúmeras críticas ao que dispunha as Orde-
136
“Sem prova perfeita e legal ninguém deve ser castigado”
nações Filipinas, uma vez que, de acordo com suas convicções, as Filipinas “não
respeitavam aquela ordenação lógico-sistemática tão cara à Lei da boa razão e aos
estatutos de 1772” (CASTRO, 2015, p. 127), afirmando ainda, que as referidas or-
denações tratavam-se de legislação injusta, inconsequente e cruel, visto que os deli-
tos não encontravam-se diferenciados ou separados entre si por sua classe ou or-
dem e as regras gerais a respeito dos delitos, penas, indícios e provas mostravam-se
omissas (CASTRO, 2015, p. 127).
De acordo com Hespanha (2015, p. 262), as provas seriam “atos pelos quais as
partes tentavam demonstrar ao juiz a sua versão sobre um facto controverso”, e
poderiam ser obtidas através de testemunhas, documentos, juramento e confissão.
No que concerne especificamente o regime de provas nas referidas Ordenações,
tem-se que:
(...) vigorou nas Ordenações Filipinas um aparato probatório de justiça criminal for-
temente influenciado pelo antigo Direito Romano e pelo Direito Canônico. Em rela-
ção ao sistema de provas que orientava o processo criminal das Ordenações, houve
uma integração de diferentes fontes, tendo o sistema romano-canônico convivido
com resquícios do sistema de provas primitivas anterior à reconquista cristã na Pe-
nínsula Ibérica. O resgate do sistema probatório romano nas Ordenações envolveu a
incorporação de regras como a actori incumbit probatio, mas se destacou pela reto-
mada de um sistema de classificação das provas (SOUZA, 2014, p. 20).
Ainda a respeito das provas nas Ordenações Filipinas, estas deveriam ser produ-
zidas durante a dilação processual, sendo que os principais meios utilizados para as
obter eram o interrogatório do acusado e a inquirição de ao menos duas testemu-
nhas. Se tais meios cumprissem determinados requisitos, estariam aptos a produzir
prova plena e não contestável, capazes de fundamentar a decisão judicial final
(SOUZA, 2014, p. 22). Destaca-se que o papel fundamental objetivado por meio da
atividade probatória era a obtenção de uma prova que pudesse ser considerada
plena, ou seja, uma prova que demonstrasse efetivamente que o fato que originou o
julgamento era incontroverso. Caso não fosse possível a obtenção de provas plenas
por meio das testemunhas, ocorria a tentativa de obtenção mediante a confissão
judicial, esta tida como “meio de se formular um juízo preciso sobre a autoria de
um crime, resolvendo incertezas e garantindo a correção da pena a ser aplicada”
(SOUZA, 2014, p. 23).
137
Marina Tanabe do Livramento · Murilo Aparecido Carvalho de Robbio
No que diz respeito a inquirição do réu, as Ordenações indicavam que o juiz po-
deria realizá-la a qualquer momento do processo, no entanto, para sua realização, o
réu deveria encontrar-se em liberdade. Além disso, a inquirição deveria ser feita de
modo leal, sem que houvesse insinuações de respostas, sem dolo e sem violência,
diferente do que ocorrida durante a Inquisição, quando perguntas dúbias e violên-
cia eram permitidas (ARAÚJO, STRICKER, 2019, p. 71).
No Império Português, o “sistema tarifado” de provas foi recepcionado quanto às
provas de fato, conforme se depreende das Ordenações (OF, 52), porém, quanto às
provas de direito, foi recepcionado de forma particularizada, pois cedia diante dos
privilégios e dos costumes (OF3, 53, §7º ao § 9º). No sistema português, o panorama
era o de exigir-se prova plena para a condenação, que deveria ser produzida pelo
acusador – promotor ou querelante. Documentos dotados de fé pública ou o teste-
munho concorde de duas testemunhas acima de qualquer suspeita também consti-
tuíram prova plena, dado a forte capacidade de convencimento para subsidiar a de-
cisão da causa. Já a prova semiplena, que não era suficiente por si mesma – como o
testemunho único ou de duas testemunhas não confiáveis, as confissões extrajudici-
ais e as presunções simples (... elididas por prova mais forte em contrário – necessi-
tava estar associada com outros subsídios para servir como base para a convicção do
juiz) (ARAÚJO, STRICKER, 2019, pp. 65-66).
Ainda sobre o tema, insta salientar que as Ordenações Filipinas estabeleciam
que, quando houvesse dúvida acerca das provas produzidas, o juiz não deveria con-
denar o acusado por conta do princípio da inocência. A regra geral determinava
que provar a ocorrência do delito cabia ao acusador, caso não houvesse a compro-
vação, o resultado seria a absolvição. A busca pela verdade acontecia por meio de
provas, como documentos, confissão e testemunhas (ARAÚJO, STRICKER, 2019,
p. 66).
No tocante a avaliação das provas, tem-se que sua validade era atribuída de
acordo com critérios fixos e obrigatórios que o direito estabelecia, sendo que a livre
apreciação pelo juiz predominava. A prova plena deveria ser admitida em juízo e as
presunções de direito deveriam ser tidas como provas verdadeiras e perfeitas, desde
que não elididas por outras provas, devendo a sentença ser pronunciada de acordo
com elas (HESPANHA, 2015, p. 263).
À vista disso, é possível compreender os motivos das críticas realizadas por Mel-

138
“Sem prova perfeita e legal ninguém deve ser castigado”
lo Freire às Ordenações Filipinas, posto que considerava os dispositivos penais
constantes no Livro V das Ordenações revogadas pelo uso, principalmente as dis-
posições que iam de encontro a política utilitarista do direito penal (COSTA, 2013,
p. 57). Ainda, o texto das Ordenações foi tido como cruel em demasia quando con-
siderados os fundamentos e ideias iluministas que guiaram Freire. Dessa forma, é
possível constatar a real necessidade de elaboração de um Código capaz de refor-
mar de forma drástica a legislação penal até então vigente, árdua tarefa realizada
por Mello Freire e concluída no ano de 1789.

4. O regime de provas no Projeto de Código Criminal de Mello


Freire
Em seu Projeto, Mello Freire tinha como foco a relação entre os crimes e as pe-
nas, porém, o autor acabou dedicando 22 títulos a questões processuais4, de forma
que é possível deduzir que os elementos componentes do regime de provas toma-
ram a atenção do autor já que inaugura o momento processual do seu projeto e é
seguido por pelo menos mais 9 títulos. Ressaltamos que o intuito deste artigo não é
esgotar os meios de provas trabalhados por Mello Freire, de forma que focamos em
dois tipos que consideramos essenciais e apresentamos linhas gerais sobre algumas
outras provas.
O autor inicia sua exposição a partir do axioma “Sem prova perfeita e legal nin-
guem deve ser castigado” (sic) (MELLO FREIRE, 1823, p. 106), com clara influência
das classificações do capítulo XIV da obra de Beccaria (1999). Essa breve asserção

4. Sendo eles: “Das provas” (XXXXV), “Dos indícios ou presunções” (XXXXVI), “Dos confessos”
(XXXXVII), “As perguntas aos reos como se farão” (XXXXVIII), “Da prova por testemunhas”
(XXXXVIIII), “Das testemunhas judiciaes” (L), “Da confrontação dos reos entre si e com as tes-
temunhas” (LI), “Da prova por escritura” (LII), “Dos delictos occultos e de dificil prova” (LIII),
“Das denuncias” (LIIII), “Das querelas e accusações (LV), “Das devassas” (LVI), “Da pronuncia
dos reos, das cartas de seguro, caução fidejussória, guarda do corpo, da homenagem, arrebesto
de bens e exercicio dos cargos publicos no carcere” (LVII), “Do corpo de delicto” (LVIII), “Da
informação da justiça” (LVIIII), “Do processo judicial” (LX), “Como se procederá contra os au-
sentes, mudos e surdos, menores, cidades, mortos” (LXI), “Do juiz competente” (LXII), “Da
sentença final em relação” (LXIII), “Das apellações (LXIIII), “Da execução da sentença” (LXV)
e, por fim, “Modos por que se extinguem as obrigações criminaes” (LXVI).
139
Marina Tanabe do Livramento · Murilo Aparecido Carvalho de Robbio
sintetiza boa parte dos princípios iluministas que guiaram toda a exposição do au-
tor sobre o regime probatório do seu projeto, sendo mister aqui reproduzir os axi-
omas fixados pelo próprio Mello Freire (1966, p. 128) sobre a prova:
1. Ninguém deve ser condenado sem prova legítima e plena, mais clara que a luz do
Sol, lei I6 do tit. De poenis do Código, lei últ. do tit. De probationibus do Código, lei
últ. Do tit. Si ex falsis instrumentis do Código.
2. Tal é a que se forma segundo as prescrições da lei.
3. A que faz o juiz sabedor seguro do facto ilícito e seu autor.
4. Portanto, prova plena não resulta de presunções e indícios por sua natureza fala-
zes.
5. Nas causas-crimes quase não se deve fazer caso nenhum da prova chamada semi-
plena.
6. E não exceptuamos os crimes privilegiados, pois, quanto mais grave o delito, mai-
ores provas se requerem.
7. O réu, acusado dum crime, e por isso mesmo encarcerado, não deve ser havido
como culpado, antes de ser dele convencido.
8. É plena e perfeita a prova a que o próprio juiz aquiesceria, se com ela fosse conde-
nado por outro.
9. As provas, quanto mais distintas e separadas entre si, maior fé fazem.
10. A convicção íntima, que o juiz obteve por si mesmo, por exemplo, com os seus
próprios olhos, embora seja mais certa do que a obtida através das testemunhas ou
doutra origem, não faz fé, visto não resultar dos autos, segundo os quais o juiz deve
julgar.
11. Nas causas-crimes os termos provatórios não são peremptórios, devendo-se, por
isso, admitir até à sentença tanto as provas da parte do réu, como da parte do autor
(Tit. I, § XXVIII). Filangieri, tomo III, cap. XV, P. I. (sic)
Partindo para as definições de prova em Mello Freire, este dispõe no seu “Insti-
tuições de direito criminal português”: “Chama-se prova o acto judicial pelo qual se
faz plena e legítima fé ao juiz que inquire sobre a verdade do delito cometido pelo
réu” (sic) (1966, p. 126). Ao passo que no seu projeto a definição altera um pouco o
ponto de vista: Ҥ1 E tal se diz aquella, de que resulta huma certeza moral do delicto,
140
“Sem prova perfeita e legal ninguém deve ser castigado”
e do delinquente, e a impossibilidade moral da sua inocência, havida por aquelle
modo que a lei determina” (sic) (MELLO FREIRE, 1823, p. 106). As duas definições
são complementares, já que abordam momentos diferentes da análise sobre a prova
dentro da obra específica que se encontram. Já no §2 temos as possibilidades de
provas para a inquirição do juiz que serão trabalhadas nos títulos seguintes, sendo
estas os indícios e presunções a partir de fato ou testemunho (próprio ao juiz ou
alheio a este5), confissão, testemunhas e da prova por escritura (MELLO FREIRE,
1823, p. 106).
Ponto importante e inovador deste projeto é o que conhecemos hoje por pre-
sunção de inocência, princípio até então não aplicado nas legislações criminais
europeias6 e que faz parte da visão humanista sobre a matéria criminal:
§4 Deve o juiz ter e tratar o acusado por inocente, emquanto não houver contra elle
a certeza bastante para o julgar delinquente, e que seja capaz de resolver e determi-
nar o homem a obrar as acções mais importantes da sua vida. E pondo o caso em si,
não condemnará o reo na pena ordinária do delicto, sempre tenha aquella prova e
convencimento, que o obrigue a conformar-se com a sua própria condenação (sic)
(MELLO FREIRE, 1823, p. 106)
O §5 parece se direcionar aos juízes, fazendo referência a justa punição, uma vez
que é impossível para a lei dos homens fixar regras e os graus de certeza da probabi-
lidade moral e da evidência que pode o juiz alcançar, devendo estes serem guiados
por um “juízo do coração” e pela bondade, castigando de maneira a não incorre-
rem em inocência nem em impunidade (MELLO FREIRE, 1823, pp. 106-107). Na
mesma toada, o §6 abole a doutrina das provas privilegiadas, com a justificativa em
favor do réu e da república, argumentando ainda que em todos os crimes, em espe-
cial nos mais atrozes seriam necessárias “as mesmas ou maiores provas” (MELLO
FREIRE, 1823, p. 107). Com isso, Mello Freire abandona o estilo probatório do ius
commune, caracterizado pelo princípio da taxatividade do valor das provas e abraça

5. Sobre essa questão, o §2 deste título sobre as provas vai tratar a respeito da impossibilidade do
juiz condenar ou absolver sem provas alheias a ele mesmo. MELLO FREIRE, 1823, p. 106.
6. “Os indícios para a prisão estão em poder do juiz; para que alguém prove ser inocente deve ser
antes declarado culpado; chama-se a isso processo ofensivo, e são esses, por quase toda parte da
esclarecida Europa do século dezoito, os procedimentos criminais” in BECCARIA (1999, p. 68).
141
Marina Tanabe do Livramento · Murilo Aparecido Carvalho de Robbio
a livre valoração das provas7, marca do pensamento iluminista a partir de uma lógi-
ca utilitarista (SOUZA, 2015, p. 35).
Ainda sobre esse item, Mello Freire aponta como referência os §§ 32 e 33 do Tí-
tulo XIII (1823, pp. 29-30), que se refere aos crimes de alta traição. Tais artigos
tratam respectivamente sobre: “§32 Mas extraordinária e economicamente, em falta
de prova legal, pode ter logar a prisão perpétua ou temporaria, ou outra semelhante,
segundo os indícios e presunções, se assim o pedir o bem e segurança do Estado”8
(sic) e “§33 E pela mesma razão se poderão por indícios ou por huma justa preven-
ção e cautela prender e segurar os filhos e outros parentes dos culpados, por muito ou
pouco tempo, segundo as circumstancias” (sic). Essa discussão se mostra importan-
te, uma vez que em seu Projeto, Mello Freire considerou a lesa-majestade9 (contra o
soberano) e a alta traição (contra a pátria) como os crimes mais graves cometidos
contra a ordem política, rompendo com duas tradições, a de banalização dos laços
políticos rei-súdito e a de uma concepção personalizada de poder (HESPANHA,
1993, p. 343 e 346).
Os próximos itens tratarão sobre questões mais práticas acerca das provas. No

7. O penalista Eduardo Emanoel Dall’Agnol de Souza, em dissertação de mestrado, traz um inte-


ressante ponto de vista sobre esse assunto a partir do artigo “Riflessioni sulla cultura dela prova”
de Bruno Cavallone: “Sobre a prova legal, CAVALLONE afirma que se formaram muitos este-
reótipos em manuais sobre a matéria, mas que há razões para acreditar que um rígido sistema da
prova legal (tal como é concebido atualmente, como antinomia teórica do princípio da livre
convicção) nunca existiu nem poderia existir. Há razões para acreditar que ele teria sido uma in-
venção retrospectiva de VOLTAIRE e seus epígonos, que foi pensada para ser contraposta aos
valores da iluminada razão moderna. Pode-se notar, de fato, no amplamente divulgado libelo de
VOLTAIRE Le prix de la justice et de l’humanité, publicado originalmente em 1777, uma forte
critica à vinculação do valor da prova aos depoimentos uniformes de duas testemunhas, inclusi-
ve com a demonstração de exemplos dos inconvenientes desse modo de proceder” (p. 32-33) e
“Não vigorou em plenitude um princípio da taxatividade do valor das provas, e emergiu a livre
valoração das provas, que teria por tarefa corrigir muitos erros de inferência de investigação” (p.
35) in SOUZA (2015).
8. Esse ponto talvez mereça mais atenção sob o ponto de vista que Stefano Solimano utilizou em
sua análise da “exceção permanente” do Código Penal napoleônico, uma vez que a construção
da definição de crimes políticos se utilizou de conceitos tão amplos que poderia ser aplicada em
todos os casos. Sobre esse assunto: SOLIMANO (2015, p. 1-35).
9. Sobre uma análise histórica da repressão política no direito criminal: DAL RI JR (2005; 2006)
142
“Sem prova perfeita e legal ninguém deve ser castigado”
§7, Mello Freire (1823, p. 107) trabalha sobre a força das provas no convencimento
do juiz, que quanto mais separadas e independentes forem as provas umas das ou-
tras, melhor seria. Sendo clara aqui a influência da obra de Beccaria (1999, p. 56)
mais uma vez. Partindo para o §8 (1823, p. 107), o autor submete a inquirição, ave-
riguação de provas, aplicação de castigos ou a defesa do delinquente a realização do
exame de corpo delito (Título LVIII), visando verificar se verdadeiramente houve
delito, sob pena de anular o processo (1823, p. 126). Por fim, os §§ 9 e 10 vão na
mesma toada do anterior, visando a certeza do cometimento de fato ilícito para
aplicação do castigo e a não admissão de prova de delito absolutamente improvável,
respectivamente (1823, p. 107). Observa-se, portanto, a preocupação do autor em
elaborar uma primeira parte do regime de provas que contenha as linhas gerais do
aporte iluminista para diminuição do arbítrio judiciário (HESPANHA, 1993, p.
322).

4.1. Dos indícios e presunções


Partindo para o detalhamento das categorias levantadas nessa parte introdutó-
ria, Mello Freire segue diretamente para a análise dos indícios e presunções (Título
XXXXVI) que visam guiar o convencimento do juiz quando em contato com as
provas de um caso. Visando eliminar quaisquer traços de arbitrariedade do juiz
nesse quesito, o axioma proposto por Mello Freire (1823, p. 107) dispõe o seguinte:
“A presunção, que resulta dos indícios ou sinaes apparentes ou prováveis do delic-
to, não faz prova legal” (sic).
Visando criar uma linha de raciocínio lógico sobre a matéria, nos damos a liber-
dade de analisar esse título fora da ordem cronológica dos seus itens. O cerne da
questão do regime de provas e do livre convencimento do juiz é resumido por Mel-
lo Freire no seguinte item:
§8 E como seja impossível ao curto entendimento do homem fixar as regras da cer-
teza ou probabilidade moral, e o valor intrínseco das presunções: o juiz, a quem de
necessidade deixamos essa liberdade, combinado os indícios que apparecem com o
facto criminoso, e com a maior ou menor proximidade que com elle tem, não con-
demnará na pena ordinaria do delicto, semque aos mesmos indícios se ajunte algu-
ma espécie de prova legal havida por testemunhas, ou por confissão vocal do reo, ou

143
Marina Tanabe do Livramento · Murilo Aparecido Carvalho de Robbio
por escrito (sic) (MELLO FREIRE, 1823, p. 109)
Os §§ 9 e 10 reafirmam essa proposição ao disporem, respectivamente, sobre a
impossibilidade de condenação: com base em alguns indícios, devendo ser levado
em conta outras provas, testemunhas e até a vida privada e as ações antecedentes e
subsequentes do réu; e quando esses indícios e provas imperfeitas não forem capa-
zes de convencer o juiz do cometimento do delito. O §6 dispõe que a pena ordinária
é relativa a pena própria do delito, ou seja, aquela imposta pela lei. (MELLO FREI-
RE, 1823, pp. 108-109)
No §1, Mello Freire coloca que não há presunção indubitável, necessária ou jus-
tificada por lei, podendo sempre aquela desvanecer caso haja provas em contrário.
Continuando no §2 o raciocínio de que é necessário provas e indícios suficientes
para condenação do réu quando houver presunção fundada em situações como:
fuga do réu; seus costumes; sobressalto ao responder perguntas; seu silêncio; con-
tradições ou mentiras; este ser encontrado no momento e local do delito; dentre
outros (1823, pp. 107-108).
Já nos §§ 3, 4 e 5, o autor aborda situações específicas da presunção de adultério
e de homicídio, nos quais, apesar de aparente prova perfeita, não se deve prosseguir
na condenação sem a concorrência de outros indícios, conjecturas e provas. Apre-
sentando, assim motivos que desvanecem tais presunções nos casos concretos dis-
postos. Dispondo logo em seguida no §7 sobre situações que tornem suspeitosa a
presunção como: depoimento de uma única testemunha; confissão fora de juízo ou
mesmo em juízo quando extorquida e obtida com interrogatório repetitivo e imper-
tinente; obtida dos escritos particulares do réu; interesse do réu no delito; dentre
outros (1823, pp. 108-109).
Por fim, encerrando esse título, Mello Freire trata no §11 dos crimes com poten-
cial danoso para a sociedade (incluindo o coletivo e o individual) que ofereçam
indícios fortes e bem fundados ou por outros modos que configurem prova perfeita
e legal, podendo o réu ser condenado por pena de prisão, degredo (temporário ou
perpétuo) ou em outra pena extraordinária, visando prevenir e evitar o perigo para
a sociedade. O mesmo valeria no caso do §12 para criminosos que agem “por pura
malignidade, crueldade e maldade de coração”. O autor ressalta, ao final, a excepci-
onalidade da natureza desses crimes, advertindo no §13 que os demais crimes só

144
“Sem prova perfeita e legal ninguém deve ser castigado”
poderão ser castigados a partir de provas legais (MELLO FREIRE, 1823, pp. 109-
110). Observamos, portanto, que todo o detalhamento desta questão, que pratica-
mente hoje não existe nos ordenamentos jurídicos atuais, é marca registrada do
Antigo Regime.

4.2. Dos confessos


Parte essencial do regime probatório do Antigo Regime10 é a prova obtida atra-
vés de confissão, podendo, inclusive, ser obtida através de tortura (ARAUJO,
STRICKER, 2019, pp. 67-69). Apesar de ter perdido sua centralidade com a chega-
da das provas científicas no final do século XIX, a confissão ainda se demonstrou
um dos principais meios de obtenção de provas, sendo definida por Mello Freire
(1823, p. 110) como:
A confissão voluntária, espontanea, judicial, e especifica do delicto, e verisimil pelas
circumstancias, concordando com as provas e indícios do processo, feita pelo maior
de vinte cinco anos, que sabe e intende as consequencias, sem dolo, erro ou engano,
ameaças, terror, medo, e só por consciência do crime de sua certeza (sic)
Para a realização da confissão, primeiramente o réu deve prestar juramento para
o juiz, devendo, após isso, ser acompanhado por duas testemunhas e um oficial
com fé pública (além do juiz), sendo reconhecida e assinada, conforme colocam os
itens §§6 e 1, respectivamente. No §5, desse título XXXXVII (sic), o autor coloca
que nenhuma forma de confissão (voluntária, extrajudicial ou feita em juízo) é ca-
paz de condenar o réu sem que haja comprovação por outras provas ou do exame
de corpo delito (§3). No caso da confissão aparentar não ser inteiramente voluntá-

10. Sobre a importância da confissão nesse momento histórico: “A importância da confissão como
prova, em ambas as jurisdições, residia em boa parte no fato de ser sacramento e, portanto, fer-
ramenta sagrada para salvação da alma. Na Inquisição, sua proeminência se deve ao segredo da
consciência, no qual se consumavam as heresias, o que tornava juridicamente necessário fazer o
réu confessar. Por isso não espanta que o procedimento inquisitorial fosse todo construído para
facilitá-la ou confirmá-la: prevista antes de todos os principais procedimentos, na confissão era
permitida a elaboração de perguntas dúbias e tinha rito exclusivo – as sessões de admoestações.
Além de significar, para o Santo Ofício, o fim da “busca pela verdade” mediante o processo cri-
minal, tal prova dava a oportunidade de colocar em prática, até certos limites, seu próprio fun-
damento institucional de justiça e misericórdia” (ARAUJO e STRICKER,2019, p. 123).
145
Marina Tanabe do Livramento · Murilo Aparecido Carvalho de Robbio
ria (loucura, desesperação, melancolia, etc), apresentada no §2, cabe ao juiz solicitar
o exame do réu por um médico perito, visando atestar o juízo e capacidade do réu
(MELLO FREIRE, 1823, pp. 110-111). Ponto importante colocado pelo autor se
refere à relação do disposto neste título com os “crimes capitaes” (sic):
§8 Tudo que fica dito da confissão do reo, se intende dos crimes capitães e outros
que tiverem pena aflictiva do corpo, e de infâmia; porque nos leves não he preciso
que concorrão todas circumstancias acima indicadas, para se haver a confissão por
legal: o que tudo mui escrupulosamente encommendamos á religião dos juizes (sic)
(MELLO FREIRE, 1823, p. 111)
Sobre as penas corporais no projeto de Mello Freire é importante notar os traços
distintivos com o Antigo Regime, possuindo a pena o caráter não só retributivo
mas também preventivo, como colocado pelo próprio autor no início do título IIII
(sic) sobre as penas (MELLO FREIRE, 1823, p. 6). No §1, e previsto a utilidade da
pena de morte natural (a ser realizada num só golpe, na forma da sentença e com
aparato próprio, como previsto no §3), porém, são proibidos os castigos e penas
cruéis para todos os delitos e crimes, independente da gravidade destes. Tais casti-
gos são exemplificados no §2, sendo a “pena de fogo em vida”, “laceramento ou
cortamento de membro útil e necessario para a vida natural e social do homem”
(sic) e “todo o genero de morte lenta e vagarosa e á força de repetidos golpes e tor-
mentos” (sic) (MELLO FREIRE, 1823, p. 6).
Ainda, em relação as provas, o §34 dispõe que a pena e o castigo deverão ser
aplicados após apresentadas as provas do crime, além de poder recair somente con-
tra o criminoso e nunca contra sua família (quando inocentes). Vale mencionar que
o §29 coloca que para os “crimes capetaes” (sic) caberia além da pena de morte as
penas de açoite, galés e “depois” a de fogo, laceração de membros, “proscripção”
(sic) da memória, confisco e semelhantes. Temos aqui uma possível contradição e
não encontramos nas duas fontes do autor ou na bibliografia nenhum dado mais
preciso sobre os crimes ditos capitais e essa possível contradição de Mello Freire.
Retomando a discussão específica sobre esse item, duas situações interessantes
são a dos §§4 e 7. Na primeira temos a impossibilidade de ocorrência da confissão
por sentença, já passível de ser “passada em julgado” para a condenação do réu,
devendo esta ser confrontada com o processo e com todos os meios de provas. Já no

146
“Sem prova perfeita e legal ninguém deve ser castigado”
§7 temos a disposição de que a confissão do réu é capaz de fazer prova somente
contra ele, não prejudicando aqueles citados pelo réu como cúmplices11, a não ser
que haja provas que os incriminem (MELLO FREIRE, 1823, pp. 110-111).

4.3. Da prova por testemunhas


Após o título XXXXVIII (sic) sobre os modos de se questionar os réus, omitido
neste trabalho graças a limitação de espaço, Mello Freire passa para o título
XXXXVIIII (sic) que trata das provas por testemunha e que, de acordo com o axi-
oma trazido pelo autor, configura prova legal e basta para a condenação do réu
(1823, pp. 113-114). Este título é o mais extenso no assunto de provas, demons-
trando a importância que se deu à prova testemunhal.
Para definir uma testemunha que produza uma prova perfeita, Mello Freire es-
pecífica no §1 (1823, p. 114) que são necessárias: duas ou três testemunhas, maiores
de vinte anos, imparciais, desinteressadas e “inteligentes do negócio”12. Devem, a
partir daí, depor uniformemente (o que é reforçado no §8, 1823, p. 114, com a exi-
gência de uniformidade e não contradição), prestar juramento e afirmar que pre-
senciaram o crime “com seus próprios sentidos”, dando suficiente razão para o seu
depoimento. E, mais detalhadamente: testemunhas que somente ouviram o crime
provam a partir de outras testemunhas (§11); e as testemunhas que não forem
“inhabeis e defeituosas absolutamente” (sic) podem constituir prova conjectural e
presuntiva para o julgamento do réu (§17) (1823, pp. 115-116).
Ponto interessante desse primeiro momento de análise sobre as provas testemu-
nhais se dá no §12: “Não fazem prova as testemunhas, que depõem de fama e vozes
vagas do delicto e do criminoso, sem provas específicas: sempre serão perguntadas
pela razão do seu depoimento” (1823, p. 115). Conjuntamente com a reestrutura-
ção dos mecanismos de querelas e acusações (título LV), esse dispositivo busca
remediar aquele sistema inquisitorial de perseguição social, exigindo provas especí-
ficas e a razão do depoimento, visando, assim, a certeza da prova a ser criada. Po-

11. Mello Freire utiliza a expressão “sócios do crime”, visando facilitar a visualização da ideia de
cúmplice, faz-se essa substituição quando necessário.
12. Que acreditamos se referir ao fato de a testemunha estar ciente do crime, seja do acontecimento
em si ou da motivação, preparação, fuga, etc.
147
Marina Tanabe do Livramento · Murilo Aparecido Carvalho de Robbio
dendo, ainda, as testemunhas modificarem seus depoimentos, desde que antes da
sentença (§§ 14 e 15).
Ainda nessa toada, o autor coloca algumas impossibilidades para a prova por
testemunha: “§2 Impossibilidade de testemunho de uma só pessoa, independente
da pessoa” (sic); “§3 Impossibilidade do testemunho de menores de 20 anos, sur-
dos e mudos, dos infames, falsários, domésticos e criados, descendentes e ascen-
dentes, consanguíneos assim como dos inimigos, sócios de crime e denunciantes”
(sic); e Ҥ4 Impossibilidade do juiz de perguntar aos inimigos e aos parentes, tanto
nos casos de ofício como nos requeridos por uma das partes” (sic). Visando, como
já foi dito no parágrafo anterior, a confecção de provas legais com certeza para o
juiz poder inferir sobre a condenação ou inocência do réu. Somado a isso, o Projeto
ainda traz que: pessoa desconhecida ou que não conheça o réu não cria prova con-
tra este (§5); testemunhas defeituosas (pela sua pessoa ou por suas qualidades) não
fazem provas perfeitas em crimes ocultos ou atrozes (§6); e que o juiz tem a premis-
sa de analisar a vida privada do acusado para influenciar seu juízo acerca do “crédi-
to” das testemunhas (§9) (1823, pp. 114-115).
Por fim, evitando falso testemunho e interferências externas, Mello Freire dispõe
no § 7 sobre a necessidade de o juiz realizar juramento com as testemunhas previ-
amente à interrogação e posteriormente, no momento da assinatura, deixando-lhes
cientes sobre o crime de perjúrio (Título VII). Já no tangente às interferências ex-
ternas, o autor trabalha sobre a hipótese de a demasiada uniformidade nos depoi-
mentos das testemunhas ser motivado por conluio ou suborno (§10) e também no
caso de o juramento ter sido prestado graças a suborno, dolo ou “malignidade”
(§16). Para esse segundo caso fica estipulado o perjúrio como punição, enquanto
no primeiro o autor é silente, mas pode-se entender que nesse caso também caberia
a pena de perjúrio (1823, pp. 114-117).
E, pelo mesmo motivo da falta de espaço hábil apresentado no início do artigo,
suprimimos aqui a discussão sobre os “Das Testemunhas judiciaes” (Título L) (sic)
e “Da confrontação dos reos entre si e com as testemunhas” (Título LI) (sic). Tais
títulos tratam, respectivamente, sobre a formação de provas legítimas em juízo pe-
las testemunhas inquiridas na presença do réu e da averiguação da verdade pelo juiz
ao confrontar o réu com as testemunhas ou com seus cúmplices em casos de diver-
gências ou discrepâncias.
148
“Sem prova perfeita e legal ninguém deve ser castigado”

5. Considerações finais
Adiantado demais para o seu momento histórico ou vítima de desavenças políti-
cas num momento de transição importante de seu país? O fato é que Mello Freire
recebeu a negativa de seus dois projetos nas comissões revisoras por pura indife-
rença política, como coloca a historiografia portuguesa. Mas ao menos essa mesma
historiografia coloca que o autor serviu de catalisador para a entrada das ideias ilu-
ministas em Portugal, impactando positivamente na construção dos futuros códi-
gos criminais portugueses (PINTO; CAIERO, 2018). Foi através das suas leituras de
nomes como Beccaria e Filangieri que os arquétipos iluministas do racionalismo e
humanismo integraram a construção de uma política criminal menos cruel e mais
voltada a lógica da modernização social e legislativa pela qual passava Portugal e os
demais países da Europa, às vésperas da eclosão da Revolução Francesa, outro
evento que abalaria não só as estruturas políticas da Europa, mas também de todo
mundo ocidental.
Durante a análise do Projeto de Código Criminal de Mello Freire, observamos
claramente as ideias de Beccaria, de forma que algumas ideias aparentam ser repro-
duzidas diretamente do clássico milanês Dei delitti e delle pene, mas de uma forma
original, sistematizando a sua legislação criminal pátria, num primeiro momento
em seu Instituições de direito criminal português, para depois alçar um voo mais
elaborado na elaboração de um possível futuro código criminal.
Por fim, destaca-se que a relação existente entre Estado, processo e história é es-
sencial, de forma que a história do processo é construída com base nos principais
personagens do seu progresso, tendo sido alterada ao longo do tempo de acordo
com acontecimentos históricos, crenças, situações políticas e conforme a evolução
do próprio entendimento dos indivíduos com o passar dos anos. É nesse sentido
que Sbriccoli (2011, p. 459) coloca a história do processo penal como a história de
um aparato de proteção e garantias do acusado e de seus direitos, apesar de que não
podemos contar com essa ideia de constante progresso, uma vez que o direito e o
processo podem ser submetidos a crises e regressões, como trabalha o autor.
Concluímos, assim, que apesar de não ter logrado êxito na comissão de revisão,
o projeto elaborado por Mello Freire incorporou os principais pontos do raciona-
149
Marina Tanabe do Livramento · Murilo Aparecido Carvalho de Robbio
lismo e humanismo iluminista, criando um caminho para que estas ideias adentras-
sem o mundo lusófono, influenciando na construção dos futuros códigos penais
portugueses. Apesar de não ter sido o escopo dessa análise, pode-se afirmar, a partir
do material historiográfico encontrado, que o Projeto de Mello Freire e o seu Insti-
tuições de direito criminal português serviram como objeto de comparação para a
elaboração do Código Penal Português de 1852. Desta forma, este projeto de Mello
Freire possui uma imensa importância para a historiografia jurídica quando pre-
tende-se lançar ênfase sobre a construção do penal português reformulado após os
influxos iluministas que lançavam uma nova luz sobre as ciências criminais euro-
peias.

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152
REMINISCÊNCIAS DA MORTE COMO PENA
NO PROCESSO DA CODIFICAÇÃO PENAL
PORTUGUESA: DAS ORDENAÇÕES
FILIPINAS AO CÓDIGO PENAL DE 1886
REMINISCENCES OF DEATH AS A PENALTY
IN THE PROCESS OF PORTUGUESE CRIMINAL
CODIFICATION: FROM THE PHILIPPIN
ORDINATIONS TO THE 1886 PENAL CODE

7
Giácomo Tenório Farias *

Resumo: O trabalho tem como objetivo compreen- Abstract: The work aims to analyze which (and if it
der quais (e se houve) modificações legislativas happens) legislative modifications molded by the
resultantes do movimento iluminista-penal, especi- Enlightenment movement in Criminal Law, espe-
almente, a partir da concepção humanitária de cially, based on the humanitarian conception of
Cesare Beccaria no processo da codificação penal Cesare Beccaria in the process of Portuguese crimi-
lusitana, especificadamente na adoção da morte nal codification, specifically in the adoption of
como espécie de pena. Apresentou-se um quadro death as a kind of penalty. We presented a compar-
comparativo entre os diversos diplomas legais ative table between the various Portuguese acts on
portugueses sobre a adoção da morte como pena, the adoption of death penalty, besides of introduce
além de esboçar os aspectos históricos na constru- the historical aspects in the construction of criminal
ção da legislação criminal, e, por fim, utilização da legislation, and, finally, the use of the bibliographic

* Doutorando em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestre em Direito
pela Universidade de Santa Cruz do Sul (RS) - UNISC. Especialista em Direito Tributário pela
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC-MG. Graduado em Direito pela Uni-
versidade Regional do Cariri - URCA. Membro do Grupo de Pesquisa Ius Commune - Grupo In-
terinstitucional de História da Cultura Jurídica vinculado ao Programa de Pós-Graduação em
Direito (Mestrado e Doutorado) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor
Universitário do Curso de Direito do Centro Universitário Paraíso - UniFAP. Advogado.
153
Giácomo Tenório Farias
técnica de pesquisa bibliográfica. Ao final, os estu- research technique. In the end, the studies carried
dos realizados até o presente momento permitiram out to date have allowed the identification of the
identificar a permanência da adoção da morte adoption of death as a kind of penalty that was
como espécie de pena nas legislações portuguesa being in a permanence in Portuguese criminal acts
desde o século XVI até o XIX. since the 16th to the 19th century.
Palavras-chave: Beccaria. Código Penal. Portugal. Keywords: Beccaria. Penal Code. Portugal. Death
Pena de morte. penalty.

1. Introdução
A morte é, sem dúvida, um dos temas de maior repercussão na ciência do Direi-
to Penal, pois traz consigo infindáveis consequências jurídicas as quais não podem
ser ignoradas. Entretanto, é perfeitamente possível afirmar que sua ocorrência em
alguns casos é regulamentada pelo próprio Estado quando da aplicação de penas
aos delinquentes pela prática criminosa. Na verdade, é “prova cabal de como o ho-
mem sabe ser cruel mesmo usando os instrumentos de liberação e de justiça (como
os recursos criados para a sua salvação)” (MEREU, 2005, p. 81).
Dentro desse contexto, essa normatização legislativa penal não foi capaz de ga-
rantir a paz social tal almejada e, somada à miserabilidade da população que vivia
em condições desumanas nos grandes centros urbanos, a concentração de riqueza e
concessão de privilégios apenas a poucos (clero, nobres e burgueses), fizeram de-
sencadear grandes transformações sociopolíticas alicerçadas na racionalização do
pensamento humano. Tudo isso fez brotar e florescer o pensamento iluminista no
século XVIII o qual teve seu apogeu com a Revolução Francesa em 1789, pondo fim
ao período conhecido como Antigo Regime e nascedouro da modernidade.
Buscando compreender os fenômenos histórico-jurídicos em relação ao pro-
blema penal, o trabalho tem como problema analisar em particular a prática da
adoção da morte como espécie de pena no processo de codificação português, a
partir da Ordenações Filipinas (1603) até o Código Penal de 1886.
A hipótese é que com a difusão do pensamento iluminista e o seu questiona-
mento acerca da morte como pena aplicada à época aos delitos tenha influenciado
diretamente no momento da elaboração dos códigos criminais no século XVIII e
seguintes.

154
Reminiscências da morte como pena no processo da codificação penal portuguesa
Nesse sentido, o trabalho tem como objetivo compreender os efeitos legislativos
advindos das ideias iluministas, especialmente, a partir da publicação da obra “Dos
Delitos e das Penas” de Cesare Beccaria, publicado em 1764, na codificação portu-
guesa ao disciplinar a pena de morte para os crimes tipificados.
O trabalho está divido em duas partes: primeiramente serão apresentados o fe-
nômeno e os fatores desencadeadores da codificação penal. Em seguida tratará de
analisar a obra Dos Delitos e das Penas concernente a possibilidade da aplicação da
pena de morte. Por fim, será identificado e comparado os tipos penais que adota-
ram a morte como pena nos tipos penais na legislação portuguesa.
A pesquisa terá natureza qualitativa-descritiva tendo em vista a investigação que
será empreendida na busca de analisar o fenômeno da morte como pena a partir da
difusão do movimento iluminista no século XVIII, buscando correlacionar as abor-
dagens na perspectiva histórica do direito, a partir da obtenção dos dados mediante
material já existente os quais servirão de base a este estudo de caso, utilizando-se
ainda da pesquisa em livros e teses relacionados ao assunto, artigos já devidamente
publicados em sites confiáveis.
A hipótese é que com os ideais iluministas tenham ocorrido uma mudança da
adoção da morte como critério de pena presente nos Estados do século XVIII. Há
uma lacuna acerca da presente proposta de estudo será realizado um levantamento
da origem dos institutos in casu, contextualizando-os historicamente o objeto in-
vestigativo na atualidade, bem como em relação plano pretérito. Por se tratar de
uma perspectiva da história do direito, como é a que se pretende realizar, se faz
necessário, associar seu conteúdo e objeto, a uma de suas vertentes de estudo, nesse
caso, será a história das fontes de conhecimento, é dizer, será realizada uma pesqui-
sa documental nos instrumentos legislativos/normativos portugueses.

2. Do fenômeno da codificação penal e seus fatores


desencadeantes
O final século XVIII e início do século XIX desencadeou na Europa o fenômeno
jurídico que tinha como objetivo central unificar o direito, por meio da adoção da
codificação, a qual consistia em sistematizar de forma racional os instrumentos
normativos isolados que disciplinavam os diversos ramos do direito, tendo como
155
Giácomo Tenório Farias
resultado o surgimento dos códigos. Esses diplomas proporcionaram reunir as di-
versas leis que versavam sobre a mesma matéria (unificação do direito), seja no
campo penal ou civil, por exemplo, tornando sua aplicação impositiva em todo o
território, bem como o controle estatal da atividade legislativa.
Por conseguinte, os códigos tinham como propósito, além de reunir todas as leis
isoladas acerca da mesma temática jurídica, de impor sua observância e aplicação
nos mais diversos lugares do país, diminuindo com isso as diversas práticas consue-
tudinárias ainda existentes ao longo do território, sendo manifestação do princípio
da primazia da lei, fortalecendo, assim, a centralização do poder e o papel do mo-
narca como detentor de dizer o direito.
As expressões ‘código’ e ‘codificação’ são, etimologicamente, palavras derivadas
no latim, significando codex, que segundo a lição de Tarello (2008, p. 7) inicialmen-
te compreendiam:
Todos os livros que continham materiais constituídos de expressões dotadas de au-
toridade jurídica (materiais novos ou velhos, recolhidos por privados ou autoridades
oficiais). Depois, [...] se disse código, com vocábulo agora especializado, um livro
de regras jurídicas organizado segundo um sistema (uma ordem) e caracterizado
pela unidade de matéria, vigente para toda uma extensão geográfica da área de uni-
dade política (para todo o Estado), voltado para todos os súditos ou sujeitos à auto-
ridade política estatal, pela vontade dessa autoridade e por ela publicado, ab-rogante
de todo o direito precedente na matéria disciplinada por ele e por isso não integrável
com materiais jurídicos pré-vigentes, e destinado a longa duração. Grifo meu.
A prática de ‘codificar’ as leis, a partir do final do século XVIII, teve como prin-
cipal cenário a França1, com a publicação do Código Penal de 1791, não por ter sido
a primeira numa perspectiva temporal, mas sim, por ter conseguido finalizar um
sistema punitivo estatal altamente organizado (SOLIMANO, 2010). Com isso, vá-
rios países europeus iniciaram seus processos de codificação penal sobrepostos
pelos ideais iluministas objetivando inserir o “direito penal” no caminho das luzes,
até porque, a realidade criminal até então vivenciada era fundada em penas cruéis e

1. Ressalta-se que, como exemplos anteriores ao Código Penal francês de 1791, tem-se: Constitutio
Criminalis Carolina (1532), Ordennance Criminelle (1670), Codex Iuris Bavarici Criminalis
(1751) e a Constitutio Criminalis Josephina (1787).
156
Reminiscências da morte como pena no processo da codificação penal portuguesa
desproporcionais, as quais se modificavam conforme a pessoa do ofensor e da víti-
ma. Além disso, a justiça criminal era utilizada como uma ferramenta de opressão
política, detentora dos meios para garantir essa ‘perseguição’, como por exemplo, a
regulamentação da prática de tortura nos interrogatórios, a concentração dos atos
de acusação, da produção das provas e da aplicação da pena, na forma inquisitorial,
em detrimento da forma acusatória e mesmo da da justiça negociada. Assim,
transmutava-se a chamada justiça hegemônica2, ficando clarividente que, essa
transformação da justiça penal, era agora dotada de um caráter mais efetivo de au-
toritarismo e rigor na aplicação da penalidade, dependendo de uma manifestação
inequívoca por parte dos governantes.
O primeiro dos fatores3 que contribuíram para alavancar o processo da codifica-
ção foi sem dúvida alguma, o Iluminismo, pensamento oriundo do século XVIII, o
qual influenciou diretamente os diversas campos do saber, i.e. filosofia, política,
sociologia e, como não poderia ser diferente, a ciência jurídica fora também conta-
minada com esses ideais, caracterizada por um racionalismo e consagrando a razão
como parâmetro de verdade e justiça para emancipação humana por meio da valo-
rização do questionamento como forma de obter conhecimento, desenvolvendo
um papel decisivo na luta contra o absolutismo4, mercantilismo e o consequente

2. “A justiça hegemônica: pressupõe a sujeição direta do indivíduo ao poder do Estado e reconhece


todos os crimes como forma de desobediência à autoridade estatal; ele visa, por meio da puni-
ção, garantir a obediência à lei do Estado. [...] caracterizada por um modelo organizacional uni-
ficador e uniforme, tende a empregar um aparato jurisdicional hierarquicamente ordenado”
(MECCARELLI, 2018, p. 640-641). Tradução livre do autor.
3. Fatores apontados de acordo com Martins (2016).
4. Aqui, necessário se faz um aparte importante, o discurso filosófico reformador do iluminismo se
conciliava com as pretensões dos monarcas absolutistas, pois se buscava uma centralização e
modernização funcional no plano político-institucional (buscava-se a consolidação do modelo
hegemônico), o chamado absolutismo esclarecido, no entanto, não é possível afirmar sem as de-
vidas ressalvas que por possuir o iluminismo um estreito vínculo com o liberalismo, seria, por
este motivo, oposto ao regime absolutista monárquico. O monarca necessitava do apoio de pes-
soas esclarecidas na modificação e manutenção da nova ordem sociojurídica que surgia e, com
isso, contou com a colaboração direta dos filósofos nessa governança. “Ambas as pretensões por
racionalização caminharam para uma confluência e o discurso filosófico dos monarcas absolu-
tistas no sentido de uma centralização e modernização funcional no plano político-
institucional” (CASTRO, 2008, p. 20).
157
Giácomo Tenório Farias
combate aos privilégios das classes sociais abastadas e protegidas do rei (a nobreza e
o clero), bem como em defesa da liberdade sociopolítica e econômica e em respeito
ao princípio da igualdade de todos os membros da sociedade perante a lei. Os des-
dobramentos do movimento iluminista foram além do imaginado, pois ao impor o
uso da racionalidade na elaboração das normas interferiram diretamente no pro-
cesso da codificação e importante por elevar o status da lei como a maior fonte do
direito.
O segundo foi a influência e disseminação do pensamento jurídico à época, do
chamado jusracionalismo5. Não é de se estranhar, a ciência jurídica volta seu olhar
para fora, à procura de uma justificação externa e, e eis que encontra a razão, repre-
sentada por um conjunto de princípios racionais, os quais alicerçariam numa nova
concepção do direito, pois naquele momento histórico, tinha-se uma vertente fun-
dada no direito natural cuja significação era associada ao “divino”. Por isso, “o
direito natural é tão imutável que não pode ser mudado nem pelo próprio Deus.
Por mais imenso que seja o poder de Deus, podemos dizer que há coisas que ele não
abrange porque aquele de que fazemos alusão não podem ser senão enunciadas
[...]” (GROTIUS, 2005, p. 81).
O rompimento do direito com a divindade era iminente, abandonar essa cone-
xão era um dos pontos primeiros do jusracionalismo, sendo essencial interpretar o
direito natural com um outro viés, que não divino, substituindo-o pela figura do
homem racional. Esta “singela” modificação, foi capaz de colocar em prática os
postulados racionais, e fez o legislador ao compilar as leis em códigos, convergir o
direito e seus sistemas a uma produção vinda exclusivamente da razão. Entretanto,
segundo Martins (2016, p. 13), esta convergência fez, principalmente após o Código
Civil de Napoleão Bonaparte, desabrochar nos países6 europeus os primeiros brotos

5. Escola de pensamento jurídico que buscou justificar a conformação do Estado a partir do pró-
prio homem/razão, tendo como principais representantes Hugo Grócio (1583-1645) [1ª fase],
Samuel Pufendorf (1632-1694), Gottfried Wilhelm von Leibniz (1646-1716) e Christian Thoma-
sius (1655-1728) [2ª fase] e Christian Wolff (1679-1754) [3ª fase].
6. “A codificação não é um fenómeno uniforme, ocorrendo em épocas diferentes nos diversos
países, conforme a conjunção dos diversos factores que a originaram. Além disso, uma impor-
tante escola, a Escola Histórica do Direito – cujo caput scolae, Friedrich von Savigny, é um dos
juristas mais marcantes de todos os tempos – opôs-se-lhe tendo conseguido retardar a codifica-
158
Reminiscências da morte como pena no processo da codificação penal portuguesa
do positivismo, cuja manifestação hermenêutica do direito era unicamente e permi-
tida a do texto de lei, expurgando qualquer elemento subjetivo por parte do aplica-
dor/intérprete do direito.
Por fim, o terceiro elemento tem seu nascedouro nas revoluções liberais e indus-
triais, respectivamente, os fatores político e econômico. O desenvolvimento econô-
mico vivido por alguns países europeus nos séculos XVIII-XIX, impulsionou o
crescimento mercantil, a expansão na produção de manufaturas pelas indústrias, a
intensificação do comércio internacional e reivindicou a participação mínima do
Estado nas relações privadas, culminando com o surgimento e fortalecimento do
capitalismo, o qual historicamente coincide com a Revolução Industrial.
Com o avançar das relações comerciais, ocorreu o processo da concentração da
riqueza da classe burguesa (detentora dos meios de produção) e, por conseguinte, o
desejo pela obtenção de poder aumentava também, mas, fazer parte da classe nobre
e com ela se relacionar, a qual detinha um grau superior na estratificação social, era
o anseio e para tanto reivindicava modificações na classificação social da época. E
não só isto, as próprias relações negociais de maneira geral reclamavam novas leis,
as quais o direito posto não conseguia mais regulamentar frente a complexidade
vinda do comércio internacional. Tais fatos fizeram a burguesia liberal se firmar no
século XVIII, por meio do monopólio do poder moral e econômico, em relação a
um Estado que deveria ser neutro e fornecer tão somente um sistema jurídico capaz
de garantir a continuidade desse novo status quo.
Contudo, Bobbio et alii (1998) esclarecem que nem toda a burguesia europeia
foi adepta do livre-cambismo (modelo de mercado cuja relações comerciais não são
reguladas pelo Estado), ao contrário, por diversas vezes aproveitou-se das vanta-
gens oferecidas pelo protecionismo do Estado, impondo volta e meia os liberais
livre-cambistas ou os livre-cambistas não-liberais a ficarem na oposição.
O certo é que o sistema capitalista impulsionado pelo liberalismo econômico e
político impôs ao Estado a construção de uma nova ordem jurídica capaz de res-
guardar as relações econômicas e legais. A codificação foi essa garantia.

ção civil alemã até ao dealbar do séc. XIX. Savigny, a partir do seu escrito ‘Sobre a vocação do
nosso tempo para a legislação e a ciência do Direito’” (1814), considera “como fonte originária
do Direito, não já a lei, mas a comum convicção jurídica do povo” (MARTINS, 2006, p. 13).
159
Giácomo Tenório Farias
Castro (2008) adverte que estes acontecimentos não se fizeram presentes de
forma simultânea em todos os países da Europa, tanto porque a consolidação do
absolutismo monárquico ocorreu em períodos distintos, relata que chegaram no
seu auge apenas a partir da metade do século XVIII, nos casos da Prússia, Áustria e
Portugal, diferentemente da França que já tinha se estabilizado desde o século XVII.
A assimilação dessa situação fática é capaz de explicar como as ideias liberais rever-
beraram dissemelhantemente nos países europeus.
Não poderia ser diferente ao discutir a presente temática (a morte como pena7)
dissociá-la desses movimentos históricos, como o iluminismo, por exemplo, cujo
ideais foram fundados a partir do uso da razão em contraponto as práticas do Anti-
go Regime, promovendo grandes transformações políticas, econômicas e sociais,
baseadas no seu lema liberdade, igualdade e fraternidade, os quais influenciaram
diretamente no pensamento beccariano acerca dos delitos e das penas.

3. Fator humanitário de Beccaria


“Durante o século XVIII ocorreu uma crescente crise no sistema do Antigo Re-
gime, que estava sendo malsinado de vícios, sobretudo pela composição (estática)
das classes sociais existentes à época [...]” (PAULO, 2008, p. 162). a A miserabilida-
de estava alastrada por toda a Europa e a insatisfação social só crescia, e foi nesse

7. Vale citar uma passagem evolutiva da pena associada ao preço do sangue. “A pena de morte,
outrora rara entre os povos germânicos, tornou-se depois demasiado freqüente, abusando-se de
sua aplicação, tendo-se começado a estender o uso de tal penal, não conseguiu conter as Nações
no triste declive nem mesmo a obra da Igreja, a qual, acatando a palavra divina, queria que não
se matasse o criminoso, mas que este, arrependido e reabilitado, fosse mantido em meio à socie-
dade. E o abuso continuou a aumentar, com o tempo e com a influência do direito romano e dos
jurisconsultos formados na sua escola; de que dão fé os Estatutos e as suas freqüentes reformas.
Nem a erva daninha é debelada com tanta rapidez; se é famigerada pelo próprio rigor a Carolín-
gia, venceu-se a barbárie o decreto criminal dos países austríacos de 1657; e ainda no final do sé-
culo passado o código Maria Teresa infligia a pena de morte à maioria dos crimes. Nem fizeram
muito melhor as constituições de 1770 e a modenenses de 1771, as quais ameaçam aplicar tal
pena até mesmo aos casos de furtos não graves, ao falso testemunho, aos libelos famosos. Por se-
rem tão freqüentes as execuções capitais, mantinham-se as forcas continuamente erigidas (PER-
TILE apud MEREU, 2005, p. 11).
160
Reminiscências da morte como pena no processo da codificação penal portuguesa
cenário o surgimento do movimento ideológico conhecido por iluminismo, o qual
fundado na emancipação humana pelo uso da razão influenciou pensadores a ques-
tionar o status quo presente nestes Estados absolutistas.
No campo das ciências jurídicas foi inevitável não receber os efeitos colaterais
desse ideário, destacando-se a sua forte influência na seara criminal quando do
questionamento acerca da sistematização da justiça penal, ou melhor, o questiona-
mento do papel da “justiça penal” a ser desempenhada pelo Estado e a sua compre-
ensão pela sociedade e pelos indivíduos no século XVIII, em especial da pena de
morte.
Alicerçados no humanitarismo, proporcionalismo, utilitarismo e no movimento
abolicionista, o movimento iluminista penal teve na figura de Cesare Beccaria um
dos maiores expoentes, ao publicar sua obra “Dei Delitti e Delle Pene” (Dos Delitos
e das Penas), a qual em apertada síntese, questionava ser um problema penal e não
propriamente do sistema de justiça, ou seja, o direito penal deveria ser compreen-
dido numa concepção abstrata, é dizer, a lei seria o garantidor do processo justo e,
como consequência, a aplicabilidade da pena estaria fundada num instrumentos
normativo, afastando as arbitrariedades no momento do direito de punir, para tan-
to prescindindo da existência de uma lei prévia que disciplinasse as condutas deliti-
vas, observando sempre a proporcionalidade entre os delitos e as penas, bem como
entre os próprios delitos. Entretanto, é preciso considerar que o próprio Beccaria
(2002, p. 32) apresenta alguns casos em que é perfeitamente aplicável a pena de
morte nos crimes de lesa-majestade:
A morte de um cidadão só pode ser considerada necessária por dois motivos: o pri-
meiro, quando, ainda que privado por dois motivos: o primeiro, quando, ainda que
privado de liberdade, ele conserva poder e relações tais que podem afetar a seguran-
ça nacional; o segundo, quando a sua existência pode produzir uma revolução peri-
gosa para a forma de governo estabelecida. Assim, a morte de um cidadão se torna
necessária quando a nação recupera ou perde a sua liberdade ou, em tempos de
anarquia, quando as próprias desordens tomam o lugar das leis.
A segunda hipótese prevista, está fundada no princípio da exemplaridade da pe-
na, isto é, atribuindo-lhe a morte, esta deveria ser aplicada para servir de exemplo
aos indivíduos que eventualmente tivessem o intuito de cometer delitos graves.
“Não vejo necessidade alguma de destruir um cidadão, a não ser que sua morte
161
Giácomo Tenório Farias
fosse o único e verdadeiro freio capaz de impedir que os outros cometessem delitos,
segundo motivo que tornaria justa e necessária a pena de morte” (BECCARIA,
2002, p. 32).
Assim, é perfeitamente possível concluir que o intuito de Beccaria era questio-
nar a arbitrariedade quando do momento da aplicação da pena, causando enorme
insegurança jurídica, posto que sua fixação era determinada a partir da víti-
ma/autor. Paulo (2008, p. 168-169) explica que as críticas “foram construídas con-
tra as paixões, barbáries e irracionalidades dos processos criminais de sua época e,
por isso, as denúncias pautavam-se quase que exclusivamente contra os abusos dos
tribunais e a aplicação de penas aflitivas [...].”
Críticas a parte, o certo é que o pensamento beccariano influenciou diretamente
a respeito da observância de se estabelecer penas mais brandas, proporcionais e
menos cruéis quando da elaboração dos códigos criminais de alguns países, in casu,
o português, pois ao apresentar Projeto do Código Criminal à Rainha D. Maria I
(1823), Pascoal de Mello Freire faz evidente manifestação sobre o referido autor:
Portanto na certeza dos grandes abusos e defeitos, de que abundão todos codigos
criminaes, os Principes, e Sociedades Litterarias, [...], não só tem procurado refor-
mallos, mas prometido vantajosos premios áquelles que propuserem as leis menos
severas, e ao mesmo tempo as mais prontas e capazes para conter e evitar os malfei-
tores. Estes são hoje os desejos de todos homes bons e amantes da humanidade. Tu-
do se deve ao estudo e perfeição da moral política, que ensina que o criminoso inda
he cidadão, e que pelo seu interesse e da mesma sociedade deve por ella ser tractado
como hum doente ou ignorante, que he necessario curar, instruir e cauterizar se-
gundo a infermidade.
Esta parte da philosophia politica, tão importante e necessaria aos homens publicos,
e tão vantajosa a toda humanidade, teve verdadeiramente neste século o seu nasci-
mento, e parece que tambem a sua ultima perfeição. O nascimento se deve ao
MARQUEZ de BECCARIA, que, desenvolvendo no seu Livro dos Delitos e das Pe-
nas os principios de LOCKE e de MONTESQUIEU (sic) [...] (FREIRE, 1823, p. 1) .
Com isso, após a explanação acerca dos fatores desencadeantes do fenômeno da
codificação no direito e como o pensamento humanitarista beccariano sobre os
delitos e das penas influenciou diretamente no direito penal, conforme se verifica
acima no Projeto Mello Freire, é chegado o momento de se verificar se a “morte”
162
Reminiscências da morte como pena no processo da codificação penal portuguesa
esteve presente na codificação portuguesa como espécie de pena.

4. Codificação penal portuguesa


O período histórico em debate representava a transição paulatina do jus punien-
di por todo o continente europeu ocorrido a partir do século XII. A marcha da jus-
tiça criminal nesse período perpassava ainda pela necessidade da satisfação da víti-
ma, e com isso, não se pode afirmar categoricamente que havia interesse8 do Estado
inicialmente em disciplinar as condutas dita como delituosas, tanto porque naquela
época as populações eram divididas em clãs/famílias e habitavam em locais distin-
tos e longínquos, sendo que cada uma dela possuía suas práticas criminais, se é que
se pode utilizar esse termo. As eventuais disputas eram resolvidas por meio da
chamada justiça penal negociada, caracterizada por possuir na reparação seu prin-
cipal ponto, ou seja, a punição era vista num segundo plano, o ressarcimento do
dano da vítima era algo a ser observado primeiro; havia a predominância do con-
senso em relação a certeza do cometimento do delito; a oralidade e as práticas de
cada comunidade em resolver seus conflitos estavam também presentes.
A justiça penal negociada deve ser compreendida não apenas como uma prática
que visa somente a satisfazer as pretensões privadas, pelo contrário, busca-se tam-
bém restabelecer equilíbrios violados para conseguir um ressarcimento e obter sa-
tisfação e, dessa forma, a “ideia de que o delito é, em primeiro lugar, uma ofensa
(injuria) que importa antes reparar do que punir, que a reparação consiste na satis-
fação e que a satisfação deve passar por uma negociação[...]” (SBRICOLLI, 2011, p.
460).
A questão ‘penal’ em Portugal não foi diferente, sendo discutida desde as Orde-
nações Manuelinas e Afonsinas, sendo que nas Ordenações Filipinas9 datada de 11

8. Muito embora, segundo Sbricolli (2011, p. 460) “a negociação, porém, não exclui absolutamente
o recurso ao juiz: porque, se é verdade que somente a punição do culpado não basta para a satis-
fação do ofendido, é verdade também que da abertura de um processo público ele poderá tirar
uma certa forma de negociação, a investir na negociação ‘privada’, que e aquela que conta. Uma
vez alcançado o acordo, o processo poderá sempre ser interrompido.”
9. É certo afirmar que o conteúdo das Ordenações Filipinas é oriundo das Ordenações Afonsinas e
Manuelinas.
163
Giácomo Tenório Farias
de janeiro de 1603, no reinado de Filipe II, foram divididas em cinco partes, o Livro
V disciplina crimes10 e suas respectivas penas, além de descrever o procedimento a
ser seguido (rito processual).
Da análise do quinto livro, constata-se a influência predominante da religião,
representada na tipificação dos delitos, aliás, são os primeiros11 e só depois os de
lesa-majestade, demonstrando o quanto a Igreja Católica exercia forte poder na
condução do Estado português.
As Ordenações Filipinas estavam nesse período de transição quanto a questão
penal, o Livro V continha penas desproporcionais, na verdade, uma verdadeira
barbárie e derramamento de sangue. Destaca-se entre as inúmeras penas12, que
resultavam na morte, tem-se a simples (sem tortura), mediante tortura, natural
(mediante enforcamento), natural para sempre (além de ser enforcado o corpo
ficaria pendurado na forca até putrefação final), o esquartejamento, atroz (após à
morte, era aplicada outra pena, confisco dos bens, esquartejamento e/ou queimar o
cadáver) e a cruel (considerada a pior).
A tipificação dos crimes e suas respectivas penas nem sempre representaram
verdadeiramente uma intervenção normativa que visasse coibir e, consequente-
mente, punir condutas reprováveis. Nesse sentido, Hespanha (1987, p. 496-497)
explica um viés simbólico das penas, ao afirmar que:
o direito real constituiu uma ordem jurídica apenas virtual, mais orientada para uma
intervenção simbólica, ligada a promoção da imagem do rei como sumo dispensa-
dor da justiça, do que para uma intervenção normativa que disciplinasse, efectiva-
mente, as condutas desviantes. Este caracter virtual da ordem penal real explica, por

10. Possui CXLIII (143) títulos penais.


11. Título I: Dos Hereges e Apóstatas; Título II: Dos que arrenegam, ou blasfemam de Deus, ou dos
Santos; Título III: Dos Feiticeiros; Título IV: Dos que benzem cães, ou bichos sem autoridade do
Rei, ou dos Prelados; Título V: Dos que fazem vigílias em Igrejas, ou Votos fora delas; Título VI:
Do crime de Lesa Magestade; Título VII: Dos que dizem mal do Rei
12. Confisco de bens e de transmissão de herança para os sucessores, aplicações de multas; diversos
tipos de prisões, desde da simples até aquela associada a trabalhos forçados nas galés; desterro
(expulsão do local do cometimento do crime); degredo (imposição de fixar domicílio em certo
lugar); banimento; açoites, amputação de membros (Livro V, Ordenações Filipinas. Disponível
em:< http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l5ind.htm> Acesso em: 08 jun. 19.
164
Reminiscências da morte como pena no processo da codificação penal portuguesa
sua vez, o caracter «livresco» da teoria penal que incide sobre ela e a sua aparente in-
sensibilidade aos problemas sociais e humanos da punição.
Ressalta-se que, muito embora as formas de penas estivessem disciplinadas,
àqueles que gozassem de determinados privilégios (privilégios de fidalguia, de cava-
laria, de doutorado em cânones ou leis, ou medicina, os juízes e vereadores) não
poderiam ser submetidos a penas infamantes. Na prática representava que as “pe-
nas duras” eram aplicadas somente a pobres, sem instrução, sem pertencimento a
famílias importantes.
Por outro lado, com o aprimoramento do modelo de organização político-
jurídico das comunidades, a ideia de vingança foi se esvaindo e concomitantemente
se enraizou um novo olhar da justiça penal, baseado num aparato público que agora
entendia o crime, além de ser exclusivamente a satisfação da vítima, era acrescida
também nesse momento a vontade do Estado, determinando que a partir daquele
momento o cometimento de um delito era considerado uma ofensa ao próprio Es-
tado.
E assim, no século XVIII a nova concepção do penal se fortalecia e era ampla-
mente difundida pelos ideais iluministas, conforme explanado no início do traba-
lho, caracterizada pela ruptura e surgimento de um novo paradigma: a mudança do
objeto tutelado penal, ou seja, a infração não era mais vista sob a ótica do dano, e
sim, da desobediência.
Outro ponto merecedor de destaque é esclarecer que a ideia do ‘penal’ não está
correlacionada a um ‘direito’ penal, na verdade, trata-se da história da justiça cri-
minal, ou seja, não há como se falar da existência de um direito ou até mesmo de
um processo, mas sim, de um conjunto de outras fontes (políticas, sociais, religio-
sas, tradição, etc.) interligadas existentes no período pré-moderno, em particular, o
medievo (SBRICOLLI, 2011).
Essa transformação só foi possível ocorrer com o surgimento de um governo
que centralizou a administração estatal e rompesse com as tradições e as práticas
criminais da justiça negociada. Com esse pano de fundo, o monarca se viu agora
como ‘o soberano’ no campo político, confundindo-se agora sua imagem com a do
próprio Estado, centralizando todo o poder em suas mãos em detrimento ao restan-
te da sociedade, no entanto, é preciso esclarecer que esse poder, a priori, estava bem

165
Giácomo Tenório Farias
consolidado no campo político, mas não no campo do direito. E é nesse aspecto que
o direito era o seu principal obstáculo.
O sistema monárquico absolutista possibilitou ao soberano avocar para si esse
poder de dizer “o direito” e buscar esse monopólio judicial, mas sobre um preço
muito alto para a população. Na perspectiva penal, objeto da presente disciplina, o
disciplinamento imposto foi por meio de uma edaz reprimenda, muito embora
fosse realizado por meio de um processo.
Essa passagem está fundada sob dois planos: o primeiro, diz que toda forma de
infração corresponde uma ofensa à res publica, isto é, que o cometimento de qual-
quer delito, mesmo que se trate da esfera eminentemente privada, agora é do inte-
resse do Estado salvaguardá-lo; o segundo, trata-se do disciplinamento procedi-
mental obrigatório, com isso, o processo penal estará presente para ordenar o ca-
minhar da perseguição criminal, independentemente da natureza do delito. É preci-
so esclarecer que é nesse momento o qual o processo proporcionará ao juiz maiores
poderes inquisitórios em contrapartida houve a restrição do direito de defesa do
acusado.
Diante desse cenário, intensificou-se o desejo de criar um diploma legal em
substituição as Ordenações Filipinas, en passant, o qual já estava completamente
desconfigurado em virtude das diversas leis extravagantes13 que disciplinavam os
novos contornos sociojurídicos da sociedade lusitana.
Mesmo diante de novo paradigma que vinha sendo construído desde o século
XVI, surpreendentemente as Ordenações Filipinas foi vigente por 249 anos em
Portugal, sendo finalmente substituída somente no século XIX, com o surgimento14
do Código Penal de 1852.

13. Um exemplo, são as “Reformas Pombalinas (1750-1777)” determinada pelo rei de Portugal, D.
José I, o qual indicou Sebastião Carvalho e Melo (marquês de Pombal) como ministro para re-
formular e fortalecer o modelo político do Estado lusitano, o qual perpassa necessariamente pe-
las questões penais. Outro que merece destaque, e muito embora não tenha se tornado lei, foi o
Projeto do Código Criminal apresentado à Rainha D. Maria I (1823) por Pascoal José de Mello
Freire, o qual buscava disciplinar os tipos criminais e suas penas influenciado pelo pensamento
beccariano.
14. Para maior aprofundamento recomenda-se a leitura do artigo A codificação penal portuguesa no
Século XIX. (MARTINS, 2006).
166
Reminiscências da morte como pena no processo da codificação penal portuguesa
Dividido em dois livros, o primeiro contendo as disposições gerais, as quais con-
têm quatro títulos (I – Dos crimes em geral e dos criminosos; II – Das penas e dos
seus efeitos; III – Da aplicação e execução das penas; IV - Da responsabilidade civil,
e da extinção dos crimes e penas gerais). O segundo, trata dos crimes em geral, fra-
cionados em sete títulos (I - Dos crimes contra a religião do reino, e dos cometidos
por abuso de funções religiosas; II - Dos crimes contra a segurança do Estado; III -
Dos crimes contra a ordem e tranquilidade pública; IV - Dos crimes contra as pes-
soas; V - Dos crimes contra a propriedade; VI - Da provocação pública ao crime;
VII - Das contravenções de polícia).
Quando da leitura dos delitos descritos no citado código, fica evidente que os
ideais iluministas-penais e o humanitarismo beccariano estiveram presentes quan-
do sua elaboração e, em decorrência, a finalidade da pena imposta tinha um cunho
de prevenção geral. Cabe esclarecer, que mesmo diante da observância deste prin-
cípio, pois competia ainda ao magistrado a fixação da pena considerando a culpa15,
bem como as circunstâncias atenuantes e agravantes, distanciando-se do seu con-
ceito original, isto é, não haveria a necessidade de o juiz mensurar a pena, posto já
está devidamente fixada em lei.
Em virtude disso, críticas surgiram questionando qual teria sido a sua inovação
acerca da questão penal portuguesa, tanto porque o código enumera as seguintes
penas classificadas em: a) “As penas maiores :1. A pena de morte; 2. A de trabalhos
públicos; 3.A de prisão maior com trabalho, ou simples; 4. A de degredo; 6. A de
expulsão do reino; 6. A da perda dos direitos políticos; b) As penas correcionais são:
1. A pena de prisão correcional; 2. A de desterro; 3. A de suspensão temporária dos
direitos políticos; 4. A de multa; 5. A de repreensão; c) As penas especiais para os
empregados públicos são: 1. A pena de demissão; 2. A de suspensão; 3. A de censu-
ra,”16 repetindo praticamente as mesmas penas das Ordenações Filipinas, em espe-

15. Uma justificativa para a posição adotado por Portugal em amenizar o princípio da prevenção
geral, foi que [...] “ao contrário da Europa, a escola clássica não teve muita influência e a escola
correccionalista, muito pouco conhecida nos próprios países onde nasce, teve uma adesão inau-
dita. [...] A finalidade das penas passa a ser a prevenção especial, visando corrigir o criminoso
através da aplicação da pena de prisão” (MARTINS, 2006, p. 35).
16. Arts. 29 usque 31, Código Penal Português de 1852.
167
Giácomo Tenório Farias
cial adotar a morte como pena17. Vale salientar que, a brandura no momento da
aplicação desta espécie foi efetiva, pois determina que seria a simples privação da
vida (art. 32), ou seja, sem crueldade.
Passados trinta e quatro (34) anos, o CPP (1852) foi substituído, no dia 16 de se-
tembro de 1886, por um novo Código Penal. Da análise comparativa, vê-se que não
houve modificações significativas entre ambos, especialmente na parte especial,
mas, na parte geral, pode-se afirmar trata-se verdadeiramente de uma reformulação
mais profunda.
O Código Penal de 1886 está dividido em duas partes18, sendo que, diversamen-
te do anterior, não disciplina mais como espécie de pena, a morte, aliás, esta expres-
são aparece tão somente em quatro situações ao longo de todo a codificação, a sa-
ber: 1ª) no caso do crime de pirataria19 em alto mar, se o emprego da violência re-
sultou na morte de alguma pessoa, o criminoso será condenado a pena de prisão
maior de oito anos acrescida da degredo por vinte anos; 2ª) no crime de castração20,
se resultar na morte do ofendido dentro de quarenta e cinco dias depois da prática
delitiva, será condenado a pena de prisão maior de oito anos acrescida da degredo
por doze anos; 3ª) no caso de homicídio ou de morte em consequência de ferimen-
tos, espancamento, ou outras ofensas corporais, alguém ocultar ou sonegar o cadá-
ver terá uma pena de prisão de três meses a dois anos21; no crime de incêndio, oca-
sionando a morte de alguma pessoa, será condenado a pena de prisão maior de oito
anos acrescida da degredo por vinte anos.22
As espécies de penas no diploma citado acima são: a prisão (com tempo deter-
minado, ou seja, é banida a de caráter perpétua), o degredo (com tempo determi-

17. Ipsis litteris: A commissão pensa não ser chegado ainda o tempo, em que a pena de morte possa
ser de todo eliminada das nossas Leis penaes; entretanto, somente a admitte nos muito raros ca-
sos em que a sua justiça, e indisperisave1 necessidade não póde ser razoavelmente contestada
(Código Penal Português de 1852, p. II e III)
18. Livro I - Disposições Gerais; Livro II – Dos crimes em especial.
19. Art. 162, § 1º, do Código Penal Português de 1886.
20. Art. 366, parágrafo único, do Código Penal Português de 1886.
21. Art. 389, do Código Penal Português de 1886.
22. Art. 467, do Código Penal Português de 1886. Houve um equívoco na sequência dos tipos pe-
nais, pois deveria ser o art. 466.
168
Reminiscências da morte como pena no processo da codificação penal portuguesa
nado), a expulsão do reino (com ou sem tempo determinado), o desterro, suspen-
são temporária dos direitos políticos (por quinze ou vinte anos), multa e repreensão
e, nos casos de empregados públicos, a demissão, a suspensão e a de censura.
A fundamentação principiológica deste Código (1886) buscava conciliar três fi-
nalidades da pena no sentido retributivo, a reinserção social do criminoso, a inti-
midação individual e a coletiva, todavia, como a grande parte dos crimes possuíam
sua pena imposta pela lei, não permitia uma apreciação subjetiva por parte do ma-
gistrado, o que na prática era perdido este caráter retributivo, resultando simples-
mente nos efeitos de prevenção geral nos moldes do Código Penal de 1852.
Tabela A – Comparativo das espécies de pena na codificação penal portuguesa
Ordenações Filipinas Código Penal Código Penal
TIPOS DE PENAS*
(1603) (1852) (1866)
Morte com crueldade SIM NÃO NÃO
Morte SIM SIM NÃO
Prisão Perpétua SIM SIM NÃO
Prisão por tempo determina-
SIM SIM SIM
do
Degredo SIM SIM SIM
Desterro SIM SIM SIM
Expulsão SIM SIM SIM
Confisco de bens SIM SIM SIM
(*) As principais espécies de penas.
Fonte: Elaborada pelo o autor.
Por fim, conforme verificado ano longo do trabalho, a morte como espécie de
pena esteve legitimada pelo Estado português por aproximadamente três séculos, e
mesmo diante do movimento do iluminismo-penal ter contribuído para abrandar a
sua aplicação, não fora capaz de imprimir uma mudança mais rápida de sua exclu-
são no processo da codificação penal lusitano frente aos interesses políticos dos
inúmeros governantes que comandaram Portugal ao longo desse recorte histórico.

5. Considerações finais
O trabalho buscou apresentar um panorama histórico-jurídico sobre os fatores
169
Giácomo Tenório Farias
contributivos ao processo da codificação portuguesa, para tanto foi necessário, me-
todologicamente, estabelecer um recorte temporal e limitá-lo até o Código Penal
português de 1886, bem como não adentrar pormenorizado em alguns questiona-
mentos, tendo adotado unicamente o critério legislativo e da análise dos tipos de
penas. Nesse sentido, procurou-se nortear o leitor a compreender a importância do
movimento iluminista-penal na construção de estabelecer um novo olhar acerca da
aplicação da pena e de que forma o absolutismo monárquico português não permi-
tiu um processo de modificação mais célere nesse campo, tanto porque pois o direi-
to penal era(é) um dos instrumentos mais eficazes de controle social.
Os estudos realizados até o presente momento permitiram identificar a perma-
nência da adoção da morte como espécie de pena no direito penal do Estado lusita-
no desde o século XVI até o XIX. Contudo, da análise dos crimes presentes na codi-
ficação, pode se estabelecer um quadro comparativo estatístico sobre o tipo de pena
adotado, ficando demonstrado, a priori, a ocorrência de uma redução significativa
na escolha dessa pena (morte) para os delitos, principalmente no que diz respeito a
modo de aplicá-la.
No presente cenário, espera-se ter contribuído para estabelecer um paralelo en-
tre a o processo da codificação penal portuguesa e a mudança no paradigma da
chamada justiça criminal, possibilitando a continuidade com outros objetos de
pesquisa, como por exemplo, a superação da adoção da morte como pena num
quadro comparativo com outros códigos de Estados europeus e, assim, ser possível
concluir (ou não) de maneira mais completa a verdadeira influência do movimento
iluminista-penal nesse processo.

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Revisão: Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 32.
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171
O ÚLTIMO ENFORCADO NA PROVÍNCIA DO
RIO DE JANEIRO (1860):
NOTAS À “BIOGRAFIA DE RAMON NIETTO
POR UM COMPANHEIRO DE PRISÃO”
THE LAST HANGED MAN IN PROVINCE OF
RIO DE JANEIRO (1860):
NOTES TO “BIOGRAPHY OF RAMON NIETTO
BY A PRISON FELLOW”

8
João Luiz Ribeiro *

Resumo: A “Biografia de Ramon Nietto por um Abstract: The “Biography of Ramon Nietto by a
companheiro de prisão”, escrita na primeira pessoa, prison fellow”, written in first person, appears as a
apresenta-se como um depoimento dado a um testify given to a prison companion. It was pub-
companheiro de cárcere. Foi publicada no jornal lished in the Niterói’s journal “Echo da Nação”,
niteroiense “Echo da Nação”, antigo “A Pátria”, before “A Pátria”, on August 21th and 22th 1861, in
nos dias 21 e 22 de agosto de 1861, na seção “A the section “Orders”, in the numbers 185 (chapter
Pedidos”, nos números 185 (capítulo II) e 186 II) and 186 (chapter III - conclusion). In the num-
(capítulo III - conclusão). No número 184 não ber 184 I don’t find the first chapter, and the Na-
encontramos o primeiro capítulo, e faltam na tional Library of Rio de Janeiro’s collection the
coleção da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro os numbers 183 and 182. In the precedente ones I
números 183 e 182. Nos anteriores nada encontra- found anything. We cannot dismiss the hypothesis
mos. Não podemos descartar a hipótese de que teria that it would be written by jornal owner and editor,
sido ela escrita pelo proprietário editor do jornal, Carlos Bernardino de Moura, who acted as defend-
Carlos Bernardino de Moura, que atuou como ant’s attorney in his second judgement in Itaboraí.
defensor do réu em seu segundo julgamento em Ramon was hanged on September, 28th 1860.
Itaboraí. Ramon foi enforcado em 28 de setembro
de 1860.

* Professor de História do Direito na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Doutor em


História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
173
João Luiz Ribeiro
Palavras-chave: Pena de morte; História da justiça Keywords: Death penalty; History of criminal
criminal; Rio de Janeiro. justice; Rio de Janeiro.

1. “Biografia de Ramon Nietto por um companheiro de prisão”


(Continuação)
CAPÍTULO II
Aqui neste belo país respirei tranquilo: – Estou duas mil e tantas milhas distante
dos meus segredos, disse eu a mim mesmo, ao por os pés em terra no cais dos Minei-
ros – possa eu olvidar as travessuras que hei feito! Possa eu trilhar uma nova senda
que não seja tão cheia de abrolhos como até aqui hei trilhado. Entregue a esta e a
muitas outras reflexões, perguntei a um tição1 que encontrei pouco depois de saltar
em terra, onde ficava a rua do Cano, o qual me ensinou a direção que devia tomar e
em breve cheguei à rua do Carmo, onde então principiava aquela. De Lisboa tendo
vindo para o Rio de Janeiro, em 1854, um moço sapateiro, o qual me escreveu parti-
cipando-me achar-se na rua do Cano em casa de Francisco da Lapa Costa, com loja
de sapateiro aí; avista do que, perguntando por este homem me foi ensinado sua casa.
Com efeito havia ali estado aquele moço, porém há tempos que se tinha ausentado;
todavia nada me prejudicou esta ocorrência, porque Lapa, tendo precisão de oficiais,
me tomou em sua casa. Ali trabalhei apenas um mês, porque logo um oficial da casa
de Manoel Pereira Madeira, com o mesmo negócio e na mesma rua, me principiou a
seduzir para ir para a casa deste; nesta casa estive trabalhando 3 meses, acontecendo
porém que tendo este Madeira uma outra casa na Prainha, para lá me mandou tra-
balhar com outro oficial, cujo ganhava 30$ por mês; mim porém, que diziam não
trabalhar bem, me queria Madeira dar somente 20$. Este proceder fez nascer dentro
do meu peito, uma ideia de vingar-me de Madeira já que não o podia obrigar a pa-
gar-me tanto como ao outro; por mais de uma vez desejei principiar pelo dito oficial
meu companheiro, porém estre temendo-se de mim, me vigiava contanto cuidado
que nunca pude achar ocasião de cumprir o meu desejo; sempre envolto neste pensar,
passaram-se dias inteiros... algumas vezes perguntava a mim mesmo porque persistia

1. Um negro.
174
O último enforcado na Província do Rio de Janeiro (1860)
na carreira do vício e do crime, e uma voz oculta me respondia com som tenebroso:
segue filho ingrato, segue filho amaldiçoado que mais de uma vez tentas-te oculta-
mente tornar-te parricida ousaste contra teu pai... a sua maldição e a de Deus, pesa
sobre tua cabeça... segue mau filho, mau irmão e mau amigo, o patíbulo te aguarda.
Eu tremia de pavor ao soar-me aos ouvidos estas palavras filhas verdadeiras da des-
graçada realidade. Os remorsos dos meus feitos vinham a cada passo roer-me as en-
tranhas, e o patíbulo entolhar-me a mente pairando a todo instante ante meus
olhos...
Pouco tempo depois de chegar ao Rio de Janeiro havia comprado uma compa-
nheira2 que sendo de formidável tempera, juremos mutuamente união eterna... jul-
gando porém o meu companheiro de oficina, que me ouvia persentindo, que ela seria
para cumprimentá-lo segundo o meu costume... aproveitou-se de uma mona que eu
tomei em uma noite e tirou-m’a no dia seguinte vendo-me viúvo, tornei-me enfure-
cido, porque tinha de ir cumprimentar Madeira e não tinha a minha companheira:
esta falta porém foi fácil de suprir, uma faca do ofício bem afiada tinha a mesma
valia que podia ter uma boa Laporte. Garantido por esta companha vesti-me para ir
à rua do Cano visitar e cumprimentar o meu mestre... quando porém me dispunha
para sair dei por falta do oficial da loja, não julguei outra coisa mais do que temen-
do-se de que lhes experimentasse a faca na barriga, o que seria mais certo, pôs-se ao
fresco. – É um covarde vil, disse eu comigo ao deixar a loja do sapateiro na Prainha.
Entretanto, logo que cheguei à casa de Madeira, na rua do Cano, conhecia que havia
me enganado, pois o tal covarde foi mais atilado que eu fui, pois saindo sorrateira-
mente da casa, havia ido chamar dez soldados e com eles esperado por mim em casa
de Madeira. Assim surpreendido em minha tão querida intenção, tive que lutar com
aqueles que procuravam prender-me; depois de um aturado conflito tive de ceder aos
meus agressores, sem que pudesse levar ao fim o meu desejo... todavia consegui fazer
uma boa generosidade a um dos soldados, que escapando à morte, não escapou a
uma boa facada no peito, e abrindo-lhe a farda de um lado ao outro, chegou-lhe
imediatamente ao vulto. Aqui porém encetei uma carreira menos feliz do que nos
dois países da Europa; porque em resultado desta minha façanha fui conduzido ao
xadrez da polícia de onde fui transportado para a cadeia do aljube havendo-se-me

2. Uma faca de bom aço.


175
João Luiz Ribeiro
instaurado um processo, fui no fim de sete meses de prisão submetido ao júri, cujo
tendo em consideração este tempo me condenou a um mês de prisão na casa de cor-
reção.
Ali, vi claramente o prêmio que recebe todo aquele que como eu trilhava a sendo
do heroísmo!... A casa de correção da corte não pertence a este mundo, é uma nova
habitação surgida dos abismos da terra, para tortura dos vivos! Tudo ali é diferente!
O próprio ar que ali se respira é nocivo à existência, porque a luz do sol não penetra
natural, aquele fosso consagrado só ao horror e à morte!.. como digo, cumpri na casa
de correção, um mês de prisão; devia ao terminar aquela sentença fugir apressado
daquele sepulcro onde jazi sem vida um mês ou para melhor dizer um século, porém
não o fiz; é sina minha contrair dívidas em toda a parte onde chego, e meu caráter
satisfazer o mais breve possível. Assim pois, havia prometido a dois sujeitos dar-lhes
na primeira ocasião oportuna uma boa recompensa, e procurei realizar esta sagrada
promessa.
Ofereci-me, e sendo aceito como guarda daquela masmorra, foi me dado um far-
damento, bem como as armas necessárias para o mister que exercia3. Ao ver-me com
uma espada à cinta e uma boa espingarda nas mãos, saltei de alegria, desafiando os
próprios astros, desejando como a ventura maior da minha vida, verem frente de
mim todos aqueles com quem ardentemente desejava saldar minhas contas; no en-
tanto não pude chegar nunca a um resultado definitivo; por duas vezes tentei guar-
dar um cartuxo que me pesava na patrona, na barriga de um sargento chamado
Pires, porém nunca pude efetuar isto de maneira que não tivesse de voltar ao lugar
onde estive um mês encurralado; o mesmo quis fazer a outro guarda, porém igual-
mente o diabo velava por eles. Vem(do) assim frustrado os meus desejos, revoltei-me
contra mim mesmo por tal forma, que até uma vez cheguei à temeridade de querer
terminar a minha própria existência; esta ideia porém, foi em breve banida de minha
mente porque jamais nutri desejo de ofender a um corpo de amo deveras. Neste tem-
po chegou ao Rio de Janeiro um tal de Mr. Charles. Atleta francês, que oferecia um
conto de réis a quem em luta o deitasse por terra; desafiou ele os filhos de todas as
nações, que se achassem no Brasil, foi um insulto feito aos homens! foi mesmo uma
luva lançada na face de todos que cumpria repelir. As minhas forças não eram para

3. Guarda da casa de correção.


176
O último enforcado na Província do Rio de Janeiro (1860)
equiparar-se com as de um homem colossal como Charles, todavia desejei lutar com
ele; para esse fim pedi ao administrador da casa de correção, onde ainda era empre-
gado, para deixar-me ir à rua de S. José, em um hotel falar a Charles. Este ao ver-me
em sua presença pedindo que me alistasse na lista dos homens que iam dali a dias
lutar com ele, sorriu-se dizendo-me se eu sabia o que e com quem falava. Esta zom-
baria veio de súbito fazer-me o sangue subir à cabeça, desejando nesse ímpeto dar-lhe
a minha costumeira recompensa. Ele, porém, conhecendo os meus desejos, me disse
que aceitava, tomando o meu nome no número dos que já se haviam inscrito. (conti-
nua)
A luta devia ter lugar poucos dias depois no círculo de cavalinhos, na rua da
Guarda Velha. Eu achando-me de volta da casa da correção, participei ao diretor,
que precisava me desse permissão na noite “tal” para ir lutar com Charles; ele porém
opondo-se vivamente, colocou-me n’uma posição terrível.
Nunca um homem, a meu ver, se tornou mais digno de uma das minhas genero-
sas recompensas, nem eu jamais em minha vidada almejei mais recompensar uma
ação como aquela: entretanto naquele lugar não me foi possível... Por forma alguma
queria eu faltar ao meu prometimento para com Charles, por isso tomei a minha
resolução. Vendo que não podia realizar os desejos que me forçaram a pedir o empre-
go de guarda do inferno, despedi-me d’ali dois dias antes do em que a noite havia de
ter lugar a luta. Esse momento por mim tão desejado chegou enfim.
Charles apresentou-se no círculo, nu da cintura para cima, nunca vi um homem
tão disforme! Sua gordura era excessiva, dois homens de braços abertos não abrangi-
am o tronco de seu corpo. Ao ver aquele corpo monstro, disse comigo – que bem em-
pregado Laporte4 daria de bom grado naquela ocasião uma parte da minha vida
para ter a satisfação de com a minha querida companheira5 tomar-lhe a fundura
daquela diabólica barriga.
Entregue a esta e a muitas outras ideias, foi ao som da música que entramos para
o lugar da luta... Ao fim de alguns minutos Charles estava lançado por terra; mas
pelo juízo da autoridade e juízes que assistiam ao espetáculo, não consideravam vá-
lida aquela queda que diziam, devia ser lançado em terra, porém que tocasse esta

4. Laporte chamava ele as facas e pistolas de Laporte.


5. A faca que o acompanhou quase sempre.
177
João Luiz Ribeiro
com as duas espaduas.
Foi uma proteção feita ao homem que veio às plagas do Brasil, para afrontar seus
filhos!... por esta maneira foi-se impunemente do Brasil, sem que se lhe derrubasse
sua proa infame. Não senti a perda do conto de réis, mas sim tendo-o lançado por
terra, não haver um juiz que apoiasse o meu feito, embora se restituísse o dinheiro a
Charles! Moralize quem quiser estas coincidências, eu não!

CAPÍTULO III
Revoltado assaz contra o Rio de Janeiro, dirigi-me a Mangaratiba, ali, e em S. Jo-
ão do Príncipe, me empreguei na estrada que se fazia naqueles sítios. Ainda ahi tive
de satisfazer dívidas que aí contraí na forma do meu costume, porém com mais for-
tuna do que no Rio de Janeiro. Algumas dívidas porém, sendo pagas com muita gene-
rosidade, me forçaram a deixar Mangaratiba e ir para Santana do Piraí. Novas dívi-
das tive de pagar aí, porque na verdade só estava satisfeito quando esbordoava e
cumprimentava com a minha nova companheira6; este estado de conduta porém não
me colocou em muito agradáveis circunstâncias porque não só aí apanhei também,
como escapei dificultosamente de ser preso. Esta ideia transportou-me instantanea-
mente à casa de correção da corte, vi perante meus olhos aquele abismo onde havia
estado enterrado, e tremi ao pensar em reentrar ali de noite. Deixei por isso Santana
do Piraí, retirando-me dali de noite. Não tendo outra direção para tomar, atenta a
minha posição pecuniária, regressei a Mangaratiba, não para empregar-me nas es-
tradas onde tinha feito diabruras, mas sim em um lugar chamado Saco de Mangara-
tiba: aí estive 4 meses, que trabalhei pelo ofício de corrieiro. Alguns desatinos tiveram
lugar nesse tempo, porém quase todos de pequena monta, exceto um dos últimos dias
em que tive uma dúvida com meu amo, sobre o meu pagamento, do que resultou um
conflito que custou um bocadinho de sangue, resultando que me levou á prisão.
Contudo, esta como quase todas as prisões dos pequenos lugares, favorecem mais
ou menos os desgraçados que nela caem, motivo porque dias depois eu me achava no
Rio de Janeiro.
- Ora pois, disse eu comigo ao chegar ao Rio de Janeiro, estou livre das travessuras

6. Sua faca.
178
O último enforcado na Província do Rio de Janeiro (1860)
que fiz nestes últimos tempos, vamos a ver se tomarei juízo, e trilharei outra sendo
mais razoável; até hoje hei sido um demônio; porque nada sofro, folgo em fazer verter
pranto e sangue e no entanto nada quero tolerar!... Preocupado com este cismar,
caminhei para a estrada de Pedro II, a fim de ali me empregar, o que realizando, ali
fiquei pelo espaço de oito meses. Muitas vezes ofendi meus companheiros e lhes fiz
mesmo em brigas, verter sangue; sendo ali que me acabei de convencer de que minha
sina era a prisão perpétua ou o patíbulo! Muitas e muitas vezes se me repetia aos
ouvidos as falas que ouvi quando da casa da rua da Prainha saía para a casa do Ma-
deira... Horas e horas de consternação formou a minha existência durante os 8 meses
que permaneci naquela estrada de Pedro II. Vítima de uma violenta propensão para
o mal, em parte alguma achava tranquilidade, a cada passo se me apresentava um
novo abismo, e sem que eu lhe pudesse fugir. Tendo por vezes estado prestes a ser
conduzido à prisão por causa das minhas más obras, deixei a estrada de Pedro II e
nutri desejos de deixar igualmente o Rio de Janeiro; por alguns dias fiquei na corte,
porque na verdade não sabia para onde ir que me não fosse fatal. Se na corte sou
perseguido, se na província sou perseguido, para onde hei de ir que possa viver tran-
quilo, dizia eu a mim mesmo, no momento em que a ideia de ir para o Porto das
Caixas veio de súbito habitar-me a mente....
No fim de alguns dias achava-me como criado de Wilmes, cunhado de Jansen do
Paço, no Porto das Caixas. Não sei como o destino me levou aquela casa, ainda hoje
não posso formar ideia da maneira porque se passou seis semanas que fui criado do
Wilmes e do Jansen do Paço.
Como quer que fosse, raiou o dia 13 de janeiro de 1858, e com ele o último de mi-
nha liberdade! Foi nesse dia de horror e de desgraça que teve lugar a cena que cumu-
lou os meus erros e a minha desventura.
A morte do coronel Jansen, foi para mim um terrível pesadelo do qual até hoje
não pude despertar! Seu efeito foi de uma impetuosidade tal, que não me recorda a
maneira porque foi consumada. Entretanto, Jansen foi morto com golpes de canivete
e eu fui conduzido ao xadrez do Porto das Caixas, onde incontinenti fui carregado de
ferros...
Pouco tempo depois meditava sobre todo o ocorrido, e não podia atinar com a po-
sição em que me achava. – Sem dúvida isto é um sonho, do qual logo despertarei,

179
João Luiz Ribeiro
dizia eu comigo mesmo n’um letargo mortal. Mas ah! Como errôneo foi o meu pen-
sar! Logo depois as falas que por vezes me haviam surpreendido, vieram de novo
assaltar-me para jamais deixarem de perseguir-me.
Assim atormentado de remorsos e de horror, jazi no xadrez do Porto das Caixas,
até que sendo-me instaurado o processo como autor do assassinato do coronel Jansen
do Paço, fui conduzido, carregado de ferros para esta prisão, onde me acho.
Algum tempo depois fui reconduzido ao Porto das Caixas, a fim de responder ao
júri, que se havia reunido para julgar-me.
Sua decisão foi infernal, um raio esparzido pelo inferno, veio despedaçar-me, - foi
a sentença de morte, dada no cadafalso!...
- Oh! Meu pai! Exclamei eu, ao entrar de novo para a prisão, e ser carregado de
ferros, fostes muito cruel! Tuas pragas hão esmagado minha cabeça, a tua maldição
me há acompanhado por toda parte... Estou condenado à morte, para em breve ser
levado ao cadafalso e perecer sob o algoz! Oh! Pai infernal! Maldito sejas tu...
Entregue à mais negra desesperação caí n’um letargo, e jazi nos horrores do infer-
no até que fui de novo mandado para aqui, esperando novo júri, para o qual havia
eu protestado.
Aqui estive até que se abrisse, na esperança de que fosse nesse mais felix do que
n’outro; porém minhas esperanças foram baldadas... O momento de responder ao
júri chegou, e eu fui ali conduzido, mas debalde aguarda bom êxito, porque a maldi-
ção de meu pai andava a todo o instante sobre mim... Pela segunda fui condenado à
pena capital... e sem outro recurso mais do que o do tribunal da relação e o poder
moderador!
Pouco tempo depois evaporou-se para sempre de meu coração a esperança que
havia depositado no tribunal da relação, porque havia esse confirmado a minha pena
de morte! – Oh! Que a maldição infernal me persegue! Duas vezes condenado à
morte pelo júri, e esta confirmada pelo egrégio tribunal da relação!... o que me resta?
O perdão do Monarca? também não quero, disse eu no momento em que fui intima-
do de haver-me sido confirmada a pena de morte... O escrivão das execuções, no ato
de intimar-me, marcou-me oito dias para interpor a petição de graça a S.M. o Impe-
rador, e eu com efeito prontamente a fiz, pedindo com instancia que fosse brevemente
submetida ao conhecimento de Sua Majestade, porém, persuade-se que implorei um
180
O último enforcado na Província do Rio de Janeiro (1860)
perdão! Oh! Não pedi tal! Pedi que me confirmasse a pena de morte porque devo
morrer! Não quero mais existir sobre a terra onde tenho arrastado o infernal rigor do
mais negro destino; não quero mais habitar este mundo cheio de ilusões e enganos,
porque a morte me chama e devo cumprir a fatalidade do mais fim. A cada momento
aguardo o ser levado ao patíbulo, para ser-me arrancada a existência; eu devo mor-
rer... porém morrer no patíbulo, tendo apenas 23 anos de idade!? Oh! maldição!
maldição sobre todos, e sobre mim também!
Eis as últimas palavras da narração de Ramon Nietto.
................................................................................................................................
Quem como eu visse seus gestos, sua voz e seu olhar feroz, tremeria de pavor! Seus
olhos pareciam saltar das órbitas, em cujos cantos se via o sangue prestes a arreben-
tar, seus dentes rangiam como se estivesse lutando com a morte a mais horrenda.
Ainda um momento o contemple(i) nesse estado, em que ele encarando-me uma
última vez, se retirou para o fundo da prisão; onde esmagado pela sua desgraça e seus
remorsos, jaz esperando o momento de ser executado.

***

2. Notas
Nota 1: Na Europa
Ramon Nieto nasceu em São Veríssimo de Selimova, na Galícia. Era filho de Jo-
aquim Nieto e Manoela Barcelar. Em certa ocasião, Ramon invocaria o fato de ser
um órfão desamparado de pai e mãe desde os 16 anos de idade, por ter trilhado “a
senda cruel, em que o lançava um destino caprichoso e fatal”7. Mas sua idade foi
motivo de controvérsia. Quando pela primeira vez preso, na Corte, disse ter 25 anos
e que sabia ler e escrever. Dando notícia do júri da Corte, o Diário do Rio de Janeiro
consigna esses mesmos 25 anos, mas o cronista judiciário do Correio Mercantil,
simpático ao réu, dá-lhe dezoito. Interrogado em Itaboraí, pelo Chefe de Polícia da
Província do Rio de Janeiro, após matar Jansen, disse que não sabia a idade e nem

7. Códice 306, volume 306, volume 20, doc. 21.


181
João Luiz Ribeiro
ler e escrever e assim seu interrogatório foi assinado por outro, a seu pedido. No
júri de Itaboraí declarou não saber a sua idade, nem mesmo a provável e que sabia
ler pouco e que apenas assinava o nome. Dois peritos doutores então o examinaram
e disseram que pelos sinais exteriores tinha entre 23 e 24 anos de idade. No segundo
júri em Itaboraí, Ramon declarou que tinha entre 19 e 20 anos de idade e que “sabia
ler letra redonda e mal sabia escrever o seu nome”. Ramon insistia: em sua primeira
petição de graça protestou que sua sentença de morte não levara em conta a cir-
cunstância atenuante de ser menor de 21 anos (artigo 18, $10 do código criminal).
Os desembargadores da Relação e a seção de justiça do Conselho de Estado consi-
deraram-no como tendo 23 anos de idade.
Temos uma descrição de Ramon, feita na ocasião em que compareceu no júri de
Itaboraí: “de estatura regular, rosto redondo, com muito pouca barba e um pequeno
buço, claro, pálido, testa larga, olhos gateados e vivos, pouca sobrancelha, nariz rom-
bo, cabelo castanho e comprido, boca pequena que tomava uma forma quase trian-
gular quando falava.”
Como foi dito, o primeiro capítulo da biografia não foi localizado, e assim não
sabemos o que lá se diz sobre a vida pregressa de Ramon na Europa. Sobre o aten-
tado a seu pai, a primeira vez em que o evento foi mencionado foi no júri em Itabo-
raí, em conclusão a seu interrogatório feito pelo juiz de direito:
“- E por que motivo veio o senhor da Europa para o Brasil: Recorda-se?”
“- Vim para o Brasil para melhorar de circunstâncias, como têm praticado muitos
outros.”
“- Pois não é verdade que o senhor veio para este país por ter tentado contra a vi-
da de seu pai?”
“- Não, senhor, não é verdade, pois sempre respeitei a meu pai como a Deus no
céu”8.
Nas primeiras linhas de seu relatório, o desembargador da Relação da Corte, que
examinou a apelação ex officio, considera o atentado um fato estabelecido: “No seu
país devia ser considerado um malvado por ter tentado contra a vida de seu pai, co-
mo se vê dos autos”.

8. Brasil Comercial, 28-03-1858.


182
O último enforcado na Província do Rio de Janeiro (1860)
Sobre suas estripulias em Portugal, também pouco pudemos conhecer. O cro-
nista judiciário do Correio Mercantil as refere por duas vezes, ao comentar a sessão
do júri da Corte em que Ramon foi julgado por uso de armas proibidas. Primeira-
mente, ao apresentar o réu:
“O espanhol Ramon, lá das bandas de Santiago de Compostela, sapateiro, soltei-
ro, com 18 anos de idade, não se dando bem na terra natal, emigrou para Portugal,
onde consta ter feito artes diabólicas, e dali se passou para o nosso Brasil”9.
Ecoava o promotor que o acusou: “Em seguida da acusação denunciou que o
Ramon já tinha estado no Limoeiro, em Lisboa, em prêmio das muitas estrangeiri-
nhas, que por lá fez”.

Nota 2: Na rua do Cano


Não localizei o registro de entrada de Ramon no Brasil. Provavelmente chegou
em fins de 1854 ou ao longo de 1855. Bastante precisa é a referência à rua do Cano
nesta época: ao desembarcar no cais dos Mineiros perguntou “a um tição que en-
contrei pouco depois de saltar em terra, onde ficava a rua do Cano, o qual me ensi-
nou a direção que devia tomar e em breve cheguei à rua do Carmo, onde então prin-
cipiava aquela”. Em janeiro de 1856 começariam as obras de “alargamento, abertu-
ra e reedificação da rua do Cano”10. Nela encontravam-se várias oficinas de sapatei-
ro.
Sobre os acontecimentos que levaram a sua primeira prisão na Corte estamos
bem informados, graças aos documentos anexados à consulta feita à seção de justi-
ça do Conselho de Estado. Em sua queixa, o acusador Madeira, “estabelecido com
casa de sapateiro nas ruas da Prainha n. 77 e rua do Cano n. 111”, dissera que “des-
pediu ele por não lhe convier um seu oficial de nome Romão o qual defraudava os
seus interesses, aconteceu que esse oficial assim legitimamente despedido pelo supli-
cante, como dono da casa, intentou tomar um desforço contra o suplicante, usando
de uma arma proibida pela lei”11.

9. Correio Mercantil, 28-03-1856.


10. Jornal do Comércio, 11-01-1856.
11. Códice 306, volume 20, doc. 21.
183
João Luiz Ribeiro
Durante a formação de culpa desse primeiro processo, seus colegas sapateiros
confirmaram a intenção de Ramon “ir cumprimentar Madeira”, conforme diz na
biografia. Um deles afirma que “achando-se na rua da Prainha aí o réu presente
com a faca que também lhe é presente de dizer que ia dizer adeus ao queixoso ele
testemunha acompanhou e chegando à casa do queixoso lhe disse o que havia dito o
réu e que se acautelasse”. Outro sapateiro declarou que ao ver a faca que Ramon
tinha no bolso de um paletó preto, “observou por duas vezes que aquela faca no
lugar em que se achava corria e caia e que o réu sofria ao depois algum incomodo”.
Ramon teria lhe respondido que “deixasse estar que aquela faca ia dizer adeus ao
queixoso”.
Ramon rebateu os depoimentos dizendo que as testemunhas eram todas depen-
dentes do autor. Quanto à faca, era de ponta, mas sem cabo.
Todavia, no mais, em tudo a biografia difere do que foi relatado pelo alferes que
realizou a prisão:
“Hoje (9 de janeiro de 1856) ao meio dia passando pela rua da Vala observei que
na rua do Cano se achavam muitas pessoas reunidas e uma força do Corpo de Per-
manente e dirigindo-me aí me disse o permanente que tinha sido chamado da senti-
nela do Largo da Carioca para prenderem um homem que se achava com uma faca e
que vendo-o na verdade armado o prendeu a ordem de Sua Excelência o Senhor Che-
fe, porém ele evadiu-se para o interior da casa número cento e quinze da mesma rua,
e saindo depois se apresentou, mas sem a faca e apresentando-se também Manoel
Pereira Madeira e lhe disse que o preso tinha sido seu oficial de sapateiro que despe-
dindo-o ele ontem, hoje se apresentou com uma faca e procurava ao mesmo Madeira,
que temendo o fato que se podia consumar chamou o auxiliar do sentinela de Per-
manentes e acrescentou a faca ele preso escondeu na casa número cento e quinze.
Não havendo presente autoridade alguma tomei o nome das pessoas que presencia-
ram o fato, e que vão abaixo declaradas, e com licença do dono da casa número cento
e quinze, aí fui com as testemunhas e encontrei a faca, que vai junto a esta, atrás de
uma caixa de ferramenta no corredor interior, que foi reconhecida por algumas tes-
temunhas”12.

12. “Parte do Alferes do Pedestre ao Chefe de Polícia”, in Códice 306, volume 20, doc. 21.
184
O último enforcado na Província do Rio de Janeiro (1860)
O delegado que recebeu a queixa de Madeira julgou-a improcedente, por não
haver nos autos matéria para a pronúncia, mas o juiz Municipal da 2ª. Vara refor-
mou o despacho do delegado e lançou o réu no rol dos culpados.
No dia 27 de março de 1856, Ramon Nieto compareceu perante os jurados da
Corte. Neste dia, além de nosso herói, também foram julgados por uso de armas
proibidas, ou, “como se diz em frase mais castiça, armas defesas”, um cozinheiro,
“pretinho”, de nome João Bastos, natural de Moçambique, de 35 anos, e o estivador
de navios Manoel Gonçalves, natural de Campos (RJ), de 33 anos, um “tipo perfeito
do cruzamento da raça caucasiana com a raça africana”. O pretinho, defendido
pelo advogado dos pobres, o Dr. Cordeiro, foi absolvido e o canivete, com o qual
fora encontrado, foi-lhe devolvido. O canivete tinha uma história interessante, pois
fora comprado na vila do Amarante, em Portugal, quando lá estivera com seu anti-
go senhor, “numa viagem muito propícia a João, porque talvez a sua alforria seja
devida a essa única circunstância”. Manoel Gonçalves, que não contou com o Dr.
Cordeiro, pois este, tendo participado de algum modo da formação de culpa, teve
escrúpulos em fazer a defesa e assim viu-se sem patrono e foi condenado a um mês
de prisão com trabalho. “Sempre ouvimos dizer que quem não tem padrinho morre
pagão; pois bem, Manoel Gonçalves conheceu praticamente a verdade do axioma
profundo e muito popular.”
O último processo por faca de ponta foi o de Ramon. Segundo o cronista judici-
ário do Correio Mercantil, o processo era curioso porque o autor, o réu e as teste-
munhas exerciam todos o mesmo ofício de sapateiro. O fato “abalara toda a socie-
dade sapateiral”. O cronista apresentou-nos os protagonistas. “O autor é um sujeito
que não pestaneja, de uma circunspecção à toda prova. O réu, um rapagão rochun-
chado, que estropeando o português fala pelos cotovelos. É o tipo da eloquência gale-
ga.”
Segundo o cronista, o libelo apresentado em nome de Madeira era uma peça
“tão monstruosa e ridícula” que o promotor “teve de abandoná-lo no momento de
subir à cadeira da acusação”13. Não obstante, pediu o máximo das penas do artigo 3
da lei de 26 de outubro de 1831, combinado com o artigo 207 do código criminal,

13. O cronista acabou se confundindo e consignou como sendo o advogado o Dr. Cordeiro e não o
promotor Dr. Ferreira Baptista o responsável pela acusação.
185
João Luiz Ribeiro
porque o fato era revestido de muitas circunstâncias agravantes. Em seguida, como
dissemos, lembrou que o réu já tinha estado na prisão do Limoeiro, em Lisboa,
“mas que isto não lhe serviu de exemplo para que não viesse estrear tão brilhante-
mente entre nós pelo crime de ameaças e uso de armas proibidas”.
As fontes jornalísticas divergem quanto à defesa de Ramon. O Correio da Tarde
nos informa que o Dr. Cordeiro fez a sua defesa, mas o cronista do Correio Mercan-
til diz que “Ramon padeceu do mesmo mal que seu antecessor – não teve patrono!”.
Ramon teria a si mesmo defendido. Ramon rebateu todas as testemunhas.
“Interrogadas as testemunhas, a todos contradisse o eloquente Ramon; concluin-
do com este facto: - Assim como Jesus Cristo entregou-se a seus inimigos, Sr. presiden-
te, saiba V. Ex. que eu me entreguei a meus perseguidores!”
Futuramente, em outras ocasiões, repetiria a comparação.
“Ouvido o último rasgo de eloquência de Ramon Nhieto, entrou o conselho para a
sala das conferências e de volta trouxe ao jovem espanhol um mês de prisão.”

Nota 3: Na Casa de Correção da Corte


Na biografia, Ramon conta que após sua façanha na rua do Cano fora conduzido
ao Aljube, onde permaneceu por sete meses, antes de ser condenado pelo júri da
Corte a um mês de prisão na Casa de Correção. Na realidade, como vimos, fora
preso em 09 de janeiro e respondeu ao júri em 27 de março. Este lhe impôs a pena
mínima, certamente em consideração a essa temporada preventiva na cadeia, praxe
do júri da Corte nesses casos de ferimentos leves, uma vez que o tempo de prisão
anterior à condenação não era descontado daquele estipulado pela sentença. Mas
ficaria mais um mês preso na Detenção, antes de adentrar a Correção, em 04 de
maio, a fim de cumpri-la. Saiu da prisão em 05 de junho, e dela tornou-se guarda,
por “seis meses, entrando e saindo a qualquer hora do dia e da noite”14. Na Correção
não fez amigos. Segundo a biografia, Ramon despediu-se a fim de poder lutar com
Monsieur Charles. Quem o empregou na Casa, entretanto, diz que o demitiu, meses
depois da luta. “Foi empregado como guarda neste estabelecimento desde seis de
junho até dois de janeiro, dia em que o despedi pelo seu gênio arrebatado e colérico”,

14. Resposta ao interrogatório do chefe de polícia do Rio de Janeiro.


186
O último enforcado na Província do Rio de Janeiro (1860)
informou o diretor da Casa de Correção, Antônio José de Miranda Falcão, ao chefe
de polícia da província do Rio de Janeiro.

Nota 4: A luta com Monsieur Charles


No dia 16 de setembro de 185615, o Correio Mercantil noticiava que acabara “de
chegar a esta corte o célebre lutador Mr. Charles, que desafiou os Hércules das duas
Américas sem nunca poder ser vencido”. Também habilíssimo ginasta e lutador de
sabre, em breve daria “uma representação, oferecendo UM CONTO DE REIS, que
deposita, a quem o puder atirar no chão”. No dia 28 de setembro Charles publicou
nos jornais um “DESAFIO DE LUTA”. Apresentando-se como o único lutador
europeu que pode sustentar lutas por dez anos sem nunca ser vencido, convidava
todos os homens robustos e temíveis, “sem distinção de cores nacionalidade, exce-
tuando contudo os escravos”, a uma luta em campo raso. Os adversários precisariam
não ter menos de 24 anos de idade e nem mais de 43, e “representar uma força in-
comum”. Charles aceitaria quatro combates e até mesmo seis, caso não ficasse mui-
to fatigado. Se não aparecessem um mínimo de quatro, não haveria espetáculo.
Quem o vencesse levaria “UM CONTO DE RÉIS”.
Inscreveram-se um inglês, um ianque, um francês, um italiano, um X. e um bra-
sileiro. A luta estava marcada para..., e anunciou-se a presença de Pedro II, mas foi
adiada por causa... Pouco depois, sem a presença do Imperador, no dia, 27 de outu-
bro de 1856, no Circo Olympico da Guarda Velha ocorreu o combate. Os dois pri-
meiros foram vencidos rapidamente, o terceiro “exauriu a meia hora marcada em
negaças ridículas e sem engajar luta séria”. O quarto, o ianque, ofereceu um comba-
te verdadeiro. Era um possante marinheiro norte-americano que bravamente resis-
tiu, mas também foi vencido. “O quinto contendor era o cavaleiro mascarado, que
tão galhardo convite dirigira a Charles”. O mascarado, agarrando Charles pela cin-
tura, conseguiu suspendê-lo do solo, apesar das 13 arrobas do hércules, que por
fim, unindo uma força descomunal à destreza, estendeu o mascarado na arena do
círculo. “O público saudou freneticamente a ambos”. Declarando-se cansado, Char-

15. Em 12 de setembro de 1856, entrava no porto, vindo do Rio da Prata, o paquete inglês Camilla,
trazendo um francês de nome Frederico Charles.
187
João Luiz Ribeiro
les não quis lutar contra o sexto combatente, recusando-se “com muita prudência
medir-se com um adversário de aparência temível, homem impertinentemente exi-
gente e pouco generoso”. O espetáculo que já transcorria em meio a insultos, dicté-
rios, assovios, gritos, “vivas e foras”, virou uma algazarra, provocada pelas ridículas
bravatas do lutador “quand même”. Camarotes foram escangalhados. Um sucesso
de público e crítica que seria logo reprisado.
No início de novembro os jornais voltaram a anunciar um espetáculo de luta
que se realizaria no sábado, dia oito, no Circo Olympico da Rua da Guarda Velha.
Enfrentariam M. Charles quatro contendores: Domingos José Gonçalves (chamado
o Português Terrível), Thomas Kingston (atleta inglês), José da Silva e João Lopez
(espanhol). Se acaso faltasse um dos lutadores inscritos, “qualquer dos indivíduos
presentes” em querendo poderia substituí-lo. O vencedor receberia o anunciado um
conto de réis. O anúncio advertia: “Roga-se aos srs. lutadores que se apresentem
francos e destemidos na arena, para não acontecer o que teve lugar com o terceiro
lutador no espetáculo antecedente, pois é regra da luta que, depois de dada a mão de
amigo, o lutador não tem o direito de fugir do combate por meio de saltos e escara-
muças, porque todas essas coisas não são mais do que indesculpáveis subterfúgios.”
Acrescentava que não sendo conveniente, não seria admitida a presença de senho-
ras. Na luta preliminar, um jovem Bordalês, francês de 23 anos de idade, pesando
103 libras, iria enfrentar Francisco Pinto Nogueira, Ramon Nietto e J. Barkley, ame-
ricano. O prêmio para quem vencesse o discípulo de Mr. Charles era um relógio de
ouro.
Na noite de sábado, de 8 de novembro, Mr. Charles lá estava, diante de uma pla-
teia tão barulhenta quanto a anterior. Seu primeiro adversário, um português, não
durou cinco minutos. Os dois lutadores seguintes também foram lançados ao chão
“sobre as duas espáduas ao mesmo tempo”, frisou o jornal.
“Apareceu um quarto; por quem se daria pouco, atento a ser uma figura delgada:
lutou com esforço e destreza, sem que Charles conseguisse nunca grande vantagem
sobre ele; afinal, numa vira-volta, conseguiu fazer cair o colosso, mas exatamente na
posição oposta à das condições fixadas, isto é, de barriga para baixo, escorado sobre
as mãos e pés”.
Os espectadores invadiram a arena. Formou-se grande tumulto, confusão e gri-

188
O último enforcado na Província do Rio de Janeiro (1860)
taria. Atiraram em Charles, pedras, moedas, pedações de ferro. O Courrier du Brésil
anunciou a exposição “d’un fort jolie morceau de fer pesant ½ kilo qui a été lancé a
la tête de M. Charles”. O combate não terminou.
“Antes da luta final, já as mesmas cenas se haviam dado por ocasião de aparecer
o novo lutador Bordalês com o seu adversário: foram estes obrigados a aparecer em
campo duas vezes, pois da primeira nada se pudera decidir. Da segunda vez, porém o
Bordalez recusou lutar, apesar de todas as vantagens que lhe oferecia o adversário.
Foi por isso declarado vencido”.
A cidade se dividiu. Charles fora ou não vencido? Segundo os juízes, não, pois
não caíra na posição estipulada pelas regras, isto é, de costas. Charles não precisou
pagar o prêmio. Uma terceira luta entre Charles e um Mr. Duffaud foi anunciada,
mas (Alfredo) Charles foi preso e a luta não se realizou. Além de Charles, Duffaud
desafiara um inglês, e Paunt Saleau, um espanhol. Solto, Mr. Charles decidiu partir
para a Bahia, onde em janeiro de 1857, enfrentou e venceu um italiano, um inglês,
um caboclo corpulento e um brasileiro, José Ferreira de Andrade, pardo, remador
de saveiro, que lhe deu muito trabalho. Mas ninguém o venceu. Depois, um discí-
pulo de Charles lutou com o brasileiro Nuno de Melo Viana, sem que ninguém
fosse derrubado, “mas o crioulo Domingos de tal, que a princípio parecia fazer al-
guma coisa, foi vencido por assombrar-se com as palmas da plateia”. Na saída, Char-
les mais uma vez foi hostilizado e agredido.
Mas quem era aquele quarto lutador que derrubara Charles, “que nos dizem ser
um espanhol?” Provavelmente, João Lopes, conforme lemos no anúncio da luta.
Então, o que diz Ramon Nieto seria mais uma bravata? É provável. Logo após o
assassinato de Jansen do Paço, quando interrogado pelo Chefe de polícia da provín-
cia, à pergunta – “Se se apresentara na Corte alguma vez para lutar com Monsieur
Charles, quando este fez anúncio desafiando a quem com ele quisesse medir forças” –
, respondeu que que se oferecera para lutar não com Monsieur Charles mas com
um seu discípulo de nome Bordalês, “moço pouco mais ou menos de sua idade”.
Todavia, os jornais ao noticiarem o assassinato de Jansen irão propagar a versão
que ficaria na memória dos contemporâneos. “Romão Neto tem 22 anos de idade, e
disse que fora aquele espanhol que há pouco tempo lutara no Paraíso com o rei de
forças no dia em que se apresentaram quatro concorrentes. Acha-se preso com toda

189
João Luiz Ribeiro
segurança na cadeia de Itaboraí. Foi conduzido por uma escolta de vinte guardas,
vendo os quais exclamou que ia muito bem com privilégio de Imperador, a quem só
faltava o palácio” – consignaram o Correio Mercantil e o Correio da Tarde. Tam-
bém o Jornal do Comércio ecoou a atribuição: “um daqueles que há pouco tempo
travou luta com o hércules francês.”
Na transcrição do primeiro júri a que respondeu pela morte, publicada no Brasil
Comercial não se faz qualquer menção à luta. Mas ela já se incorporara ao persona-
gem e com efeitos nefastos, pois tornava seu crime mais monstruoso. Como o frágil
Jansen poderia resistir a quem derrubara Charles? Em seu relatório para a Relação
da Corte, que julgaria a apelação, o desembargador Antônio Simões da Silva, em
sua conclusão realçou este ponto: “No seu país devia ser considerado um malvado
por ter tentado contra a vida de seu pai, como se vê dos autos. Para aqui vindo, fiado
certamente na sua muita força, e tanto que foi um dos que se propuseram a lutar
nesta corte com o Monsieur Charles, o famoso lutador que aqui apareceu, promoveu
sempre desordens, já quando empregado no serviço da estrada de ferro, já nesta capi-
tal...”

Nota 5: Nas estradas de ferro


Nos meados dos anos 50 dos oitocentos, o Brasil procurava modernizar-se, ma-
terial e espiritualmente. Cessado o tráfico d’África, buscava-se alternativa para a
mão de obra escrava, fadada a desaparecer. Emprego não faltava para um jovem
disposto e forte como Ramon. Despedido da Casa de Correção foi trabalhar na
construção da estrada de rodagem de Mangaratiba, conforme nos conta da biogra-
fia, jactando-se de suas proezas na região, acompanhado de sua “nova companhei-
ra”, sua nova faca. De retorno ao Rio emprega-se, nos diz, por oito meses na Estra-
da de Ferro de Pedro II, então em construção. Na biografia jacta-se de suas proezas
quando empregado na estrada de Pedro II, mas no interrogatório feito pelo chefe de
polícia da província, após o homicídio, declarou que “esteve com efeito no serviço
dessa estrada da qual se despedira por estar a mesma a concluir-se e que a não ser
alguma altercação de palavras com alguns de seus companheiros, nunca teve desor-
dem com alguém resultando que desse pancadas ou facadas em pessoa alguma e que
se o fizesse havia de haver autoridade para puni-lo”. Diante do primeiro júri, reite-

190
O último enforcado na Província do Rio de Janeiro (1860)
rou a declaração, de que não tivera desordens com pessoa alguma, “à exceção de
questões de palavras”. Da Corte, então, vai para Itaboraí, empregar-se como criado
do ex-deputado e coronel Antônio Jansen do Paço, que então dirigia os trabalhos
de construção da estrada de ferro de Cantagalo.

Nota 6: Em Itaboraí – criado de John Williams ou de Jansen do Paço?


Criado de Jansen do Paço, ou criado do cunhado de Jansen do Paço, o inglês
John Williams? Este será um ponto importante em seu julgamento. Ramon entrara
como copeiro na casa de Jansen do Paço, sendo também encarregado de dois ani-
mais, mas depois foi designado para a oficina de correeiro. Não lhe agradando a
ocupação, pediu para ir para a de ferreiro. Por três dias ficou “desarranjado” e en-
contrando-se com a esposa de Jansen, irmã de Williams, teria lhe pedido que fosse
admitido na oficina de ferreiro. Dias depois, teria sido lhe oferecido trabalhar com
o próprio Jansen, no antigo ofício de criado. No tempo em que estivera com Willi-
ams fora sempre muito bem tratado e nunca tivera desavença com ninguém, “mas
tendo desaparecido uma nota de 5$ ou 500$ réis, começaram a desconfiar de mim”.
O advogado de acusação, o desembargador João Antônio de Miranda, durante o
primeiro júri, chamou duas testemunhas que não tinham jurado no processo, a fim
de “esclarecer um fato”. A primeira, John Jell, guarda-livros de Jansen, asseverou
que por pessoa de conceito e bom crédito sabia que Ramon era copeiro na casa de
Jansen e Williams. Ramon perguntou-lhe como sabia disto. Jell respondeu que por
pessoas com as quais ele Ramon se empenhara para ser readmitido. Ramon pergun-
tou-lhe como sabia ele desses empenhos. Jell reafirmou que tal constava por muitas
pessoas. Ramon nada mais lhe perguntou, dizendo ao juiz que a testemunha era
falsa como as outras, que estava satisfeito.
Em seguida, o advogado interrogou o sr. Luís Ornelas, diretor e administrador
do hospital da estrada de ferro. Este relatou que conhecia Ramon que, como copei-
ro servira a mesa nas várias ocasiões em que jantara na casa de Jansen. Segundo
Ornelas, Ramon fora despedido “pelo seu gênio atrabiliário e arrogante”, mas por
empenho de um sr. Sampaio fora readmitido. Logo depois, sumiu a tal nota de 5 ou
500; então a senhora Mary Ana quis de novo despedi-lo.
Ramon contestou Ornelas, dizendo que este era seu figadal inimigo, por que de-
191
João Luiz Ribeiro
nunciara que ele roubara 2$ de Jansen, em uma compra de 4$ de lenha, e que era
público e notório que Ornelas “não tinha cabida em parte alguma, por seu costume
de intrigante e maldizente, ouvindo de uns e contando a outros”, conforme a própria
imprensa de Porto das Caixas e que por isto repelia o depoimento. O juiz advertiu
Ramon de que não podia insultar a testemunha. Por sua vez, Ornelas explicou a
confusão acerca da lenha e disse que Ramon, vendo a amizade que gozava junto à
família de Jansen, supôs que ele aconselhara o seu despedimento, mas não se envol-
vera e nem aconselhara a saída de Ramon.
Readmitido, “porque se empenhou com várias pessoas de amizade da família do
assassinado”, Ramon, “não melhorando de conduta antes tornando-se ele mais alta-
nado, a tal ponto provocou por expressões descomedidas e altamente injuriosas a
mulher do assassinado Miss Mary Ana do Paço e às suas filhas que se viu ela obriga-
da a fazê-lo sair da casa imediatamente para evitar alguma cena mais desagradável,
enquanto não chegava o assassinado, seu marido que estava no escritório, em certa
distância da casa de sua morada”, lemos no Relatório do desembargador da Rela-
ção.
Diante do júri, Ramon explicou-se. Despedido depois do almoço, pela segunda
vez, por conta do sumiço do dinheiro, juntamente com um companheiro, José Cus-
tódio, foi procurar Miss Anna, que “não me consentiu tirar a minha roupa, e me
disse que assim que chegasse seu irmão, lhe havia de dar parte do que acontecera
para me mandar meter o chicote por dois pretos; e uma das filhas dessa mesma se-
nhora, nessa ocasião, disse que não seria o primeiro homem branco que o senhor
Williams tinha mandado surrar”.
O juiz perguntou-lhe por que, sendo criado de Williams, como dizia, se dera por
despedido unicamente pela senhora Jansen? Ramon respondeu que se dera por
despedido por não querer desatender à senhora e que não maltratou de palavras a
família do finado.
Ramon foi, então, procurar Jansen em seu escritório.

Nota 7: Em Itaboraí – homicida de Jansen do Paço


Na biografia, não nega, mas não confessa.

192
O último enforcado na Província do Rio de Janeiro (1860)
Diante do chefe de polícia da província do Rio de Janeiro, que lhe formou a cul-
pa, declarou que fora ao escritório receber os dias de salário que haviam vencido e
juntamente sua roupa, pois que a senhora não lha tinha querido dar, “ameaçando-o
de lhe mandar meter o vergalho por dois pretos”. Jansen respondeu-lhe que estava
ocupado com sua escrita, e que não queria saber o que faziam as senhoras em casa.
Ramon retirou-se e junto com um companheiro, o português José Custódio, com
quem fizera recentemente as pazes, foi esperá-lo na venda do Bento, entre o escritó-
rio e a casa. Viu que Jansen chegava em casa e para lá se dirigiu, parando junto ao
gradil. Então, “veio de dentro o dito Antônio Jansen do Paço (a quem procuravam)
com um pau de vassoura e sem mais razões o empurrou com o mesmo pau, no que ele
respondente disse-lhe: ‘Perdão, senhor que Vossa Senhoria está mal informado por
sua senhora’”. José Custódio segurou o pau da vassoura. Jansen então gritou: “Ó,
seu cachorro, sai daqui que hei de mata-lo”. As senhoras da casa saíram com dois
pretos, aos quais disseram que lhe agarrassem, deixando-se ele ficar sentado no
primeiro degrau, junto ao gradil. Diante do primeiro júri, reiterou a versão dada ao
chefe de polícia: “Mas o coronel, sem me querer atender, deu-me com o mesmo pau
algumas bordoadas, e então José Custódio, agarrando nas mãos do coronel, que segu-
rava o pau (,) para lho tirar, não vi, nem sei que fim levaram os dois; ouvi, porém,
gritos de pessoas da família”.
“- E a que atribuiu esses gritos”, perguntou o juiz de direito?
“- Ao fato de ter José Custódio segurado no pau de vassoura que tinha o coro-
nel.”
“- Quando o senhor foi acometido, como disse, pelo coronel Jansen, não procurou
repeli-lo por alguma maneira?”
“- Não senhor, eu não levava ferro algum, nem fiz uso dele”.
“- O que é que fez o senhor depois de ter levado as pancadas, de que há pouco fa-
lou, com o pau de vassoura, e de ter José Custódio agarrado nesse mesmo pau?”
“- Conservei-me ali mesmo sentado, no último degrau da escada até fui preso.”
Perguntado, então, sobre que fim levara Jansen, Ramon respondeu que ouvira
dizer “que o mesmo coronel foi assassinado por um seu criado; mas não sei como isso
se passou”.
O chefe de polícia da província formou a culpa com oito testemunhas “que de-
193
João Luiz Ribeiro
puseram, algumas de vista e circunstanciadamente como a primeira que morando
muito perto acudiu aos gritos e achou ainda o réu com o joelho sobre a barriga do
assassinado, com a mão esquerda segurando-lhe o braço, e cravar-lhe com a direita
as duas facadas, que não pode ela testemunha prevenir, mas agarrou-o pela cintura e
o atirou a duas braças de distância sobre um canteiro do jardim e aí atracando-se
novamente com o mesmo réu, lhe pediu este que o deixasse deitar fora aquele ferro, o
que ela anuiu por sua defesa, e com efeito o lançou por cima do murro, depois de o
alimpar no forro do chapéu”.
A segunda testemunha não viu o réu dar as facadas, mas ao chegar à cena do
crime pode vir a vítima ensanguentada e desfalecida nos braços de uma moça, e o
réu seguro por um braço pela primeira, a qual declarou que fora Ramon quem dera
as facadas. Acrescentou que segurou o acusado pelo braço esquerdo e lhe deu voz
de preso. Ramon teria respondido “que não via ali quem o prendesse”. A terceira
testemunha, ao que parece, fora José Custódio. Segundo o relatório do desembar-
gador da Relação, José Custódio ajudara Jansen a empurrar o réu para fora de casa,
“quando este insistia nos insultos” e que Ramon lhe dera um murro na cara, “que o
fez ir ao chão, e lançar sangue pelo nariz, e não assistiu ao ato de dar o réu as faca-
das”, pois ao levantar-se correu para buscar uma espingarda e ao voltar tudo já fora
consumado.
A quarta testemunha recebera a incumbência, por parte do réu, de consertar
uma pistola, para o dia 12, dia anterior ao crime, o que não foi feito. A quinta era de
ouvir dizer e a sexta fora o caixeiro que, no dia do crime, vendera ao réu um canive-
te de mola. A sétima ouvira Ramon dizer a seu chefe, José Martins Correia, a pri-
meira testemunha, “que naquele dia havia de beber o sangue da família do assassi-
nado”. A oitava vira Jansen ensanguentado e o réu preso. Por fim, o escravo Da-
mião, benguela, do sr. Antônio de Oliveira, proprietário da chácara onde Jansen
morava, na qualidade de informante, pois os escravos não eram admitidos como
testemunha. Damião declarou que agarrara o réu, quando discutia com Jansen,
porém, este lhe ordenara que fosse chamar a polícia e assim não presenciou o ocor-
rido.
Ramon novamente se encontrara com um colosso, com um Mr. Charles. Como
da primeira vez, derrubara seu adversário e, como da primeira vez, os juízes não lhe
dariam a vitória.
194
O último enforcado na Província do Rio de Janeiro (1860)

Nota 8: No júri de Itaboraí


Preso, após a morte de Jansen, Ramon recorreu ao encarregado dos negócios da
Espanha, Don Mariano de Potestad, o qual trocou notas com o ministro dos negó-
cios estrangeiros, o Visconde de Mamanguape. As primeiras foram trocadas a 27
de janeiro. Ramon queixara-se de que a principal testemunha que jurara ser ele o
matador era seu inimigo partícula. O encarregado estava no dever de prestar ouvi-
dos a todos os súditos da rainha de Espanha e por isso pedia que ao ministro dos
negócios estrangeiros para que junto ao ministro da justiça conseguisse que o fato
foi bem investigado, que se nomeasse um advogado capaz de defender sua causa e
que velasse por sua regularidade. Não tinha dúvidas de que o generoso coração do
ministro, o visconde de Mamanguape, se interessava pela sorte dos desgraçados,
ainda daqueles, a quem fatalidade arrasta em um momento de aberração mental
levava a cometer os mais horrendos crimes. O ministro no mesmo dia respondeu-
lhe que a intervenção do governo nos julgamentos judiciais além de indevida era
desnecessária, pois as leis do país ofereciam os mais amplos e liberais recursos, para
a defesa dos réus, não permitindo que fossem julgados sem produzirem defesa e
dispondo-lhe que se nomeie advogados ex officio quando não o fazem.
No dia 23 de março de 1858, Ramon Nietto compareceu diante dos jurados da
vila de Itaboraí. Trajava paletó e calça de pano preto já usados, camisa branca um
pouco suja, sem gravata e nem colete, e botins velhos. Ao entrar na sala, a audiência
agitou-se. O juiz pediu silêncio. Ramon apresentou-se com semblante sereno e im-
passível, olhando incerto para todos os lados da sala.
O juiz declarou que há poucos dias estivera na Corte, e em vista das condições
miseráveis do réu, convidara algumas pessoas para defendê-lo, mas todas se recusa-
ram alegando diversos motivos. O mesmo fizera em Itaboraí, a três pessoas, que
também se recusaram. Neste momento, Ramon declarou que se defenderia a si
mesmo.16

16. Não era obrigatória a presença de um advogado de defesa. Todavia, a praxe tinha por bem que o
juiz nomeasse um defensor ao réu, podendo-se “constranger a qualquer advogado do auditório,
cominando-lhe a pena de desobediência” (Aviso de 21 de Novembro de 1835). O juiz não o fez,
deixando que o próprio Ramon se defendesse.
195
João Luiz Ribeiro
A viúva de Jansen contratara o desembargador João de Antônio de Miranda
como advogado de acusação.
O julgamento começara às 10 horas da manhã. Após o interrogatório do réu, o
qual Ramon se recusou a assinar, declarando que não assinaria papel algum contra
si, o escrivão passou a fazer a leitura do processo, começando pela petição de quei-
xa, auto de corpo delito, inquirição de testemunhas e outras peças, concluindo, às
6:20 horas pela leitura do libelo.
A acusação, o promotor e o advogado da autora, pretendia provar que Ramon
assassinara o coronel Jansen com as circunstâncias agravantes de números 07 (“ha-
ver no ofendido a qualidade de ascendente, mestre, ou superior do delinquente, ou
qualquer outra que o constitua a respeito deste em razão de pai”), 10 (“ter o delin-
quente cometido o crime com abuso da confiança nele posta”) e 12 (“ter precedido ao
crime a emboscada, por ter o delinquente esperado o ofendido em um, ou diversos
lugares”), além das de números 04 (“ter sido o delinquente impelido por um motivo
reprovado, ou frívolo”), 06 (“haver no delinquente superioridade em sexo, forças, ou
armas, de maneira que o ofendido não pudesse defender-se com possibilidade de
repelir a ofensa”) e 08 (“dar-se no delinquente a premeditação, isto é, desígnio for-
mado antes da ação de ofender indivíduo certo ou incerto”) do artigo 16 do código
criminal. As três primeiras tornavam o crime capital, e por isso pedia-se o grau
máximo da pena, a morte.
Após a leitura do libelo, por duas horas e meia perorou o advogado de acusação,
o desembargador João Antônio de Miranda. Por vezes falou com grande comoção.
Ramon, durante todo o tempo, permaneceu impassível. Em seguida, foram interro-
gadas as testemunhas que juraram no processo, dez, duas a mais das que figuraram
na formação de culpa, além do escravo Damião. Além destas, como vimos, o de-
sembargador João Antônio requereu que outras duas fossem ouvidas, a fim de esta-
belecer a natureza da relação de Ramon com Jansen, ou seja, se Ramon fora copeiro
e se se esforçara por ser readmitido. Tratava-se de garantir que as agravantes capi-
tais de números 07 e 12 fossem reconhecidas pelo júri.
Como defensor de si mesmo, coube a Ramon a palavra:
“Dada a palavra ao réu para se defender, e tendo ele pedido e obtido licença para
falar sentado, por se achar incomodado, começa exigindo que seja presente o seu

196
O último enforcado na Província do Rio de Janeiro (1860)
chapéu, que tinha na cabeça na ocasião em que fora preso.
E sendo-lhe entregue esse chapéu, com o qual o réu declara querer contrariar o di-
to de uma testemunha que havia deposto que o réu limpara o canivete ensanguenta-
do no forro do mesmo chapéu, prossegue ele em sua defesa, orando por espaço de
duas horas com espantosa verbosidade, audácia e impudência, acoimando de falsas,
de judas, todas as testemunhas, que só tiveram em vista perseguirem-no, como Jesus
Cristo fora perseguido inocentemente.”
Após a fala de Ramon, o juiz de direito, dado o adiantado da hora, fez um breve
resumo dos debates e entregando aos juízes de fato, aos jurados, as questões de fato
que deveriam responder, convidou-os a se retirarem à sala secreta para deliberar.
Às duas horas e meia da madrugada do dia 24, o júri voltou à sala das sessões do
tribunal. O jurado presidente leu as respostas do conselho.
Por unanimidade de votos, declararam que Ramon assassinara Jansen. Por dez
votos, que havia no assassinado a qualidade de superior do delinquente, por ser este
criado do falecido. Por unanimidade, que houve abuso de confiança. Por nove vo-
tos, que houvera emboscada. Por onze votos, que cometera o crime por motivo
frívolo e reprovado. Por oito votos a superioridade de forças e armas. Por onze vo-
tos que houvera premeditação. Por unanimidade, que não havia circunstâncias
atenuantes a favor do réu.
Faltando 15 minutos para as três da madrugada, o juiz leu a sentença condenado
Ramon à morte, como incurso no grau máximo das penas do artigo 192 do código
criminal e encerrou o julgamento. Às sete horas da manhã do mesmo dia, achan-
do-se Ramon na “parte de dentro da grade da prisão”, o escrivão intimou-lhe a sen-
tença. Ramon declarou, então, que protestava por novo júri, “por julgar falsa e nula
semelhante sentença”.
O encarregado espanhol enviou no dia 08 de abril outra nota ao ministro dos es-
trangeiros. Lembrava que lhe fora assegurado que a causa de Ramon seguiria pelos
tribunais competentes todos os trâmites legais e que a intervenção do governo era
indevida e desnecessária. No entanto, se recomendara o desgraçado ao ministro,
fora porque previra “que as influências dos parentes do defunto e outras de pessoas
interessadas de que aparecessem este culpado e não outro que se achava implicado
em esta causa haviam de trabalhar contra Neto. Assim há sucedido, a ponto de que

197
João Luiz Ribeiro
não encontrou advogado que o defendesse”, conforme lhe informara Ramon em
carta de 02 de abril. Concordava que o governo não deveria imiscuir-se em assun-
tos judiciais, dirigir os debates e influir nas sentenças, mas estava ao alcance do
governo velar para que lhe fossem garantidos os meios de defesa. Tinha esperanças
de este novo despacho fosse levado em consideração, e que na revisão pedida por
Ramon, não se verá condenado à morte sem ter quem o defenda, “como é de justiça
em todos os países civilizados aonde se dá exato e fiel cumprimentos às leis sem dis-
tinção de pessoas”. Desta vez o Visconde de Mamanguape levou dez dias para res-
ponder, dizendo que pedira informações ao ministro da justiça, e, posteriormente,
em outra nota, que o ministro da justiça ordenara que o presidente de província
exigisse do juiz de direito informação circunstanciada sobre o processo e condena-
ção de Ramon.
O segundo julgamento realizou-se a 24 de agosto. Carlos Bernardino de Moura,
proprietário do Echo da Nação, publicou a defesa que fez diante dos jurados. Não
tinha formação jurídica, mas atuara como rábula. Fora convidado para assumir a
defesa de Ramon também no primeiro julgamento, mas já tinha um compromisso
do mesmo gênero em Vassouras. Carlos Bernardino procurou antes de tudo rebater
o depoimento de Martins, a primeira testemunha, a única que presenciara as faca-
das. Refutou que tenham se dado as agravantes, exceto a inquestionável superiori-
dade física, em particular as que tornavam o crime capital. A acusação considerava
Ramon criado da casa, portanto tanto de Williams como de Jansen. No entanto,
para Moura, “senhores, jurados”, Ramon fora contratado por Williams para cuidar
de dois animais, e acompanhá-lo em suas viagens. Supondo, porém, continuou
Moura, que fosse criado de Jansen, ao cometer o crime já não era criado, pois fora
demitido pela senhora, pessoa competente para tanto. Tanto em um caso como no
outro, não cabia o reconhecimento do abuso de confiança.
Tampouco emboscara o coronel, por esperá-lo na venda, e sequer premeditara o
crime. Alegou a favor do réu a atenuante de ter sido provocado, fato evidenciado
pela agressão com o cabo de vassoura, e que era menor de 21 anos de idade. Ao
final entrou em debate com o advogado de acusação e o juiz, que lhe negavam o
direito de atacar a pena de morte, por ser ela uma lei do país.
Tudo em vão. Ramon foi novamente condenado à morte. Por unanimidade, o
júri reconheceu que Ramon matou o coronel Jansen pelos meios constantes no
198
O último enforcado na Província do Rio de Janeiro (1860)
corpo delito. Por oito votos reconheceu que era criado do referido coronel e como
tal estava para com este na razão de inferior. Os mesmos oito votos reconheceram,
então, o abuso de confiança. Todavia não reconheceu, por 10 votos, que esperara o
dito coronel a 50 braças do lugar em que o crime foi perpetrado; e por nove votos,
que não decorreram mais de vinte quatro horas entre desígnio que formou o réu de
matar o ofendido, não reconheceram, portanto, a emboscada e a premeditação.
Unanimemente, reconheceram a superioridade em forças e armas. Dez votos con-
sideraram que o crime fora perpetrado por motivo frívolo e reprovado. Por unani-
midade não reconheceram circunstâncias atenuantes a favor do réu. Desta vez,
Ramon fora condenado à morte unicamente com as agravantes de ser criado e abu-
sar da confiança do patrão. Foi interposta apelação à Relação.
Vimos já alguns trechos do relatório do desembargador relator do processo de
apelação, em um tom nada favorável ao réu. O processo correu célere, consideran-
do outros processos de condenados à morte que pudemos consultar. Vemos tam-
bém que o julgamento no tribunal da relação deu-se não por uma turma, composta
por três ou quatro juízes, e sim pelo plenário do tribunal. “Apelação julgada impro-
cedente pelos 12 juízes – por unanimidade de votos.” O tribunal queria que sua deci-
são fosse amplamente corroborada. Só restava a Ramon a graça imperial

Nota 9: Aos pés de sua majestade imperial


O perdão do Monarca? também não quero, disse eu no momento em que fui in-
timado de haver-me sido confirmada a pena de morte... (...) ...persuade-se que implo-
rei um perdão! Oh! Não pedi tal! Pedi que me confirmasse a pena de morte porque
devo morrer!
Assim exclama Ramon na biografia. E nisto não há qualquer bravata. Desde que
se sentou no gradil, após esfaquear Jansen, Ramon mais e mais se conformava com
o cruel destino que o perseguia. Ninguém nunca fizera isto, aos pés do monarca
pedir que se o matassem. Esta petição de Ramon, datada de 05 de janeiro de 1860,
foi publicada como anexo à biografia, que termina neste momento de sua vida.
Muito mais do que uma petição, é um longo arrazoado em que são rebatidos to-
dos os pontos da acusação, do corpo delito, da formação de culpa, entremeada pela
conhecida verbosidade de Ramon, desgraçada e perseguida vítima da proscrição e
199
João Luiz Ribeiro
da indigência. Esta petição leva-nos a pensar que a hipótese de que a biografia tenha
sido, de fato, ditada a um companheiro de cela, e não escrita por Carlos Bernardino
de Moura, não é tão ingênua quanto poderíamos crer. A petição de graça se parece
muito com a defesa que o próprio Ramon fez perante o júri durante o primeiro
julgamento. Seja como for, seja de quem for a autoria da biografia, não consta que
Moura, ou qualquer outro curador, tenha participado da elaboração desta petição.
Memória ou não do primeiro júri, esta petição de graça é da lavra do próprio Ra-
mon, talvez ditada a um escrivão. Por meio dela, ouvimos o que Ramon tinha a
dizer. Segue o seu resumo.
Na Casa de Detenção de Niterói, fora informado de que o tribunal da Relação
confirmara a injusta sentença de morte que lhe fora imposta pelo júri de Itaboraí.
Não lhe reconheceram a atenuante de ser menor de idade. A sentença fora dada
contra a lei que manda dar um defensor aos pobres, ainda que não fosse para imitar
aquelas épocas remotas em que de vinte réus que se apresentavam ao tribunal de
justiça – dezenove inocentes e um culpado -, vinte seriam condenados à fogueira,
mas ainda se usava de uma Misericórdia que lhe fora negada. Ainda que o crime
fosse revestido de todas as circunstâncias agravantes dos artigos 16 e 17 do código
criminal, que justificariam a pena máxima do artigo 192, “não são como para comi-
go são essas circunstâncias”. Se seu comportamento fora tão mau, como, após des-
pedir-se, de motu próprio, fora chamado de volta? De acordo com a doutrina do
inciso 5, se não estava habilitado a faltar com o respeito, também não se achavam
habilitados a bater-me bofetadas e fazer ameaças de que seria vergastado. (Aqui
Ramon insinua que a senhora lhe dera bofetadas, algo que não vemos no processo).
Nega a superioridade de forças e armas, pois, de acordo com a doutrina do inciso 6,
como saberia ser superior a um homem com uma arma mortífera, pois embora
estivesse propriamente munido de uma navalha de ponta cortada, um pau com um
estoque na ponta e superior a uma navalha de ponta cortada. (Notemos que o cani-
vete de mola se tornou uma navalha, a vassoura, um pau com estoque). Se tivesse
cometido o crime, não desejaria que o apoiassem, mas reconhecessem que fora em
duelo e conflito, e assim, sob a doutrina do artigo 14 (“crimes justificáveis”), não
deveria ser cominada a pena de morte. Sob a doutrina do inciso 7, há mais de nove
horas não era criado de seu amo Wilmes (por vezes encontramos esta grafia, no
lugar de Williams), pois fora despedido pela irmã deste às 9 da manhã e o crime se
200
O último enforcado na Província do Rio de Janeiro (1860)
dera às 6 da tarde. Sob a doutrina do inciso 8, uma pistola apresentou-se no proces-
so e no dia 12 procurou-a, “ainda que propriamente fosse certo, quero que, do dia 12
ao dia 13, haja antecipação de 24 horas, meteu-se a noite no meio, designava-se pro-
jeto e crime, dizem ser feito com uma navalha cortada a qual nunca se uniu ao pro-
cesso”. (De fato, ao que parece não encontraram o canivete de mola, lançado sobre
o muro). Um homem com pleno conhecimento do mal, pistola haveria de encon-
trar em Porto das Caixas, “e não queda sentado em uma escada como eu quedei”.
Sob a doutrina do inciso 10, como haveria abuso de confiança, posto que o escravo
Damião dissera que o segurara, se o coronel Jansen dele temesse, quando seguro em
mãos do preto, recolher-se-ia para casa e não mandaria que fosse chamar a polícia:
Sob a doutrina do inciso 12, como haveria emboscada se Jansen, no escritório, dis-
sera a todos os dois (ele, Ramon, e José Custódio) que “fossemos andando e espe-
rando”? Neste ponto de sua petição, Ramon Nieto introduz um agravante que não
fora alegada, a do inciso 17: “ter procedido a ajuste entre dois, ou mais indivíduos,
para o fim de cometer-se o crime”. É a ocasião para insinuar a culpa de José Custó-
dio. “Se a doutrina do inciso 17, disse ter percebido ajuste entre dois ou mais indiví-
duos, como José Custódio de Almeida, criado de Jansen, acompanhou-me no dia 13,
assistindo ao duelo, sendo preso nesse mesmo instante com a roupa cheia de sangue, e
minha roupa nem minhas mãos apareceu sangue”. A partir deste ponto, Ramon
deixa de lado as agravantes e segue por outro caminho.
Em um fluxo de consciência analisa o corpo delito. “Como essa navalha de ponta
cortada, não acompanha como corpo delito versa com duas polegadas, no primeiro
júri se dizia quando se me negou os sacramentos da lei, sete facadas, auxílio, circuns-
tâncias estas que desorganiza em um tudo, esse corpo de delito ao processo que se
acha desorganizado das doutrinas da constituição”.
Ramon introduz uma nova testemunha, que não vemos arrolada no processo,
cujo juramento era bastante para “falsificar o juramento de José Martins Correia”
(a testemunha de vista). Uma testemunha inusitada, que apenas muito excepcio-
nalmente encontramos nos processos criminais oitocentistas: uma mulher. Maria
Rosa da Conceição, “que a referida disse que estando sobre o muro não me vira pra-
ticar o crime; ainda houve quem desse a escusa frívola de que as árvores lhe estorvava
a vista para ver seguir a viagem uma navalha de ponta cortada, envolta do forro do
meu chapéu, que se fosse certo as próprias árvores estorvariam a navalha seguir via-
201
João Luiz Ribeiro
gem e cairia em os pés da testemunha que falso jura, José Custódio de Almeida”. José
Custódio declarara no próprio processo que “me é devedor do dinheiro da navalha
que eu comprara no dia 13”.
A seguir Ramon passa a invocar as circunstâncias atenuantes do artigo 18, inci-
sos 03 – “ter o delinquente cometido o crime em defesa da própria pessoa”; 04 –
“ter o delinquente cometido o crime em desafronta de alguma grave injúria, ou
desonra que lhe fosse feita” –, “por ter sido injuriado e desonrado com a calúnia de
ladrão, palavra per si suja”; 06, “por ter procedido agravo (agressão) da parte de
Jansen”; 07, “por ter sido aterrado de ameaças”; do 09, “não quero encarar a minha
questão pelo lado da embriaguez, mas as palavras destas testemunhas que juram
falso, são úteis para me sentenciarem à injusta pena de morte; ou trás por eles faladas
me favoreceram em tudo, por dizerem que na manhã do dia 13 que eu estava louco,
então devia-se observar a doutrina do artigo 12: os loucos que tiver cometido
(sic)crime serão recolhidos às casas para eles destinados ou entregues às suas famí-
lias; eu como órfão desamparado fui entregue aos ferros de S. Majestade, onde seis
dias residi com os pesados machos nas pernas, duas pesadas algemas de ferro, uma
pesada corrente de ferro ao pescoço.
Ao fim de 24 horas instauraram um processo ao criado de Jansen – mas a nota
de culpa era oferecida não para o criado de Wilmes e, sim, para o de Jansen, e fora
apresentada ao criado de Wilmes ao fim de 7 dias, se não ao fim de 24 horas –, ar-
gumenta Ramon, “e para maior desgraça, depois de ser interrogado louco e pelas
minhas palavras precipitadas, puderam conseguir instaurar o processo só ao criado
de Jansen, para sentenciar injustamente o criado de Wilmes, à morte”.
Encerrando a petição, Ramon invoca o artigo 36, segundo o qual nenhuma pena
será dada, com base em presunções.
“Como pelas influências me sentenciam duas vezes injustamente à morte, como se
admite a calúnia de que vim da minha terra para o Brasil para tentar contra a vida
de meu pai, se eu venho de Lisboa e não das terras da Espanha, e ainda que propria-
mente viesse de Espanha, as justiças desse reino necessitariam de uma luneta para
olhar para esse ato infame, que quando os animais terrestres na qualidade de irraci-
onais, quero que tenham conhecimento mas não senso, respeitam seus pais, quanto
mais uma criatura que saiba fazer o sinal da cruz, muito mais respeitara. Reconhe-

202
O último enforcado na Província do Rio de Janeiro (1860)
cendo minha consciência o quanto a sorte há sido injusta para comigo, este infeliz vai
aos pés de S. Majestade, pedindo em nome de vossa augusta consorte e princesas que
Deus guarde longos anos de vida em seu trono, que a injusta pena de morte contra
mim dada por ser pobre, seja confirmada e não comutada, pois se ser pobre é crime,
quererei imitar aquele que findou no Calvário pregado em uma cruz: eu como peca-
dor em duas cordas mortíferas; só me resta deste cárcere pedir-lhe em nome da hu-
manidade me perdoará, Senhor, pelas minhas expressões serem curtas para com Vos-
sa Majestade Imperial!
Estando livres de ferros, livre de cousa alguma que apoquente minha consciência,
exercitando as injustiças que comigo hão feito, aproveito a ocasião de por minha mão
firmá-lo para que meu pedido seja atendido”.
Mr. Potestad, o encarregado dos negócios de Espanha interveio “a fim de obter
graça da pena de morte em que foi condenado o súdito espanhol Roman Nieto, dan-
do por não recebidas as cartas ou escritos que este desgraçado pode dirigir, recusando
dita graça, pois o estado de exasperação em que, segundo suas cartas a esta Legação
parece encontrar-se, não o deixa apto o suficiente para saber o que disse e faz, e cer-
tamente tais papéis são filhos de uma aberração mental de um sano juízo”.
Outra petição de graça foi feita. Ainda que continue a se referir à sentença injus-
ta e às razões de tanta injustiça (a falta de advogado, as perseguições, ao processo
que não obedeceu as fórmulas de direito, ao abandono de um órfão de Pátria, de
Pais, de Amigos e de proteção), ainda que relute em confessar, sem afirmar ser ca-
lúnia o que lhe imputam, pode jurar que se cometeu o crime foi na ausência de
senso, se na realidade cometeu tal crime, fora movido não pela malvadeza ou pelo
vil interesse, mas pelo destino fatal e pelo estado desesperado em que se encontrava,
sofrendo duas injúrias degradantes – o epíteto de ladrão e ofensas feitas com um
chicote com que se pretendeu puni-lo. Na primavera da vida fora arrojado nos pro-
fundos côncavos do medonho abismo.
“Senhor, as expressões de um desgraçado condenado à morte devem por sem dú-
vida ser confessa e certas para poderem abranger a plenitude de tão acre circunstân-
cia, por isso fal... (?) as Vossas assaz reconhecidas virtudes e dignai-vos comutar-lhe
aquela pena de morte em uma prisão temporária para a Província do Mato Grosso
ou para outro qualquer presídio do vasto Império de V. M. Imperial,”

203
João Luiz Ribeiro
Ramon era ousado. Não dava o braço a torcer. O habitual era pedir a comutação
da pena, simplesmente. A de morte era habitualmente comutada em galés perpé-
tuas. Ramon pretendia uma prisão temporária, ou mesmo o desterro para Mato
Grosso.
O conselheiro consultor da coroa, José Martiniano de Alencar, foi de parecer
que nenhuma circunstância abonava o condenado e nenhuma o recomenda à im-
perial clemência; entretanto, no próprio interesse da punição, conviria comutar-lhe
a pena em galés perpétuas, pois “para um caráter como o que se revela do processo,
essa pena deve ser mais eficaz do que a capital”. Já o procurador da coroa, Gomes de
Campos, limitou-se inteiramente ao parecer do senhor conselheiro presidente do
tribunal da relação, Eusébio de Queiroz Matoso, para quem parecia que a pena es-
tava no caso de ser executada. A seção de justiça do Conselho de Estado, composta
pelo Visconde do Uruguai, pelo Visconde de Maranguape e por Eusébio “também
não encontrou no processo circunstância alguma que abonasse o condenado e o re-
comendasse à Clemência Imperial”. O Imperador deu o seu como parece e mandou
executar a sentença.

Nota 10: No patíbulo


No dia 30 de setembro de 1860, O Echo da Nação, jornal dirigido por Carlos Be-
nardino de Moura que, como vimos, fora o defensor de Ramon em seu segundo
julgamento, noticiou sua execução.
“Teve lugar, no dia 28 do corrente, das 10 para as 11 da manhã, no Porto das
Caixas, a execução do sentenciado Ramon Nietto à pena capital, pelo assassinato do
infeliz coronel Jansen do Paço.
Na véspera desse dia, 27, em vão os ministros do Senhor procuraram, à força de
consolações, arrancar ao condenado uma plena confissão: talvez no desespero de sua
posição, filha ainda do estado bárbaro das nossas sociedades que se dizem altamente
católicas e religiosas, recusasse aquele que ia ser punido de um crime atroz produzido
por tentações diabólicas, com outro crime, o assassinato jurídico e meditado, crer nas
palavras ou dogmas de fé de uma sociedade dita civilizada, porque o fato a isso o
forçasse.
Todavia no dia seguinte, o da execução, a Providência, talvez inspirando o des-
204
O último enforcado na Província do Rio de Janeiro (1860)
graçado pecador, fez que produzissem desejado efeito os conselhos do digno vigário
daquele lugar, o padre Carneiro, que alcançou a confissão do condenado, mostrando-
se este neste ato perfeitamente contrito.
Depois da confissão, foi o condenado ouvir missa, seguindo daí para o patíbulo.
Durante o trajeto fúnebre e terrível o condenado mostrou uma coragem rara, e
sempre que o arauto da justiça lia a sentença fatal, dirigia Ramon Nietto a palavra
clara e inteligente ao povo que imensamente concorria para assistir a tão feia e pun-
gente cena, mostrando uma presença de espírito e sangue frio pouco comuns em tais
ocasiões.
Junto ao patíbulo achava-se, além de uma força policial da província de 20 praças
comandada pelo alferes Manoel Rodriguez de Lima Gama, igualmente postada uma
outra força da Guarda Nacional de Itaboraí, de mais de 30 guardas, sob o comando
de um tenente da mesma guarda nacional, sendo para lamentar que só desses guar-
das três se apresentassem armados.
Quanto mais se aproximava o padecente do lugar do suplício, cousa extraordiná-
ria, mais sua coragem e presença de espírito aumentavam.
Chegando ao lugar fatal, a vítima dirigindo-se ao sacerdote que o acompanhava
tristemente, pediu que lhe ministrasse uma pessoa que lhe escrevesse algumas pala-
vras que naquele momento ele desejava dita-las; no que foi prontamente atendido
pelo escrivão da execução. Não publicamos o que então disse o infeliz por que ainda
não nos foram ministradas essas palavras.
Pediu mais que lhe dessem a graça de darem sepultura a seu cadáver, porém em
outro lugar que não no Porto das Caixas ou Itaboraí.
Subindo ao patíbulo, e já sob o poste terrível, o infeliz dirigiu-se a um seu patrício
e suplicou-lhe por esmola aceitasse o seu cadáver, no que atendido levantou vivas à S.
M. o imperador do Brasil, à família imperial, a rainha da Espanha e à sua pátria, e
dirigiu palavras de agradecimento aos sacerdotes que o acompanharam e ao alferes
Gama comandante da força policial.
Finalmente, após outras minuciosidades que seria fastidioso e pungente relatar,
teve lugar a execução.
O condenado precipitou-se, por si mesmo, depois de estar com o baraço ao pesco-

205
João Luiz Ribeiro
ço, do alto do poste; mas rebentando aquele, subiu de novo ao poste, e assim foi con-
sumada a cena bárbara e irreligiosa de mais uma execução!
Não adicionaremos reflexão a esta notícia; os homens pensadores e os leitores que
têm uma alma bem formada e cristã julguem da moralidade desta cena, e dos seus
efeitos.”
Uma outra fonte, resumindo a notícia do Echo da Nação, acrescenta que no pa-
tíbulo Ramon, “pedindo licença para falar, começou por alegar sua inocência”,
agradecendo aos magistrados e às autoridades a maneira bondosa com que fora
tratado, “por isso que, conhecia que apenas cumpriam um dever sagrado que a lei do
país os incumbia”. Logo após os vivas ao monarca brasileiro e à rainha da Espanha,
“atirou-se da forca, com tanta força, que a corda arrebentando foi cair em terra co-
mo morto. O carrasco, porém, arrastando-o para um dos degraus do patíbulo con-
sumou o ato de suas funções”.

3. Conclusão
Aqui termina a história de Ramon Nieto. Seu nome foi esquecido, bem como o
de M. Charles, e, não fosse por sua família, que deixou descendentes, também o do
coronel Jansen do Paço o seria. Mas assim como o Cristo ressuscitou depois de
morrer no calvário, diria o próprio Ramon, que ele ressuscite nestas páginas, pois
para isto serve a história, para ressuscitar os mortos.

206
AUSÊNCIA DE CRIMINALIZAÇÃO DA
MULHER QUE ABORTA NO CÓDIGO
CRIMINAL DE 1830: A PROTEÇÃO DAS
ESFERAS PRIVADAS DE PUNIÇÃO DIANTE
DO REGIME ESCRAVOCRATA
ABSENCE OF CRIMINALIZATION OF
WOMEN ABORTIONING IN THE CRIMINAL
CODE OF 1830: THE PROTECTION OF
PRIVATE PUNISHMENT SPHERES UNDER
THE SLAVERY

9
Barbara Madruga da Cunha *
Mario Davi Barbosa **

Resumo: O presente estudo pretende discutir o Abstract: This research aims to discuss the problem
problema da criminalização da mulher que aborta of criminalization of women who have abortions in
no Brasil. Para tanto, parte da análise do Código Brazil. To do so, part of the analysis of the Criminal
Criminal do Império de 1830, onde se constata a Code of the Empire of 1830, which shows the
ausência de criminalização da conduta do autoa- absence of criminalization of the conduct of self-
borto. Questiona-se o porquê da escolha dos legis- abortion. It is questioned why the legislators at that
ladores daquela época de não inserir no texto do time chose not to include this conduct in the text of
código esta conduta, partindo de uma reflexão the code, based on a reflection on 19th century
sobre a sociedade brasileira do século XIX e a Brazilian society and the coexistence of plural

* Doutoranda e Mestra em Teoria e História do Direito na UFSC. Bacharela em Direito pela


UFPR.
** Mestrando em Teoria e História do Direito na UFSC. Especialista em Direito e Processo Penal e
Bacharel em Direito pelo CESUSC.
207
Barbara Madruga da Cunha · Mario Davi Barbosa
coexistência de esferas plurais de punição, com spheres of punishment, with an emphasis on slav-
ênfase no escravismo e no patriarcalismo como ery and patriarchy as elements important for reflec-
elementos importantes para reflexão. O trabalho se tion. The work uses the field of the Legal History
utiliza do campo da História do Direito e das fer- and the tools of the history of legal dimensions and
ramentas da história das dimensões jurídicas e da the category “the penal”. From these categories, it
categoria “o penal”. A partir dessas categorias, was concluded that the repression of the self-
demonstrou-se que a repressão ao autoaborto abortion was limited to private scope of punish-
estava circunscrita às esferas privadas de punição, ment, since it was a conduct that offends the pater
visto que se tratava de uma conduta que feria o familias.
pater poder.
Palavras-chave: Código Criminal de 1830; Autoa- Keywords: Criminal Code of 1830; Self-abortion;
borto; Patriarcalismo; Escravidão. Patriarchy; Slavery.

1. Introdução
O autoaborto, ou seja, a provocação da interrupção da gravidez realizada pela
própria gestante, só passou a ser criminalizado no ordenamento jurídico brasileiro
a partir do Código Penal de 1890. Pela redação do Código Criminal de 1830, a con-
duta feminina só era relevante para a graduação da pena do delito, de forma que a
ausência de consentimento da mulher que sofresse o aborto provocado implicava
na duplicação da sanção1.
Assim, o Código Criminal de 1830 nada falava da penalização da mulher que as-
sentisse com a provocação do aborto ou o realizasse por conta própria. Tampouco
existem trabalhos científicos que busquem analisar o delito de aborto no referido
diploma penal. À ausência de criminalização dessa conduta pode-se levantar duas
hipóteses gerais: a) que o autoaborto não era compreendido enquanto delito no
período, de forma que os códigos estrangeiros que serviram de fonte para a elabo-
ração do nosso tampouco criminalizavam a conduta; b) que existiram motivações
internas que levaram os legisladores à escolha deliberada de não tipificar tal condu-
ta.

1. Na redação do artigo: “Art. 199. Occasionar aborto por qualquer meio empregado interior, ou
exteriormente com consentimento da mulher pejada. Penas - de prisão com trabalho por um a
cinco annos. Se este crime fôr commettido sem consentimento da mulher pejada. Penas –
dobradas” (BRASIL, 1830).
208
Ausência de criminalização da mulher que aborta no Código Criminal de 1830
A primeira hipótese pode ser verificada através da análise dos projetos e códigos
criminais que serviram como fonte para a elaboração do nosso, de modo a se apu-
rar se o delito de autoaborto era previsto nos demais textos normativos. Já a segun-
da, demanda uma análise mais complexa, na medida em que as possibilidades são
múltiplas. Por essa razão, nos propomos à construção de uma narrativa histórico-
jurídica pluriversa, buscando colocar em diálogo a história dos aparatos, quer dizer,
do conjunto de regras e decisões operacionais, e a história dos discursos, ou seja,
das teorias, visões e representações de justiça que se desenvolveram em relação ao
tema do autoaborto durante o Império brasileiro (COSTA, V. 2012).
Nesse sentido, analisaremos enquanto fontes tanto os textos normativos (proje-
tos de código e diplomas penais) quanto os de conhecimento (comentários ao Có-
digo Penal e às práticas abortivas) buscando relacioná-los de forma complexa a
partir da proposta metodológica de Pietro Costa (2012), na tentativa de compor um
multiverso coerente que ofereça diferentes campos explicativos ao problema de
pesquisa que propomos. Para isso, também nos apropriaremos da metodologia de
Massimo Meccarelli, que propõe a análise do fenômeno penal a partir das dimen-
sões jurídicas da justiça, buscando explorar as possibilidades da relação entre as
necessidades sociais e a proteção legal, bem como contextualizar o objeto de estudo
nos entrelaçamentos dos grandes problemas e da instituição de direito (MECCA-
RELLI, 2014), como a formação de uma ordem democrática em uma sociedade
escravocrata. Isso implicará na compreensão do fenômeno criminal para além da
aparente monodimensionalidade do direito (MECCARELLI, 2009), incluindo as
práticas, saberes e teorias envolvidos na materialização do penal.
Também no campo metodológico, nos valemos do conceito de “o penal”, ado-
tado por Mario Sbriccoli (2011; 2017). Para este autor, a expressão “o penal” busca
exprimir não somente o que entendemos como o direito e o processo penal em si,
seus sistemas normativos e de garantias legais, querendo também apontar para
outras manifestações informais do controle punitivo em dada sociedade (família,
comunidade, etc.). Por este motivo o utiliza como substantivo, a fim de alcançar
formas diversas de manifestação da punição na estratificação do social.
Faremos uma breve revisão bibliográfica do processo de elaboração do Código
Criminal de 1830, analisando o Projeto de Bernardo Pereira Vasconcelos e em se-
guida as legislações estrangerias que foram consideradas as principais fontes para a
209
Barbara Madruga da Cunha · Mario Davi Barbosa
organização da nossa. Já no terceiro item deste trabalho, verificaremos os comentá-
rios de juristas à redação do delito de aborto cunhada pelo Código Criminal de
1830 em busca de possíveis respostas. Por fim, considerando que a principal ruptu-
ra entre o Império e a Primeira República foi a abolição da escravatura, no quarto
item buscaremos contextualizar o nosso problema de pesquisa a partir do regime
escravocrata brasileiro, no sentido de verificar se, e como, as práticas abortivas rea-
lizadas pelas mulheres negras escravizadas eram encaradas pelos senhores de escra-
vos. Para isso, analisaremos alguns manuais de agricultura que circulavam no país.

2. A elaboração do Código Criminal de 1830: as alterações ao


Projeto de Pereira Vasconcelos e a supressão do artigo relativo
ao autoaborto
O processo de elaboração do Código Criminal de 1830 teve início efetivamente
em 1826, com a apresentação de duas propostas de codificação2 em uma das pri-
meiras sessões regulares da Câmera dos Deputados (COSTA, V., 2013). A comissão
de legislação e justiça civil e criminal da Câmara propôs que se convidasse homens
sábios e jurisconsultos para conceberem projetos de códigos nacionais, recompen-
sando-se quem tivesse êxito. Nessa sessão também se analisaram as bases para a
codificação penal que tinham sido apresentadas pelo deputado José Clemente Pe-
reira, decidindo-se discuti-las posteriormente, junto dos projetos que seriam apre-
sentados.
Em 1827, Bernardo Pereira Vasconcelos encaminhou seu projeto de código cri-
minal à Câmara, que organizou uma comissão especial para analisá-lo. Dias depois,
foi a vez de Clemente Pereira apresentar seu projeto, o qual era composto por um
livro único onde se regulavam os crimes e as penas. A essa primeira comissão par-
lamentar, sucederam-se outras quatro, as quais se dedicaram às discussões relativas
ao referido diploma entre os anos de 1827 e 1830 (COSTA, V., 2013).
Em 1829, somou-se aos debates parlamentares acerca da codificação penal o

2. Segundo Costa (2013), a primeira delas foi feita pelo deputado José Antonio da Silva Maia, o
qual propunha a indicação de medidas pela comissão de legislação da Câmara. Já a segunda, rea-
lizada por Domingos Malaquias de Aguiar Pires Ferreira, era a favor da realização de um con-
curso que premiasse quem apresentasse o melhor rojeto de código em dois anos.
210
Ausência de criminalização da mulher que aborta no Código Criminal de 1830
projeto elaborado por Edward Livingston para o estado da Luisiana, nos Estados
Unidos. A partir das propostas de Pereira Vasconcelos e de Clemente Pereira, dos
projetos estrangeiros de Livingston e Mello Freire e também inspirados nos códigos
penais da França e da Espanha (COSTA, V., 2013), as comissões parlamentares
elaboraram um projeto próprio, o qual teve sua versão final apresentada em 1830
pela chamada “Comissão Especial das Emendas”, a qual ficou encarregada de reu-
nir e selecionar as emendas apresentadas pelos deputados aos projetos anteriores
(COSTA, V., 2013).
Esse processo de análise parlamentar concentrou-se de início nas discussões
acerca da autoria e cumplicidade, mas passou rapidamente a focar-se na organiza-
ção a ser adotada nas discussões finais do código, tendo em vista o longo período de
tempo que as discussões gastavam e a pressa que os deputados tinham para aprova-
ção de um código criminal. As principais propostas em relação a essas questões
diziam respeito à conservação ou não das penas de morte e de galés. Por fim deci-
diu-se pela manutenção de ambas. No dia 19 de outubro de 1830 a última comissão
especial apresentou a versão final do código à Câmara, a qual aprovou o texto em
22 de outubro, encaminhando-o para a aprovação do Senado, sendo por fim sanci-
onado pelo Imperador (COSTA, V., 2013).
Vivian Costa (2013) destacou que as primeiras discussões parlamentares acerca
do código se concentraram nos procedimentos necessários ao processo codificador,
tendo em vista a inexperiência dos deputados e o ineditismo de tal tarefa. Segundo
a autora, muitas discussões também não trataram especificamente do código penal,
mas da justiça criminal como um todo. Assim, ainda que o código tenha sido pauta
das discussões parlamentares durante cerca de três anos, o projeto final apresentado
não parece ter sido debatido amplamente ponto a ponto. Em relação ao nosso obje-
to de pesquisa, não há nenhum registro nos “Annaes do Parlamento Brasileiro”, no
“Diario da Camara dos Deputados” e tampouco no “Diario da Camara dos Senado-
res do Imperio do Brasil” de que a criminalização do aborto tenha sido discutida3.

3. Pesquisamos pelo radical “abort” nos arquivos da Hemeroteca Digital relativos aos anos de 1820
a 1830, de forma que a palavra “aborto”, “abortamento” e outras possíveis variantes pudessem
ser abarcadas pela pesquisa. A única referência ao delito de aborto está na transcrição do projeto
apresentado por Pereira Vasconcelos, o qual abordaremos no parágrafo seguinte.
211
Barbara Madruga da Cunha · Mario Davi Barbosa
Na verdade, a única menção ao delito de aborto encontrada nesses documentos
está no projeto apresentado por Pereira Vasconcelos, o qual propunha que a mu-
lher que provocasse a interrupção da própria gravidez deveria responder por pena
de prisão. Segundo a proposta apresentada:
Art. 148. O que de qualquer modo procurar o aborto, será punido com a pena de ga-
lés por dous a seis annos.
E se a propria mulher prenhe fôr culpada, será punida com prisão de dous mezes a
um anno (sic) (VASCONCELOS, 1827, p. 101, grifo nosso).
Segundo V. Costa (2013), dentre os projetos apresentados à Câmara dos Depu-
tados, o de Vasconcelos foi o principal utilizado na elaboração do diploma penal de
1830 pelas comissões especiais. Isso não significa que não houve diferenças funda-
mentais entre a proposta do deputado e a versão final do código, de modo que as
alterações feitas à redação do delito de aborto não foram as únicas feitas durante o
trabalho revisional.
Na verdade, ao se comparar o projeto de Vasconcelos com o Código Criminal
de 1830, V. Costa (2013) chegou-se à conclusão de que menos da metade do total
de artigos do diploma penal possuía semelhanças significativas com a proposta
apresentada pelo deputado. Para a autora, isso teria se dado em razão de um projeto
político compartilhado pelos parlamentares que compunham as comissões especi-
ais, que visava a introdução de uma nova concepção de penal, através de um maior
afastamento das práticas do Antigo Regime junto à consolidação dos ideais ilumi-
nistas modernos. Isso seria demonstrado pela redução dos casos de incidência de
pena de morte, a qual estaria limitada a casos extremos de atentado à ordem social4,
a supressão de práticas que remetessem à tortura e a alteração, sobretudo, dos cri-
mes públicos5.

4. Nunes (2014) esclarece que naquele período a legislação não adotava a distinção entre crime
político e crime contra o Estado, sendo o primeiro considerado mais brando que o segundo. O
fato dos delitos não serem classificados entre aqueles que colocam em risco a existência da Na-
ção e aqueles que atacavam uma forma específica de governo, não significa, entretanto, que as
punições fossem iguais a estes atos. O critério, contudo, era outro. Ao invés de analisar a motiva-
ção do agente, a pena variava de acordo com o bem jurídico tutelado.
5. Os crimes públicos eram todos aqueles que não dizem respeito à “liberdade individual dos sujei-
212
Ausência de criminalização da mulher que aborta no Código Criminal de 1830
Para buscarmos compreender as razões que levaram à supressão do delito de au-
toaborto ainda é importante verificarmos os modelos penais comparados que os
legisladores brasileiros utilizaram e como os códigos estrangeiros que serviram
como fonte para os parlamentares compreenderam o delito de autoaborto. Será que
Vasconcelos teria inovado em seu projeto ao prever penas à conduta da mulher que
interrompesse a própria gestação? Os códigos que criminalizavam a conduta eram
regra ou exceção?

3. A criminalização do autoaborto nas fontes legislativas do


Código Criminal de 1830: a exceção do Projeto de Código
Criminal da Luisiana e o regime escravocrata
É natural que os modelos legislativos circulem e que, no processo de elaboração
de novos códigos, diplomas estrangeiros sejam estudados. É importante esclarecer,
entretanto, que a tentativa de medir o grau de influência de cada modelo em um
código pode ser bastante problemática. Primeiro, porque é muito difícil mensurar o
quanto há de uma norma em outra. Segundo, porque para a historiografia importa
muito mais saber como esses modelos circularam e foram utilizados em determina-
da realidade histórica (NUNES, 2018). Uma das formas de se verificar a “originali-
dade da cópia” está na análise da “funcionalização” das normas estrangeiras na
discussão de temas tipicamente nacionais, ainda que não seja simples definir o que
é um tema tipicamente nacional (SONTAG, 2015). Nesse sentido, buscaremos veri-
ficar se é possível perceber a recepção de algum modelo de criminalização do abor-
to no Código Criminal de 1830 para, em seguida, entender como se deu a funciona-
lização dessa norma frente a um contexto particularmente brasileiro: o regime es-
cravocrata.
O código napoleônico foi uma das fontes legislativas que permearam os projetos
utilizados na elaboração do Código Criminal de 1830. Apesar da autonomia da
legislação brasileira frente ao modelo francês, ela também demonstrou similarida-
des (NUNES, 2018). A tipificação do delito de aborto, entretanto, não foi uma de-

tos, sua vida, sua honra, estado civil ou propriedade” (COSTA V., 2013, p. 237) e tampouco se
caracterizavam enquanto delitos de polícia.
213
Barbara Madruga da Cunha · Mario Davi Barbosa
las. O “Code Pénal” francês de 18106 previa que a mulher que provocasse a inter-
rupção da própria gravidez ou consentisse que outrem o fizesse, deveria responder
em igual pena ao terceiro que realizasse manobras abortivas:
Article 317. Quiconque, par aliments, breuvages, médicaments, violences, ou par
tout autre moyen, aura procuré l'avortement d'une femme enceinte, soit qu'elle y ait
consenti ou non, sera puni de la réclusion. La même peine sera prononcée contre la
femme qui se sera procuré l'avortement à elle-même, ou qui aura consenti à faire
usage des moyens à elle indiqués ou administrés à cet effet, si l'avortement s'en est
ensuivi (FRANÇA, 1810, grifos nossos).
Assim como o diploma francês, o “Código Penal Español” de 1822 inspirou a
codificação criminal brasileira desde o projeto de Pereira Vasconcelos e teve seus
pontos de confluência revisados e complementados pelas comissões parlamentares
(COSTA V., 2013). O diploma espanhol, em seu artigo 640, também tipificava a
conduta da gestante:
Art. 640. La muger embarazada que para abortar emplee á sablendas alguno de los
medios espresados, y aborte efectivamente, sufrirá una reclusion de cuatro á ocho
años. Pero si fuere soltera ó viuda no corrompida y de buena fama anterior, y resul-
tare á juicio de los jueces de hecho que el único y principal movil de la accion fue el
de encubrir su fragilidad, se le impondrán solamente uno á cinco años de reclusion
(ESPANHA, 1822, grifos nossos).
O projeto de código português de autoria de Pascoal de Mello Freire também foi
um dos modelos que circulou no processo codificador brasileiro. Ainda que o juris-
ta tenha desempenhado um importante papel na formação acadêmica de Pereira
Vasconcelos e de outros parlamentos brasileiros formados pela Universidade de
Coimbra, seu projeto parece ter sido utilizado em poucos dispositivos do Código

6. Conforme elucida Stefano Solimano, o Código Penal Francês de 1791, primeiro a ser promulga-
do após a Revolução Francesa, foi considerado inapto ao combate da criminalidade pelos juris-
tas, pois ele teria sido concebido a partir de uma percepção equivocada da natureza humana, ba-
seada na teoria de Cesare Beccaria, para quem seria possível reintegrar o criminoso à sociedade.
Já o Código Penal de 1810 foi elaborado a partir da teoria de Jeremy Bentham, em uma lógica
utilitarista, de modo que a codificação deveria servir como um “instrumento a serviço do poder
público e em uma ótica dirigista e centralizadora, mais do que como meio de exaltação ou defesa
do indivíduo” (SOLIMANO, 2009).
214
Ausência de criminalização da mulher que aborta no Código Criminal de 1830
Criminal de 1830 (COSTA V., 2013). Em relação ao aborto, o português propunha
que a gestante e o pai do feto respondessem por penas iguais as do homicídio:
§26. Os que de proposito por interesse e maliguidade matarem os seus ascendentes
ou descendentes, depois de nascidos, em qualquer gráo e idade, ou sejão naturaes e
ligitimos, ou naturaes simplesmente, serão castigados como homicidas aleivosos,
com todas as penas acima ditas.
§27. Soffrerão as mesmas penas o pai ou mâi, que deliberadamente e por interesse,
ou pura malignidade fizerem perecer o feto, que existir no ventre, depois de anima-
do, e em duvida e o estar, se castigarão com galés ou degredo perpétuo fóra do reino
(FREIRE, 1785, p. 128).
Na concepção de Freire, o aborto consistiria na ação intencional da mãe ou do
pai em interromper à gestação ou o ato de negligência praticado pelos pais ou por
estranhos que resultasse no mesmo fim7. Já o que consideramos aborto praticado
por terceiro era considerado homicídio, podendo ser simples ou qualificado, a de-
pender das circunstâncias8.
A tipificação do autoaborto por esses três diplomas penais corrobora o fato de
que, no momento da elaboração do Código Criminal do Império, havia a concep-
ção de que a conduta da mulher em dar fim à própria gestação era criminosa. Isso
demonstra que o delito de autoaborto era conhecido pelos parlamentares do perío-
do, não sendo uma inovação do projeto de Pereira Vasconcelos, que, na verdade,
seguia a orientação da maior parte dos projetos e códigos modernos existentes no
período. Resta claro, portanto, que as comissões encarregadas de elaborar o texto
legislativo optaram por não o inserir no Código Criminal Brasileiro, seguindo, con-
forme iremos ver a seguir, a orientação do projeto de Livingston.
Segundo Vívian Costa (2013), dentre os códigos claramente consultados e utili-

7. Na redação do projeto: “§30. Os pais ou estranhos, que por descuido e inadvertência causarem a
morte do infante ou aborto, serão castigados extraordinariamente á medida da sua culpa e negli-
gencia” (FREIRE, 1785, p. 129).
8. O projeto de Mello Freire classificava o autoaborto e o aborto por negligência enquanto espécies
de homicídio qualificado, visto que previa os delitos no “Título XXXI – Do homicídio qualifica-
do”. O aborto praticado por terceiro, entretanto, não estava disciplinado em um tipo penal pró-
prio.
215
Barbara Madruga da Cunha · Mario Davi Barbosa
zados pelas comissões revisoras, o Projeto de Código Penal da Luisiana elaborado
por Edward Livingston foi aquele mais empregado nos trabalhos de revisão. Seu
aproveitamento se deu sobretudo nos delitos relativos à manutenção do regime
parlamentar e da regularidade do sistema eleitoral, na inserção do crime de insur-
reição escrava e também de alguns delitos particulares (COSTA V., 2013). A pala-
vra “insurreição”, inclusive, só passou a ser utilizada como sinônimo de revolta
escrava no português brasileiro a partir do seu emprego no Código Criminal de
1830, sendo as origens de tal uso do termo norte-americanas (DANTAS, 2011). O
delito de insurreição no projeto de Luisiana, entretanto, dizia respeito aos indiví-
duos livres que incitassem revoltas escravas ou participassem delas9, visto que o
estado estadunidense possuía um código criminal exclusivo para os réus escravos,
popularmente chamado de “Black Code”10. De toda forma, a sua inserção no di-
ploma penal brasileiro demonstra a preocupação dos parlamentares com a ameaça
dos cativeiros escravos, que representavam 30% da população (COSTA, V. 2013), à
segurança nacional.
Costa (2013) ainda apontou a utilização do Projeto de Livingston nos crimes
particulares, destacando sua ascendência na definição dos crimes de aborto e adul-
tério e na introdução do delito de auxílio ao suicídio. A autora, contudo, não explo-
rou as possíveis razões para as alterações feitas nos dispositivos relativos ao crime
de aborto, tampouco os motivos que levaram os parlamentares a empregarem as
definições de aborto do projeto de Luisiana – as quais, claramente, eram uma exce-
ção se comparadas às dos demais códigos consultados.
De forma genérica, Costa concluiu a partir da concepção dada ao delito de adul-
tério que:

9. De acordo com o texto do projeto: “Art. 115. Any free person who shall aid in any insurrection
of slaves against the free inhabitants of this state, who shall join in any secret assembly of slaves,
in which such insurrection shall be planned, with design to promote it, or shall excite or per-
suade any slaves to attempt such insurrections, shall be imprisoned at hard labour for life Art.
116. By “insurrection”, is meant an assembling with ARMS, with intent to regain their liberty by
force” (LIVINGSTON, 1824).
10. A expressão referia-se ao “Act prescribing the rules and conduct to be observed with respect to
Negroes and other Slaves in the territory”, elaborado em 1806 a partir dos statues norte-
americanos e na positivação do common law relativa ao regime escravocrata.
216
Ausência de criminalização da mulher que aborta no Código Criminal de 1830
pode-se notar o modo com que o diploma norte-americano desempenhou sua in-
fluência sobre delitos que, na tradição ibérica, possuíam teor altamente moralizante
e mesmo religioso (como o adultério, aborto e suicídio); possibilitando, a partir de
então, que o Estado e o judiciário brasileiros se aproximassem de forma significati-
vamente mais moderna de semelhantes questões (COSTA V., 2013, p.255).
A ausência de criminalização do autoaborto, ainda que hoje represente a laiciza-
ção do Estado, bem como um avanço aos direitos reprodutivos e à dignidade da
mulher, não parecia ser sinônimo de “modernização” naquela época, ao menos no
contexto brasileiro. Isto porque a inserção de um tipo penal de aborto no Código
Criminal de 1830 já representava uma inovação em relação às Ordenações Filipi-
nas, que não criminalizavam práticas abortivas, fossem feitas pela gestante ou por
terceiros. Assim, o fato do diploma penal de 1830 não penalizar a mulher que desse
fim a própria gestação não o tornava o mais “moderno” do que a legislação anteri-
or, tampouco poderia representar uma ruptura com os aspectos religiosos do orde-
namento jurídico do Antigo Regime, já que esse sequer criminalizava qualquer
prática abortiva.
Fato é que a redação dos artigos 199 e 200 do Código Criminal de 1830 são mui-
to semelhantes aos dos dispositivos do Projeto de Código Criminal de Louisiana
relativos ao delito de aborto. Conforme podemos ver, o diploma brasileiro previa o
delito da seguinte forma:
Art. 199. Occasionar aborto por qualquer meio empregado interior, ou
exteriormente com consentimento da mulher pejada. Penas - de prisão com
trabalho por um a cinco annos. Se este crime fôr commettido sem consentimento da
mulher pejada. Penas – dobradas.
Art. 200. Fornecer com conhecimento de causa drogas, ou quaesquer meios para
produzir o aborto, ainda que este se não verifique.
Penas - de prisão com trabalho por dous a seis annos.
Se este crime fôr commettido por medico, boticario, cirurgião, ou praticante de taes
artes. Penas – dobradas (sic) (BRASIL, 1830).
Já o projeto de Livingston propunha que:
Art. 469. Whoever, by violence, or by any means, externally or in- ternally applied
to any pregnant woman, with her consent, shall designedly procure an abortion,
217
Barbara Madruga da Cunha · Mario Davi Barbosa
shall be imprisoned in the penitentiary not less than three nor more than six years. If
it be done without her consent, the punishment shall be doubled.
Art. 470. He who furnishes such means, knowing the purpose to which they are in-
tended to be applied, is guilty of this offence.
Art. 471. He who designedly furnishes or administers the means in- tended to pro-
duce abortion, when they are administered, but fail in their effect, shall suffer one
half the punishment that the crime would have incurred, had it been completed
(LIVINGSTON, 1824).
A partir da comparação dos diplomas, resta claro que as alterações feitas pelas
comissões revisoras do projeto de Vasconcelos se basearam nas definições apresen-
tadas por Livingston, ainda que as penalidades apresentadas às condutas sejam
distintas.
As motivações para a não criminalização da mulher que provocasse o próprio
aborto, a partir das definições de Livingston, podem ser múltiplas e variadas, de
modo que é impossível saber com precisa certeza qual foi o fator determinante para
tanto. Tampouco é o objetivo deste trabalho, visto que em razões das limitações da
pesquisa desenvolvida, não se teve acesso às atas das comissões especiais que traba-
lharam na elaboração do Código Criminal de 1830, de modo que sequer podería-
mos afirmar as motivações oficialmente atribuídas para tal escolha. De toda forma,
é possível analisar como, no contexto social brasileiro, a ausência de criminalização
dessa conduta se relacionava com as concepções jurídicas de justiça (MECCA-
RELLI, 2009; 2014) – ou seja, se correspondia ou não às práticas e às percepções
jurídico-sociais em relação ao autoaborto. Tendo em vista as limitações dessa pes-
quisa, restringiremos nossa análise a um contexto específico, que concernia à socie-
dade brasileira como um todo: a escravidão.
Nesse sentido, não se pode ignorar que, dentre os países que tiveram seus proje-
tos ou códigos utilizados enquanto fontes legislativas para a elaboração do diploma
brasileiro, o Estados Unidos era aquele que perpetuava um regime escravocrata
mais semelhante com o do Brasil. Ainda que o Projeto de Código Criminal da Loui-
siana tivesse incidência apenas sobre as pessoas livres, a semelhança do contexto
social do estado estadunidense com o brasileiro, sobretudo a escravidão de pessoas
negras, não pode ser facilmente desconsiderada, até porque não sabemos se no

218
Ausência de criminalização da mulher que aborta no Código Criminal de 1830
“Black Code” havia o delito de autoaborto11 e tampouco há registros12 das motiva-
ções que levaram Livingston a não incluir o autoaborto enquanto um delito em seu
projeto para Louisiana.
Antes de adentrarmos à investigação sobre a aceitação de práticas abortivas nos
cativeiros de pessoas escravizadas no Brasil, analisaremos os comentários ao Códi-
go Criminal de 1830 feitos por juristas da época, com o intuito de verificar suas
impressões acerca do delito de aborto e possíveis motivações que eles tenham atri-
buído a não criminalização da mulher que aborta pelo diploma criminal.

4. A escassez de comentários ao crime de aborto pelos juristas:


a ausência de julgados e a preocupação com as consequências
sociais da perseguição ao delito
Os juristas brasileiros não pareciam muito interessados em fazer reflexões teóri-
cas sobre o delito de aborto. Na obra de Antonio Joaquim Macedo Soares, “Estudo
Forenses: questões de direito e praxe criminal, civil, comercial, orfanológico e ad-
ministrativo” (1887), e na de José de Alencar, intitulada “Esboços Jurídicos”
(1883), o crime de aborto é apenas citado enquanto um exemplo de suas análises13,
não sendo objeto de estudos ou comentários específicos. Já nas anotações de Braz
Florentino (1858) ao Código Criminal do Império, não há qualquer observação ao
delito – o autor limitou-se a apenas transcrever os artigos relativos à prática. Na
segunda edição dos comentários ao código de Vicente Alves de Paulo Pessôa
(1885), cerca de três páginas são dedicadas ao aborto criminoso, enquanto nos de
Antonio Luiz Ferreira Tinoco (1886) resumem-se a apenas três anotações.

11. Infelizmente não encontramos o "Act prescribing the rules and conduct to be observed with
respect to Negroes and other Slaves" disponível online. Aparentemente só é possível acessar o
material na Universidade de Cambridge e em razão da pandemia do Covid-19, que impôs as
medidas de isolamento social, não foi possível consultar bibliotecas físicas até o momento.
12. Nos referimos às notas introdutórias escritas por Seth Lewis ao Projeto de Livingston. Trata-se
da obra “Remarks on the Hon. Edward Livingston's introductory report to his system of penal
law, prepared for the State of Louisiana” (LEWIS, 1831).
13. Macedo Soares se utiliza do delito de aborto como exemplo de crime cuja gravidade não é mais
agravada se praticado durante a noite (1887, p.15). Já José de Alencar cita o delito para diferen-
ciar as “phases da faculdade humana” (1883, p. 166).
219
Barbara Madruga da Cunha · Mario Davi Barbosa
Sem dúvida os comentários de Thomaz Alves Júnior (1883) são os mais ricos
sobre o tema, visto que as notas do autor se estendem por mais de quinze páginas.
Isso, entretanto, não significa que o jurista tivesse um apreço ou uma preocupação
especial com a temática. Na verdade, a obra de Alves Júnior é, de modo geral, muito
mais extensa que as demais, sendo natural, portanto, que suas anotações fossem
mais longas.
De início o autor cita diferentes legislações estrangeiras que diferenciavam a
gravidade da conduta a partir do consentimento ou não da gestante14, apontando
que todas elas distinguiam a conduta do infanticídio, considerando o aborto menos
grave. Ele ainda destaca que no caso do código brasileiro, “a responsabilidade aqui
é toda, e só deste terceiro á quem a lei dá a autoria do facto – occasionar” (ALVEZ,
1883, p. 275, grifo do autor), esclarecendo, em seguida, que pela legislação a mulher
não deveria ser responsabilizada: “a lei brasileira, tratando da espécie deste crime,
distingue si há ou não consentimento da mulher pejada, mas parece nada prevenir
sendo ella a propria autora do facto. Não haverá crime neste caso, e si não há póde-
se justificar a omissão do legislador?” (ALVEZ, 1883, p. 276, grifos do autor).
Para ele, o Código Criminal do Império ao não incriminar o fato praticado pela
própria gestante se constituiria em uma exceção geral a todos os outros. O jurista,
entretanto, não cita o Projeto Livingston, que assim como o Código Criminal do
Império não criminalizou o autoaborto, de modo a não incluir a legislação da Luisi-
ana em sua análise comparada.
O autor, ademais, não chega a responder diretamente à sua própria pergunta.
Ele apenas cita Conselheiro Ferrão, jurista português, que, segundo Alvez Júnior,
teria atribuído a ausência de criminalização da gestante no código brasileiro à estra-
tégia de evitar “maiores inconvenientes” (ALVEZ, 1883, p. 277), assim como as
“difficuldades de se apreciar bem, e se provar o facto criminoso em relação a mãi”
(ALVEZ, 1883, p.277).
O jurista, entretanto, encerra sua análise com uma reflexão que interessa à nossa
pesquisa. Segundo ele, as estatísticas criminais eram pobres em relação ao aborto e
ao infanticídio (ALVEZ, 1883, p. 282) e a ausência de julgados dificultaria o estudo

14. Os códigos citados são: das Duas Sicilias, da Sardenha, da Bélgica, França, Alemanha, Baviera,
Espanha, Portugal e Prússia.
220
Ausência de criminalização da mulher que aborta no Código Criminal de 1830
e a interpretação do delito de aborto. Isso pode ser explicativo do porquê encon-
tramos tão poucos e escassos comentários ao delito, visto que boa parte dos autores,
como Paulo Pessôa, Macedo Soares e Antonio Tinoco eram magistrados.
Para Alvez Júnior, a ausência de julgadosnão significava que as práticas aborti-
vas não ocorressem, mas sim que elas eram difíceis de serem verificadas e compro-
vadas. Segundo o autor, “parece que vivemos em terras de costumes os mais puros!
acreditamos, porém, que só a difficuldade pratica de averiguar taes actos, faz com
que elles deixem de figurar em proeminente lugar na estatística dos crimes!” (AL-
VEZ, 1883, p. 282). A impunidade desse tipo de crime, entretanto, não era vista
como algo negativo pelo jurista:
Melhor é que sempre assim seja: que fique sepultado em segredo factos reveladores
da desordem dos sentimentos do coração, da descrença dos espíritos, da degenera-
ção da sociedade, que não encontram remédio no isolamento das penitenciarias, e
sim na cultura dos principios de moral e religião.
Á escola e á religião compete regenerar os bons costumes, o que de certo não conse-
gue o legislador, nem mesmo servindo-se das penas de Draco (ALVEZ, 1883,
p.282).
A partir dessa passagem podemos concluir que para Alvez Júnior não seria inte-
ressante expor a vida privada das mulheres e de suas famílias, pois o aborto consis-
tiria em um desvio de ordem moral, extrapolando, assim, as esferas de atuação jurí-
dica. Nesse sentido, a ausência de criminalização do autoaborto poderia ser expli-
cada por argumentos utilitaristas: a imposição de uma pena à mulher poderia cor-
romper mais seu senso moral do que a impunidade, além de desestruturar sua uni-
dade familiar. Seguindo esse raciocínio, a criminalização daqueles que fornecessem
drogas ou outros métodos abortivos, tal como fez o Código Criminal de 1830, seria
mais eficaz ao combate à prática do delito do que a tipificação do autoaborto, pois
dificultaria o acesso das mulheres aos meios capazes de interromper a gestação sem,
contudo, expô-las.
Na segunda edição de seu “Código do Imperio do Brasil commentado e anota-
do...”, Paulo Pessôa (1885) fundamentou em sentido semelhante a ausência de pu-
nição da tentativa de aborto:
a difficuldade de provar em que designio foi administrada tal substancia, a necessi-

221
Barbara Madruga da Cunha · Mario Davi Barbosa
dade de obstar no sentido de que a honra e o repouso das famílias sejão temeraria-
mente perturbados sobre indícios equívocos [...] são tantas as razões que deverião
concorrer para que o legislador não autorizasse a intervenção da justiça, senão
quando o crime attingio o seu fim, existindo um facto material palpável sevindo de
base a esta intervenção (sic) (PESSÔA, 1885, p. 363).
Quanto à ausência de punição da mulher que interrompesse a própria gestação,
o jurista nada comentou, tampouco na primeira edição de seu livro (1877). De toda
forma, também é possível perceber em Pessôa uma preocupação com as conse-
quências sociais da atuação jurídica na esfera privada.
Antonio Tinoco (1886), por sua vez, inicia seu comentário questionando: “o
aborto provocado pela propria mulher pejada dever ser punido?” (1886, p. 379), ao
que responde: “parece-me que não. O art. 199, como se vê do seu texto, só trata do
aborto, obra de terceiro, e em que convém a mulher pejada, e inadmissível é inter-
pretação ampliativa” (1866, p. 379). O jurista, entretanto, não busca explicar por
que o autoaborto não era criminalizado, tampouco expressa sua opinião sobre.
A leitura dos códigos comentados demonstra que os juristas que interpretaram o
delito de aborto entendiam que pela redação do Código Criminal de 1830 apenas o
terceiro que realizasse manobras abortivas ou fornecesse meios para esse fim incor-
reriam na prática do delito. Assim, todos eram unânimes em afirmar que o autoa-
borto não era criminalizado pela legislação. As razões para isso, entretanto, não
parecem ter sido exploradas pelos juristas, que deixaram de justificar a opção do
legislador e tampouco criticaram-na. A leitura das anotações de Alvez Júnior foi a
única capaz de nos apontar alguns indícios sobre como os juristas explicavam a
ausência de criminalização do autoaborto pelo Código Criminal de 1830 em con-
tramão à orientação da maior parte dos códigos modernos. Nesse sentido, parecia
existir uma preocupação dos juristas com a intervenção do Estado na esfera priva-
da, a qual, em alguns casos, poderia causar mais prejuízos do que benefícios à soci-
edade, tendo em vista as limitações do direito diante de questões de foro moral
como o autoaborto.

222
Ausência de criminalização da mulher que aborta no Código Criminal de 1830
5. A punição do autoaborto para além do Código Criminal: as
práticas punitivas e o controle reprodutivo sobre as escravas no
âmbito das fazendas
O fato de não haver disposição expressa que criminalizasse o autoaborto no Có-
digo Criminal de 1830 não significa que não havia outras formas de punição destas
condutas em outro âmbito que não o legislativo. As ponderações de Alvez Júnior
são representativas do respeito ao poder do pater famílias sobre o espaço domésti-
co, no qual o Estado não deveria intervir. Assim, nesse período, a depender da von-
tade e do discernimento do chefe de família, é possível que as mulheres sofressem
castigos físicos ou repressões pela realização de práticas abortivas, quando essas
fossem de conhecimento da família.
A sociedade brasileira do século XIX pode ser considerada tomando como fun-
damentais a sua estratificação e hierarquização social, por intermédio dos status
rígidos e dos privilégios, ainda muito intensamente baseadas nas tradições ibéricas
e pelo modelo de monarquia corporativa, e fundada no paternalismo, na agricultu-
ra e na escravidão (HESPANHA, 2012, p. 36). Assim, o pater poder dos represen-
tantes da classe senhorial, responsáveis pela gestão de suas fazendas e plantações,
legisladores e juízes do espaço da sua propriedade, estendiam-se sobre toda a sua
propriedade, entendida a partir do conceito de “casa” do ius commune (SEELA-
ENDER, 2017).
Neste contexto, utilizaremos os Manuais de Agricultura publicados no Brasil oi-
tocentista como fonte para compreender como se desenvolveu um tipo específico
de jurisdição penal, que pode ser entendida como a justiça senhorial, responsável
pela punição no âmbito das fazendas. Estes documentos fazem parte de um tipo de
literatura que se desenvolveu entre os séculos XVII a XIX no Brasil e na América
escravista (Antilhas e Estados Unidos) e que hoje vem ganhando destaque na pes-
quisa acadêmica sobre o entendimento da sociedade brasileira daquele período
(MARQUESE, 2011).
Os seus autores buscavam prescrever aos leitores técnicas de plantio e de trata-
mento da terra, regras gerais de gestão das fazendas pelos agricultores que quises-
sem empreender na área, discutindo, por exemplo, a escolha do melhor terreno
para plantar e a forma de construção das casas senhoriais. Entretanto, estas obras

223
Barbara Madruga da Cunha · Mario Davi Barbosa
iam além de questões meramente técnicas. Quando precisavam abordar o problema
da gestão dos escravos, os autores prescreviam como deveriam ser construídas as
senzalas, o fornecimento de alimentos e de medicamentos, a formação moral, a
disciplina no trabalho e a punição, através dos castigos domésticos.
Estes documentos, além de serem importantes fontes para a compreensão da
gestão dos escravos, revelam um aspecto fundamental da punição naquela socieda-
de, qual seja: a pluralidade de instâncias punitivas que conviviam de forma harmô-
nica dentro do mesmo ordenamento jurídico. Esta pluralidade de jurisdições se
desenvolveu durante todo o período colonial brasileiro (HESPANHA, 2006), ga-
nhando contornos próprios, representando uma manifestação dos aspectos caracte-
rísticos da Monarquia Corporativa portuguesa (HESPANHA, 2001).
Esta pluralidade de jurisdições penais (iurisdictio) representava uma continui-
dade da tradição portuguesa do Antigo Regime que resguardava o poder exclusivo
de jurisdição senhorial sobre o âmbito doméstico. Neste espaço, onde vigoravam as
prerrogativas próprias do pater famílias, dentre elas a de dizer o direito e de execu-
tar suas ordens, as regras jurídicas produzidas pelo Estado Imperial tinham interfe-
rências muito limitadas. Assim, ainda que o Código Criminal de 1830 tenha busca-
do se diferenciar das Ordenações Filipinas no sentido de afastar-se das característi-
cas do Antigo Regime, restringindo, por exemplo, a severidade e crueldade das
penas, ele continuava dirigindo-se tão somente às condutas consideradas atentarias
à unidade do Estado e da sociedade, evitando, assim, intervir na esfera privada dos
cidadãos.
É neste sentido que dentro dos objetivos aqui propostos devem ser compreendi-
das as prescrições dos autores destes manuais, que escreviam para os remetentes da
classe senhorial. Neste aspecto, o direito de castigo dos escravos pelos senhores
estava intrinsecamente ligado às prerrogativas senhoriais advindas de seu status de
chefe de família (a pequena polis) e titular das prerrogativas de jurisdição do âmbito
da casa, sendo, portanto, o direito correcional, de castigar o escravo, afeto ao ramo
do direito privado, outra característica aqui relevante.
Assim, a punição das práticas de autoaborto por mulheres escravizadas precisa
ser compreendida neste viés: como uma prática penal privada cuja prerrogativa
caberia aos senhores escravistas. Portanto, o fato de não haver a disposição expressa

224
Ausência de criminalização da mulher que aborta no Código Criminal de 1830
no Código Criminal do Império de 1830 não pode denotar uma inexistência de
punição, senão somente que as regulações da punição destas condutas se davam
necessariamente no âmbito privado e familiar.
No contexto geral da década de 30 dos oitocentos, além da promulgação do Có-
digo Criminal que inaugurou uma ruptura no modelo punitivo até então vigente,
fato que merece destaque é a promulgação da Lei Feijó, datada de 7 de novembro de
1831, resultado da intensa investida da diplomacia inglesa para acabar oficialmente
com o tráfico atlântico no Brasil.
Em 1834 o Marquês de Abrantes publicou na Bahia a obra Ensaio sobre o fabrico
do açúcar, preocupado com o futuro do plantio deste que já fora o principal produ-
to de exportação colonial e que enfrentava no século XIX grande concorrência in-
ternacional, especialmente da produção das Antilhas inglesa e francesa. Entretanto,
não era somente o declínio do plantio do açúcar e seus impactos econômicos na
região nordeste que inquietavam este autor. O fim do tráfico atlântico certamente
teria consequências diretas para os negócios de uma economia agrária totalmente
dependente da mão de obra escrava:
Como manterá o seo patrimônio rustico, a formação de seos filhos, as esperanças de
sua prole? O recurso do recrutamento Africano acabou; e por mais que alguns dese-
jem, o trafico não voltará. Que meio pois nos resta? Um só; o de promover a conser-
vação da vida dos actuais escravos, e sua reproducção (ALMEIDA, 2002, p. 58)
Sabemos que efetivamente o tráfico atlântico continuou intensamente até o ano
de 1850, quando foi pela segunda vez proibido pela lei Euzébio de Queiroz (MA-
MIGONIAN, 2017). Mesmo assim, a conservação e reprodução dos escravos passa-
ram ganhar espaço nas discussões dos fazendeiros como estratégia de enfrentar a
crise da mão de obra escrava desenhada no horizonte.
Com isso, não somente o tratamento dos escravos, mas especialmente das escra-
vas e seus filhos passará a ganhar atenção privilegiada dos manuais agrários. Inclu-
sive o casamento escravo passou a ser amplamente recomendado pela literatura:
“He tambem de absoluta necessidade, que o Senhor, por algum premio, e outros
meios obvios, e fáceis anime, e convide o escravo a casar-se com parceira sua”
(ALMEIDA, 2002, p. 60).
O incentivo ao casamento e à gravidez da escrava foi uma política pensada e in-
225
Barbara Madruga da Cunha · Mario Davi Barbosa
centivada como alternativa à gradativa diminuição da importação escravista: “Deve
igualmente o Senhor velar prela creação dos filhos dos seos escravos. A humanida-
de, e o interesse pessoal exigem, que não se obriguem á trabalho algum, por dois
meses antes, e 2 meses depois do parto, a May escrava” (ALMEIDA, 2002, p. 61).
Em 1839 foi publicado o “Manual do Agricultor Brasileiro” por Carlos Augusto
Taunay, a obra mais conhecida dentre os manuais de agricultura publicados neste
período. Dentre as suas preocupações o fim do tráfico também se sobressai: “Nossa
agricultura, já tão decaída, não aturaria no momento atual nem a libertação dos
pretos, nem mesmo a real cessação do tráfico; portanto [...] o nosso trabalho deve
limitar-se a mitigar os seus piores efeitos, e preparar os meios às gerações futuras”
(TAUNAY, 2001, p. 54). Para Taunay, somente a disciplina nos campos seria capaz
de assegurar que os negros trabalhassem, “uma perpétua vigilância e regra intrans-
gressível devem presidir aos trabalhos, ao descanso, à comidas, e a qualquer movi-
mento dos escravos, com o castigo sempre à vista” (TAUNAY, 2001, p. 55).
Ao estabelecer o seu modelo de punição escravista, Taunay também considerou
como deveriam ser executadas as penas para as mulheres e crianças: “Os castigos
das mulheres e crianças devem ser proporcionados ao seu sexo e debilidade, execu-
tados separadamente dos homens [...]. O conselho de vender os pretos incorrigíveis
é ainda mais obrigatório no caso das pretas de má índole, que se não podem sujeitar
à disciplina” (TAUNAY, 2001, p. 70).
Resultado de suas anotações manuscritas direcionadas a seu filho, bacharel re-
cém-formado em Coimbra, o Barão do Paty e Alferes, publicou no ano de 1847 o
seu manual, intitulado “Memória sobre a fundação de huma fazenda na província
do Rio de Janeiro”, onde aconselha ao fazendeiro novo a forma de empreender
nessa área e a boa administração de uma fazenda conforme as suas experiências
pessoais. A escravidão é apresentada pelo autor como um “germen roedor do Im-
pério do Brasil, e que só o tempo poderá curar”, mas que deve ser continuada a fim
de se pagarem os investimentos nos escravos, cujo “preço actual não está em har-
monia com a renda que d’elle se póde tirar; inda de mais accresce a immensa mor-
tandade a que estão sugeitos e que devora fortunas colossaes" (sic) (VERNEK, 1847,
p. 16).
Diante da sua percepção sobre a má gestão dos escravos que tinha como conse-

226
Ausência de criminalização da mulher que aborta no Código Criminal de 1830
quência a mortandade e a necessidade constante de reposição da mão de obra, o
Barão do Paty prescreve regras para se manter a salubridade das senzalas e os cui-
dados com a saúde, alimentação, com a educação moral e religiosa. Dentre esses
deveres, se inseria a necessidade dos castigos para os escravos que cometessem deli-
tos: “O negro deve ser castigado quando faz o crime: o castigo deve ser proporcio-
nado ao delicto” (VERNEK, 1847, p. 17).
Também aqui percebemos uma preocupação com a reprodução da escrava nas
prescrições de Vernek:
Não mandeis a preta que estiver criando, á roça por espaço de hum anno, occupai-a
em serviço de casa, como, lavar roupa, escolher café, e outros objectos. Quando ella
tiver seu filho criado irá então, deixando o pequeno entregue a huma outra que deve
ser a ama secca de todos, para os lavar, mudar a roupa, e dar-lhe a sua comida
(VERNEK, 1847, p. 18).
Essa preocupação com a fertilidade da mulher escrava, entendemos que pode ser
um elemento para se pensar a existência de punição aplicável no caso de autoabor-
to, uma vez que ante ao declínio da mão de obra em decorrência do fim do tráfico, a
reprodução passou a significar uma via de manutenção do sucesso do próprio em-
preendimento agrícola, representando também uma fonte de lucros do fazendeiro,
onde o aborto e, especialmente, o autoaborto, poderiam ser encarados como um
prejuízo.
Em 1868, o Padre Antonio Caetano Fonseca publica o “Manual do Agricultor
dos generos alimentícios”, com objetivo principal de oferecer subsídios para a re-
novação das técnicas agrícolas para enfrentar o problema das terras “cansadas” e
melhorar a produção das fazendas brasileiras.
Fonseca reserva parte importante de sua obra para descrever a necessidade de
um tratamento humanitário aos escravos, isto tudo intimamente relacionado ao
problema real do fim do tráfico atlântico definitivamente proibido havia quase duas
décadas. Agora, mais do que nunca, era necessário prezar pela manutenção e re-
produção dos escravos que se tinha a fim de evitar a falência dos empreendimentos
da agricultura. Este autor alerta sobre a necessidade de incentivo à reprodução:
“devem lembrar-se os fazendeiros, que os seus escravos também são homens, e que
tem como elles a mesma propensão para o amor, e por isso lhes devem facultar

227
Barbara Madruga da Cunha · Mario Davi Barbosa
casarem-se á sua vontade” (FONSECA, 1868, p. 102).
“O preto casado ordinariamente tem filhos, e os deve amar, assim como a sua
mulher; portanto tem mais adhesão á casa de seu senhor” (FONSECA, 1868, 102).
É neste contexto que a gravidez da escrava recebeu atenção especial na obra do
Padre Antonio Fonseca: “As pretas neste tempo, e no da sua gravidez, não devem
ser tratadas com rigor; porque isto muitas vezes è causa de abortos, suppressão das
regras, e de muitos outros inconvenientes” (FONSECA, 1868, p. 98). Na rotina do
trabalho nas fazendas, deveriam os senhores prezarem pela saúde das escravas
quando grávidas, o trabalho pesado, em dias muito quentes e nas fornalhas “causa
hemorrhagias uterinas e abortos” (sic) (FONSECA, 1868, p. 98).
Padre Antonio Fonseca prescrevia cuidados às escravas também no momento
do parto e no tratamento das crianças cativas, que deveriam ser tratadas tal qual os
“jovens senhores”:
Na occasião do parto a escrava deve merecer a mesma attenção, que merece a sua
senhora, e o recemnascido os mesmos cuidados que os seus jovens senhores. Prati-
car o contrario seria faltar â humanidade e ao nosso interesse. No tempo da ama-
mentação não devem as mais estar expostas aos raios do sol, nem darem de mamar
quando estiverem cançadas, porque o leite neste estado nocivo, e por isso aconselho
que o seu serviço neste tempo seja moderado (FONSECA, 1868, 99).
Aspecto igualmente importante era a regulação da polícia nas fazendas. Os se-
nhores deveriam prezar pela moral cristã e pelo regramento da vida de seus cativos
e das cativas, desta forma, percebe-se uma preocupação desde cedo com a separa-
ção dos escravos das escravas, desde que completassem dez anos de idade, sendo no
caso das meninas escolhida uma feitora casada para cuidar do comportamento
destas, evitando que tivessem filhos sem se casarem (FONSECA, 1868, p. 109).
Mesmo com todos os cuidados tomados para evitar o “desregramento” da vida
das escravas, “Nunca se deve dar lugar ás escravas para se encontrarem com os
homens; mas se apezar das cautelas necessarias, apparecer alguma pejada, não deve
ser maltratada, porque isto è ordinariamente a causa das escravas promoverem o
aborto” (FONSECA, 1868, p. 109).
Na disciplina da punição, segundo o Padre Antonio Fonseca, o senhor tinha o
dever de castigar seus escravos pelas faltas cometidas. “Quando um escravo mere-

228
Ausência de criminalização da mulher que aborta no Código Criminal de 1830
cer castigo, será este feito com moderação, pois nunca a ira deve tomar o lugar da
justiça” (FONSECA, 1868, p. 110). A preocupação com os excessos cometidos por
senhores e feitores na execução dos castigos escravistas toma bastante atenção deste
autor, que prescreve um tratamento mais atenuado dos escravos, atendendo aos
interesses dos seus senhores sempre em primeiro lugar.
É consenso entre os autores aqui citados que os castigos escravistas faziam parte
de um poder próprio dos senhores, poder este que não estava vinculado às regras e
leis do Estado. O senhor tinha o poder de dizer o direito e de aplicar sua sentença,
entretanto, prescrição de moderação na aplicação dos castigos também é um ele-
mento geral nestas obras, um tanto porque estes autores conheciam a realidade das
práticas correcionais brasileiras, em que não raras as vezes um escravo não saía com
vida após as seções de sevícias que se tornavam as execuções de castigos pelos feito-
res.
No que se refere à punição das escravas que cometiam autoaborto, não há men-
ções expressas dos autores a essa prática, senão que as punições no âmbito das fa-
zendas caberiam aos senhores que, segundo eles, deveriam agir com moderação
para que o castigo não redundasse em exercício de vingança e sevícias.
O que percebemos foi uma preocupação crescente com a reprodução escrava no
âmbito das propriedades escravistas, muito ligada ao período do fim do tráfico
atlântico, demandando a procura de alternativas a um cenário de declínio da mão
de obra cativa com o tempo. Neste ponto, foi o Padre Antonio Fonseca quem mais
se preocupou com a gravidez das escravas e a formação de núcleos familiares a fim
de promover a reprodução lícita destes centrada num ideário da moral católica,
valendo aqui a ressalva que fez sobre a escrava que engravida sem estar casada:
“não deve ser maltratada, porque isto è ordinariamente a causa das escravas pro-
moverem o aborto” (FONSECA, 1868, p. 110).
Em meio a este contexto, a punição da escrava que promovia o autoaborto se
mostra possível em face da importância que a sua gravidez e os frutos econômicos
dela resultante vão ganhando contornos importantes a partir especialmente da se-
gunda metade do oitocentos. Aqui destacamos a importância de pesquisas a serem
desenvolvidas no campo da História do Direito que possam responder de forma
mais ampliada a questão.

229
Barbara Madruga da Cunha · Mario Davi Barbosa
Da análise dos manuais de agricultura publicados no Brasil do século XIX per-
cebemos inicialmente que a instância de punição estabelecida pelo Código Criminal
convivia com instâncias paralelas de punição, estando a punição escravista senhori-
al inserida no âmbito do espaço privado, derivada das prerrogativas de jurisdição
do pater familias, senhor de escravos e soberano do espaço da casa colonial. Esta
espécie de punição, plural e diversa, amplamente difundida dentro do território
brasileiro, resguardada pelas influências do ius commune, da tradição católica e do
patriarcado davam os pilares de sustentação da não interferência do Estado no âm-
bito doméstico.
Como prática costumeira, a regulação dos desvios no âmbito das fazendas brasi-
leiras era realizada de forma verbal e com critérios variados, já que cada fazendeiro
poderia legislar da forma como lhe conviesse. Os manuais de agricultura são fontes
interessantes no sentido de verificarmos como este poder se apresentava e como
estes autores tentaram criar modelos gerais de gestão e regulação jurídica da puni-
ção senhorial, ancorados em preceitos do direito canônico, da releitura do direito
romano pelos juristas do direito comum, e atentos que eram também às novas leis
do Império, dentre elas o Código Criminal de 1830.

6. Conclusões
Ao analisarmos o processo de codificação imperial brasileiro, demonstramos
que a primeira hipótese levantada ao nosso problema, relativa à possibilidade de o
delito de autoaborto não ser compreendido enquanto um delito, é falsa, visto que
diversas legislações, incluindo o Código Penal Francês de 1810 e o Código Penal
Espanhol de 1822, que serviram como fonte à codificação imperial, penalizam a
conduta.
A partir das categorias historiográficas utilizadas, ademais, pudemos perceber as
motivações internas que levaram os legisladores à escolha deliberada de não tipifi-
car o autoaborto. Nesse sentido, a compreensão do fenômeno criminal enquanto
um conjunto de práticas e saberes não necessariamente atrelados à lei e ao Estado,
conforme propõe Mario Sbriccoli, foi fundamental para conseguirmos visualizar a
existência de práticas punitivas no âmbito doméstico, uma vez que a repressão ao
autoaborto competia ao detentor do pater poder.
230
Ausência de criminalização da mulher que aborta no Código Criminal de 1830
O advento da codificação penal no Brasil representou certamente uma impor-
tante ruptura no modelo de punição das condutas socialmente reprimidas. A au-
sência de previsão legal para a criminalização da conduta de autoaborto, assim,
pode representar um dos impasses que os legisladores do século XIX tiveram que
enfrentar a fim de conciliar um modelo liberal de punição no bojo de uma socieda-
de profundamente arraigada em tradições do passado.
As rupturas políticas não representaram uma alteração total no modelo jurídico
praticado, podendo este momento ser considerado um período de transição de
paradigmas jurídico-penais. Para tanto, a conciliação necessitava resguardar tanto
os costumes religiosos de proteção à entidade familiar, quanto a opção pela conti-
nuidade do escravismo enquanto um modelo econômico-jurídico.
Nessas duas pontas, repousavam os poderes senhoriais e as prerrogativas do pa-
ter familias como ente não somente responsável pela tutela de seres com capacidade
jurídica limitada que eram a mulher e o escravo, mas principalmente, por resguar-
dar a jurisdição da “casa” como espaço exclusivo às regras paternas, livre das inter-
ferências do Estados e visando evitar “maiores inconvenientes” como bem deixou
explícito o jurista Tomaz Alvez Júnior.
E é deste mesmo autor a conclusão mais emblemática capaz de explicar a ausên-
cia da criminalização legal da conduta do autoaborto no Código de 1830, para que
“fique sepultado em segredo factos reveladores da desordem [...], da degeneração
da sociedade”. Estes segredos deveriam ser enterrados no âmbito da “casa”, das
famílias que seriam o melhor remédio para a punição destas condutas do que o
“isolamento das penitenciarias”. Portanto, a punição a essas condutas deveria ocor-
rer no âmbito moral, da sociedade e das famílias e no caso das escravas, a punição
também deveria ficar sepulta no âmbito doméstico, sob a proteção divina e a juris-
dição do pai. Isso explicaria a adoção por parte das comissões legislativas do mode-
lo de criminalização do aborto proposto pelo Projeto de Livingston, o qual também
estava inserido em um contexto social escravagista, em detrimento da orientação de
boa parte dos códigos europeus que tipificavam a conduta do aborto.

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234
DOS BOTICÁRIOS AOS TRAFICANTES:
A EQUIVOCADA CRENÇA NA IDENTIDADE
TERMINOLÓGICA E DOGMÁTICA COMO
CARÁTER DE CONTINUIDADE NA
POLÍTICA CRIMINAL DE DROGAS
BRASILEIRA ENTRE O CÓDIGO PENAL DE
1890 E AS LEIS PENAIS ESPECIAIS DAS
DÉCADAS DE 1910 E 1920
FROM PHARMACIST TO DRUG DEALERS:
THE MISTAKEN BELIEF IN TERMINOLOGICAL
AND DOGMATIC IDENTITY AS A
CONTINUITY CHARACTER IN
BRAZILIAN CRIMINAL DRUG POLICY
BETWEEN THE PENAL CODE OF
1890 AND THE CRIMINAL ACTS
OF THE 1910 AND 1920 DECADES

10
Ricardo Ávila Abraham *
Carlos César Rodrigues **

* Bacharel em Direito (UFSC). Mestrando em Teoria e História do Direito no Programa de Pós-


Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina. Membro do Grupo de Pes-
quisa Ius Commune/UFSC. Advogado. E-mail: ricardoa.abraham@gmail.com
** Bacharel em História (UDESC). Bacharel em Direito (UFSC). Mestrando em Teoria e História
235
Ricardo Ávila Abraham · Carlos César Rodrigues

Resumo: O presente trabalho analisa a possível Abstract: The present work analyzes the possible
continuidade entre o Código Penal de 1890 e leis continuity between the Penal Code of 1890 and
penais especiais, datadas das primeiras décadas do special penal acts, dating from the first decades of
século XX, no que se refere à política criminal de the twentieth century, with regard to criminal drug
drogas no Brasil. O método utilizado foi o histórico, policy in Brazil. The method used was the historical
por meio da análise de fontes históricas e referên- one, through the analysis of historical sources and
cias bibliográficas atinentes, pelo que se concluiu relevant bibliographic references, so it was conclud-
que as idênticas terminologias e construções dog- ed that the identical terminologies and dogmatic
máticas dos artigos que criminalizavam condutas constructions of the articles that criminalized
referentes às drogas nos referidos diplomas norma- conduct related to drugs in the referred normative
tivos não significaram uma continuidade na política diplomas did not mean a continuity in the criminal
criminal de drogas no Brasil, que se iniciou somen- policy of drugs in Brazil, which started only from
te a partir da segunda década do século XX. the second decade of the twentieth century.
Palavras-chave: Política criminal de drogas no Keywords: Criminal drug policy in Brazil. Narco-
Brasil. Entorpecentes. Código Penal de 1890. tics. Penal Code of 1890.

1. Introdução
A criminalização de temas atinentes à questão das drogas ganhou relevo mundi-
al a partir do início do século XX, com a ampla repercussão da Conferência de Xan-
gai (1909) e da 1ª Conferência Internacional do Ópio (Haia, 1912)1. No Brasil, por
meio do Decreto nº 2.861/1914, foram aprovadas as medidas discutidas na Con-
venção da Haia (1912), as quais visavam a impedir o abuso crescente do ópio, da
morfina e derivados.
Nessa esteira, de maneira a fortalecer a contenção do (ab)uso das referidas subs-
tâncias, o Decreto nº 4.294, de 6 de julho de 1921, passou a prever, em seu artigo 1º,
contravenção penal que proibia as condutas de “vender”, “expor à venda” ou “mi-
nistrar” as então chamadas “substâncias venenosas” sem legítima autorização e
formalidades sanitárias, sob pena de multa2. No parágrafo único do referido dispo-

do Direito no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catari-


na. Membro do Grupo de Pesquisa Ius Commune/UFSC. E-mail: carloscesinha80@gmail.com
1. ONU. International Opium Convention.
2. Art. 1º Vender, expôr á venda ou ministrar substancias venenosas, sem legitima autorização e
sem as formalidades prescriptas nos regulamentos sanitarios: Pena: multa de 500$ a 1:000$000.
236
Dos boticários aos traficantes
sitivo foi prevista pena de prisão, de um a cinco anos, caso a “substância venenosa”
tivesse “caráter entorpecente”, e foram citados especificamente o ópio, a cocaína e
seus derivados, substâncias de destaque negativo também nas referidas normativas
internacionais.
O mencionado artigo 1º do Decreto de 1921, ao determinar medidas específicas
no combate a “substâncias venenosas”, especialmente as consideradas “entorpe-
centes”, revogou a antiga disposição constante do Código Penal de 1890, entretan-
to, manteve o mesmo termo “substâncias venenosas”, que já estava presente no
artigo 159 do Código Penal de 18903, assim como preferiu deixar os dois núcleos do
tipo contidos no diploma republicano (“expor à venda” e “ministrar”), aos quais
acresceu apenas a conduta de “vender”. Mais tarde, a partir da Consolidação das
Leis Penais de Vicente Piragibe (1932), o dispositivo passou a receber nova roupa-
gem. Agora, o artigo 159 passa por uma ampliação: aumento do número de núcleos
do tipo e passa a ter doze parágrafos; mudando ainda a nomenclatura de substân-
cias venenosas para substâncias entorpecentes4.
No trato do tema, inúmeras abordagens fazem referência ao Código de 1890 e
inclusive a conjuntos normativos mais antigos (como as Ordenações Filipinas)
como os primeiros diplomas normativos a criminalizarem as drogas no Brasil –
nesse sentido: Breve histórico das legislações referentes a drogas no Brasil (DAVID,
2018); Uma história política da criminalização das drogas no Brasil; a construção de
uma política nacional (CARVALHO, 2011); A Evolução Histórica da Política Cri-
minal e da Legislação Brasileira Sobre Drogas (RIBEIRO, 2016). Resta em aberto,
contudo, uma análise específica que confirme ou problematize a aparente continui-
dade das disposições contidas nessas legislações com os primeiros decretos relacio-
nados a drogas no Brasil, editados nas primeiras décadas do século XX.

Paragrapho unico. Si a substancia venenosa tiver qualidade entorpecente, como o opio e seus de-
rivados; cocaina e seus derivados: Pena: prisão cellular por um a quatro anos.
3. Art. 159. Expôr á venda, ou ministrar, substancias venenosas, sem legitima autorização e sem as
formalidades prescriptas nos regulamentos sanitarios: Pena - de multa de 200$ a 500$00.
4. Art. 159 – vender, ministrar, dar, trocar, ceder, ou de qualquer modo, proporcionar substâncias
entorpecentes; propor-se a qualquer desses atos sem as formalidades prescritas pelo Departa-
mento Nacional de Saúde Pública, induzir ou instigar por atos ou por palavras o uso de qualquer
dessas substâncias (BRASIL, 1932).
237
Ricardo Ávila Abraham · Carlos César Rodrigues
Vale registrar que a utilização do termo “drogas”, presente de forma genérica
neste trabalho, acompanha a atual legislação brasileira (artigo 1º, parágrafo único,
da Lei 11.343/2006) – com foco na prevenção do uso indevido, e no estabelecimen-
to de normas à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas –, que as con-
cebe como “as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim
especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Po-
der Executivo da União”5.
A questão terminológica é fundamento chave da pesquisa e não pode ser enca-
rada de forma alheia ao contexto histórico em que se insere. A utilização do termo
“drogas” enquanto sucessor de “substâncias venenosas”, “entorpecentes”, “psico-
trópicos”, “tóxicos”, “psicotóxicos”, dentre outros relativos ao proibicionismo de
uma determinada gama de substâncias tidas como ilícitas, serve para diferenciar os
períodos observados, porquanto é recomendável a “utilização de uma metalingua-
gem através da qual a compreensão e a tradução do discurso passado em nossa
cultura presente se tornem possíveis” (COSTA, 2010, p. 47).
A partir dessa perspectiva, o objetivo do trabalho reside em esclarecer se a utili-
zação do termo “substâncias venenosas”, bem como a repetição de núcleos do tipo,
os quais apresentam identidade nos diplomas jurídicos de 1890 e 1921, podem, na
perspectiva sincrônica de Reinhart Koselleck (2006), significar a continuidade de
uma política criminal de drogas no Brasil. Para este intento, serão levadas em con-
sideração fontes históricas, a partir da obra de juristas da época, as leis penais espar-
sas atinentes à matéria, além do material jornalístico retirado de fontes históricas
que indicam como nos jornais da primeira década de 1900 as chamadas substâncias
venenosas são citadas e, posteriormente a mudança desta conotação para as notí-
cias vinculadas às substâncias entorpecentes a partir da década de 1920.

5. Art. 1º Esta Lei institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve
medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes
de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de
drogas e define crimes.
Parágrafo único. Para fins desta Lei, consideram-se como drogas as substâncias ou os produtos
capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas
periodicamente pelo Poder Executivo da União (BRASIL, 2006).
238
Dos boticários aos traficantes
2. O Código Penal republicano (1890) e a criminalização de
boticários e farmacêuticos no mau exercício da profissão
Inicialmente, é preciso registrar que a análise do conceito de “substância vene-
nosa” será realizada por referencial metodológico de acordo com os respectivos
contextos históricos em que se sucederam. Um conceito não se desvenda em si
mesmo, mas se formula nas especificidades do tempo em que se insere, uma vez
que
Na exegese do texto, o interesse especial pelo emprego de conceitos político-sociais
e a análise de suas significações ganham (...) uma importância de caráter social e his-
tórico. Os momentos de duração, alteração e futuridade contidos em uma situação
política são apreendidos por sua realização no nível linguístico. Com isso (...) as si-
tuações sociais e respectivas alterações já são problematizadas no próprio instante
dessa realização linguística (KOSELLECK, p. 101).
Na mesma senda desse raciocínio, a busca pela compreensão de distintos signi-
ficados específicos de textos pertencentes a mundos passados, perdidos (COSTA,
2010, p. 48) e manifestamente voltados a diferentes contextos sociais visa a evitar
que um viés deslocado sobre os distintos momentos históricos ora trabalhados pos-
sa levar a deturpações na melhor compreensão do desenvolvimento da temática. O
contexto social abordado, que remete aos finais do século XIX e às primeiras déca-
das do século XX, é ponto de fechamento do tempo histórico deste trabalho.
A análise espaço-temporal do uso de um termo traduz significados lexicais em
uso no passado para a nossa compreensão atual (KOSELLECK, 2006, p. 104). No
câmbio das perspectivas sincrônica e diacrônica podem se tornar visíveis as disjun-
ções entre antigos significados lexicais, referentes a um fato ou circunstância não
mais existentes, assim como podem surgir novos significados da mesma palavra
(KOSELLECK, 2006, p. 114).
Os dois principais diplomas normativos nos quais se debruça o presente estudo
(Código Penal Republicano e Decreto nº 4.294/1914) utilizam-se da mesma termi-
nologia (“substâncias venenosas”) para indicar o que hoje, genericamente, pode-
mos entender como “drogas”. Apesar dos 31 anos que separam o Código do Decre-
to, a análise com base nos eixos sincrônicos e diacrônicos de Reinhart Koselleck
poderá situar a abrangência do conceito no dogmático-penal referente à legislação

239
Ricardo Ávila Abraham · Carlos César Rodrigues
proibicionista de drogas na história jurídica brasileira.
Definidas essas premissas teóricas iniciais, nada obstante os termos escolhidos
pelos legisladores (“substâncias venenosas”, “drogas” etc.), é fato que a criminali-
zação de condutas relacionadas a determinadas substâncias no Brasil provém das
Ordenações Filipinas e permanece até os dias de hoje. Na hipótese inicial de que tal
fato sugere a ideia de evolução de uma política criminal de drogas entre o Código
Penal de 1890 e os Decretos das primeiras décadas do século XX, a análise histori-
camente contextualizada deve apontar se houve efetivamente uma continuidade no
trato normativo do tema a partir das eminentes transformações sociais das épocas
estudadas.
Antes do Código Penal de 1890, diante da lacuna existente no diploma de 1830
(o Código Criminal do Império nada tratou acerca da proibição do uso ou do con-
sumo de “substâncias entorpecentes”) as Ordenações Filipinas (1603-1830) proibi-
am o porte de “materiais venenosos”, derivados de cogumelo e ópio, “salvo se for
Boticario examinado, e que tenha licença para ter Botica, e usar do Officio” (sic). As
penas eram de desapropriação do imóvel em que fossem encontrados os materiais
venenosos e o degredo para a África.6
O médico Alfredo Piragibe (1880, p. 13), que escreveu sobre a legislação sanitá-

6. Livro V. Título LXXXIX. Que ninguém tenha em sua casa rosalgar, nem o venda nem outro ma-
terial venenoso. Nenhuma pessoa tenha em sua caza para vender rosalgar branco, nem vermelho,
nem amarello, nem solimao, nem água delle, nem escamonéa, nem ópio, salvo se for Boticario
examinado, e que tenha licença para ter Botica, e usar do Officio. E qualquer outra pessoa que ti-
ver em sua caza algumas das ditas cousas para vender, perca toda sua fazenda, a metade para
nossa Camera, e a outra para quem o accusar, e seja degredado para Africa até nossa mercê. E a
mesma pena terá quem as ditas cousas trouxer de fora, e as vender a pessoas, que não forem Bo-
ticarios.1. E os Boticarios as não vendão, nem despendão, se não com Officiaes, que por razão de
seus Officios as hão mister, sendo porem Officiaes conhecidos per elles, e taes, de que se presu-
ma que as não darão à outras pessoas, E os ditos Officiaes as não darão, nem a venderão a ou-
trem, porque dando-as, e seguindo-se disso algum dano, haverão a pena que de Direito seja, se-
gundo o dano for. 2. E os Boticarios poderão metter em suas mezinhas os ditos materiaes, se-
gundo pelos Médicos, Cirurgiões, e Escriptores for mandada. E fazendo o contrario, ou venden-
do-os a outras pessoas, que não forem Officiaes conhecidos, pola primeira vez paguem cincoenta
cruzados, metade para quem accusar, e descobrir. E pela segunda haverão mais qualquer pena,
que houvermos por bem (sic).
240
Dos boticários aos traficantes
ria do Brasil Império, explica que a Lei de 30 de Agosto de 1828 aboliu os lugares do
“Provedor-Mór da Saúde” (art. 1º) e “Physico-Mór e Cirurgião-Mór do Império”
(art. 2°). Com essa medida, ficaram a cargo das Câmaras [Municipais] não somente
a inspeção sobre a saúde pública, mas também a criação do lugar de “Provedor-
Mór da Saúde” (art. 1°) e as visitas das boticas ou lojas de drogas. O Regulamento
de 29 de Setembro de 1851, por sua vez, determinou que a “Junta de Hygiene Pu-
blica”, criada um ano antes, fosse denominada “Junta Central de Hygiene Publica”
(sic), explicando o seguinte sobre a venda de substâncias venenosas:
As substancias venenosas, que só pudessem ser expostas á venda por boticários e
droguistas, não poderão ser vendidas senão aquelles delles que estivessem matricu-
lados (...) Para as vendas das substancias venenosas, do que trata o art. 68 [as subs-
tancias venenosas constantes da 1ª tabella a que se refere o Art. 79], haveria livro
próprio rubricado pelo Presidente da Junta Central de Hygiene Publica, ou pelos das
Commissões de Saúde Publica, ou pelos seus delegados, ou pelos Provedores de Sa-
úde Publica; cada vendedor teria o seu livro, no qual se lavraria um termo que seria
assignado pelo comprador, vendedor e duas testemunhas, fazendo-se nelle expressa
menção da qualidade e da quantidade da substancia vendida (art. 69) (sic) (PIRA-
GIBE, 1880, p. 31).
Mesmo antes do Código Penal Republicano, o manuseio de “venenos” medici-
nais, a despeito da ausência de previsão no Código de 1830, era questão corriqueira
nas questões sanitárias e regulamentada por decretos que visavam ao seu controle e
fiscalização entre os profissionais da saúde. O Regulamento previsto no Decreto nº
828, de 1851, tal qual comumente previsto nas mais diversas posturas municipais7,

7. A título de exemplo, o artigo 92, do Código de Posturas de 1847, da cidade de Santos/SP, previa:
“Art.º 92 Ninguem poderá ter casa ou armasem de drogas (não sendo boticario) sem uma licen-
ca especial, e mesmo com ella é prohibido vender em dóses pequenas substancias venenosas ou
de affeito perigoso, as quaes somente poderáo ser confiadas em porções avultadas á pessoas in-
suspeitas e livres. Os contraventores soffrerão 30$r.s de multa e o duplo na reincidência”. Dis-
ponível em: http://www.fundasantos.org.br/e107_files/public/50_anos_de_posturas_final.pdf.
Acesso em 20 nov. 2020. O artigo 40, das Posturas da Câmara Municipal da Cidade de Desterro
de 1832, previa: “Os vendedores de drogas, que sem serem Boticários aprovados, venderem do-
ses miúdas, substâncias venenosas, e suspeitas, ou remédios muito ativos, quer seja sem receita
de Professor, quer com ela; assim como os indivíduos que venderem a ditas substâncias em
grandes porções, ainda que Boticários sejam, a escravos e pessoas desconhecidas, suspeitas, de
241
Ricardo Ávila Abraham · Carlos César Rodrigues
consignava:
Art. 64. Os Boticarios devem ter e apresentar os seus diplomas, as Pharmacopeas em
uso, a lista dos Facultativos e a tabella das substancias venenosas, de que trata o Art.
79. Os droguistas, que venderem as substancias venenosas referidas na dita tabella,
devem te-la e apresenta-la, e a certidão das suas matriculas. Os que se negarem a isto
serão considerados como exercendo profissão sem titulo, e sujeitos ás penas do Art.
46.
[...]
Art. 79. A Junta Central formará huma tabella explicativa das substancias venenosas,
que só podem ser expostas á venda por Boticarios e droguistas, assim como outra
das mesmas substancias que podem ser empregadas nas artes e fabricas. Estas tabel-
las serão revistas todos os annos e organisadas de novo, quando for necessario fazer-
lhe alguma alteração. Tanto as tabellas primitivas, como as organisadas posterior-
mente, serão remettidas ás Commissões e aos Provedores para as distribuir pelos
Boticarios e droguistas, e faze-las publicar pela imprensa (BRASIL, 1851).
A primeira tabela a que se refere o artigo 79 do referido regulamento consta na
obra de Piragibe (1880). É um exaustivo compêndio de substâncias químicas, desde
as mais simples e conhecidas até outros venenos menos usuais. A Junta Central de
Hygiene de Saúde Pública, órgão criado para a fiscalização, dedicava substancial-
mente suas atenções à venda de substâncias venenosas nas boticas e drogarias, atra-
vés de boticários e farmacêuticos.
Já no final do Império, houve a preocupação da feitura de um novo Código Pe-

que não precisem delas no exercício de sua profissão sofrerão a multa de 5$000 a 20$000 réis
sem prejuízo das penas mais graves, que poderem sofrer das justiças criminais na conformidade
das Leis. Não serão porém sujeitos à multa aquelas Pessoas, que no lugar onde não houver Boti-
ca, venderem alguns remédios, já manipulados conservarão para uso de suas famílias”. Dispo-
nível em: https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/107520/319877.pdf. Acesso
em 20 nov. 2020. Em 05 de fevereiro de 1891, é publicado no Jornal Diário de Pernambuco o
Código de Posturas decretado pelo Governo do Estado de Pernambuco para o município de
Amaragy. O artigo 37 prevê: “O boticário que vender substâncias venenosas a menores e pesso-
as desconhecidas será multado em 20$000, além das penas em que ocorrer pelo mal que daí re-
sultar”. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=029033_07&
pesq=%22subst%C3%A2ncias%20venenos s%22&pagfis=2593. Acesso em 24 nov. 2020.
242
Dos boticários aos traficantes
nal. A incumbência da elaboração foi confiada pelo último ministro da Justiça do
Império, Cândido de Oliveira, a João Baptista Pereira. Mesmo após a proclamação
da República, o novo ministro da Justiça, Campos Sales, manteve a nomeação de
Baptista Pereira, e o projeto foi apresentado em 20 de setembro de 1890. Após o
trabalho de revisão do projeto, que começou em 29 de setembro de 1890, o novo
Código Penal foi promulgado em 11 de outubro de 1890 pelo governo provisório.
O Código 1890, que começou a ser elaborado durante a Monarquia, somente foi
promulgado na República, e teve a sua produção confiada a João Baptista Pereira.
Com o fim da escravidão e o início do desenvolvimento urbano era necessário,
também neste contexto, um “Código da República”. O Código de 1890, no entanto,
“não tinha o prestígio do Código de 1830” (SONTAG, 2014, p. 90) e assumiu como
função um maior controle social no período: “A forma ditatorial dos primeiros
anos da República (o governo provisório) permitiu que o código fosse aprovado
muito rapidamente, em consonância com a vontade do regime de dotar-se de um
código penal novo com aparências liberais” (SONTAG, 2014, p. 174).
O Código Penal da República (1890), ao tratar de “substâncias venenosas”, con-
tinha como núcleos do tipo os verbos “expor à venda” e “ministrar”. A dogmática,
neste ponto, já sugere as circunstâncias do crime e os agentes cujo tipo penal visava
a reprimir. “Ministrar” e “expor à venda” são condutas que exigem certo grau de
complexidade e apuração técnica, e denotam práticas comerciais. Os sujeitos de tais
condutas, regra geral, devem ter características peculiares, fato este que aponta
maus profissionais, no exercício de seu ofício – tal qual o previsto desde as Ordena-
ções Filipinas, passando pela referida Lei de 30 de Agosto de 1828 e Decreto nº 828,
de 1851, até a Proclamação da República –, como sujeitos passivos de crimes relaci-
onados a drogas. Sobre o tratamento do tema no Código Penal de 1890, Baptista
Pereira limita-se a dizer, sem maiores comentários, que foram introduzidas no cor-
po da legislação penal novas figuras delituosas como os crimes contra a saúde pú-
blica (arts. 156 a 164) (PEREIRA, 1899, p. 231).
Muito distante da atual e sistemática discussão acerca do delito de tráfico de
drogas, responsável máximo pelo encarceramento em massa8 e altos índices de

8. Os dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – INFOPEN 2017 dispõem


que o crime de tráfico de drogas é o mais praticado entre os presos e presas no Brasil, ligado a
243
Ricardo Ávila Abraham · Carlos César Rodrigues
violência no Brasil, o enquadramento penal sobre “substâncias venenosas” em idos
do século XIX não merecia aprofundadas análises dos especialistas da época. No
Código Penal Republicano, os crimes contra a saúde pública estão dispostos entre
os artigos 156 e 164, com tipos penais referentes a exercício ilegal de medicina, es-
piritismo e magia, envenenamento de fontes públicas e particulares, etc.
O que se percebe é que, neste contexto, não há, por parte da doutrina, qualquer
atenção especial ao delito do artigo 159 do Código Penal de 1890, que criminalizava
as condutas relacionadas às substâncias venenosas:
O art. [159] apresenta duas modalidades: expor a venda é — vender, fazer commer-
cío de substancias venenosas sem legitima autorização e sem as formalidades pres-
criptas nos regulamentos sanitarios. Ministrar substancias venenosas, etc, significa -
fornecer simplesmente, ou dar a beber. Parece que na primeira modalidade o legisla-
dor refere-se ao commercio de venenos, que é excluído da segunda. Assim, a inter-
pretação seria esta: Fornecer substancias venenosas, sejam ou não vendidas, é crime,
salvo se houver legitima autorização e se forem preenchidas as formalidades pres-
criptas nos regulamentos sanitários. Por autorização legitima - deve-se entender a
da autoridade competente (sic) (SOARES, 1910, p. 330).
O sintético comentário do dispositivo menciona “commercio de venenos” e
“dar a beber”, o que ilustra as possibilidades concretas de incidência, à época, do
crime em comento: o artigo 159 do Código Penal de 1890, com efeito, era direcio-
nado a profissionais, “pharmaceuticos” e “boticários” (sic), que agiam criminosa-
mente no exercício de suas profissões. Era uma clara continuidade ao que se previa
como crime voltados à manipulação de substâncias por profissionais da saúde des-
de o período das ordenações, na perceptível a ausência de liame claro entre as pro-
priedades terapêuticas e maléficas das substâncias.
Datado de 11 de agosto de 1891, um trecho da Gazeta de Notícias apresenta o
anti-inflamatório à base de salsaparrilha com um diferencial perante os demais –
não contém substâncias venenosas:
Na pratica da medicina empregam-se todos os venonos activos e todos eles encur-

um quarto dos presos masculinos e mais da metade das população carcerária feminina. Disponí-
vel em http://depen.gov.br/DEPEN/noticias-1/noticias/infopen-levantamento-nacional-de-
informacoes-penitenciarias-2016/relatorio_2016_22111.pdf
244
Dos boticários aos traficantes
tam irremessivelmente a vida. A Salsaparrilha de Bristol é realmente uma das poucas
preparações medicinaes, quase podem considerar, como um remédio puramente
vegetal. Não contém um só grão que seja de mercúrio, arsênico, strichnina, bromo,
iodo, nem nenhuma outra substancia venenosa, que seja. E demais, um antídoto
contra os mesmos e cura as enfermidades produzidas por elles mesmos. O melhor
quo estes sabem fazer é matar uma enfermidade, substituindo-a por outra; porém a
Salsaparrilha de Bristol obra de accôrdo com a natureza e não contra ella, destruin-
do para sempre, com o sou effeito neutralisador, as causas das moléstias ulcerosas,
cancerosas e eruptíveis, regulando o fígado e o estômago, dando força e vigor ao
ventre, limpando o systema do todos os elementos mórbidos, restabelecendo o vigor
corporeo o a elasticidade montal, e robustecendo cada orgão debilitado. Tanto as
crianças como as senhoras, as mais delicadas, a podem tomar, sem susto algum. É a
“ancora da vida” dos fracos. Vende-se em todas as principaes lojas (GAZETA DE
NOTÍCIAS, 1891, p. 3).
Outros anúncios, como o descrito no Jornal Correio da Manhã de 21 de março
de 1909 (p. 06), sobre o sabão Aristolino, aprovado e licenciado pela Diretoria Ge-
ral de Saúde Pública, demonstravam a preocupação com o uso de venenos, encara-
dos como qualquer substância que de algum modo provocasse males à saúde. Con-
forme o referido anúncio, o sabão Aristolino, antisséptico, cicatrizante, antiparasi-
tário, dentre outras benesses medicinais, tinha composição livre de “substância
venenosa” e irritante. Na propaganda, alguns pequenos relatos de pessoas que su-
postamente usaram o sabão vêm logo abaixo ao anúncio, como o professor Dr. E.
Chapot Prevost, da Faculdade de Medicina, e do redator-chefe do Correio da Ma-
nhã, Dr. Edmundo Bittecourt, possivelmente como forma de legitimar o uso do
produto de responsabilidade do farmacêutico Oliveira Júnior.
É facilmente perceptível, portanto, que o uso de “venenos” era a prática da me-
dicina da época, e por tal razão o Código Penal Republicano, no artigo 159, voltava-
se aos profissionais da saúde envoltos em práticas delituosas. Acerca do referido
dispositivo, registrou João Vieira de Araújo (1901, p. 196):
O nosso cod. pen. arts. 159, 160, 163 e 164 do texto comprehende a espécie; mas,
além de muito casuistico, a envolve com sancções relativas ao abuso da arte phar-
maceutica, objecto que deve ser de leis e regulamentos especiaes (sic).
A expressa menção “sancções relativas ao abuso da arte farmacêutica” (sic), uti-

245
Ricardo Ávila Abraham · Carlos César Rodrigues
lizada por Araújo, comprova que a criminalização se voltava precipuamente a pro-
fissionais que em seu ofício corriqueiramente manipulavam substâncias venenosas
e delas faziam mau uso. A doutrina mostra que há menção e direcionamento do
tipo penal a específicas pessoas – maus profissionais. Não havia sequer esboço de
previsão de criminalização da conduta de portar/adquirir substâncias venenosas
para consumo pessoal.
Ainda sobre a sanção cominada ao disposto no artigo 159 do Código Penal de
1890, verifica-se que essencialmente a multa é a medida imposta. Antônio José da
Costa e Silva (1938, p. 211) acrescenta que a pena de multa “se recomenda princi-
palmente nos crimes que têm ou costumam ter como motivo gerador a cupidez, o
ânimo de lucro, o interesse patrimonial”. Assim, nos crimes de menor gravidade,
“a multa constitui o meio mais adequado de repressão. Não humilha ou rebaixa. É
extremamente divisível e absolutamente reparável” (COSTA E SILVA, 1938, p
211). Como o crime do artigo 159 do Código Penal de 1890 era considerado de
menor importância, a pena imposto também foi à sua justa medida.
É claramente perceptível que desde as Ordenações Filipinas, passando por leis
esparsas, decretos e posturas municipais, até o Código Penal Republicano, de 1890,
há nítido direcionamento de abordagem dogmática a agentes que lidavam em sua
corriqueira prática profissional com “substâncias venenosas”. A criminalização
referente às referidas substâncias, portanto, era focada em profissionais da saúde no
(ab)uso de suas técnicas especializadas e, portanto, no exercício criminoso de seus
ofícios.

3. Recepção dos tratados internacionais, criminalização de


contraventores e o início da política criminal de drogas brasileira
Passadas duas décadas da publicação do Código Penal da República, a Conven-
ção de Xangai (1909) e principalmente a International Opium Convention, realiza-
da na Haia, entre o fim de 1911 e o início de 19129, trouxeram como novidade uma

9. Segundo texto publicado no centenário da Convenção de 1912, o Escritório das Nações Unidas
sobre Drogas e Crime informa que antes da adoção da Convenção o mundo presenciava uma si-
tuação crítica em relação às drogas. Na maioria dos países, o comércio de drogas não havia sido
regulado e o abuso de substâncias era generalizado. Nos Estados Unidos da América, por exem-
246
Dos boticários aos traficantes
severa abordagem à questão das drogas, num contexto global que envolveu direta e
indiretamente diversos países do globo. Na Convenção da Haia10 debateu-se a te-
mática do abuso de drogas, especialmente o ópio e a morfina, o que hoje se encara
como o início de uma caminhada proibicionista num contexto mundialmente insti-
tucionalizado.
A adesão do Brasil (que não teve representantes diplomáticos no evento) deu-se
pouco após a Convenção e mereceu expressa menção na mensagem do Presidente
Hermes da Fonseca ao Congresso Nacional, na abertura da sessão legislativa do
Congresso Nacional, em 4 de maio de 191311. De fato, no início da segunda década
do século XX, o consumo abusivo de drogas era considerado um emergente pro-
blema social e começava a surgir a crença no recrudescimento penal como forma de
prevenção:
Ainda recentemente, em 1906, o imperador da China fez publicar um edito pelo
qual o consumo do opio devia estar abolido no seu Imperio, dentro de dez annos.
Os outros deviam ir diminuindo aos poucos o uso.
Ninguem acreditou que a nova lei pudesse dar bons resultados. Não passaria, de cer-
to, de mais uma tentativa platonica do Imperador da China, que se diz “pai e mãe do
seu povo”. Entretanto, com grande surpresa, logo se viu que o povo tinha boa von-
tade na execução da lei, a qual satisfazia a um movimento da opinião publica, con-
trario ao apoio. Os fumantes abandonaram os seus cachimbos, suspendendo-os ás
portas das casas, como prova de submissão ao Imperador (sic) (COLLAR, 1912, p.
07).

plo, em torno de 90% do consumo de drogas na época destinava-se a propósitos não médicos.
Na China, estima-se que a quantidade de opiáceos consumidos cada ano, no início do século XX,
correspondesse a mais de 3.000 toneladas em equivalentes de morfina – número significativa-
mente maior do que o do consumo global (tanto lícito, quanto ilícito) cem anos depois.
10. Além dos Decretos nº 2.861/1914 e nº 4.294/1921, trabalhados nesta obra, o Decreto nº
2.994/1938 e o Decreto Legislativo nº 18/1948 tratavam sobre a repressão ao tráfico de drogas
com expressa menção à Convenção de Haia da 1912.
11. Mensagem apresentada ao Congresso Nacional na abertura da segunda sessão da oitava legisla-
tura pelo presidente da República Marechal Hermes Rodrigues da Fonseca. Disponível em:
http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/presidencia/ex-presidentes/hermes-
fonseca/mensagens-ao-congresso/mensagem-ao-congresso-nacional-na-abertura-da-terceira-
sessao-da-oitava-legislatura-1914/view. Acesso em: 25 out. 2020.
247
Ricardo Ávila Abraham · Carlos César Rodrigues
Com base nesse ideal, internacionalmente adotado, de frear o consumo recreati-
vo de drogas, no Brasil, em 1914 foi editado o primeiro Decreto atinente ao tema,
que apresentava uma abordagem significativamente diferente das disposições cri-
minalizadoras previstas até o Código Penal de 1890:
DECRETO Nº 2.861, DE 8 DE JULHO DE 1914
Approva as medidas tendentes a impedir o abuso crescente do opio, da morphina e
seus derivados, bem como da cocaina, constantes das resoluções approvadas pela
Conferencia Internacional de Opio, realizada em I de Dezembro de 1911 em Haya.
O Presidente da Republica dos Estados Unidos do Brasil: Faço saber que o Congres-
so Nacional decretou e eu sancciono a Resolução seguinte:
Artigo unico. Ficam approvadas para produzirem todos os seus effeitos no territorio
nacional as medidas tendentes a impedir os abusos crescentes do opio, da morphina
e seus derivados, bem como da cocaina, constantes das resoluções approvadas pela
Conferencia Internacional do Opio realizada em 1 de Dezembro de 1911 em Haya, e
cujo protocollo foi assignado pelo representante do Brasil na mesma Conferencia;
revogadas as disposições em contrario (sic) (BRASIL, 1914).
Conforme Nilo Batista (1997, p. 07), passava a ser paulatinamente implantado
no país um modelo sanitário de controle de drogas, no qual o centro das ações esta-
va nos consumidores, em nítido modelo de higienização social como contrapartida
ao (ab)uso cada vez mais contundente de cocaína, ópio e morfina.
Nada obstante a novel abordagem do tema, com o alinhamento às novas previ-
sões normativas internacionais, o artigo 159, do Código Penal de 1890, apesar do
obstáculo após o recrudescimento amplamente adotado ao redor do globo, perma-
neceu em vigor até a edição do Decreto nº 4.294, em 1921, o qual passou a estabele-
cer:
DECRETO Nº 4.294, DE 6 DE JULHO DE 1921
Estabelece penalidades para os contraventores na venda de cocaina, opio, morphina
e seus derivados; crêa um estabelecimento especial para internação dos intoxicados
pelo alcool ou substancias venenosas; estabelece as fórmas de processo e julgamento
e manda abrir os creditos necessários [...] (sic) (BRASIL, 1921).
Trinta e um anos depois, portanto, com a revogação do artigo 159, do Código

248
Dos boticários aos traficantes
Penal de 1890, o novo texto normativo apresentava claramente seu campo de atua-
ção: “combate aos contraventores na venda de cocaina, opio, morphina e seus deri-
vados” (sic), sem prejuízo da criação de “estabelecimento especial para internação
dos intoxicados pelo alcool ou substancias venenosas” (sic), em atenção ao ideal
sanitário/higienista em vigência.
No artigo 1º, proibiam-se as condutas de “vender”, “expôr á venda” ou “minis-
trar substancias venenosas” sem legítima autorização e sem formalidades prescritas
nos ordenamentos sanitários, com pena de multa. Se a substância venenosa tivesse
qualidade entorpecente, como ópio, cocaína e derivados, além da multa, havia pre-
visão de prisão de um a quatro anos (art. 1º, parágrafo único). Eram criminalizadas,
além disso, as condutas de “apresentar-se em estado de embriaguez” (art. 2º) e
“embriagar-se por hábito” (art. 3º). Foi criada previsão especial para os “toxicôma-
nos”, que incluía internação voluntária e judicial (art. 6º). Além disso, no art. 7º e
seguintes, foram definidas regras processuais e procedimentais próprias, que trata-
vam, entre outros temas, de competência e regras de instrução processual.
A despeito da novidade legislativa, com tantas previsões inéditas claramente ali-
nhadas a uma preocupação global do avanço das drogas, entre os artigos 159, do
Código Penal de 1890, e o artigo 1º, do Decreto nº 4.294/1914, havia identidades
terminológicas e dogmáticas: i) ambos criminalizavam condutas relacionadas às
chamadas “substâncias venenosas”; ii) ambos previam como núcleos do tipo “mi-
nistrar” e “expôr á venda” tais substâncias (o Decreto de 1914 apenas acresceu co-
mo criminoso o ato de “vender”).
Apesar das aparentes similitudes, contudo, o contraste entre o texto de 1890 e o
de 1921 escapa à limitadora moldura terminológica e dogmática praticamente idên-
tica em ambos. Ao passo que o diploma do século XIX busca criminalizar crimes
praticados, essencialmente, no mau exercício profissional de boticários e farmacêu-
ticos, o Decreto de 1921 tutela uma iminente questão social, com amparo nas con-
venções internacionais e num rearranjo da legislação criminal de drogas. O Decreto
nº 4.294/1921 visava à criminalização de sujeitos voltados especificamente à trafi-
cância de “substâncias venenosas”, com especial recrudescimento das “entorpecen-
tes”, como morfina, ópio e cocaína, e previa aparato estrutural voltado aos consu-
midores (estabelecimento especial para internação dos intoxicados por álcool ou
“substancias venenosas”), além de disposições processuais específicas dos contra-
249
Ricardo Ávila Abraham · Carlos César Rodrigues
ventores.
A guinada no espectro de persecução criminal, voltado a contraventores especí-
ficos e não mais a boticários e farmacêuticos, é perceptível em matérias jornalísticas
tais quais à d’O Jornal:
VENDEDORES DE COCAINA
A condenação dos acusados
Henrique Marques, vulgo "Gato Preto", foi processado por ter, no dia 17 do março
do corrente anno, cerca de 22 horas, vendido a Rosa da Conceição um vidro do co-
caína, tendo contratado idêntica venda com Maria Nazareth, ambas residentes da
rua Moraes e Valle n. 20.
Acontece, porém, que "Gato Preto" adquirira este toxico do Miguel Affonso Corrêa,
estabelecido com drogaria á rua dos Andradas n. 5, razão pela qual foi tambem de-
nunciado.
Corridos todos os tramites legaes do processo, os autos foram concluidos ao juiz da
8ª Vara Criminal, que, por sentença de hontem, condenou os accusados a 2 annos e
meio de prisão, como incursos no grão medio do art. 1º, paragrapho único da lei n.
4.294, de 6 de julho de 1921.
A defesa appellou da sentença paara a Côrte de Appellação (sic) (O JORNAL, 1924,
p. 6)
Para enfatizar a importância da novidade legislativa, o jornal A República, de
Curitiba, publicou o edital com a notícia em três oportunidades (17, 18 e 28 de ou-
tubro de 1921) sobre o Decreto nº 4.294/1921, suas proibições e sanções:
Edital
De ordem do Exmo. Sr. Dr. Chefe de Polícia, faço publico que fica expressamente
prohibida a venda de cocaína, opio, morphina e seus derivados, tóxicos esses a que
se referem os arts. 1º e 2º do Decreto Federal n. 4294 de 06 de julho ultimo, pulicado
no Diario Oficial da União de 13 do mesmo mez que revogando o Art. 159 do Codi-
go Penal estabelece novas penalidades aos infractores do citado Decreto que incerra-
rão na pena de um a quatro anos de prisão cellular. Dado e passado nesta Cidade de
Curityba e na Secretaria da Repartição Central de Polícia (...) (sic) (A REPUBLICA,
1921).

250
Dos boticários aos traficantes
Como se pode verificar nos excertos, os jornais traziam tanto as notícias referen-
tes às contravenções, expondo os vendedores e usuários, quanto as informações
acerca das ilegalidades prescritas no decreto então vigente. É evidente, neste ínte-
rim, que o Decreto nº 4.294/21 passou a refletir mudanças estruturais que iam além
da simples previsão normativa e enveredavam-se por aspectos processuais, penais
e, em essência, sociais.
Os dispositivos penais dos diplomas de 1890 e 1921 são diametralmente distin-
tos, a despeito das aparentes continuidades terminológica e dogmática (manuten-
ção do termo “substancias venenosas” e de núcleos do tipo penal): alteram-se os
sujeitos passivos (maus profissionais/contraventores); situam-se novos sujeitos
envolvidos socialmente na questão (pacientes e esporádicos usuários de substâncias
venenosas/toxicômanos e intoxicados por álcool); alteram-se, em essência, os pró-
prios meios de repressão e aparatos de Estado. Conforme Galdino Siqueira:
Pelo Decr. n. 4.294, de 6 de julho de 1921 se procurou sanar as lacunas do código,
especialmente quanto ao commercio de substancias venenosas, mormente de quali-
dades cinalgesicas, anesthesicas ou estuporantes, cujo uso abusivo e funestos effeitos
reclamavam imperiosamente meios efficazes, a bem dos interesses sociaes.
Pelo Decr. n. 4.294, de 6 de jullio de 1921, se procurou sanar as cimento (sic) especi-
al, com tratamento médico e regimen de trabalho, para os intoxicados pelo álcool e
outros venenos no Districto Federal, instituto reclamado como de relevante necessi-
dade (sic) (SIQUEIRA, 1932, p. 171).
O fato de “sanar as lacunas do código” deixa nítida a transformação na aborda-
gem do tema. As “substancias venenosas”, em essência, não são mais as mesmas. A
partir da Convenção da Haia, as substâncias passaram a ser listadas em abrangência
muito maior pelo Poder Executivo, o qual completava a norma penal em branco
(Decreto nº 4.294/21) através de regulamentos sanitários.
A limitada abrangência da aplicação do novo decreto, contudo, não escapou de
críticas de Sá Freire, presidente da Liga Brasileira de Hygiene Mental, além de ad-
vogado e presidente do Instituto dos Advogados, que declarou em 1926:
Procura-se reprimir os efeitos dos tóxicos e suggere-se a restricção da capacidade
pelas curatelas limitadas, hospitaes que afastam os intoxicados do meio em que ad-
quiriram os vicios, e, entretanto, consente-se a permanência das causas de ordem

251
Ricardo Ávila Abraham · Carlos César Rodrigues
geral. Merecem apoio taes providencias, que considero úteis e indispensáveis, mas
não chego a entender como os que as defendem não procuram radicalmente extir-
par o mal, evitando o crescimento da hospedagem dos asylos e hospitaos e diminui-
ção das interdicções completas ou limitadas.
Já ouvi dizer que o numero dos toxicômanos tem aumentado depois do decreto
4.294, de 6 de julho de 1921.
O argumento visa combater a conclusão que apresentei á Liga, a propósito das inici-
ativas do Estado no combate ao alcoolismo.
Sem estatísticas que confirmem ou neguem o asserto, toda a discussão seria inútil;
nelle se descobre, entretanto, o desejo manifesto de quantos visam reproduzir os
mesmos processos, que os paizes produtores do álcool applicam no combate á lei
secca. É forçoso, todavia, reconhecer que maiores teriam sido o desenvolvimento e
generalização do vicio, se não fora promulgada a lei de 1921.
O decreto legislativo alcançaria mais efficientes resultados se a autoridade pública
cuidasse com mais zelo da sua aplicação (sic) (O JORNAL, 1926, p. 3)
A avaliação dos aparatos criados a partir de 1921, a utilização de hospitais e asi-
los para os toxicômanos e o reconhecimento da importância do Decreto nº 4.294
demonstra a mudança de enfoque: a criminalização de manipulações técnicas de
boticários e farmacêuticos transgressores deu lugar à verdadeira criminalização dos
contraventores de tóxicos, a partir da persecução penal de incipientes delitos de rua
praticados por pessoas de classe baixa:
O regulamento baixado pelo Decr. n. 14.969, de 3 de setembro de 1921, elaborado
pelo autor deste livro, com a cooperação de eminentes scientistas, por incumbência
do Governo, se occupou o mais minuciosamente possível de assegurar o alvo visado
pelo legislador, provendo sobre a entrada no paiz das substancias tóxicas, penalida-
des impostas aos contraventores, sanatório para toxicômanos e outros pontos. Co-
mo bem salientou no Senado, o autor do projecto, depois modificado e convertido
no citado Decr. n. 4.294, o uso e abuso da cocaina e outros tóxicos inebriantes vinha
progredindo entre nós assustadoramente, com resultados terríficos. As nossas casas
de alienados se enchiam, e o calculo de competentes atribuia uma porcentagem qua-
si absoluta dos casos nellas existentes ao uso da cocaina, da morphina e do opoio.
Os jornaes noticiavam quasi que diariamente suicídios, assassinatos, crimes de toda
a ordem, commettidos por infelizes, que se entregavam a taes vicios e que nelles se
252
Dos boticários aos traficantes
conservavam pela facilidade que as nossas leis lhes facultavam. Não raro era a socie-
dade dos nossos centros mais cultos e mais populosas escandalisada por scenas que
attentavam contra a moral publica e que se attribuiam ao uso de taes tóxicos. Havia,
pois, necessidade de prover energicamente sobre o caso, por medidas preventivas e
repressivas, já que as existentes, de ordem repressiva especialmente, consistentes no
art. 159 do cod. penal e em disposições do Decr. n. 5.186, de 1904, eram obsoletas,
porque o apparecimento e o desenvolvimento desses vicios entre nós eram de data
posterior. Além disso importava no cumprimento de uma obrigação internacional,
assumida pelo Brazil, na Convenção reunida em Haya, em 23 de janeiro de 1912, ahi
se deliberando que fossem tomadas, pelas potências que nella tomaram parte, medi-
das tendentes a prohibir em seu commercio qualquer cessão de morphina, cocaina e
seus respectivos saes a todas as pessoas não autorisadas, cogitando da possibilidade
de additar leis ou regulamentos, tornando passível de penas a posse illegal do ópio
bruto, do ópio preparado, da morphina, da cocaina e de seus respectivos saes (sic)
(grifo nosso) (SIQUEIRA, 1932, p. 171-172).
A mudança na abordagem ao comércio de substâncias tóxicas começa a apare-
cer de maneira mais visível na década de 1930. O Jornal do Commercio, em 25 de
abril de 1930, anuncia a prisão de uma quadrilha de estrangeiros vendedores de
tóxicos. Também noticia o mesmo jornal, em 14 de junho de 1930, que dois ho-
mens abusaram do uso de cocaína, tiveram que ser socorridos pela Assistencia e
posteriormente tiveram que se apresentar na 4ª Delegacia Auxiliar do Rio de Janei-
ro.12
Na mesma época, sobreveio o Decreto nº 20.930/32 (que revogou o art. 1º do
Decreto nº 4.294/21). Foi esta a primeira regulamentação a utilizar a expressão
“tráfico de substâncias tóxicas entorpecentes” – no primeiro artigo há um rol de
substâncias tóxicas de natureza analgésicas ou entorpecentes, com a atualização da
tabela sob incumbência do Departamento Nacional de Saúde Pública. Além disso,
no seu artigo 55, o decreto prescreve que o “Departamento Nacional de Saúde Pú-
blica organizará a lista dos indivíduos implicados no tráfico das substâncias a que se

12. Várias outras notícias sobre entorpecentes aparecem no Jornal do Commercio como se pode
verificar através da consulta virtual na Hemeroteca Digital Brasileira.
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=364568_12&pesq=entorpecente&pasta
=ano%20193&pagfis=3163. Acesso em 24 nov. 2020.
253
Ricardo Ávila Abraham · Carlos César Rodrigues
refere este decreto” (BRASIL, 1932). A previsão, segundo Magalhães Noronha
(1962, p. 70) vai ao encontro das solicitações do Comitê Central Permanente da
Liga das Nações.
Ainda em 1932, por meio do Decreto nº 22.213 foi aprovada a Consolidação das
Leis Penais, de autoria de Vicente Piragibe13. Nele, pode-se notar ainda mais enfo-
que à questão das agora chamadas “substâncias entorpecentes”, no artigo 159. Pri-
meiramente, constata-se um aumento dos núcleos do tipo penal, abrangendo novas
condutas: “vender, ministrar, dar, trocar, ceder, proporcionar substância entorpe-
cente” (BRASIL, 1932). Além disso, foram inseridos três subitens, com previsões
especiais para os acusados que exerciam profissão ou arte que tenha servido para a
prática da infração: o farmacêutico; o médico; ou cirurgião dentista. Por fim, no
mesmo dispositivo estão dispostos doze parágrafos, entre os quais chama a atenção
o 11º, que criminaliza tal qual os próprios autores do crime “o entregador ou qual-
quer outra pessoa cuja participação no trafico de substancias alludidas se verificar
pelo modo previsto no artigo 18, § 3º, e incorrem nas mesmas penas como cumpli-
ces (...) pelo modo previsto no art. 21, § 1º (sic) (BRASIL 1932)”14.
Dois anos depois, o Decreto nº 24.505/1934 modificou oito artigos do Decreto
nº 20.930/32, e em seu artigo 1º, ao se referir à lista de substâncias entorpecentes

13. Explica Ricardo Sontag (2014, p. 151) que em 1932 o Brasil se encontrava sob o governo provi-
sório de Getúlio Vargas – dois anos depois da “Revolução de 1930”. Apesar de não mudar o di-
reito penal vigente, oficializar a consolidação serviria como “demonstração da atenção do go-
verno às questões jurídicas, a atenção do governo às necessidades dos práticos do foro”. O go-
verno poderia adquirir simpatia com atos desta natureza. “Não era um grandíssimo feito, mas,
de qualquer forma, era muito fácil de executar, especialmente em um contexto de ausência de
um Parlamento, e, além disso, custava pouquíssimo”. A Consolidação Piragibe já era conhecida
no foro antes mesmo de ser oficializada. “Os operadores práticos do direito já conheciam a sua
utilidade, e, por isso, já era uma obra prestigiada. Ainda que a oficialização não mudasse muita
coisa para quem já a utilizava – talvez mudasse a técnica de citação dos dispositivos legais, mas
eles continuariam a ser procurados na Consolidação, mesmo sendo privada –, o prestígio que ela
tinha entre os práticos certamente pesava”. Vicente Piragibe era desembargador, por isso tam-
bém muito mais ligado, da perspectiva das relações profissionais, à prática dos tribunais.
14. Artigo 18. São autores: [...] § 3º - Os que, antes e durante a execução, prestem auxílio, sem o
qual o crime não seria cometido. [...] Artigo 21. Serão cumplices: § 1º Os que, não tendo resol-
vido ou provocado de qualquer modo o crime, fornecerem instruções para cometê-los e presta-
rem auxílio à sua execução.
254
Dos boticários aos traficantes
atualizadas pelo Departamento Nacional de Saúde Pública, deu ênfase “aquellas
que tiverem acção entorpecente semelhante e as especialidades pharmaceuticas que
se prestarem á toxicomania” (sic) (BRASIL, 1934). Em 1938, durante o Estado No-
vo, o Decreto nº 891 de 25 de novembro, apresentou recrudescimento ainda maior
do tema, inclusive com a inédita criminalização de usuários de drogas. O jornal A
Noite, em 1939, noticiou:
Contrabando de 120 contos de toxicos!
Sensacional diligencia da policia paulistana – A maior apreensão já realizada no
país – O acusado nega que tenha cumplices – Detido outro suspeito, em Santos.
A policia acaba de efetuar sensacional prisão, a do indivíduo José Joaquim de Souza,
perigoso traficante de toxicos. A diligencia, coroada de exito, se déu numa venda da
Estrada do Mar, marco 10. Em poder de Souza foram apreendidas 625 gramas de
heroína e 14 de cocaína, avaliado tudo em 120 contos de réis. Essa é a maior apreen-
são de toxicos que já se verificou no país. José Joaquim, apesar de habilmente inter-
rogado, nada quis confessar relativamente á existencia de cumplices na venda do
veneno branco. Em Santos, entretanto, foi detido para averiguações o indivíduo Ja-
como Ratimann, o qual foi conduzido para o Gabinente de Investigações, onde está
sendo interrogado á hora em que telegrafamos. (A NOITE, 1939, p. 5/6)
A ênfase da notícia, estampada com a fotografia do contraventor, a menção a
cúmplices e o valor dos tóxicos deixam claro o aumento da repressão, que vivia seu
ápice durante o regime de exceção de Vargas.
Os mencionados decretos da década de 1930, que culminaram com a criminali-
zação do “comércio clandestino ou facilitação do uso de entorpecentes” descrita no
art. 281 do Código Penal de 1940, são a linha mestra do incremento da opção proi-
bicionista que se iniciou a partir do Decreto nº 4.292/1921 – o que demonstra total
desalinho com as propostas do Código Penal de 1890 e das Ordenações Filipinas,
fora de qualquer contexto de política criminal de drogas.
A partir da segunda década do século XX teve início, no Brasil, uma política
criminal de drogas – nada obstante a aparente similitude entre o artigo 1º, do De-
creto nº 4.294/1921, e o artigo 159, do Código de 1890. Para sustentar esta afirma-
ção, deve-se estabelecer a expressão “política criminal” como uma verdadeira polí-
tica de transformação social e institucional (BARATTA, 2002, p. 201). Tal concep-

255
Ricardo Ávila Abraham · Carlos César Rodrigues
ção, por certo, se mostra mais exigente do que a política criminal positivista, redu-
zida à função “conselheira da sanção penal” (BATISTA, 2011, p. 34), “pariente
pobre” (SZABÓ, 1980, p. 169) da política social, marcadamente associada à figura
estigmatizada do criminoso oriundo da interação entre o sistema penal e as agên-
cias de controle informal (ANDRADE, 2016, p. 114), numa limitada escolha epis-
temológica.
A partir dessa análise, percebe-se que a preocupação com o avanço do uso e co-
mércio de drogas, a solução higienista, própria do início do século XX, o aumento
da abrangência das drogas (classificação de “entorpecentes”), o alinhamento inter-
nacional às Convenções de Xangai e da Haia e os distintos contextos sociais de apli-
cação são a comprovação de que as previsões do Código Penal de 1890 e do Decreto
de 1921 apresentam manifesta ruptura na persecução criminal de drogas no Brasil.

4. Conclusão
O Código Penal de 1890 e o Decreto nº 4.294/21 abarcam a criminalização de
condutas que atentam contra a saúde pública. Ambos os diplomas normativos pos-
suem dispositivo especialmente voltado a práticas delituosas relacionadas a subs-
tâncias venenosas. A partir dessa premissa, na repetição da expressão “substâncias
venenosas” e manutenção de núcleos dos tipos penais urge a hipótese de que ambos
os textos apresentam um aparente continuísmo no manuseio do tema.
O comentário de Oscar Macedo de Soares (1910), principalmente nos pontos
em que menciona “commercio de venenos” e dá especial atenção ao núcleo do tipo
“dar a beber”, apresenta indícios de que, diferentemente dos Decretos que o suce-
deram, o artigo 159 do Código Penal de 1890 era precipuamente direcionado a
profissionais como farmacêuticos e boticários em indesejável (e criminoso) exercí-
cio de seu ofício. A expressa menção a “sancções relativas ao abuso da arte pharma-
ceutica”, formulada por João Vieira de Araújo (1901), demonstra, no mesmo senti-
do, que o tipo previsto no Código Penal de 1890 voltava-se a profissionais que lida-
vam corriqueiramente com as “substâncias venenosas”.
Na International Opium Convention, realizada na Haia, no ano de 1912, deba-
teu-se a temática do abuso de drogas, especialmente em relação ao ópio e à morfina.
Os debates e os acordos caracterizaram o início de uma política criminal de drogas
256
Dos boticários aos traficantes
num contexto global. O Brasil alinhou-se a tal posicionamento por meio de Decreto
datado de 1914, no entanto, apenas o Decreto nº 4.294/21 revogou o artigo 159, do
Código Penal de 1890, nada obstante manter a utilização do termo “substâncias
venenosas”.
As fontes históricas dão conta de situar no contexto político e social pelo qual o
uso de drogas, a partir dos anos 1910, passou a ser tratado como um problema gra-
ve, o qual merecia especial atenção do Estado e rigoroso tratamento da esfera cri-
minal, tal qual vinha a ocorrer na China. O contraste entre os textos de 1890 e de
1921, por sua vez, é notório. O texto do século XIX, de importância notadamente
reduzida entre os especialistas, criminalizava condutas praticadas no mau exercício
da profissão. O Decreto de 1921, por sua vez, amparado na repercussão e nas obri-
gações advindas da Convenção de Xangai e da Haia, criminalizava legítimos con-
traventores, traficantes de drogas, e protegia “intoxicados” e “toxicômanos”, em
iminente questão social surgia a partir do abuso de substâncias como o álcool, a
morfina, a cocaína e o ópio.
Galdino Siqueira (1932) observou que o diploma de 1921 sanou as lacunas do
Código Penal de 1890, em nítida transformação da abordagem do tema. Além de se
alterarem os sujeitos ativos e passivos, a contextualização social e a circunstância
em que se praticava o crime, as próprias substâncias venenosas se alteraram e ga-
nharam notável amplitude. A criminalização das manipulações de boticários trans-
gressores foi preterida pela criminalização de traficantes de drogas, a partir da per-
secução penal de incipientes delitos de rua praticados por pessoas de classe baixa. A
preocupação com o avanço do uso de ópio, morfina e cocaína, a solução higienista
encontrada, a Convenção de Xangai e da Haia e os distintos contextos de análise
comprovam que, mesmo com a manutenção da terminologia utilizada, o Código
Penal de 1890 e o Decreto de 1921 tratavam de temas distintos.
A corroboração desta ideia, em grande medida, vem com a análise dos decretos
da década de 1930, os primeiros subsequentes ao Decreto nº 4.294/21, no sentido
de que estipularam – apesar de ainda mencionarem os profissionais farmacêuticos,
médicos e dentistas – a ampliação das ideias de maior repressão em relação à venda
de substâncias entorpecentes, inclusive por meio de aparatos próprios e mudanças
processuais.

257
Ricardo Ávila Abraham · Carlos César Rodrigues
Após a análise historicamente contextualizada, com amparo na corrente histori-
ográfica Geschichtliche Grundbegriffe, de Reinhart Koselleck, é possível concluir
que a análise sincrônica, nas alterações num eixo diacrônico, da identidade termi-
nológica e dogmática entre o Código Penal de 1890 e os Decretos das primeiras
décadas do século XX, apesar de sugerir uma inocente ideia de continuidade na
repressão de substâncias venenosas, demonstra que houve uma notável ruptura de
abordagem a demonstrar que a política criminal de drogas no Brasil teve início a
partir da segunda década do século XX.

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261
A CULTURA JURÍDICA DE
CRIMINALIZAÇÃO DAS RELIGIÕES
AFRO-BRASILEIRAS: A EXPERIÊNCIA
DE SÃO PEDRO DO UBERABINHA
(MINAS GERAIS)
THE LEGAL CULTURE OF CRIMINALIZATION OF
AFRO-BRAZILIAN RELIGIONS: THE EXPERIENCE
OF SÃO PEDRO DO UBERABINHA
(MINAS GERAIS)

11
Vanilda Honória dos Santos *
Biatriz Bittencourt de Assis **

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo Abstract: This paper aims to discuss the legal cul-
discutir a cultura jurídica de criminalização das ture of criminalization of Afro-Brazilian religious
práticas religiosas afro-brasileiras, especialmente o practices, especially spiritism and healing, from the
espiritismo e o curandeirismo, a partir da análise analysis of the Penal Codes of 1890 and 1940, and
dos Códigos Penais de 1890 e 1940, e seus respecti- its historical moments that marked the Brazilian
vos momentos históricos que marcaram significati- criminal historiography: First Republic and “Estado
vamente a historiografia penal brasileira: a Primeira Novo”. In this work Will beused the experience of
República e o “Estado Novo”. Nesse trabalho será the São Pedro do Uberabinha, currently city of the
utilizada a experiência de São Pedro do Uberabi- Uberlândia/MG, presenting the provisions of the
nha, atual cidade Uberlândia/MG, apresentando as Ordinance Code that prevailed in the city, in order

* Doutoranda em Teoria e História do Direito pelo PPGD/Universidade Federal de Santa Catari-


na. Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Uberlândia/UFU. Graduada em Direito e
Filosofia pela UFU.
** Mestranda em Direito pelo PPGD/Universidade Federal de Santa Catarina. Graduada em Direi-
to pelo Centro Universitário Católica de Santa Catarina – Joinville.
263
Vanilda Honória dos Santos · Biatriz Bittencourt de Assis
disposições do Código de Posturas que vigeu na to analyze the relationship between penal categories
cidade, de forma a analisar a relação dos dispositi- and local culture, with regard to exercise of the
vos penais com a cultura local, no que se refere ao freedom of religion. To this end, through analysis of
exercício da liberdade religiosa. Para tanto, por bibliographic review of the penal literature, com-
meio da análise de revisões bibliográficas da litera- ments on the Penal Code and primary written
tura penal, comentários ao Código Penal e fontes sources available in public archives and primary
primárias escritas disponíveis em arquivo público e sources of the case analyzed, it was concluded that
fontes primárias do caso analisado, concluiu-se que the culture of prejudice and discrimination pre-
predominou a cultura de preconceito e discrimina- vailed through criminalization and punishment of
ção por meio da criminalização e punição das religions, created or re-signified by Africans and
religiões, criadas ou ressignificadas pelos africanos their descendants, with reflections in the present
e seus descendentes, com reflexos no tempo presen- tense.
te.
Palavras-chave: Cultura jurídica; Religiões Afro- Keywords: Legal Culture; Afro-brasilian Religions;
brasileiras; Espiritismo; Curandeirismo; São Pedro Spiritism; Healing; São Pedro do Uberabinha/MG.
do Uberabinha/MG.

1. Introdução
A construção histórica do Direito Penal no Brasil é marcada por fortes discus-
sões acerca da criminalização da liberdade religiosa, especialmente as expressões
religiosas afro-brasileiras. Nesse sentido, o presente trabalho se propõe discutir a
cultura jurídica de criminalização das práticas religiosas afro-brasileiras, mormente
nomeadas por espiritismo e curandeirismo, por meio do uso do aparato estatal, a
partir da análise dos Códigos Penais de 1890 e 1940, que compõem dois momentos
emblemáticos da historiografia penal brasileira: a Primeira República e o Estado
Novo. E para além desses dispositivos jurídicos, abordar o modo como se deu a
construção de uma cultura de preconceito e discriminação por meio da criminali-
zação e demonização das religiões.
Para consecução dos objetivos deste estudo, num primeiro momento, discorre-
se sobre o contexto em que se deu a criminalização do espiritismo e curandeirismo
na vigência do Código Penal de 1890 em cotejo com o atual Código de 1940. Em
seguida, propõe-se discutir a respeito da demonização das religiões de matrizes
africanas e a construção de uma mentalidade negativa que solidificou o terreno da
intolerância religiosa fundada no racismo em relação aos povos de origem africana.
Conclui-se com uma breve análise do caso da cidade de São Pedro do Uberabi-
264
A cultura jurídica de criminalização das religiões afro-brasileiras
nha, atual Uberlândia, no estado de Minas Gerais, apresentando as disposições do
Código de Posturas que vigeu na cidade da segunda metade do século XIX até iní-
cio do século XX e a relação de seus dispositivos com a cultura local no tocante ao
exercício da liberdade religiosa. Este instrumento jurídico-normativo especifica de
forma evidente a criminalização das manifestações religiosas afro-brasileiras locais.
Assim, dada a pertinência de uma pesquisa histórico-jurídica sobre este tema, o
presente artigo nos convida pensar a interdisciplinaridade entre religião e direito a
partir do estudo da história da cultura jurídica. É o que se buscará fazer, ainda que
de modo pontual, neste trabalho: apresentar a relação entre os modos como se
constituem a cultura brasileira no tocante às religiões afro-brasileiras, a instituição
da criminalização das religiões no ordenamento jurídico e a construção de uma
mentalidade que demonizou as religiões e seus praticantes, cujas ressonâncias são
muito evidentes no tempo presente.
As metodologias utilizadas foram revisões bibliográficas por meio de periódicos
científicos, literatura penal, comentários ao Código Penal e pesquisa empírica a
partir de fontes primárias escritas disponíveis em arquivo público.

2. O processo de criminalização e descriminalização das


expressões religiosas afro-brasileiras nos Códigos de 1890 e
1940
O debate a respeito da liberdade religiosa no Brasil ganhou amplitude com a
Proclamação da República e a discussão permaneceu ao perpassar pelo próprio
desenvolvimento histórico brasileiro, mantendo-se até os dias atuais1. Foi no perío-
do da República que as relações entre Estado e a Igreja sofreram significativas trans-
formações sob a égide do Código Penal de 1890 e a Constituição de 1891, com a
passagem de um período de forte laicização. Segundo Sontag, o Código Penal de
1890 e a Constituição de 1891 marcavam simbolicamente a passagem do regime
imperial para o republicano, em que “a elaboração do Código de 1890 começa,

1. Vejam-se: NASCIMENTO (2016); FONSECA; ADAD (2016); SANTOS et al (2016); (SANTOS,


2017); (SANTOS, 2019); (RUFINO; MIRANDA, 2019).
.
265
Vanilda Honória dos Santos · Biatriz Bittencourt de Assis
porém, ainda sob o Império, assim como a história da reforma do código de 1890
inicia com a história da discussão sobre a reforma do código criminal imperial de
1830” (SONTAG, 2013, p. 482).
Dessa forma, influenciado por inspirações liberais e de cunho positivista pro-
vindas da Europa, o sistema penal da primeira república carregou uma série de
contradições. Isso ficou claro ao considerarmos que o Código do Império (1830)
carecia urgente de uma reforma no regime penal, em razão da abolição da escrava-
tura, contudo, o que se viu foi uma reafirmação dos interesses da elite republicana
que fez uso da lei penal como instrumento de repressão e controle para se manter
no poder. Nesse sentido, Batista afirma que a programação criminalizante da pri-
meira República refletiu as contradições de um sistema penal que “participa decisi-
vamente da implantação da ordem burguesa, porém traz consigo, e reluta em re-
nunciar a ela, a cultura da intervenção corporal inerente ao escravismo” (BATISTA,
2016, p. 84). Portanto, ao contrário do que se esperava, o discurso que compreendia
o novo sistema penal apresentou incongruências ao se mostrar atrasado em relação
à ciência penal de seu tempo. A esse respeito, Galdino Siqueira, ao trazer uma su-
mária visão histórica dos trabalhos de elaboração do Código republicano e das crí-
ticas que ensejou, acrescenta que:
Inspirado ainda na intuição clássica não satisfez completamente as aspirações e ne-
cessidades do país, sendo objeto, por isso de intensa crítica, em muitos pontos pro-
cedentes [...] era de se esperar que o codificador, já distinguido pelo último governo
do Império com igual incumbência, nos dotasse com um código que correspondesse
à nossa civilização, às tradições do nosso direito (SIQUEIRA, 2003, p. 11).
Não obstante, a abolição da escravatura em razão da Lei n. 3.353, de 13 de maio
de 1888 – a Lei Áurea – provocou significativas mudanças no Código do Império,
como a remoção de algumas figuras delituosas. À vista disso e das modificações
pelas quais o Brasil estava passando, em fase de transição política e institucional de
profundas repercussões humanas e sociais, Joaquim Nabuco – principal represen-
tante do movimento abolicionista – apresentou na Câmara dos Deputados um pro-
jeto autorizando o ministro da Justiça a mandar publicar uma nova edição do Có-
digo Criminal de 1830, suprimindo as disposições referentes à escravidão, constan-
tes em leis especiais. O Ministro da Justiça do Governo Provisório, Campos Salles,
incumbiu o Conselheiro João Baptista Pereira de elaborar, com urgência, o projeto
266
A cultura jurídica de criminalização das religiões afro-brasileiras
de um novo Código Penal (HUNGRIA; DOTTI, 2016).
Contudo, antes mesmo de tal evento, o Governo editou o Decreto n. 774, de
20.09.1890, que instituía novas medidas como a abolição da pena de galés, reduzia a
trinta anos as penas perpétuas, computando no tempo de prisão o período da pri-
são preventiva, além de inaugurar a prescrição das penas. O projeto Baptista Pereira
foi apresentado em pouco mais de três meses, com pequenas alterações e algumas
emendas de simples redação, realizadas por uma Comissão. Em 11.10.1890 foi assi-
nado o Decreto n. 847, que promulgava o novo Código Penal (HUNGRIA; DOTTI,
2016).
Sob o prisma religioso, o Código do Império se limitava a tutelar a religião ofici-
al, e incriminava o fato de “celebrar em casa, ou edifício, que tenha forma de tem-
plo, ou publicamente em qualquer lugar, o culto de outra Religião, que não seja a do
Estado” (art. 276). Por outro lado, o Código Penal republicano consagrou os crimes
contra o livre exercício dos cultos, tipificando condutas como “perseguir alguém
por motivo religioso” (art. 179), “ultrajar qualquer confissão religiosa” (art. 185),
“impedir, por qualquer modo, a celebração de cerimônias religiosas” (art. 186) e
“usar de ameaças, ou injúrias, contra os ministros de qualquer confissão religiosa”
(art. 187), desse modo, destacou a garantia a liberdade de culto, antes de proclama-
da a laicidade no Estado brasileiro.
Entretanto, paradoxalmente manteve algumas figuras delituosas de cunho reli-
gioso, dedicando um capítulo próprio (XIII) denominado “Dos vadios e capoeiras”
em que criminalizava o indivíduo considerado “vadio” por “deixar de exercitar
profissão, ofício, ou qualquer mister em que ganhe a vida” (art. 399), e também a
prática de capoeira como ato de “fazer nas ruas e praças públicas exercícios de agi-
lidade e destreza corporal conhecidos pela denominação capoeiragem” (art. 402).
No plano constitucional, a Proclamação da República trouxe consigo a separa-
ção entre as instituições Estado e religião por meio da publicação do Decreto 119-
A, em 7 de janeiro de 1890. Tal decreto pretendia proibir a intervenção da autori-
dade federal e dos Estados federados em matéria religiosa, autorizar a plena liber-
dade de cultos, além de estabelecer outras providências secularizadoras. Destaca-se
que em seu art. 5º, o Decreto reconhecia “a todas as igrejas e confissões religiosas se
reconhece a personalidade jurídica, para adquirirem bens e os administrarem”,

267
Vanilda Honória dos Santos · Biatriz Bittencourt de Assis
porém “sob os limites postos pelas leis concernentes à propriedade de mão-morta”,
ou seja, num estranho paradoxo em relação a autonomia jurídica das entidades
religiosas (GIUMBELLI, 2008).
Ainda, o advento da Constituição Republicana de 1891 marcou o fim da religio-
sidade oficial e em suas disposições: a) vedava aos estados e à União estabelecer,
subvencionar, ou embaraçar o exercício de cultos religiosos (art. 11, n. 2); b) asse-
gurava a liberdade religiosa a todos os indivíduos e confissões, que poderiam exer-
cer pública e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens,
observadas as disposições do direito comum (art. 72, n. 3); c) determinava a secula-
rização dos cemitérios, que viriam a ser administrados pela autoridade municipal,
ficando livre a todos os cultos religiosos a prática dos respectivos ritos em relação
aos crentes, desde que esses não ofendessem a moral pública ou as leis (art. 72, n.
5); d) dispunha que o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos deveria ser
leigo (art. 72, n. 6); e) estabelecia que nenhum culto ou igreja gozaria de subvenção
oficial, nem teria relações de dependência ou aliança com o governo da União, ou o
dos estados (art. 72, n. 7); h) assegurava que, por motivo de crença ou função reli-
giosa, nenhum cidadão brasileiro poderia ser privado de seus direitos civis e políti-
cos, nem se eximir do cumprimento de qualquer dever cívico (art. 72, n. 28); entre
outras.
Segundo Leite, embora a Carta Constitucional de 1891 tenha apresentado, em
teoria, o fundamento da liberdade religiosa, as normas constitucionais a ela relacio-
nadas estavam sujeitas às mais diversas interpretações e condições “o que, em uma
sociedade majoritariamente católica e com forte sentimento religioso, permitiu
uma "acomodação" do texto à posição de destaque ocupada pelo catolicismo ao
longo do período” (LEITE, 2011, p. 45). Dessa forma, uma indefinição marcava a
aparente laicidade nesse período2.
Nesse sentido, o Decreto 119-A impunha limites ao que era considerado: reli-

2. A relação entre o Estado e a Igreja Católica não será trabalhada no presente escrito, pois esconde
um debate profundo e requer um estudo em apartado em razão da sua complexidade. Veja-se:
CURY, Carlos Roberto Jamil. Por uma concepção de Estado laico. In: d’Avila-Levy, Claudia Ma-
sini; CUNHA, Luiz Antônio (Orgs). Embates em torno do Estado laico. São Paulo: SBPC, 2018,
p. 41-52.
268
A cultura jurídica de criminalização das religiões afro-brasileiras
gião. E à pluralidade religiosa, pois abrangia principalmente grupos religiosos como
os protestantes e os judeus e, de outro lado, cerceava as religiões mediúnicas – o
espiritismo, o curandeirismo e os cultos afro-brasileiros – as quais sofreram discri-
minação e foram alvo de perseguições policiais em razão de suas práticas terem sido
tipificadas no Código Penal Republicano de 1890. Assim, “além dos evangélicos, os
cidadãos espíritas também encontraram dificuldades no que diz respeito ao exercí-
cio de sua religião, embora de outra ordem, à medida que algumas de suas práticas
foram tipificadas como criminosas, nos termos do Código Penal de 1890” (LEITE,
2011, p. 45).
Conforme já mencionado, foi a partir da República que se consagrou a liberda-
de de culto, ainda que o Código Penal de 1890, anterior à Constituição republicana
(1891), tenha mantido a criminalização de práticas religiosas e culturais como o
espiritismo, a capoeiragem e o curandeirismo, dentre outras que não pertenciam a
tradição judaico-cristã. Na legislação penal, no capítulo que compreendia os ‘cri-
mes contra a saúde pública’, dois artigos criminalizavam as práticas relacionadas ao
espiritismo, tanto kardecistas como de matriz africana: o artigo 157 previa o crime
de "praticar o espiritismo" e "inculcar cura de moléstias curáveis ou incuráveis"; já o
artigo 158 criminalizava a conduta de "ministrar ou prescrever", como "meio cura-
tivo", "substância de qualquer dos reinos da natureza", portanto, “a intenção dos
legisladores da recém-criada República parecia ser a de instituir uma pequena “in-
quisição doméstica” contra as práticas afro-brasileiras e de espiritismo popular”
(SOBREIRA; MACHADO; VILANI, 2016).
Com efeito, Giumbelli explica que:
A criminalização do espiritismo, alegando-se a proteção à saúde pública, deve ser
entendida no contexto da ação da categoria médica que visava resguardar em ter-
mos legais o monopólio do exercício da “arte de curar”. [...] O que confere especifi-
cidade aos saberes e práticas prescritos pelo artigo 157 é a identificação de seu poder
de ilusão ou fascinação: o problema não é só que o “espiritismo”, a “magia”, os “ta-
lismãs” e a “cartomancia” não possuem virtualidades terapêuticas, mas que, sem
poder curar, pretendam “inculcar” essa possibilidade. Por trás desse reconhecimen-
to, está a ideia de que as práticas espíritas seriam “manobras fraudulentas”, reforça-
das em seu poder de persuasão por um apelo ao “sobrenatural”, e de que o espírita é
um “ilusionista” e um “aproveitador” (GIUMBELLI, 2003, p. 254).

269
Vanilda Honória dos Santos · Biatriz Bittencourt de Assis
Ainda, o artigo 156 se referia ao exercício da medicina sem títulos acadêmicos,
ou seja, as pessoas que praticavam o curandeirismo exerciam de forma ilegal a me-
dicina e foram rotulados como charlatães. Silva (2011, p. 01) afirma que, no que diz
respeito às práticas relacionadas à tradição religiosa de matriz africana “as perse-
guições deram-se de diversas formas durante todo o regime republicano: sob a égi-
de da higienização, da ciência médica (combate às doenças mentais), do combate
ao charlatanismo etc”. Portanto, havia uma persecução estatal por parte dos legis-
ladores do período republicano contra as práticas afro-brasileiras e de espiritismo
popular, e “mesmo quando não se enquadravam nos tipos penais previstos pelo
Código, as práticas espíritas ainda poderiam ser consideradas contrárias à “tranqui-
lidade pública” (LEITE, 2011, p. 45).
A reforma do Código de 1890 que já se arrastava desde sua promulgação ganha
fôlego no Estado Novo acelerando-se o processo, conduzindo a reforma de acordo
com sua visão de direito penal (NUNES, 2016, p. 167). Diante de uma nova conjun-
tura, com o advento do Estado Novo (1937-1945), o jurista José Alcântara Macha-
do de Oliveira foi incumbido da redação de um projeto de Código Penal em face
das mudanças institucionais e políticas do período. Para tanto, buscou o professor
da tradicional faculdade de direito de São Paulo Alcântara Machado para a constru-
ção solitária do projeto. Após revisão por uma Comissão de exame do Projeto Al-
cântara Machado integrada por Nélson Hungria, Vieira Braga, Narcelio de Queiroz
e Roberto Lyra, o Código Penal foi publicado em 31.12.1940 (Decreto-Lei n. 2.848,
de 7 de dezembro de 1940) (HUNGRIA; DOTTI, 2016; NUNES, 2016).
Com o Código Penal de 1940 houve a descriminalização de algumas figuras deli-
tuosas, como o espiritismo e a capoeiragem, mantendo-se os crimes de charlata-
nismo (artigo 283) e de curandeirismo (artigo 284), nos moldes já mencionados.
Desse modo, o artigo 158 do Código republicano “[...] foi reeditado, transforman-
do-se em outros três artigos, o artigo 282, 283 e 284, que mais uma vez levaram ao
debate e ao confronto os médicos com os curandeiros e os charlatães” (GOMES,
2013, p. 92).
Por fim, sobre a liberdade religiosa na codificação penal, Hungria explica a dife-
rença entre as visões anteriormente estabelecidas em relação a atual:
Não há diferença essencial entre os fatos que o Código anterior incriminava como

270
A cultura jurídica de criminalização das religiões afro-brasileiras
lesivos da liberdade dos cultos e os que o atual contempla como crimes contrários ao
“sentimento religioso” (isto é, a convicção, acentuada pelo sentimento da existência
de uma ordem universal que se eleva acima do homem). Apenas o legislador de 40
entendeu que ao interesse individual da liberdade religiosa sobreleva o interesse co-
letivo ou geral de preservar a religião como um elemento de cultura ético-social
(HUNGRIA, 1981, p. 52, grifos do autor).
À vista disso, consoante os artigos aludidos, percebe-se o tratamento institucio-
nal que as expressões religiosas das tradições de matriz afro-brasileiras receberam
da codificação penal e assim foram criminalizadas ao longo dos séculos XIX e XX.

3. A doutrina jurídica e o projeto de nação do Estado Novo


Além de discorrer como se deu o processo de criminalização das religiões afro-
brasileiras a partir de fontes e pesquisas da história do direito, este trabalho objetiva
também refletir sobre a relação entre a normatização no Direito Penal, a cultura
jurídica, a liberdade e a intolerância religiosa no processo de construção de uma
mentalidade discriminatória. Para tanto, não basta se ater às fontes legais e à dou-
trina, embora sejam importantes para o trabalho histórico-jurídico, pois estas reve-
lam o entendimento e os modos como os juristas lidavam com a questão. Atesta-se
aqui que a compreensão da cultura jurídica, de maneira ampla, dá-se principalmen-
te por meio do acesso às mentalidades, aos conflitos, sentimentos, afetos, ritos e
práticas que estão de algum modo, conectados às condutas criminalizadas.
A pesquisa de Vargas (2020) sobre a criminalização das religiões africanas no
Código Penal de 1890, delimitada ao estado de Santa Catarina, a partir da análise de
processos do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ/SC), conclui que é possível
comprovar a inaplicabilidade dos dispositivos penais na prática, isto é, embora o
Código tenha positivado a criminalização das religiões africanas, nele designadas
como “espiritismo”, como já apresentado, não foi impedimento para que as práti-
cas tipificadas como crime continuassem a acontecer. Nesse ponto, é importante
destacar que esse cenário pode ser ampliado para o conjunto do território nacional,
considerando, obviamente, a pluralidade das manifestações e as diferenças regio-
nais.
Vargas chama a atenção para o fato de que a prática do espiritismo não seria

271
Vanilda Honória dos Santos · Biatriz Bittencourt de Assis
crime, uma vez que a prática estaria protegida pela Constituição. O que teria sido
criminalizado é “o espiritismo como meio para a feitiçaria ou revestindo os caracte-
res jurídicos do estelionato” (VARGAS, 2020, p. 17). Contudo, aqui, faz-se necessá-
ria uma reflexão para além do que está disposto no Código. Se por um lado, a liber-
dade religiosa estaria garantida, punindo apenas os abusos e desvios, por outro, isso
não ocorreu em relação às práticas religiosas de origem africana e popular, cujo
exercício foi amplamente cerceado.
Para tornar esse quadro mais compreensível, é preciso analisar de que modo o
conceito de espiritismo foi apropriado no contexto pós-abolição, e, sobretudo, a
partir da segunda década do século XX. Ademais, é preciso pensar acerca da relação
desse processo de criminalização e a repressão do espiritismo com a política cultu-
ral do Estado Novo, e do mesmo modo a construção de uma mentalidade precon-
ceituosa em relação às religiões afro-brasileiras por meio do processo denominado
por “demonização de Exu”.
De acordo com Giumbelli (1997), o termo “espiritismo” não foi adotado exclu-
sivamente pelos adeptos da doutrina de Allan Kardec e não foi utilizado unicamen-
te para se referir a eles. Entretanto, frequentemente se encontra esse entendimento
equivocado. É possível apresentar três dimensões do uso do termo: a) uma genéri-
ca, que se aplica a qualquer ideia ou prática com recurso à noção de espíritos e sua
intervenção no mundo humano; b) movimento de apropriação do termo e ressigni-
ficação que deu origem ao espiritismo denominado racionalismo cristão em 1910 e
ao espiritismo da Umbanda, institucionalizado no final da década de 1930; c) ine-
quívoca, a associação com práticas terapêuticas, colocando “espiritismo” e “curan-
deirismo” no mesmo campo semântico e mesmo território de realidade (GIUM-
BELLI, 1997, p. 32).
O Código Penal de 1890 adota essa dimensão considerada inequívoca e tal sen-
tido permanece na primeira metade do século XX. Acrescentando-se que além da
Umbanda, a categoria “Religiões Afro-brasileiras” engloba o Candomblé, o Vodu, o
Tambor de Mina, a Religião da Congada, entre outras. Embora o Código de 1940
não mais criminalize expressamente o “espiritismo”3, os efeitos da criminalização e

3. A partir daqui sempre que for feita referência às religiões criminalizadas pelo Código será utili-
zado unicamente o conceito “Religiões Afro-brasileiras” e não mais o termo “espiritismo”.
272
A cultura jurídica de criminalização das religiões afro-brasileiras
da repressão permanecerão e afetarão sobremaneira o direito à liberdade religiosa e
às manifestações culturais e religiosas ligadas ao legado dos africanos na diáspora
brasileira. Esse aspecto será abordado no caso concreto a ser discutido no último
tópico. Acrescenta-se que o “Código Penal de 1940 mantém criminalizados o exer-
cício ilegal da medicina e curandeirismo sob o capítulo de Crimes contra a Saúde
Pública, mas aboliu a criminalização do espiritismo” (VARGAS, 2020, p. 18).
As elites intelectuais brasileiras tiveram presença atuante no projeto de constru-
ção da nação desde a independência até o Estado Novo (1937-1945). Os contornos
dessa presença, que mais interessam, ganharam maior dimensão a partir da década
de 1920, quando os intelectuais passaram a se compreenderem como a personifica-
ção a ordem; organização e unidade necessárias ao Estado; enquanto a sociedade
civil é um corpo indefeso, conflituoso e fragmentado (VELLOSO, 1997, p. 58).
O movimento modernista foi grande expoente nesse contexto, sendo que o gru-
po que terá maior influência no projeto de nação é o conservador, cuja visão pre-
dominante é a de que o intelectual deve educar as manifestações populares (VEL-
LOSO, 1997, p. 66). Essa visão custará muito caro aos sujeitos históricos, sobretudo
os negros, pois serão excluídos da condição de criadores de sua cultura e intérpretes
de sua própria cultura e modos de organização social e política. Esse resultado é
evidente ainda hoje no campo dos direitos culturais, mesmo que a linguagem seja
de valorização da autonomia dos sujeitos e suas comunidades, não é isso que ocorre
na prática.
Ora, no que diz respeito à cultura afro-brasileira e os modos de organização ne-
gra nas primeiras décadas do século XX, essa visão não contempla diversos aconte-
cimentos, sobretudo da década seguinte, 1930, por exemplo, o alto grau de sofisti-
cação e organização que foi a Frente Negra Brasileira. A organização chegou a inte-
grar milhares de cidadãos negros brasileiros e atuou de forma efetiva até se institu-
cionalizar como Partido e ser dissolvida4.
Durante o Estado Novo fica mais evidente o vínculo dos intelectuais como pro-
jeto de nação do governo de Getúlio Vargas, formando uma união entre as elites

4. Acerca de Frente Negra Brasileira, vejam-se: DOMINGUES; HERNANDEZ (2005). FERREIRA.


PEREIRA (1983).

273
Vanilda Honória dos Santos · Biatriz Bittencourt de Assis
intelectuais e as elites políticas, cujo foco é centrar nas tarefas nos domínios do Es-
tado. Nesse âmbito, os objetivos são: concentrar esforços na formação de uma cul-
tura erudita, controlar a comunicação e orientar manifestações da cultura popular.
Nesse ínterim, a cultura popular passa a ser capitaneada pelo Estado e a educação
popular terá como função garantir a homogeneidade das culturas e valores (VEL-
LOSO, 1997, p. 58). Portanto, as manifestações da cultura popular precisavam ser
controladas e não valorizadas, entre elas as manifestações culturais e religiosas afro-
brasileiras.
Nesse período, o meio de divulgação do projeto de nação era o setor radiofôni-
co, cujo cerne é o controle e repressão da cultura considerada inferior e incivilizada,
com ampla participação dos intelectuais, entre eles Roquete Pinto (VELLOSO,
1997, p. 65). Essa presença deve ser destacada, uma vez que se trata do médico e
antropólogo que representou o Brasil no Congresso Mundial das Raças em 1911,
realizado em Londres, no qual defendeu a política de branqueamento, segundo a
qual em 100 anos os negros teriam desaparecido do Brasil (SANTOS; SOUZA,
2012). Estabelece-se nesse aspecto uma estreita relação com o papel da imprensa
ilustrada na década de 1950, o que será abordado posteriormente.
É possível localizar nesse movimento intelectual a influência da religião católica
nas discussões na seara do direito penal, sobretudo da reforma do Código Penal de
1940, a partir da atuação de pensadores jurídico-políticos, como Nélson Hungria. O
jurista aderiu ao Estado Novo e contribuiu para fomentar o nacionalismo e a cons-
trução de uma identidade nacional, com predominância da religião católica (AL-
PHONSE, 2020).
Oliveira (2015, p. 144) contribui com o objetivo desta abordagem ao explicitar
as possíveis razões para a repressão às práticas presentes nas religiões afro-
brasileiras durante o Estado Novo:
Associado aos esforços da medicina de se institucionalizar cientificamente e em
conquistar o seu espaço dentro da sociedade brasileira através da extinção de alter-
nativas populares de cura, tem-se a cruzada promovida por profissionais da área da
psicologia que relacionavam as religiões afro-brasileiras a graves distúrbios mentais.
Diante disso, não é difícil compreender o enorme sucesso do projeto de inferio-
rizar e reprimir as religiões afro-brasileiras, empreendido ainda no século XX, para-

274
A cultura jurídica de criminalização das religiões afro-brasileiras
lelamente à folclorização das demais manifestações da cultura afro-brasileira. Para-
doxalmente à discriminação, ocorreu a consolidação do já conhecido “mito da de-
mocracia racial” com forte participação dos intelectuais na construção de argumen-
tos favoráveis à ideia de identidade nacional, de um povo cordial e pacífico que
convive muito bem com os descendentes dos escravizados. Portanto, não haveria
racismo nem discriminação por aqui.

4. A construção de uma mentalidade: a demonização de Exu


Em 1941, foi realizado no Rio de Janeiro o I Congresso de Espiritismo de Um-
banda, cujos textos dos congressistas foram publicados em 1942 no Jornal Diário
do Comércio. Santos (2016) apresenta uma relevante análise dos textos que reve-
lam: a participação dos próprios intelectuais da Umbanda na construção de uma
mentalidade negativa no que tange o legado africano na constituição a manifesta-
ção religiosa. Os delegados presentes no Congresso possuíam visões diferentes so-
bre a Umbanda enquanto corruptela de prática religiosa do continente africano
(SANTOS, 2016, p. 157).
Contudo, o que mais se evidencia pela publicação é a negação da aproximação
com os Orixás e de uma africanidade na Umbanda, o que é feito por meio de um
discurso que afirmava o primitivismo dos africanos que é evidenciado nas manifes-
tações artísticas e culturais. Ademais, enfatiza-se a importância do espiritismo fran-
cês para o desenvolvimento da Umbanda e aponta semelhança com o rito católico
(SANTOS, 2016, p. 157). Vale ressaltar que nada disso se dá de forma dissociada do
contexto de execução de um plano de nação do Estado Novo que reprime as tradi-
ções do legado africano, ao mesmo tempo em que estimula seu estudo, o que é feito
pelos folcloristas, e do mesmo modo, da construção de uma cultura jurídica que
não mais positiva a criminalização, contudo que nada faz para romper com o pre-
conceito e a discriminação, que impede o exercício da liberdade religiosa das religi-
ões afro-brasileiras. Percebe-se uma dissonância entre a norma e a realidade.
Mesmo que as práticas religiosas de africanos e seus descendentes já fossem
criminalizadas e reprimidas por meio dos Códigos de Posturas locais em grande
parte do território brasileiro e depois pelo Código Penal de 1890, compreender o
processo de demonização que tomou forma durante a primeira metade do século
275
Vanilda Honória dos Santos · Biatriz Bittencourt de Assis
XX é também compreender o modo como a cultura jurídica se desenvolve. Embora,
a criminalização não fosse mais positivada depois de 1942, quando entrou em vigor
o CP/1940, o amplo exercício dos direitos das religiões afro-brasileiras não se tor-
nou realidade, sobretudo nos cultos e templos frequentados por negros e pobres.
Conforme já dito, o processo de construção de uma mentalidade negativa e pre-
conceituosa sobre as religiões afro-brasileiras se deu pela demonização de Exu5,
Orixá que foi ao longo do tempo estereotipado como agente do mal, denominado
“diabo” pela igreja católica e pelos cristãos (COSTA, 2012, p. 91). Ainda segundo
Costa:
Os processos de demonização de Exu também são reforçados através de suas icono-
grafias existentes nos terreiros e nas lojas de artigos religiosos umbandistas. São
imagens de exus masculinos e femininos, totalmente disformes, animalizadas, de-
monizadas, de cor vermelha, portando chifres, rabos e tridentes do tipo da era me-
dieval. Tais imagens de Exu e pombagiras lembram figuras infernais, mulheres livres
aos malandros e ao diabo cristão, com isso, aguçando o imaginário popular das figu-
ras demonizadas pelo Cristianismo (COSTA, 2012, p. 97).
A historiadora Ivete Batista da Silva Almeida (2018) no artigo As religiões de ma-
triz africana na mira da imprensa ilustrada discorre em relação à representação do
Candomblé e da Umbanda e de seus praticantes nas fotos e reportagens das revistas
Cruzeiro e Manchete durante a década de 1950. O objetivo da autora é compreen-
der o estatuto dado pela sociedade às religiões afro-brasileiras, especificamente o
Candomblé e a Umbanda. Ela conclui que as revistas pesquisadas tiveram impor-
tante papel na construção de um imaginário de demonização dessas religiões, uma
vez que alimentaram o preconceito.
Como já pontuado anteriormente, esse processo não se deu alheio ao direito. A
imprensa ilustrada da década de 1950 estava em consonância com o projeto inicia-
do durante o Estado Novo, empenhado em definir e potencializar o que era consi-

5. É o orixá a ser cultuado primeiro, o guardião das mensagens, responsável por levar essas mensa-
gens dos orixás do ayie ao Orun, ou seja, da terra para o céu. É mais comumente identificado
com o “orixá das trevas, representa todas as forças inimigas do homem. Exu, ‘homem das en-
cruzilhadas’, mora em todos os encruzamentos de ruas ou de estradas”. Sobre esta perspectiva,
consultar em: CARNEIRO (1991).
276
A cultura jurídica de criminalização das religiões afro-brasileiras
derado bom gosto, civilizado ou não. Nesse bojo, duas linhas de pensamento tive-
ram enorme influência, a Antropologia Cultural e o Darwinismo Social. A primeira,
focada em compreender os elementos culturais africanos na formação cultural bra-
sileira. A segunda considerava a cultura europeia o topo da evolução e a africana
como selvagem, bárbara e exótica (ALMEIDA, 2018, p. 5). Novamente, os intelec-
tuais influenciaram sobremaneira todos os âmbitos da cultura nacional desse perí-
odo, não seria diferente com o direito, a ser este: produto da cultura.
Embora, em âmbito formal o direito garantisse a liberdade religiosa e não mais
criminalizava as religiões, como outrora, primeiro nos Códigos de Postura e poste-
riormente nos Códigos Imperial e Republicano, o processo de demonização das
religiões afro-brasileiras solidificou o terreno para a intolerância e o racismo religi-
oso. Isso ocorreu em todo o país, contudo, faz-se necessário delimitar espaço e
temporalmente a análise de um caso concreto em uma perspectiva de história do
tempo presente. Serão abordados no próximo tópico alguns elementos desse pro-
cesso na cidade de São Pedro do Uberabinha, em Minas Gerais, atual Uberlândia.

5. As Posturas Municipais em São Pedro do


Uberabinha/Uberlândia
São Pedro do Uberabinha foi distrito da cidade de Uberaba em Minas Gerais até
1888, quando concomitante à abolição da escravidão do ordenamento jurídico bra-
sileiro, tornou-se independente. Em 1929 a cidade passou a ser denominada Uber-
lândia. Considerando que até 1888 o distrito era jurisdição da comarca de Uberaba,
a legislação válida na localidade era a de Uberaba, como é o caso do Código de Pos-
tura.
Serão analisados alguns artigos das posturas municipais de Uberaba entre 1864 e
1867 que versam sobre atividades e manifestações que tradicionalmente eram reali-
zadas pelos africanos e seus descendentes em suas práticas religiosas.
De acordo com o art. 60 das posturas municipais, lidas em sessão de 08 de abril
de 1864, “é proibido aos escravos: § 1º Os jogos de qualquer qualidade; § 2º O ajun-
tamento e reuniões a título de festas, sem a autorização da autoridade competente”.
Os dispositivos em questão não mencionam explicitamente as práticas religiosas,
contudo estão diretamente relacionados às necessárias reuniões de seus praticantes,
277
Vanilda Honória dos Santos · Biatriz Bittencourt de Assis
ou, seja, qualquer reunião sem autorização caberia punição. E como será demons-
trado na sequência, as diversas proibições não possibilitavam as autorizações.
Especificamente relativamente a práticas religiosas, conforme disposto nas pos-
turas:
Art. 64 - É proibido:
§ 1º - Fingir-se inspirado e predizer o futuro;
§ 2º - Entitular-se curador de enfermidades por meio de encantos, feitiços e orações;
§ 3º - Entitular-se possuidor de remédios, segredos e vendê-los sem autorização le-
gal.
Aos contraventores se imporá a pena de 8 dias de prisão e trinta mil réis de multa.
Percebe-se nitidamente a proibição de práticas que dizem respeito ao que se de-
nominou espiritismo no Código de 1890, proibição esta marcada como de interesse
da saúde pública. Já as disposições no Projeto de Posturas lidas na sessão de 08 de
abril de 1867 e deliberado na sessão do dia 10 do mesmo mês, o dispositivo explici-
ta a criminalização, proibição e punição aos adeptos de práticas das manifestações
religiosas de origem africana por meio de rituais dançantes, cantorias, batuques e
tambor, característicos das Congadas6, fortemente presentes na cidade ainda hoje
por meio da Irmandade do Rosário, fundada ainda no século XIX e institucionali-
zada em 1916.
Art. 102 – São proibidos absolutamente:
§ 1º as danças denominadas batuques dentro da cidade;
§ 2º os quimbetes ou reuniões dançantes de escravo do mesmo sexo ou de sexo dife-
rente;
Aos contraventores será imposta a multa de dez mil réis e cinco dias de prisão, e
sendo escravos serão presos e recolhidos à cadeia para serem entregues aos seus se-
nhores, que pagarão as despesas feitas com a alimentação dos mesmos e a aviso a
eles dados.

6. Sobre Congadas veja-se: BRASILEIRO (2001). BRASILEIRO (2108a).

278
A cultura jurídica de criminalização das religiões afro-brasileiras
Contraditoriamente, as mesmas Posturas que criminalizam e punem as manifes-
tações religiosas próprias de africanos e descendentes, estipula de forma inequívoca
a liberdade religiosa:
Art. 110 – É proibido perturbar por qualquer modo os atos religiosos celebrados nos
templos ou fora deles, bem como provocar escândalos por sarcasmos, gestos inde-
centes durante as procissões, aos contraventores será imposto a multa de vinte mil
réis, e o dobro na reincidência, além das penas em que puderem incorrer legalmen-
te;
Tal contradição é na verdade aparente, uma vez que a liberdade de culto prote-
gida é dos praticantes do catolicismo, e, para, além disso, as práticas religiosas de
africanos e descendentes ou afro-brasileiras não eram reconhecidas enquanto reli-
gião.
As danças ou batuques proibidos são os rituais da manifestação religiosa da
Congada, compreendida como uma experiência de “coexistência cultural e religio-
sa”, na qual coexistem no mesmo rito, elementos rituais e devocionais das religiões
de origem africana e do catolicismo popular (BRASILEIRO, 2016, 2018b).
A presença em Uberaba e em São Pedro do Uberabinha da manifestação da
Congada, assim como das previsões punitivas nas Posturas municipais testemu-
nham a presença de africanos e descendentes na região e atestam o funcionamento
do instituto jurídico da escravidão. Para, além disso, diversos outros documentos
disponíveis no arquivo público confirmam a constante luta pela liberdade que era
travada pelos escravos, livres e libertos. Como já dito, essa experiência teve conse-
quências no tempo presente, sendo que pode ser destacada a pouca visibilidade que
têm os templos ou terreiros e os praticantes das religiões afro-brasileiras na atuali-
dade local.

6. Considerações finais
O artigo discutiu a cultura jurídica de criminalização das religiões afro-
brasileiras para além dos códigos penais. Abordou-se o modo como se deu a cons-
trução de uma cultura de preconceito e discriminação por meio da criminalização e
da demonização das práticas religiosas. Ademais, discorreu-se acerca do tratamento
dado pela codificação penal ao longo dos séculos XIX e XX e problematizou-se a
279
Vanilda Honória dos Santos · Biatriz Bittencourt de Assis
relação entre a doutrina jurídica e o projeto de nação no período pós-Abolição, este
que implicava a eliminação do elemento africano, o que foi determinante para a
instituição de uma mentalidade negativa e racista acerca as religiões afro-
brasileiras.
Advoga-se aqui a tese de que em decorrência de uma história de longa duração
na qual o projeto de Estado não contemplou a população descendente de africanos
no período pós-abolição, criminalizou-se e se puniu as religiões, criadas ou ressig-
nificadas pelos africanos e seus descendentes. Esse processo ocorreu em todo terri-
tório brasileiro, e nesta pesquisa abordou-se o caso de São Pedro do Uberabinha,
atual Uberlândia, na qual se consolidou a invisibilidade dos templos e terreiros, que
pode ter ganhado terreno como estratégia de sobrevivência e permanência dos pró-
prios sujeitos históricos.
Por conta da limitação espacial, não será possível aprofundar nesse aspecto da
pesquisa, mas em pesquisa empírica recente, o historiador Jeremias Brasileiro regis-
trou 222 templos ou terreiros7. O pesquisador afirma que existem muito mais, con-
tudo, muitos preferem não se identificar por receio de perseguição e possíveis co-
branças de encargos públicos.
Essa existência é, em grande medida, silenciosa, o que atesta a presença de um
cenário que nunca foi propício para o amplo exercício da liberdade religiosa. Pelo
contrário, constituiu-se nesse espaço uma cultura jurídica do silenciamento em
decorrência da inibição e punição das religiões afro-brasileiras e de seus pratican-
tes, o que não impediu, obviamente, que resistissem e permanecessem vivas no
tempo presente.

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283
REFLEXÕES SOBRE A ESCOLA POSITIVA:
A REINTERPRETAÇÃO DE SEUS INSTITUTOS
NO CÓDIGO PENAL BRASILEIRO DE 1940
REFLECTIONS ON THE POSITIVIST SCHOOL OF
CRIMINOLOGY: THE REINTERPRETATION OF ITS INSTITUTES
IN THE BRAZILIAN PENAL CODE OF 1940

12
Júlia Farah Scholz *

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo Abstract: The work aims to verifying if there is a
verificar se houve uma reinterpretação dos institu- reinterpretation of the institutes defended by the
tos defendidos pela Escola Positiva Italiana, repre- Positivist School of Criminology, mainly represent-
sentada principalmente por Raffaele Garofalo, ed by Raffaele Garofalo, Cesare Lombroso and
Cesare Lombroso e Enrico Ferri, no Código Penal Enrico Ferri, in the 1940 Brazilian Penal Code,
brasileiro de 1940, especialmente em relação às especially regarding the security measures. The
medidas de segurança. A hipótese pretendida é de hypothesis is that there was a reformulation of the
que houve uma reformulação dos conceitos e ideias concepts and ideas proposed by the Italian school,
propostas pela escola italiana, de modo que o cará- so that the technical character present in the crimi-
ter técnico presente na codificação penal do século nal codification of the twentieth century promoted
XX promoveu uma adequação de seus institutos à an adaptation of its institutes to the reality of that
realidade da época. Para responder ao problema time. In order to respond to the proposed problem,
proposto, adotou-se como método de abordagem o the research adopts the inductive method of ap-
indutivo, por meio da pesquisa bibliográfica a partir proach, through bibliographic research from
de fontes e historiografia, bem como a utilização de sources and historiography, as well as the use of
revistas e jornais da época, e da legislação penal journals of the time, and Brazilian criminal legisla-
brasileira. tion.
Palavras-chave: Escola Positiva. Antropologia Keywords: Positivist School. Criminal Anthropolo-
Criminal. Código Penal de 1940. Medidas de Segu- gy. Penal Code of 1940. Security Measures.
rança.

* Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de


Santa Catarina (UFSC). Membro do Grupo de Estudos e Pesquisa em História da Cultura Jurídi-
ca Ius Commune – UFSC/CNPq. Bolsista pela CAPES. E-mail: juliafarahscholz@gmail.com
285
Júlia Farah Scholz

1. Introdução
Os pressupostos ideológicos fundamentais da Escola Positiva de Direito Penal
representavam uma reação ao individualismo da Escola Clássica. No âmbito da
filosofia, a Escola Italiana retoma os pensamentos de Comte, Darwin e Spencer,
contribuindo para a formação da Sociologia Criminal de Enrico Ferri, da Antropo-
logia Criminal de Cesare Lombroso a partir da teoria do Atavismo fruto do evolu-
cionismo de Darwin, e do pensamento jurídico de Raffaele Garofalo.
As ideias da escola positiva italiana foram defendidas, principalmente, por Rai-
mundo Nina Rodrigues e João Vieira de Araújo, os quais se destacam como expo-
entes da escola positiva no Brasil por tentarem reformar a legislação penal sob o
aspecto de defesa social.
A partir dessa contextualização, o problema de pesquisa ao qual se dedicou o
presente trabalho foi responder ao seguinte questionamento: houve uma reinter-
pretação dos institutos defendidos pela Escola Positiva no Código Penal de 1940? A
hipótese pretendida é de que houve uma reformulação dos conceitos e ideias pro-
postas pela escola italiana, especialmente no que concerne às medidas de segurança,
de modo que o caráter técnico presente na codificação penal do século XX promo-
veu uma adequação de seus institutos à realidade da época.
A fim de responder ao problema de pesquisa proposto, o objetivo geral foi iden-
tificar se houve uma reinterpretação dos institutos defendidos pela Escola Positiva
na legislação penal brasileira. Para tanto, foram estabelecidos três objetivos especí-
ficos, organizados nos três capítulos deste artigo, respectivamente: analisar os refle-
xos da escola positiva na legislação penal brasileira; identificar no texto do Código
Penal de 1940, possíveis reinterpretações dos institutos penais defendidos pela es-
cola positiva; e por fim, estabelecer uma análise crítica dos reflexos da escola positi-
va no Código Penal de 1940 e suas alterações no século XX.
No intuito de atingir os objetivos propostos, adotou-se como método de abor-
dagem o indutivo, por meio da pesquisa bibliográfica a partir de fontes e historio-
grafia, bem como a utilização de revista/jornal da época e da legislação penal brasi-
leira.

286
Reflexões sobre a Escola Positiva
2. Os laboratórios culturais de Raimundo Nina Rodrigues e João
Vieira de Araújo em confronto com a Escola Positiva italiana
O Brasil-Império contava com o Código Criminal de 1830, que veio a substituir
o Livro V das Ordenações Filipinas, quando entrou em vigor o Código Criminal do
Império do Brasil. Com a proclamação da República em 1889, a necessidade de
substituição do código de 1830 veio à tona, juntamente com as críticas a respeito da
unificação legislativa em matéria penal. A elaboração de um novo conjunto de
normas de direito penal foi palco dos debates alimentados pela escola positivista
italiana, cujos defensores no Brasil1, o médico Raimundo Nina Rodrigues2 e o pena-
lista João Vieira de Araújo apresentavam visões distintas quanto a ideia de unifica-
ção.
João Vieira de Araújo pode ser considerado “o primeiro autor a se mostrar in-
formado a respeito das novas teorias criminais, ao comentar as ideias de Lombroso
em suas aulas na Faculdade do Recife e também em textos sobre a legislação crimi-
nal do Império” (ALVAREZ, 2002). Para o penalista, o estudo da obra L’Uomo
Delinquente3 e da antropologia eram fundamentais para a compreensão das mu-
danças no direito criminal e do futuro às instituições criminais. Araújo seguiu, cla-
ramente, as orientações da Escola Positiva criada por Cesare Lombroso, Enrico
Ferri e Raffaele Garofalo. Nesse contexto, Sontag (2014a, p. 50) esclarece que a
“força motriz da (futura) transformação radical do direito, segundo João Vieira, é a

1. Embora existam outros defensores da Escola Positiva no Brasil, para fins da presente pesquisa,
optou-se por analisar os estudos de Raimundo Nina Rodrigues e João Vieira de Aráujo.
2. Segundo Augusto e Ortega (2011), Raimundo Nina Rodrigues foi médico e professor, conside-
rado por Lombroso o “Apóstolo da Antropologia Criminal do Novo-Mundo”. Uma de suas
obras de grande relevância foi “As raças Humanas e a Responsabilidade Penal no Brasil” de
1894, onde correlaciona as características físicas-raciais com a criminalidade. O livro foi dedica-
do a Cesare Lombroso, Enrico Ferri, R. Garofalo. A obra de Nina Rodrigues (1862-1906) trata,
sobretudo, acerca da inferioridade física e mental dos negros e mestiços no Brasil, baseando-se
no saber produzido pelos italianos e pelo francês Lacassagne.
3. Na quinta edição, após inúmeras críticas metodológicas e, principalmente, relacionadas a ausên-
cia de conclusões quanto da aplicabilidade de sua teoria em relação aos diferentes climas, regiões
e aspectos territoriais, e ainda, diante dos variados tipos de delinquentes, Lombroso lança em
1896 a última edição da obra, numa tentativa de corrigir todos os erros e omissões anteriores
(ALVAREZ, 2002).
287
Júlia Farah Scholz
escola positiva”, tanto que a principal obra de Cesare Lombroso é lembrada na in-
trodução da obra publicada em 1884 pelo professor da Escola de Recife. Essa sim-
patia com a escola positiva é percebida em dois momentos, como bem aponta Son-
tag (2014a, p. 50): “A citação de Lombroso na introdução e de outros dois positivis-
tas menores (Sergi e Poletti) nas primeiras cinquenta páginas, são sinais claros de
que João Vieira, é verdade, desde 1884, olhava com simpatia para as ideias da escola
positiva”.
Nas edições a partir de 1891 da Revista Acadêmica da Faculdade de Direito do
Recife, a antropologia criminal torna-se o assunto central das publicações, servindo
como instrumento de afirmação do direito enquanto prática científica e justifican-
do a ação dos legisladores diante dos problemas da nação, em especial, a questão
carcerária (ALVAREZ, 2002, p. 689). Nesse sentido, as concepções do direito penal
clássico deveriam ser afastadas, não estudando mais o crime e sim na figura do cri-
minoso, punindo-o em nome da defesa social.
Para Araújo (1891, p. 40-43), a legislação criminal deveria ter cunho nacional de
modo a refletir o caráter próprio do estado do povo ao qual é destinada. Para isso, o
direito penal precisa, necessariamente, ser prático e científico, estando a cargo do
legislador de cada país incorporar a nova realidade. O discurso de Araújo estava
relacionado a necessidade de um novo código criminal que refletisse a república, já
que a nova forma de governo ainda se utilizava do código criminal do império.
Fazia parte, portanto, da intenção de Araújo, reformular o código de modo a colo-
cá-lo em consonância com os estudos da criminologia. As ideias de Araújo, contu-
do, não vingaram, tendo o código penal de 1830 sido apenas “atualizado” em 1890
de acordo com a conjuntura do país enquanto república, não conseguindo modifi-
car sequer a alteração para código criminal. Nesse último aspecto, Sontag (2014,
p.n68) explica que Araújo defendida a nomenclatura código criminal, eis que o
conceito de pena para a escola positiva é muito distinto daquele defendido pela
escola clássica e, por ser mais genérico e amplo, não se mostraria adequado chamar
a compilação de normas de direito penal de “código penal”.
Adotando visão um pouco distinta do penalista, o médico Raymundo Nina Ro-
drigues, como positivista e defensor do conceito de defesa social, acreditava que a
uniformidade da legislação afrontava os princípios básicos da medicina psiquiátri-
ca, se as pessoas são biologicamente distintas e, devido a existência de sistemas de
288
Reflexões sobre a Escola Positiva
culturas diferenciadas, não é possível a criação de um conjunto de leis de caráter
nacional, eis que se estaria deixando de considerar o aspecto específico de cada
região (RODRIGUES, 2011[1894]). Ao retratar esse cenário, Sontag (2014b, p. 100)
esclarece que “segundo Nina Rodrigues, o Código Penal de 1890 não era racional
ao tratar dos sujeitos criminosos, e um dos aspectos dessa falta de racionalidade
estava na unidade, contrária aos conselhos da antropologia criminal” e, para defen-
der esse posicionamento, dedicou o último capítulo da obra As Raças Humanas e a
responsabilidade penal no Brasil para defender a relatividade histórico-
antropológica dos conceitos de crime e de pena e apresentar uma hierarquia de
raças, classificadas entre puras e mestiças. Por esse motivo, no capítulo denomina-
do A defesa social no Brasil, o médico defende a criação de um código penal dife-
renciado por fatores raciais, isto é, um código penal que respeitasse a distribuição
racial do território brasileiro, não unitário e nacional, mas que fosse elaborado con-
forme o critério racial de cada região (RODRIGUES, 2011[1894]).
Para o professor Ricardo Sontag, “o problema da unidade começava, para Nina
Rodrigues, no próprio conceito de crime. A legislação penal brasileira seria expres-
são da tentativa da ‘raça superior’ de manter a ordem” (SONTAG, 2014b, p. 105),
tendo em vista que a unidade legislativa em matéria penal estaria em contraponto
com a diversidade racial brasileira.
As críticas a igualdade jurídica também estiveram presentes nas publicações da
Gazeta Médica da Bahia, merecendo destaque a edição de junho de 1892, com a
publicação dos Estudos de Craniometria. O craneo do salteador Lucas e do de um
índio assassino. Como Mérida (2010) e Neves et al (2008), nesse trabalho foram
mencionadas as doutrinas da escola positiva italiana na análise do crânio de um
famoso criminoso baiano, o Lucas Evangelista (conhecido por Lucas da Feira), que
era um negro escravo fugido que, em 1828, juntou-se com um grupo de escravos
para cometer crimes. Em 1848 Lucas foi preso, tendo de início negado a autoria de
todos os crimes, mas, após um intenso e longo interrogatório, teria admitido o as-
sassinato de mais de vinte pessoas, além das práticas de roubo, sequestro e estupro.
Ocorre que, ao contrário do que a teoria de Lombroso afirmava, Lucas não delatou
nenhum de seus companheiros do crime. Referido comportamento, não era o pa-

289
Júlia Farah Scholz
drão previsto por Lombroso4 e seus defensores, eis que para eles os criminosos
sempre buscariam atenuar seus atos acusando outros e reclamando terem cometido
seus crimes sob influência e domínio dos cúmplices. Além disso, embora o com-
portamento de Lucas estivesse em dissonância com o defendido pela escola italiana,
a análise fisiológica a partir da craniometria não correspondia à descrição do crimi-
noso nato (RODRIGUES, 2015, p. 126).
Mesmo assim, crendo na classificação de raças desenvolvida na sua principal
obra, Nina Rodrigues incorporou, de certo modo, a ideia de atavismo, pois acredi-
tava que a mestiçagem entre os povos era o modo de incorporar o selvagem na po-
pulação e que esses selvagens tinham uma incapacidade organizacional e cerebral,
sendo raças inferiores. Contudo, quando analisou o cangaceiro Lucas da Feira, tan-
to o cérebro quanto a caixa craniana apresentavam as mesmas medidas encontradas
na raça branca, o que não o impediu de continuar defendendo a tese de que na raça
negra a caixa craniana se desenvolvia menos do que na raça branca, o que reduzia o
volume cerebral prejudicando o desenvolvimento mental.
As influências da Escola Positiva aparentemente não se resumiram às discussões
perpetradas por Raimundo Nina Rodrigues e João Vieira de Araújo no século XIX.
Os adeptos da Escola Positiva tentaram, por diversas vezes, propor reformas legais e
institucionais no intuito de materializar sua teoria, principalmente em direção às
mulheres, menores e loucos, ou seja, aqueles que deveriam receber um tratamento
jurídico diferenciado.

3. O Código Penal de 1940: uma análise geral sob a perspectiva


da Escola Positiva italiana
O Código Criminal de 1830, em seu artigo 12 dispunha que “Os loucos que tive-
rem commettido crimes, serão recolhidos ás casas para elles destinadas, ou entre-

4. As particularidades físicas que permitiram a definição de criminoso nato são, portanto: crânios
pequenos e deformados, orelhas grandes, cabelos e olhos escuros, pesos e alturas maiores, menor
sensibilidade à dor, entre outras. Dentre as características psicológicas, Lombroso aponta a in-
sensibilidade moral, impulsividade, preguiça, vaidade e as paixões (álcool e jogos). O criminoso
nato não desenvolve senso moral e apresenta distúrbios sensoriais e disfunções dos reflexos va-
somotores (LOMBROSO, 2010).
290
Reflexões sobre a Escola Positiva
gues ás suas familias, como ao Juiz parecer mais conveniente”, previsão esta que
persistiu até a entrada do código republicano de 1890. As “casas para eles destina-
das”, na visão do penalista e simpatizante da Escola Positiva, João Vieira de Araújo,
eram os manicômios criminais ou hospícios penais, para onde o juiz tinha o arbi-
trio de decidir se mandaria os loucos criminosos para esses locais5 ou suas familias
(SONTAG, 2013).
O Código Penal de 1890 previu em seu artigo 29, que “Os indivíduos isentos de
culpabilidade em resultado de affecção mental serão entregues às suas famílias, ou
recolhidos a hospitaes de alienados, se o seu estado mental assim exigir para segu-
rança do público”. O código republicano não trouxe inovações quanto ao trata-
mento dado aqueles considerados inimputáveis6, como se pode notar, mas deixou
de fazer referência aos semi-imputáveis, e a prática penal acabava, por vezes, en-
quadrando-os no art. 27, §4°: “os que se acharem em estado de completa privação
de sentidos e de intelligencia no acto de commetter o crime” (BRASIL, 1890).
A possibilidade de a aplicação da medida de segurança na forma preventiva, an-
terior a prática do delito, era modalidade prevista expressamente no Código Penal
de 1890 e tinha, como justificativa, a segurança do público, não interessando a rein-
serção do indivíduo ao convívio social. Desse modo, devido à ausência de prazos
para o cumprimento da medida de tratamento, esta perduraria até que a periculosi-
dade do agente cessasse.
Segundo Silva (2020), com o Decreto nº 1.132, de 22 de dezembro de 1903, tor-
nou-se obrigatório o internamento dos alienados em hospitais psiquiátricos, da
mesma forma o delinquente acometido de doença mental seria internado nos asilos
públicos, com o intuito de separá-los dos criminosos comuns. Em síntese, o Decre-
to n° 1.132, de 22 de dezembro de 1903 disciplinou pela primeira vez as medidas de
segurança no Brasil. Antes disso, a legislação em matéria penal cuidava das medidas
de tratamento dos chamados doentes mentais, como penas. É o que fez, por exem-

5. Entretanto, conforme Sontag (2013) salienta, apenas em 30 de abril de 1921, no Rio de Janeiro, é
instituído o primeiro manicômio criminal no Brasil, por meio do Decreto nº 14.831, de 25 de
maio de 1921.
6. De acordo com o art. 27, §3º: Art. 27. Não são criminosos: [...] § 3º Os que por imbecilidade
nativa, ou enfraquecimento senil, forem absolutamente incapazes de imputação.
291
Júlia Farah Scholz
plo, o Código Criminal do Império, em que o art. 12 previa o recolhimento dos
doentes mentais às casas a eles destinadas ou o encaminhamento a suas famílias,
sendo que a decisão caberia ao juízo criminal.
A nova legislação brasileira, ao prever os “hospitais” como destino aos aliena-
dos, demonstra, ainda que sutilmente, uma relação com o pensamento defendido
pelos exponentes da Escola Positiva Italiana. Nesse sentido, Raffaele Garofalo, de-
fendia na sua obra “Criminologia” que os criminosos alienados compõem uma
classe especial de delinquentes cuja repressão jamais poderá consistir na eliminação
absoluta (pena de morte, por exemplo), mas na reclusão por tempo indeterminado
em manicômio criminal (GAROFALO, 1925, p. 344-345).
A pena de morte, sob a perspectiva de defesa social, tão somente era defendida
por Garofalo para os criminosos natos, uma vez que jamais se enquadrariam às
normas que regulam a vida em sociedade. As contribuições de Garofalo refletiam
um certo ceticismo quanto à readaptação do homem criminoso, o que justificava
suas posições radicais em favor da pena de morte, já que, ao partir das ideias de
Darwin sobre a seleção natural, os criminosos natos seriam delinquentes sem capa-
cidade de adaptação, sendo impossível sua recuperação. Não se vislumbra, desse
modo, em Garofalo o interesse na ressocialização do delinquente, dada a ênfase
conferida à defesa social.
Para a sociologia criminal de Enrico Ferri, a concepção da defesa social se deu de
maneira divergente àquela proposta por Lombroso e Garofalo, principalmente no
que se refere a impossibilidade de ressocialização de um “criminoso nato”. Aos
olhos de Ferri, em virtude de a justiça penal ser guiada pela punição e pela defesa
social, “é necessidade lógica atender sobretudo, e antes de tudo, ao autor do crime,
para lhe deduzir a potência ofensiva, isto é, avaliar, além do dano produzido, o pe-
rigo que ele representa, quanto à probabilidade de repetir outras ações criminosas”
(FERRI, 2003, p. 257). Por essa razão, para ele a avaliação da “periculosidade” do
indivíduo está baseada em três critérios: a gravidade do crime, os motivos determi-
nantes e a personalidade do agente (FERRI, 2003, p. 275). Em especial no que con-
cerne à relação loucura e crime, Enrico Ferri critica a falta de distinção em Lombro-
so entre loucos comuns e loucos delinquentes, argumentando que a loucura não
basta, por si só, para conferir respaldo à delinquência (FERRI, 2003, p. 433).

292
Reflexões sobre a Escola Positiva
Talvez, Raffaele Garofalo tenha sido um dos responsáveis pela introdução do
conceito de periculosidade (ou “temibilidade”) e, consequentemente, a necessidade
de uma nova forma de intervenção penal – a medida de segurança. É justamente
nesse viés, enquanto instrumento de defesa social, que a medida de segurança foi
introduzida na doutrina penalista, considerado limitador preventivo da “periculo-
sidade”. As medidas de segurança não foram, contudo, introduzidas na redação
original do Código Penal de 1940 pelos discípulos da Escola Positiva, mas sim, re-
sultantes de uma reinterpretação das concepções positivistas de prevenção delitiva e
da perspectiva de defesa social. A partir da análise do texto original de 1940, obser-
va-se que este se constrói pelos critérios culpabilidade e periculosidade criminal, ou
seja, pena e medida de segurança.
Com a outorga do Código Penal de 1940, o art. 76 passou a exigir uma certa le-
galidade na estipulação de medidas de segurança, exigindo-se a prática prévia de
um delito para sua aplicação e a verificação da periculosidade do agente (BRASIL,
1940). A medida de segurança, na redação original do Código Penal de 1940, se
destinava tanto aos inimputáveis quanto aos semi-imputáveis. Eram divididas em
patrimoniais e pessoais (art. 88). Dentre as de caráter patrimonial, incluíam-se a
interdição de estabelecimento ou de sede de sociedade ou associação, e o confisco
de bens. Já as medidas de segurança pessoais subdividiam-se em detentivas e não
detentivas: as primeiras estavam a internação em manicômio judiciário ou em casa
de custódia e tratamento, e a internação em colônia agrícola ou instituo de trabalho,
de reeducação ou de ensino profissional; as segundas se referiam a liberdade vigia-
da, a proibição de frequentar determinados lugares e o exílio local.
As propostas da antropologia criminal também receberam atenção pelo tecnicis-
ta Nelson Hungria, protagonista da comissão que elaborou o Código de 1940. Em
seus “Comentários ao Código Penal”, no volume III publicado em 1956, Hungria
(1956) explica que, enquanto o caráter da pena é repressivo, a medida de segurança
– ideia fortificada pela escola positiva – tem caráter preventivo, ou seja, a primeira
fundamenta-se na culpabilidade, a segunda, na “periculosidade”. Dessa forma, a
pena transparece um caráter de justiça e a medida de segurança uma “utilidade”,
eis que “não é sanção e se impõe por um fato provável, isto é, provável retorno à
prática de fato previsto como crime’ (HUNGRIA, 1956, p. 9). Nesse contexto, a
medida de segurança como instrumento de prevenção a um crime que futuramente
293
Júlia Farah Scholz
pode vir a ser praticado tem como objetivo a recuperação social do indivíduo, ten-
do em vista que “para a medida de segurança, o crime é apenas um eventual sinto-
ma ou indício do estado de perigo individual, que é a sua condição sine qua non”
(HUNGRIA, 1956, p. 19). Observa-se, nesse viés, que o penalista, faz referência ao
conceito de “temibilidade” de Garofalo como fundamento da defesa social contra a
criminalidade.
No que concerne ao Código Penal de 1969, revogado antes mesmo do início de
sua vigência, este havia posto fim ao sistema duplo binário do código anterior, eli-
minando, por conseguinte, a cumulatividade entre pena e medida de segurança.
Contudo, a ausência de prazo determinado para a medida de segurança ainda se fez
presente no código de 1969, o qual previu apenas o período mínimo de internação
em manicômio judicial, permitindo a duração dessa medida segurança por tempo
indeterminado, até a cessação de periculosidade do internado.
Ainda no que concerne às medidas de segurança, estas dividem-se em pessoais
(detentivas ou não-detentivas) ou patrimoniais. As medidas detentivas são a inter-
nação em manicômio judiciário e a internação em estabelecimento psiquiátrico
anexo ao manicômio judiciário ou ao estabelecimento penal, ou em seção especial
de um ou de outro. As não detentivas são a interdição de exercício de profissão, a
cassação de licença para direção de veículos motorizados, o exílio local e a proibi-
ção de frequentar determinados lugares. Por fim, no rol de medidas patrimoniais
estão a interdição de estabelecimento ou de sociedade ou associação e o confisco.
De acordo com o art. 31, “não é imputável quem, no momento da ação ou da
omissão, não possui a capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de deter-
minar-se de acordo com esse entendimento, em virtude de doença mental ou de
desenvolvimento mental incompleto ou retardado” (BRASIL, 1940). Se a doença ou
deficiência mental não leva a inimputabilidade absoluta, o juiz poderia aplicar a
redução facultativa da pena prevista no parágrafo único do art. 31 ou a medida de
segurança de internação. Essa mudança na aplicação das medidas de segurança
pode ser lida como um aspecto “revolucionário” do Código Penal de 1969.
No entanto, haja vista a revogação do Código Penal de 1969 antes mesmo do
início de sua vigência, o sistema duplo binário de aplicação das medidas de segu-
rança apenas foi alterado em 1984, com a Lei nº 7.209, de 11 de julho. A partir de

294
Reflexões sobre a Escola Positiva
então, o Código Penal de 1940 adotou o sistema vicariante, rompendo com a apli-
cação cumulativa de pena e medida de segurança.

4. Nuances da herança da Escola Positiva no Código Penal de


1940
No Brasil do século XX, um dos defensores do tecnicismo jurídico-penal, Nel-
son Hungria7 foi membro da comissão revisora do projeto de código penal iniciado
por José de Alcântara Machado em 1938, que estava sendo produzido durante o
governo do Presidente Getúlio Vargas. A elaboração do código penal, outorgado
por Decreto-Lei, foi fruto da comissão técnica ligada ao Ministro da Justiça, Fran-
cisco Campos. A suposta legitimação dessa comissão recaía sobre seu caráter racio-
nal, técnico e eficiente.
Nesse aspecto, Nunes (2016) salienta que durante o Estado Novo, as iniciativas
dos projetos de lei eram atribuição do Presidente da República, eis que o Parlamen-
to teve sua atuação drasticamente reduzida, o que representou o controle do Execu-
tivo sobre o legislativo. Desse modo, no que concerne ao caráter técnico para con-
dução da atividade legislativa, Nunes (2016) destaca o papel atribuído ao Ministério
da Justiça, cujo ministro na época era Francisco Campos, o qual havia tecido elogi-
os ao anteprojeto de um novo código penal de autoria de José de Alcântara Macha-
do, mas também pontuou críticas concernentes à estabilidade requerida pela codifi-

7. Nelson Hungria Hoffbauer nasceu em 16 de maio de 1891, no Município de Além Paraíba,


Estado de Minas Gerais. Ingressou na Magistratura como Juiz da 8º Pretoria Criminal do antigo
Distrito Federal, nomeado por decreto de 12 de novembro de 1924. Posteriormente, foi Juiz de
Órfãos e da Vara dos Feitos da Fazenda Pública, tendo conquistado o cargo de Desembargador,
em 1944. Em 29 de maio de 1951 foi nomeado Ministro do Supremo Tribunal Federal, por de-
creto do Presidente Getúlio Vargas. Integrou, como membro substituto (25 de julho de 1955) e
efetivo (23 de janeiro de 1957), o Tribunal Superior Eleitoral, tendo ocupado a presidência do
órgão, no período de 9 de setembro de 1959 a 22 de janeiro de 1961.Mediante concurso, obteve a
livre docência da cadeira de Direito Penal da Faculdade Nacional de Direito. Participou da ela-
boração do Código Penal, do Código de Processo Penal, da Lei das Contravenções Penais e da
Lei de Economia Popular. Faleceu em 26 de março de 1969, na cidade do Rio de Janeiro. BRA-
SIL. Supremo Tribunal Federal. Ministros do Supremo Tribunal Federal: Nelson Hungria Ho-
ffbauer. Disponível em : http://www.stf.jus.br/portal/ministro/verMinistro.asp?periodo=stf
&id=133. Acesso em 15 out. 2020.
295
Júlia Farah Scholz
cação. Nesse ponto, a necessidade de reparação do projeto recai, principalmente, na
manutenção dos institutos de natureza política, ou seja, de contravenções, crimes
contra a ordem política e social e crimes contra a economia popular, todos manti-
dos no projeto de Alcântara Machado (NUNES, 2016).
A respeito da comissão revisora do anteprojeto de José de Alcântara Machado,
esta era composta por Nelson Hungria, Roberto Lyra, Antônio Vieira Braga e Nar-
célio de Queiroz, sob supervisão de Antônio José da Costa e Silva (SONTAG, 2012).
Suas atividades perduraram por dois anos e estiveram direcionadas ao estudo deta-
lhado e científico dos institutos penais que deveriam ser codificados ou não. Porém,
ainda que fruto da necessidade de aplicação de um método que resolvesse as incer-
tezas do direito penal, típica do tecnicismo jurídico, o código apresentava, já na sua
redação original, alguns institutos próprios da Escola Positiva e que foram adequa-
dos ao caráter científico exigido.
Embora o historiador Carlos Antônio Costa Ribeiro Filho tenha considerado o
código penal de 1940 uma vitória positivista (RIBEIRO FILHO, 1994), para Sontag
(2012, p. 71), ele não teria se atentado ao fato de que, apesar de Alcântara Machado
ter se identificado como positivista, com exceção de Roberto Lyra, os outros três
membros da comissão revisora, eram tecnicistas. Da mesma forma, o Ministro da
Justiça, Francisco Campos, e o supervisor da comissão, Antônio José da Costa e
Silva.
No que concerne a relação entre a previsão expressa da medida de segurança no
Código Penal de 1940, Sontag (2012, p. 72), utilizando-se dos argumentos de Nel-
son Hungria observa que a medida de segurança não pode ser considerada como
um triunfo da escola positiva, eis que sua codificação foi feita de maneira mitigada,
ou seja, como um complemento da pena principal. Logo, enquanto para os positi-
vistas ela era considerada substitutiva a pena de prisão, para os tecnicistas ela era
um complemento relacionado a periculosidade do agente e, não à culpabilidade.
Não há como se negar, contudo, que a previsão legal das medidas de segurança
no Código Penal de 1940 traga resquícios da escola positiva, ainda que mínimos,
havendo, pois, espaço para fazer uma relação da codificação tecnicista com os insti-
tutos defendidos pelos positivistas. Deve ser levado em conta que Lombroso (1968)
defendia, por razão da classificação de tipos criminosos, a modificação do regime

296
Reflexões sobre a Escola Positiva
das prisões propondo substitutivos a pena de prisão, tais como o confinamento
domiciliar, trabalhos pesados, reformatórios e colônias agrícolas e, ainda asilos
criminais. Esses últimos estariam destinados aos loucos, aos acusados de crimes
atrozes, aqueles que haviam cometido crimes em estado epiléptico aos que tendem
ao crime por fraquezas (alcoolismo, por exemplo) e aqueles que mostrarem marcas
de degenerescência. Para Lombroso (1968, p.422-423) não é o sistema penitenciá-
rio que previne as reincidências, já que este é a principal causa que leva os crimino-
sos a praticar o delito novamente, ponto no qual Lombroso discorre acerca do po-
der de contágio da criminalidade, tal como ocorre com doenças contagiosas.
Dentre as condições para aplicação da medida de segurança previstas no art. 76,
estava a prática de fato previsto como crime e a periculosidade do agente. Quanto a
verificação da periculosidade, predispunha o art. 77 que “quando a periculosidade
não é presumida por lei, deve ser reconhecido perigoso o indivíduo, se a sua perso-
nalidade e antecedentes, bem como os motivos e circunstâncias do crime autorizam
a suposição de que venha ou torne a delinquir”. A medida de segurança não pode-
ria ser revogada enquanto não se verificasse, mediante exame do indivíduo, que ele
deixou de ser perigoso (art. 81).
O sistema vigente no Código de 1940 era denominado “duplo binário”, pois
permitia a imposição sucessiva de pena (reclusão, detenção ou multa) e medida de
segurança ao condenado, conforme redação original do art. 82. Somente após alte-
rações trazidas pela Lei nº 7.209, de 11 de julho de 1984, que o Código Penal adotou
o sistema vicariante, sendo impossível a aplicação cumulativa de pena e medida de
segurança.
Acerca da diferenciação entre pena e medida de segurança, sustentou Fragoso
(1981) que as medidas de segurança se distinguem das penas porque se fundamen-
tam na periculosidade do agente, aplicando-se tanto aos imputáveis quanto aos
inimputáveis, já as penas, por outro lado, dizem respeito a culpabilidade do agente
e são aplicadas aos imputáveis. Ainda, de acordo com o autor, “a pena, em conse-
quência, se funda na justiça, como justa retribuição, ao passo que a medida de segu-
rança se funda na utilidade. A pena é sanção e se aplica por fato certo, o crime pra-
ticado, ao passo que a medida de segurança não é sanção e se aplica por fato prová-
vel, a repetição de novos crimes” (FRAGOSO, 1981, p. 7).

297
Júlia Farah Scholz
Outro instituto presente na codificação tecnicista, que pode ser interpretada
como uma adequação da antropologia criminal positivista, era a necessidade de
realização de um exame, previsto no art. 81 do Código Penal de 1940, para que se
verificasse se o condenado deixou de ser perigoso, como requisito para revogação
da medida de segurança (BRASIL, 1940). A realização desse exame remanesceu
obrigatória até 1984. Com a reforma do código penal realizada pela Lei nº 7.209, de
11 de julho de 1984 o art. 34 foi alterado de modo a constar que “o condenado será
submetido, no início do cumprimento da pena, a exame criminológico de classifi-
cação para individualização da execução (BRASIL, 1984)”. O art. 8º da Lei de Exe-
cução Penal também previu a realização de exame criminológico como requisito
para progressão de regime.
A Exposição de Motivos da Lei de Execução Penal (CAMPOS, 1940) defendia
em seu item 27 a realização de um exame da personalidade do condenado, uma
espécie de dossiê técnico do perfil dos condenados que acompanhasse a “mutação”
no comportamento do apenado. A busca, por meio do exame criminológico de um
diagnóstico de probabilidade de prática de crimes, e de circunstâncias criminóge-
nas que permitam ser possível traçar um padrão de personalidade voltada ao crime,
apresenta-se como um possível resquício da Escola Positiva.
Assim, até o advento da Lei 10.792/2003 exigia-se para progressão de regime,
além do cumprimento do requisito objetivo, o subjetivo, que consistia em uma
análise pericial realizada por intermédio do exame criminológico. Ainda que a
obrigatoriedade do exame tenha sido suprimida, ela ainda continua prevista no
texto do artigo 8º da Lei de Execução Penal e do artigo 34 do Código Penal. Para
dirimir maiores divergências, foram editadas a súmula 439 do Superior Tribunal de
Justiça e a súmula vinculante 268 do Supremo Tribunal Federal estabelecendo a
admissão do exame criminológico pelas peculiaridades do caso e desde a decisão
seja motivada. Contudo, o problema dessa interpretação reside no fato de que o
exame criminológico reaviva o pensamento do italiano Cesare Lombroso, já que

8. Para efeito de progressão de regime no cumprimento de pena por crime hediondo, ou equipara-
do, o juízo da execução observará a inconstitucionalidade do art. 2º da Lei 8.072, de 25 de julho
de 1990, sem prejuízo de avaliar se o condenado preenche, ou não, os requisitos objetivos e sub-
jetivos do benefício, podendo determinar, para tal fim, de modo fundamentado, a realização de
exame criminológico.
298
Reflexões sobre a Escola Positiva
tem por objetivo a prevenção de novos delitos com base no “atavismo”. Tendo em
vista o disposto no artigo 12 da Lei de Execução Penal, o exame criminológico não é
mais requisito para progressão de regime, sendo necessários somente a comprova-
ção de bom comportamento carcerário e do cumprimento do requisito temporal.
O art. 59 do Código Penal ao prever, dentre os critérios que devem ser verifica-
dos na fixação de pena pelo juiz, a personalidade do agente aparentemente relem-
bra a ideia de mentalidade voltada ao crime – o criminoso nato. Como se fosse pos-
sível perceber que certos indivíduos possuem características e comportamentos
voltados à delinquência, numa espécie de previsão do comportamento, de modo a
punir o acusado pelo que ele é e não pelo que fez.
A redação original do Código Penal de 1940 parece ter focado nos criminosos
como sujeitos antropologicamente diferenciados, dada a preocupação dos penalis-
tas com os institutos de análise da periculosidade e das medidas de segurança. O
professor Sontag (2012, p. 86), fazendo referência ao jurista espanhol Luís Jiménez
de Asúa, explica a evolução na compreensão dos termos crime e criminoso desde a
escola clássica ao tecnicismo penal: enquanto que na escola clássica o criminoso era
pensado como mera função do crime, sob o aspecto de sujeito abstrato do delito, a
escola positiva, ao revés, reconheceu a autonomia criminoso em relação ao crime
como fenômeno antropologicamente específico; por fim, “o tecnicismo, por sua
vez, deveria reconhecer a autonomia antropológica do criminoso, embora sob as
novas exigências do exclusivismo das leis penais positivadas como objeto da ciência
do direito penal”. Conforme o professor Ricardo Sontag:
Pois, se num certo sentido o tecnicismo reproduz os estereótipos construídos pelo
séquito de Ferri e Lombroso através desse reconhecimento da autonomia antropo-
lógica do criminoso (como se pode entrever também em Nelson Hungria), é bem
verdade, por outro lado, que o tecnicismo também opera uma certa “limpeza” nos
estereótipos legados pelo positivismo criminológico, que vai se refletir também nos
institutos consagrados no código, como é o caso da periculosidade que vem condi-
cionada à verificação anterior, pelo menos, de um fato criminoso para aplicação de
qualquer tipo de medida contra o sujeito – particularmente as medidas de seguran-
ça, a grande novidade do código penal de 1940 -, ainda que, no reverso desse pro-
cesso, esteja também a ênfase na noção de defesa social (SONTAG, 2012, p. 86).
Os institutos anteriormente mencionados podem representar uma adaptação
299
Júlia Farah Scholz
das ideias da escola positiva no que concerne aos tipos de delinquentes e suas carac-
terísticas, para uma possível determinação de delinquência hereditária. Seria inge-
nuidade, entretanto, afirmar com absoluta certeza a influência da escola positivista
para a codificação penal do século XX. É possível, contudo, confirmar que o tecni-
cismo jurídico-penal parece ter feito adequações, ou até mesmo reinterpretações,
dos institutos defendidos pela escola positiva, inserindo-se no texto original do
Código Penal de 1940.

5. Considerações finais
Os adeptos da Escola Positiva no Brasil viram, a partir do advento da República
em 1889, uma oportunidade de modificar as instituições jurídico-penais de acordo
com o debate da escola criminológica. Ocorre que o resultado não foi tão bom
quanto o esperado, já que o Código Penal de 1890 mostrou-se mais alicerçado à
Escola Clássica do que as reformas pretendidas pelos defensores da escola italiana
representada por Cesare Lombroso, Enrico Ferri e Raffaele Garofalo.
Ainda que no Brasil os discípulos da Escola Positiva não conseguissem materia-
lizar suas teorias de modo substancial no Código Penal de 1890, no século XX ob-
servam-se muitos resquícios da concepção positivista na própria legislação penal.
As reflexões sobre a escola positiva no pensamento dos juristas brasileiros recebem,
até certo ponto, respaldo legislativo, seja em função da aplicação de medidas de
segurança expressamente previstas no Código Penal de 1940, seja em virtude da
presunção de periculosidade expressa no texto legal. Ainda que não seja possível se
falar em uma influência da antropologia criminal positivista no pensamento tecni-
cista da comissão revisora do anteprojeto, verifica-se que houve uma sutil reinter-
pretação dos seus institutos ao corpo do código de 1940.
Portanto, embora o texto da codificação penal tenha sofrido alterações desde
que outorgada pelo Presidente Getúlio Vargas, vários de seus dispositivos enfati-
zam a necessidade de identificar traços de uma personalidade delinquente no ape-
nado. A defesa da periculosidade presumida do agente, isto é, da presunção de uma
personalidade voltada ao crime, parece ter se mostrado como ideal revolucionário
ao combate do crime no século XX: uma espécie de premonição do direito penal.

300
Reflexões sobre a Escola Positiva
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302
O CRIME DE ABORTO NO CÓDIGO PENAL
DE 1940 E SEU “SUBSTITUTIVO” DE 1969:
UMA ANÁLISE FEMINISTA DOS DISCURSOS
PARA SUA MANUTENÇÃO
THE CRIME OF ABORTION IN THE 1940 CRIMINAL
CODE AND ITS 1969 “SUBSTITUTIVE”:
A FEMINIST DISCOURSE ANALYSIS
ABOUT ITS MAINTENANCE

13
Bárbara Klopass Locks de Godoi *
Tayná Ferreira **

Resumo: O artigo analisa a viabilidade de estudos Abstract: The paper analyzes the possibilities of an
interseccionais da História do Direito Penal com os interlacement between History of Criminal Law
Pensamentos Feministas sobre a problemática do and Feminist Studies about abortion. The aim is to
aborto. O objetivo é ressaltar a importância das contrast the importance of the feminist contribu-
contribuições feministas para o complexo e intrin- tions to the complex and hardly discussion about
cado debate sobre a (des)criminalização do aborto decriminalization of abortion in Brazil, both in
no Brasil, tanto no campo do conhecimento cientí- scientific field and political field of social relations.
fico, como no campo políticas das relações sociais. Therefore, it is used feminist theoretical framework
Para tanto, adotou-se como marco teórico o pen- of Silvia Federici, through the concrete situation of
samento feminista de Silvia Federici, tendo como Brazilian penal codes of 1940 and 1969. The results

* Mestranda em Direito no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de


Santa Catarina. Integrante do LILITH - Núcleo de Pesquisa em Direito e Feminismos
(UFSC/CNPq). Bolsista do CNPq. Advogada.
** Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Cata-
rina, área de concentração Teoria e História do Direito. Bolsista PROEX-Capes. Pós-graduanda
em Direito Digital e Compliance pela Damásio Educacional. Bacharela em Direito pela Univer-
sidade do Vale do Itajaí. Advogada inscrita na seccional de Santa Catarina.
303
Bárbara Klopass Locks de Godoi · Tayná Ferreira
recorte empírico as codificações penais brasileiras indicate the need to promote interlocutions be-
de 1940 e 1969. Os resultados indicam a necessida- tween History of Criminal Law and feminist stud-
de de interlocuções entre a História do Direito ies, as essential condition to understand the abor-
Penal e os pensamentos feministas, como condição tion as the right of a women’s control over their
fundamental para se compreender o aborto como reproductive lives and their bodies.
expressão da autonomia das mulheres sobre seus
corpos.
Palavras-chave: aborto; criminalização; história do Keywords: abortion; criminalization; legal history;
direito; feminismos. feminism.

1. Introdução
O aborto, dada a sua magnitude, é uma questão de saúde pública1. O Brasil tem
uma das legislações penais mais restritivas do mundo em relação ao aborto. O Có-
digo Penal brasileiro permite o aborto em duas situações: risco à vida da gestante
ou gravidez decorrente de estupro. Além disso, após decisão do Supremo Tribunal
Federal, é permitido nos casos de anencefalia. A rigidez da legislação é um sintoma
de que, no país, o aborto não é tratado como uma questão de saúde pública, mas
como uma questão criminal.
Um olhar para a História do Direito Penal no Brasil revela que, o vigente Código
Penal é resquício da Era Vargas, período marcado por um forte autoritarismo. Nes-
te momento da História do Brasil, especialmente a partir do denominado Estado
Novo, prevalecia um modelo de família nuclear que, legitimando rígidas dissimetri-
as de gênero, constituiu-se em condição fundamental para a expansão do capitalis-

1. A Organização Mundial da Saúde (2017) estima que cerca de 25 milhões de abortos inseguros
são realizados por ano no mundo, dos quais resulta um índice de mortalidade de aproximada-
mente 47 mil mulheres. No Brasil, há carência de dados. Isto porque, as bases de dados oficiais
de saúde não permitem traçar uma estimativa do número de abortos que ocorrem no país. Os
dados disponíveis se restringem às internações por complicações e aos óbitos decorrentes de
aborto nos serviços públicos de saúde (CARDOSO; VIEIRA; SARACENI, 2020). A Pesquisa Na-
cional do Aborto, estudo empírico de elevado rigor científico, revela a magnitude do aborto no
Brasil. Em 2016, 1 em cada 5 mulheres, aos 40 anos de idade, realizou, pelo menos, um aborto.
Em 2015, foram, aproximadamente, 406 mil mulheres. Quase a metade das mulheres precisou
ser internada para finalizar o aborto, circunstância que sinaliza que, essas mulheres utilizaram
métodos inseguros para provocar o aborto (DINIZ; MEDEIROS; MADEIRA, 2016).
304
O crime de aborto no Código Penal de 1940 e seu “substitutivo” de 1969
mo industrial (WOLFE, 1994, p. 35).
A História do Direito Penal demonstra, ainda, que, em 1969, durante a ditadura
civil-militar que subverteu a ordem constitucional, outorgou-se um novo Código
Penal, que, no entanto, não entrou em vigor. Neste período, as mulheres viveram a
glória e o drama das mudanças sociais mais profundas. É a geração da pílula, do
trabalho fora de casa, do livre orgasmo, sempre buscando liberdade e autonomia
(RIBEIRO, 1997, p. 13). As mulheres estavam, portanto, ousando confrontar o mo-
do de funcionamento da sociedade capitalista, fragilizando as estruturas da família
nuclear.
Neste sentido, o problema que move a presente pesquisa está formulado na se-
guinte pergunta: por que o aborto é criminalizado no Brasil? A hipótese central que
norteia a pesquisa é a de que o tema envolve, para além da saúde pública, o con-
fronto de duas teses: a tese do direito à vida do nascituro e a tese da liberdade re-
produtiva das mulheres. Nesta perspectiva, tendo em vista a insuficiência do dis-
curso histórico jurídico-penal (porque parte de um referencial limitado, no qual a
mulher tem menos capacidade físico/intelectual, na essencialidade do feminino e
masculino), propõe-se um diálogo interseccional com os pensamentos feministas,
para se discutir as complexidades que permeiam o assunto, pois, compreendemos a
criminalização do aborto – em qualquer campo do conhecimento –, enquanto uma
política que expropria as mulheres do controle sobre seus próprios corpos.
Adotando-se teoria crítica feminista, a qual é centrada na forma de organização
do mundo social e natural materializado nas relações sociais entre homens e mu-
lheres (HARDING, 1996, p. 16), busca compreender por que e como as mulheres
ocupam uma posição subordinada, tanto no âmbito da produção do conhecimento
científico, como no âmbito político das relações sociais (BANDEIRA, 2008, p. 210).
Assim, partindo-se do método indutivo e pesquisa bibliográfica e documental, o
artigo analisa a viabilidade de estudos interseccionais da História do Direito Penal
com os pensamentos feministas sobre a problemática do aborto. O objetivo é ressal-
tar a importância das contribuições feministas para o complexo e intrincado debate
sobre a (des)criminalização do aborto no Brasil, tanto no campo do conhecimento
científico, como no campo da organização do mundo social.
O estudo está estruturado em três partes, assim distribuídas: na primeira, anali-

305
Bárbara Klopass Locks de Godoi · Tayná Ferreira
sa-se a codificação penal de 1940, buscando-se compreender as ideias jurídico-
penais por detrás da criminalização do aborto; na segunda, analisa-se a codificação
de 1969, buscando-se compreender ideais jurídico-penais subjacentes à criminali-
zação do aborto; e, por fim, na terceira, a partir do marco teórico feminista de Silvia
Federici, propõe-se uma análise do complexo debate envolvendo o direito à vida
do nascituro e o direito à liberdade reprodutiva das mulheres, buscando-se averi-
guar rupturas e continuidades no pensamento jurídico-penal sobre a
(des)criminalização do aborto no Brasil.
Para nortear a primeira e segunda partes, recorremos às seguintes fontes primá-
rias: o o Código Penal de 1940; o Código Penal de 1969; o Projeto de Lei nº 810-A,
de 1949, de autoria do Deputado Arruda Câmara; a Revista Brasileira de Crimino-
logia e Direito Penal; a Revista de Direito Penal; a Revista de Informação Legislati-
va; a Revista Forense; a Revista dos Tribunais; e os comentários de Nelson Hungria
ao Código Penal.
Em relação à terceira parte, elegemos a obra O Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo
e acumulação primitiva, resultado de uma pesquisa de mais de trinta anos desen-
volvida pela filósofa ítalo-estadunidense Silvia Federici. Seu propósito é reconstruir
o desenvolvimento do capitalismo a partir de um ponto de vista feminista, explici-
tando como o controle e o disciplinamento dos corpos das mulheres para a repro-
dução foi – e continua a ser – uma condição essencial para alicerçar a consolidação
e a expansão do sistema capitalista. Para Federici, a criminalização do aborto é um
dos instrumentos através dos quais se manifesta a política de controle e disciplina-
mento dos corpos femininos, porque visa expropriar as mulheres das potências
sobre seus próprios corpos.

2. O crime de aborto na codificação penal de 1940


A década de 1930 no cenário brasileiro passou por momentos significativos em
sua configuração; com o golpe de 1937 Getúlio Vargas havia derrubado a Consti-
tuição de 1934, impôs uma constituição própria e fechou o parlamento, assim sen-
do a criação das leis ficou sob encargo dos ministérios. No que tange à legislação
penal, uma nova codificação deveria ser criada para refletir os objetivos estatais: a
defesa social (NUNES, 2016, p. 165-167).
306
O crime de aborto no Código Penal de 1940 e seu “substitutivo” de 1969
O Código Penal de 1890, conforme aponta Alcântara Machado (1940, p. 7) foi
recebido com rejeição por parte dos juristas, os quais consideravam-no inapropria-
do; dessa maneira, a sua reforma era um movimento lógico inevitável. Entretanto,
percorreu-se um longo caminho até que alguma proposta fosse acolhida. Momento
anterior a este, os projetos de João Vieira de Araújo (1893), da Câmara dos Depu-
tados (1899), Galdino Siqueira (1913) e Virgílio de Sá Pereira (1927) não tiveram
qualquer sucesso.
Posteriormente, a incumbência de atualizar a legislação penal foi solicitada ao
próprio Alcântara Machado em 1934, considerando as novas configurações do
Estado (1941, p. 16), que tramitou até o advento do “Estado Novo” durante seu
processo de elaboração. O anteprojeto sofreu poucas contribuições, críticas ou
apontamentos, mesmo com sua divulgação em jornais na forma de pesquisas
(MACHADO, 1941, p. 17-19).
Isso não significa que tal obra não tenha passado por alterações, uma vez que
submetido à comissão revisora e entregue à Alcântara Machado (1939), o qual esta-
va completamente ciente do que haviam feito com seu trabalho. Nesse sentido, ele
disserta (1941, p. 22):
Note-se que, na expressão do sr. Ministro, a Comissão se limitava a "introduzir alte-
rações e de algum modo COLABORAR mais profundamente NA OBRA POR MIM
REALIZADA. Nada mais. Alterou e colaborou no projeto de minha autoria. Vere-
mos oportunamente como, por um passe de mágica, se transformaram em autores
exclusivos os simples colaboradores.
Não obstante as discordâncias acerca das mudanças intentadas pela comissão
revisora (MACHADO, 1941, p. 24), o que se pretende debater guarda relação com
o pano de fundo que motivou a criação de outro Código Penal – e quais os desdo-
bramentos que importam a mulher, em principal, nas modalidades do crime de
aborto -, para além da rejeição dos juristas com seu antecessor de 1890.
O ponto inicial é explícito em determinar que “o projeto classifica os delitos, de
acordo com a hierarquia dos bens sacrificados ou postos em perigo [...] o princípio
fundamental do regime vigente é a subordinação dos interesses individuais aos
interesses coletivos” (MACHADO, 1941, p. 29).
Essa crítica não é em vão, mas se trata de uma resposta dada pelo aparato estatal

307
Bárbara Klopass Locks de Godoi · Tayná Ferreira
aos possíveis perigos que pudessem ser disseminados na sociedade brasileira, temo-
res consubstanciados na figura do comunismo2, vide o diploma constitucional de
1937, que entrou no ordenamento jurídico interno sem qualquer debate público,
ainda que houvesse um certo ar de legalidade e legitimidade, conforme salienta
Silveira (2010, p. 118-119).
Outro fator relevante para contextualizar o debate está na influência que a Esco-
la Positiva pode ter lançado sobre o Código Penal de 19403, e, a partir disso, com-
preender a figura da mulher diante dos estudos biodeterministas - que, embora já
estivessem em descrédito no cenário europeu – encontrou terreno fértil no Brasil,
ainda que tenha passado por adaptações -, a aplicação ou não desses estudos na
criminalização das tipologias de aborto (SILVEIRA, 2010, p. 120).
Considerado um dos expoentes da criminologia moderna, Cesare Lombroso
buscou encontrar e construir uma abordagem científica do crime, que não ficasse
adstrita a uma definição puramente legal (ALVAREZ, 2002, p. 678). Dessa maneira,
tensionando até mesmo com os estudos da Escola Positiva da qual “fazia parte”,
Lombroso partia do pressuposto crível que “as raízes fundamentais do crime eram
biológicas e que poderiam ser identificadas a partir dos estigmas anatômicos dos
indivíduos” (ALVAREZ, 2002, p. 679).
Além de ser compreendida enquanto a teoria mais moderna para análise do
crime e do criminoso, a receptividade das ideias de Lombroso no Brasil também
ocorreu em razão das mudanças na conjuntura organizacional política (destaca-se a
Proclamação da República em 1888). Nesse sentido elucida Alvarez (2002, p. 693):
Assim, o antigo medo das elites diante dos escravos será substituído pela grande in-
quietação em face da presença da pobreza urbana nas principais metrópoles do país.
[...] com a Proclamação da República, os desafios colocados para as elites republica-
nas não irão limitar-se ao estabelecimento de novas formas de controle social, mas
incluirão especialmente o problema ainda maior de como consolidar os ideais de

2. Por isso Alcântara Machado compreendia que os crimes praticados contra o Estado e a nação
teriam maior grau de importância, aparecendo primeiro na ordem cronológica e, posteriormen-
te a vida, costumes e liberdades individuais.
3. Para uma análise mais detida acerca da problemática da “Escola Positivista” no Brasil cf. Ricardo
Sontag (2015, p. 203-230), principalmente a partir do item 3.
308
O crime de aborto no Código Penal de 1940 e seu “substitutivo” de 1969
igualdade política e social do novo regime ante as particularidades históricas e soci-
ais da situação nacional.
Adaptando os ensinamentos de Lombroso, o médico Nina Rodrigues tornou-se
uma significativa referência no Brasil, igualmente questionou as incongruências do
Código Criminal de 1890, em específico no tocante à aplicação de uma mesma lei
para as inúmeras peculiaridades da população, assim sendo, a responsabilidade
penal dependeria de atributos pessoais do criminoso (ALVAREZ, 2002, p. 694-
695).
Em caminho similar, Viveiros de Castro, também adepto a essas ideias, disser-
tou que a “a capacidade craniana da mulher é inferior ao homem [...] o que quer
dizer na maioria geral dos casos a mulher é muito inferior em inteligência ao ho-
mem”, ressalta que nos mais variados campos todas as descobertas foram realizadas
por figuras masculinas (1894, p. 205-207)4.
Não obstante, reconhece que existem delitos que, em sua maioria, são praticados
por mulheres: abortos, infanticídios, envenenamentos; aduz, que considerando os
espaços por onde transitam as mulheres – normalmente reclusas na “calmaria” das
casas – sem estarem impulsionadas pelo “esforço desesperado da luta pela existên-
cia”, constitui outro fundamento para que não se deixem levar por práticas crimi-
nosas (CASTRO, 1894, p. 207).
Se carecem de maiores explicações no que tange às exposições de motivos no
que concerne aos tipos penais de aborto (SENADO FEDERAL, 1969, p. 138), inde-
pendentemente da concordância ou discordância que teve o autor do projeto origi-
nal, qual seja, Alcântara Machado – é este o principal motivo pelo qual buscou-se
nas teorias que vigoravam à época.
Ao analisar o papel da mulher e sua relação com o Direito, as diferenças de tra-

4. Em sentido similar, cf. Vasco Smith de Vasconcellos (1923, p. 24-25): “As mulheres perante as
nossas leis civis não gozam das mesmas prerrogativas que o homem, sem que isso denote inferi-
oridade de um sexo em relação ao outro, fundando-se naturalmente nas notáveis diferenças de
estrutura orgânica e nas atitudes psicológicas que fazem da mulher um ente sensível e afetuoso
[...] Os antropologistas e psicólogos positivistas sustentam que, sendo a imaginação da mulher
exaltada e sua sensibilidade esquisita, viva e impressionável, nela predomina o instinto sobre a
reflexão [...]”
309
Bárbara Klopass Locks de Godoi · Tayná Ferreira
tamento também são encontradas em outros campos, como era o caso do Código
Civil de 1916, onde a mulher recebeu equiparação aos relativamente capazes, como
aponta Magalhães (1980, p. 128). Seja no aspecto civil ou criminal, como é possível
perceber, o direito à liberdade estava muito limitado.
No tocante aos tipos penais concernentes ao aborto, o Código Penal de 1940
elencou três figuras distribuídas dos arts. 124 ao 126, fazendo exceção ao aborto
necessário/legal, desde que praticado por médico quando resultar de estupro ou
não houver outro meio para salvar a vida da gestante - condutas que não sofreram
modificações desde que entrou em vigor, em 1º de janeiro de 1942 (BRASIL, 2020).
Para justificar a manutenção, que também era prevista no Código Penal de 1890,
expôs o Ministro Francisco Campos (SENADO FEDERAL, 1969, p. 138):
Mantém o projeto a incriminação do aborto, mas declara penalmente lícito, quando
praticado por médico habilitado, o aborto necessário, ou em caso de prenhez resul-
tante de estupro. Militam em favor da exceção razões de ordem social e individual, a
que o legislador penal não pode deixar de atender.
Razões para além dessas não foram oferecidas. Nas palavras de Rolim (2007, p.
106), o aborto era entendido como um problema social grave, que deveria ser com-
batido com ainda mais urgência que o infanticídio. Nessa esteira, tem-se a influên-
cia da subjetividade religiosa no meio social, uma vez que para a acepção católico-
cristã mesmo o aborto legal constituiria infração ao mandamento “Não matarás”
(ROLIM, 2007, p. 106).
A conjuntura social também demandou profundas alterações, desvencilhando-
se do individualismo cultuado no início do século XIX, resultante dos ideais do
liberalismo e, dessa forma, seu protagonismo era reduzido. Daí a necessidade de
uma intervenção incisiva, colocando os interesses sociais/coletivos noutro patamar
de importância (ROLIM, 2007, p. 102-103).
Os comportamentos das mulheres, nesse contexto, foram objeto de preocupação
daqueles que estudavam acerca da criminalidade, o que redundou não apenas na
tipificação de diversas formas de aborto, mas outros títulos do Código Penal de
1940 também incidiam sobre os corpos das mulheres: crimes contra os costumes,
crimes contra a família. Sua finalidade era prevenir conflitos que, eventualmente,
viessem a perturbar a sociedade (ROLIM, 2007, p. 105).
310
O crime de aborto no Código Penal de 1940 e seu “substitutivo” de 1969
Esse controle, como apontado, não esteve circunscrito à esfera penal, era tam-
bém previsto no Código Civil de 1916, em que a administração da família ficava sob
o comando o homem, bem como basta lembrar que a mulher não tinha direito ao
voto até 1932 (MAGALHÃES, 1980, p. 131-132).
Se de um lado figurava o Estado, não muito distante estava a religião, principal-
mente a de matriz católico-cristã ocidental, a qual contribuía para manutenção do
controle das mulheres, sua participação ativa na organização social pode ser um dos
elementos chave para compreender a continuidade da criminalização do aborto
(ROLIM, 2007, p. 108-109).
A ideia da sexualidade dissociada do caráter reprodutivo não foi bem recepcio-
nada na concepção da Igreja Católica, a qual também percebeu que seu domínio
sob várias dinâmicas sociais havia diminuído – recaindo no aparato repressivo esta-
tal. Essas dinâmicas representavam declínio moral, pecado, uma verdadeira quebra
de valores (ROLIM, 2007, p. 110).
Tal método de compreensão se consolidou no Código Penal de 1940, como pôde
ser visto. No entanto, o projeto de uma nova legislação, proposta por Nelson Hun-
gria – a qual somente não entrou em vigor, mas foi aprovada – traria mudanças nas
modalidades previstas para o crime de aborto, cujos motivos poderão esclarecer
acerca da continuidade (HESPANHA, 2012, 13-39) do pensamento de controle dos
corpos femininos.

3. A codificação penal de 1969: “Projeto Hungria”


Em 1961, tendo instituído um programa de reforma da legislação codificada, o
governo Jânio Quadros atribuiu a Nelson Hungria a incumbência de elaborar um
anteprojeto de Código Penal. Segundo Dotti (1978, p. 01), a estreita vinculação de
Hungria com o Código Penal de 1940 constitui, talvez, um dos motivos para man-
tê-lo no círculo de juristas responsáveis pelo processo de reformas.
A reforma do Código Penal, especificamente, tinha como objetivo fortalecer o
tecnicismo jurídico-penal, e, consequentemente, a Ciência do Direito Penal. É o
que se evidencia da leitura da Exposição de Motivos do projeto (Brasil, 1969):
O Código Penal vigente será, talvez, a melhor de nossas codificações. Sua técnica

311
Bárbara Klopass Locks de Godoi · Tayná Ferreira
apurada bem revela o elevado desenvolvimento da Ciência do Direito Penal entre
nós. Por isso mesmo, não se pretendeu elaborar um código totalmente novo, aban-
donando-se a sistemática de nossa atual legislação. Ao contrário, o propósito foi
sempre o de manter, tanto quanto possível, as soluções da lei vigente […].
A Comissão Revisora, composta por Nelson Hungria, Hélio Bastos Tornaghi e
Roberto Lyra, iniciou seus trabalhos em janeiro de 1964. No entanto, os aconteci-
mentos que redundaram no golpe de 1º de abril de 1964, subvertendo a ordem
constitucional, afetaram sobremaneira o processo de reformas, causando a inter-
rupção das atividades da Comissão. Roberto Lyra (Apud Dotti, 1978, p. 39), exter-
nando desalento com a conjuntura política do Brasil naquele período, decide pedir
demissão em junho de 1964, expondo que “uma obra de tanta magnitude científica
e de tanta delicadeza técnica não deve sobrecarregar e desviar, nesta hora, um par-
lamento ressentido e emprazado”5. A fala de Lyra reforça o caráter técnico da tarefa
codificadora.
Diante de tais circunstâncias, as atividades da empreitada codificadora são re-
tomadas em fevereiro de 1965, momento em que, o Ministro da Justiça, Milton
Campos, resolve designar nova Comissão, integrada por Nelson Hungria, Hélio
Bastos Tornagui, Aníbal Bruno e Heleno Cláudio Fragoso (FRAGOSO, 1971, p. 9).
As turbulências do cenário político e a radicalização do regime ditatorial conti-
nuaram a influenciar a empreitada codificadora, que permaneceu sem alterações
significativas até 1969, momento em que, o Ministro da Justiça, Gama e Silva, co-
munica a Hungria a sua intenção de editar o novo Código Penal por decreto, ime-
diatamente. Fragoso (1971, p. 10) relata, porém, que o projeto “não estava em con-
dições de se transformar em lei como se achava”, pois, era necessário “realizar uma
segunda leitura, bem como diversas questões haviam ficado em aberto”.
Hungria falece em março de 1969, sem ver seu projeto transformado no novo
Código Penal. Após a sua morte, a Comissão Revisora restou composta por Heleno
Fragoso, Benjamin Moraes Filho e Ivo D’Aquino. Aníbal Bruno, doente, não parti-
cipou das reuniões (FRAGOSO, 1971, p. 11).

5. Durante a codificação de 1940, no entanto, Roberto Lyra não adotou a mesma postura, pois,
segundo Nunes (2010, p. 124), o jurista “aceitou momentaneamente o regime para que se pu-
desse realizar a clamada reforma da legislação penal”.
312
O crime de aborto no Código Penal de 1940 e seu “substitutivo” de 1969
Acredita-se que, apesar das críticas ao projeto, Fragoso permaneceu até a con-
clusão do processo de reforma em respeito à amizade com Hungria6. De acordo
com o próprio Fragoso (1971, p. 11), Hungria, ainda que reconhecendo a incom-
pletude do projeto, teria manifestado o desejo em vê-lo finalmente transformado no
Novo Código Penal.
Em 21 de outubro de 1969, é publicado o decreto-lei nº 1.004, o Novo Código
Penal, cuja entrada em vigor estava prevista para 1º de agosto de 1970. Contudo,
após sucessivos adiamentos, foi definitivamente revogado em 11 de outubro de
1978 (DOTTI, 1990, p. 40). É pertinente enfatizar que o Código não consolidou
uma verdadeira reforma, sobretudo em relação a sua parte especial, que, exceto
modificações pontuais, manteve a estrutura da codificação de 1940. Neste sentido,
como afirma Pires (1971, p. 139), o projeto “estruturalmente repete as linhas mes-
tras do Código atual. Substancialmente é o código atual, modificado”.
Na incriminação do aborto, em suas modalidades diversas, o Código manteve,
em essência, as disposições da codificação de 1940. Entretanto, introduziram-se
alterações significativas, entre as quais, destacam-se o aborto por motivo de honra e
o aborto culposo. Além disso, às causas de exclusão de antijuridicidade impuseram-
se novas condições, que tornaram o aborto mais difícil, portanto. No primeiro caso,
aborto terapêutico, impôs-se a necessidade de confirmação ou concordância de
outro médico. No segundo caso, gravidez resultante de estupro, impôs-se, além do
consentimento da vítima ou de seu representante (condição já prevista no Código
Penal de 1940), a necessidade de decisão judicial, reconhecendo, em face das pro-
vas, a existência do crime (FRAGOSO, 1694).
Sobre as novas condições impostas às causas de exclusão de antijuridicidade,
consta na Exposição de Motivos que: “Melhor redação foi dada aos casos de des-
criminação do aborto. Quando é o único recurso para evitar a morte da gestante ou
quando a gravidez resulta de estupro. Cuidados especiais foram tomados para a
verificação da honestidade de ambas as alegações” (BRASIL, 1969).
O aborto não estava no centro dos debates ocorridos antes, durante e após a re-
forma penal. Todavia, isso não significa que o tema não estivesse sendo discutido

6. É importante enfatizar que, ao final, a Exposição de Motivos ficou a cargo do Ministro Gama e
Silva.
313
Bárbara Klopass Locks de Godoi · Tayná Ferreira
na arena social pelos juristas, médicos, parlamentares e outros atores sociais. Em
1949, o deputado e fundador do Partido Democrata Cristão (PDC), Arruda Câma-
ra, propõe projeto de lei propugnando a revogação do artigo 128 do Código Penal,
dispositivo que contempla duas causas de exclusão de antijuridicidade, a saber, o
aborto terapêutico e o aborto praticado em caso de estupro. A finalidade do parla-
mentar não era outra, senão criminalizar irrestritamente as práticas abortivas. Na
justificativa da proposição, é possível vislumbrar diversos fundamentos de cunho
religioso e moral, entre os quais, reproduz-se o seguinte: “discutimos o problema
do aborto e do direito do nascituro, em face da Teologia e da Moral, ou seja, do
ponto de vista religioso”, pois “a Igreja não pode ser posta à margem desse grande
problema” (CÂMARA, 1949, s/n).
O argumento central da proposição é o direito à vida do nascituro. Assim é que
Arruda Câmara colaciona ao debate os aspectos jurídicos e médicos sobre o direito
à vida. Do ponto de vista jurídico, menciona a doutrina civilista sobre o início da
personalidade humana, defendendo que, inobstante a adoção da teoria natalista, o
Código Civil de 1916 assegura, em determinadas hipóteses, os direitos do nascituro
desde a concepção. Neste sentido, o parlamentar assevera que:
Entre duas vidas humanas, entre dois direitos iguais, não cabe ao poder ou à ciência
dos homens escolher a que deve ser salva, a que deve ser sacrificada. E quantas vezes
o futuro comprova que à Pátria, à ciência, à própria humanidade e até diante de
Deus, a vida do filho é mais útil que a vida da autora de seus dias (CÂMARA, 1949,
s/n).
Do ponto de vista médico, Câmara enfatiza os avanços e conquistas da Gineco-
logia e da Obstetrícia quanto ao tratamento de doenças que expunham à gestante a
risco de vida, como a tuberculose e a hiperemese gravídica. A denominada gestação
ectópica, tampouco, autorizaria o abortamento, pois, de acordo com o deputado,
em relação “ao feto ectópico, vigoram as mesmas normas de ética, de moral, e reli-
gião, que nos casos de gravidez normal” (CÂMARA 1949, s/n). Nesta, sustenta que
gestante deveria ser internada, para submissão à chamada “expectação armada”, até
que o feto se tornasse viável ou se tivesse certeza moral quanto a sua morte, a fim de
que se pudesse intervir (CÂMARA, 1949, s/n).
Nesta linha de argumentação, Arruda Câmara defende a revogação do artigo

314
O crime de aborto no Código Penal de 1940 e seu “substitutivo” de 1969
128, do Código Penal, porque: (i) o aborto terapêutico é insustentável, diante dos
direitos do nascituro e dos avanços da ciência médica; (ii) o aborto em caso de es-
tupro é injustificável, visto que a mulher tem “as primeiras horas para se defender
do ‘injusto agressor’” (BRASIL, 1949).
Em 1965, em meio aos debates sobre a reforma penal iniciada no governo Jânio
Quadros, João Baptista de Oliveira Costa Júnior, catedrático de Medicina Legal na
Faculdade de Direito na Universidade de São Paulo, em palestra proferida na insti-
tuição, indagava: “Por que, ainda, o aborto terapêutico?”. Fazendo referência ao
pensamento de Francesco Carrara, o docente reconhece a complexidade do pro-
blema envolvendo o direito à vida do nascituro e o direito à vida da gestante, advo-
gando, no entanto, a prioridade aos direitos do nascituro: “tremendo juízo, todas as
vezes que alguém tivesse que decidir entre o sacrifício certo da criatura e o provável
desta e de sua mãe” (COSTA JÚNIOR, 1965, p. 315).
No entendimento de Costa Júnior (1965, p. 315), o aborto terapêutico poderia
resultar no abuso de direito, pois as mulheres poderiam aproveitar-se do permissi-
vo legal para ocultar o aborto criminoso. Neste aspecto, duas considerações se fa-
zem necessárias. Uma primeira, consiste na ausência de respaldo científico para se
afirmar que as mulheres tenderiam a abortar indiscriminadamente, caso legalizado
o aborto. Uma segunda, é a de que os seus argumentos estão alicerçados nos postu-
lados Lombrosianos, ao expor que as mulheres “abusariam” dos ditames legais para
praticar abortos, ou seja, quer-se asseverar que o aborto é um crime tipicamente
feminino.
Ao mesmo tempo, nota-se a presença de ideais positivistas no texto de Costa Jú-
nior, em uma passagem na qual faz menção, ainda que implicitamente, à figura do
dolo eventual: “ninguém pode ignorar os perigos da gravidez, e, desejando-a, as-
sume implicitamente o seu risco, pois, se não o criou, pelo menos, aceitou-lhe as
consequências” (COSTA JÚNIOR, 1965, p. 319).
Argumentando sobre os progressos da Ginecologia e da Obstetrícia em relação a
doenças que afetam as gestantes, como hipertensão arterial, tuberculose pulmonar,
e, perturbações mentais, o docente rechaça o aborto terapêutico, afirmando que a
prática não preserva a vida da gestante. Ao revés, causa-lhe a morte (COSTA JÚ-
NIOR, 1965, p. 326). Nas páginas finais de seu texto, Costa Júnior (1965, p. 329)

315
Bárbara Klopass Locks de Godoi · Tayná Ferreira
compara o crime de aborto aos crimes de lesa pátria e lesa humanidade, e louva o
deputado Arruma Câmara pela proposição legislativa, em 1949, visando revogar o
artigo 128 do Código Penal de 1940.
Compartilha do mesmo enfoque, do direito à vida do nascituro, Marrey (1965,
p. 44), para quem, o feto, antes mesmo do nascimento, já é titular de direitos. Fa-
zendo alusão ao pensamento de Francesco Carrara, o autor assevera que a ideia de
garantia é a essência, o fundamento da própria existência do Direito Penal, motivo
pelo qual, ressalta que a lei penal protege a vida humana, desde a concepção. “O
feto” é, diz, “um verdadeiro ser vivo, que está em desenvolvimento” (MARREY,
1965, p. 44).
Marrey também sustenta a tese do avanço da Medicina, para condenar a prática
do aborto terapêutico: “são raras as indicações de sua necessidade, podendo, pois,
conservar-se a vida da gestante e do seu filho” (MARREY, 1965, p. 52). A leitura do
texto de Marrey evidencia a presença de valores morais e religiosos em suas exposi-
ções, entre os quais, destacam-se: “não se pode admitir o aborto senão como a prá-
tica de homicídio” e “a Igreja sempre condenou o aborto” (MARREY, 1965, p 53).
Para o jurista, diante da colisão de direitos, isto é, o direito à vida do nascituro e o
direito à vida da gestante, deve prevalecer o direito do nascituro: “a supressão direta
do filho como meio de obter esse fim não é permitida” (MARREY, 1965, p. 53).
Nos comentários de Marrey (1965, p. 51) ao aborto terapêutico no anteprojeto
do novo Código Penal, vislumbra-se elementos da Antropologia Lombrosiana, ao
se pretender afirmar que as mulheres tenderiam a praticar o aborto difusamente, é
dizer, o aborto é um crime tipicamente feminino: “A verdade, porém, é não ter
querido o legislador transigir mais, ampliando os casos em que, tornado lícito, por
exceção o aborto, para que a pretexto de moléstia ou deficiência orgânica, viesse a
multiplicar-se a sua prática”.
Em escrito publicado na Revista de Informação Legislativa, em julho de 1972,
Alencar (1972, p. 424), discorrendo sobre a incriminação do aborto no Brasil, co-
menta sobre as modificações inseridas pela reforma penal de 1969, entre as quais, a
figura do aborto por motivo de honra. Na compreensão da autora, a nova modali-
dade de aborto tinha como finalidade proteger o ideal da família nuclear, rechaçan-
do-se a concepção fora do casamento:

316
O crime de aborto no Código Penal de 1940 e seu “substitutivo” de 1969
O grupo abomina a concepção fora do casamento. O menosprezo à mãe solteira,
apesar de arrefecido face às novas concepções da vida social, moderna, persiste ain-
da e marca, sem dúvida, quem quer que se arvore a ultrapassar os cânones do for-
malismo social. E o que é pior, a sociedade, numa patente demonstração, esta sim,
de pobreza espiritual e carência absoluta de descortínio, estende esse menosprezo ao
filho concebido de união ilícita. Face a este quadro e, pressupondo que a gestante
tenha sido levada ao crime sob o medo à repressão do grupo, a lei abranda a pena.
Para Machado (2017), a despeito da laicidade de Estado, a criminalização das
práticas abortivas entre os séculos XIX e XX, em grande parte das sociedades oci-
dentais, entre as quais, a brasileira, está atrelada a fundamentos religiosos de longa
duração dos valores familiares e conjugais que se pautam pelas relações desiguais
entre homens e mulheres, bem como, pela (hétero)sexualidade enquanto fator in-
dispensável à sagrada procriação. Nesta senda, como diz Devreux (2009, p. 97), “A
família conjugal, dois cônjuges e seus filhos, constituiria a única família ‘verdadei-
ra’, e os outros modelos não seriam mais do que disfunções ou desvios”.
Hungria (1940), a propósito, defendia o modelo de família nuclear. É o que se
depreende de seus comentários ao crime de abandono de família, cuja tônica são
valores morais e religiosos:
Nós, brasileiros, por mercê de Deus, vivemos um pouco à margem dos problemas
que atormentam e desconcertam a Humanidade em outras plagas do mundo. Mas o
preceito repressivo do abandono da família […] contribuirá, entre nós, para atalhar
o mal incipiente ou preveni-lo, posto que muito é de nossos hábitos imitar os hábi-
tos alheios. Resguardemos a tempo a família brasileira, que é ainda um dos mais
preciosos elementos do patrimônio social desta Pátria, de que tanto e tão justamente
nos orgulhamos (1940, p. 56).
Alinhado a perspectiva de defesa da família nuclear, Marrey (1963, p. 45) afirma
que o aborto honoris causa está relacionado à finalidade de evitar, para as mulheres
solteiras, a desonra que pode advir do nascimento de um filho concebido fora do
casamento. Sob esse prisma, o jurista defende que, é sobretudo através dos princí-
pios cristãos e da educação, que se alcançará um maior progresso na luta contra o
aborto: “menos mães solteiras e filhos ilegítimos em abandono e, acima de tudo,
menos pais irresponsáveis” (MARREY, 1963, p. 45).
Entre as décadas de 1940 e 1960, segundo Bassanezi, ocorreram profundas mo-
317
Bárbara Klopass Locks de Godoi · Tayná Ferreira
dificações na gramática social brasileira, proporcionadas, entre outros fatores, pelo
crescimento urbano, desenvolvimento industrial, e, aumento das possibilidades nos
campos profissional e escolar. Essas mudanças, desprovidas de rupturas radicais
nas distinções de gênero, provocaram uma certa redução na distância entre homens
e mulheres. Neste período, Bassanezi (1994, p. 114) argumenta que as mulheres
eram definidas
a partir dos papeis femininos tradicionais (prioritariamente mães, donas de casa e
esposa, vivendo em função do “outro”, o homem) e das características consideradas
“próprias das mulheres” englobadas no termo “feminilidade” (pureza, doçura, re-
signação, instinto materno, etc). Os pais de família, cabe sustentá-la com seu traba-
lho, enquanto que as esposas devem se ocupar das tarefas domésticas, dos cuidados
com os filhos e da atenção ao marido.
Em sintonia com as lições de Bassanezi, Faria (1994), em arguto estudo sobre a
condição feminina na década de 1960, constatou que as transformações do período
repercutiram nos tradicionais papeis socialmente atribuídos a homens e mulheres.
Nesta perspectiva, explica que:
Ao sair da esfera meramente privada da família e ingressar na esfera pública – atra-
vés da escolarização, do trabalho ou da militância política, no caso estudantil –, a
mulher tem possibilidades de superar não só a alienação particular da sociedade ca-
pitalista, mas também a que lhe é imposta pela tradicional e histórica condição fe-
minina (FARIA, 1997, p. 20).
Na compreensão da autora, as mudanças na arena social não acarretaram drásti-
cas diminuições nas dissimetrias de gênero, uma vez que predominavam práticas e
discursos que reproduziam e legitimavam a diferenciação entre homens e mulheres
no tecido social, buscando garantir o controle das mulheres, reconduzindo-as ao
recôndito do lar, tendo em vista o ideal da família nuclear (1997, p. 81). A perma-
nência desse modo de organização da vida social na década de 1960, pode ser vis-
lumbrada, segundo Faria (1997, p. 81), em um dos slogans do movimento de 64:
Família que reza unida permanece unida, porque a família, no período ditatorial,
representava um aparelho reprodutor de um sistema de silêncio e de opressão.
Retomando a análise sobre a problemática da criminalização, Dotti (1978, p. 48)
esclarece que o aborto por motivo de honra deveria ser descriminalizado, porquan-

318
O crime de aborto no Código Penal de 1940 e seu “substitutivo” de 1969
to associado a normas de caráter moral, cuja discussão deveria desenvolver-se fora
dos limites do campo do Direito Penal. Todavia, é importante ressaltar que, a pos-
tura do jurista não leva em conta qualquer fundamento que legitimasse a liberdade
sexual e reprodutiva das mulheres, eis que, o assunto da descriminalização do abor-
to honoris causa estava inserido em uma discussão mais ampla, sobre a descrimina-
lização de condutas em um cenário marcado pelo surto inflacionário da criminali-
zação de comportamentos e superpopulação carcerária (DOTTI, 1978, p. 42).
Em parecer elaborado a pedido da Ordem dos Advogados do Brasil, em 1964,
Fragoso, explana que o anteprojeto de Código Penal, inspirado em razões de ordem
moral e religiosa e, seguindo uma linha de rígida repressão penal, permanece fiel
aos princípios que regem a legislação penal do Ocidente sobre o aborto (FRAGO-
SO, 1964). Para o jurista, o “anteprojeto Hungria constitui evidente retrocesso, ao
tornar mais difícil o aborto terapêutico e sentimental” (FRAGOSO, 1964).
Dotti (1990, p. 33) observa, pois, que a nova codificação tinha como nota mar-
cante a criminalização, em vez da descriminalização. Nesta senda, o jurista pondera
que:
Não causava estranheza a circunstância do anteprojeto ter sido decalcado no Código
Penal de 1940 posto ter sido Nélson Hungria o líder e o principal redator deste di-
ploma. Seria compreensível, portanto, que a proposta de reforma não afetasse os pi-
lares sobre os quais se construiu o texto monumental de 1940 e cuja Parte Especial
ainda hoje se mantém virtualmente inalterada (DOTTI, 1990, p. 33).
A despeito da diversidade de argumentos acerca do aborto no Brasil, há dois as-
pectos convergentes entre as concepções dos atores sociais analisados. Um primei-
ro é a constatação da prática difusa do aborto. O aborto “campeia clandestinamente
no país”, ressalta Alencar (1972, p. 438). O “aborto criminoso é praticado livre-
mente”, refere Fragoso (1964). Costa Júnior (1965, p. 21) observa que “acrescen-
tando, se possível, o número de abortos não revelados e mantidos em segredo, os
resultados, certamente, seriam bem mais elevados”. Um segundo, é a constatação
da impunidade. Para Marrey (1965, p. 45), “mesmo nos países em que a repressão
se notabiliza por sua severidade, não se assinala mais de 1% de punições. Em cada
100 casos de aborto, portanto, ficam, em regra, impunes 99”. Fragoso (1964), por
sua vez, sublinha que “O problema está aí diante de nós, e a lei penal tem sido abso-

319
Bárbara Klopass Locks de Godoi · Tayná Ferreira
lutamente impotente para resolvê-lo”.
Com efeito, um estudo realizado por pesquisadores da Faculdade de Higiene e
Saúde Pública da Universidade de São Paulo, em fins de 1965, revelou que, no de-
correr daquele ano, o número de abortos provocados por mulheres não-solteiras –
em qualquer tipo de união – foi da ordem de 250.000 (FRAGOSO, 1971, p. 88). A
pesquisa demonstra, ainda, uma elevada percentagem de mulheres católicas que
provocaram pelo menos um aborto, o que evidencia “uma inconsistência entre o
sistema de valores adotado e a atitude diante de uma situação real”, destaca Fragoso
(1971, p. 88).
São estas, pois, as considerações essenciais sobre a história das ideais jurídico-
penais acerca da questão do aborto no Brasil, nas codificações de 1940 e 1969. As-
sim, a partir do marco teórico de Silvia Federici, passa-se à análise do complexo
debate envolvendo o direito à liberdade sexual e reprodutiva das mulheres e o direi-
to à vida do nascituro, buscando-se averiguar rupturas e permanências no pensa-
mento jurídico-penal sobre a (des)criminalização do aborto no Brasil.

4. Tensionando o debate: contribuições feministas acerca da


tutela penal dos corpos femininos
De acordo com Gonçalves (2019, p. 145), em sua releitura acerca da compatibi-
lidade das leis na fase pós-1988, ela disserta: “A lei não pode ser descolada da reali-
dade”. A interpretação que pode ser conferida a esta frase é a seguinte: o Direito
não deve permanecer num campo metafísico de proposições, seus comandos legais
precisam estar alinhados – minimamente – com as dinâmicas sociais, sob pena de
constituírem letra morta da lei.
Embora em outro contexto, a contribuição de Sbriccoli (2010, p. 16) tem rele-
vância para reforçar o papel fundamental do aspecto social para construção do di-
reito penal, sua história e a legislação dele decorrente. Nesse sentido:
Creio que seja necessário, desde já, aceitar a ideia que a história do direito penal não
pode prescindir da história dos contextos com os quais o pensamento jurídico se
confronta e interage. Os acontecimentos políticos, as dinâmicas sociais, o fenômeno
criminal, a legislação, as práticas de justiça, os próprios eventos importantes que
marcam as biografias dos juristas não podem mais ser ignorados. O historiador de

320
O crime de aborto no Código Penal de 1940 e seu “substitutivo” de 1969
uma ciência da sociedade não deve se esquecer de que o objeto das suas pesquisas é
complexo: é feito de livros, mas também da realidade que foi ali expressa. Quem
pensava que poderia prescindir dos fatos se meteria em uma perigosa condição de
menoridade e se exporia a seríssimos riscos de erros e omissões.
Não obstante, é de notório conhecimento que nos dois momentos em que foram
“discutidos” projetos de codificação penal o Brasil estava sob o jugo do autorita-
rismo, seja pelo golpe de Vargas com a criação do “Estado Novo” (NUNES, 2016,
p. 156), ou em 1969, quando já havia se instaurado o regime militar cinco anos
antes.
Certamente não foram esses os cenários onde seria possível vislumbrar uma
percepção diferente acerca do crime de aborto, a temática da descriminalização
voltava ao centro das discussões, como apontado na Revista de Direito Penal de
1971, que tal prática já era admitida em legislações mais avançadas, diminuindo-se
o número de acidentes e mortes (FRAGOSO, 1971, p. 60).
Diante das análises do Código Penal de 1940 e seu (quase) substituto de 1969,
denota-se a ausência de um elemento importante: qual o fundamento balizador
para criar e manter a tipificação das modalidades do crime de aborto? Das fontes
que foram objeto de estudo, não foi possível encontrar. Um comentário ou outro
lançado nas exposições de motivos da parte especial e das interpretações de Heleno
Fragoso (1960, p. 3-7), que integrou a comissão revisora do substitutivo.
Silvia Federici (2017, p. 181-182), estudiosa feminista, busca elucidar a trans-
formação pela qual a autonomia feminina foi retirada das próprias mulheres e
apropriada pelo Estado: a Autora salienta que é na nova configuração das socieda-
des – em principal, com a adoção do capitalismo como modelo econômico – onde
reside a principal causa. Federici (2017, p. 182) colocará a divisão sexual do traba-
lho como um dos elementos que relegou as mulheres à atividade reprodutiva.
Nesse sentido, os questionamentos trazidos por Baggenstoss et al (2019, p. 202)
também foram alguns dos quais inspiraram este trabalho: “Quais vidas importam?
A quem interessa criminalizar o aborto? Existe uma ambivalência estatal? Se sim,
(como) podemos resolvê-la?” Isso significa que as respostas oferecidas pelas teori-
as, já em muito superadas, de que as mulheres são inferiores em algum nível no seu
intelecto e/ou merecem tratamento diferenciado da lei penal, não servem mais

321
Bárbara Klopass Locks de Godoi · Tayná Ferreira
(ALVAREZ, 2002, p. 696).
Por quais razões os homens não são cobrados da mesma maneira que as mulhe-
res quando o assunto é maternidade-paternidade? Garantir somente a viabilidade
da vida no útero é uma resposta muito simplista, tendo em vista que as necessida-
des da criança vão além de auxílio material (comida, roupas, materiais escolares,
etc.), bem como não se pode afirmar a existência de um desígnio natural que pres-
suponha que todas as mulheres querem ser mães. Tal argumento essencialista é
equivocado (BAGGENTOSS et al, 2019, p. 206-207).
O essencialismo está intrinsecamente ligado ao Direito, quando este busca de-
terminar as relações a partir da ideia de que o destino da mulher é a família, o lar e a
maternidade - vide as proteções resguardadas nas constituições à família e materni-
dade (GONÇALVES, 2019, p. 149) e, do homem aos negócios, à política e vida pú-
blica, considerando os papéis que cada um deve realizar em sociedade, tendo em
vista o gênero que os designa (CASALEIRO, 2014, p. 41).
A criminalização de condutas que sejam praticadas por mulheres evidencia um
forte sentimento moralista dissipado pela sociedade e a expectativa de cumprimen-
to desses “desígnios naturais” – e, provavelmente tenha se perpetuado até os dias
atuais do século XXI – dado que sua sexualidade também era controlada sob os
signos de “mulher honesta” e “virgem” no Código Penal 1940 (em sua redação
original) (GONÇALVES, 2019, p. 149).
Não se pode perpetuar mais a crença de um legislador imparcial, objetivo e jus-
to, porque o que se percebe aqui é justamente o uso discricionário para tipificar ou
não determinadas condutas (GONÇALVES, 2019, p. 148-149), como é o caso do
crime de aborto. Denota-se que os estudiosos da seara penal, como foi o caso de
Fragoso (1960, p. 5-6) sabiam que a simples tipificação não impediria a prática irre-
gular, independentemente da classe social.
Recorrendo-se aos fatos sociais é possível observar a presença massiva do com-
ponente religioso/familiar nos discursos e movimentos antiaborto. A título exem-
plificativo, menciona-se o caso da menina de 10 anos, vítima de estupro, cujos da-
dos acerca do procedimento abortivo – já que o ato criminoso havia gerado uma
gravidez – foram vazados. Sob pretextos supostamente religiosos de proteção à vida
do feto, diversas pessoas se colocaram em frente às portas do hospital onde seria

322
O crime de aborto no Código Penal de 1940 e seu “substitutivo” de 1969
realizado o procedimento causando agitação (REZENDE, 2020, s/n)7.
De similar maneira ao discurso jurídico e porque também serve de fonte para
ele, a defesa religiosa contra a prática do aborto trata sobre uma visão de mundo
muito particular, dado que são “[...] valores e dogmas de uma religião, portanto, de
valores não universais e não aceitos por todos [...]”, ou seja, trata-se de impor uma
hegemonia de saber mesmo para aqueles com os quais esses valores e dogmas não
tenham um significado (SILVA et al, 2003, p. 207).
Nesse contexto, retoma-se um dos questionamentos levantado por Baggenstoss
et al (2019, p. 202): quais são as vidas que importam? E a esta, acrescenta-se: se
nem mesmo à época em que os códigos foram projetados a criminalização funcio-
nou, como acreditar que a resposta para este problema reside na esfera do direito
penal (FRAGOSO, 1960, p. 6-7)?
De acordo com Silva et al (2003, p. 197-198) a resposta é bem explícita, “[...] Fi-
ca bastante claro que a vida defendida é a do feto, uma vida virtual, ‘um vir a ser’,
não o ‘próprio ser’ como a vida de uma mulher [...]”; diante disso, parte-se da lógi-
ca de que essa discussão não cabe às mulheres, mas sim de grupos especializados e
legitimados, vistos enquanto autoridades para tanto, com a finalidade de que falem
por elas.
Corrobora com esse posicionamento Gonçalves (2019, p. 150), para quem o sis-
tema jurídico reflete as criações de homens, de acordo com os objetivos dados por
eles, sem qualquer participação ou intervenção das mulheres nesse processo. A
própria existência das mulheres ao longo da história é vista como não relevante,
uma vez que o Direito preconiza a hierarquização de saberes, e tudo aquilo que
ficar para além do método de conhecimento legitimado, será colocado em posição
inferior (CASALEIRO, 2014, p. 43).
Essa desvalorização das vidas das mulheres ganhou um contorno específico no

7. De acordo com Rezende (2020, s/n), a menina de dez anos de idade engravidou após ser vítima
de estupro, em que figura como acusado o próprio tio, mas foi autorizada judicialmente a inter-
romper a gestação. Sem saber como teve seus dados vazados, Sara Giromini divulgou informa-
ções do local onde seria realizado o procedimento, bem como o nome do médico, além de pedir
em uma rede social para que seus seguidores fossem até ao hospital. Inúmeras pessoas protesta-
ram contra o procedimento médico causando confusão em frente à unidade de saúde.
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Bárbara Klopass Locks de Godoi · Tayná Ferreira
processo de transição para o capitalismo, ao qual Federici (2019, p. 174) explica que
o período de Inquisição e a caça às bruxas assentou uma verdadeira empreitada
contra as mulheres – focando, neste trabalho, sobre os direitos reprodutivos, ainda
que outros também tenham sido atacados – ser um dos principais fatores para a
perda da autonomia feminina sobre o próprio corpo.
No que concerne aos efeitos da caça às bruxas, Federici (2019, p. 203) salienta
que:
[...] A definição das mulheres como seres demoníacos e as práticas atrozes e humi-
lhantes a que muitas delas foram submetidas deixaram marcas indeléveis em sua
psique coletiva e em seu senso de possibilidades. De todos os pontos de vista – soci-
al, econômico, cultural, político -, a caça às bruxas foi um momento decisivo na vida
das mulheres [...]
Acerca deste ponto, diante das obras e ideias analisadas no tocante ao status ju-
rídico da mulher, em outras palavras, da sua capacidade enquanto membro socie-
dade, compreende-se que a manutenção da figura do aborto como crime e seus
argumentos de teor religioso reforçam a afirmação de continuidade do pensamento
retrógrado e misógino (SILVA et al, 2003, p. 207-208), completamente descolado
da realidade (GONÇALVES, 2019, p. 145), como já mencionado.
Não obstante, seria possível até mesmo questionar a constitucionalidade desse
tipo penal na conjuntura pós-1988 (BAGGENSTOSS et al, 2019, p. 218-219) tendo
em vista o contexto jurídico no qual foi elaborado o Código Penal de 1940 era de
um crescente autoritarismo, ressalta-se, nas palavras de Silva et al (2003, p. 195):
[...] Norma Kyriakos utiliza a Constituição a favor do direito ao aborto que cada
mulher possuiria, diferenciando-a, ainda, do Código Penal; destaca que este último,
de modo geral, é visto como se fosse a própria Constituição: O Código é uma lei sub-
sidiária, e não reguladora da vida em sociedade [...]
Destarte, seguindo essa linha de raciocínio é possível afirmar que a Constituição
da República Federativa de 1988 (CRFB/1988) não trouxe vedação expressa à práti-
ca do aborto, e, além da constatação de que o Estado8 (Silva et al, 2003, p. 196) não

8. Verificando-se as Constituições de 1937 (art. 124), 1946 (art. 163) e 1967 (art.167), denota-se
que garantiam proteção especial à família, trazendo disposições sobre salário mínimo e direito à
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O crime de aborto no Código Penal de 1940 e seu “substitutivo” de 1969
consegue efetivar os direitos básicos para uma vida digna, também não deveria
intervir no controle reprodutivo (até pelo fato de resguardar o planejamento famili-
ar como direito do casal).
A inquietações aqui apresentadas não pretendem encerrar o debate acerca a in-
tersecção entre a história do direito penal e sua releitura a partir dos feminismos,
mas serve principalmente para demonstrar a potência da crononormatividade so-
bre a vida daqueles corpos que não puderam participar dos processos históricos
enquanto sujeitos ativos, com consciência, saberes e vivências próprias – não como
espectadores, objetos de estudo (BAGGENSTOSS, 2020, p. 97-98).

5. Conclusão
A análise das codificações (1940-1969) evidenciou que o aborto é tratado pelos
juristas, legisladores e, até mesmo, pelos médicos, como uma questão essencial-
mente criminal. É possível vislumbrar argumentos heterogêneos que contemplam
postulados do classicismo, do positivismo, e, do tecnicismo jurídico-penal. O tema
é debatido, primordialmente, do ponto de vista jurídico e médico, o que ressalta as
relações indissociáveis entre Direito e Medicina, após a ascensão do Positivismo no
Brasil. No entanto, os debates não se desvencilham dos aspectos moral e religioso,
visto que contemplam argumentos vinculados a um tema considerado intocável
para a moralidade religiosa: a vida humana.
A hipótese de pesquisa é parcialmente confirmada. Com efeito, há, no repertório
das ideias jurídico-penais a prevalência de discursos em prol da vida do nascituro:
quem aborta, atenta contra a vida, portanto. As falas dos juristas e de outros atores
sociais, como médicos e parlamentares, carregam um forte fundamentalismo, a
ponto de se afirmar que, na colisão entre o direito à vida do feto e o direito à vida da
gestante, deve prevalecer o direito à vida do feto. Sob esse prisma, o olhar de Silvia
Federici é elucidativo: as mulheres, a partir da caça às bruxas, foram subjugadas
como não-sujeitos, seus corpos foram - e ainda são - instrumentalizados, reduzidos
a meros ventres9. Legitima-se, assim, um modelo de maternidade compulsória,

educação, por exemplo.


9. Nesse sentido, a ficção se mistura com a realidade: “I’m sorry you didn’t have a life. But if truth
325
Bárbara Klopass Locks de Godoi · Tayná Ferreira
condição essencial à manutenção das relações sociossexuais desiguais sobre as quais
se sustenta a sociedade capitalista.
Em nosso entendimento, o alegado avanço da Ginecologia e da Obstetrícia co-
mo aspecto que garantiria métodos seguros e eficazes para salvar a vida da gestante,
é mero pretexto que, transparecendo uma ideia de preocupação com as vidas das
mulheres, buscava ocultar a verdadeira razão da incriminação do aborto: o funda-
mentalismo da moralidade religiosa em defesa da vida em potencial do feto.
Os juristas, ao mesmo tempo, discutiam a problemática envolvendo a saúde pú-
blica e o direito à liberdade reprodutiva. As palavras, obviamente, não eram essas -
saúde pública e autonomia. No aspecto saúde pública, os juristas argumentavam
que, a despeito da criminalização, o aborto era difusamente praticado pelas mulhe-
res, de modo que, preponderava a impunidade, pois pouquíssimas mulheres eram
punidas. No aspecto liberdade reprodutiva, a ampliação das causas de permissão do
aborto, como o aborto terapêutico, provocaria um aumento no número de abortos.
Ressalta-se que não há evidências científicas que comprovem essa alegação. Nesta
perspectiva, entendemos que, com esses argumentos, os juristas, ainda que discre-
tamente, reconheciam a problemática do aborto como um tema de saúde pública e
de liberdade reprodutiva.
Diante dessas constatações, compreendemos, sem pretender cair em anacro-
nismos e, respeitando-se a alteridade do passado, que há rupturas e permanências
nas discussões contemporâneas acerca do aborto, a Constituição Federal de 1988
representa um importante marco para a defesa dos direitos das mulheres. Estabele-

be told, you’re not missing much. I know it’s easy for me to say with warm breath in my lungs,
and you with nothing. Still, what would you have had? Parents? Well, they’re the ones who
wrote your last act, so not much lost there. Friends? Most likely fair weather. Loves? Fun for a
bit, I’ll admit, but all eventually disappoint. And let’s face it, you’re a girl. Your mother was
right about one thing. We’re just vessels. And even when we’re told we’re special, as I was, as
you would’ve been, we’re still just vessels, for them to take, and take, until we’re empty, and
alone. So, count yourself Lucky. You’ve cheated the game and won without even knowing it.”
WITCHER, the: primeira temporada, episódio quatro “Of Banquets, bastards and burials. Dirig-
ido por: Tomasz Baginski, Alik Sakharov. Criado por Lauren Schmidt Hissrich. Baseado no livro
de Andrzej Sapkowski, Estados Unidos/Polônia, Netflix, 2019, 62 min [online]. Disponível em:
<https://www.netflix.com/br/title/80189685>.
326
O crime de aborto no Código Penal de 1940 e seu “substitutivo” de 1969
ce um extenso conjunto de direitos e garantias fundamentais, reconhecendo a
igualdade entre homens e mulheres, em todas as dimensões da arena social, entre as
quais, a família. Ao mesmo tempo, o Poder Judiciário, instituição essencial à prote-
ção e à promoção dos direitos humanos e fundamentais, tem contribuído para a
consolidação de avanços na perspectiva dos direitos das mulheres. A descriminali-
zação do aborto em caso de anencefalia, pelo Supremo Tribunal Federal, representa
uma mudança significativa na defesa e na promoção dos direitos das mulheres.
As leis mudam, mas são insuficientes para a transformação da realidade social.
Há renitentes permanências. As práticas e discursos sociais continuam a reproduzir
e a legitimar as dissimetrias de gênero, classe e raça. A família, o trabalho, a educa-
ção, e, os direitos, passaram por relevantes modificações na transição dos séculos
XX e XXI. Entretanto, esses aspectos da dinâmica social persistem alicerçados na
tradicional divisão sociossexual de papeis: às mulheres, ainda, é imposta a materni-
dade como um papel natural, como a essência sagrada do feminino.
Essa simbiose de práticas e discursos está alinhada a impositivos moralistas e re-
ligiosos, cuja causa principal é a defesa da vitalidade do embrião, perspectiva que
dificulta ou impede a discussão da questão do aborto a partir do ponto de vista da
saúde pública e da autonomia da vontade das mulheres, fragilizando-se, assim, as
propostas de descriminalização do aborto. Estabelece-se uma verdadeira caça às
bruxas contra aqueles e aquelas que defendem a descriminalização. Débora Diniz,
antropóloga e pesquisadora, teve que deixar o Brasil, após defender a descriminali-
zação do aborto em audiência pública no Supremo Tribunal Federal (ROSSI, 2019).
Olímpio Moraes, médico obstetra, foi excomungado pela Igreja Católica, após in-
terromper a gravidez de uma menina de nove anos (COSTA, 2016).
O movimento feminista, com a proposta de emancipação das mulheres, advoga
a desvinculação da questão do aborto da questão da Religião. Para avançar na efeti-
vação dos direitos das mulheres, os feminismos articulam o aborto com o direito à
saúde e o direito à autonomia da vontade, rechaçando qualquer projeto político de
controle e disciplinamento dos corpos femininos. Em outras palavras, os feminis-
mos questionam: quem tem o poder de controle sobre os corpos femininos? A respos-
ta é: as mulheres. O Estado, a Igreja e a sociedade sabem disso. Para além da Idade
Média, estabeleceram uma verdadeira caça às bruxas, visando expropriar as mulhe-
res do controle sobre seus corpos
327
Bárbara Klopass Locks de Godoi · Tayná Ferreira
Neste sentido, a problemática do aborto não pode ser pensada fragmentaria-
mente, dissociada do aspecto da autonomia da vontade das mulheres. O olhar de
Federici resgata a importância de se problematizar o aborto a partir de um ponto de
vista histórico e feminista, condição fundamental para se compreender por que o
aborto é criminalizado no Brasil. Como diria Le Goff (2005, p. 34), “toda forma de
história nova é uma forma é uma tentativa de história total”. A História do Direito
Penal não pode prescindir desse diálogo.

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