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O Laboratório Americano de Estudos Constitucionais Comparados -

LAECC procura aprofundar as discussões temáticas comparativas entre


os vários sistemas constitucionais americanos. O grupo desenvolve
abordagens comparativas em 4 diferentes linhas, procurando cobrir
todas as dimensões materiais do constitucionalismo e fomentar a pro-
dução científica nos diversos ramos do direito, sempre primando pela
abordagem de abrangência interdisciplinar.
Fundamentos do Direito Digital

Apoio Alexandre Walmott Borges


Hugo França Pacheco
José Luiz de Moura Faleiros Júnior
Moacir Henrique Júnior
Ricardo Padovini Pleti Ferreira

João Victor Rozatti Longhi


Concepção e coordenação José Luiz de Moura Faleiros Júnior
Organização, Gabriel Oliveira de Aguiar Borges
edição e revisão textual Guilherme Reis
Capa José Luiz de Moura Faleiros Júnior
Projeto gráfico e diagramação José Luiz de Moura Faleiros Júnior
Figura da capa Jakarin / VectorStock.com

Laboratório Americano de Estudos Constitucionais Comparados


CNPJ/MF nº 33.097.820/0001-00
Rua Johen Carneiro, 377, Uberlândia – MG
CEP 38.400-070
www.laecc.org.br

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

________________________________________________________________________________

F981 Fundamentos do direito digital / João Victor Rozatti Longhi, José Luiz de
2020 Moura Faleiros Júnior; Gabriel Oliveira de Aguiar Borges, Guilherme Reis
(Coordenadores). Uberlândia: LAECC, 2020.
480 p.

Inclui bibliografia.
ISBN: 978-65-99099-21-2

1. Direito Digital. 2. Filosofia da Tecnologia. 3. Filosofia da Informação. 4.


Sociedade da Informação. I. Longhi, João Victor Rozatti. II. Faleiros
Júnior, José Luiz de Moura. III. Borges, Gabriel Oliveira de Aguiar.
IV. Reis, Guilherme.
CDD: 340 / CDU: 34:004.738.5
________________________________________________________________________________
Catalogação na fonte
/

Conselho Editorial
Laboratório Americano de Estudos Constitucionais Comparados - LAECC
http://laecc.org.br/conselho-editorial

ADAILTON BORGES DE OLIVEIRA


Doutorando no Programa de Biocombustíveis do Instituto de Química da Universidade Federal de
Uberlândia – UFU. Presidente/coordenador da Comissão Permanente de Sindicância e Inquérito
da Universidade Federal de Uberlândia – UFU.

ALESSANDRA SILVEIRA
Doutora em Direito pela Universidade de Coimbra – UC. Professora da Universidade do Minho –
Portugal.

ALEXANDRE DE SÁ AVELAR
Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense – UFF. Professor da Universidade
Federal de Uberlândia – UFU.

ALEXANDRE WALMOTT BORGES


Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC e em História pela Univer-
sidade Federal de Uberlândia – UFU. Professor da Universidade Federal de Uberlândia – UFU.

ALFREDO JOSÉ DOS SANTOS


Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP. Professor da
Universidade Estadual Paulista - UNESP Campus Franca.

ALMIR GARCIA FERNANDES


Doutor em Direito Comercial pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor do
Centro Universitário do Planalto de Araxá – UNIARAXÁ.

ANTONIO MADRID PÉREZ


Doutor em Direito pela Universitat de Barcelona – UB. Professor da Universidade de Barcelona –
UB. Professor do curso de Mestrado Interuniversitário organizado pelas universidades: Universidad
Rey Juan Carlos, Universidad Carlos III de Madrid, Universitat Autònoma de Barcelona e Universi-
tat de Barcelona.

BERNARDO WALMOTT BORGES


Doutor em Física pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Professor da Universidade
Federal de Santa Catarina – UFSC.

BORJA MUNTADAS FIGUERAS


Doutor em Filosofía Contemporánea y Tradición Clásica pela Universitat de Barcelona – UB.
Professor e investigador em Filosofía Moderna y Contemporánea na Universitat La Salle, Campus
Barcelona, na Universitat de Barcelona – UB e Professor Convidado na Universidade Federal de
Uberlândia – UFU.

DANIEL USTÁRROZ
Doutor e Mestre em Direito Civil pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Pro-
fessor Adjunto de Direito Civil na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS.

DIVA JÚLIA SOUSA DA CUNHA SAFE COELHO


Pós-Doutora em Direito Constitucional Comparado pela Universidade Federal de Uberlândia –
UFU e Doutora em Ciudadania y Derechos Humanos pela Universidad de Barcelona – UB. Profes-
sora da Universidade Federal de Goiás – UFG.

FABIANA ANGÉLICA PINHEIRO CÂMARA


Doutora em História Social pela Universidade Federal de Uberlândia – UFU. Mestre em Gestão
Internacional e Desenvolvimento Econômico pela Universidade de Reading – Inglaterra.

FRANCIELLE VIEIRA OLIVEIRA


Doutoranda em Ciências Jurídicas Públicas no âmbito do Doutorado Europeu da Universidade do
Minho – Portugal.

FRANCISCO ILÍDIO FERREIRA ROCHA


Doutor em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Professor
do Centro Universitário do Planalto de Araxá – UNIARAXÁ.

GONÇAL MAYOS SOLSONA


Doutor e Mestre em História da Filosofia pela Universitat de Barcelona – UB. Professor Titular na
Faculdade de Filosofia da Universitat de Barcelona – UB.

ILTON NORBERTO ROBL FILHO


Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Professor Adjunto da
Faculdade de Direito da UFPR e do Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP. Diretor da Aca-
demia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst).

JOSÉ CARLOS REMOTTI CARBONELL


Doutor em Direito pela Universitat Autònoma de Barcelona – UAB. Professor da Universitat Au-
tònoma de Barcelona – UAB.

JOSÉ LUIZ DE MOURA FALEIROS JÚNIOR


Mestre em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia – UFU. Professor de cursos preparató-
rios para a prática da advocacia. Advogado.
LUCIANA ORANGES CEZARINO
Pós-Doutora pelo Politécnico de Milão – POLIMI. Doutora pela Faculdade de Economia, Adminis-
tração e Contabilidade da Universidade de São Paulo – FEA/USP. Professora da Universidade
Federal de Uberlândia – UFU.
MILLA ALVES BAFFI
Pós-Doutora em Microbiologia de Alimentos pela Universidad de Castilla La Mancha – UCLM.
Doutora em Genética e Bioquímica pela Universidade Federal de Uberlândia – UFU. Professora da
Universidade Federal de Uberlândia – UFU.

MOACIR HENRIQUE JÚNIOR


Doutor em Direito e Ciência Política e Mestre em Criminologia e Sociologia Jurídico-Penal pela
Universidade de Barcelona – UB. Professor da Universidade do Estado de Minas Gerais – UEMG.

PAULO CÉSAR CORRÊA BORGES


Pós-Doutor em Direito pela Universidade de Sevilla – US. Doutor e Mestre em Direito pela Univer-
sidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP. Professor da Universidade Estadual
Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP Campus Franca.

PAULO ROBERTO DE ALMEIDA


Doutor em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP. Professor da
Universidade Federal de Uberlândia – UFU.

RENATO CÉSAR CARDOSO


Pós-Doutor em Filosofia pela Universitat de Barcelona – UB. Doutor em Direito pela Universidade
Federal de Minas Gerais – UFMG. Professor da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG.

RICARDO PADOVINI PLETI FERREIRA


Doutor e mestre em Direito Empresarial pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG.
Professor da Universidade Federal de Uberlândia – UFU.

RODRIGO VITORINO SOUZA ALVES


Doutoranto em Direito pela Universidade de Coimbra – UC. Mestre em Direito pela Universidade
Federal de Uberlândia – UFU. Professor da Universidade Federal de Uberlândia – UFU.

SAULO PINTO COELHO


Pós-Doutor pela Universitat de Barcelona – UB. Doutor em Direito pela Universidade Federal de
Minas Gerais – UFMG. Professor da Universidade Federal de Goiás – UFG.
THIAGO PALUMA
Doutor em Direito Internacional pela Universidad de Valencia. Professor da Universidade Federal
de Uberlândia.

VIVIANE SÉLLOS-KNOERR
Pós-Doutora pela Universidade de Coimbra – UC. Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo – PUC/SP. Professora do Centro Universitário Curitiba – UniCURITIBA.

WELLINGTON MIGLIARI
Doutor e Mestre em Direito Internacional Público pela Faculdade de Direito, Universitat de Barce-
lona – UB.
SOBRE OS AUTORES

Coordenadores
JOÃO VICTOR ROZATTI LONGHI
Defensor Público no Estado do Paraná. Professor visitante do PPGD da Universidade
Estadual do Norte do Paraná – UENP e de Graduação do Centro de Ensino Superior de
Foz do Iguaçu – CESUFOZ. Pós-Doutor em Direito pela Universidade Estadual do Norte
do Paraná – UENP. Doutor em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universida-
de de São Paulo – USP/Largo de São Francisco. Mestre em Direito Civil pela Faculdade de
Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ.

JOSÉ LUIZ DE MOURA FALEIROS JÚNIOR


Mestre em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia – UFU. Especialista em Di-
reito Processual Civil, Direito Civil e Empresarial, Direito Digital e Compliance, com
extensão pela University of Chicago. Pesquisador do Grupo de Estudos em Direito Digital
da Universidade Federal de Uberlândia – UFU. Membro do Instituto Avançado de Prote-
ção de Dados – IAPD. Associado do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade
Civil – IBERC. Advogado.

GABRIEL OLIVEIRA DE AGUIAR BORGES


Mestre e bacharel em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU/MG). Espe-
cialista em Direito Processual Civil pela Faculdade Damásio (SP). Pós-graduando em
Direito Digital e Compliance pelo Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (IB-
MEC/SP). Possui curso de inglês jurídico pela Oxford Brookes University (Reino Unido).
Ex-presidente da Liga de Direito dos Negócios de Uberlândia (LIGARE). Professor de
Direito Civil, Direito Internacional e Ciência Política e membro do Comitê de Ética em
Pesquisa do Centro Universitário do Triângulo (Unitri/MG). Advogado.

GUILHERME REIS
Advogado atuante na área de tecnologia e cibersegurança. Especializando em Gestão de
Segurança da Informação pela Universidade do Sul do Estado de Santa Catarina (UNI-
SUL); Especializando em Direito Digital e Compliance pela Damásio Educacional; Bacha-
rel em Direito Pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Membro atuante das
comissões de Direito Digital da OAB/SC; Inovação da Advocacia da OAB/SC; Direito das
Startups da OAB/SC. Co-organizador do Meetup de Cibersegurança e Privacidade 'Cryp-
to Friday' em Florianópolis/SC. E-mail de contato: apj.guilhermereis@gmail.com.

Autores
ALINE FERREIRA COSTA CARNEIRO
Advogada, pós-graduada em Direito Digital e Compliance pelo Instituto Damásio de
Direito da Faculdade Ibmec SP, especializada em Privacidade e Proteção de Dados e
Compliance Digital e Pós-graduada em Advocacia Trabalhista pela Escola Superior de
Advocacia – ESA/MG. Membro das Comissões Advocacia 4.0 e Compliance, Direito e
Processo do Trabalho e Direito e Startups e Lawtechs e Legaltechs da OAB Uberlân-
dia/MG. Membro convidada da Comissão de Startups e Inovação da OAB Santos/SP.

ANA LUIZA RODRIGUES PEREIRA


Bacharela em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Advogada. Pes-
quisadora do Grupo de Estudos em Direito Digital. E-mail: analuizarodpe@gmail.com.

ANA MÁRCIA RODRIGUES MORONI


Advogada. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia. Pós-graduada
em Direito Constitucional Aplicado pela FGV. MBA em Propriedade Intelectual e Ética
pela UCAM/RJ. Especialista em Lei Geral de Proteção de Dados pela PUC/RJ. Especialista
em Advocacia para Startups pelo Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro.
Especialista em Compliance pela LEC/FGV com Certificação CPC-A. Especialista em
Storytelling pelo Instituto de Letras da UFRJ. Curso de Extensão em Compliance aplicada
ao Direito Tributário pela FGV.

ARTHUR PINHEIRO BASAN


Doutorando em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), Mestre
em Direito pela Faculdade de Direito Prof. Jacy de Assis, da Universidade Federal de
Uberlândia (UFU). Pós-graduado em Direito Constitucional Aplicado pela Faculdade
Damásio (2014). Associado Titular do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilida-
de Civil - IBERC. Professor Adjunto na Universidade de Rio Verde (UNIRV).
ÁTILA PEREIRA LIMA
Advogada. Pós-graduanda em Direito Processual Civil pela Escola Paulista de Direito.
Graduação em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia - UFU.

BIANCA CAMARGO FISCHER


Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia – UFU. E-mail: bi-
ancacfischer1@gmail.com.

BRUNO FACURI SILVA RASSI


Graduando do 9° período da Faculdade de Direito da UFU. E-mail: ras-
si.bruno@outlook.com.

FELIPE CUNHA NASCIMENTO


Advogado em Uberlândia/MG. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário do Triân-
gulo. Pós-graduado em Direito Empresarial pela Faculdade de Direito da Universidade
Federal de Uberlandia. Pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho pela Escola
Superior de Advocacia da OAB/MG.

FREDERICO CARDOSO DE MIRANDA


Especialista em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito Prof. Damásio de Jesus
(FDDJ). Bacharel em Direito pelo Centro Universitário do Triângulo (UNITRI). Advoga-
do. E-mail: fredericomirandac@gmail.com.

GABRIEL OLIVEIRA DE AGUIAR BORGES


Mestre e bacharel em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU/MG). Espe-
cialista em Direito Processual Civil pela Faculdade Damásio (SP). Pós-graduando em
Direito Digital e Compliance pelo Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (IB-
MEC/SP). Possui curso de inglês jurídico pela Oxford Brookes University (Reino Unido).
Ex-presidente da Liga de Direito dos Negócios de Uberlândia (LIGARE). Professor de
Direito Civil, Direito Internacional e Ciência Política e membro do Comitê de Ética em
Pesquisa do Centro Universitário do Triângulo (Unitri/MG). Advogado.

GABRIELA BRIESEMEISTER
Acadêmica do 9º. Período na Universidade de Joinville, Univille. Estagiária da Polícia
Federal e, Joinville/SC.
GUILHERME REIS
Advogado atuante na área de tecnologia e cibersegurança. Especializando em Gestão de
Segurança da Informação pela Universidade do Sul do Estado de Santa Catarina (UNI-
SUL); Especializando em Direito Digital e Compliance pela Damásio Educacional; Bacha-
rel em Direito Pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Membro atuante das
comissões de Direito Digital da OAB/SC; Inovação da Advocacia da OAB/SC; Direito das
Startups da OAB/SC. Co-organizador do Meetup de Cibersegurança e Privacidade 'Cryp-
to Friday' em Florianópolis/SC. E-mail de contato: apj.guilhermereis@gmail.com.

JOÃO VICTOR ROZATTI LONGHI


Defensor Público no Estado do Paraná. Professor visitante do PPGD da Universidade
Estadual do Norte do Paraná – UENP e de Graduação do Centro de Ensino Superior de
Foz do Iguaçu – CESUFOZ. Pós-Doutor em Direito pela Universidade Estadual do Norte
do Paraná – UENP. Doutor em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universida-
de de São Paulo – USP/Largo de São Francisco. Mestre em Direito Civil pela Faculdade de
Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ.

JOSÉ HENRIQUE DE OLIVEIRA COUTO


Graduando em Direito pela Universidade Federal De Uberlândia (UFU). Pesquisador nas
áreas cíveis, empresariais e eletrônicas. E-mail: henrrique_jose2000@hotmail.com

JOSÉ LUIZ MOURA FALEIROS JÚNIOR


Mestre em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia – UFU. Especialista em Di-
reito Processual Civil, Direito Civil e Empresarial, Direito Digital e Compliance, com
extensão pela University of Chicago. Pesquisador do Grupo de Estudos em Direito Digital
da Universidade Federal de Uberlândia – UFU. Membro do Instituto Avançado de Prote-
ção de Dados – IAPD. Associado do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade
Civil – IBERC. Advogado.

JÚLIA GESSNER STRACK


Advogada com atuação em Direito Digital, Propriedade Intelectual e Proteção de Dados.
Graduada em Direito com Láurea Acadêmica pela Universidade Federal do Rio Grande
do Sul – UFRGS. Especialização em Fashion Law pelo Milano Fashion Institute – MFI
(Itália). Especialização em Direito dos Negócios pela Universidade Federal do Rio Grande
do Sul – UFRGS (previsão de início para 2020).
JULIANA GOMES PINTO BORGES
Advogada no escritório Dias Advogados. Professora na ESAMC. Pós graduada em Direito
do Trabalho pela PUC Minas. Pós graduanda em Direito Empresarial pela – EPD. Especi-
alista em Direito para Startups pela FGV. Pós graduada em Direito Digital e Compliance
pelo Instituto Damásio de Direito da Faculdade Ibmec SP. Membro convidada da Comis-
são de Startups e Inovação da OAB Santos/SP. Community Leader Uberhub Legal Tech.

KETLEN CAROLINE SOARES PIERAZZO


Bacharel em Direito pela Faculdade Santa Rita de Cássia (GO). Assistente jurídica da
banca Martins e Vilela Advogados (Itumbiara – GO).

LETÍCIA PRETI FACCIO


Graduanda no curso de Direito pela Universidade Federal de Uberlândia- UFU. Coorde-
nadora discente do Laboratório de Direitos Humanos (Labdh) atuante nas áreas: cidada-
nia e desenvolvimento, tecnologia e inovação, empresa e direitos humanos. Foi vice-
presidente e diretora de RH da instituição liga de Direito dos Negócios de Uberlândia
(LIGARE). Coordena grupo de estudos de Empresa e Direitos Humanos e organiza diver-
sos eventos na área acadêmica como o Curso de Defensores Populares, Colóquio de Di-
reitos Humanos, Moot Court Competition, entre outros. E-mails: leepreti@hotmail.com /
contato@labdireitoshumanos.org

LUCAS ZORZENONI ANDREO


Graduando em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Pesquisador do
Grupo de Estudos em Direito Digital. E-mail: lzorzenoniandreo@gmail.com.

LUCIMEIRE ZAGO DE BRITO


Advogada inscrita na OAB/MG sob o n.º 88.241. Graduada pela Universidade Federal de
Uberlândia, pós-graduada em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Universi-
dade Federal de Uberlândia-MG, em Direito Empresarial (MBA em Direito da Economia
e da Empresa), em Direito Societário, ambas pela Fundação Getúlio Vargas – Rio de
Janeiro e pós-graduada em Direito Digital e Compliance pelo Instituto Damásio de Direi-
to da Faculdade Ibmec SP. Presidente da Comissão de Direito do Trabalho e Processo do
Trabalho da OAB Uberlândia, gestão 2013/2015, Diretora Adjunta, gestão 2016/2018 e
Presidente da Comissão Advocacia 4.0 e Compliance, gestão 2019. Professora de Direito
do Trabalho e Processo do Trabalho em cursos de graduação e pós-graduação.
MARCOS HENRIQUE GODOI
Economista na Universidade Federal de Uberlândia - UFU. Doutor em Desenvolvimento
Econômico pela Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP. Mestre em Economia
pela Universidade Federal de Uberlândia - UFU.

PIETRA DANELUZZI QUINELATO


Mestranda e Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo USP-FDRP. Advogada
atuante em propriedade intelectual e inovação. DPO Pratitioner - certificadora EXIN.
Membro do grupo de estudos de Concorrência e Inovação da USP-FDRP e do grupo de
Lei, Direito e Moda da mesma instituição. Membro da Comissão “Estudos em Direito da
Moda” da OAB/SP. Editora do portal jurídico More Brands and Fashion
(www.morebrandsandfashion.com). Professora convidada da Escola Superior de Advoca-
cia (ESA/SP) e do curso online Trilhante em Direito da Moda. E-mail: pietraquinela-
to@gmail.com

RAFAEL ESCRICH
Estudante de Sistemas de Informação na Universidade Federal de Santa Catarina e desen-
volvedor de software blockchain na Rhizom.

RODRIGO GUGLIARA
Especialista em Direito Digital e Compliance pela Faculdade de Direito de São Bernardo
do Campo. Técnico em Informática. Professor Assistente no Lab de Inovação da Facul-
dade de Direito de São Bernardo do Campo. Autor de artigos em Direito Digital. Assis-
tente Judiciário no Tribunal de Justiça de São Paulo.

SAMUEL NUNES FURTADO


Graduando em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia. Foi Pesquisador do
grupo de estudos em Direito Digital pela mesma Universidade. Foi coautor do livro Estu-
dos Essenciais de Direito Digital editora LAECC - 2019. Estudou Cyber Security And It's
Teen Domains pela Universifade da Geórgia. Membro discente do Laboratório de Direi-
tos Humanos, tecnologia e Inovação. E-mail: samuel.nnunes@outlook.com

STHÉFANE ALVES VASCONCELOS


Procuradora Municipal do Município de Uberlândia. Mestranda em Direito pela Univer-
sidade Federal de Uberlândia. Pós-graduanda em Ciências Penais e Segurança Pública
pelo Instituto de Ensino Rogério Greco. Especialista em Direito Constitucional Aplicado
pela Faculdade de Direito Prof. Damásio de Jesus. Graduada em Direito pela Universida-
de Federal de Uberlândia.

TALES CALAZA
Advogado. Pós-Graduado em Processo Civil pela UniDomBosco. Pós Graduando em
Direito do Consumidor na Era Digital pela UniDomBosco. Extensão em Direito Contra-
tual pela Harvard University. Extensão em Direito Imobiliário e Direito de Família pela
UniDomBosco e FGV. MBA de Gestão de Projetos Empresariais em curso pela Faculdade
ESAMC. Orientador de TCC na Faculdade ESAMC Uberlândia. Head de Direito Digital.
E-mail: talescalaza@gmail.com.

THAINÁ LOPES GOMES LIMA


Pós-Graduanda em Direito Processual Civil pela Universidade Cândido Mendes. Bacha-
rela em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Pesquisadora do Grupo
de Estudos em Direito Digital. E-mail: thainalopeslima@outlook.com.

THIAGO PINHEIRO VIEIRA DE SOUZA


Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia – UFU. Pesquisador do
Grupo de Estudos em Direito Digital da Universidade Federal de Uberlândia – UFU.
Participou do Legal Studies Course pela Goethe Universität – Frankfurt am Main. Advo-
gado.

VICTOR RODRIGUES NASCIMENTO VIEIRA


Pós-graduando em Direito Digital pelo Complexo de Ensino Renato Saraiva - CERS.
Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia - UFU. Membro do grupo
de Estudos em Direito Digital da UFU e do Grupo de Estudos em Direito Digital Profes-
sor Juliano Madalena. Membro da comissão de Direito Digital da OAB Araguari – MG.
Head member do UberHub LegalTech.

VIVIANE FURTADO MIGLIAVACCA


Advogada, palestrante, membro da comissão de compliance OAB/RS. Especialista em
Direito Digital e Compliance pela Faculdade de Direito Prof. Damásio de Jesus e em Di-
reito de Família e Mediação pela Faculdade de Desenvolvimento do Rio Grande do Sul.
Graduada em Direito pelo Centro Universitário Ritter dos Reis – UniRitter.
VIVIANE RAMONE TAVARES
Advogada – OAB/MG 59.068 – OAB/GO 19.650-A e OAB/SP 332.077. Especialista em
processo civil pela Universidade Federal de Uberlândia – UFU. Especialista em direito
civil constitucional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Especializan-
da em direito contratual e responsabilidade civil pela EBRADI. Presidente da Comissão
de Processo Eletrônico e Inclusão Digital da OAB Uberlândia.

YOLANDA CORRÊA ROSA


Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia – UFU. Pesquisadora de
Direito Digital. E-mail: yolandacorrea@ufu.br
“Can technology be controlled?
Or has it become autonomous
and out of control? If controlla-
ble, how is it to be controlled?
And under what forms of authori-
ty? Questions about the future
contain our fears and hopes. (...)
Will there be a single, universal
technological civilization?”

— DON IHDE
Technology and the Lifeworld (1990)
NOTA INTRODUTÓRIA E
AGRADECIMENTOS

O grupo de estudos de direito digital, concebido anos atrás como


projeto de extensão na Universidade Federal de Uberlândia, sob a
Coordenação de João Victor Rozatti Longhi – à época Professor da
instituição –, deixou de ser um projeto formal, mas manteve seu legado,
consolidando um grande grupo de amigos interessados em estudar e
debater temas relacionados às diversas interações entre o direito e a
tecnologia.
Não mais vinculado à UFU, o grupo se expandiu com a adesão de
colegas de diversas cidades do Brasil e surgiram propostas para instigar o
estudo aprofundado dos aspectos fundamentais para o aprofundamento
teórico do direito digital. Foi então que, por iniciativa dos colegas
Guilherme Reis, José Faleiros Jr. e Gabriel Borges, um desafio foi lançado:
durante o segundo semestre de 2019, mais de 30 colegas se organizaram
com a proposta de estudar, a fundo, textos da literatura estrangeira para
apresentá-los e debatê-los em seminários virtuais (webinars).
Temas da Filosofia da Tecnologia, da Sociologia, da Economia, da
Filosofia da Informação e da Antropologia foram estudados em conjunto
com textos jurídicos, sempre com a preocupação de buscar as fontes
originais e o aprofundamento mais fidedigno possível! Foram dezenas de
horas de apresentações e discussões virtuais, sempre com profundidade
acadêmica e grande interesse de todos os membros do grupo.
A Internet provou-se crucial para aproximar colegas que – embora
geograficamente distantes – compartilham a paixão pelo direito digital e,
tamanha foi a qualidade dos debates que, como forma de eternizar as

XIX
ideias e propostas debatidas ao longo desses vários meses, esta obra
coletiva foi concebida.
Novamente, a organização do grupo se mostrou crucial. Tarefas e
temas foram estabelecidos, um cronograma foi definido, debates, ajustes e
aprofundamentos foram feitos aos textos e, enfim, surgiu o trabalho final
que, muito apropriadamente, se decidiu intitular “Fundamentos do direito
digital”.
O colega leitor será instigado, nas páginas que se seguem, a revisitar
bases estruturais que transcendem o Direito e formam um conjunto
fundamental para a compreensão do que hoje se convencionou denominar
“direito digital”.
Fundamental, ainda, o registro de nossa gratidão aos colegas do
Laboratório Americano de Estudos Constitucionais Comparados –
LAECC, a quem nos dirigimos, aqui, na pessoa de seu Presidente, Dr.
Alexandre Walmott Borges, pelo suporte editorial imprescindível à
concretização deste trabalho.
Por fim, esperamos que todos tenham uma experiência instigante e que
as reflexões aqui propostas sejam de grande valia!
Foz do Iguaçu, Belo Horizonte, Uberlândia, Florianópolis, maio de
2020.

João Victor Rozatti Longhi


José Luiz de Moura Faleiros Júnior
Gabriel Oliveira de Aguiar Borges
Guilherme Reis

XX
PREFÁCIO

“In the development of our under-


standing of complex phenomena, the
most powerful tool available to the
human intellect is abstraction.”
— CHARLES HOARE
Notes on Data Structuring (1972), p. 83

A evolução do direito digital instiga reflexões que vão além da mera


análise legislativa, desafiando os operadores do direito à aferição de ele-
mentos fundamentais para a compreensão dos entrelaçamentos do direito
com a tecnologia sob perspectivas diversas, colhidas interdisciplinarmente
não apenas das Ciências da Computação, mas também das outras Ciências
Humanas e Sociais Aplicadas.
Com base nessa premissa, registro a satisfação com que recebi dos Co-
ordenadores João Victor Rozatti Longhi, José Luiz de Moura Faleiros Jú-
nior, Gabriel Oliveira de Aguiar Borges e Guilherme Reis o convite para
prefaciar esta segunda obra produzida pelo Grupo de Estudos de Direito
Digital por eles conduzido, que congrega jovens entusiastas do estudo
dessa matéria.
Como denota o próprio título do trabalho, “Fundamentos do Direito
Digital”, este é um trabalho que dialoga com a Sociologia e a Filosofia da
Informação, trazendo a lume debates da maior importância para o apro-
fundamento temático do direito digital.
Sem dúvidas, a evolução do fenômeno denominado Big Data produz
impactos que vão muito além do propósito que se nutre no sentido de
garantir ampla regulamentação jurídica às minudências de uma temática
XXI
Prefácio
que não está adstrita ao direito. Vai além e demanda uma reformulação da
própria compreensão que se tem do fenômeno sociológico identificado
como ‘sociedade da informação’, para citar a expressão que, desde longa
data, é utilizada para indicar o avanço rumo a um período no qual a transi-
ção do real para o virtual1 propiciaria o apogeu dos dados.
Na ressignificação do papel de cada indivíduo nessa teia de construção
social a partir da informação, a tecnologia deixa de se apresentar como um
ator autônomo e desconectado da sociedade e da cultura, na medida em
que passa a constituir o próprio amálgama e espelho das inter-relações
individuais.2
Se a Internet dá a tônica de um universo “pós-territorial” (sem frontei-
ras)3, criando a ilusão de que a virtualização produziria a diluição, tam-
bém, de barreiras culturais, políticas e econômicas – que aproximaria os
povos e diminuiria rupturas –, o que o século XXI tem revelado é o fenô-
meno oposto: cada vez mais, são notadas transformações estruturais que
desperam o interesse em torno do debate de temas como o discurso de
ódio (hate speech), a desinformação e a propagação das famigeradas notí-
cias falsas (fake news), os impactos das redes sociais, a discriminação algo-
rítmica, os controles da Internet, a mutação da clássica concepção de pri-
vacidade, entre outros temas que, nesta obra, foram enfrentados pelo jo-
vem time de pesquisadores.
Mais do que nunca, a compreensão desses fenômenos impõe a abstra-
ção para que se possa tecer comentários que ultrapassem as barreiras dos
recentes movimentos regulatórios que, inclusive no Brasil, marcam a se-
gunda década do século XXI. Mais do que conhecer em detalhes as previ-

1 WIENER, Norbert. The human use of human beings. Londres/Nova York: Houghton
Mifflin, 1954, p. 113.
2 JULLIEN, François. De l'universel, de l'uniforme, du commun et du dialogue entre les
cultures. Paris: Fayard, 2008, cap. XIII.
3 GOLDSMITH, Jack; WU, Tim. Who controls the Internet? Illusions of a borderless
world. Oxford: Oxford University Press, 2006, p. 13.
XXII
Prefácio
sões do recente Marco Civil da Internet ou da Lei Geral de Proteção de
Dados, é importante que o pesquisador dedicado ao direito digital se apro-
funde e avance rumo ao estudo de suas bases fundamentais para construir
acervo essencial à completa cognição da matéria.
Algumas reflexões ecoam nesse ambiente... “o que, no presente, traz
consigo o universal? O que, no presente, é a verdade do universal?”4 Essas
são perguntas que Michel Foucault apresenta para demonstrar que é a
dialética o caminho verdadeiramente aberto e profícuo à produção do
conhecimento transversão e estruturado que consolida a pesquisa sobre
bases fundamentais de pesquisa para a consolidação do saber.
É pela atuação colaborativa e dedicada que se obtém os mais ricos subs-
tratos da ciência. E, no atingimento desse objetivo, o projeto que culmina
na publicação desta obra carrega consigo o mérito de não apenas instigar o
diálogo aberto e o aprofundamento sociológico e filosófico, mas de propi-
ciá-lo a jovens incansáveis e inspirados pela busca incessante de respostas
aos inúmeros dilemas dessa sociedade marcada pela abundância informa-
cional, pelas redes e pela hipervigilância.
---
“We, who have a private life and
hold it infinitely the dearest of our
possessions...”
— VIRGINIA WOOLF
Montaigne (1992), vol. 1, p. 60

O principal debate que se trava no direito digital concerne à privacida-


de. E, justamente nesse contexto, é preciso registrar que o movimento que
se observa, no Direito, é o da edição de regulamentações. No Brasil, a pri-

4 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-


1976). Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2005,
p. 284.
XXIII
Prefácio
meira delas foi a Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014 (o chamado “Marco
Civil da Internet”) e, posteriormente, o Decreto nº 8.771/2016 (seu regu-
lamento). E, mais recentemente, a Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018 (a
chamada “Lei Geral de Proteção de Dados”), já alvo de alterações também.
Fato é que soluções para os dilemas da propagação informacional são a
marca da segunda década do século XXI. A edição de regulamentos volta-
dos à proteção dos dados pessoais dá a tônica de uma corrida que não se
pode vencer. É como anota van Dijk, “A lei e a justiça ficaram atrás das
novas tecnologias em quase todos os períodos da história. Isso é compre-
ensível, uma vez que a nova tecnologia deve se estabelecer na sociedade
antes que a legislação possa ser aplicada a ela.”5
O que a doutrina especializada vislumbrou durante décadas, a partir da
segunda metade do século XX, passou a se materializar com grande inten-
sidade, não pela quantidade de dados, mas devido ao tratamento dispen-
sado pelas grandes corporações, em movimento que se volta contraria-
mente à tendência de que algumas poucas grandes corporações assumam o
controle total da web.6
Segundo Yuval Noah Harari:
Os dataístas, contudo, acreditam que os humanos não são mais capazes de
lidar com os enormes fluxos de dados, ou seja, não conseguem mais refi-
ná-los para obter informação, muito menos para obter conhecimento ou
sabedoria. O trabalho de processamento de dados deveria, portanto, ser
confiado a algoritmos eletrônicos, cuja capacidade excede muito a do cé-
rebro humano. Na prática, os dataístas são céticos no que diz respeito ao
conhecimento e à sabedoria humanos e preferem depositar sua confiança

5 VAN DIJK, Jan. The network society. 2. ed. Londres: Sage Publications, 2006, p. 128,
tradução livre.
6 VAIDHYANATHAN, Siva. The Googlelization of everything: (and why we should
worry). Berkeley: University of California Press, 2011.
XXIV
Prefácio
em megadados e em algoritmos computacionais.7
Ora, em uma nova ‘galáxia da Internet’8, inúmeros conceitos surgem
para delimitar a nova fronteira inaugurada pela hipercomunicação. Se o
Estado passa por densa reformulação na nova era comunicacional pela
efetiva presença da tecnologia na sociedade da informação, não se pode
olvidar das diversas reformas estruturais que se deve implementar para
que se avance pari passu aos deveres de proteção impostos constitucio-
nalmente.
Se o dataísmo emana preocupações quanto à empolgação desmedida e
incalculada sobre os impactos das novas tecnologias, não há dúvidas de
que o papel do Estado na atuação regulamentar – e, além dela, no cum-
primento de seu múnus fiscalizatório – dará a tônica de um novo momen-
to em que os filtros da privacidade, da intimidade e da liberdade se tornam
mais translúcidos.
---
“In the process of building, one can-
not help but construct every higher
step upon a lower step. It is trivial to
remark that there is no second floor
without a first (…).”
— LUCIANO FLORIDI
The Ethics of Information (2013), p. 329

Chega-se, enfim, ao paradigma ético que deve nortear todo constructo


que se deseje produzir a partir da aferição conglobante dos efeitos da soci-
edade da informação sobre as próprias relações sociais.

7 HARARI, Yuval Noah. Homo deus: uma breve história do amanhã. Tradução de
Paulo Geiger. São Paulo: Cia. das Letras, 2016, p. 370-371.
8 CASTELLS, Manuel. The Internet galaxy: reflections on the Internet, business, and
society. Oxford: Oxford University Press, 2001.
XXV
Prefácio
Norbert Elias destaca o seguinte:
Se se abordam níveis de envolvimento e alienação, referem-se a caracterís-
ticas e à situação dos seres humanos que formam a sociedade considerada.
Referem-se a seres humanos, incluindo seus movimentos, seus gestos, e
suas ações, não menos do que seus pensamentos, seus sentimentos, seus
impulsos e o controle deles. Basicamente, os dois conceitos fazem referên-
cia aos diferentes modos segundo os quais os seres humanos se regulam,
no que podem, aliás, ser mais alienados ou mais envolvidos. Os padrões
sociais de autorregulação individual podem representar maior alienação
ou maior envolvimento, bem como seu conhecimento ou sua arte. Todas
as afirmativas referentes a envolvimento e alienação são relativas.’9
Nunca se falou tão eloquentemente em ética para simbolizar a necessi-
dade de aprimoramento dos modos pelos quais os indivíduos se portam
numa sociedade marcada pela hipervigilância. A construção dos influxos
éticos depende, contudo, de bem mais que a mera reflexão sobre sua ne-
cessidade; perpassa, é bem verdade, pela derrubada das barreiras que
imantam a cognição dos problemas centrais da sociedade para, em avanço,
descortinar horizontes de reflexão e autoaprimoramento.
Quando se fala em ética, por suposto, trabalha-se com a ideia de que
uma ‘corrida’ pelos algoritmos mais eficazes e capazes de filtrar os mais
variados acervos de dados para propiciar vantagens a seus desenvolvedores
não pode se tornar o telos da vida em sociedade.
A superação de barreiras e entraves ao desenvolvimento econômico
não pode, em nenhum grau, suplantar a própria essência que consubstan-
cia o padrão de harmonia social almejado e que parece se perder em meio
aos anseios da humanidade conectada.
Para suplantar o cenário indesejável de um Estado fraco e impotente
frente ao poderio técnico-informacional de grandes corporações, também

9 ELIAS, Norbert. Envolvimento e alienação. Tradução de Álvaro de Sá. Rio de Janeiro:


Bertrand Brasil, 1998, p. 351.
XXVI
Prefácio
o direito precisa se reinventar!
É concebível que os direitos à privacidade e à proteção de dados, basea-
dos em noções e garantias constitucionais complexas, como autodetermi-
nação informacional, dignidade humana e liberdade de ação, sejam sim-
plesmente abstratos demais para que os indivíduos possam empregá-los
efetivamente, daí a necessidade da ética nas relações sociais – e o percurso
do estudioso do direito digital deve, necessariamente, passar por tais refle-
xões.
Com base nessas brevíssimas considerações, o substrato que se colhe da
obra que se apresenta ao público é um rico compêndio de temas que per-
passam por essas três grandes linhas de reflexão sobre as interações da
tecnologia com o direito, abrindo espaço à ressignificação do papel da
Ciência Jurídica em um universo no qual as demais Ciências com ela se
entrelaçam e passam a denotar uma transversalidade necessária para a
própria delimitação dos sentidos que se almeja buscar para a efetivação
dos propósitos da sociedade da informação.
Sem mais, fica o convite à leitura dos trabalhos que se seguem, no dese-
jo de que despertem importantes reflexões e suscitem questionamentos
acerca dos novos horizontes do direito digital. Parabéns aos organizadores
e autores pelo brilho desta bela obra!
Rio de Janeiro, junho de 2020.

GUILHERME MAGALHÃES MARTINS


Promotor de Justiça titular da 5ª Promotoria de Tutela
Coletiva do Consumidor da Capital – Rio de Janeiro.
Professor adjunto de Direito Civil da Faculdade Nacio-
nal de Direito – Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Doutor e Mestre em Direito Civil pela Faculdade de Di-
reito da UERJ. Professor permanente do Doutorado em
Direito, Instituições e Negócios da Universidade Federal
Fluminense – UFF.

XXVII
SUMÁRIO

SOBRE OS AUTORES ............................................................................................... IX

NOTA INTRODUTÓRIA E AGRADECIMENTOS ................................................... XIX

PREFÁCIO ........................................................................................................... XXI

SUMÁRIO ......................................................................................................... XXIX

PRÓLOGO .............................................................................................................. 39

Capítulo 1
João Victor Rozatti Longhi
DISCURSO DE ÓDIO (HATE SPEECH) E A CENSURA REVERSA NA INTERNET ....... 47
1. Introdução ....................................................................................................... 47
2. A democracia na sociedade da informação ................................................ 48
3. Populismo 3.0 e liberdade de expressão...................................................... 51
4. Os ataques em massa na internet e a censura reversa ............................... 57
5. Considerações finais ...................................................................................... 64
Referências ........................................................................................................... 66

Capítulo 2
José Luiz de Moura Faleiros Júnior
Letícia Preti Faccio
FAKE NEWS E DESINFORMAÇÃO: UM ENSAIO PELA ÉTICA NA SOCIEDADE DA
INFORMAÇÃO ........................................................................................................ 69
1. Introdução ....................................................................................................... 69
2. Fake news e desinformação no Século XXI ................................................ 71
XXIX
Sumário
3. A origem do problema ético ......................................................................... 76
4. A transformação da ética e a superação da desinformação ..................... 79
5. Considerações finais ...................................................................................... 83
Referências ........................................................................................................... 85

Capítulo 3
Átila Pereira Lima
Marcos Henrique Godoi
DO EXCEDENTE COGNITIVO À COGNIÇÃO EXCEDIDA: AGÊNCIA E
RESPONSABILIDADE LEGAL NA ERA DAS FAKE NEWS ........................................... 89
1. Introdução ....................................................................................................... 89
2. Os primórdios da internet e o excedente cognitivo .................................. 90
3. Cognição humana e fake news...................................................................... 94
4. Agência humana e responsabilidade legal ................................................ 101
5. Considerações finais .................................................................................... 110
Referências ......................................................................................................... 110

Capítulo 4
Felipe Cunha Nascimento
JÁ VIVEMOS NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO? ............................................... 115
1. Introdução ..................................................................................................... 115
2. Origem do termo .......................................................................................... 117
3. Algumas características do novo modelo social ...................................... 119
4. Considerações finais .................................................................................... 130
Referências ......................................................................................................... 132

Capítulo 5
Rodrigo Gugliara
Bianca Camargo Fischer
CONCEITOS ESSENCIAIS SOBRE A SOCIEDADE EM REDE .................................... 135
1. Introdução ..................................................................................................... 135

XXX
Sumário
2. Breve contexto histórico acerca do surgimento da internet .................. 136
3. A política e a noção de tempo e espaço na sociedade em rede .............. 142
4. As mudanças sistemáticas na economia com a sociedade em rede ...... 147
5. Considerações finais .................................................................................... 152
Referências ......................................................................................................... 153

Capítulo 6
Pietra Daneluzzi Quinelato
Yolanda Corrêa Rosa
A INFORMAÇÃO E A COMPREENSÃO DO “EU” NA ERA DIGITAL: UM ENSAIO A
PARTIR DOS ESTUDOS DE LUCIANO FLORIDI ..................................................... 155
1. Introdução ..................................................................................................... 155
2. Considerações sobre a informação na compreensão do “eu” ............... 157
3. A formação do “eu” na era digital ............................................................. 161
4. A tutela do “eu” no ambiente virtual ........................................................ 162
5. Considerações finais .................................................................................... 166
Referências ......................................................................................................... 167

Capítulo 7
Tales Calaza
O DIREITO À PRIVACIDADE: ORIGEM HISTÓRICA E JURÍDICA ........................... 169
1. Introdução ..................................................................................................... 169
2. O contexto tecnológico do início da proteção dos dados pessoais ....... 170
3. O surgimento da proteção à privacidade .................................................. 171
4. O direito à atual privacidade....................................................................... 178
5. Considerações finais .................................................................................... 182
Referências ......................................................................................................... 183

Capítulo 8
Victor Rodrigues Nascimento Vieira
AS REDES SOCIAIS DIGITAIS E O LIVRE DESENVOLVIMENTO DA PERSONALIDADE

XXXI
Sumário
............................................................................................................................. 185
1. Introdução ..................................................................................................... 185
2. Redes sociais digitais .................................................................................... 186
3. Livre desenvolvimento da personalidade ................................................. 190
4. As redes sociais e o livre desenvolvimento da personalidade ................ 193
5. Compliance, ética, limites e possíveis soluções ........................................ 197
6. Considerações finais .................................................................................... 201
Referências ......................................................................................................... 203

Capítulo 9
Aline Ferreira Costa Carneiro
Lucimeire Zago de Brito
Viviane Ramone Tavares
COMPLIANCE DIGITAL: NOVAS PERSPECTIVAS SOBRE ÉTICA NA SOCIEDADE DA
INFORMAÇÃO ...................................................................................................... 207
1. Introdução ..................................................................................................... 207
2. Conceitos fundamentais .............................................................................. 208
2.1. Breve contexto histórico sobre a ética .................................................... 208
2.2. Definições conceituais sobre sociedade da informação ...................... 210
2.3. Conceito e breve evolução histórica do compliance............................. 212
3. Compliance digital e os desafios éticos ...................................................... 215
3.1. Privacidade e proteção de dados pessoais ............................................. 215
3.2. Ética e desenvolvimento da inteligência artificial ................................ 219
3.3. Valores éticos no ciberespaço.................................................................. 223
4. Considerações finais .................................................................................... 226
Referências ......................................................................................................... 227

Capítulo 10
Ketlen Caroline Soares Pierazzo
Gabriel Oliveira de Aguiar Borges
ENSAIO SOBRE ALGUNS ASPECTOS TEÓRICOS DO COMÉRCIO ELETRÔNICO E A

XXXII
Sumário
PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR ............................................................................. 231
1. Introdução ..................................................................................................... 231
2. Contratos eletrônicos ................................................................................... 233
2.1. Aplicabilidade das normas de proteção ao consumidor nas relações
contratuais eletrônicas ..................................................................................... 236
2.1.1. Classificação de consumidor segundo a legislação ........................... 238
2.1.2. Normas de proteção ao consumidor nas relações de consumo ...... 239
2.1.3. Aplicabilidade do princípio da boa-fé nas contratações eletrônicas
............................................................................................................................. 242
3. Formação dos contratos eletrônicos.......................................................... 243
4. Responsabilidade civil nos contratos eletrônicos .................................... 247
4.1. Responsabilidade civil decorrente do inadimplemento nos contratos
eletrônicos.......................................................................................................... 249
4.2. Responsabilidade civil dos provedores segundo a lei do Marco Civil da
Internet ............................................................................................................... 249
5. UNCITRAL ................................................................................................... 251
6. Proteção dos dados pessoais do consumidor ........................................... 253
7. Considerações finais .................................................................................... 257
Referências ......................................................................................................... 259

Capítulo 11
Ana Luíza Rodrigues Pereira
Lucas Zorzenoni Andreo
Thainá Lopes Gomes Lima
GEODISCRIMINAÇÃO: ANÁLISE À LUZ DO CASO DECOLAR.COM ...................... 261
1. Introdução ..................................................................................................... 261
2. A internet, as fronteiras e os governos nacionais .................................... 266
3. Geopricing, geoblocking e a tutela do consumidor ................................... 269
4. Considerações finais .................................................................................... 273
Referências ......................................................................................................... 274

XXXIII
Sumário
Capítulo 12
Ketlen Caroline Soares Pierazzo
Gabriel Oliveira de Aguiar Borges
BREVE ENSAIO SOBRE SEGURANÇA JURÍDICA NO COMÉRCIO ELETRÔNICO E
ABORDAGEM LEGISLATIVALIDA ......................................................................... 277
1. Introdução ..................................................................................................... 277
2. Proteção jurídica no e-commerce ............................................................... 278
3. Decreto federal nº 7.962/2016 .................................................................... 280
4. Decreto nº 7.962/2013 ................................................................................. 280
5. Considerações finais: aspectos relevantes acerca da atualização do
Código de Defesa do Consumidor no tocante ao comércio eletrônico (PLS
nº 281/2012) ...................................................................................................... 285
Referências ......................................................................................................... 290

Capítulo 13
Arthur Pinheiro Basan
José Henrique de Oliveira Couto
A MONITORAÇÃO ELETRÔNICA DO CONSUMIDOR E A PROTEÇÃO DE DADOS
PESSOAIS ENQUANTO DIREITO FUNDAMENTAL ................................................ 293
1. Introdução ..................................................................................................... 293
2. Uma breve história das trocas voluntárias: do surgimento do capitalismo
à monitoração eletrônica das negociações.................................................... 295
3. Fluxos circulares de controle: os avanços na monitoração do
consumidor no ambiente da internet ............................................................ 299
4. Os dados pessoais dos consumidores enquanto direitos fundamentais
............................................................................................................................. 303
5. O domínio tecnológico da internet e o controle de dados pessoais...... 307
6. Considerações finais .................................................................................... 309
Referências ......................................................................................................... 310

XXXIV
Sumário
Capítulo 14
Samuel Nunes Furtado
Frederico Cardoso de Miranda
Bruno Facuri Silva Rassi
CONTROLES DA INTERNET: O CIBER-UTOPISMO DO MARCO CIVIL DA INTERNET
NO ART. 19 .......................................................................................................... 315
1. Introdução ..................................................................................................... 315
2. Artigo 19 do MCI e a responsabilidade dos provedores ........................ 318
3. Como os provedores são remunerados: informação como um ativo... 321
3.1. Filtros bolha e a liberdade na internet.................................................... 323
4. Ciber-otimistas e ciber-pessimistas: ciberespaço e a guerra hobbesiana
de todos contra todos ....................................................................................... 326
5. O ciber-utopismo do marco civil da internet........................................... 330
6. Considerações finais .................................................................................... 332
Referências ......................................................................................................... 334

Capítulo 15
Rafael Escrich
Guilherme Reis
O PANORAMA GERAL ENTRE INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E A SOCIOLOGIA ..... 339
1. Introdução ..................................................................................................... 339
2. A origem da inteligência artificial .............................................................. 340
3. Inteligência Artificial forte ou fraca ........................................................... 342
4. Inteligência Artificial simbólica versus aprendizado de máquina ........ 344
5. Estado atual da tecnologia ........................................................................... 345
6. A busca por diretrizes éticas ao atual momento da Inteligência Artificial
............................................................................................................................. 347
7. A utilização da Inteligência Artificial e seus dilemas éticos na nossa
sociedade ............................................................................................................ 350
8. Considerações finais .................................................................................... 357
Referências ......................................................................................................... 358

XXXV
Sumário

Capítulo 16
Aline Ferreira Costa Carneiro
Juliana Gomes Pinto Borges
OS DESAFIOS DA ÉTICA E DA PRIVACIDADE FACE AO DESENVOLVIMENTO DA
INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL ................................................................................. 363
1. Introdução ..................................................................................................... 363
2. Conceitos fundamentais .............................................................................. 364
2.1. Evolução do conceito de privacidade: breve contexto histórico. ....... 364
2.2. A linha tênue entre privacidade e proteção de dados pessoais
atualmente ......................................................................................................... 365
2.3. Ética e suas novas perspectivas ............................................................... 367
2.4. Ética da inteligência artificial .................................................................. 369
3. A Quarta Revolução Industrial e os desafios da ascensão da Inteligência
Artificial ............................................................................................................. 374
3.1. O equilíbrio entre a privacidade, a proteção de dados pessoais e o
desenvolvimento da inteligência artificial .................................................... 374
4. Os limites e a responsabilidade da inteligência artificial ........................ 375
5. Considerações finais .................................................................................... 381
Referências ......................................................................................................... 381

Capítulo 17
José Luiz de Moura Faleiros Júnior
Pietra Daneluzzi Quinelato
Júlia Gessner Strack
A ARTE E O DIREITO DE IMAGEM NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO: REFLEXÕES
SOBRE TECNOLOGIAS DA INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO E O ‘CASO RICHARD
PRINCE’ ............................................................................................................... 385
1. Introdução ..................................................................................................... 385
2. Arte, entretenimento e a tutela jurídica dos direitos autorais ............... 387
3. O ‘caso Richard Prince’ e a arte na pós-modernidade tecnológica ...... 396

XXXVI
Sumário
4. Considerações finais .................................................................................... 406
Referências ......................................................................................................... 407

Capítulo 18
Ana Márcia Rodrigues Moroni
Viviane Furtado Migliavacca
DOMÍNIO PÚBLICO E SUA RELAÇÃO COM OS DIREITOS AUTORAIS E DIREITOS
CONEXOS ............................................................................................................. 411
1. Introdução: a proteção do direito autoral no arcabouço legislativo
brasileiro ............................................................................................................ 411
2. A obra musical no direito autoral .............................................................. 414
3. O objeto da proteção autoral na obra musical ......................................... 416
4. Direito conexo .............................................................................................. 418
5. A exploração do mercado fonográfico digital pela internet .................. 419
6. O domínio público no direito autoral musical brasileiro....................... 423
7. A adequação da utilização do dado musical com as regras de compliance
digital e proteção de dados .............................................................................. 426
8. Considerações finais .................................................................................... 428
Referências ......................................................................................................... 428

Capítulo 19
Gabriela Briesemeister
Sthéfane Alves Vasconcelos
DEMOCRACIA DIGITAL E SUA GARANTIA NA RELAÇÃO ENTRE ESTADO
BRASILEIRO E SOCIEDADE ................................................................................... 431
1. Introdução ..................................................................................................... 431
2 Sociedade da informação............................................................................. 432
2.1. Informação e base de dados como nova matéria-prima ..................... 435
3. Interação digital entre estado e sociedade e o exercício da democracia
digital .................................................................................................................. 436
4. Democracia digital no brasil ....................................................................... 442

XXXVII
Sumário
4.1. Dos atos normativos atuais do governo brasileiro e a proteção à
democracia na era da informação .................................................................. 448
5. Considerações finais .................................................................................... 452
Referências ......................................................................................................... 453

Capítulo 20
Thiago Pinheiro Vieira de Souza
O SISTEMA JURÍDICO DO BIG DATA E SUA REPERCUSSÃO PENAL ...................... 457
1. Introdução ..................................................................................................... 457
2. Premissas ....................................................................................................... 459
3. Problemática ................................................................................................. 463
4. Prognóstico.................................................................................................... 469
5. Considerações finais .................................................................................... 473
Referências ......................................................................................................... 474

POSFÁCIO ............................................................................................................ 477

XXXVIII
PRÓLOGO

Estamos viviendo una cuarta revolución industrial, que comenzó a fi-


nales del siglo XX, que esencialmente comprende la transformación digital
y la revolución tecnológica, así como el desarrollo del Big Data, los algo-
ritmos, Internet de las cosas, la inteligencia artificial, los ecosistemas de
innovación industrial, el ascenso de nuevas tecnologías, el abandono de
energías no sostenibles, y la construcción de aparatos tecnológicos capaces
de almacenar grandes cantidades de energía e información. Los aparatos
tecnológicos con acceso a Internet tienen influencia significativa en el au-
mento de los flujos de datos, ampliando el horizonte de recolección cons-
tante e inmediata de feedbacks. Los dispositivos móviles -teléfonos o table-
tas- han sustituido a las computadoras de escritorio, a los cuadernos de
notas, las agendas, los mapas en papel, las calculadoras o los libros físicos.
La cada vez más alta demanda de conectividad atrae una nueva tecnología
para el desarrollo de redes de conexión mundial, en la que la información
se transmite en tiempo real.
No parece extraño que, en un periodo de tiempo no demasiado largo, la
sociedad de la información sea el modelo que prevalecerá, lo que implicará
una larga y profunda transformación de las estructuras sociales del siglo
pasado. Aun así, no exento de polémicas, el antagonismo social predomi-
nante durante el siglo XX -me refiero a la lucha de clases- toma hoy otras
formas extremadamente más complejas, que requieren ya de una nueva
conceptualización del antagonismo social, en el que se perfila ya el conflic-
to entre informados/desinformados, y donde las Fake News son la nueva
arma de destrucción y manipulación. No cabe duda que una aproximación
a la teoría de la información, en toda su complejidad, debe integrar un
39
Borja Muntadas Figueras
conjunto de disciplinas capaces de pensar el fenómeno información a la
luz del desarrollo tecnológico. Una de estas aproximaciones es la que nos
presenta el filósofo italiano Floridi, quien profundiza en dos aspectos: la
construcción del yo (onlife) y su privacidad ante la creciente proliferación
de bases de datos con usos comerciales, y probablemente ya con usos de
una supuesta seguridad ciudadana.
Como de forma muy acertada han sabido ver Castells, Van Dijk y Bau-
man, Internet ha supuesto un cambio significativo tanto en la velocidad
como en la agilidad de la transmisión de información, hoy ya en tiempo
real; pero no solo eso, sino que los cambios se han sucedido, década tras
década, tanto en las interacciones sociales, como en la economía, la políti-
ca y la gobernanza global. Gracias a Internet nuestra percepción espacial y
temporal se ha visto fuertemente afectada. Para Castells ha abierto nuevos
campos de comunicación que consiguen ir más allá de las barreras espa-
ciotemporales del pasado; por otro lado, para Bauman, no tan optimista,
las relaciones sociales han perdido todo su espesor y rigidez espaciotempo-
ral, transformándose en volátiles, deconstruyendo la mayoría de tradicio-
nes sociales. En lo que sí están de acuerdo ambos autores, es en que nos
encontramos ante una nueva forma de capitalismo, capitalismo digital o
informacional, que ha dejado atrás el viejo capitalismo industrial del siglo
XX. Conviene destacar que a la vez han surgido nuevas formas de de-
sigualdad, marginación y explotación, que deben ser abordadas desde nue-
vas perspectivas.
Otro de los retos de la sociedad de la información es el derecho a la pri-
vacidad. A pesar de que la bibliografía sobre el derecho a la privacidad data
de finales del siglo XIX, no es hasta finales del siglo XX que la cuestión
cobra dimensiones mucho mayores. Indudablemente se debe a la apari-
ción de Internet, y todo lo que ello conlleva respecto a la protección de
datos personales. En este sentido, es sumamente interesante una genealo-
gía que nos lleve de un punto a otro, y que ponga en el foco el conflicto
muchas veces existente entre dos derechos: libertad de expresión y derecho
40
Prólogo
a la intimidad. Al uso fraudulento de los datos personales deben añadírsele
otras cuestiones como: data mining, política de cookies, copyright, testa-
mento digital en redes sociales, o incluso el uso de drones o cámaras de
vigilancia situadas en lugares estratégicos, geopricing, o geoblocking… La
mayoría de las constituciones reconocen el derecho a la privacidad, sin
embargo, la línea que separa lo público de lo privado es tan fina que la
mayoría de cartas magnas deben ser reforzadas por otras leyes que con-
templen el derecho a la intimidad en espacios virtuales y entornos digita-
les; por ejemplo, leyes de protección de datos como la 13.709/18 en Brasil.
Uno de los aspectos que más debate ha suscitado en los últimos años es
el de la responsabilidad en actos en los que, de una forma y otra, interviene
la inteligencia artificial. Un claro ejemplo lo podemos encontrar en los
contratos electrónicos, donde, si bien siempre son dos sujetos de derecho
las partes del contrato, en muchos casos una de ellas no es más que un
software, que opera de forma automática en un entorno virtual en el cibe-
respacio. Cuestiones como estas no son solo un reto para programadores
informáticos o ingenieros en Big Data, sino también para juristas y espe-
cialistas en Derecho Digital y Defensa del Consumidor. Y es que, si por un
lado en su día pensamos que Internet nos iba a proveer de un gran número
de opciones y servicios personalizados, la realidad parece bien distinta, ya
que la mayoría de contratos se mueven según parámetros estandarizados.
En este sentido lo digital, lo queramos o no, modificará sustancialmente
dos elementos centrales del Derecho Civil: la responsabilidad civil y el
concepto de contrato. Sin embargo, la IA no solo se aplica a cuestiones de
tipo administrativo, sino también a procesos mucho más complejos que
afectan directamente a derechos y libertades de cada uno de los ciudada-
nos; incluso a su propia integridad moral y social. No han sido pocos los
casos en los que complejos sistemas de IA han fallado, causando graves
perjuicios morales y personales. Por este motivo urge regular las operacio-
nes de la IA según criterios de responsabilidad social y ética. Como, por
ejemplo: supervisión humana, seguridad técnica, privacidad de datos,

41
Borja Muntadas Figueras
transparencia, no discriminación, bienestar social y medioambiental y
responsabilidad.
Tal y como afirmó Bauman, la nuestra es una sociedad donde el ritmo
de la vida se mueve a la velocidad de la señal electrónica; donde el tiempo
requerido para el movimiento se ha vuelto extremadamente instantáneo y
ha sucumbido a lo verdaderamente extraterritorial. En una vida así lo efí-
mero cobra cada vez más importancia, y el individuo busca referentes y
puntos de anclaje cuando compra y navega por la red y el espacio virtual.
Lo que busca, en definitiva, ante tanta fluidez es seguridad; seguridad que
sólo le puede proporcionar un ordenamiento jurídico que lo proteja como
ciudadano y consumidor.1
Las Fake News son parte del mismo desarrollo de la cultura de la co-
municación en tiempo real, amplificado gracias a Internet y a una serie de
dispositivos periféricos como, por ejemplo, los smartphones. Quizás ha-
bría que situar en el centro mismo del debate una cuestión central respecto
a la misma noción de trabajo: ¿Qué sucede con ese tiempo liberado del
trabajo gracias al desarrollo tecnológico? Si bien autores como Rifkin2 se
mostraban bastante esperanzados en que la reducción de la jornada laboral
sería posible, en pleno siglo XXI esta utopía perece esfumarse. Las tecnolo-
gías de la información, lejos de reducir la jornada de trabajo, ha hecho que
ésta invada la vida privada en todos sus aspectos; el smartphone que soste-
nemos en nuestras manos es una prolongación de la oficina que nos
acompaña, colocado en mi mesita noche, cuando intento conciliar el sue-
ño. En este sentido, la sociedad digital se encuentra dividida en dos gran-
des grupos: los que disponen de tiempo libre para seleccionar información
y producirla, y aquellos otros que en su vida monótona y acelerada la con-
sumen de forma automática. Nos encontramos aquí ante el dilema: ¿Cómo
va a ser utilizado este excedente? ¿Para lograr una sociedad más libre, jus-

1 BAUMAN, Z. Modernidad líquida. Madrid: Austral, 2013. Pp. 14-17.


2 RIFKIN, J. The End of Work: The Decline of the Global Labor Force and the Dawn of
the Post-Market Era. Putnam Publishing Group, 1995.
42
Prólogo
ta, diversa e informada, o bien para promover teorías conspiratorias, ma-
nipular o difundir fake news, con el fin de sacar beneficios económicos o
políticos? Parece que no sólo se puede apelar a la responsabilidad personal
e individual de los miembros de un grupo frente a otro, sino que se deben
buscar mecanismos legales que primero reconozcan la vulnerabilidad de
los segundos e imponga límites a los primeros. Y tan pronto como formu-
lamos estas preguntas se nos presenta una gran incógnita: si las fake news
son la potencia de lo falso con fines manipuladores, ¿qué verdad, después
de que el mismo concepto de verdad muriera hace más de un siglo, puede
establecerse como criterio básico para combatirlas? A pesar de que más de
4 billones de personas poseen acceso a Internet, comprender cómo se usa
la red online de modo seguro es una de las formas de superar el Apartheid
digital y mejorar la inclusión. Desde el año 2000 en Brasil se inició un pro-
ceso de mayor participación ciudadana y democracia digital llamado e-
Gov, que, si bien pone en el centro fomentar la participación y la transpa-
rencia, debe ir acompañado por un lado de medidas legales que aseguren
la privacidad de los datos del ciudadano, y por otro, de una mayor inclu-
sión digital, para que el proceso llegue a todas las capas de la sociedad. De
lo contrario el proyecto podría excluir a un número importante de ciuda-
danos.
A su vez lo digital hace estallar la rígida relación -que ya en los años 30
Benjamin3 destapó- entre imagen y referente, poniendo en cuestión la
misma noción de verdad y representación. ¿Cuál es la verdad de una ima-
gen? En pleno siglo XXI, cuando nuestra relación con el mundo y la reali-
dad está mediatizada por imágenes -lo que puso de manifiesto Debord4 en
los '60-, el referente de una imagen no es más que otra imagen, que a su
vez remite a otra imagen; y así hasta el infinito. Así pues, la verdad de una
imagen no sería ya su referente, sino la narración o el relato que las enca-

3 BENJAMIN, W., La obra de arte en la era de su reproductibilidad técnica. Ilumina-


ciones. Madrid: Taurus, 2018. Pp. 195.
4 DEBORD, G., La Société du Spectacle. Paris: Editions Gallimard, 1992
43
Borja Muntadas Figueras
dena. El caso del artista Richard Prince, que acabó en los tribunales en
2011 en los EEUU, no es más que una provocadora manera de retratar la
nueva relación entre imagen y referente. Así pues, no cabe duda de que lo
digital ha roto la frágil relación entre original y copia, que de una forma
tan sólida las unía en otros momentos de la historia del arte y de la cultura.
Estas cuestiones ponen en el centro un tema de enorme importancia, un
aspecto central de la creación: los derechos de autor; que implican no sólo
cuestiones comerciales y patrimoniales, sino también morales y de recono-
cimiento. No obligatoriamente deben protegerse ambos a un tiempo; por
ejemplo, la categoría dominio público reconoce expresamente la autoría,
pero sin asociarla a fines comerciales. Fenómenos todos ellos, que sin duda
se han visto amplificados por la digitalización de los artefactos culturales
en un sentido amplio.
Lo digital tiene también su dimensión política. J.V. Rozatti introduce
conceptos como los de populismo 3.0 o populismo digital. Plantea cuáles
son los impactos políticos del uso de Internet, y el impacto que hayan po-
dido tener las redes sociales sobre lo que él denomina "dignidad informa-
cional". Los modelos políticos basados en sociedades democráticas, con un
serio componente comunicativo y deliberativo, se han visto afectadas por
los recientes impactos tecnológicos y digitales, en las que las fronteras en-
tre lo público y lo privado, que en el derecho romano parecían bastante
claras, se han ido difuminando. Este proceso lo llama Bauman sociedad
líquida. En el terreno político lo digital toma diversas caras. Por un lado,
tenemos el activismo digital que aparece en los países de la Primavera Ára-
be en 2013, donde los movimientos sociales se expandieron a través de
Internet, con el recién aparecido activismo virtual, que defiende los dere-
chos humanos la democracia y la participación; por otro, tenemos el efecto
contrario: una nueva forma de populismo digital que construye nuevas
verdades, que manipula, que estandariza comportamientos y difunde
mensajes de odio en las redes. No cabe duda que Internet puede abrir las
puertas a una nueva forma de democracia, e-democracy- más participativa,

44
Prólogo
sin embargo, a falta de una regulación que sancione los mensajes de odio,
las Fake News, que promueven la desinformación o la utilización los datos
de los ciudadanos con fines poco democráticos, puede ser el medio idóneo
para una nueva forma de fascismo: el Fascismo 3.0. Un claro ejemplo de
ello fue el caso de Cambridge Analítica - Facebook, que tuvo una gran
repercusión en la campaña de Trump.
Quizás lo digital e Internet sea el farmacon, como apunta Stiegler,5 -a la
vez lo que permite curar y aquello de lo cual debemos tener cuidado- de
nuestro tiempo, que allanará el camino a una democracia más directa, más
deliberativa (ciber-utopismo), pero que también erosiona los mecanismos
psíquicos de atención, manipula, estandariza, satura de información un
espacio imprescindible para la misma deliberación, y a la vez sirve de caldo
de cultivo para toda clase de movimientos antidemocráticos (como sostie-
ne el ciber-pesimismo). Este espacio es el que nuevos mecanismos legales
deben proteger. También en esta línea se mueven los planteamientos de
Leonardo Kussler,6 quién afirma que hemos pagado un tributo por el pro-
greso tecnológico. Nos se apela a extrañas utopías digitales, sino a la exi-
gencia de cumplir uno de los derechos -me refiero a derecho positivo-
fundamentales, recogido en la Declaración Universal de Derechos Huma-
nos de 1948 en su artículo 22: todo ser humano tiene derecho al libre desa-
rrollo de su personalidad. Y qué duda cabe, que la manipulación de infor-
mación, adaptada a los gustos de los usuarios, obtenida del rastro digital
que dejan los usuarios, tanto en el uso de páginas web, monitorización de
consumidores, redes sociales o geolocalización, y que pueden moldear o
construir una personalidad con fines políticos o comerciales, se aleja bas-
tante de este derecho. Y es que no sólo en función de nuestra huella digital,
sino también en función de los datos de geolocalización que enviamos a
servidores remotos, podemos ser discriminados (el caso Decolar.com). Por

5 BERNARD, S., Ce qui fait que la vie vaut la peine d´être vécue: pharmacologies de
l´esprit, du nihilisme et du capital. Paris: Flammarion, 2010.
6 KUSSLER, L., Filosofia, Cinema e Literatura. Intercessões. São Paolo: LiberArs, 2011.
45
Borja Muntadas Figueras
eso, además, este derecho debe ser reforzado con medidas éticas y de res-
ponsabilidad corporativa, y con una educación que enseñe a hacer un uso
consciente y responsable, tanto de Internet como de las redes sociales y la
navegación en el ciber espacio.
Nos encontramos ante una obra, que no solo puede ser interesante para
estudiosos e investigadores en el campo del derecho, sino también para
cualquier investigador de la cultura y la sociedad, en un sentido muy am-
plio. Quizás, para quienes no sean estudiosos del derecho haya una cues-
tión que pueda pasar desapercibida: las estructuras judiciales y las leyes
actuales son herederas de un modelo de Estado rígido y estático -
construido a partir del siglo XIX-, que hunde sus raíces en un modelo de
una temporalidad lineal. Lo que plantea esta obra, lejos de ser una colec-
ción de estudios y artículos, es la quiebra de esta linealidad temporal. Lo
digital e Internet han puesto en el centro del análisis jurídico no sólo el Big
Data, las Fake News, geopricing …, sino también otros aspectos mucho
más profundos: la inmediatez, la saturación y la aceleración.7 Si el derecho
debe defender derechos y libertades de los ciudadanos -hoy ciudadano
digital-, debe repensarse a la luz de lo digital, debe superar las barreras
rígidas de una temporalidad estrictamente lineal, debe ir más allá de las
disciplinas, debe recorrer lo transdisciplinar, y sin duda el presente trabajo
lo hace.
Barcelona, junio de 2020.
BORJA MUNTADAS FIGUERAS
Doutor em Filosofía Contemporánea y Tradición Clásica pela
Universitat de Barcelona – UB. Professor e investigador em Filo-
sofía Moderna y Contemporánea na Universitat La Salle, Campus
Barcelona, na Universitat de Barcelona – UB e Professor Convi-
dado na Universidade Federal de Uberlândia – UFU.

7 MUNTADAS, B. Inmediatez. Capitalismo y vidas aceleradas. Lisboa: Chiado Edito-


rial, 2016. Y en MUNTADAS, B. & MAYOS, G. & WALMOTT, A. La jaula del tiem-
po. Aspectos sociopolíticos y jurídicos de la aceleración contemporánea. Uberlandia:
LAECC, 2020.
46
DISCURSO DE ÓDIO (HATE SPEECH) E A
CENSURA REVERSA NA INTERNET

1
João Victor Rozatti Longhi

1. Introdução
O conceito tradicional de democracia parece estar em xeque no século
XXI, especialmente na análise dos impactos das Tecnologias da Informa-
ção e Comunicação. Nesse sentido, é dada ênfase especial ao papel das
mídias sociais, que deram voz a todos os tipos de opiniões, desafiando o
legislador a revisitar todo o arquétipo estrutural do sistema jurídico, com a
codificação de regulamentações destinadas a lidar com a Internet e sua
fluidez em termos de dissuasão de informações prejudiciais, como discur-
so de ódio ou manipulação de propaganda.
No Brasil, esse fenômeno se tornou especialmente marcante desde a se-
gunda década do século atual, com a promulgação de um Marco Civil da
Internet e uma Lei Geral de Proteção de Dados – para citar alguns.
Assim, surgem questões sobre o fenômeno da personalização e os riscos
trazidos pelas redes sociais aos postulados derivados do princípio demo-
crático, com ênfase na polarização política gerada pelos efeitos deletérios
das interações virtuais resultantes da massificação da datificação, da estig-
matização gerada pela prática de criação de perfis, além de poluição in-

47
João Victor Rozatti Longhi
formacional, notícias falsas (fake news) e pelo fenômeno que a doutrina
convencionalmente chamou de populismo digital – ou "populismo 3.0",
revisitando o conceito cunhado por Paolo Gerbaudo.
A polarização de conteúdo e a radicalização política decorrentes do
acesso em massa a dados pessoais é um risco para as liberdades democráti-
cas (incluindo a liberdade de expressão), prejudicando os direitos funda-
mentais em um período de transição que reflete a angústia resultante dos
perigos que o Estado de Direito Democrático enfrenta com a realidade em
que se sobrepôs a alguns dos princípios fundadores da Constituição da
República de 1988.
Como um problema de pesquisa, este estudo tem como objetivo discu-
tir os impactos do uso político da Internet e suas influências, não apenas
focando na formação da opinião pública durante as campanhas e eleições
eleitorais, mas em todo o processo de deliberação na esfera pública.
Daí a necessidade de se discutir certas restrições institucionais e regula-
tórias, tanto em termos de conteúdo quanto de proteção de dados, as
quais, embora insuficientes para conter todos os riscos decorrentes dessa
nova realidade, transmitem uma sintonia fina desse novo disfarce institu-
cional, que tem o poder de fornecer aos cidadãos mecanismos para prote-
ger sua dignidade informacional.

2. A democracia na sociedade da informação


A dicotomia entre as esferas pública e privada foi tratada pela doutrina
como aparentemente clara. No entanto, atualmente, existem evidências
suficientes de um certo “distúrbio de fronteira”, que se tornou móvel, em
alguns casos confuso, e em numerosos temas permeados por problemas e
princípios que estabeleceram um novo sistema de comunicação entre pú-
blico e privado.1

1 LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial: fundamentos de direito.


48
Discurso de ódio (hate speech) e a censura reversa na Internet
Essa separação tem suas raízes na superação da até então inquestionável
dicotomia do direito público e do direito privado, que emerge da releitura
pós-moderna do primeiro, impondo novas nuances ao sistema jurídico
como um todo, criando o que Paolo Gerbaudo define como 'uma nova
clivagem na sociedade'.2 Com origens atribuídas ao direito romano, os
conceitos de ius privatum e ius publicum foram tomados como dogmas, o
primeiro relacionado aos interesses da sociedade civil e o segundo mate-
rializado na figura de seu detentor e exequente: o Estado. A distinção é
revelada pela doutrina clássica como um fenômeno sistematicamente im-
portante, pois, na prática, seria bastante claro: no direito privado, a liber-
dade e a igualdade prevaleceriam; no direito público, autoridade e compe-
tência.3
As bases fundamentais do Estado Liberal têm raízes que remontam aos
papéis do "ser humano empírico" de Immanuel Kant e do "ser humano
racional".4 Além disso, note-se que foi um período marcado pela presença
do conceito de liberdade baseado na metafísica dos costumes e numa "lei
universal" que impôs à lei um "ato" vinculado a tais parâmetros.5 No en-
tanto, a subsistência do modelo liberal promoveu reflexões quanto ao pa-
pel do Estado nesse período, embora autores como John Stuart Mill, Je-
remy Bentham e outros defensores do utilitarismo que prosperaria no

Tradução de Bruno Miragem. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 39.
2 GERBAUDO, Paolo. The digital party: political organization and online democracy.
Londres: Pluto Press, 2019, p. 177. Segundo o autor: “The rise of new political parties
reflects a new cleavage in society, stemming from technological and economic fac-
tors: a fracture between political and/or economic insiders and what I call connected
outsiders.”
3 HAURIOU, Maurice. Précis de droit administratif et de droit public. 11. ed. Paris:
Sirey, 1927, p. 301.
4 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Leopol-
do Holzbach. São Paulo: Martin Claret, 2003, p. 77.
5 BONAVIDES, Paulo. Do estado liberal ao estado social. 10. ed. São Paulo: Malheiros,
2011, p. 107.
49
João Victor Rozatti Longhi
common law apontassem para os perigos de uma 'tirania da maioria’, en-
quanto outros, como Benjamin Constant, apontariam para a necessidade
de reler a antítese entre liberalismo e democracia. 6
Em meados do século XIX, intensas transformações sociais marcaram a
ascensão do Estado Social, especialmente após os resultados da Revolução
Industrial, que permitiram uma reformulação do papel do Estado.
O Poder Público tornou-se gradualmente o provedor direto de uma sé-
rie de garantias das quais se formou a proteção dos direitos sociais e a fle-
xibilidade da autonomia da vontade, permitindo uma revisão densa dos
institutos de direito privado e, consequentemente, também do direito pú-
blico. Com a reinterpretação do papel do Estado na nova dogmática jurídi-
ca, é importante observar que o amadurecimento do direito privado, em
termos de codificação, ocorre um pouco antes do direito público, vincula-
do por uma ampla gama de leis espalhadas por todo o ordenamento, mas
sem elaboração doutrinária completa e sujeita a excessos indesejados.
Segundo Karl Larenz7, o objetivo primordial desse novo modelo seria
impedir aqueles que acabam confiando no exercício do poder do Estado de
o usarem de maneira diferente do real significado da lei. E, nesse mesmo
sentido, é possível entender o quão importante o papel do Estado se tor-
nou quando trata da tomada de decisões e deliberações quanto à coorde-
nação da vida social8, cujo objetivo principal se tornou efetivamente foca-
do em alcançar o interesse público.
O século XXI surge e o que é perceptível é uma distância crescente en-
tre as complexidades externas do controle político institucionalizado e o
espaço em que as questões mais importantes para a vida humana são esta-

6 BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. Tradução de Marco Aurélio Nogueira.


São Paulo: Edipro, 2017, p. 86-87.
7 LARENZ, Karl. Derecho justo: fundamentos de etica juridica. Tradução de Luis Díez-
Picazo. Madrid: Civitas, 1985, p. 151.
8 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Novos institutos consensuais da ação admi-
nistrativa. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 231, 2003, p. 91-93.
50
Discurso de ódio (hate speech) e a censura reversa na Internet
belecidas: a modernidade líquida é vivida através e nesse contexto.9

3. Populismo 3.0 e liberdade de expressão


Em 2013, a chamada “Primavera Árabe”10 e seus resultados políticos
posteriores marcaram um fenômeno da ascensão ao poder de regimes
autoritários, após eventos decorrentes de mobilizações sociais naquele
momento histórico, marcando um período de mudanças significativas
para o estudo dos impactos dos movimentos sociais na Internet. O tom
inicial de otimismo sobre o papel das redes sociais, especialmente na ques-
tão de capacitar cidadãos comuns e participação política, mudou.11
De fato, a ascensão do chamado 'ativismo virtual', que teve suas carac-
terísticas remodeladas além das interações de outrora, transmitiu lutas por
causas ligadas à defesa dos direitos humanos, democracia e participação.
Esse movimento cresceu e continua a crescer.12

9 BAUMAN, Zygmunt. A sociedade individualizada: vidas contadas e histórias vividas.


Tradução de José Gradel. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 257.
10 “Primavera Árabe” é a nomenclatura usada para se referir à onda de protestos, mo-
tins e revoluções populares contra governos do mundo árabe, que eclodiram em
2011, com o agravamento econômico causado pela crise e pela falta de democracia
nos países do Oriente Médio.
11 LYNCH, Marc. The Arab uprising: the unfinished revolutions of the Middle East.
Nova York: Public Affairs, 2013, p. 11. Comenta: “It is commonly said that nobody
predicted the upheavals in the Arab world that began in December 2010 and defined
the following year. But that does not mean that nobody saw them coming. The crum-
bling foundations of the Arab order were visible to all who cared to look. Political sys-
tems that had opened slightly in the mid-2000s were once again closing down, victim to
regime manipulation and repression. Economies failed to produce jobs for an explod-
ing population of young people. As the gap between rich and poor grew, so did corrup-
tion and escalating resentment of an out-of-touch and arrogant ruling class. Mean-
while, Islamist movements continued to transform public culture even as Arab regimes
used the threat of al-Qaeda to justify harsh security crackdowns”.
12 GERBAUDO, Paolo. The mask and the flag: populism, citizenship and global protest.
51
João Victor Rozatti Longhi
Em essência, o fenômeno observado é que a Internet não é mais aquela
originalmente concebida. Novas aplicações surgiram, criando amplo espa-
ço para o domínio exercido por poucos atores (Facebook, Google, Amazon
etc.). Nas palavras de Siva Vaidhyanathan, o Facebook tem “uma história
de arrogância de boas intenções, um espírito missionário e uma ideologia
que vê o código do computador como o solvente universal para todos os
problemas humanos. E é uma acusação de como as mídias sociais promo-
veram a deterioração da cultura democrática e intelectual em todo o mun-
do.”13 A situação do Google não é tão diferente, pois o domínio dessa pla-
taforma leva a uma fragmentação da esfera pública na Internet.14
Essas descobertas são corroboradas pelos pensamentos de Evgeny Mo-
rozov, que indica que a política em desenvolvimento do conceito de de-
mocracia digital parece revelar-se como uma utopia cibernética15, que
molda a formação de uma nova forma de populismo – o populismo digital.
Simplificando, o que causa é uma 'afinidade eletiva' entre as mídias sociais
e o populismo ou uma convergência de participação nas plataformas digi-
tais para favorecer um novo ideal contra o establishment.16

Oxford: Oxford University Press, 2017, p. 244. Destaca: “The cult of participation
problematically conflates utopia and praxis, ends and means; the world we want to
build and the ways in which we can build it. Collective action runs the risk of becoming
merely therapeutic rather than emancipatory, and its nature more ethical and quasi-
religious instead of political. This tendency, which reflects the uncanny resonance be-
tween neoanarchism and neo liberalism in their common reflection of individualistic
narcissistic tendencies, considers all moves towards formalisation as necessarily equat-
ing to ossification and sclerotisation rather than, for example, maturation.”
13 VAIDHYANATHAN, Siva. Anti-social media: how Facebook disconnects us and
undermines democracy. Oxford: Oxford University Press, 2018, p. 3, tradução livre.
14 VAIDHYANATHAN, Siva. The googlization of everything (and why should we wor-
ry). Berkeley: University of California Press, 2011, p. 136.
15 MOROZOV, Evgeny. The net delusion: the dark side of Internet freedom. Nova
York: Public Affairs, 2011, p. 320.
16 GERBAUDO, Paolo. Social media and populism: an elective affinity? Media, Culture
& Society, Londres, v. 40, n. 5, 2018, p. 746.
52
Discurso de ódio (hate speech) e a censura reversa na Internet
O apoio popular é obtido através do uso massivo de redes sociais por
líderes, 'eleitos' ou não, nas mídias sociais. Agora, com a possibilidade de
comunicação direta com um grande número de seguidores – sejam huma-
nos ou de inteligência artificial (bots) – que, por sua vez, compartilham,
comentam, respondem a postagens opostas, rapidamente e/ou em tempo
real, em novo formato para interatividade a participação capaz de propa-
gar tópicos e visões de tendências em segundos surge e molda formas de
comunicação mais refinadas e complexas.
À luz do comportamento do presidente dos EUA, Donald Trump, nas
mídias sociais – um exemplo emblemático desse momento histórico – é
notável a mudança de atitude dos líderes globais, porque, em termos de
técnicas de comunicação, Trump depende quase exclusivamente da rede
social Twitter para expressar seus pontos de vista e geralmente se comuni-
car com o público, sendo essa a razão pela qual, ironicamente, alguns o
chamam de “Twitter in Chief”17, em referência ao papel presidencial de
“Commander in Chief”, nos termos da Constituição dos EUA (Artigo II,
Seção 2).
Nos posts de Trump, geralmente existem textos curtos e linguagem
simples, compreensíveis e facilmente assimilados por qualquer seguidor.
Quanto ao conteúdo, por sua vez, há uma mistura de opiniões pessoais
com fatos controversos, que mais tarde são desafiados pela mídia tradicio-
nal pela natureza controversa permeada por notícias falsas, teorias da
conspiração, ironias etc. É importante notar que o contexto das comunica-
ções – particularmente as redes sociais – revela que existe um ambiente
repleto de perigos para preservar os direitos fundamentais, especialmente
os da primeira dimensão (liberdades públicas).18

17 ANDERSON, Bryan. Tweeter-in-Chief: a content analysis of President Trump’s


tweeting habits. Elon Journal of Undergraduate Research in Communications, Elon, v.
8, n. 2, 2017, p. 36 et seq.
18 De acordo com Cass Sunstein, “with these ideas in view, I have stressed the serious
problems for individuals and societies alike that are likely to be created by the practice
53
João Victor Rozatti Longhi
A chamada web 3.0 cria o ecossistema perfeito para tais situações, pois
é marcada pela operacionalidade da rede em tempo real, pelo armazena-
mento ininterrupto de dados ou pela hiperconectividade que exige um
vasto aparato técnico.19 Paralelamente, a ideia do “populismo 3.0” indica a
coerência em sintonia com o momento atual do desenvolvimento tecnoló-
gico, que avança de acordo com a ressignificação do conceito de democra-
cia e com a iminência do populismo digital20, em um ambiente de desin-
formação e difusão generalizadas de ataques a instituições democráticas.
Portanto, as liberdades de expressão e comunicação são agora alvos poten-
ciais, entre outros direitos fundamentais intimamente ligados à dignidade
humana.21
De fato, a proposta de democracia digital ou e-democracia pressupõe a
apresentação de soluções para problemas relacionados à dinâmica das
interações em rede e superação de adversidades em relação à inclusão e

of self-insulation – by a situation in which many of us wall ourselves off from the con-
cerns and opinions of our fellow citizens”. (SUNSTEIN, Cass. #Republic: divided de-
mocracy in the age of social media. Princeton: Princeton University Press, 2017, p.
252.)
19 BEÇAK, Rubens; LONGHI, João Victor Rozatti. O papel das tecnologias da comuni-
cação em manifestações populares: a primavera árabe e as jornadas de junho no Bra-
sil. Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM, Santa Maria, v. 10, n. 1, 2015, p.
391.
20 KEEN, Andrew. The internet is not the answer. Londres: Atlantic, 2015, p. 140-142.
21 Para Paolo Gerbaudo: “At the heart of the culture of contemporary social movements
there lies a third fundamental tension: that between evanescence and fixity. On the one
hand, contemporary popular movements are characterised by ‘liquid’ forms of organis-
ing; in which the use of social media by social networking sites is geared towards super-
seding the authoritarian tendencies of ‘solid’ organisations like parties and trade un-
ions, in the effort of avoiding the ‘iron law of oligarchy’. On the other hand, these
movements require the invocation of a sense of locality or ‘net locality’, which involves
bestowing them with some degree of fixity, a ‘nodal point’ in their texture of participa-
tion.” (GERBAUDO, Paolo. Tweets and the streets: social media and contemporary
activism. Londres: Pluto Press, 2012, p. 166.)
54
Discurso de ódio (hate speech) e a censura reversa na Internet
exclusão digital e ao grau de envolvimento político-democrático da popu-
lação. Esse é o argumento central que diz respeito à nebulosidade que
permeia o conhecimento dos usos e controle da Internet, principalmente
diante do domínio do poder econômico dos 'impérios da comunicação'22,
empresas privadas que subiram ao platô de entidades hegemônicas no
controle das mídias sociais.
Exemplos como a proteção de dados pessoais e a segurança da infor-
mação, que são complementares entre si, embora ambos estejam vincula-
dos a postulados de confidencialidade, integridade e disponibilidade, for-
necem um ambiente fértil para a difusão de vazamentos de notícias e in-
formações provenientes de inúmeros portais projetados para servir a uma
variedade de propósitos. Por esse motivo, essa nova realidade virtual pro-
porcionou acesso aos dados do usuário (dados pessoais), com relevância
única, impondo às empresas e organizações um cuidado especial com a
segurança dos dados e a privacidade do usuário.
Na medida em que diz respeito à liberdade de expressão, o problema da
personalização de notícias passa a revelar uma política de conteúdo apre-
sentada pela maioria dos provedores – especialmente nas mídias sociais –
formando verdadeiras bolhas de conteúdo através das quais os usuários de
aplicativos recebem informações direcionadas para suas “preferências”,
resultando em um processo crescente de radicalização, onde as pessoas
estão gradualmente se movendo para os extremos e falhando em dialogar
com outras pessoas de diferentes posições.
Em essência, pode-se conceber brevemente as liberdades comunicacio-
nais como um gênero que engloba toda a gama do direito inalienável de se
comunicar livremente. Liberdade de crença, expressão, associação (ou
não) regulamentação da propriedade da mídia, e, ultimamente, da Inter-
net, são algumas das mídias desse grande gênero, cada uma digna de uma

22 WU, Tim. The master switch: the rise and fall of information empires. Nova York:
Vintage, 2012, p. 255-257.
55
João Victor Rozatti Longhi
análise detalhada dos inúmeros problemas que envolvem seus principais
aspectos.
A expressão “free speech” é sugerida por Nigel Warburton em um sen-
tido amplo que não se restringe à palavra falada – sentido estrito –, mas a
uma gama significativa de expressões como a palavra escrita, música, fil-
mes, vídeos, fotografias, desenhos, artes e etc. Afinal, o foco não deve ser o
modo como uma ideia é expressa, mas a própria ideia, seus impactos, ou-
vintes, o entendimento das expressões utilizadas, o contexto geral etc. Por
esse motivo, como regra, situações relacionadas aos aspectos legais das
liberdades comunicativas não estão vinculadas ao uso da palavra em ambi-
entes privados, mas em “lugares” que variam de um poema a perfis em
sites de redes sociais.23
Por esse motivo, via de regra, as situações relacionadas aos aspectos le-
gais das liberdades comunicativas não estão ligadas ao uso da palavra em
ambientes privados, mas em “lugares” que variam de um poema a perfis
em sites de redes sociais.
Warburton ressalta que existem duas ordens principais de fundamen-
tos relativas à liberdade de expressão: uma de ordem moral e outra de or-
dem instrumental. Este último destaca os benefícios de uma sociedade
onde a liberdade de expressão é garantida economicamente (fornecendo
informações aos cidadãos) e socialmente, promovendo a felicidade das
pessoas e o pluralismo de idéias. No entanto, destaca também a ordem
moral como fundamento que contém um valor intrínseco quase consensu-
al: a promoção da dignidade da pessoa humana e a autonomia do indiví-
duo.24
Note-se que o autor, posteriormente, faz uma distinção terminológica

23 WARBURTON, Nigel. Free Speech: a very short introduction. Oxford: Oxford Uni-
versity Press, 2009, p. 5.
24 WARBURTON, Nigel. Free Speech: a very short introduction. Oxford: Oxford Uni-
versity Press, 2009, p. 16.
56
Discurso de ódio (hate speech) e a censura reversa na Internet
entre freedom of speech e freedom of expression. A ideia de expressão, ele
argumenta, expressaria com mais precisão a subjetividade de quem comu-
nica um fato a um público específico. O exemplo de Warburton é de uma
possível comunicação de um cidadão chinês sobre o chamado massacre da
Praça da Paz Celestial (1989) nos dias atuais: o que o governo chinês proí-
be é uma narrativa negativa subjetiva e crítica sobre esse fato, pois o pró-
prio fato permanece intacto.25
Em português, no entanto, é difícil visualizar uma distinção entre essas
duas liberdades. No entanto, parte da doutrina usa certas categorizações
para justificar diversos regimes legais no exercício das liberdades comuni-
cativas, em um cenário diferente do da liberdade de expressão, que, nas
palavras de Guilherme Peña de Moraes, engloba a possibilidade de expres-
são intelectual, atividades científicas, artísticas e sociais, trazendo consigo
as obrigações de indenização ou reparação de danos morais, possibilidade
de direito de resposta, anonimato e censura proibidos.26

4. Os ataques em massa na Internet e a censura reversa


Em setembro de 2019, foi noticiado que o youtuber Felipe Neto cance-
lou participação em evento educacional por estar recebendo ameaças de-
vido à sua recente atitude de comprar e mandar distribuir mais de 14 mil
exemplares de livro com temática LGBT, que foi alvo de ação de retirada
de circulação na Bienal do Livro por parte do prefeito do Rio de Janeiro,
Marcelo Crivella.27-28

25 WARBURTON, Nigel. Free Speech: a very short introduction. Oxford: Oxford Uni-
versity Press, 2009, p. 6.
26 MORAES, Guilherme Peña. Curso de direito constitucional. 7. ed. São Paulo: Atlas,
2015, p. 573-574.
27 ROUVENAT, Fernanda. Livros com temática LGBT comprados por Felipe Neto são
distribuídos na Bienal. G1 Rio de Janeiro, 7 set. 2019. Disponível em:
https://glo.bo/2Yf5mgP. Acesso em: 14 mar. 2020.
57
João Victor Rozatti Longhi
O ambiente de hostilidade é mais um capítulo da crescente atmosfera
de ódio que recentemente assola o mundo. O contexto em que se insere o
problema da ameaça a figuras públicas no Brasil, contudo, carece de análi-
se especialmente pelo fato de que a violência é sobretudo perpetrada pela
Internet.
Para a compreensão do fenômeno, preliminarmente, levam-se em con-
ta as ideias de Tim Wu: “(...) se um dia era difícil de falar, hoje é difícil ser
escutado.”29 Trata-se de síntese apropriada do ambiente informacional
que se tem na atualidade. Afinal, hoje, a informação é abundante e falar em
tese é fácil, ao mesmo passo que o tempo e a atenção do ouvinte têm se
tornado, a cada dia, valiosas commodities, já que sujeitas à escassez, o que
Wu descreve como economia da atenção: “(...) atenção tem sido ampla-
mente reconhecida como uma mercadoria, como trigo, gordura animal ou
petróleo bruto.”30
Em razão do volume informacional, que é impossível de ser consumido
por um ser um humano, passa a fazer sentido aquilo que o autor chama de
“homo distractus”, ilustrado por aquele que senta para ler um simples e-
mail e passa horas sentado ao computador vendo redes sociais, vídeos,
notícias e publicidade e perdendo a noção do tempo. Tal ambiente fez
surgirem os “mercadores da atenção”, intermediários que lucram por ofe-
recer o conteúdo mais propício a prender a atenção do consumidor, le-
vando à disputa pela melhor personalização de acordo com seu perfil.31

28 FRANK, Gustavo. Felipe Neto cancela participação em evento após ameaças: "Já tirei
minha mãe do Brasil". UOL, 16 set. 2019. Disponível em: https://bit.ly/2x5Wu1E.
Acesso em: 14 mar. 2020.
29 WU, Tim. Is the first amendment obsolete? In: BOOLINGER, Lee C.; STONE, Geof-
frey R. (Eds.). The Free Speech Century. Oxford: Oxford University Press, 2019, p.
276, tradução livre.
30 WU, Tim. The attention merchants: the epic scramble to get inside our heads. Nova
York: Vintage, 2016, p. 6, tradução livre.
31 WU, Tim. The attention merchants: the epic scramble to get inside our heads. Nova
58
Discurso de ódio (hate speech) e a censura reversa na Internet
Como dimensão política do fenômeno, surgem as “bolhas de informa-
ção”32, em que o cidadão se atenta cada vez mais para conteúdos que cor-
roborem sua atual opinião e reiterem suas convicções ideológicas naquele
momento, levando a um ambiente de contínua radicalização e polarização.
Em última análise, tal situação enfraquece a base da democracia deliberati-
va: a esfera pública.33
Percebendo tal fraqueza, regimes e líderes de tendências autocráticas –
em regra levados ao poder como produto de radicalização e não do debate
– adaptam-se a este ambiente, promovendo desinformação e extremismo
como políticas de comunicação. Afinal, parte-se da constatação de que
uma das maneiras mais eficientes de se controlar o exercício das liberdades
comunicacionais – de expressão, opinião e comunicação – é atingir a aten-
ção do espectador e, assim, não mais são empreendidos esforços que visam
impedir diretamente alguém de se manifestar, mas que buscam sobrepor a
visão do poder constituído sobre a da oposição.
Trata-se de um paradoxo relatado pelo autor, uma vez que, no passado,
muitos apostaram na Internet como um veículo que promoveria a liberda-
de de se comunicar, e não o contrário. Entretanto, cada dia mais, a Rede
mostra a dimensão gigantesca dos desafios que hoje se enfrenta, uma vez
que se tem notado uma redução dos espaços para o exercício do free spe-
ech. Como alerta Wu, poucos anteviram que este ambiente de suposta
facilidade para o exercício das liberdades comunicacionais seria o próprio
meio de se limitar a liberdade de expressão.34-35

York: Vintage, 2016, p. 6-7.


32 Cf. PARISER, Eli. The filter bubble: what the Internet is hiding from you. Nova York:
Penguin, 2011.
33 SUNSTEIN, Cass. #Republic: divided democracy in the age of social media. Prince-
ton: Princeton University Press, 2017, p. 34 et seq.
34 WU, Tim. Is the first amendment obsolete? In: BOOLINGER, Lee C.; STONE, Geof-
frey R. (Eds.). The Free Speech Century. Oxford: Oxford University Press, 2019, p.
278-279.
59
João Victor Rozatti Longhi
Tim Wu elenca três formas contemporâneas do que considera métodos
de intervenção na liberdade de expressão, que não são censura direta: (i)
assédios (harassment) e ataques online; (ii) distorções de informação e
“inundação” (flooding), prática também chamada de censura reversa; e
(iii) controle das principais plataformas de manifestação de opinião.36
Quanto à primeira forma, buscando um conceito de censura reversa, o
autor assevera que sua origem se deu na Rússia do início dos anos 2000,
com o que se denominava de “web brigades”. Tratavam-se de grupos de
pessoas que atacavam em massa quaisquer personagens públicos com al-
guma proeminência que fossem críticos ao governo. Entretanto, todos
negam qualquer ligação direta, política ou financeira com o Kremlin, ma-
terializando-se, em tese, em organizações não governamentais ou meros
“movimentos populares” supostamente espontâneos.
Posteriormente, o método teria se alastrado pela Ucrânia ou mesmo pe-
la Finlândia, onde tais grupos realizavam grandes quantidades de posts
críticos à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Anos de-
pois, os virtual mobs chegaram nos Estados Unidos, tendo sido decisivos
como meio de influência sobre a opinião pública, durante as eleições de
2016, que culminaram na ascenção de Donald Trump.37
Quanto à segunda, destaca-se que autor conceitua censura reversa, flo-
oding ou astroturfing38 como nomenclaturas para uma técnica de contra-

35 A autora lembrada como exceção é Danielle Keats Citron, que, no passado, alertou
para tais riscos. Para maiores informações, consulte-se: CITRON, Danielle Keats.
Cyber civil rights. Boston University Law Review, Boston, v. 89, p. 61-125, 2009.
36 WU, Tim. Is the first amendment obsolete? In: BOOLINGER, Lee C.; STONE, Geof-
frey R. (Eds.). The Free Speech Century. Oxford: Oxford University Press, 2019, p.
280.
37 WU, Tim. Is the first amendment obsolete? In: BOOLINGER, Lee C.; STONE, Geof-
frey R. (Eds.). The Free Speech Century. Oxford: Oxford University Press, 2019, p.
281.
38 Astroturf é um termo usado pela imprensa norte-americana para designar a simula-
ção de um movimento popular espontâneo. Sua origem remonta à década de 1980
60
Discurso de ódio (hate speech) e a censura reversa na Internet
programação com quantidade suficiente de informação para sufocar dis-
cursos desfavoráveis, ou ao menos para distorcer o ambiente informacio-
nal. Geralmente envolve a divulgação maciça de fake news (ou propaganda
radical) para distrair e desacreditar as críticas, qualificada como forma de
controle de opinião que tem por alvo o ouvinte, espectador ou leitor e não
quem produz o conteúdo.39 Como exemplos, além da Rússia cita a China,
onde se pagaria mais de 2 milhões de pessoas para postarem online em
nome do partido comunista.
Finalmente, deve-se acrescer que os ataques à mídia tradicional e, espe-
cialmente, o uso crescente de robôs, perfis falsos movidos por inteligência
artificial em sites de redes sociais, também conhecidos como “bots” expo-
nenciam os efeitos deste método comunicacional e, quando usados de
forma sistemática pelos detentores de um poder hegemônico, levam ao

quando um senador americano do Texas, Lloyd Bentsen, durante os debates legislati-


vos que determinariam o aumento das indenizações a serem pagas em seguros de vi-
da passou a receber cartas supostamente escritas por populares com críticas à pro-
posta. Como o posicionamento beneficiaria as seguradoras, em matéria publicada
pelo jornal Washington Post, afirmou o político que uma pessoa do Texas saberia di-
zer a diferença entre grassroots – raízes de grama natural – e ‘Astro Turf’ – marca de
grama artificial criada pela Monsanto”. (SILVA, Daniel Reis. O astroturfing como
um processo comunicativo: a manifestação de um público simulado, a mobilização
de públicos e as lógicas de influência na opinião pública. Dissertação de Mestrado
apresentada ao Programa de Pós Graduação em Comunicação da Universidade Fe-
deral de Minas Gerais, Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2013,
p. 14.)
39 “Reverse censorship, which is also called flooding, is another contemporary technique
of speech control. With robots in so-called as astroturfing, it relies on counterpro-
gramming with a sufficient volume of information to drown out motivated reverse cen-
sorship often involves the dissemination of fake news (or atrocity propaganda) to dis-
tract and discredit. Whatever form it takes, this technique clearly qualifies as listener-
targeted speech control.” (WU, Tim. Is the first amendment obsolete? In: BOOLING-
ER, Lee C.; STONE, Geoffrey R. (Eds.). The Free Speech Century. Oxford: Oxford
University Press, 2019, p. 282.)
61
João Victor Rozatti Longhi
controle das plataformas de comunicação, sufocando os críticos.
Como enfrentamento do problema, Wu propõe, em linhas gerais, dois
possíveis caminhos. Por serem pouco claros os limites entre público e pri-
vado na promoção da censura reversa, o primeiro seria o abandono da
doutrina da state action, havendo a necessidade de aplicação dos direitos
fundamentais nas relações privadas. A segunda seria uma reinterpretação
da primeira emenda americana, atualizando-se os limites já consagrados
em alguns precedentes para adapta-los à realidade da Internet.40
Como consequência do primeiro, seria possível a responsabilização ci-
vil ou até criminal de agentes públicos e/ou políticos quando tais ataques
sistemáticos são oriundos de “disparos” efetuados por eles. O autor cita
como possível modelo de responsabilidade civil as regras de direitos auto-
rais, que são rígidas com terceiros de modo a coibir ilegalidades praticadas
por usuários. Não fica claro, contudo, se as regras diversas no tocante à
responsabilidade civil por conteúdo inserido por terceiros alterariam o
consagrado princípio do notice and takedown da Seção 230 do U.S. Code,
inspiração para o sistema adotado pelo Marco Civil da Internet brasileiro,
com a peculiaridade de exigir-se, aqui, que a notificação seja judicial como
regra.
Por último, sugere uma série de alterações legislativas para o aggiorna-
mento da primeira emenda, destacando-se a necessidade de leis federais
“anti-cyberstalking” e “antitrolling” como forma de coibir o uso dos
“bots” para a promoção de ataques sistemáticos de “trolling” contra jorna-
listas.41
No Brasil, embora um sistema jurídico especificamente voltado para a

40 WU, Tim. Is the first amendment obsolete? In: BOOLINGER, Lee C.; STONE, Geof-
frey R. (Eds.). The Free Speech Century. Oxford: Oxford University Press, 2019, p.
286.
41 WU, Tim. Is the first amendment obsolete? In: BOOLINGER, Lee C.; STONE, Geof-
frey R. (Eds.). The Free Speech Century. Oxford: Oxford University Press, 2019, p.
287.
62
Discurso de ódio (hate speech) e a censura reversa na Internet
regulamentação da Internet ainda esteja em construção com a aprovação
do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014, MCI) e da Lei Geral de
Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018, LGPD), a ausência de um direito
fundamental à proteção de dados torna sua proteção ainda incompleta.
Combatendo isso, uma Proposta de Emenda à Constituição Federal (PEC
17/2019) inclui o referido direito fundamental no texto constitucional
(com o acréscimo do inciso XII-A ao rol do art. 5º da CF).42 Apesar disso, a
proteção implícita já existe e é decorrente dos direitos fundamentais à pri-
vacidade, à intimidade e à liberdade.
Mesmo assim, a LGPD trouxe avanços inegáveis, embora seus concei-
tos não contenham os ricos detalhes da regulamentação europeia. Para
esclarecer, os dados pessoais, de acordo com a lei brasileira, são as infor-
mações relacionadas a uma pessoa física identificada ou identificável (art.
5º, I). Além disso, como subespécie, dada a necessidade de tratamento
legal específico, também são regulados os dados sensíveis (art. 5º, II) e os
dados anonimizados (art. 5º, III).
A regra geral relativa à disposição dos dados pessoais pelo usuário deve
cumprir o chamado princípio de consentimento (art. 7º, I), que deve ser
obtido por escrito ou por outros meios inequívocos e pode ser revogado a
qualquer momento, sendo o responsável pelo ônus da prova o cumpri-
mento de tais requisitos (art. 8º, caput e §§ 1º, 2º e 3º). Sobre a responsabi-
lidade dos agentes de dados pessoais, que são os operadores e controlado-
res dos dados (art. 5º, VII, VIII e IX, LGPD), os artigos 42 e seguintes defi-
nem a responsabilidade objetiva, seja por ação (art. 42, caput) ou por
omissão (art. 44), causada pela violação de seus deveres como prestadores
de serviços.
A referida conclusão é tirada a priori e se baseia amplamente na ausên-
cia de qualquer menção à culpa subjetiva do agente, e há também uma lista

42 BIONI, Bruno. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento.


Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 92-93.
63
João Victor Rozatti Longhi
exaustiva no artigo 43 sobre causas excludentes de nexo de causalidade,
referindo-se essencialmente à falta de serviço, a observação dos deveres de
conduta legitimamente esperados pelo titular dos dados e do fato exclusivo
da vítima, lógica semelhante à responsabilidade civil por acidente do con-
sumidor no Código de Defesa do Consumidor (art. 14 e segs.). Essas dire-
trizes principais são claramente inspiradas no Regulamento Geral Europeu
para a Proteção de Dados (RGPD).
Quanto ao tratamento jurídico das fake news, ponto sensível nas recen-
tes tensões entre liberdades comunicacionais e proteção dos direitos fun-
damentais e meio recorrente de proliferação do discurso de ódio, é recente
a criminalização da denunciação caluniosa com finalidade eleitoral, apeli-
dada publicamente de “Lei das Fake News” (Lei nº 13.834, de 4 de junho
de 2019). O parágrafo terceiro, que equipara à conduta criminosa a ação
do agente que divulga ou propala a informação falsa, foi originalmente
objeto de veto do presidente Jair Bolsonaro, mas houve posterior derruba-
da pelo Parlamento.
Porém, a coibição da desinformação não deve se restringir ao pleito
eleitoral. Afinal, casos como o de Felipe Neto demonstram que os danos
causados pelo discurso de ódio não se restringem à pessoa da vítima ou
sua família.

5. Considerações finais
O ponto fundamental do estudo dos impactos das Tecnologias de In-
formação e Comunicação (TICs), especialmente da Internet, sobre o re-
cente delineamento do princípio democrático, reside no problema de en-
curtar a distância entre o Estado e a sociedade civil, como é observou uma
distorção sensível do uso da web para finalidades diferentes daquelas con-
cebidas em sua origem.
Quanto às redes sociais, existem vários efeitos nocivos das chamadas
“bolhas de informação”, nas quais os cidadãos consomem conteúdo su-
64
Discurso de ódio (hate speech) e a censura reversa na Internet
postamente direcionado às suas preferências, favorecendo o surgimento de
tendências que fraturam a noção de esfera pública. Assim, existe o risco de
que o fornecimento de conteúdo com caráter propagandístico resulte em
um ambiente de extrema polarização política, altamente prejudicial ao
debate e, consequentemente, com grande potencial prejudicial ao princí-
pio democrático.
O conceito contemporâneo de populismo digital ou ‘populismo 3.0’,
extraído especialmente das preocupações de Paolo Gerbaudo, tem relevân-
cia especial para a compreensão desse fenômeno, à medida que as técnicas
comunicacionais são expandidas em um universo marcado pela massifica-
ção de dados, não apenas para influenciar campanhas e eleições, mas inter-
ferir com todo âmbito relacionado à liberdade de expressão, o que abre
margem a ataques em massa e à propagação do discurso de ódio.
Em conclusão, pode-se afirmar que as leis de proteção de dados pesso-
ais não necessariamente impediriam casos como esse, mas proteger esse
direito fundamental do cidadão dificultaria a influência de tais processos
deliberativos para conteúdo tóxico, como notícias falsas e discurso de
ódio. Certas restrições institucionais e regulatórias, especialmente no cam-
po da proteção de dados, podem ajudar, mas não serão suficientes. Mesmo
assim, uma Agência de Proteção de Dados independente é imprescrindível
como meio de fornecer aos cidadãos mecanismos institucionais para pro-
teger sua dignidade informacional, sob pena de se tornar mais uma enun-
ciação de direitos com “limites de papel”.
Os ataques constituem, por fim, uma afronta ao próprio direito inalie-
nável de manifestar sua opinião a favor ou contra qualquer dos lados do
espectro político. Atacar alguém cuja opinião influencia milhões de pesso-
as tem por consequência o espraiar de um ambiente de medo que leva ao
chamado efeito amedrontador (chilling effect) da liberdade de expressão.
Quantos “Felipes Neto” não se sentem acuados de manifestar suas opini-
ões quando ameaças desta natureza não são sequer investigadas e os ver-
dadeiros interessados na proliferação do discurso de ódio responsabiliza-
65
João Victor Rozatti Longhi
dos?

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68
FAKE NEWS E DESINFORMAÇÃO: UM
ENSAIO PELA ÉTICA NA SOCIEDADE DA
INFORMAÇÃO

2
José Luiz de Moura Faleiros Júnior
Letícia Preti Faccio

1. Introdução
O perigoso cenário das fake news carrega tamanha complexidade que
atinge diversas ciências, como direito, filosofia, psicologia, medicina, se-
miótica, entre outras. Nesse estudo, trataremos dos reflexos desse fenôme-
no, nos campos do direito e da ética, trazendo à discussão as aporias quan-
to às responsabilidades decorrentes do ‘poder’ que a tecnologia confere.
Essa noção é colhida dos escritos de Hans Jonas, que sugere ser possível
a existência de uma nova ética para a atual civilização tecnológica, se re-
portando ao conto mitológico de Hefesto acorrentando o titã Prometeu,
conforme ilustrado em tela de Dirck van Baburen (1623).1 Em síntese, a
Prometeu teria sido dada a incumbência de supervisionar a criação dos

1 JONAS, Hans. Le principe responsabilité: une éthique pour la civilisation technolo-


gique. Tradução do alemão para o francês de Jean Greisch. 2. ed. Paris: Cerf, 1992, p.
7-16.
69
José Faleiros Júnior · Letícia Preti Faccio
homens e de todos os animais. A cada animal foram atribuídos dons vari-
ados de coragem, força, rapidez, sagacidade; asas a um, garras outro, uma
carapaça protegendo um terceiro etc. Porém, quando chegou a vez do ho-
mem, utilizou-se o barro.
Mas, como todos os recursos haviam sido gastos nos outros animais e
não restavam mais dons, Prometeu roubou o fogo dos deuses e deu-o aos
homens. Isto assegurou a superioridade humana sobre os outros animais.
Todavia, o fogo era exclusivo dos deuses e, como castigo a Prometeu, Zeus
ordenou a Hefesto que o acorrentasse no cume do monte Cáucaso, onde
todos os dias uma águia (ou abutre) dilaceraria seu fígado que, também
todos os dias, se regeneraria. Esse castigo deveria durar 30 mil anos.
A alegoria é usada, objetivamente, em sentido antagônico à teoria de
Hans Jonas, que nos traz, no prefácio do livro, a ideia de “Prométhée défi-
nitivement déchaîné” ou seja, Prometeu “definitivamente desacorrentado”
quando faz referência ao poder da tecnologia – descontrolada, desregula-
da, sem limites – frente à ciência.
Em pleno século XXI, não é novidade o fato de a Rede Mundial de
Computadores estar sendo constantemente afrontada pela prática da dis-
seminação das fake news, o que desencadeia um paradoxo: tanta informa-
ção fluindo e sendo ‘despejada’ na população desinforma (ao invés de
informar), causando efeitos em massa e ampla descrença populacional. A
mescla de notícias verdadeiras, falsas e alarmantes em imensa quantidade
desencadeia o desrespeito a direitos individuais e coletivos, o esvaecimento
da ética e o sentimento de desconfiança, que se prolifera esporadicamente.
“Prometeu desacorrentado” como alegoria para o clamor por uma éti-
ca da informação é o telos de um panorama no qual se insere o contexto
informacional contemporâneo, e as fake news seriam o aspecto mais pun-
gente a se enfrentar nesse malfadado contexto.
Com isso, o objetivo do texto é fomentar a discussão de importantes
pensamentos extraídos da Filosofia e que permitem refletir sobre o dese-

70
Fake news e desinformação
nho do status quo atual: uma disseminação de informações, um jogo às
cegas entre “verdadeiro ou falso” e uma óbvia consequência à humanida-
de, que se vê descrente, polarizada, com uma ética esvaecida.

2. Fake news e desinformação no século XXI


Considere-se o século XXI e o amplo poder comunicacional propiciado
pela Internet. Embora não se tenha um conceito único2, as chamadas fake
news são comumente entendidas pela tradução legítima da expressão in-
glesa para as “notícias falsas”, que são distribuídas deliberadamente, cau-
sando desinformação ou espalhando boatos através dos canais de comuni-
cação. Esse tipo de prática tem o objetivo de enganar a população e pode
ter motivações políticas, religiosas, econômicas, e até mesmo emocionais.
Tendo em mente a mensagem que a alegoria descrita por Hans Jonas pre-
tende transmitir, reflitamos sobre este tema específico...
Rafael Zanatta propõe uma visão mais ampla sobre a conceituação das
fake news. Para o autor, a desinformação pode acontecer não somente com
a produção de conteúdo falso, mas também com a publicação de notícias
antigas completamente fora de contexto, ou até mesmo com a manipula-
ção robótica que reforça algum discurso opinativo. Para o autor, o caso
Cambridge Analytica mostra a existência de um novo mercado de mani-
pulação eleitoral, que combina a interconexão entre processos de coleta de

2 RAIS, Diogo. Fake news e eleições. In: RAIS, Diogo (Coord.). Fake news: a conexão
entre a desinformação e o direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, p. 107. Ex-
plica: “A polissemia aplicada à expressão fake news confunde ainda mais o seu senti-
do e alcance, ora indica como se fosse uma notícia falsa, ora como se fosse uma notí-
cia fraudulenta, ora como se fosse uma reportagem deficiente ou parcial, ou, ainda,
uma agressão a alguém ou a alguma ideologia. Daí uma das críticas ao uso da expres-
são fake news: a impossibilidade de sua precisão. Fake news tem assumido um signifi-
cado cada vez mais diverso, e essa amplitude tende a inviabilizar seu diagnóstico, afi-
nal, se uma expressão significa tudo, como identificar seu adequado tratamento? Não
é possível encontrar uma solução para um desafio com múltiplos sentidos.”
71
José Faleiros Júnior · Letícia Preti Faccio
dados obscuros e estruturado através de técnicas de psicometria, demons-
trando um sério problema que vai além das fake news e abrange a manipu-
lação da população.3
Fala-se em ‘pós-verdade’4 e ‘desinformação’, fenômenos aparentemen-
te recentíssimos, mas que estão ligados à própria natureza humana e à
“atmosfera de incertezas e desconfianças” que paira em relação ao tema.
O caso retratado por Zanatta envolveu as empresas Facebook e Cam-
bridge Analytica. Esta última é empresa de consultoria e análise de dados e
foi acusada de obter ilegalmente informações pessoais de milhões de perfis
do Facebook e as ter utilizado na campanha eleitoral de Donald Trump,
atual presidente dos EUA.5 A manipulação de dados alcançou mais de 50
milhões de usuários e a repercussão do caso foi tamanha que é considerada
a maior crise de imagem do Facebook. Foi estabelecida uma multa de US$
5 bilhões (cerca de R$ 19 bilhões) por violar as informações de privacidade
dos usuários da rede, batendo recorde mundial de maior multa da FTC
(Federal Trade Commission) a uma empresa de tecnologia.6
Vale ressaltar que essa manipulação eleitoral, vista evidentemente no
contexto americano, também ocorre em diversos países, entre eles o Brasil.
O autor Bernardo Brasil Campinho estuda a questão eleitoral e apresenta

3 ZANATTA, Rafael. Fake news e o triunfo do reducionismo. Entrevista especial com


Rafael Zanatta. [Entrevista cedida a] Ricardo Machado. Instituto Humanitas UNISI-
NOS, São Leopoldo, 21 abr. 2018. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/159-
noticias/entrevistas/578173-fake-news-e-o-triunfo-do-reducionismo-entrevista-
especial-com-rafael-zanatta. Acesso em: 10 abr. 2020.
4 D'ANCONA, Matthew. Pós-verdade: a nova guerra contra os fatos em tempos de fake
news. Tradução de Carlos Szlak. Barueri: Faro Editorial, 2019, p. 54.
5 GRANVILLE, Kevin. Facebook and Cambridge Analytica: what you need to know as
fallout widens. New York Times, 19 mar. 2018. Disponível em:
https://nyti.ms/2Rv2YOM. Acesso em: 10 abr. 2020.
6 Para maiores detalhes sobre o episódio envolvendo Facebook e Cambridge Analytica,
consulte-se: WYLIE, Christopher. Mindf*ck: Cambridge Analytica and the Plot to
Break America. Nova Iorque: Penguin Random House, 2019.
72
Fake news e desinformação
um cenário jurídico e social de incerteza na democracia brasileira. O advo-
gado analisa o uso massivo de fake news por meio de redes sociais e aplica-
tivos (principalmente o WhatsApp) nas últimas eleições gerais no Brasil
como um fenômeno “sem precedentes”.7
O autor ainda aponta a forte influência do “hate speech” (discurso de
ódio)8 nas eleições gerais brasileiras e expõe outra dificuldade: a do con-
fronto institucional e judicial de notícias eleitorais falsas.9 Essas notícias
têm natureza difusa de propagação na Internet pelas diversas plataformas
digitais, e é agravada pelo caráter desconectado entre as empresas da In-
ternet e suas hierarquias.10

7 CAMPINHO, Bernardo Brasil. Constitution, democracy, regulation of the Internet


and electoral fake news in the Brazilian elections. Publicum, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2,
p. 232-256, jul./dez. 2019, p. 234. Registra o autor: “In a context of political polariza-
tion radicalized by the practice known as of fake news, Laura Chinchilla, a representa-
tive of the Organization of American States (OAS) observer mission to the 2018 Brazil-
ian general elections, considered the massive use of information manipulation through
social networks, notably WhatsApp, an ‘unprecedented’ phenomenon. In the time gap
that separate the two events, Brazil enacted the Brazilian Civil Rights Framework for
the Internet (2014), a law that establishes principles, guarantees, rights and duties for
the use of the Internet in Brazil. At the same time, the electoral legislation itself was
updated to regulate political propaganda on the Internet during the elections.”
8 Sobre o tema, confira-se: “O discurso do ódio abrange, entre outros, referências
difamatórias e degradantes à raça, à etnia, à religião, à origem, ao gênero, à condição
social ou aparência física de um grupo de pessoas ou de uma pessoa individualmente,
ou, ainda, incitações ao ódio ou ao uso do próprio discurso fundado no ódio como
instrumento ou recurso para provocar discórdia e produzir ataques violentos entre
grupos sociais ou a símbolos nacionais.” (BARBOSA-FOHRMANN, Ana Paula;
SILVA JÚNIOR, Antonio dos Reis. O discurso de ódio na Internet. In: MARTINS,
Guilherme Magalhães; LONGHI, João Victor Rozatti (Coords.). Direito digital: direi-
to privado e internet. 3. ed. Indaiatuba: Foco, 2020, p. 29.)
9 CAMPINHO, Bernardo Brasil. Constitution, democracy, regulation of the Internet
and electoral fake news in the Brazilian elections. Publicum, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2,
p. 232-256, jul./dez. 2019, p. 246.
10 PARISER, Eli. O filtro invisível. O que a Internet está escondendo de você. Tradução
73
José Faleiros Júnior · Letícia Preti Faccio
Noutro norte, o Digital News Report do Reuters Institute for the Study
of Journalism, projeto que elabora relatórios por meio de pesquisas reali-
zadas pela YouGov, da Universidade de Oxford, e que objetiva trazer in-
formações baseadas no consumo de notícias digitais, considerou mais de
75.000 consumidores de notícias online em 38 países, e seu último relató-
rio traz o progresso de negócios virtuais pagos, confiança e desinformação,
o impacto do populismo11, a mudança para aplicativos de mensagens pri-
vadas e a ascensão de podcasts.
Uma das conclusões do relatório é que os aplicativos de mensagens pri-
vadas, e grupos de Facebook, estão se tornando a principal fonte de com-
partilhamento de notícias de relevante discussão. Além disso, o WhatsApp
está sendo usado para disseminação de noticiais em países como o Brasil
(53%), África do Sul (49%) e Hong Kong (41%) tornando esses países po-
tencialmente mais vulneráveis às fake news.12
Pertinente, nesse contexto, a visão de Paolo Gerbaudo:
O partido digital, ou alternativamente o ‘partido da plataforma’, para indi-
car a adoção da lógica das plataformas das mídias sociais, está para a atual
era informacional, das redes onipresentes, mídias sociais e aplicativos para
smartphones, assim como o ‘partido de massa’ para a era industrial ou a

de Diego Alfaro. Rio de Janeiro: Zahar, 2012, p. 156. Diz o autor: “Com muita fre-
quência, os executivos do Facebook, Google e outras empresas socialmente impor-
tantes se fazem de bobos: são os revolucionários sociais quando lhes convêm e em-
presários amorais quando não. E as duas posturas deixam muito a desejar.”
11 Os impactos do populismo podem ser complementados, ademais, pela leitura de:
LONGHI, João Victor Rozatti. Dignidade.com: direitos fundamentais na era do po-
pulismo 3.0. In: LONGHI, João Victor Rozatti; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de
Moura (Coords.). Estudos essenciais de direito digital. Uberlândia: LAECC, 2019, p.
189 et seq.
12 KALOGEROPOULOS, Antonis. Groups and Private Networks – Time Well Spent?
Reuters Institute for the Study of Journalism. University of Oxford, Digital News Re-
port. Disponível em: http://www.digitalnewsreport.org/survey/2019/groups-and-
private-networks-time-well-spent/. Acesso em: 10 abr. 2020.
74
Fake news e desinformação
‘festa da televisão’ cinicamente profissionalizada para a era pós-Guerra
Fria de alto neoliberalismo. Esse tipo de partido emergente integra as no-
vas formas de comunicação e organização introduzidas pelos oligopólios
de Big Data, explorando os dispositivos, serviços, aplicativos que se torna-
ram a marca mais reconhecível da era atual, das mídias sociais como Face-
book e Twitter, até aplicativos de mensagens como WhatsApp e Telegram,
canais nos quais as pessoas podem acompanhar qualquer tipo de evento
político, (...). A ascensão do partido digital reflete, assim, como a inovação
tecnológica também moldou os partidos políticos, alterando uma forma de
organização que durante muito tempo parecia impermeável a mudanças,
em meio a um sistema político congelado.13
Vale ressaltar que a última pesquisa divulgada pelo Digital News Report
ainda revela que a preocupação com a desinformação, que permanece alta,
apesar dos esforços das plataformas e de editores de tentar criar confiança
no público. No Brasil, por exemplo, 85% concordam com a afirmação de
que estão preocupados com o que é real e falso na Internet. Outros dados
de preocupação alta se encontram no Reino Unido (70%) e nos EUA
(67%).14

13 GERBAUDO, Paolo. The digital party: political organisation and online democracy.
Londres: Pluto Press, 2019, p. 4-5, tradução livre. No original: “The digital party, or
alternatively the ‘platform party’, to indicate its adoption of the platform logic of social
media, is to the current informational era of ubiquitous networks, social media and
smartphone apps – what the mass party was to the industrial era or the cynically pro-
fessionalised ‘television party’ was during the post–Cold War era of high neoliberal-
ism. This emerging party-type integrates within itself the new forms of communication
and organisation introduced by Big Data oligopolies, by exploiting the devices, services,
applications that have become the most recognisable mark of the present age, from so-
cial media like Facebook and Twitter, to messaging apps like WhatsApp and Telegram,
channels on which people can follow any sort of political event such as a Five Star
Movement convention. The rise of the digital party thus reflects how technological in-
novation has also shaped the political party, a form of organisation that for a long time
had seemed impervious to change amidst a frozen political system.”
14 KALOGEROPOULOS, Antonis. Groups and Private Networks – Time Well Spent?
75
José Faleiros Júnior · Letícia Preti Faccio
Destarte, em todos os países analisados, o nível médio de confiança nas
notícias em geral caiu 2 (dois) pontos percentuais, demonstrando que o
reflexo da disseminação de um mix de informações a cada milésimo de
segundo, e a constante dúvida entre o real e o falso causam descrença po-
pulacional.

3. A origem do problema ético


Jean-Pierre Dupuy é um engenheiro e filósofo francês que tem se dedi-
cado ao estudo de ciências cognitivas, epistemologia, cibernética, ética,
filosofia social, filosofia política e religião e é professor na Universidade de
Stanford. O autor estuda as ideias de natureza humana e condição huma-
na, e defende que a condição humana é a esfera passível de ser alterada
pela tecnologia.15
Essa tecnociência explicada por Dupuy transmuta e altera constante-
mente a estrutura humana, criando uma interseção entre natureza artifici-
al, e desencadeando a indistinção entre o real e o virtual, que se associa ao
próprio papel da ciência e dos cientistas, tangenciando, nesse aspecto, a
visão de Don Ihde.16 Desse modo, o problema ético surge exatamente nes-

Reuters Institute for the Study of Journalism. University of Oxford, Digital News Re-
port. Disponível em: http://www.digitalnewsreport.org/survey/2019/groups-and-
private-networks-time-well-spent/. Acesso em: 10 abr. 2020.
15 DUPUY, Jean-Pierre. Some pitfalls in the philosophical foundations of nanoethics.
The Journal of Medicine and Philosophy: a Forum for Bioethics and Philosophy of
Medicine, Oxford, v. 32, n. 3, p. 237-261, 2007, passim.
16 IHDE, Don. Bodies in technology. Electronic mediations. Minneapolis: University of
Minnesota Press, 2002, v. 5, p. 104. Explica: “The antinomy can be stated simply: if
philosophers are to take any normative role concerning new technologies, they will
find, from within the structure of technologies as such and compound historically by
unexpected uses and unintended consequences, that technologies virtually always ex-
ceed or veer away from intended design. How, then, can any normative or prognostic
role be possible? (...) Of course, the objections in turn imply the continuance of a status
76
Fake news e desinformação
sa mistura, dificultando o julgamento, a valoração moral dos fatos e cau-
sando uma flexibilização da própria ética no seu contraste com a ciência.
A existência de uma realidade abrangida por infinitas informações –
verdadeiras e falsas – criadas e espalhadas em milésimos de segundos refle-
te exatamente a ideia supra, trazida por Dupuy. Essa mistura entre a natu-
reza e a artificialidade nos remete a uma dificuldade de valoração moral
dos fatos, de julgamento, e flexibiliza a aplicação da ética social. Pode-se
concluir, portanto, que as fake news são resultado dessa mistura e a falta de
ética é o preço a ser pago pela humanidade.
Leonardo Kussler, ao tratar da ética como um possível “tributo” pago
pelo progresso tecnológico, explica as inúmeras vantagens do desenvolvi-
mento científico à vida humana, que desencadeiam, diariamente, o au-
mento da qualidade de vida, das condições de trabalho e os avanços cientí-
ficos. Entretanto, nos indica que há um preço por esses avanços, tratando a
ética como um dos tributos.17 A Internet aparece nesse contexto como
agente propagador do progresso. Tem-se, ao alcance das mãos, acesso
(aparentemente) quase universal à informação, que gera a percepção de
que ‘memorizar’, ‘assimilar’ e até mesmo ‘compreender’ não são mais
atividades necessárias ao desenvolvimento do intelecto humano.
A isso se dá o nome de cognitive offloading, fenômeno que se refere à

quo among the technocrats, who remain free to develop anything whatsoever and free
from reflective considerations.”
17 KUSSLER, Leonardo Marques. Técnica, tecnologia e tecnociência: da filosofia antiga
à filosofia contemporânea. Kínesis, Santa Maria, v. VII, n. 15, p. 187-202, dez. 2015,
p. 195. Explica: “Certamente, é inegável que o processo de desenvolvimento científi-
co trouxe inúmeras vantagens à vida humana, em termos de informações sobre apara-
tos médicos, qualidade de vida, condições de trabalho. A questão é: será que tais in-
formações, que altera[ra]m drasticamente nossa realidade, nossa natureza, realmente
trouxeram mudanças perceptivas ao nível ontológico, de modo que nos tornamos
mais aptos a viver? O ponto é que, ao que tudo indica, o advento tecnológico traz,
consigo, um novo modo de pensar, um novo modo de sentir, um novo modo de se
relacionar, para o qual, talvez, podemos não estar preparados.”
77
José Faleiros Júnior · Letícia Preti Faccio
nossa dependência do ambiente externo, a fim de reduzir a demanda cog-
nitiva. Por exemplo, as pessoas escrevem notas em papel ou smartphones
para não esquecer as listas de compras ou compromissos futuros.18 Como
consequência disso, tem-se uma humanidade cada vez mais displicente
com a checagem de conteúdos. A Internet parece oferecer amplo acesso
informacional a ponto de não parecer necessária a formação de sólida base
de valores e estruturas neurais baseadas na leitura, na escrita e na formula-
ção do discernimento.
Matthew D’Ancona argumenta acerca de alguns prognósticos positivos
desses avanços, mas sinaliza a necessidade de ponderação e traça um con-
traponto:
A sobrecarga de informação significa que todos nós devemos nos tornar
editores: filtrar, checar e avaliar o que lemos. Da mesma forma que crian-
ças são ensinadas a como entender textos impressos, suas faculdades críti-
cas devem ser treinadas para enfrentar os desafios muito diferentes de um
feed digital. Que selo de qualidade, caso exista, recomenda um post ou site
específico como fonte confiável? As recomendações sugeridas são apoia-
das por links, notas de rodapé ou dados convincentes? A tendência de al-
guns professores de tratarem a Internet como fonte de segunda categoria
não percebe o sentido exato da questão. Para a geração agora na escola, e
aquelas que vão chegar, é a única fonte significativa.19
Dessa forma, é possível entender que o despedaço da ética, analisado a
princípio pelo cosmo da tecnologia, pode trazer consequências completa-
mente prejudiciais à humanidade a ponto de termos a saudade que Harari
comenta: da impotência diante das epidemias naturais e a inexistência das

18 Confira-se: RISKO, Evan F.; MEDIMOREC, Srdan; CHISHOLM, Joseph; KING-


STONE, Alan. Rotating With Rotated Text: A Natural Behavior Approach to Investi-
gating Cognitive Offloading. Cognitive Science: a Multidisciplinary Journal, Nova Jer-
sey, v. 38, n. 3, p. 537-564, abr. 2014.
19 D'ANCONA, Matthew. Pós-verdade: a nova guerra contra os fatos em tempos de fake
news. Tradução de Carlos Szlak. Barueri: Faro Editorial, 2019, p. 101.
78
Fake news e desinformação
epidemias tecnológicas humanas20, e o gasto que Kussler aponta: o tributo
da ética.21 Isso gera reverberações quanto ao tema das fake news, pois
“condicionar a participação das pessoas no debate à posse de informações
perfeitas parece também uma violação da democracia, já que quase nin-
guém poderia reclamar a condição de pessoa perfeitamente informada.”22

4. A transformação da ética e a superação da desinformação


O filosófo Hans Jonas traz a ideia de que é possível a existência de uma
nova ética para a atual civilização tecnológica.23 Como se disse na introdu-

20 HARARI, Yuval Noah. Homo deus: uma breve história do amanhã. Tradução de
Paulo Geiger. São Paulo: Cia. das Letras, 2016, p. 19.
21 KUSSLER, Leonardo Marques. Técnica, tecnologia e tecnociência: da filosofia antiga
à filosofia contemporânea. Kínesis, Santa Maria, v. VII, n. 15, p. 187-202, dez. 2015,
p. 200-201.
22 GROSS, Clarissa Piterman. Fake news e democracia: discutindo o status normativo
do falso e a liberdade de expressão. In: RAIS, Diogo (Coord.). Fake news: a conexão
entre a desinformação e o direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, p. 170. E a
autora complementa: “Não precisamos ser cientistas políticos, jornalistas ou econo-
mistas para participar do debate público. A maior parte de nós expressa posiciona-
mentos políticos com base em interpretações que fazemos de determinados cenários,
ainda que não tenhamos bom domínio dos fatos pertinentes. É por essa razão que pa-
rece violador da liberdade política a proibição e punição da expressão de cidadãos
comuns acerca de assuntos e personalidades públicas. Por exemplo, as redes sociais
são hoje repletas de manifestações veementes de milhões de pessoas acerca dos mais
diversos acontecimentos e pessoas públicas. Não parece plausível que políticos como
Dilma Rousseff ou Aécio Neves, por exemplo, possam se engajar em uma verdadeira
caça virtual para identificar e punir todos aqueles que fazem a eles críticas cáusticas e
ofensivas, atribuindo a eles inclusive práticas ilícitas, tais como corrupção, na inter-
net. E isso porque o debate público inclui a possibilidade de livre manifestação acerca
de políticos no que diz respeito aos assuntos da política.”
23
JONAS, Hans. Le principe responsabilité: une éthique pour la civilisation technolo-
gique. Tradução do alemão para o francês de Jean Greisch. 2. ed. Paris: Cerf, 1992, p.
7-16.
79
José Faleiros Júnior · Letícia Preti Faccio
ção, Hefesto acorrentando Prometeu, em tela de Dirck van Baburen
(1623), é, objetivamente, a imagem antagônica à teoria de Jonas, que nos
traz no prefácio do livro a ideia de “Le Prométhée définitivement déchaîné”
ou seja, “Prometeu definitivamente desacorrentado”. A tela é extrema-
mente emblemática e a narrativa mitológica que a inspira revelam um
aspecto crucial para que se tenha a almejada ética.
A imagem que o filósofo pretende criar na mente de seus leitores é do
excesso de poder dado pela ciência à tecnologia, e de um impulso infatigá-
vel à economia, além da total liberdade dos seres humanos de lidar com
esses mecanismos, ou seja, Prometeu definitivamente desacorrentado com
o Fogo e, talvez, palha em suas mãos. Nos dizeres de Jonas, “l'homme est
devenu une menace non seulement pour lui-même mais pour la biosphère
toute entière.” ou seja, o homem está se tornando uma ameaça não somen-
te a ele mesmo, mas também para toda a biosfera.24
Dessa forma, munido de poder e impulso, o cenário moderno e total-
mente tecnológico leva à busca pelo clamor de uma ética regulamentadora
que freie e impeça os homens de se tornarem uma desgraça a eles mesmos.
Jonas explica que a promessa da tecnologia moderna, do status quo ante,
torna-se uma ameaça no status quo atual. Destarte, Prometeu desacorren-
tado evidencia o perigo de uma tecnologia moderna, poderosa e desmedi-
da que pode desencadear intervencionismo dominador e transfigurador,
ameaçando a natureza.
A palavra ética, que vem do grego ethos (ἔθος), significando ‘modo de
ser’, ‘costume’ ou ‘hábito’ e, assim, é evidentemente transmutada. Os cos-
tumes e hábitos se alteram constantemente, obrigando o surgimento de
uma nova disciplina do comportamento humano, do modo de ser ideal.
Prometeu acorrentado nos traz uma realidade abrangida pelo ethos e, ao

24 JONAS, Hans. Le principe responsabilité: une éthique pour la civilisation technolo-


gique. Tradução do alemão para o francês de Jean Greisch. 2. ed. Paris: Cerf, 1992, p.
187.
80
Fake news e desinformação
ser desacorrentado, nos traz uma realidade abrangida por outra mais deli-
cada, mais necessária, mais clamada e mais complexa.
Edgar Morin muito leciona sobre a educação. Sustenta a ideia de que
deve ser ela a responsável por mostrar que não há conhecimento que não
esteja, em algum grau, ameaçado pelo erro e pela ilusão.25 A teoria da in-
formação apresentaria riscos de erros sob o efeito de perturbações e ruídos
(“noise”) em qualquer comunicação de mensagem ou transmissão de in-
formações. Assim, a educação começa a ser evidenciada quando se contra-
põe um olhar crítico a qualquer tipo de informação recepcionada sob
qualquer meio de comunicação para reduzir o erro ou ilusão que natural-
mente ocorrem.
A História mostra que etapas como o dogmatismo, o ceticismo e o cri-
ticismo marcaram a evolução da construção do saber26, a ponto de se atin-
gir um estágio de dubiedade, nebulosidade e desinteresse pela checagem
dos fatos; enfim, de verdadeira desinformação!
Há uma faceta alvissareira do acesso às Tecnologias da Informação e

25 MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. Tradução de Cata-


rina Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya. São Paulo/Brasília: Cortez/UNESCO,
2000, p. 19-20. E completa; “O conhecimento não é um espelho das coisas ou do
mundo externo. Todas as percepções são, ao mesmo tempo, traduções e reconstru-
ções cerebrais com base em estímulos ou sinais captados e codificados pelos sentidos.
Daí resultam, sabemos bem, os inúmeros erros de percepção que nos vêm de nosso
sentido mais confiável, o da visão. Ao erro de percepção acrescenta-se o erro intelec-
tual. O conhecimento, sob forma de palavra, de idéia, de teoria, é o fruto de uma tra-
dução/reconstrução por meio da linguagem e do pensamento e, por conseguinte, está
sujeito ao erro. Este conhecimento, ao mesmo tempo tradução e reconstrução, com-
porta a interpretação, o que introduz o risco do erro na subjetividade do conhecedor,
de sua visão do mundo e de seus princípios de conhecimento. Daí os numerosos er-
ros de concepção e de ideias que sobrevêm a despeito de nossos controles racionais.
A projeção de nossos desejos ou de nossos medos e as perturbações mentais trazidas
por nossas emoções multiplicam os riscos de erro.”
26 CASTILHO, Ricardo. Educação e direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 25.
81
José Faleiros Júnior · Letícia Preti Faccio
Comunicação (TICs), especialmente à Internet, mas também há riscos!27
Dessa forma, sendo o conhecimento resultado da reconstrução da infor-
mação por meio da linguagem e do pensamento, e estando sujeito às inter-
pretações de cada receptor, surgindo, naturalmente, numerosos erros de
concepção e de ideias, a educação digital surge como viés pragmático salu-
tar para a construção de visão e postura mais críticas à recepção de infor-
mações e aos hábitos que se deve nutrir na utilização das TICs visando à
minimização dos efeitos das informações imprecisas, sensacionalistas,
aviltantes e inverídicas veiculadas diariamente.28
Morin conclui que o desenvolvimento do conhecimento científico é
considerado um forte meio de detecção dos erros e da luta contra as ilu-
sões, porém, os mesmos paradigmas utilizados nesse combate podem de-
senvolver as próprias ilusões, e não há teoria científica imune ao erro. Se o
conhecimento científico não é capaz de tratar, sozinho, de problemas éti-
cos, filosóficos e epistemológicos e, portanto, a educação deve se dedicar à
identificação da origem de erros, ilusões e cegueiras, tem-se um campo de
batalhas em que é preciso “armar cada um para o combate vital para a

27 GIOVA, Giuliano. Educação e cidadania digital: nascer, morrer e renascer no mundo


digital, onde deixaram o manual? In: ABRUSIO, Juliana (Coord.). Educação digital.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 46. Comenta: “As novas tecnologias pro-
porcionam recursos que podem alavancar muitas das capacidades naturais. Levadas
ao extremo podem nos transformar em algo como supergovernos, superempresas,
super-homens e supermulheres. Se há relevantes benefícios, também há risco de gra-
ve segregação. Aqueles que dominarem a tecnologia obterão acesso mais amplo às
vantagens e benefícios disponíveis do que os demais.”
28 VALI, Ilie. The role of education in the knowledge-based society. Procedia: Social
and Behavioral Sciences, Craiova, v. 76, n. 13, p. 388-392, 2013, p. 392. Anota: “The
distance between those at the edge of informational society and those that have unlim-
ited access to information can be reduced with the help of education. Modern, success-
ful education is based on technology as it can give everybody access to education, offer
more flexibility in projection, development and evaluation.”
82
Fake news e desinformação
lucidez.”29
Os erros e ilusões desencadearam muitos sofrimentos e desorientações
ao longo da história humana, mas, de maneira pavorosa, a partir do século
XX, sendo um problema de importância política, antropológica, social e
histórica. Para progredir, a humanidade não pode mais ser refém de men-
tiras. As fake news são um grande problema nesse contexto, pois desorien-
tam o destino da própria história, fazendo surgir, nesse ponto, a importân-
cia da educação para frear esse processo apavorante. Deve-se transcender
da mera informação para o verdadeiro conhecimento. 30-31 É este o ethos.

5. Considerações finais
Nessas breves reflexões, com abordou-se, no primeiro momento, o sig-
nificado da expressão fake news e seu contexto na sociedade da informa-
ção, com precedentes mundiais, como o caso de Facebook e Cambridge
Analytica, além de outros, e, no segundo momento, argumentou-se, em
breves linhas, quanto à origem do problema ético que a tecnociência en-
frenta, em especial no contraponto trazido pela imperiosa educação digi-

29 MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. Tradução de Cata-


rina Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya. São Paulo/Brasília: Cortez/UNESCO,
2000, p. 33.
30 BECLA, Agnieszka. Information society and knowledge-based economy. Develop-
ment level and the main barriers. Some remarks. Economics & Sociology, Szczecin, v.
5, n. 1, p. 125-132, 2012, p. 131. Anota: “The development of information society and
knowledge-based economy will lead to the creation of new techniques less or more ef-
fective interpersonal communication, based not only on the use of modern techniques,
information and communication infrastructure, but first of all, the use of scientific
knowledge and wisdom, understood as the proper, liberal approach towards human
knowledge and possibility. The existence of quasi-information society will mean a lack
of such communication, but not a lack of information society.”
31 MÄKINEN, Heikki. Knowledge society or information society? Knowledge of Society
White Papers, Helsinki, v. 6, p. 2-11, 2008, p. 8-9.
83
José Faleiros Júnior · Letícia Preti Faccio
tal.
Na linha das visões de Dupuy sobre a transmutação constante da estru-
tura humana no decorrer da história, que tem como consequência a indis-
tinção entre o real e o virtual, apontou-se o surgimento do problema ético
que dificulta o julgamento, a valoração moral dos fatos e causa a flexibili-
zação da própria ética. Concluiu-se que o contexto gerado por essa cisão
pode ser tão prejudicial à humanidade que o preço a se pagar é quantifica-
do pela própria ética.
Ainda, revisitando a transformação da ética na visão de Hans Jonas,
viu-se, na análise da alegoria de “Prometeu desacorrentado”, munido de
poder e impulso, o clamor por uma ética regulamentadora que freie e im-
peça os homens de se tornarem uma desgraça a si mesmos. Nesse contex-
to, ainda se pontuou a importância e a responsabilidade da educação
quanto à percepção que se deve ter em relação à inexistência de conheci-
mento que não esteja contaminado pelo erro e pela ilusão, ainda que em
algum grau.
As teorias suscitadas explicam que a informação, ao passar por qual-
quer comunicação de mensagem e meio de transmissão, está sob efeito de
perturbações e ruídos. Assim, o conhecimento não é somente o que cap-
tamos do mundo externo, mas também o substrato colhido de sua inter-
pretação com base na realidade de cada ser humano (por suas emoções,
experiências, pensamentos...).
Enfim, frente às desilusões da sociedade da informação, as chamadas
fake news podem ser uma diretriz determinante para reduzir o problema
da desinformação. Em tempos de cognitive offloading, um olhar crítico
sobre qualquer tipo de informação recepcionada pode reduzir o erro ou a
ilusão que, naturalmente, vier à tona.
Assim, para que se possa enfrentar de forma mais ponderada as disse-
minações de informações – sejam elas reais ou modificadas por percep-
ções, interpretações e canais de comunicação, ou mesmo as fake news que

84
Fake news e desinformação
tanto prejudicam o senso de realidade, e que desestabilizam e desacredi-
tam a humanidade – deve-se trilhar um percurso ético que somente pode-
rá ser balizado pelo reencontro com valores essenciais à condição humana,
como o ceticismo, a curiosidade e a visão crítica.

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__________________________________________________

87
DO EXCEDENTE COGNITIVO À
COGNIÇÃO EXCEDIDA: AGÊNCIA
E RESPONSABILIDADE LEGAL NA
ERA DAS FAKE NEWS

3
Átila Pereira Lima
Marcos Henrique Godoi

1. Introdução
O surgimento da internet trouxe grandes esperanças quanto a difusão
da informação e aos benefícios que a acompanhariam. Porém, se a internet
trouxe, sem dúvidas, grandes vantagens, os malefícios que a seguiram fo-
ram subestimados. Com a difusão dos smartphones, a informação que
antes estava confinada aos usuários de personal computers (PCs) passou a
estar ao alcance de pessoas que até então não se interessavam pela infor-
mática. Com isso, o problema da difusão de fake news pela internet passou
a ter uma escala sem precedentes. Os resultados podem ser observados no
noticiário: ascensão de movimentos fascistas, do negacionismo climáticos
e até mesmo de defensores de que o planeta seja plano.
Neste artigo, propõe-se a discussão destas questões apoiada pelos

89
Átila Pereira Lima · Marcos Henrique Godoi
conceitos de excedente cognitivo1 e de viés cognitivo2. O problema anali-
sado aqui se relaciona ao fato de que, frente uma enxurrada de informação,
se torna cada vez mais difícil para a pessoa média discernir o que é verdade
do que é falso, o que é agravado pelo fato de que muitas dessas informa-
ções falsas são promovidas propositalmente para atender os interesses
escusos de alguns grupos organizados. Sem conseguir filtrar adequada-
mente a informação que recebem, muitas vezes as pessoas acabam adotan-
do crenças bizarras e, ao agir baseada nelas, acabam causando um mal para
a sociedade. Porém, se essas pessoas foram induzidas a agir dessa forma
pelos disseminadores de fake news, qual é a capacidade de agência destas
pessoas, e, por consequência, sua responsabilidade frente a estes impactos
deletérios?
Para lidar com esta questão, este artigo será composto de cinco seções,
contando com esta introdução. A segunda seção trata dos primórdios da
internet e das grandes esperanças relacionadas a ela, cristalizados pelo
conceito de excedente cognitivo. A terceira seção analisa a situação da
internet na última década, caracterizada pelo excesso de informação e di-
fusão de fake news, sob a ótica das ciências cognitivas. A quarta seção lida
com a questão da agência e da responsabilidade legal dos usuários da in-
ternet que, sujeitos às suas limitações cognitivas, acabam agindo de forma
prejudicial a sociedade. Por fim, a quinta seção traz as considerações finais.

2. Os Primórdios da Internet e o Excedente Cognitivo


Nos anos 1990, quando a internet começava a alcançar suas primeiras
aplicações comerciais para o grande público, já se alardeava os grandes
benefícios que a internet traria, descentralizando mercados e permitindo a
interação direta entre partes. Estes argumentos derivam principalmente

1 SHIRKY, Clay. Cognitive Surplus: Creativity and Generosity in a Connected Age.


Nova York: The Penguin Press, 2010.
2 KAHNEMAN, Daniel. Thinking, Fast and Slow. Macmillan, 2011.
90
Do excedente cognitivo à cognição excedida
das características tecnológicas da internet: interatividade, alcance global,
baixo custo, velocidade, estrutura em rede, capacidade de armazenamento
e a pretensa impossibilidade de um único usuário (ou grupo) poder con-
trolá-la. Considerava-se que a internet criaria uma comunidade de cida-
dãos informados e tolerantes3.
No início, a internet era usada apenas por usuários com competências
técnicas razoáveis, em função do pouco desenvolvimento da tecnologia e
das interfaces. Nos anos 1980, a internet, recém-saída de seu berço militar,
apresentava um forte aspecto contracultural, chegando ao ponto de Steve
Wozniak, um dos fundadores da Apple, financiar um festival de rock dedi-
cada a era da informação em 19824. Ainda assim, em 1983 havia apenas
562 computadores conectados à internet. Esse período é marcado por ati-
vistas que buscavam tornar a internet um estímulo a democracia. A situa-
ção começa a mudar nos anos 1990, a partir da introdução dos navegado-
res com interface gráfica e dos mecanismos de busca. A comercialização da
internet, que toma fôlego a partir de 1995, se constrói sobre um espaço
aberto e público regido por valores acadêmicos e contraculturais e caracte-
rizado pela descentralização, diversidade e interatividade. No entanto, a
comercialização da internet quebra a coalizão que criou esta internet con-
tracultural. Alguns cientistas abrem empresas online e se tornam milioná-
rios, e os administradores das universidades passaram a buscar formas de
conseguir mais dinheiro a partir de seus departamentos de computação.
Os direitos autorais sobre softwares foram reforçados, minando a tradição
colaborativa anterior. Com a operacionalização do uso dos cartões de cré-
dito em 1997, a internet começa se tornar uma espécie de shopping virtual.
Um efeito colateral da comercialização foi a introdução de anúncios inva-

3 CURRAN, James. The internet of dreams: Reinterpreting the internet. In: CURRAN,
James; FENTON, Natalie; FREEDMAN, Des. Misunderstanding the internet.
Abingdon: Routledge, 2012.
4 Esse festival chegou a reunir mais pessoas que Woodstock.
91
Átila Pereira Lima · Marcos Henrique Godoi
sivos5.
Mesmo com o fim dessa era “heróica” da internet, muitos entusiastas
continuaram defendendo o potencial da internet em relação a descentrali-
zação e democratização promovidas por esta. Castells6 defende que, apesar
da comercialização e da desigualdade na difusão da internet, o conteúdo
disponível na rede ainda era em sua maioria espontâneo, desorganizado e
diversificado. De acordo com ele, era do interesse tanto das empresas
quanto dos governos que o uso da internet fosse o mais diversificado pos-
sível, pois isso maximizaria o valor agregado desta. A comercialização do
ciberespaço se pareceria mais com o comércio de rua do que shoppings
centers assépticos. A internet preservaria a informalidade e o auto-
direcionamento da comunicação, característico da primeira fase, mesmo
com a entrada de tantos novos usuários sem grandes conhecimentos técni-
cos, onde cada um cada um teria sua própria voz e esperaria uma resposta
individualizada.
Em outra obra, Castells7 afirma que movimentos sociais gestados na in-
ternet são altamente reflexivos. Com isso, ele quer dizer que eles se questi-
onam constantemente sobre quem eles são, o que querem conquistar e em
que tipo de sociedade querem viver. Eles refletem uma cultura de autono-
mia que busca transformar as pessoas em sujeitos de suas próprias vidas.
Autonomia, para o autor, se refere a capacidade do ator social de se tornar
sujeito ao definir suas ações em torno de projetos construídos independen-
temente das instituições, de acordo com seus valores e interesses. A inter-
net forneceria uma plataforma de comunicação organizada que traduz
uma cultura de liberdade na prática da autonomia, pois a tecnologia que a

5 CURRAN, James. Rethinking Internet History In: CURRAN, James; FENTON, Na-
talie; FREEDMAN, Des. Misunderstanding the internet. Abingdon: Routledge, 2012.
6 CASTELLS, Manuel. The Information Age: Economy, Society and Culture. Volume 1:
The Rise of the Network Society. Segunda edição. Chichester: Wiley-Blackwell, 2010.
7 CASTELLS, Manuel. Networks of Outrage and Hope: Social Movements in the Inter-
net Age. Segunda edição. Cambridge: Polity Press, 2015.
92
Do excedente cognitivo à cognição excedida
produz incorporaria essa cultura.
Essa visão da internet como algo intrinsecamente benéfico, cuja própria
tecnologia já incorpora valores libertários, era comum até o início da se-
gunda década do século XXI. Baseando-se nela, Shirky8 introduz o concei-
to de excedente cognitivo. Este conceito reflete o tempo livre agregado de
todas as pessoas em uma sociedade. A industrialização e os avanços tecno-
lógicos dos últimos séculos permitiram um aumento substancial do tempo
livre agregado. A Wikipédia é o exemplo que o autor utiliza para mensurar
este agregado. Ele estima que o tempo necessário para produzir a Wikipe-
dia (da forma como ela se encontrava no momento da escrita do livro)
seria de cerca de 100 milhões de horas. No entanto, ele afirma que os ame-
ricanos assistem cerca de 200 bilhões de horas de televisão por ano. Por-
tanto, a Wikipédia seria um investimento pequeno de tempo comparado
com outros usos deste tempo livre. A partir da introdução da internet,
tornou-se possível usar este tempo livre para produzir e divulgar coisas
que tem utilidade para os outros, em oposição à atividade passiva de assis-
tir televisão.
Shirky9 apresenta outros exemplos de aplicação socialmente benéfica
do excedente cognitivo. Um deles é o Ushahidi, um serviço introduzido no
Quênia para identificar e denunciar violência étnica. O serviço foi criado
por uma ativista local para agregar denúncias enviadas pela internet e por
mensagens de texto e dispô-las em um mapa em tempo real, fazendo com
que informações qe se encontravam dispersas pudessem ser facilmente
obtidas pelos interessados. Por meio da internet, com um pequeno gasto
de tempo de cada colaborador, é possível criar serviços de grande utilidade
para a sociedade.

8 SHIRKY, Clay. Cognitive Surplus: Creativity and Generosity in a Connected Age.


Nova York: The Penguin Press, 2010.
9 SHIRKY, Clay. Cognitive Surplus: Creativity and Generosity in a Connected Age.
Nova York: The Penguin Press, 2010.
93
Átila Pereira Lima · Marcos Henrique Godoi
Para Benkler10, estas mudanças levariam a um novo modelo produtivo
em função da redução dos custos de transação entre os agentes. Enquanto
uma empresa tradicional precisa de uma hierarquia e de um controle mais
centralizado para poder assegurar sua produção sem incorrer em altos
custos de transação relacionados à contratação externa de seus insumos, a
internet permite projetos colaborativos sem maiores custos do que o de
manter uma conexão com velocidade razoável. Um exemplo oferecido
pelo autor são os softwares livres, que são desenvolvidos com a contribui-
ção de inúmeros usuários. Benkler11 chama este novo paradigma produti-
vo de Produção Colaborativa Baseada em Recursos Comuns.
Portanto, o excedente cognitivo foi interpretado dentro desta represen-
tação otimista da internet, muito focada nos avanços da fase “heróica”,
como se a própria tecnologia fosse inerentemente boa. Isto levou os auto-
res a desconsiderar os impactos potencialmente nocivos deste excedente
cognitivo, caso ele fosse aplicado na difusão de fake news e teorias da
conspiração. Porém, antes de entrar na análise deste lado mais obscuro da
internet, precisamos estabelecer alguns fatos sobre a cognição humana e a
forma como as pessoas lidam com as informações que recebem. A seção
seguinte trata deste assunto.

3. Cognição Humana e Fake News


Embora o acesso quase universal a informação tenha sido aclamado
como uma das maiores benesses provenientes do surgimento da internet,
como descrito na seção anterior, os entusiastas da rede trataram deste
acesso como se ele não tivesse nenhum lado ruim. Isso provavelmente se
deu em função de que nunca na história havia existido tamanha disponibi-

10 BENKLER, Yochai. The Wealth of Networks: How Social Production Transforms


Markets and Freedom. New Haven: Yale University Press, 2006.
11 BENKLER, Yochai. The Wealth of Networks: How Social Production Transforms
Markets and Freedom. New Haven: Yale University Press, 2006.
94
Do excedente cognitivo à cognição excedida
lidade de informação.
A história da difusão da informação mostra um lento desenvolvimento,
partindo do surgimento da escrita por volta do quarto milênio A.C e pas-
sando pelo desenvolvimento da escrita alfabética, o surgimento do papel e
da imprensa. No entanto, estas mídias tinham um custo de produção ele-
vado e estavam inseridas em sociedades com baixas taxas de alfabetização.
O desenvolvimento observado após a revolução industrial possibilitou a
expansão da educação e do número de alfabetizados, reduziu o custo da
produção de papel e da impressão e levou ao desenvolvimento de novas
tecnologias como o rádio e a televisão. No entanto, com o advento da in-
ternet tornou-se possível a difusão da informação com um custo pratica-
mente nulo. É este custo marginal zero que permitiu a criação de plata-
formas colaborativas tratadas na seção anterior12.
Esse ambiente no qual divulgar conteúdos tem um custo zero levou a
profusão das vozes na internet, uma vez que qualquer pessoa agora podia
fornecer este conteúdo. No entanto, o ser humano tem uma capacidade
limitada de processamento de informação. Para entender isso, é preciso
considerar que a cognição humana é composta por processos de dois tipos.
Processos cognitivos de tipo 1 dão origem aos impulsos e intuições, agindo
de forma rápida, automática e involuntária, enquanto os de tipo 2 dão
origem ao raciocínio cauteloso, alocando atenção para atividades que a
necessitem, como fazer cálculos, por exemplo. Os processos do tipo 1 dão
origem a impressões e sentimentos, que são as principais fontes das cren-
ças explícitas e escolhas deliberadas dos processos de tipo 2. As operações
automáticas dos processos de tipo 1 são capazes de gerar padrões comple-
xos de ideias, mas apenas os processos de tipo 2, mais lentos, podem cons-
truir séries ordenadas de pensamentos. O cérebro humano, em seu proces-

12 RIFKIN, Jeremy. The Zero Marginal Cost Society: The Internet of Things, the Collab-
orative Commons, and the eclipse of Capitalism. Nova York: Palgrave Macmillan,
2014.
95
Átila Pereira Lima · Marcos Henrique Godoi
so de representação do ambiente no qual o organismo está inserido, usa os
dois tipos de processos cognitivos. Porém, o grau de atenção que se presta
varia de acordo com a atividade que está sendo realizada e com o que está
acontecendo no ambiente. Quando o ambiente fornece inputs sensoriais
tais que o cérebro não julga suficientes para alocar muita atenção, pode-se
falar em conforto cognitivo (cognitive ease). Se o ambiente se mostra ame-
açador, ou simplesmente desconhecido, o cérebro aloca uma maior aten-
ção, o que se pode chamar de tensão cognitiva (cognitive strain)13. Proces-
sos cognitivos de tipo 2 consomem mais energia, sendo limitados pela
disponibilidade de glucose no cérebro14.
Como a quantidade de energia disponível no cérebro é limitada por
questões metabólicas, a atenção disponível é escassa e precisa ser distribuí-
da entre diferentes atividades. Com isso, apenas algumas informações se-
rão cuidadosamente avaliadas, enquanto a maioria das informações rece-
bidas serão internalizadas sem maiores considerações por processos cogni-
tivos de tipo 1. Como estes processos visam a economia de energia no cé-
rebro, eles dão origem aos vieses cognitivos, que produzem respostas rápi-
das, porém irrefletidas. Frente a um número muito grande de fontes de
informação disponíveis, é impossível para uma pessoa que não esteja fami-
liarizada com os assuntos tratados discernir quais fontes são fidedignas e
quais estão divulgando falsidades. Como os agentes estão sujeitos a vieses
em função da grande quantidade de informações a ser considerada vis-a-
vis, o pequeno tempo que possuem para considerar essas informações faz
com que, de forma contraintuitiva, mais opções não sejam sempre melhor

13 KAHNEMAN, Daniel. Thinking, Fast and Slow. Macmillan, 2011.


14 GAILLOT, Matthew T.; BAUMEISTER, Roy F.; DEWALL, C. Nathan; MANER, Jon
K.; PLANT, E. Ashby; TICE, Dianne M.; BREWER, Lauren E.; SCHMEICHEL,
Brandon J. Self-Control Relies on Glucose as a Limited Energy Source: Willpower Is
More Than a Metaphor. Journal of Personality and Social Psychology, v. 92, n. 2, pp.
325-36, 2007.
96
Do excedente cognitivo à cognição excedida
do que menos opções15. A capacidade de acessar notícias em tempo real
acaba com o ritual de se ler um jornal pela manhã ou ver o noticiário em
um determinado horário todos os dias levando a uma menor atenção para
cada notícia apresentada. O excesso de opções para se informar leva, para-
doxalmente, a uma sociedade menos informada16.
Se uma notícia, apesar de falsa, concorda com as crenças preestabeleci-
das das pessoas, a probabilidade do convencimento é maior. Aquilo que
parece familiar gera conforto cognitivo e afeta o julgamento: na falta de
mais informações ou de mais tempo para pensar, há uma maior tendência
a entender o familiar como verdadeiro, algo conhecido como viés de con-
firmação. Se uma notícia falsa é repetida muitas vezes, mesmo que o agen-
te não preste muita atenção nela, a memória desta se torna mais saliente, o
que leva essa informação a vir à mente com mais frequência. Essa tendên-
cia é conhecida como viés da disponibilidade17. Zaller, por meio de análise
estatística quanto a formação de posições políticas das pessoas como resul-
tado das informações que recebem, mostra que, apresentados a uma mes-
ma mensagem, as pessoas irão entender coisas diferentes de acordo com
suas crenças preestabelecidas18.
Em conjunto, estes vieses fazem com que seja fácil convencer uma pes-
soa de uma falsidade que esteja em conflito direto com suas crenças. O
experimento realizado por Bronstein et al.19 dá um exemplo dessa dinâmi-

15 THALER, Richard H.; SUNSTEIN, Cass R. Nudge: Improving Decisions About


Health, Wealth, and Happiness. Yale University Press, 2008.
16 PATTERSON, Thomas. Media abundance and democracy. Media & Jornalismo, v.
17, n. 9, p. 13-29, 2010.
17 KAHNEMAN, Daniel. Thinking, Fast and Slow. Macmillan, 2011.
18 ZALLER, John R. The Nature and Origins of Mass Opinion. Nova York: Cambridge
University Press, 1992.
19 BRONSTEIN, Michael V.; PENNYCOOK, Gordon; BEAR, Adam; RAND, David G.;
CANNON, Tyrone D. Belief in fake news is associated with delusionality, dogma-
tism, religious fundamentalism, and reduced analytic thinking. Journal of Applied
Research in Memory and Cognition, v. 8, n. 1, p. 108-117, 2019.
97
Átila Pereira Lima · Marcos Henrique Godoi
ca: pessoas que gostam de histórias delirantes, pessoas dogmáticas e fun-
damentalistas religiosos, quando lhes fornecem notícias verdadeiras e fal-
sas, tendem a acreditar mais nas falsas. Esse resultado está relacionado a
uma menor capacidade analítica, ou seja, a uma menor capacidade de sus-
tentar os processos cognitivos de tipo 2.
Os vieses cognitivos e a relação entre a capacidade analítica e o discer-
nimento entre notícias falsas e verdadeiras também são demonstrados pelo
experimento de De Keersmaecker & Roets20. Neste estudo, após serem
expostas a fake news, as pessoas foram corrigidas quando passaram a acre-
ditar nelas. Porém, como a falsidade já havia sido internalizada, a crença
precisava ser primeiro “desacreditada” para só depois a atitude das pessoas
se ajustar para refletir a realidade. Isso é um trabalho para os processos
cognitivos de tipo 2, e devido a isso, as pessoas com maior habilidade cog-
nitiva (definida no estudo de forma similar a capacidade analítica) conse-
guiram se ajustar melhor do que aos com menor habilidade.
A mídia, pelo menos desde o século XIX, se dedica a captar a atenção
das pessoas. No entanto, com a internet e os smartphones, a capacidade de
captar a atenção das pessoas (que é escassa, como exposto acima) cresceu
exponencialmente, levando a uma quantidade avassaladora de meios
competindo pela atenção dos usuários. Para se destacar, se tornou necessá-
rio criar conteúdo cada vez mais provocativos (clickbaits) para conseguir
vencer seus competidores21. O apelo emocional relacionado a estes conte-
údos provocativos dificulta ainda mais o uso dos processos de tipo 2 para
analisá-los, reforçando os vieses cognitivos. Em meio a uma quantidade
muito grande de informações diferentes, a atenção será alocada para aqui-

20 DE KEERSMAECKER, Jonas; ROETS, Arne. ‘Fake news’: Incorrect, but hard to


correct. The role of cognitive ability on the impact of false information on social im-
pressions. Intelligence, v. 65, p. 107-110, 2017.
21 WU, Tim. The Attention Merchants: The Epic Scramble to Get Inside our Heads.
Nova York: Alfred A. Knopf, 2016.
98
Do excedente cognitivo à cognição excedida
lo que despertar as emoções mais fortes22.
Com o advento da internet, a produção e a disseminação de conteúdo
passaram a ser acessíveis para um número muito maior de pessoas. Desse
subconjunto da sociedade que possui recursos suficientes para produzir e
disseminar seu conteúdo, aqueles que por um motivo ou outro tem mais
tempo livre puderam divulgar suas ideias de uma forma sem precedentes.
Se Shirky23 mostra a aplicação socialmente benéfica desse excedente cogni-
tivo, também é possível ver o lado prejudicial deste excedente. Ao invés de
ser aplicado na construção coletiva de conhecimento (como na Wikipédia)
este excedente pode ser aplicado na consolidação de teorias da conspira-
ção. Basta uma breve visita ao Youtube para verificar a quantidade de ví-
deos defendendo ideias como o terraplanismo ou a inexistência das mu-
danças climáticas. Como o assunto gera reações emotivas, o número de
acessos cresce gerando mais divulgação e receitas monetárias, como mos-
trado por Wu24.
No caso do Brasil, podemos pensar esta situação a partir do grupo de
pessoas que Lago25 intitula “os incluídos que perderam”. De acordo com o
autor, este grupo é composto por pessoas que perderam na meritocracia
(ou seja, que não conseguem bons empregos ou sucesso como empresá-
rios) mas não devido a problemas sociais como o racismo ou o classismo
estrutural. Se estes excluídos raramente tem uma chance de vencer na me-

22 PATTERSON, Thomas. Media abundance and democracy. Media & Jornalismo, v.


17, n. 9, p. 13-29, 2010.
23 SHIRKY, Clay. Cognitive Surplus: Creativity and Generosity in a Connected Age.
Nova York: The Penguin Press, 2010.
24 WU, Tim. The Attention Merchants: The Epic Scramble to Get Inside our Heads.
Nova York: Alfred A. Knopf, 2016.
25 LAGO, Miguel. Procura-se um presidente: Dependência virtual e extremismo de
Bolsonaro precipitam corrida política no campo da direita. Revista Piauí, edição 152,
Maio de 2019. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/procura-se-
um-presidente/.
99
Átila Pereira Lima · Marcos Henrique Godoi
ritocracia em função da desigualdade dos pontos de partida, os incluídos
que perderam tiveram acesso a boas escolas, não tiveram que trabalhar
para ajudar na renda doméstica, mas ainda assim não obtiveram o sucesso
que almejam, aquele obtido por seus pais ou por outros com características
semelhantes. Estas pessoas, com acesso a recursos, mas sem conseguir uma
ocupação a altura de suas expectativas, começam a culpar a estrutura que
os cerca e dedicam seu excedente cognitivo para defender visões de mundo
que os eximam da culpa de sua própria derrota, mesmo que estas visões
não tenham nenhum compromisso com a verdade factual.
Porém, se essa é a realidade destas pessoas, para a maioria da população
a situação é outra. Elas têm aquilo que Graeber26 denomina shit jobs: em-
pregos que consomem toda sua energia ao longo da jornada de trabalho.
Estas pessoas têm muito pouco excedente cognitivo, e por isso recebem a
informação que lhes é fornecida de forma passiva, processando-as majori-
tariamente por meio de processos cognitivos de tipo 1. Stauffer et al.27
mostra que, ao assistir a notícias na televisão, menos de um quarto da in-
formação é internalizada. Devido aos vieses cognitivos explanados acima,
isso leva as pessoas a internalizar apenas a parte da informação que con-
corda com suas crenças preestabelecidas. No que toca ao compartilhamen-
to de notícias em redes sociais, isso leva a uma situação na qual se formam
comunidades de pessoas alinhadas a um mesmo pensamento, seja ele ver-
dadeiro ou falso, reduzindo a discordância e a diversidade do pensamen-
to28. O que é o completo oposto do esperado pelos entusiastas da internet.
Dessa forma, uma minoria privilegiada, mas que não encontra sucesso

26 GRAEBER, David. Bullshit Jobs: A theory. Penguin Random House, 2018.


27 STAUFFER, John; FROST, Richard; RYBOLT, William. The attention factor in re-
calling network television news. Journal of Communication, v. 33, n. 1, p. 29-37,
1983.
28 FENTON, Natalie. The internet and social networking. In: CURRAN, James; FEN-
TON, Natalie; FREEDMAN, Des. Misunderstanding the internet. Abingdon: Routle-
dge, 2012.
100
Do excedente cognitivo à cognição excedida
no contexto atual pode usar seu excedente cognitivo para levar as camadas
menos privilegiadas da população (os excluídos, na terminologia de La-
go29) a acreditarem em informações falsas que, no entanto, os beneficiam.
Sem maiores recursos para distinguir o que é falso do que é verdadeiro,
basta usar os preconceitos destas pessoas como porta de entrada e capaci-
dade de influenciá-las para que essas apoiem agendas que as prejudicam (e
a sociedade como um todo) mas beneficiam essa minoria. No entanto, é
necessário questionar: qual a responsabilidade das pessoas que são enga-
nadas na disseminação das fake news? Este ato não começa com elas, mas
é amplificado por elas, e sem isso não teria o impacto nocivo que tem so-
bre a sociedade. A seção seguinte trata dessa questão.

4. Agência Humana e Responsabilidade legal


Entende-se como agência humana, a capacidade dos seres humanos de
agir, ou seja, de tomar decisões, realizar ações fazer escolhas, bem como
externar tais ações para o mundo. Segundo Ahearn, “agência refere-se à
capacidade socioculturalmente mediada para agir”30. Esta posição se con-
trapõe aos processos determinísticos, aqueles que não necessitam de gran-
de desgaste cognitivo para ser realizado, estão automatizados, de forma a
ser possível chamá-los de reativos ou simplesmente reação.
A reação é um processo cognitivo do tipo 1, aquele que acontece de
forma impulsiva, rápida, involuntária, seja por questões de sobrevivência
como se esquivar de algum objeto que é lançado em sua direção, seja nos
pré-julgamentos dentro dos vieses de cada indivíduo. Já a agência ou o ato

29 LAGO, Miguel. Procura-se um presidente: Dependência virtual e extremismo de


Bolsonaro precipitam corrida política no campo da direita. Revista Piauí, edição 152,
Maio de 2019. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/procura-se-
um-presidente/.
30 AHEARN, Laura M. Language and Agency. Annual Review of Anthropology, n. 30, p.
109-137, 2001.
101
Átila Pereira Lima · Marcos Henrique Godoi
de agir está diretamente ligada a processos cognitivos do tipo 2, processos
que carecem de atenção, zelo e até estudo antes de serem realizados, ainda
que isso seja feito em segundos. Superados a conceituação de agência, ação
e reação, passa-se a analisar tais aplicações em relação a responsabilidade
dos usuários em razão das fake news.
Neste ínterim, inicialmente destaca-se que a responsabilidade no direi-
to brasileiro possui função reparatória, punitiva e precaucional, visando
resguardar a ordem social e o retorno ao status quo ante. A responsabiliza-
ção decorrente de fake news pode ocorrer em diversos âmbitos, como cí-
vel, criminal, administrativo, ambiental, dentre outros, tal diferenciação se
dá exclusivamente em vista da norma jurídica que impõe o dever violado
pelo agente. Tratando-se de ilícito penal, o agente ofende uma norma pe-
nal, de direito público; no caso do ilícito civil, a norma a ser violada é a do
direito privado. Por mais que vários autores tenham tentado, não há uma
diferença substancial entre o ilícito civil e o penal, tanto que uma mesma
conduta pode violar tanto a legislação cível quanto a penal, sendo uma
dupla ilicitude.
Independentemente da área do direito, a responsabilidade se manifesta
como dever jurídico, ou conduta externa de uma pessoa imposta pelo di-
reito positivo, a partir das exigências da convivência social31. Assim, ocor-
rendo a ofensa a um bem juridicamente tutelado, nasce então, o dever de
ressarcir ou compensar o ou os titulares pela ofensa a seus bens, seja eles
materiais ou imateriais, individuais ou coletivos.
Portanto, para que surja o instituto da responsabilidade há de, necessa-
riamente ocorrer um ilícito, este que sempre deve acarretar um dano a
direito individual ou coletivo, oriundo de uma conduta passiva ou ativa e
que esta conduta esteja ligada ao dano sofrido e em alguns casos conside-
ra-se a intenção do agente a partir do dolo ou culpa. Em síntese, só se cogi-

31 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 12. ed. São Paulo:
Atlas, 2015, p. 22.
102
Do excedente cognitivo à cognição excedida
ta a responsabilidade onde houver a violação de um dever jurídico e desta
violação resultar um dano.
A responsabilidade em nosso ordenamento jurídico divide-se em obje-
tiva e subjetiva, a primeira tem como requisitos a conduta, o dano e o nexo
causal, sendo esta a exceção, enquanto a segunda, a regra do ordenamento,
possui como requisito o dano e o nexo causal; a conduta e a culpa.
Quanto ao dano, não são necessárias muitas explanações, uma vez que
se considera dano a ofensa a direito individual ou coletivo. No caso da fake
news, os danos podem gerar prejuízos aos direitos pessoais dos indivíduos,
assim como podem atingir a democracia, a ordem social ou econômica,
dentre outros. Assim, a comprovação do dano causado por fake news se faz
necessária para que o agente seja responsabilizado, bem como o nexo cau-
sal entre o dano e a ação ou omissão do agente que causou ou ensejou a
efetivação deste, visto que o dano é elemento essencial e indispensável à
responsabilização do agente32.
Tratando-se de fake news que objetivam danos a democracia, econo-
mia, instituições sociais, saúde pública, dentre outros, a sua comprovação,
ante a subjetividade deste dano é frágil, contudo, jamais inexistente. Já o
nexo causal se apresenta como o condão que liga a conduta do agente ao
dano, ou seja, a relação causa-efeito entre a ação do ofensor e o dano sofri-
do pela vítima33. O nexo causal aliado ao dano são os requisitos basilares
da responsabilização, uma vez que, caso reste inexistente a ligação entre a
ação ou omissão humana e o dano sofrido pela vítima, não há a possibili-
dade de responsabilização legal.
A conduta do agente, portanto, se apresenta como a possibilidade de

32 STOCO, Rui. Tratado de responsabilidade civil: doutrina e jurisprudência. 10. ed.


rev., atual. e reform. com acréscimo de acórdãos do STF e STJ. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2014, p. 200.
33 PEREIRA, Caio Mário da Silva; TEPEDINO, Gustavo. Responsabilidade Civil. 12. ed.
rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 105.
103
Átila Pereira Lima · Marcos Henrique Godoi
um sujeito poder atuar, comissiva ou omissivamente, dentro da cadeia
causal. Pode-se defini-la como todo comportamento que representa a per-
sonalidade do sujeito agente, a expressão da sua individualidade. Sobre a
conduta, temos dois cenários ou agentes distintos, temos o primeiro agen-
te, aquele que Lago intitulou de “os incluídos que perderam”34 que se utili-
zam de seu tempo livre, poderio econômico e acesso a recursos para, por
motivos escusos ou não, confeccionar, manipular e disseminar informa-
ções falsas.
Estes agentes, realizam inegavelmente uma conduta positiva, exercida a
partir dos processos cognitivos de tipo 2, visto que há o esforço para for-
mular, criar, confeccionar, disponibilizar e disseminar a fake news, de for-
ma a não sobrevir sobre este qualquer dúvida quanto a sua vontade, inten-
ção, capacidade cognitiva ou dolo. O agente que fabrica uma fake news,
indubitavelmente é conhecedor de sua falsidade e, seja para adquirir van-
tagem econômica com clickbaits e publicidade, seja por quaisquer outros
motivos pessoais ou políticos, é certo que veicula essa informação intenci-
onalmente de forma que, aparente ser uma notícia, de modo a facilitar o
convencimento de outras pessoas, as quais, diferentemente de si não pos-
suem o tempo e a capacidade para discernir a falsidade.
Quanto ao segundo caso, aquele que, se beneficiando da expansão da
internet e a facilitação de uso e que agora possui acesso quase universal e
ilimitado a mais diversa gama de informações, da qual, inclui-se as fake
news, configurando-se, portanto uma cognição excedida, ao receber ou ler,
ainda que superficialmente, uma notícia a replica sem verificar sua veraci-
dade, torna-se necessário questionar, qual a responsabilidade legal deste
individuo e qual os meios de sanção que a eles deverão ser impostos. Desta

34 LAGO, Miguel. Procura-se um presidente: Dependência virtual e extremismo de


Bolsonaro precipitam corrida política no campo da direita. Revista Piauí, edição 152,
Maio de 2019. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/procura-se-
um-presidente/.
104
Do excedente cognitivo à cognição excedida
forma, o indivíduo que atua por reflexo, ou simplesmente reage a uma
notícia falsa ou desinformação compartilhando-a, sem utilizar-se de ne-
nhum dever de cautela não controla as circunstâncias, não domina o fa-
to35.
A discussão acerca dos limites da imposição de sanções legais a uma
prática em que há uma série de divergências acerca da possibilidade de
identificar o agente causador da infração e até mesmo quanto à classifica-
ção do conteúdo, o que seria de fato uma notícia e informação de cunho
falso, como intuito de prejudicar outrem, bem como os danos coletivos
dela decorrentes, até que ponto o compartilhamento de uma notícia da
qual se acreditava piamente ser verdadeira deve ocasionar uma sanção.
Outro fator que merece destaque é que, na grande maioria dos casos as
fake news são tratadas como danos ao individual enquanto já é notório que
o seu poder danoso, potencializado pela velocidade da internet, pode atin-
gir institutos tão ou mais importantes como a economia, a ordem e insti-
tuições sociais e a própria democracia. Especificamente, para estes casos
ainda não há nenhum tipo de regramento que institua nenhum tipo de
responsabilização seja civil ou penal, assim como não há qualquer tipo de
política pública que visa coibir a propagação das fake news, contudo, o
Código Penal trata da injúria, calúnia e difamação. O direito eleitoral prevê
a penalidade pela divulgação de informações inverídicas e a Lei de Segu-
rança Nacional estabelece punições apenas para quem difundir boatos que
geram pânico na sociedade.
Tal cenário não resulta da ausência de propostas legislativas, visto que
tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado há dezenas de propos-
tas sugerindo a inclusão de artigos em diversos diplomas legais, dentre eles
o Código Penal, Consumerista, Eleitoral até mesmo a Lei de Segurança

35 FROTA, Pablo Malheiros da Cunha. Responsabilidade por danos, imputação e nexo


de causalidade. Curitiba: Juruá, 2014, p. 237.
105
Átila Pereira Lima · Marcos Henrique Godoi
Nacional36. Estes projetos, possivelmente impulsionado pelos eventos das
últimas eleições, apresentam um diverso arcabouço de punições para
quem fabrica e quem compartilha fake news, variando de multas em torno
de R$ 1.500,00 até 08 anos de reclusão. Frisa-se ainda, que no Direito Pe-
nal, responsável pela tutela de bens jurídicos de direito público a penaliza-
ção sobre o indivíduo deve ser a última medida a ser aplicada (ultima ra-
tio), para coibir reiteradas práticas por condutas sociais reprováveis (art. 5,
XXXIX, CF/88).
Uma das grandes dificuldades encontrada nos projetos apresentados
bem como nos diplomas legais em vigor, igualmente levantada nesta ses-
são, que é quanto a quem deve ser punido pelo crime, divergindo entre o
responsável pela criação das notícias falsas, todos aqueles que comparti-
lharam ou os provedores de conteúdo. Quanto aos provedores de conteú-
do, timidamente, o Marco Civil da internet dispôs sobre sua responsabili-
zação, contudo, além de determinar que ela ocorrerá tão somente após
ordem judicial específica o referido diploma é omisso quanto a responsa-
bilização dos usuários.
Além disso, a simples descrição nas propostas como “notícia falsa” ou
“notícias incompletas” é muito superficial e ampla, podendo causar mais
danos do que a própria notícia em si. Para elucidação, cita-se o projeto de
lei n. 8.592 de 2017, que acrescenta no capítulo dos crimes contra a paz
pública o artigo 287-A, o qual dispõe como crime a divulgação ou compar-
tilhamento, por qualquer meio de comunicação social capaz de atingir um
número indeterminado de pessoas, informação falsa ou prejudicialmente
incompleta, sabendo ou devendo saber que o são. É muito preocupante a
parte final do artigo a ser inserido no diploma penalista, principalmente
por sua indeterminação e subjetividade “sabendo ou devendo saber que o

36 GRIGORI, Pedro. 20 projetos de lei no Congresso pretendem criminalizar fake news.


Disponível em: https://apublica.org/2018/05/20-projetos-de-lei-no-congresso-
pretendemcriminalizar-fake-news/. Acesso em: 10 mar. 2020.
106
Do excedente cognitivo à cognição excedida
são”.
A proposta penal, mormente as que se referem a penas de reclusão, é
danosa e inadequada, visto que, atualmente há uma imensurável quanti-
dade de posts e compartilhamento de notícias, desta forma não dá para
processar e prender todas as pessoas que compartilharam algo, o que pode
fazer com que a legislação, por exemplo, seja aplicada a apenas um grupo,
classe social ou candidato, gerando uma verdadeira “caça às bruxas” mo-
derna, o que não coaduna com os princípios basilares do direito brasileiro.
Como foi dito, antes de se determinar as sanções referente às fake news, há
de se considerar os diversos fatores levantados até o momento, como o
limite de cognição ante o excesso de informações e notícias e a análise
superficial da mensagem veiculada para que se possa analisar a responsabi-
lização pela disseminação de fake news.
Desta forma, para a aplicação de qualquer tipo de responsabilização aos
agentes que praticam despretensiosamente o compartilhamento de infor-
mações, mormente na esfera penal, há de ser verificado quanto a sua culpa.
A culpa lato sensu, abrangente de toda espécie de comportamento contrá-
rio as normas jurídicas, se divide em dolo e culpa. Tanto no dolo como na
culpa há conduta voluntária do agente, só que no primeiro caso a conduta
já nasce ilícita, uma vez que a vontade se dirige a concretização de um re-
sultado antijurídico.
No dolo, o agente antevê o resultado danoso e o elege como objetivo de
sua ação. Dentro desta temática, enquadra-se o agente que vislumbrando o
dano do qual pode resultar uma fake news, cria um site, uma notícia falsa
ou desinformação e a disponibiliza para outros usuários da rede de com-
putadores, objetivando o resultado ilícito (financeiro, pessoal, econômico,
religioso, dentre outros) mantêm sua conduta dolosa.
O dolo, na perspectiva finalista, é natural e composto por consciência
(conhecimento) e vontade (elemento volitivo). Estes elementos operam
em três momentos distintos e sucessivos, primeiramente operam na cons-

107
Átila Pereira Lima · Marcos Henrique Godoi
ciência da conduta e do resultado. Posteriormente o agente manifesta sua
consciência sobre o nexo de causalidade, ou seja, entre o ato a ser pratica-
do e o resultado que dele decorrerá, e por fim, o indivíduo, ou os indiví-
duos exteriorizam sua vontade de realizar a conduta e produzir o resulta-
do. No que diz respeito a vontade, ela pode ser considerada como um fato,
um estado mental, algo que se encontra dentro da psique de alguém. Em
sentido normativo, a vontade não é um fato, mas uma forma de interpretar
determinado comportamento. Para o dolo, basta que o resultado produzi-
do esteja em conformidade com a vontade esboçada pelo agente.
A partir disso, vislumbra-se que, em grande parte, os agentes não pos-
suem vontade de disseminar fake news, mas numa perspectiva normativa-
atributiva, o seu comportamento (ato de compartilhar) é o que poderia ser
atribuído a ele37. Assim, antes de se criminalizar determinada conduta, não
devem existir dúvidas acerca da intencionalidade de divulgar um conteúdo
falso, pois, muitos agentes acreditam se tratar de um material verdadeiro.
A intenção permite distinguir entre a ação e a reação na difusão de fake
news.
No caso da culpa, sua caracterização importa maior dificuldade, visto
que tem por essência o descumprimento de um dever de cuidado38. Tra-
duz-se numa situação em que o agente podia conhecer e observar. Em
relação às fake news, a culpa é muito clara, quando o agente, dentro da sua
capacidade cognitiva limitada, ao se deparar com uma notícia que possui
todas as características de uma notícia/reportagem/artigo verdadeira o
compartilha com seus contatos sem realizar as diligências necessárias, ou
seja, sem resguardar o dever de cuidado ou ao praticar erro de conduta. A
culpa não é a vontade de praticar determinado ato ilícito, isso é o dolo, a

37 GOMES, Enéias Xavier. Dolo sem vontade psicológica: perspectivas de aplicação no


Brasil. Belo Horizonte: Editora D'Plácido, 2017, p. 73.
38 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 12. ed. São Paulo:
Atlas, 2015, p. 50.
108
Do excedente cognitivo à cognição excedida
culpa é antes de tudo, a vontade de praticar um ato lícito, mas o agente,
por não adotar as diligências necessárias ou a conduta adequada acaba por
praticar um ato ilícito39. Na culpa, a conduta em si (compartilhar notícias)
nasce lícita, pois é dirigida a um fim aparentemente legítimo, que, por erro
de dever de cuidado ou de conduta acaba por produzir um resultado ilíci-
to, como o compartilhamento de fake news.
Vivendo em sociedade, o agente ao praticar os atos da vida, ainda que
lícitos deve observar a cautela necessária para que não resulte em ofensa a
bens jurídicos alheios, isso é o que se chama de dever de cuidado. Em ra-
zão disso há diversos preceitos determinados que estabelecem os deveres e
os cuidados que o agente deve ter quando desempenhar estas atividades,
como a velocidade a ser empregada em uma rodovia, o uso de equipamen-
tos especiais, respeito aos sinais de trânsito e outras regras técnicas. Apesar
da abrangência é impossível uma regulamentação jurídica que abarque
todas as possíveis violações e cuidados a ser empregados nas atividades
humanas e sociais. Ressalta-se que o ato de compartilhar notícias por
qualquer aplicativo ou site, por si só não caracteriza qualquer tipo de ilíci-
to, contudo, ao realizar esta mesma ação de compartilhar uma notícia falsa
configura grave infração a bens jurídicos de terceiros e da sociedade.
O grande número de projetos de lei apresentados atualmente, bem co-
mo as propostas de penas desproporcionais e irrazoável, mostram uma
desorganização comum dos legisladores e juristas diante de um aconteci-
mento recente, chamativo e com grandes proporções danosas. Contudo,
antes de se atuar de forma punitivista sobre o fenômeno das fake news, do
qual vislumbramos ser ainda só a “ponta do iceberg”, é necessário que
sejam implantadas políticas públicas de conscientização e combate a notí-
cias falsas e/ou manipuladas além de projetos que desenvolvam o senso
crítico da população, seja através da educação formal ou não. Ademais,

39 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 12. ed. São Paulo:
Atlas, 2015, p. 55.
109
Átila Pereira Lima · Marcos Henrique Godoi
caso ainda seja vislumbrada a necessidade de aplicação de penas, que estas
sejam proporcionais ao fato jurídico ocorrido, a culpa ou dolo do agente e
sua capacidade cognitiva para a realização desta conduta.

5. Considerações finais
Embora a internet tenha surgido em meio a ideais liberais e gran-
des expectativas, o que tempo revelou que a existência de um grupo com
tempo e recursos suficientes pode torná-la um ambiente de desinformação
em prejuízo à democracia e a ordem social. Portanto, agentes que contri-
buam para a construção desse ambiente precisam ser responsabilizados.
No entanto, essa responsabilização deve levar em consideração as limita-
ções cognitivas do sujeito.
O presente trabalho não pretende isentar os propagadores de fake news,
mas compreender que suas ações, ainda que positivas, partem dessa limi-
tação cognitiva, de forma que o agente não possui capacidade de resguar-
dar o dever de cuidado e proceder com a conduta adequada. Ao lado do
dever imposto por lei ou regulamento que obrigue o indivíduo a fazer ou
deixar de fazer alguma coisa, bem como ao realizar as atividades humanas
há também a capacidade cognitiva do indivíduo que determina sua capa-
cidade de ação, em oposição à mera reação. O equacionamento dessa ques-
tão é essencial para a retomada da ordem e harmonia social que se encon-
tram prejudicadas pelas fake news no mundo contemporâneo.

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JÁ VIVEMOS NA SOCIEDADE DA
INFORMAÇÃO?

4
Felipe Cunha Nascimento

1. Introdução
Estamos atravessando como humanidade um período de avanço tecno-
lógico profundo, iniciado em meados da década de 1960, a partir do sur-
gimento e popularização dos microcomputadores. Ainda naquela década,
teóricos como o americano Fritz Machlup e os japoneses Tadao Umesao e
Yujiro Hayashi, atentos ao poder da recém criada tecnologia, já anteviam
que esta seria responsável por mudanças sociais significantes dali então,
marcando a passagem da era industrial, para um novo momento histórico
a "sociedade da informação”.
A previsão ganhou ainda mais força a partir dos anos 1990, com o in-
cremento das Tecnologias da Informação e Comunicação – TICs, que
permitiram, dentre outros avanços, o advento da internet que hoje já ga-
nha status de meio ambiente, a infosfera, para onde praticamente tudo está
a migrar, numa reprodução virtual das relações sociais do mundo físico.
Atualmente, laptops, smartphones e dispositivos vestíveis (wearables),
como smartwatchs e smartglasses, aliados aos softwares, estão a tornar-se

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Felipe Cunha Nascimento
gradativamente extensão de nosso arcabouço cognitivo1, transformando-
nos, sem que nos demos conta, em organismos informacionais, ou sim-
plesmente “inforgs”2.
Também em razão desse conjunto de fatores, nossa percepção de espa-
ço, tempo, e a própria noção de realidade está-se a modificar, numa mescla
entre o concreto e o etéreo. Ressalve-se que a capacidade para dar como
válidas situações abstratas é fenômeno imanente ao ser humano, basta
pensar nas pessoas jurídicas, ficções a quem convencionalmente conferi-
mos direitos e deveres como se vivas fossem. Ou, na ancestral noção de
dinheiro, pedaço de metal ou folha de papel cuja relação com o homem
Karl Marx apropriadamente chamou de fetiche3.
Na contemporaneidade, nossa noção de realidade está a ser alterada por
meio dos equipamentos informáticos e da internet, por onde a informação
flui convertida em bits. Em várias situações do cotidiano, convalidamos
fatos eminentemente virtuais, assim como é, por exemplo, uma sentença
judicial, exarada no bojo de um processo judicial eletrônico, cuja força
como título executivo não se questiona. Ou um contrato de compra e ven-
da celebrado via e-commerce, e pago por operação bancária, também onli-
ne, no qual muitas vezes sequer o produto ou serviço adquirido é físico, a

1 Segundo Pasquale, “decisões que costumavam ser baseadas na reflexão humana são
agora feitas automaticamente, por meio dos algoritimos. In: PASQUALE, Frank. The
Black Box Society: the secret algorithms that control money and information. Cam-
bridge: Harvard University Press, 2015, p. 8.
2 FLORIDI, Luciano. Information: a very short introduction. Oxford: Oxford Universi-
ty Press, 2010, p. 13.
3 “Uma relação social definida, estabelecida entre os homens, assume a forma fantas-
magórica de uma relação entre coisas. Para encontrar uma símile, temos que recorrer
à região nebulosa da crença. Aí, os produtos do cérebro humano parecem dotados de
vida própria, figuras autônomas que mantém relações entre si e com os seres huma-
nos. É o que ocorre com os produtos da mão humana, no mundo das mercadorias.
Chamo isto de fetichismo […].” In. MARX, Karl. O Capital: crítica da economia po-
lítica. 6 vols. Rio de Janeiro: Bertrand, 1994, p. 81.
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Já vivemos na sociedade da informação?
exemplo da assinatura de uma de plataforma de vídeos ou músicas.
Apesar de evidentes os câmbios, perceptíveis a todos nesse primeiro
quartel de século XXI, ainda é clara a dificuldade em se definir o que seria
a sociedade da informação, e o que permitiria afirmar que determinada
nação, ou sociedade, atingiu tal patamar. Alguns teóricos se aplicam nesse
desiderato, tomando cada um critérios distintos, tais como a quantidade
de equipamentos eletrônicos à nossa disposição, a riqueza gerada pelos
dados informacionais ou a quantidade de trabalhadores que lidam com a
tecnologia, para justificar o exsurgir desse novo momento histórico.
O presente artigo tem por objetivo elencar em rápidas passagens alguns
desses critérios a fim de confirmar (ou não) que a sociedade da informação
já se faz presente entre nós.

2. Origem do termo
Não há unanimidade acerca da expressão mais adequada a definir o
momento histórico sobre o qual deitamos observação. Vários teóricos de
envergadura cunharam expressões próprias em seus estudos sobre as mu-
danças sociais causadas pelo avanço tecnológico, a exemplo os termos
“sociedade pós-industrial” usado por Daniel Bell4, “sociedade pós-
moderna”, de Jean Baudrillard5; e, “sociedade informacional”, de Manuel
Castells6.
Entretanto, o termo “sociedade da informação”, nos parece ser o mais
popular desde que os avanços informáticos passaram a promover altera-
ções estruturais nas sociedades.

4 WEBSTER, Frank. Theories of the information society. 3. ed. Londres: Routledge,


2006, p. 7.
5 WEBSTER, Frank. Theories of the information society. 3. ed. Londres: Routledge,
2006, p. 7.
6 WEBSTER, Frank. Theories of the information society. 3. ed. Londres: Routledge,
2006, p. 7.
117
Felipe Cunha Nascimento
Segundo Alistair S. Duff7, o mérito pela cunhagem da expressão é dis-
putado por norte-americanos e japoneses. Do lado americano, a explicação
mais aceita o confere ao economista Fritz Machlup, quando do lançamen-
to de sua obra clássica “A Produção e Distribuição do Conhecimento nos
Estados Unidos”8. Apesar do autor ter-se valido da expressão “conheci-
mento industrial”, a ideia de sociedade da informação encontra-se ali im-
plícita, já que a obra propõe que “toda a informação no senso comum do
mundo é conhecimento”9, e que o computador e outras tecnologias com-
poriam a “indústria do conhecimento”10. Outros atribuem o termo a Da-
niel Bell, que o menciona na obra The Coming of Post-Industrial Society, de
1973, apesar de o próprio autor preferir a expressão “sociedade pós-
industrial”.11 12
Pelo lado nipônico, leciona Duff, o termo, é atribuído por alguns a Yu-
jiro Hayashi que em 1969 valeu-se da expressão “Joho Sakai” (sociedade
da informação) em dois relatórios do governo japonês (Keizai 1969 e Sa-
gyo 1969)13. Enquanto outros, o ligam ao antropologista Tadao Umesao,
em artigo intitulado Joho Sangyo ron, “nas indústrias da informação” em
tradução livre, publicado em 196314. Críticos entretanto, afirmam que

7 DUFF, Alistair. Information society studies. Londres: Routledge, 2000, p. 2.


8 DUFF, Alistair. Information society studies. Londres: Routledge, 2000, p. 2.
9 DUFF, Alistair. Information society studies. Londres: Routledge, 2000, p. 2.
10 DUFF, Alistair. Information society studies. Londres: Routledge, 2000, p. 3.
11 BELL, 1974:37, Apud, DUFF, Alistair. Information society studies. Londres:
Routledge, 2000, p. 3.
12 Há uma terceira versão, que registra que o termo foi utilizado pela primeira vez em
1970, no encontro anual da American Society for Information Science (ASIS) que te-
ve como tema “The Information Consious Society”. (DUFF, Alistair. Information so-
ciety studies. Londres: Routledge, 2000, p. 3).
13 SUZUKI (1988), Apud, DUFF, Alistair. Information society studies. Londres:
Routledge, 2000, p. 3.
14 ITO 1991a: 5, Apud DUFF, Alistair. Information society studies. Londres: Routledge,
2000, p. 4.
118
Já vivemos na sociedade da informação?
Umesao escreveu seu artigo influenciado por Machlup, já que “A produção
e distribuição do conhecimento nos Estados Unidos” tinha sido publicado
um ano antes, em 196215.
Polêmicas à parte, referidos teóricos, segundo Duff, teriam sido os pri-
meiros a atentarem-se para o florescer de um novo período histórico em-
basado na utilização massiva dos equipamentos informáticos e na troca de
informações no dia a dia, popularizando, posteriormente o termo “socie-
dade da informação”.

3. Algumas características do novo modelo social


Não há consenso sobre o que diferenciaria determinada sociedade para
ser definida sob o epíteto “sociedades da informação”, a não ser o fato de
que referido sistema social deva estar erigido sob os pilares da microin-
formática e das Tecnologias da Informação e Comunicação – TICs. Entre-
tanto, estudiosos do assunto observam certas mudanças que nos seus pon-
tos de vista, nos permitiriam concluir que estamos a experienciar esse no-
vo momento histórico, algumas das quais passamos a apontar.

a. Dispositivos eletrônicos à nossa disposição e o fluxo de informações


As inovações tecnológicas são um dos mais evidentes indicadores do
surgimento de um novo momento histórico. Nesse passo, a enorme quan-
tidade de laptops e smartphones, smart TVs e outros dispositivos de arma-
zenagem e transmissão de informações ao nosso alcance, dos quais faze-
mos uso diuturnamente, nos serviria como um primeiro indício a atestar
que vivemos dias de mudanças estruturais. Mas somente o grande número
desses equipamentos, nos parece um critério raso, diante da complexidade
que envolve o tema.
Dizemos isso porque, ao nosso sentir, o fator distintivo do novo para-

15 DUFF, Alistair. Information society studies. Londres: Routledge, 2000, p. 5.


119
Felipe Cunha Nascimento
digma social, a sociedade da informação, estaria não na disseminação e
uso dos dispositivos eletrônicos em si, mas na possibilidade de digitaliza-
ção, armazenamento e troca de dados que tais equipamentos, aliados às
Tecnologias da Informação e Comunicação, permitem.
Luciano Floridi16 leciona que, dados são a base da informação. Quando
reunidos, tomam significados de acordo com regras da sintaxe, aqui en-
tendida num sentido amplo, não só linguístico, para determinar a forma,
construção, composição ou estruturação de algo, gerando intelecção ou,
informação. A informação, por seu turno, pode tornar-se em conhecimen-
to.17 Por exemplo: as letras do alfabeto da língua portuguesa, isoladas não
passam de símbolos. Quando reunidas e ordenadas numa sequência lógi-
ca, formam palavras que ganham significado para os falantes dessa língua.
Tem-se aí um exemplo, grosso modo, de conversão de dados (letras) em
informação (palavras) que por sua vez, pode transformar-se em conheci-
mento (significação) a ser utilizado no interesse de seu detentor.
Pelo mesmo raciocínio, no processo produtivo de uma fábrica, dados
coletados por sensores podem ser analisados, convertidos em informação e
utilizados na própria linha de produção, a exemplo da apuração da tempe-
ratura ideal da agua durante um processo de produção fabril, implicando
em maior produtividade.18
Nossos equipamentos computacionais ampliaram exponencialmente a
capacidade de acumulação de dados, possibilitando a sua conversão em

16 FLORIDI, Luciano. Information: a very short introduction. Oxford: Oxford Universi-


ty Press, 2010, p. 21.
17 A informação por sua vez pode ser analógica; digital; ambiental; genética; matemáti-
ca; física; biológica; econômica etc.
18 MOELLER, Carolin. Are we prepared for the 4th Industrial Revolution? Data protec-
tion and data security challenges of Industry 4.0 in the EU Context. In: LEENES,
Ronald; VAN BRAKEL, Rosamunde; GUTWIRTH, Serge; DE HERT, Paul (Eds.).
Data protection and privacy: the age of intelligent machines. Oxford: Hart Publish-
ing, 2017, p.148
120
Já vivemos na sociedade da informação?
informação (útil ou não, a depender do objetivo que se tenha). Entretanto,
como dito, o fator de caracterização de uma sociedade para ser entendida
como “da informação” não estaria na quantidade desses dispositivos, mas
nos dados, informação e conhecimento que eles permitem acumular e
transmitir19.

b. Mudanças na economia e mundo do trabalho


Certamente a economia se mostra como um dos setores sociais que
mais mudanças sofre em razão dos avanços tecnológicos e também deles
se beneficia. A tecnologia no mundo da economia é disruptiva, isto é, alte-
ra rapidamente modelos tradicionais de produção tornando-os obsoletos
em pouco tempo.
Além disso (a tecnologia), reduz custos operacionais, agiliza processos
e amplia lucros, de maneira que o próprio sistema capitalista está a trans-
mutar-se do modelo industrial ao novel capitalismo informacional, como
leciona Manuel Castells, na medida em que a informação passa efetiva-
mente a ser o principal ativo que move a economia20.
Daí ser cada dia mais comum ouvir-se que “dados são o novo petró-
leo”, numa alusão a que a riqueza, não mais decorre(rá) da faina do traba-
lho físico e prático, ou de bens materiais, como no modelo industrial, mas
da informação que, segundo Castells, se tornou um recurso independente
de produtividade e poder.21
Marc Porat amparado em Fritz Machlup22 observou que uma sociedade

19 VAN AUDENHOVE, Leo. Theories on the Information Society and Development


Recent theoretical contributions and their relevance for the developing world, p. 12.
20 CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. A era da informação: economia, sociedade
e cultura, v. 1. 6. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 55.
21 CASTELLS, 1996, apud, VAN DIJK, Jan. The network society: social aspects of new
media. 2. ed. Londres: Sage Publications, 2006, p. 20.
22 WEBSTER, Frank. Theories of the information society. 3. ed. Londres: Routledge,
121
Felipe Cunha Nascimento
informacional teria como característica o fato de a maior parte da riqueza
ser gerada por atividades, alocadas no setor de prestação de serviços, e-
commerce ou finanças, em lugar dos setores tradicionais, como agricultura
e indústria.
Por essa ótica, países como Estados Unidos, Alemanha, França, Canadá
Japão e Inglaterra, poderiam ser reconhecidos como sociedades informa-
cionais, pois no mínimo 70% de seu produto interno bruto já é decorrente
da transação de bens e serviços intangíveis relacionados direta ou indire-
tamente a atividades informacionais.23
Frank Webster é voz dissonante desse posicionamento. Para ele, so-
mente a aferição da proporção da riqueza gerada por atividades informa-
cionais no Produto Interno Bruto se resumiria a um critério eminente-
mente quantitativo.24
Apesar de boa parcela do PIB daqueles países advir de atividades eco-
nômicas que guardariam relação com a informática e telecomunicação,
seriam poucas aquelas que realmente mereceriam ser enquadradas como
típicas de uma sociedade informacional25. Pense-se por exemplo nos pro-
fissionais de telemarketing, que a despeito de laborarem valendo-se de
instrumentos telemáticos, desempenham tarefas pouco criativas.
Em oposto, uma parcela relativamente pequena de profissões, a exem-
plo dos programadores e engenheiros de telecomunicações exercem ver-
dadeiramente trabalhos criacionais, estes sim típicos do novel modelo
social. Dessa maneira, o critério do PIB, utilizado por Marc Porat e Fritz
Machlup apesar de válido, seria eminentemente quantitativo, e não ser-

2006, p. 13.
23 FLORIDI, Luciano. Information: a very short introduction. Oxford: Oxford Universi-
ty Press, 2010, p. 9.
24 WEBSTER, Frank. Theories of the information society. 3. ed. Londres: Routledge,
2006, p. 21.
25 WEBSTER, Frank. Theories of the information society. 3. ed. Londres: Routledge,
2006, p. 16.
122
Já vivemos na sociedade da informação?
viria a definir uma sociedade como sendo informacional, na opinião de
Webster26.
Umbilicalmente ligado ao setor econômico, o mundo do trabalho tam-
bém está a sofrer radical mudança na contemporaneidade. Trabalhadores
nas sociedades da informação não lidarão com coisas, como no modelo
industrial, mas com informação, de alguma forma ou de outra. A mais-
valia no século XXI, dependerá menos do esforço físico, ou de um conhe-
cimento prático, mas sim de ideias, habilidades cognitivas e criatividade.27
Alguns estudiosos lecionam que a sociedade da informação é alcançada
quando há preponderância de trabalho informacional, em detrimento do
trabalho manufatureiro. Por essa ótica, países da Europa ocidental, Japão e
Coréia do Norte, onde mais de 70% da força de trabalho encontra-se alo-
cada em atividades informacionais, principalmente no setor de serviços,
poderiam ser entendidos como sociedades informacionais.28
Tais critérios, sofrem críticas pertinentes por também estarem ampara-
dos em avaliações quantitativas, inexistindo clareza quanto a que tipos de
atividades poderiam ser tidas como informacionais. Nesse passo, Charles
Leadbeater enfatiza que a quantidade de trabalhadores do setor informaci-
onal, por si, não tornaria uma sociedade informacional, visto que seriam
relativamente poucos os profissionais que realmente causariam impacto
nesse novo modelo social, tais como programadores, designers, biotecno-
logistas, engenheiros genéticos, engenheiros da computação, engenheiros
da telecomunicação. Estes sim, exerceriam papel inovador em termos so-
ciais, criando e usando a informação e o conhecimento como ferramentas

26 WEBSTER, Frank. Theories of the information society. 3. ed. Londres: Routledge,


2006, p. 15.
27 SUSSKIND Daniel. Artificial intelligence and its impact in leadership. Bled: IEDC,
2018, p. 8
28 BELL, 1979, p. 183. Apud. WEBSTER, Frank. Theories of the information society. 3.
ed. Londres: Routledge, 2006, p. 14.
123
Felipe Cunha Nascimento
de trabalho. 29
Muitos escritores influentes compartilham dessa visão: Robert Reich
(1991), Peter Drucker (1993), Manuel Castells (1996), que sugerem que a
economia atual é liderada por pessoas que consigam de manipular, criar e
usar a informação com desenvoltura30.
Ainda que apenas algumas poucas atividades ou profissionais possam
ser entendidos como típicos de uma sociedade informacional, é inevitável
reconhecer que o modelo tradicional das relações de emprego, entalhado
no embate de forças entre empregados e empregadores está a esmorecer,
com a extinção de muitas profissões, que por sua baixa capacidade criaci-
onal, estão a ser substuídas pela tecnologia.31
Nas palavras de Carl Benedikt Frey, “a computerização não está mais
limitada a trabalhos manuais”. Robôs industriais já são capazes de per-
formar tarefas manuais não rotineiras. E a tendência é que a diferença de
mobilidade entre humano e máquina diminua com o passar do tempo, o
que fará com que a necessidade da mão de obra viva diminua ainda mais.32
Pesquisa realizada por Carl Benedikt Frey e Michael A. Osborne, ainda
em 2013 estimou que “47% dos empregos nos Estados Unidos correm alto
risco de desaparecer nas próximas décadas. Por exemplo, há 99% de pro-
babilidade de que em 2033, operadores de telemarketing e corretores de
seguros perderão seus empregos para algoritimos. Há 98% de probabilida-
de de que o mesmo aconteça com árbitros de modalidades esportivas, 97%
com caixas e 96% com chefs. Garçons 94%, assistentes jurídicos 94% guias
de turismo 91%. Padeiros 89%. Motoristas de ônibus 89%. Operários na

29 Living on Thin Air. The New Economy.


30 Apud. Apud. WEBSTER, Frank. Theories of the information society. 3. ed. Londres:
Routledge, 2006, p. 14.
31 FREY, Carl Benedikt; OSBORNE, Michael A. The future of employment: how suscep-
tible are jobs to computerisation? 2013, passim.
32 FREY, Carl Benedikt; OSBORNE, Michael A. The future of employment: how suscep-
tible are jobs to computerisation? 2013, p. 38.
124
Já vivemos na sociedade da informação?
construção civil 88%.33
Mesmo os setores tradicionais da economia, como agricultura e indús-
tria manufatureira estão a serem envolvidos pela onda informacional a que
se convencionou chamar de “4.0”.
Segundo Carolin Moeller, a indústria 4.0:
(...) constitui uma mudança paradigmal no setor manufatureiro, que já
começou, mas que, espera-se evoluirá ainda mais nas próximas duas déca-
das. O conceito ao rearranjo dos processos de produção industrial onde
equipamentos, máquinas e produtos por si mesmos são interconectados
via internet e se comunicam autonomamente ao longo da cadeia de pro-
dução. Nesse processo, as chamadas ‘smarts machines’ não só trocam in-
formações (que é o caso para troca de dados eletrônica), mas também diri-
gem umas às outras autonomamente e desencadeiam independentemen-
te.34 35

33 HARARI, Yuval Noah. Homo Deus: uma breve história do amanhã. Tradução de
Paulo Geiger. São Paulo: Companhia das letras, 2016, p. 329.
34 MOELLER, Carolin. Are we prepared for the 4th Industrial Revolution? Data protec-
tion and data security challenges of Industry 4.0 in the EU Context. In: LEENES,
Ronald; VAN BRAKEL, Rosamunde; GUTWIRTH, Serge; DE HERT, Paul (Eds.).
Data protection and privacy: the age of intelligent machines. Oxford: Hart Publish-
ing, 2017, p. 144.
35 “Indústria 4.0 (IND 4.0) é considerada a quarta revolução na história do industria-
lismo. A primeira resultou da combinação do motor a vapor e produção mecânica, a
segunda, resultou da combinação da eletricidade e linhas de montagem, e a terceira
revolução industrial resulta da combinação de tecnologia da informação e globaliza-
ção. A quarta é marcada pela combinação de fatores inteligentes com cada parte da
cadeia de produção. Pode ser descrita como uma série de inovações disruptivas na
produção e saltos no processo industrial resultando em alta produtividade” (MOEL-
LER, Carolin. Are we prepared for the 4th Industrial Revolution? Data protection
and data security challenges of Industry 4.0 in the EU Context. In: LEENES, Ronald;
VAN BRAKEL, Rosamunde; GUTWIRTH, Serge; DE HERT, Paul (Eds.). Data pro-
tection and privacy: the age of intelligent machines. Oxford: Hart Publishing, 2017, p.
146-7, trad. livre).
125
Felipe Cunha Nascimento
A internet das coisas (“IoT”, na sigla em inglês) tem permitido que
máquinas interajam tanto com o ser humano quanto entre si, dispensando
a mão de obra viva ao mesmo tempo em que se atingem altíssimos níveis
de produtividade.
A questão levanta obviamente dilemas éticos, como o descarte da mão
de obra humana, substituído pelo trabalho morto (máquina), que implica
num enorme contingente desempregados ou subempregados desprovidos
do mínimo existencial, a converter-se em um grave problema social36-37 a
ser enfrentado pelos governos no porvir. 38
A conclusão a que se chega, nesse ponto é que a percentagem do PIB de
uma nação, ou a quantidade de atividades econômicas relacionadas aos
meios informacionais apesar de criticados por aqueles que como Frank
Webster entendem tratarem-se de critérios quantitativos servem a eviden-
ciar que os câmbios sociais advindos do uso da tecnologia computacional
já exercem preponderância em muitas nações e se não as enquadram como
sociedades informacionais, as colocam à frente de outras sociedades que
ainda encontram-se sob o estagio de desenvolvimento industrial.

36 LORENTZ, Lutiana Nacur; NEVES, Rubia Carneiro. Terceirização feita pelas organi-
zações empresariais de vigilância e segurança: aspectos trabalhistas, empresariais e a
Súmula 331, V, DO TST. Revista do Ministério Público do Trabalho, Brasília, Ano
XXI, n. 43, mar. 2012, p. 77.
37 Oberve-se que, o art. 7º, XXVII, da Constituição Federal Brasileira preceitua serem
direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de
sua condição social a proteção em face da automação, na forma da lei; por seu turno,
o art. 170 determina ser a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho
humano e na livre iniciativa, tendo por fim assegurar a todos existência digna, con-
forme os ditames da justiça social.
38 “(...) a complexidade da tecnologia permite uma melhor distribuição do conheci-
mento. Sua complexidade e custo, entretanto pode servir a intensificar desigualdades
socialis ou mesmo criar um largo grupo de excluídos, pessoas que não se adequam à
sociedade da informação.” VAN DIJK, Jan. The network society: social aspects of new
media. 2. ed. Londres: Sage Publications, 2006, p. 3, trad. livre.
126
Já vivemos na sociedade da informação?

c. Percepção do espaço e do tempo e a crise de significação


Analisando o impacto das novas tecnologias, Michael Buckland obser-
va que “o primeiro efeito destas é reduzir a noção de tempo e espaço”39. As
Tecnologias da Informação e Comunicação compõem uma infraestrutura
tecnológica que permite a comunicação computacional em tempo real,
libertando-nos das barreiras geográficas e temporais sob o ponto de vista
da interação.40 Viabilizam reuniões de negócios via teleconferência, dão
acesso a acervos de bibliotecas, museus, sistemas de vigilância, órgãos go-
vernamentais, empresas, permitem a troca de mensagens via e-mails e
transações bancárias e, em certas profissões, o trabalho por meios telemá-
ticos, ante a pura desnecessidade de deslocamento físico do trabalhador até
o posto de trabalho. Enfim, algo improvável há bem pouco tempo.
De fato, impressiona quando ao fim de um dia de trabalho, ao chegar-
mos em casa e sentarmos em nossos sofás com nossos smartphones, verifi-
carmos no whastapp, caixas de e-mails e redes sociais, que nos comunica-
mos com muito mais pessoas virtualmente do que face a face, numa evi-
dente confirmação de que já superamos as barreiras físicas sob o ponto de
vista da interação e convívio social.
Por essa razão, Floridi aventa que na sociedade da informação a exis-
tência passa a ser para além dos cinco sentidos, pois a interação interpes-
soal torna-se “correlata”, sincronizada (Tempo) e deslocalizada (espaço).
O mundo físico e o virtual passam a ser ambos componentes de uma

39 BUCKLAND, Michael. Information and society. Cambridge: The MIT Press, 2017, p.
49
40 “As infovias resultam em uma nova ênfase no fluxo da informação (Castels 1996),
algo que leva para a radical revisão do tempo e espaço no que pertine às relações hu-
manas” WEBSTER, Frank. Theories of the information society. 3. ed. Londres:
Routledge, 2006, p. 18, trad. livre.
127
Felipe Cunha Nascimento
mesma realidade interacional41-42.
Antes do advento das tecnologias computacionais tínhamos acesso, ou
estávamos submetidos, a uma quantidade significativamente menor de
informação. Por outro lado, tínhamos muito mais tempo para refletir criti-
camente sobre aquilo que nos chegava, o que se tornou mais difícil nos
dias de hoje, com a informação sendo produzida e reproduzida exponenci-
almente.
A digitalização, está a permitir a desmaterialização e o acúmulo dos da-
dos em meios virtuais (bits) numa escala jamais experimentada pela hu-
manidade. Para ilustrar, em 2003, pesquisadores da Berkeley's School of
Information Management and Systems estimaram que a humanidade acu-
mulou aproximadamente 12 exabytes43 44 de dados no curso da sua histó-
ria até a criação dos computadores. Por outro lado, somente no ano de
2012, segundo a mesma pesquisa, o armazenamento de informações em
mídias magnéticas (discos rígidos, CDs, DVDs etc) produziu mais de cin-

41 “Alguém que faz a clara distinção entre amigo virtual e amigo real provavelmente
pertence a um grupo mais velho. Falar e sentir que alguém real é somente um ser de
carne e osso que está na minha frente, e que isso é muito superior a alguém que só
existe no Instagram, é juízo emitido por uma pessoa que nasceu e foi criado sem a
tecnologia. KARNAL, Leandro. O Dilema do Porco-Espinho: como encarar a solidão.
São Paulo: Planeta, 2018, p. 34.
42 Muitas vezes no mundo virtual nossa figura é chamada de “avatar”, palavra de ori-
gem Sânscrita que significa reencarnação; transformação ou transfiguração, numa
alusão a que possuímos vida em uma outra dimensão, a dimensão virtual.
43 A menor unidade de medida para medir-se dados é o bit. Um único bi” pode ter o
valor de 0 ou 1. 1 byte equivale a 8 bits; kilobyte equivale a 1000¹ bytes; 1 megagyte
equivale a 1000² bytes; 1 gigabyte equivale a 1000³ bytes; 1 terabyte equivale a
10004 bytes; 1 petabyte equivale a 10005 bytes; 1 exabyte equivale a 10006 “bytes”.
Disponível em: https://techterms.com/help/data_storage_units_of_measurement.
Acesso em: 11 abr. 2020.
44 “(...) gravado num vídeo de qualidade DVD um “exabyte” de dados, dispenderia 50
mil anos para ser completamente reproduzido”. In: FLORIDI, Luciano. Information:
a very short introduction. Oxford: Oxford University Press, 2010, p. 11, trad. livre.
128
Já vivemos na sociedade da informação?
co exabytes, o equivalente a quase 800 megabytes (MB) de dados por pes-
soa.45 Atualmente, sequer se prescinde de meios físicos de armazenamento
(CDs, pendrives, HDs) graças ao armazenamento em nuvem nos provedo-
res de hospedagem, que permitem o armazenamento de dados em servido-
res de acesso remoto46.
Por consequência, quantidade de informação disponível atualmente
aumentou exponencialmente, a quantidade de músicas, livros, filmes, in-
formações educacionais disponíveis.
Para Jean Baudrillard, tanta informação acaba por gerar uma falta de
significação da própria vida, um “colapso de significados”, nas palavras do
escritor. Nas sociedades moderna, “há mais e mais informação e cada vez
menos significado”47 esse volume absurdo de informação, de certa forma
acaba por desnortear os cidadãos, pois os fatos e dados vêm de tantas dire-
ções e são tão diversos, mutáveis e contraditórios que o seu poder de sim-
bolização se esmaece, gerando uma crise de confiabilidade, de maneira que
a sociedade da informação está plena de informações sem significado.
A cobertura midiática da Guerra do Golfo, na década de 90 ilustra bem
esse contexto. Durante aquele conflito, as emissoras de televisão realiza-
ram a cobertura, de forma fracionada em “capítulos” diários, como um
folhetim, com imagens noturnas dos bombardeios americanos, semelhan-
tes a um videogame, impossibilitando ao receptor da informação refletir
de forma crítica sobre os motivos a guerra em si.48

45 FLORIDI, Luciano. Information: a very short introduction. Oxford: Oxford Universi-


ty Press, 2010, p. 11.
46 ARAÚJO, Marcelo Barreto de. Comércio Eletronico; Marco Civil da Internet. Direito
Digital. Rio de Janeiro: Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Tu-
rismo, 2017, p. 94.
47 WEBSTER, Frank. Theories of the information society. 3. ed. Londres: Routledge,
2006, p. 20
48 “A Guerra do Golfo serviu como um divisor de aguas nessa longa história. Pela pri-
meira vez, uma guerra era transmitida “ao vivo”, em tempo real, por uma rede de al-
129
Felipe Cunha Nascimento
Fenômeno mais recente, as “fake news” contribuem para desnortear a
população, espalhando rapidamente informações inverídicas sobre fatos
diversos, também através dos nossos equipamentos informacionais, con-
tribuindo em boa medida para “crise de significação” da vida, observada
por Baudrillard.
Apesar de tais fatores já serem bastantes para observadores como Flori-
di admitirem a chegada da sociedade da informação, outros, a exemplo de
Frank Webster são céticos e afirmam que na verdade, trata-se somente de
um sistema tecnológico, de uma ferramenta, que permite transmitir um
grande volume de informações, muito atualmente graças às redes digitais
as ISDN (Integrated Services Digital Network).

4. Considerações finais
A maioria dos teóricos discorre sobre a sociedade da informação no
momento presente, interrogando se de fato já existem sociedades que atin-
giram um patamar de diferenciação evolucional baseado na tecnologia
computacional.
Luciano Floridi49, por exemplo, se dá por convencido de que algumas
sociedades já podem ser assim consideradas a exemplo de Canadá, França,

cance planetário (a CNN Cable News Network, CNN), graças a um satélite retrans-
missor estrategicamente colocado em órbita polar estacionária. Também foi a pri-
meira vez que se utilizou, em larga escala, a técnica de transmissão de imagens digita-
lizadas (isto é, criadas por um processo de simulação). E - e outro fato inédito – a
grande personagem da guerra, ao contrário daquilo que, apenas em certa medida,
havia caracterizado a Guerra do Vietnã, nos anos 60, não foi o homem, os horrores,
ódios e esperanças provocados pela destruição, mas a tecnologia, as armas “inteligen-
tes”, as operações “cirúrgicas”. In. ARBEX JÚNIOR, José. Showrnalismo: a notícia
como espetáculo. São Paulo: Casa Amarela, 2001, p. 31.
49 FLORIDI, Luciano. Information: a very short introduction. Oxford: Oxford Universi-
ty Press, 2010, passim.
130
Já vivemos na sociedade da informação?
Alemanha, Itália, Japão, Reino Unido e Estados Unidos50, diante do fato de
a organização social daquelas nações, (economia, política, direito, traba-
lho, universidades, relações interpessoais em geral etc), encontrar-se direta
ou indiretamente amparada no uso intensivo dos meios computacionais
aliados às Tecnologias da Comunicação e Informação.
Outros, a exemplo de Frank Webster adotam postura mais cética e co-
medida, defendendo que os avanços informacionais, apesar de terem sido
assimilados pelas sociedades ditas “mais avançadas”, desde a década de
1960, ainda não resultaram em mudanças estruturais em nível social e
pessoal, mas tão-somente “informatizaram”51 a vida moderna. Referido
autor ainda admoesta que “não podemos confundir a indispensabilidade
do fenômeno”, a popularização dos meios tecnológicos informacionais,
com “a capacidade de definir uma ordem social.” 52
Mesmo para os que se alinham à conclusão de Webster, parece inegá-
vel, que a longo prazo, a sociedade da informação tornar-se-á o modelo
prevalecente, implicando numa inexorável mudança das estruturas sociais
do século passado, que já está em curso nesse primeiro quarto de século
XXI53.
O grande desafio que se impõe, quando se vislumbra esse futuro, dirá
respeito a fazer com que a tecnologia informacional, enquanto criação
humana54, seja algo que de fato sirva a promover o bem geral, irrestrito e

50 FLORIDI, Luciano. Information: a very short introduction. Oxford: Oxford Universi-


ty Press, 2010, p. 9.
51 WEBSTER, Frank. Theories of the information society. 3. ed. Londres: Routledge,
2006, p. 31.
52 WEBSTER, Frank. Theories of the information society. 3. ed. Londres: Routledge,
2006, p. 23.
53 SUSSKIND Daniel. Artificial intelligence and its impact in leadership. Bled: IEDC,
2018.
54 PASQUALE, Frank. The Black Box Society: the secret algorithms that control money
and information. Cambridge: Harvard University Press, 2015, p. 198.
131
Felipe Cunha Nascimento
de forma sustentável. Não se poderá perder noção de que é o Homem o
criador e também o destinatário da tecnologia. A regulação dessa nova
realidade é uma das metas dos Estados Sociais, que já começa a ser imple-
mentada por muitas nações nesse início de século55.
Desse modo, espera-se que a Sociedade da Informação espelhe nossos
valores sociais mais caros, mormente o livre desenvolvimento da persona-
lidade, a noção de equidade e de direitos humanos, e ainda, permita o
exercício da cidadania, a livre iniciativa56, o bem estar individual e coleti-
vo, seja no meio ambiente material ou digital, prestigiando-se sempre a
finalidade social das tecnologias, a serviço da humanidade.

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55 A exemplo do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965 de 2014) e da Lei Geral de Pro-
teção de Dados (Lei nº 13.709 de 2018), dentre outras leis já promulgadas no brasil.
56 MARTINS, Fernando Rodrigues. Sociedade da Informação e Promoção à Pessoa:
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__________________________________________________

134
CONCEITOS ESSENCIAIS SOBRE A
SOCIEDADE EM REDE

5
Rodrigo Gugliara
Bianca Camargo Fischer

1. Introdução
Desde o século XX, o uso da Internet e das redes de computadores pro-
grediu exponencialmente. O desenvolvimento de suas ferramentas, por
cientistas e profissionais de tecnologias da informação e telecomunicações,
conferiu automatizações, desintermediações e inovações em diversos seto-
res estruturais da sociedade como: econômicos, culturais, políticos, sociais,
entre outros. Além disso, uma das grandes inovações da utilização das
redes e da Internet foi o aparato de comunicação entre inúmeros indiví-
duos, de diversos locais do mundo e de forma instantânea, alterando a
percepção humana acerca de duas principais dimensões da matéria: o
tempo e o espaço.
Nesse contexto de aproximação de pessoas, em nível global, a rede tor-
nou-se um ambiente inovador e dinâmico. Com o advento da Internet,
nasceu uma nova forma de organização social: a sociedade em rede. Desde
a formação à sua expansão, foram incalculáveis as decorrências no plano
existencial: surgimento de novos comportamentos, relacionamentos, for-

135
Rodrigo Gugliara · Bianca Camargo Fischer
mas de mercado, tipos de consumo, dentre outras, que, atualmente, conti-
nuam surgindo e modificando-se, sendo possível fazer recortes destas para
reflexão, críticas e observações.
Nesse contexto, o presente estudo tem por finalidade abordar al-
guns breves conceitos intrinsecamente relacionados à sociedade em rede,
especialmente a partir da análise de obras de autores com diferentes con-
ceitos acerca do assunto como Manuel Castells na obra The Rise of
1 2
Network Society e Jan Van Dijk em The Network Society . Tais autores
foram adotados como base para o presente estudo, uma vez que figuram
como referencial teórico do tema. Van Dijk como pioneiro na percepção
das circunstâncias que ensejaram as modificações sociais na percepção da
chamada sociedade em rede e Castells como responsável por rever os con-
ceitos de Van Dijk, trazendo em seus estudos determinadas críticas e con-
trapontos a visão do seu precursor.
Na obra de Van Dijk o autor trata de inúmeros conceitos sociais que fo-
ram efetivamente modificados através da denominada sociedade em rede,
tais como cultura, economia, direito e outros. Com início em sucintos
apontamentos sobre o histórico do nascimento da internet, o presente
estudo abordará a política e a noção de tempo e espaço como elementos
sociais estruturais atingidos pela sociedade em rede e, em seguida, tratará
sucintamente sobre as substanciais mudanças causadas pela sociedade em
rede na economia, buscando sempre apontar o elo entre tais conceitos e a
realidade vivenciada atualmente por todos nós.

2. Breve contexto histórico acerca do surgimento da Internet


A priori, de forma geral, convenciona-se que as utilizações da Internet

1 CASTELLS, Manuel. The rise of the network society. The information age: economy,
society, and culture. 2. ed. Oxford/West Sussex: Wiley-Blackwell, 2010, v. 1.
2 VAN DIJK, Jan. The network society. 2. ed. Londres: Sage Publications, 2006.
136
Conceitos essenciais sobre a sociedade em rede
ocorreram no âmbito militar. Tal ferramenta fora útil às estratégias de
conquista de território e telecomunicações na corrida indireta armamen-
tista e espacial entre os Estados Unidos e a extinta União Soviética, duran-
te a Guerra Fria, em meados da década de 1960.
A Internet foi um instrumento de tática de guerra utilizada pela Defesa
Americana, que construiu uma rede de comunicação por meio de compu-
tadores, e cada um deles consistia em um “nó”3. A perda de um dos nós
não afetava o todo4, ou seja, ainda que inimigos bombardeassem um deles,
os outros continuariam em funcionamento, dando continuidade à comu-
nicação entre as bases militares e o departamento de pesquisas do governo
americano. A estratégia dos nós descentralizava a operação e reduzia o
risco inerente. Essa rede era intitulada como Advanced Research Projects
Agency (ARPANET)5, criada no Pentágono, e foi pioneira do que conhe-

3 MILLÁN, José Antônio. Breve Historia de la Internet: El fruto caliente de la guerra


fría. Protagonistas del Siglo XX. Coleccionable de El País, Espanha, n. 31, p. 1-5, no-
vembro 1999.
4 MILLÁN, José Antônio. Breve Historia de la Internet: El fruto caliente de la guerra
fría, p. 2, 1999. No trecho extraído da obra original, observa-se a explanação técnica
acerca do que representam os nós na rede da Internet, expressão que será utilizada
por outros autores contemporâneos, como Manuel Castells: “La solución era una red
compuesta por ordenadores en la que todos los nodos (o intersecciones) tuvieran la
misma importancia, de tal forma que la desaparición de uno de ellos no afectara al
tráfico: cada nodo de la red decidiría qué ruta seguirían los datos que llegaran a él. Por
último, los datos se dividirían en "paquetes", que podrían seguir distintas rutas, pero
que deberían reunirse en el punto de destino”.
5 SIMON, Imre. A ARPANET. Publicação no site do Instituto de Matemática de Esta-
tística da Universidade de São Paulo (USP). Disponível em
<https://www.ime.usp.br/~is/abc/abc/node20.html>, julho de 1997. “A idéia da
construção de uma rede de computadores que pudessem trocar informações surgiu
no “Advanced Research Projects Agency'”, ARPA, do Departamento de Defesa dos
EUA quando, em 1962, a Agência contratou J.C.R. Licklider [31, 32, 33] para liderar
as suas novas iniciativas através do “Information Processing Techniques” Office'', IP-
TO, da Agência. Um dos sonhos de Licklider era uma rede de computadores que
137
Rodrigo Gugliara · Bianca Camargo Fischer
cemos por um sistema de redes. A ARPANET cresceu exponencialmente,
sendo necessário substituir o protocolo de comutação de pacotes (unidade
de transferência de informação), chamado Network Control Protocol
(NCP)6 para os protocolos ITC/IP7, que são, atualmente, as bases técnicas
atuais de comunicação via Internet.
Contudo, esse foi apenas o início da utilização dessa tecnologia.
Por volta dos anos 60, institutos acadêmicos e de pesquisa, como o Massa-
chussetts Institute of Technology e a RAND Corporation8, começaram a
elaborar projetos para utilização de dados e transmissão em redes. O pri-
meiro “nó” aberto à população, em grande escala, iniciou-se com o lança-
mento do satélite Sputnik pela União Soviética, possibilitando a futura
transmissão, a nível global, da chegada de Neil Armstrong à lua, através de
uma rede que utilizou diversos meios: satélites, rádio, televisores, entre
outros.

permitisse o trabalho cooperativo em grupos, mesmo que fossem integrados por pes-
soas geograficamente distantes, além de permitir o compartilhamento de recursos es-
cassos, como, por exemplo o super-computador ILLIAC IV, em construção na Uni-
versidade de Illinois, com o patrocínio da própria ARPA”.
6 O Network Control Protocol foi o primeiro protocolo servidor a servidor da ARPA-
NET, que permitia a interligação dos centros de pesquisa e militares sem a necessi-
dade de um ponto central definido. Todavia, após a abertura da rede para utilização,
nas universidades, por exemplo, acabou restando inadequado, sendo forçosa a cria-
ção de um protocolo livre de inconsistências.
7 O protocolo TCP/IP é o principal protocolo utilizado hodiernamente para envio e
recebimento de dados na rede mundial de computadores. Após desenvolvido, obser-
vou-se que ele não apenas resolveu as inconsistências do protocolo anterior
(Network Control Protocol), mas permitiu uma expansão sem precedentes de comu-
nicação entre os computadores em rede.
8 A RAND Corporation é uma instituição sem fins lucrativos, atua como uma entidade
que desenvolve pesquisas e análises para o Departamento de Defesa dos Estados
Unidos no modelo “think tank”, que consistem em instituições e/ou grupos formado
por especialistas, que desenvolvem ideias e pesquisas, de natureza investigativa e re-
flexiva, acerca de diversos ramos estruturais da sociedade.
138
Conceitos essenciais sobre a sociedade em rede
O segundo “nó”, surgiu no Stanford Research Institute (SRI) pelo D.
Engelbart9, o precursor na criação de compartilhamento de informações
por texto, imagens e sons através do hipertexto, lido no meio digital, em
que havia interligações não apenas de máquinas, mas de pessoas e, sendo
assim, tornando possível a interação entre elas. Após, diversos outros pes-
quisadores e acadêmicos empenharam-se em criar mecanismos de com-
partilhamento de informações através da Internet visando o desenvolvi-
mento do mundo científico na rede.
Em 1983, há uma separação efetiva entre a utilização das redes em nível
militar, que passou de ARPANet para MILNET, e civil. Neste cenário,
surgiram novos servidores e domínios na Internet, ficando conhecido co-
mo “cyberspace”10, expressão criada por Willian Gibson.
Em 198511, surgiu uma das primeiras comunidades virtual de usuários,
a WELL (Whole Earth ‘Lectronic Link)12, criada pela revista Whole Earth
Review13, em que diversos usuários passaram a abordar interesses em co-
muns, como esportes, entretenimento, política, comércio, saúde e etc., em
fóruns e salas de bate-papo, ficando também, um banco de dados com
artigos sobre os temas discutidos à disposição para cada participante, e
conseguia-se visualizar os perfis de cada integrante e seus endereços ele-
trônicos.

9 MILLÁN, José Antônio. Breve Historia de la Internet: El fruto caliente de la guerra


fría., p. 2, novembro 1999.
10 MILLÁN, José Antônio. Breve Historia de la Internet: El fruto caliente de la guerra
fría., p. 2, novembro 1999. “En 1984 William Gibson novelaba el nuevo mundo y
acuñaba el término "ciberespacio"”.
11 WELL. About. What is the WELL? [S.I], [2018?]. Disponível em
https://well.com/about-2/. Acesso em 12/04/2020.
12 Traduzido do inglês para o português: O link “eletrônico” de toda a Terra, normal-
mente reduzido para The WELL, é uma das mais antigas comunidades virtuais em
operação contínua.
13 Traduzido do inglês para o português: Revista de Toda a Terra.
139
Rodrigo Gugliara · Bianca Camargo Fischer
Em 1989, as instituições já criavam suas próprias redes de comunica-
ção, como a NASA. O número de servidores, na rede mundial, já ultrapas-
sava os seis dígitos. Então, o físico e cientista da computação Tim Berners-
Lee, elabora um projeto de hipertexto compartilhado: o World Wide Web
(WWW) para interligar os cientistas e acadêmicos, com as bases de leitura
HTTP 14e HTML15, que fora lançado ao público em 1993, através do nave-
gador Mosaic16.
Com o avanço desmedido tecnológico da Internet, do acesso às redes
de comunicação e dados, as informações eram, naquele contexto, compar-
tilhadas por mais de um milhão de usuários. Com isso, surgiram as pri-
meiras discussões sobre a proteção de dados, no que diz respeito à liberda-
de de expressão e segurança, sendo criada em 1992, a Internet Society, que
desenvolveu a Electronic Frontier Foundation, com objetivo de proteger
ciberdireitos, por meio de encriptação de dados por protocolos, desenvol-
vendo um dos primeiros softwares de criptografia aberta: Pretty Good Pri-
vacy17.
Foi então, a partir da década de 90, que começou um crescimento de-

14 Hypertext Transfer Protocol, traduzido para o português: Protocolo de Transferência


de Hipertexto. Consiste num protocolo de comunicação que permite a transferência
de dados ent
15 HyperText Markup Language, traduzido para o português: Linguagem dre redes de
computadores, visualização e leitura de seu conteúdo, utilizado principalmente na
World Wide Web (internet). Uma das camadas do protocolo ITC/IP. Referida lin-
guagem é utilizada para construção e estruturação de páginas web. Hoje, não define a
necessariamente a aparência, visto que a formatação visual é feita via CSS, JavaScript,
entre outros.
16 MILLÁN, José Antônio. Breve Historia de la Internet: El fruto caliente de la guerra
fría, p. 3, 1999. “Con la extensión de los ordenadores personales y el lanzamiento del
primer navegador de la WWW popular, Mosaic, en 1993, ya había llegado el momento
de "surfear la Web" (la expresión se registró por primera vez ese mismo año).”
17 Software de criptografia que confere autenticação, bem como privacidade criptográ-
fica na comunicação de dados em rede.
140
Conceitos essenciais sobre a sociedade em rede
senfreado da rede, dando origem a um fenômeno conhecido como “bolha
da internet”18 ou “bolha das empresas ponto com”, que era uma represen-
tação da alta das ações das novas empresas de tecnologia da informação e
comunicação baseadas na Internet.
No Brasil, em 1989, foi lançada a Rede Nacional de Pesquisa (RNP)19,
pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, com o objetivo de implantar uma
infraestrutura com abrangência nacional para os serviços de internet, que
era restrito, até então, ao âmbito acadêmico20 e militar. A Fundação tam-
bém ficou encarregada da administração do domínio “.br” e da distribui-
ção dos números IP21 para o Brasil.
Nessa mesma década, surgiram alguns navegadores, como o Internet
Explorer, bem como, a empresa que é conhecida como o gigante buscador
da Internet: a Google LCC, por Larry Page e Sergey Brin22. Além disso,
surgiam novas empresas de e-commerce, movimentadoras do comércio de
eletrônicos, computação em nuvem, streaming digital e inteligência artifi-
cial, sendo a pioneira delas a Amazon.com Inc., fundada em 1994.
Os usuários começaram, então, a conectar-se intensamente, não apenas

18 DEMENTSHUK, Márcia, Pássaros voam em bando, p. 571, 2019. E-book.


19 DEMENTSHUK, Márcia, Pássaros voam em bando, p. 377, 2019. E-book: “O projeto
da Rede Nacional de Pesquisa foi lançado em setembro de 1989, durante o 22º Con-
gresso da Sucesu, realizado nos dias 18, 19 e 20, em São Paulo, o evento mais tradici-
onal em informática no Brasil, com feira de exposição, congresso, conferências e pai-
néis. Eram esperados cerca de 400 mil visitantes. O Secretário Especial de Ciência e
Tecnologia, Décio Leal Zagottis, fez o anúncio oficial da RNP durante uma sessão es-
pecial e o projeto era detalhado para quem chegasse ao estande da RNP na feira, com
demonstrações de conectividade em computadores”.
20 Dentre os recursos para a implantação da RNP e atividades afins estavam os do
CNPq e a Finep.
21 Internet Protocol, na língua portuguesa: Protocolo de Internet. Consiste num identi-
ficador numérico (como um endereço) atribuído a cada dispositivo conectado a uma
rede de computadores.
22 DEMENTSHUK, Márcia, Ibidem, p. 442, 2019.
141
Rodrigo Gugliara · Bianca Camargo Fischer
nas comunidades virtuais como a WELL e em sites de domínio WWW,
mas nas famosas redes sociais, sendo a primeira a surgir intitulada como
ClassMates.com, em 199523, que possibilitava reencontros entre ex-
estudantes. Com a chegada do século 2000, surgiram outras diversas redes
sociais, como MySpace, LinkedIn, Orkut, Facebook e Twitter, quase todas
utilizadas até hoje. A partir disso, foram desenvolvidas demais plataformas
que são amplamente utilizadas e exploradas com diversos fins sociais, co-
mo o Instagram e WhatsApp, chegando até os dias atuais, numa escala de
desenvolvimento e inovações enérgica.
Em uma metáfora, Van Dijk afirma que o avanço informacional, decor-
rente do desenvolvimento e expansão tecnológicos, é como estradas invi-
síveis. Segundo o referido autor “Essas estradas são de informação e co-
municação. Aparentemente elas são parte de uma realidade abstrata e pou-
co visível. Podemos vê-las como mais um cabo entrando em nossas ca-
sas”24 e conclui indicando que não estamos dependentes apenas cabos de
eletricidade, linhas de gás e encanamento de água, mas também das redes
de internet25.

3. A política e a noção de tempo e espaço na sociedade em rede


A sociedade pode ser considerada como um organismo que está sempre
em mutação. Desse modo, vivemos em uma sociedade que está sofrendo
severas modificações em sua estrutura desde os anos 60. Os autores Jan
Van Dijk e Manuel Castells em estudos muito à frente de sua época, já nos
anos 90, perceberam que a sociedade caminhava ao que foi denominado
de sociedade em rede.
As mudanças trazidas pela Internet não ocorreram apenas no âmbito

23 CASEIRITO, Marta Susana. Redes sociais de professores: Um estudo de caso. 2012. p.


31.
24 VAN DIJK, Jan. The network society. 2. ed. Londres: Sage Publications, 2006, p. 01.
25 Ibidem, p. 01.
142
Conceitos essenciais sobre a sociedade em rede
tecnológico, mas também impactaram substancialmente a estrutura da
sociedade. Primeiramente, observa-se que esta passou de industrial para
informacional26 em meados da década de 90, experimentando novas ten-
dências de comércio, mercado e comunicação e por meio de vasta utiliza-
ção de dados e informações, foram disseminadas novas formas de liberda-
de de expressão, cultura, e acesso ao conhecimento. A informação e o co-
nhecimento tornaram-se pilares fundamentais das dinâmicas sociais.
Segundo Faleiros Júnior27, o autor Jan Van Dijk denomina a informa-
ção da nova sociedade em rede como a substância social contemporânea e
descreve que ela mesmo amolda-se dentro das estruturas organizacionais,
gerando impactos nos níveis individuais, organizacionais e sociais, bem
como modificando a compreensão acerca do tempo, espaço e privacidade.
Manuel Castells, escritor e sociólogo espanhol, desenvolveu o conceito
de sociedade em rede após o precursor Jan Van Dijk, e definiu a sociedade
em rede como uma nova arquitetura dos indivíduos relacionando-se em
uma realidade virtual. Nessa rede, cada usuário seria como um nó numa
estrutura aberta multidirecional e multidimensional28. Para ele, as redes de

26 CASTELLS, Manuel. The rise of the network society. The information age: economy,
society, and culture, p. 119, 2010. “It is informal because the productivity and compet-
itiveness of units or agents in this economy (be it firms, regions, or nations) fundamen-
tally depend upon their capacity to generate, process, and apply efficiently knowledge-
based information”.
27 VAN DIJK, Jan apud FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. The Network Society,
de Jan van Dijk. Revista Faculdade de Direito da UFU, Uberlândia, v. 47, n. 1,
jan./jun. 2019, p. 406-414, p. 408.
28 CASTELLS, Manuel. The rise of the network society. The information age: economy,
society, and culture, p. 566, 2010. Traduzido para o português: “o que é um nó de-
pende do tipo de redes concretas (...). São mercados de bolsas de valores e suas cen-
trais de serviços auxiliares avançados na rede dos fluxos financeiros globais. São con-
selhos nacionais de ministros e comissários europeus da rede política que governa a
União Européia. São campos de coca e papoula, laboratórios clandestinos, pistas de
aterrisagem secretas, gangues de rua e instituições financeiras para lavagem de di-
143
Rodrigo Gugliara · Bianca Camargo Fischer
comunicação entre os indivíduos sempre existiram, mas com a tecnologia,
foi possível instrumentalizá-la pelo computador, celular e demais apare-
lhos conectados à Internet e como resultado, despareceram diversas bar-
reiras de comunicação entre diversos locais, aproximando assim diversas
culturas e sociedades, relativizando as barreiras geográficas.
Atualmente, após aproximadamente 30 anos da publicação do primeiro
estudo de Van Dijk, podemos perceber na sociedade diversas circunstân-
cias já apontadas por ele. Uma das mudanças sociais na sociedade em rede
informatizada foi a integração entre diversas comunidades para debates
sobre política, cidadania e participação social, não sendo mais restrito
apenas aos grupos sociais detentores de poder econômico, isto é, cada vez
a informação passa a ser mais democrática. Frise-se que ainda existem
países em desvantagem econômica em uma lenta inclusão de acesso à In-
ternet. Contudo, não raras vezes surgem novas iniciativas cujo principal
objetivo é fomentar o acesso à internet, como ocorre no projeto Starlink29.
Mesmo com a existência de diversos obstáculos, podemos verificar que
diversos grupos têm se organizado para reivindicar direitos sociais, reu-
nindo adeptos através da rede. Um exemplo foi a organização do movi-
mento Zapatista, através da rede, constituído por diversos cidadãos do
México, de raízes indígenas30. Em que pese ter surgido em meados de
1910, no final no final da década de 90, durante a emersão da Internet, o

nheiro na rede de tráfico de drogas que invade as economias, sociedades e Estados do


mundo inteiro. São sistemas de televisão, estúdios de entretenimento, meios de com-
putação gráfica, equipes para cobertura jornalística e equipamentos móveis gerando,
transmitindo e recebendo sinais na rede global da nova mídia no âmago da expressão
cultural e da opinião pública, na era da informação”.
29 Starlink Mission é um ambicioso projeto da empresa SpaceX, comandado pelo em-
presário Elon Musk, que consiste em colocar em órbita uma constelação de satélites
que fornecerão banda larga até as localidades mais distantes do planeta.
30 CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. Tradução: Klauss Brandini Gerhardt.
v.2, p. 103.
144
Conceitos essenciais sobre a sociedade em rede
grupo ganhou nova roupagem e força, lutando contra a marginalização e
pelo rompimento a estrutura tradicional política. Os seus integrantes utili-
zaram a Internet para coordenar seus eventos, por meio de websites e ser-
vidores de rede.
Experimentou-se também, o uso da Internet para organização social e
política no território brasileiro, em 2013, conhecida como Jornadas de
Julho. Inicialmente, os cidadãos organizaram-se para protestar contra o
aumento dos transportes público, contudo, o movimento ganhou maiores
proporções e diferentes pautas e vertentes ideológicas. Foi arquitetada uma
grande mobilização social através da Internet, com o uso de celulares e
aparatos tecnológicos às mãos dos brasileiros.
Tais acontecimentos históricos deixaram um legado, de que a sociedade
tem a força de organizar-se politicamente e que movimentos sociais po-
dem unir forças e adeptos através da Internet. Diante de tantas mudanças
sociais, observa-se que diversas pessoas, de suas casas, trabalhos, escolas,
faculdades e inúmeros lugares, se organizam e têm acesso às informações
em tempos diferentes. Surge, então um questionamento: como se define o
tempo e o espaço na sociedade em rede?
Castells utiliza os termos timeless time e space of flows31 para exemplifi-
car tais conceitos. No primeiro caso, pare ele, há uma desordenação de
tempo na interação dos usuários, sendo a percepção entre os indivíduos
diferente de uma conversa pessoalmente. Sobre o espaço, observou que é
possível ao indivíduo participar de vários lugares e realizar atos simultâ-

31 Traduzidos para a língua portuguesa: tempo intertemporal e espaço de fluxos. CAS-


TELLS, Manuel. The rise of the network society. The information age: economy, so-
ciety, and culture, p. 232, 2010. Castells, no capítulo 6 de sua obra “a sociedade em
rede”, afirma que o espaço e o tempo são as principais dimensões materiais da vida
humana. Contudo, em seu estudo, convida o leitor a refletir que as formas sociais de
tempo e espaço não mais limitam-se às percepções obtidas até então, visto a ocorrên-
cia de transformações na estrutura histórica atual, por meio às tecnologias de infor-
mação e comunicações.
145
Rodrigo Gugliara · Bianca Camargo Fischer
neos, verbi gratia: pesquisar na Internet, ouvir podcasts e atualizar o Face-
book, além das plataformas de interação entre pessoas em diversos locais,
como o Skype e Zoom, em tempo real.
Cumpre mencionar que a sociedade em rede organizada na Internet
experimentou uma nova dinâmica de relação interpessoal. As ferramentas
tecnológicas aceleraram a obtenção de informações e comunicações entre
os indivíduos, possibilitando o surgimento de novos movimentos ideoló-
gicos e culturais. Foram experimentadas novas formas de exercer a cida-
dania, fortificando-se a democracia. Ademais, foram otimizadas tarefas
cotidianas, diminuindo-se o tempo e espaço para comunicações, reuniões,
acesso ao entretenimento, às notícias, aos estudos, entre outras facilidades.
Por outro lado, também se observa que em uma conversa, seja pessoal
ou profissional, a tecnologia também possibilitou aos interlocutores maio-
res chances de reflexão durante a comunicação, uma vez que ao passo que
em uma conversa pessoal a resposta costuma ser imediata, a tecnologia nos
concede um maior tempo entre o recebimento de uma mensagem e a sua
resposta. Assim, tanto a maior velocidade na comunicação, como a sua
realização com maior tranquilidade são características importantes das
alterações sociais acarretadas pela tecnologia.
Inegáveis são os benefícios ferramentais desta nova dinâmica, todavia,
para além das benesses, outros autores levantaram contrapontos no que
diz respeito à fragilidade dos vínculos sociais estabelecidos na sociedade
em rede, discutindo sobre a maleabilidade das linhas de interconexão esta-
belecidas entre os nós (usuários).
O sociólogo, Zygmunt Bauman, foi um dos autores a contrapor a visão
otimista da sociedade em rede de Manuel Castells. Para Bauman, as intera-
ções sociais estabelecidas na sociedade em rede tornaram-se, em suma,
líquidas, frágeis e voláteis32. Nela os sujeitos sentem-se “livres” para toma-

32 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 13-
14.
146
Conceitos essenciais sobre a sociedade em rede
das de atitudes, numa toada de inconstância e incerteza, repleta de falta
dos pontos de referência socialmente estabelecidos.
Bauman cita, em uma de suas afirmativas, como a Internet e as redes
influíram na desconstrução das tradições sociais, ou seja, antes o processo
de aprendizagem baseava-se na imitação passada de pais para filhos, após a
Internet, o acesso à diferentes culturas, informações e referências tornou-
se colossal e a formação de identidade dos indivíduos volátil e indefinida,
não sendo possível presumir as consequências psicossociais deste fato. Em
sua obra Modernidade Líquida, expõe tal linha de pensamento, vejamos:
São esses padrões, códigos e regras a que podíamos nos conformar, que
podíamos selecionar como pontos estáveis de orientação e pelos quais po-
díamos nos deixar depois guiar, que estão cada vez mais em falta. (...) Quer
dizer que estamos passando de uma era de 'grupos de referência' prede-
terminados a uma outra de 'comparação universal'33.
Ainda que com posições distintas a partir das obras de cada um
dos autores, não se questiona que a sociedade em rede está em constante
modificação em relação à política, cabendo a cada um analisar as modifi-
cações e concluir pela maior existência de benefícios ou malefícios.

4. As mudanças sistemáticas na economia com a sociedade em rede


O sociólogo espanhol Manuel Castells trabalhou o conceito econômico
dentro da sociedade em rede, em sua obra The Rise of Network Society,
obra da trilogia The Information Age: Economy, Society and Culture, du-
rante o final da década de 90, no auge do desenvolvimento das tecnologias

33 Ibidem, p. 229. “Sua natureza “explosiva” combina bem com as identidades da era
moderna líquida: de modo semelhante a tais identidades, as comunidades em ques-
tão tendem a ser voláteis, transitórias e voltadas ao “aspecto único” ou “propósito
único”. Sua duração é curta, embora cheia de som e fúria. Extraem poder não de sua
possível duração mas, paradoxalmente, de sua precariedade e de seu futuro incerto,
da vigilância e investimento emocional que sua frágil existência demanda a gritos”.
147
Rodrigo Gugliara · Bianca Camargo Fischer
de informação e telecomunicação, as denominadas TICs34.
A introdução das TICs na estrutura socioeconômica ocasionou diversas
mudanças, uma delas foi a reestruturação empresarial em busca de dimi-
nuição dos gastos com produção e maiores lucratividades, além de utiliza-
ção de ferramentas de informática para o armazenar dados, promoção de
automação de processos, bem como uma nova estruturação de sistemas de
pagamentos e de gestão de recursos humanos, entre outras inúmeras faci-
lidades.
A priori, o referido autor afirma que as utilizações das TICs instaura-
ram uma nova forma de capitalismo: o informacional, diferindo-o do su-
perado capitalismo industrial.35 Antes o foco empresarial era concentrado
especialmente na alta produção industrial. Na era informacional, interes-
sa-se em utilizar meios de produção eficientes, utilizando tecnologias para
aumento dos lucros e diminuição do tempo. Assim, a geração de riqueza
ganhou uma nova definição, fortalecendo o mercado de tecnologia de in-
formações e comunicações.36
Neste contexto, as empresas precisaram de uma reformulação orga-
nizacional-administrativa para acompanhar as mudanças de geração de
riqueza, aperfeiçoando seus negócios com as TICs e incluindo gastos com

34 TICs: Tecnologia da Informação e Comunicação. Um conjunto de recursos tecnoló-


gicos integrados entre si, que proporcionam, a automação e interligação dos proces-
sos de negócios, indústrias, pesquisa científica e de ensino, aprendizagem, entreteni-
mento e diversos ramos por meio das funções de hardware, software e telecomunica-
ções.
35 CASTELLS, Manuel. The rise of the network society. The information age: economy,
society, and culture, p. 119, 2010. Traduzido para a língua portuguesa: “uma nova
economia surgiu em escala global no último quartel do século XX. Chamo-a de in-
formacional, global e em rede para identificar as suas características”.
36 CASTELLS, Manuel. Ibidem, p. 136. Traduzido para a língua portuguesa: “Assim, as
empresas estarão motivadas não pela produtividade, e sim pela lucratividade e pelo
aumento do valor de suas ações, para os quais a produtividade e a tecnologia podem
ser meios importantes”.
148
Conceitos essenciais sobre a sociedade em rede
softwares, que passaram a contabilizar como um índice de PIB37 de inves-
timento das empresas.
Diversos ramos industriais e empresariais mudaram seus processos in-
ternos, como a indústria química, em que a tecnologia potencializou os
meios de produção, sendo um fator decisivo para a sua adequação no novo
sistema econômico. Decorrente dessa adequação a economia real está cada
vez mais dependente da tecnologia, tanto que “quase todas empresas no
mundo desenvolvido se tornaram dependentes de redes de telefones e
computadores. Quando elas caem as organizações simplesmente param”38,
como ocorreu algumas vezes quando houve a suspensão judicial de funci-
onamento da plataforma de mensagens instantâneas Whatsapp, que ocasi-
onou paralisação parcial de algumas atividades econômicas.
Assim, por inúmeros fatores, Castells atribuiu o aumento de lucros e a
produtividade das empresas ao uso das TICs, denominando que tal acon-
tecimento fora um grande avanço no mercado. Entretanto, há de se reco-
nhecer que durante a primeira fase dessa nova dinâmica do capitalismo
informacional, diversos setores e/ou segmentos empresariais intermediá-
rios sucumbiram, notadamente os desempenhados com mão-de-obra
pouco especializada, trazendo reflexos sociais, culturais e institucionais.
O trabalho de mão-de-obra especializada começou a ser requisitado
globalmente, destacando-se profissionais que dominavam o uso de tecno-
logia de informação e comunicação, como analistas financeiros, progra-
madores, biotecnologistas, etc., tendo estes profissionais grandes oportu-
nidades de ingresso no mercado, em razão do alto conhecimento técnico.
Além disso, a manipulação de informações digitais e influência social
nas mídias adquiriram um grande valor agregado. Desta feita, artistas,
projetistas, atores e astros do esporte tiveram ascensão profissional e fi-

37 Produto Interno Bruto: representa a soma dos bens e serviços finais produzidos
numa determinada região, durante um período determinado.
38 VAN DIJK, Jan. Ob. Cit., p. 01.
149
Rodrigo Gugliara · Bianca Camargo Fischer
nanceira, pelo impacto que causam na publicidade empresarial, alavan-
cando o consumo de seus produtos e serviços. Por outro lado, com perda
dos postos laborativos da mão-de-obra menos especializada, aumentaram
os índices de trabalho informal e desemprego, culminando em consequên-
cias jurídico-sociais não tão positivas.
Essa nova dinâmica de utilização das TICs não ficou restrita às empre-
sas, os Estados observaram que as tecnologias eram imprescindíveis à ad-
ministração e gestão pública e um dos exemplos do que fizeram foi criar
mecanismos na rede para responder às demandas de serviços públicos de
forma mais eficiente e eficaz, bem como implementação de transparência e
prestação de contas à sociedade e novos espaços de participação no fazer
público, através de softwares de automação voltados a melhorar o fluxo de
informação entre Estado e sociedade civil. Como ocorreu no setor privado,
os países que não se adequaram às novas dinâmicas tecnológicas sofreram
isolamento no comércio internacional.
De forma generalizada, os setores públicos e privados implementa-
ram as TICs em suas gestões, dessa forma, como definido por Castells,
surgiu uma nova Economia Global, por volta de 1990 e, com ela, as mu-
danças alcançaram o mercado. Castells destacou cinco delas39: desregula-
mentação dos mercados financeiros, criação de infraestrutura tecnológi-
cas, novos produtos financeiros (por exemplo, os bitcoins40), integração
dos mercados financeiros e formas e avaliação de mercado.
No cenário de investimentos, as transações eletrônicas diminuíram o
custo das operações em 50%41, enfraquecendo as empresas corretoras in-

39 CASTELLS, Manuel. The rise of the network society. The information age: economy,
society, and culture, p. 144-145, 2010.
40 Primeiras criptomoedas, moedas virtuais ou dinheiro eletrônico, utilizadas como
meio de troca, criada pelo pseudônimo Satoshi Nakamoto. As transações feitas com
elas ficam registradas no "blockchain", uma espécie de banco de dados descentraliza-
do que usa criptografia para controlar transações ponto-a-ponto.
41 CASTELLS, Manuel. Ibidem, p. 196, 2010. Traduzido para o português: “por que é
150
Conceitos essenciais sobre a sociedade em rede
termediadoras e atraindo investidores que tinham fáceis e rápidas infor-
mações para seus investimentos online. Assim, com o enfraquecimento
dos intermediadores, as empresas de e-commerce traduziram as mudanças
da Economia Global no que diz respeito à desregulamentação e desinter-
mediação, assim, nomes como Amazon.com, Inc., uma das pioneiras no
ramo neste ramo, tornaram-se alvo de interesse dos investidores.
Pontuamos, no entanto, que a redução da relevância de intermediação
é relativa. Isso, pois na realidade hodierna vemos uma revolução no mer-
cado de intermediação. Ao mesmo tempo que os players da intermediação
clássica efetivamente têm sua participação reduzida no mercado, atual-
mente novas atividades empresariais de intermediação ganham cada vez
mais relevância, como ocorre com plataformas digitais como Uber e Air-
bnb, que realizam a intermediação entre prestadores de serviços e consu-
midores através da internet.
O valor agregado das empresas não se restringem mais apenas na lucra-
tividade, mas na expectativa de aderência ao mercado, na aceitação de seus
serviços e produtos pela sociedade, por isso, os investidores passaram a
buscar por startups42 com ideias inovadoras com alta expectativa de adesão
no mercado e, nessa temática, voltamos a indicar a empresa Uber como
clássico exemplo disso, pois embora seja uma referência na sua área de
atuação, com grande aderência em diversos setores da sociedade, é uma
empresa que apresentou enormes prejuízos em diversos momentos da
história43.

importante a tecnologia das transações? Qual é sua repercussão no setor financeiro?


Reduz os custos das transações (até 50% em fins da década de 1990 no EUA), atrain-
do assim uma base muito mais ampla de investidores, e reduzindo os custos do co-
mércio ativo”.
42 Empresas jovens em um cenário soluções a serem desenvolvidas, as empresas star-
tups utilizam-se de inovação para diferenciar-se do modelo tradicional de empresas.
43 É possível verificar das informações contábeis extraídas do website de relações com
investidores que apenas em 2019 o prejuízo apresentado atingiu a monta de 8,5 bi-
151
Rodrigo Gugliara · Bianca Camargo Fischer

5. Considerações finais
Diante do exposto, é possível perceber a sociedade em rede traz impor-
tantes conceitos no que diz respeito às mudanças sociais, políticas, cultu-
rais e econômicas. Castells ressalta aspectos relevantes sobre os papeis que
os dados, informações e conhecimento desempenham na sociedade em
rede, através da Internet, sendo o elemento principal das inovações mer-
cadológicas, econômicas e financeiras. A nova Economia Global, presente
no capitalismo informacional, impulsionou a concorrência no mercado,
desregulamentou o comércio e diminuiu a presença de intermediadores
nos negócios.
Nesse novo cenário houve notável aumento de produtividade e redução
dos custos de produção empresariais com instrumentos de trabalho avan-
çados, com a inclusão das TICs e maior geração de valor em novas empre-
sas, como startups. Outrossim, importante foi também a análise de Bau-
man, sobre os vínculos gerados na sociedade em rede, formação de perso-
nalidade dos indivíduos mediante um grande acesso a diversas informa-
ções.
Por fim, não menos importante, é imperioso ressaltar que junto ao no-
vo capitalismo informacional, à nova Economia Global e à formação da
sociedade em rede, também surgiram outras desigualdades, como supra-
mencionado, no que diz respeito ao surgimento do mercado informacio-
nal, perda de postos de trabalho, dificuldade de inclusão na Economia nos
países subdesenvolvidos, além das falhas e riscos na transmissão de dados
e informações. A fluidez e imaterialidade dos dados adquiriram grande
valor econômico por seu conteúdo e valor agregado, e ataques cibernéticos
trazem inseguranças às empresas, governos e sociedade. Por isso, atual-
mente discute-se sobre a proteção de dados no âmbito público e privado.

lhões de dólares.
152
Conceitos essenciais sobre a sociedade em rede
Os principais conceitos tratados no presente estudo, embora identifica-
dos ainda em 1991 por Jan Van Dijk, são de grande relevância até os dias
de hoje e, por mais surpreendente que pareça, se mostram mais atuais do
que inúmeros estudos produzidos recentemente por diversos outros auto-
res. Mostra-se essencial, portanto, o conhecimento dos conceitos cunha-
dos por tais autores como ferramenta para melhor entendimento da socie-
dade atual.

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135-154.
__________________________________________________

154
A INFORMAÇÃO E A COMPREENSÃO DO
“EU” NA ERA DIGITAL: UM ENSAIO A
PARTIR DOS ESTUDOS DE LUCIANO
FLORIDI

6
Pietra Daneluzzi Quinelato
Yolanda Corrêa Rosa

1. Introdução
Dificilmente haverá oposição quando dito que a “sociedade da informa-
ção” é uma das maiores interlocuções da modernidade no século XXI, vez
que vivemos em um século em que a quantidade informações trocadas por
segundos cresce de maneira exponencial, com destaque ao rápido desen-
volvimento dos meios de comunicação. Inteligências Artificiais, Tecnolo-
gias da Informação e Comunicação (TICs) transformam a realidade do
mundo físico e virtual através de aceleradas mudanças, impactando dire-
tamente na construção do indivíduo, seja em sua personalidade ou na
forma de perceber o mundo.
Neste trabalho, adotamos o conceito de informação explorado pelo fi-
lósofo italiano Luciano Floridi, tratando-se da abstração feita pelo indiví-
duo a partir de determinado conjunto de dados. Essa informação depende-

155
Pietra Daneluzzi Quinelato · Yolanda Corrêa Rosa
rá da maturidade do sujeito que a abstrai, do seu prévio conhecimento e do
contexto em que se insere. Já os dados serão sempre corretos e verídicos.
Diante disso, várias áreas de ciência se esforçaram para definir o conceito
da informação, mas foi através da Filosofia da Informação que se compre-
endeu que tal elemento depende dos avanços epistemológicos do indiví-
duo que o analisa. Ou seja, a informação estará intrinsicamente ligada com
o meio e dependerá de algumas variáveis que podem alterar a realidade
dos dados que a fundamentaram.
Nossos dados pessoais são valiosos para empresas que, principalmente
por meio de plataformas digitais, traçam as características de seus usuá-
rios. Esse tratamento dos dados resulta em uma informação, que poderá
aproximar-se da realidade ou não. Essa informação poderá divergir da
expectativa do indivíduo titular dos dados que foram coletados, ultrapas-
sando limites do seu consentimento e atingindo direitos fundamentais.
Posto isso, iremos traçar brevemente esclarecimentos sobre a transfor-
mação epistemológica na compreensão do “eu” e do mundo, dando desta-
que ao contexto atual em que os dados pessoais, além de emanarem do
próprio sujeito expressando suas características mais íntimas, são tratados
como informações para categorizar perfis de consumo e preferências indi-
viduais, como é feito por superplataformas. Essa nova dinâmica econômi-
ca pode extrapolar limites estabelecidos por regulações voltadas à proteção
aos dados pessoais, inferindo informações de forma prejudicial aos indiví-
duos sem que estes sequer saibam.
Diante dos impactos na compreensão do eu e do mundo no cenário
atual, em que plataformas como o Facebook possuem bases de dados soci-
ológicos enormes, a busca de explicações do fenômeno na filosofia e ética
se mostram essenciais. Com isso, poderemos lidar melhor com as novas
possibilidades, restrições e desafios trazidos pelo desenvolvimento expo-
nencial das tecnologias digitais, o que deve ser feito em paralelo com o
desenvolvimento de uma ética relacionada ao indivíduo.

156
A informação e a compreensão do “eu” na era digital

2. Considerações sobre a informação na compreensão do “eu”


O filósofo italiano Luciano Floridi, grande expoente da Filosofia da In-
formação, em 2011 já falava sobre a “Quarta Revolução”1 no texto intitu-
lado “The Philosophy of Information”, publicado pela Universidade de
Oxford, por meio da qual descreve a atual sociedade da informação, em
que as compreensões do “eu” e do “mundo” se alteram pelo contexto in-
formacional. Com o desenrolar dessa “revolução da informação”, por
meio de uma rede interligada de informações, redefinimos nossa identida-
de pessoal e a forma de ver o mundo ao nosso redor, impactando, portan-
to, em nossa autocompreensão.
Segundo os estudos de Floridi2, o corpo, suas funções, atividades cogni-
tivas e a consciência, nomeados de “três membranas”, são inextricavel-
mente misturados para dar origem a um “eu” e a sua identidade pessoal.
Floridi3 elucida que qualquer tecnologia que afete as chamadas três mem-
branas deve ser considerada tecnologia ligada ao “eu” e, por esse motivo,
considera que as TICs são as tecnologias mais poderosas às quais o eu já
foi exposto, induzindo modificações radicais dos contextos, aprimorando
a membrana corporal, fortalecendo a membrana cognitiva e estendendo a
membrana da consciência.
Para tanto, seria necessário definir o conceito de dados e informação, o
que não é uma tarefa fácil, muito menos no que se relaciona à formação
das identidades pessoais, como já constatou FLORIDI em 2002 no seu
artigo “What is the Philosophy of Information?”, elencando dezoito ques-

1 FLORIDI elucida que as primeiras revoluções são a de Copérnico, Darwin e Freud.


FLORIDI, Luciano. Information ethics: on the theoretical foundations of computer
ethics. Ethics and Information Technology, v. 1, n. 1, 1999. p. 4.
2 Ibid, p. 4
3 FLORIDI, Luciano. Information ethics: on the theoretical foundations of computer
ethics. Ethics and Information Technology, v. 1, n. 1, 1999, p. 12-16.
157
Pietra Daneluzzi Quinelato · Yolanda Corrêa Rosa
tões4 provenientes do tema. Podemos aproximar a busca histórica para tal
conceito às explicações informacionais acerca do mundo e questionamen-
tos levantados pela sociedade de cunho mitológico e explicações frágeis.
Posteriormente, houve aperfeiçoamento da elucidação da informação por
influência do pensamento aristotélico5 na Grécia no século V a. C, assim,
adequando-o à mudança da forma de pensar, agir e observar a realidade.
Desde aquela época, a organização científica vem se estruturando ampara-
da na busca de novas maneiras a fim da informação esteja atingível para
todos. No campo investigativo, ao longo do século XX, diversos âmbitos
da ciência e da tecnologia referendaram suas teorizações reconhecendo um
componente talvez virtual, mas extremamente funcional, denominado
informação, porém, sem o estudo da sua ontologia a fundo5.

4 Luciano Floridi elenca as seguintes perguntas no artigo “What is the Philosophy of


Information” publicado em 2002: a) O que é informação? b) Quais são as dinâmicas
de informação? c) É possível existir uma grande teoria unificada para os diversos
contextos de informações possíveis? d) Como os dados podem adquirir o seu signifi-
cado? e) Como os dados podem adquirir o seu valor de verdade? f) Informação pode
explicar a verdade? g) Informação pode explicar o que significa? h) Pelos aparatos
cognitivos, têm-se satisfatoriamente uma análise dos processamentos de informações
em algum nível de abstração? i) A inteligência natural (no âmbito Racionalista e Em-
pirista) pode satisfatoriamente analisar o processamento de informações em algum
nível de abstração? j) Analisar a informação sob a perspectiva das ciências naturais
acarreta em uma compreensão satisfatória? k) Pode uma abordagem informativa re-
solver o problema mente-corpo? l) Como a informação pode ser avaliada? Se a in-
formação não pode ser transcendida? m) Poderia epistemologia ser baseada em uma
teoria de informação? n) A ciência é redutível a modelagem de informações? o) Qual
é o status ontológico da informação? p) A informação pode ser um fruto natural do
meio? q) Pode ser a informação a natureza da ciência? r) A ética computacional tem
um fundamento filosófico informacional? FLORIDI, Luciano. What is the Philoso-
phy of Information? Metaphilosophy. v. 33, n. 1/2, jan. 2002, pp. 123-145.
5 Entendemos que o estudo profundo da ontologia da informação foi feito por Floridi,
desenvolvido através da Filosofia da Informação. No século XX, apesar de reconhe-
cermos que a informação era um elemento presente e imprescindível para o desen-
volvimento social e tecnológico, não havia um aprofundamento doutrinário em suas
158
A informação e a compreensão do “eu” na era digital
Ainda que a informação detenha reconhecimento, diversas definições
limitadas a cada área de estudos nos concedeu a realização de atuações
convenientes para a humanidade, de forma que a informação desempe-
nhava um papel em cada aspecto do conhecimento. No entanto, se parar-
mos para refletir o que é ou o que carrega uma informação, somos toma-
dos por certa reticência. Percebemos que a informação existe, mas pode ser
virtual. Sua presença é real, embora não seja matéria nem energia. Essa
constatação, segundo o filósofo, exige mudanças epistemológicas. Se o
homem contemporâneo exibe familiaridade com a natureza efêmera da
informação e conquista uma capacidade de raciocinar sobre entidades que
não cabem no entendimento estanque até então praticado, nos torna-
mos capazes de compreender o que é a informação.
Apesar da dificuldade aparente, um dos caminhos apontados seria
aprender a pensar em termos de processo para penetrar nos desafios epis-
temológicos atuais, como a autocompreensão do “eu” e a questão dos per-
fis de consumo formados, a partir de informações pessoais, nas platafor-
mas digitais. Se sabemos que informação não pode ser classificada em ter-
mos de matéria e energia e do quanto fundamental é trabalhar com a in-
formação no mundo científico, tecnológico e comunicacional em que vi-
vemos, estamos desafiados a inventar uma metodologia que adicione fide-
dignidade a essa relação e nos permita utilizar ao máximo o mundo de
possibilidades que esse conhecimento nos oferece.
Essa metodologia deve, a priori, reconhecer que a humanidade percorre
uma trajetória epistemológica que amadurece sua capacidade de entendi-
mento. Segundo Floridi6, o homem tem uma espécie de “modelagem” com
o mundo que o cerca, que é a construção de informação a partir de um
dado do ambiente. O dado, constituiria o patamar menos dotado de signi-

consequências na formação do “eu”, em uma realidade factual.


6 FLORIDI, Luciano. The philosophy of information. Oxford: Oxford University Press,
2011. p. 52.
159
Pietra Daneluzzi Quinelato · Yolanda Corrêa Rosa
ficação7, ou seja, são “apenas códigos” e não são tão relevantes para a con-
dução de compreensão, pois podem ser qualquer característica de algum
objeto. No entanto, para Floridi8, surge a necessidade de conceituá-lo.
Assim, o dado é um termo bem formado e em um sentido lógico, significa-
tivo e verdadeiro. A característica do dado é ser uma verdade sobre o
mundo, recebendo a tal modelagem pelo ser humano, retirando-o de seu
estado de natureza. Segundo o filósofo, ocorre uma semantização criando
informações a partir dos dados bem formados.
Floridi9 adota uma amplitude da natureza de dados, aceitando os natu-
rais, virtuais, culturais, materiais desde que possa ser distinguido e atribuí-
do um significado. Iremos encará-los, assim, com diferentes níveis de abs-
tração, dependendo da nossa maturidade, experiências e instrução cogniti-
va. A abstração aplicada ao dado será construtora de informação. Como
consequência, a base do conhecimento será a informação semântica cons-
truída com o dado10. Em outras palavras, o conhecimento será es-
sa sistemática analítica que aplicamos sobre a realidade, se adequando
aos níveis de abstração que nos implementamos sobre os eventos da natu-
reza. Em caso de a informação não se confirmar, significa que quando um
sujeito aplicou o nível de abstração ao dado, se equivocou. Se há um erro
detectado na informação que foi gerada, jamais será vindo do dado, pois
dado é evidência.

7 SEMIDÃO, R. A. M. Dados, Informação e Conhecimento enquanto elementos de


compreensão do universo conceitual da Ciência da Informação: contribuições teóri-
cas. Marília, 2014. 198 f. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em
Ciência da Informação - Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual
Paulista – UNESP, Marília, 2014, p. 11.
8 FLORIDI, Luciano. The philosophy of information. Oxford: Oxford University Press,
2011, p. 82.
9 Ibid., p. 82.
10 Ibid., p. 82.
160
A informação e a compreensão do “eu” na era digital
Diante disso, em consonância aos ensinamentos de Floridi11,
se queremos compreender a diferença entre o certo e o errado, devemos
nos atentar à dinâmica natural da informação, classificada como algo que é
disseminado e adquirido a partir das abstrações dos dados.

3. A formação do “eu” na era digital


Passando-se para um contexto de globalização e interconexão global,
no artigo “The informational nature of personal identity. Minds & Machi-
nes”, publicado por Floridi em 2011, é citado o neologismo “onlife”, em
que a barreira entre real e virtual não existe mais, não há mais diferença
entre "online" e "offline"12. As informações pessoais são processadas e cria-
das, os dados são transmitidos e compartilhados em larga escala na experi-
ência online, possibilitando que este e o mundo offline interajam e interfi-
ram um no outro constantemente.
As pessoas possuem perfis em redes sociais, blogs, participam de gru-
pos com interesses em comum, criando laços e desafetos. Percorrem a
internet criando traços digitais, buscando suas preferências. A vida online
se mostra suficiente a ponto de gerar consequências no mundo offline13.
Diante dessa dinâmica de interação social, surge a análise informacional da
natureza do self, em que o indivíduo busca se construir perante a sociedade
a partir da sua apresentação online. Essa identidade online influirá, como
consequência, na sua autocompreensão.
O self se vale deste imaginário digital, preocupando-se em construir uma
identidade virtual, por meio da qual busca compreender a sua própria

11 Ibid., p. 58
12 FLORIDI, Luciano. The informational nature of personal identity. Minds & Ma-
chines, Dordrecht, v. 21, 2011. p. 3.
13 As campanhas eleitorais da eleição presidencial do Brasil em 2018 foram amplamen-
te realizadas em redes sociais sendo que foi eleito o político que teve a campanha
principalmente online.
161
Pietra Daneluzzi Quinelato · Yolanda Corrêa Rosa
identidade pessoal (a questão quem sou para você ”, se torna “quem sou
eu on-line?”), em um ciclo de ajustes e modificações que conduz a um
equilíbrio entre o on e o off-line selves14
Aprofundando-se na observação de Floridi15, o self pode ser um sistema
informacional multiagente (informational multiagent system) de forma
que todas as informações criadas no âmbito virtual são construções de
processos interativos perante o outro, definindo também como nos posici-
onaremos para a sociedade. Com isso, se produz informação a partir dos
significados compartilhados nas relações entre os indivíduos e empresas,
em que houve troca de dados pessoais. Por outro lado, a formação do self a
partir da interação intersubjetiva no mundo online pode representar equi-
vocadamente um indivíduo e suas predileções16.
Com essa exuberância de dados pessoais disponíveis no ambiente vir-
tual, devido às experiências “onlife”, nascem questões ligadas à privacida-
de do indivíduo, como a necessidade de consentimento para o tratamento
de seus dados e a formação, por empresas, de perfis de consumo, financei-
ros ou de predileções pessoais equivocados, prejudicando o titular dos
dados pessoais.

4. A tutela do “eu” no ambiente virtual


Em poucas décadas, vivenciamos uma transformação exponencial nas
formas de comunicação e consumo, que, sob um de seus aspectos, pode ser
representada pela instantaneidade na transmissão de informações e na
ausência de fronteiras territoriais propiciadas com a internet, culminando
em uma nova dinâmica empresarial, conforme Peck elucida:

14 FLORIDI, Luciano. The informational nature of personal identity. Minds & Ma-
chines, Dordrecht, v. 21, 2011, p. 3-4.
15 Ibid., p. 3.
16 Ibid., 3-4.
162
A informação e a compreensão do “eu” na era digital
Há pouco mais de trinta anos, a Internet não passava de um projeto, o
termo “globalização” não havia sido cunhado e a transmissão de dados
por fibra óptica não existia. Informação era um item caro, pouco acessível
e centralizado. (...) Com as mudanças ocorridas desde então, ingressamos
na era do tempo real, do deslocamento virtual dos negócios, da quebra de
paradigma. Essa nova era traz transformações em vários segmentos da so-
ciedade – não apenas transformações tecnológicas, mas mudanças de con-
ceitos, métodos de trabalho e estruturas. 17
Na chamada Sociedade da Informação, os dados pessoais extrapolaram
os indivíduos e passaram a compor modelos de negócios como peças fun-
damentais. As empresas não apenas acessam, como também coletam in-
formações, armazenam, categorizam e possuem bases de dados voltadas a
diversas finalidades, que podem representar ativos valiosos. Doneda18 ex-
plica que a informação pessoal extrapola o próprio indivíduo:
As tecnologias da informação contribuíram para que a informação pessoal
se tornasse capaz de extrapolar a própria pessoa. A facilidade da sua coleta,
armazenamento e a sua utilidade para diversos fins tornou-a um bem em
si, ligado à pessoa, mas capaz de ser objetivado e tratado longe e mesmo a
despeito dela – não é por outro motivo que a informação pessoal é o ele-
mento fundamental em uma série de novos negócios típicos da Sociedade
da Informação. 19
Dados pessoais são tratados pelas empresas, transformados em infor-
mações, nas quais ficam fundamentados preferências dos indivíduos, perfis
socioeconômicos, formas de consumo, laços pessoais, entre inúmeras ou-
tras ferramentas que permitem que seja extraído algum valor monetário
no oferecimento de produtos e serviços a esse indivíduo.
Quando o usuário navega na internet, há uma série de cliques que revela

17 PECK PINHEIRO, Patricia. Direito Digital. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
18 DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2019, passim.
19 Ibid, p 35.
163
Pietra Daneluzzi Quinelato · Yolanda Corrêa Rosa
uma infinidade de informações sobre as suas predileções, possibilitando
que a abordagem publicitária as utilize para estar preciosamente harmoni-
zada com elas.20
Por meio dos perfis de consumo traçados a partir de informações abs-
traídas dos titulares dos dados, são oferecidos espaços publicitários perso-
nalizados para empresas interessadas em vender seus produtos ou serviços.
O Facebook, como a atual maior empresa com base de dados sociológicos,
é um grande exemplo de plataforma que utiliza essa forma de publicidade
personalizada: a partir de um perfil inferido com informações provenien-
tes dos dados pessoais de determinado sujeito, há o oferecimento de pro-
dutos ou serviços a ele relacionados. Ao consumidor, em troca, os benefí-
cios seriam a otimização do tempo na busca de seus interesses e o acesso
“gratuito” à rede social. Sabemos, no entanto, que esse acesso não é gratui-
to, mas monetizado a partir da coleta e tratamento dos dados pessoais dos
usuários da plataforma, conforme Bioni explica:
Em um primeiro momento, atrai-se o usuário para que ele usufrua do
produto ou serviço para, em um segundo momento, coletar seus dados
pessoais e, então, viabilizar o direcionamento da mensagem publicitária,
que a fonte da rentabilização.21
Nessa perspectiva, afirma-se de forma contundente que o pagamento seja
ele integral ou parcial de muitos produtos e serviços é realizado com os
dados pessoais do próprio consumidor.22
Diante desse funcionamento, os dados pessoais no ambiente virtual ex-
põem indivíduos e interferem na formação de seus selves, pois as informa-
ções inferidas nem sempre correspondem às suas expectativas. Essa dinâ-
mica muitas vezes afeta direitos fundamentais dos titulares desses dados

20 BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de Dados Pessoais: a função e os limites do consen-


timento. Rio de Janeiro: Forense. 2019, passim.
21 Ibid., p. 26.
22 Ibid., p.27.
164
A informação e a compreensão do “eu” na era digital
pessoais. As informações abstraídas de seus comportamentos no ambiente
virtual podem extrapolar o limite do consentimento ofertado, ofendendo a
privacidade e a intimidade dos indivíduos. Como exemplo, em 2018 dados
de mais de 50 milhões de pessoas foram tratados, inferindo informações de
perfis: a empresa britânica teria comprado acesso a dados pessoais de usu-
ários do Facebook, tratando-os para utilizar um sistema que permitiu pre-
dizer e influenciar as escolhas dos eleitores americanos nas urnas, segundo
a investigação dos jornais The Guardian e The New York Times. Por mo-
tivos como este, que se tornaram frequentes na última década em que a
evolução das TIPs foi exponencial, intensificou-se o movimento de prote-
ção aos dados pessoais.
Em uma breve retrospectiva, relembramos que a proteção aos dados
pessoais já era um direito fundamental no cenário europeu com a Declara-
ção Universal de Direitos Humanos de 1948. A Convenção 108 de 1981,
editada recentemente pelo Conselho da Europa, trouxe o tema à tona, com
a posterior criação da Diretiva 95/46/CE. O tratamento adequado dos da-
dos pessoais estava, portanto, presente nas preocupações empresariais,
mas não tanto no Brasil. Em 2016, com a promulgação do Regulamento
Geral de Proteção de Dados Europeu (GDPR) e as altas sanções previstas,
as empresas com tratamento de dados a ele sujeitas passaram a se atentar
ainda mais aos limites do tratamento dos dados pessoais e na inferência de
informações dos titulares dos dados, intensificando o movimento de pro-
teção em todo o mundo23. No cenário nacional, tivemos a promulgação da
Lei 13.709 em 2018, conhecida como Lei Geral de Proteção de Dados
(LGPD) que, menos detalhada que o GDPR, também prevê altas sanções
em casos de desconformidade legal.
Nessas regulações, são previstos princípios para o adequado tratamento
dos dados pessoais, como finalidade, adequação, necessidade, livre acesso,
qualidade dos dados, transparência, segurança, prevenção, não discrimi-

23 Mais de 130 países possuem leis de proteção aos dados pessoais atualmente.
165
Pietra Daneluzzi Quinelato · Yolanda Corrêa Rosa
nação, responsabilização e prestação de contas, que visam à autodetermi-
nação informacional do indivíduo. Vários são os direitos desses titulares,
que poderão requerer, a título exemplificativo, a exclusão, a portabilidade,
a retificação, a anonimização, a confirmação, o acesso, a oposição ao tra-
tamento de seus dados, bem como a revisão de uma decisão informatizada
feita a partir das suas informações. Neste último caso, as informações dos
titulares dos dados provenientes de uma análise de seus dados disponibili-
zados motivarão uma decisão que poderá ser revista, não deixando o indi-
víduo à mercê da abstração de informações feita pela empresa.
Estudos da Filosofia da Informação, brevemente apresentada com fun-
damento nas teorias de Floridi, auxiliam na conscientização de que há
grande dificuldade de inferir informações condizentes com a realidade e
que estejam de acordo com o que os titulares dos dados pessoais esperam.
Isso porque a utilização de tecnologias facilita cada vez mais essa dinâmica
de tratamento de dados, influenciando na criação de selves que, muitas
vezes, não correspondem aos seus titulares. No cenário atual, o tratamento
dos dados pessoais, em conformidade com as regulações mencionadas,
poderá ajudar na construção do “eu” e do seu self na dinâmica da vida
“onlife” de acordo com as expectativas do sujeito, prezando-se pela auto-
determinação informacional.

5. Considerações finais
Na “Quarta Revolução Industrial”, as Inteligências Artificiais, Tecnolo-
gias da Informação e Comunicação (TICs) transformam o mundo de for-
ma acelerada, impactando na compreensão do “eu” e na sua percepção de
mundo. No mundo online, através dos nossos dados pessoais, deixamos
pegadas virtuais que serão interpretadas por terceiros como informações,
formando um perfil - um self - nesse ambiente. Esse self molda as relações
sociais do sujeito, mas também pode ser utilizado comercialmente. Isso
porque a exploração dos dados pessoais, principalmente no que tange às

166
A informação e a compreensão do “eu” na era digital
superplataformas, se tornou um tema economicamente estratégico.
Com o avanço da tecnologia, conseguimos processar imensas quanti-
dades de dados, tendo como eixo central o indivíduo. O poder dos méto-
dos estatísticos, a massa de dados, o barateamento de tratamento, bem
como o ambiente em que as informações são inferidas, são fatores que
apenas fortalecem um laço indissociável entre dados e inteligência artificial
(TICs) voltados à obtenção de lucros. A partir disso, são inferidas informa-
ções voltadas aos interesses comerciais do agente que as trata para o ofere-
cimento de produtos e serviços que, muitas vezes, não correspondem à
realidade. Além disso, podem extrapolar as finalidades para as quais os
dados pessoais foram coletados e, como consequência, as expectativas de
seus titulares.
A Filosofia da Informação, brevemente mencionada nessa pesquisa, é a
proposta de uma área do saber destinada a investigar uma série de pro-
blemas originados e relacionados com o desenvolvimento do acesso da
informação por parte da sociedade e tecnologias que interferirão na auto-
compreensão do “eu” e do mundo. Entendemos que a questão levantada,
envolvendo ética no tratamento de dados pelas empresas, deve ser explo-
rada diante das perspectivas dessa área, vez que pode influenciar direta-
mente na cognição do sujeito como indivíduo e na perspectiva de mundo
que possui. Não apenas, as informações inferidas poderão tanto prejudicar
quanto beneficiar o indivíduo, sendo de extrema necessidade que haja
respeito ao princípio da autodeterminação informacional. Caso contrário,
seremos vítimas das informações abstraídas de nossos dados pessoais sem
que tenhamos, sequer, conhecimento.

Referências
BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de Dados Pessoais: a função e os limites
do consentimento. Rio de Janeiro: Forense. 2019.
BURCH, Sally. The information society/The knowledge society. Disponível
167
Pietra Daneluzzi Quinelato · Yolanda Corrêa Rosa
em: http://www.vecam.org/article517.html. Acesso em: 18 mar. 2020.
DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2019.
FLORIDI, Luciano. Information ethics: on the theoretical foundations of
computer ethics. Ethics and Information Technology, v. 1, n. 1, 1999.
FLORIDI, Luciano. The informational nature of personal identity. Minds
& Machines, Dordrecht, v. 21, 2011.
FLORIDI, Luciano. The philosophy of information. Oxford: Oxford Uni-
versity Press, 2011.
FLORIDI, Luciano. What is the Philosophy of Information? Metaphiloso-
phy, v. 33, n. 1/2, jan. 2002, pp. 123-145.
PECK, Patricia. Direito Digital. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
SEMIDÃO, R. A. M. Dados, Informação e Conhecimento enquanto elemen-
tos de compreensão do universo conceitual da Ciência da Informação:
contribuições teóricas. Marília, 2014. 198 f. Dissertação (Mestrado).
Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação - Faculdade
de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista – UNESP, Ma-
rília, 2014.

__________________________________________________
QUINELATO, Pietra Daneluzzi; ROSA, Yolanda Corrêa. A informação e
a compreensão do “eu” na era digital: um ensaio a partir dos estudos de
Luciano Floridi. In: LONGHI, João Victor Rozatti; FALEIROS JÚNIOR,
José Luiz de Moura (Coords.); BORGES, Gabriel de Oliveira Aguiar; REIS,
Guilherme (Orgs.). Fundamentos de direito digital: a ciência jurídica na
sociedade da informação. Uberlândia: LAECC, 2020, pp. 155-168.
__________________________________________________

168
O DIREITO À PRIVACIDADE: ORIGEM
HISTÓRICA E JURÍDICA

7
Tales Calaza

1. Introdução
A privacidade tem sido um tema cada dia mais presente no cotidiano
global. Com o avanço das tecnologias e seu uso pela atual sociedade da
informação, o direito à privacidade vem sendo relativizado e, inclusive,
esquecido, ao passo em que as pessoas fornecem seus dados em troca de
futilidades, como benefícios em jogos de celulares e acessos a sites aleató-
rios de entretenimento.
Atualmente, a discussão sobre o fornecimento dos dados pessoais tem
avançado, de modo que as pessoas já começaram a questionar a real neces-
sidade de compartilhamento destes itens de privacidade em contextos
inadequados. Mais especificamente, o Brasil também tem avançado neste
sentido, com o surgimento de normas legais regulatórias e sancionatórias
aplicáveis ao tratamento indevido de dados, como o Marco Civil da Inter-
net (Lei n° 12.965/2014) e a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei n°
13.709/2018).
Em que pese essa discussão jurídica sobre a privacidade aparentemente
ter “surgido” na atualidade, sua real origem pode ser observada no ano de
1890, em um texto publicado na Harvard Law Review, por Samuel D.

169
Tales Calaza
Warren e Louis D. Brandeis1, sendo que o presente trabalho utilizar-se-á
do método hipotético-dedutivo, se baseando nesta e outras doutrinas
combinadas com reflexões sobre a origem e a evolução do direito à priva-
cidade. Ao final, procurar-se-á estabelecer os pontos de contato do tema
com a problemática investigada, apresentando-se as considerações finais.

2. O contexto tecnológico do início da proteção dos dados pessoais


Não é nenhuma novidade que, pelo senso comum, o termo “dados” es-
tá intrinsecamente ligado à ideia de tecnologia. Entretanto, para a possível
surpresa do leitor, a proteção dos dados pessoais foi inicialmente proposta
por um artigo publicado muito antes do surgimento do primeiro compu-
tador, que dirá da internet em si.
Para possibilitar a visualização de uma ordem cronológica, no ano de
1941, Konrad Zuse completou o primeiro computador digital programável
eletromecânico totalmente funcional (o computador chamado de “Z3”).
Em 1958, Jack Kilby apresentou ao mundo o microchip. Em 1983, a Mi-
crosoft anuncia o Windows. Em 1998, Larry Page e Sergey Brin anunciam
o lançamento do Google2.
O artigo supracitado, que deu início à discussão jurídica sobre o direito
à privacidade, foi publicado em 1890. Este foi o mesmo ano que o censo foi
tabulado pela primeira vez com as máquinas de cartões perfurados de

1 WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis D. The right to privacy. Harvard Law
Review, Cambridge, v. 4, n. 5, p. 193-220, dez. 1890, passim.
2 ISAACSON, Walter. Os inovadores: uma biografia da revolução digital. 1ª ed. São
Paulo: Companhia das Letras, 2014. Ordem cronológica apresentada pela brilhante
obra “Os Inovadores”, de Walter Isaacson, autor de “Steve Jobs: A Biografia”. Na-
quela obra, o autor apresenta o que ele denomina de “uma biografia da revolução di-
gital”, ao trazer minuciosos detalhes desde o primeiro ideal de um computador, rela-
tado por Ada Lovelace em 1843, até a complexa revolução digital que presenciamos
na contemporaneidade.
170
O direito à privacidade: origem histórica e jurídica
Herman Hollerith, que ocorreu meio século antes de serem apresentadas
as válvulas termiônicas, que posteriormente seriam substituídas pelos mi-
crochips, o que demonstra que a busca pelo direito à privacidade ocorreu
muito anteriormente em relação às atuais violações proporcionadas pelas
redes sociais, pelos vazamentos de dados das grandes empresas e pelos
diferentes meios de invasões à privacidade que a sociedade vive na con-
temporaneidade.
A obra que deu início a essa discussão foi publicada na Harvard Law
Review, por Samuel D. Warren e Louis D. Brandeis, nomeada “The Right
to Privacy”3, sendo ela considerada um dos ensaios mais relevantes e influ-
entes da história do direito americano, por ser reconhecida como a primei-
ra publicação a defender o direito à privacidade, sob o pretexto de que este
seria tutelado a partir do que os autores nomeiam de “right to be left alo-
ne”, ou seja, “o direito de ser deixado em paz”.
Tendo em vista que, na época da publicação do texto, ainda não haviam
redes sociais ou tecnologias de compartilhamento de informações massi-
vas, ele foi inspirado nas violações e invasões que as colunas sociais dos
jornais da época provocavam nas vidas íntimas das pessoas.
Com essas considerações, chega-se ao objeto investigado pelo presente
estudo: observar o contexto em que a proteção à privacidade começou a
ser discutido e as transformações que este direito sofreu até a atualidade.

3. O surgimento da proteção à privacidade


Levando em consideração que a discussão acerca da tutela do direito à
privacidade se iniciou nos Estados Unidos, com a publicação do artigo
comentado, será utilizado este marco teórico para o presente estudo.
Apesar de a publicação do artigo somente ter ocorrido em 1890, e as tu-

3 WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis D. The right to privacy. Harvard Law
Review, Cambridge, v. 4, n. 5, p. 193-220, dez. 1890, passim.
171
Tales Calaza
telas legais surgirem posteriormente, é inegável que os princípios relacio-
nados à proteção dos direitos individuais da pessoa e de sua intimidade são
tão antigos quanto o próprio surgimento do common law4. Dessa forma,
com o passar do tempo, se mostrou necessário definir novas naturezas e
novos limites para a adequada tutela destes direitos.
No início da aplicação do common law, a lei garantia apenas um remé-
dio jurídico para interferências físicas que envolviam a vida e a proprieda-
de, de modo que somente eram tuteladas ações concretas, palpáveis. O
direito à liberdade era apenas garantido em relação à liberdade física, cor-
pórea, e não à liberdade subjetiva como entende-se hoje, que é garantida a
liberdade de expressão, de pensamento, entre outras. Da mesma forma, a
proteção à propriedade era somente garantida em casos de invasão à pro-
priedade, de modo que propriedades imateriais, como marcas, patentes,
não eram protegidas.
Com o avanço da lei, outros direitos pessoais passaram a ser reconheci-
dos e tutelados, os chamados “direitos de natureza espiritual”5, que envol-
vem os sentimentos e o intelecto. Neste momento, é possível visualizar o
início de uma tutela do que hoje é conhecido por “dano moral” (proteção
jurídica dos sentimentos) e por “direito autoral” (proteção jurídica ao
intelecto).
Na época da publicação do artigo estudado (ano de 1890), os autores
comentam que o direito havia evoluído para um patamar em que grandes
áreas estruturais do direito compreendiam proteções atuais à época, a
exemplo de o direito à vida, que passava a compreender o direito de “cur-
tir a vida”, e não apenas de continuar vivo; o direito à liberdade, que pas-

4 Common Law é o modelo jurídico adotado nos Estados Unidos, que garante uma
maior força jurídica aos precedentes (casos concretos) do que à legislação em si. É di-
ferente do Civil Law, modelo adotado no Brasil, que garante uma maior validade ju-
rídica às leis do que aos precedentes.
5 WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis D. The right to privacy. Harvard Law
Review, Cambridge, v. 4, n. 5, p. 193-220, dez. 1890, passim.
172
O direito à privacidade: origem histórica e jurídica
sava a envolver o exercício dos privilégios da vida civil, como a liberdade
de expressão e de pensamento; e o direito à propriedade, que passava a
tutelar a propriedade intelectual, ao passo em que compreendia itens tan-
gíveis e intangíveis.
Em relação à segurança da pessoa, inicialmente, era apenas garantida a
proteção contra violações estritamente físicas praticadas contra o indiví-
duo, ou seja, a lei tipificava apenas atos que resultavam em efetivas lesões
ao corpo, como homicídio e lesão corporal. Com o avanço do common
law, outras condutas, que não só efetivamente causavam lesões, mas que
poderiam vir a causar danos, passaram a ser tuteladas, como o roubo e o
uso de substâncias letais. Posteriormente, a lei evoluiu de tal forma que
extrapolou os limites físicos da segurança e passou a tutelar a qualidade de
vida, como a tranquilidade da pessoa frente a itens subjetivos como maus
odores, barulhos altos, fumaça e sujeira. E foi nesse momento que surgiu a
chamada “Law of Nuisance” (traduzida como “Lei dos Incômodos”), que
veio com o principal objetivo de tutelar as emoções e sensações humanas
que vão além do físico e do corpóreo.
O desenvolvimento desta lei era inevitável, uma vez que o decorrer do
tempo traz consigo a evolução exponencial de intensas emoções e de de-
senvolvimento intelectual, deixando evidente, para a época, que a lei não
poderia se limitar apenas a tutelar bens jurídicos físicos, uma vez que os
pensamentos, as emoções e as sensações clamavam por seu reconhecimen-
to e sua proteção jurídica, visto que o direito à privacidade, mesmo que
ainda não fosse legalmente reconhecido, já se mostrava ameaçado ao passo
em que, já no ano de publicação do texto, as mídias impressas invadiam a
vida privada e doméstica das pessoas, por intermédio das notícias e dos
paparazzi, o que levou a discussão que fez surgir o direito de ser deixado
em paz (right to be left alone).6

6 WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis D. The right to privacy. Harvard Law
Review, Cambridge, v. 4, n. 5, p. 193-220, dez. 1890, passim.
173
Tales Calaza
Os autores do texto de objeto deste estudo fizeram questão de deixar
claro que não são contra a propagação de notícias pelas mídias impressas,
mas repudiam quando a notícia é baseada em uma “fofoca”, de modo que
se apresenta como uma moeda viciada7 que propaga informações íntimas
da vida das pessoas, em troca de reconhecimento e dinheiro para fomentar
a indústria de invasão à privacidade. Ainda é feita uma comparação com
outros modelos de negócio, visto que a oferta e a demanda estão vincula-
das, de modo que a propagação de cada notícia íntima sobre a vida do
indivíduo gera o desejo de mais informações desse cunho, o que desenca-
deia cada vez mais a publicação de notícias inverídicas, sensacionalistas,
fantasiosas e imorais.
Algo que merece ser criticado é a solução jurídica dada pela lei da época
nas situações acima apresentadas.
No final do século XIX, a common law tratava a propagação de notícias
inverídicas e imorais apenas como um instituto parecido com o que hoje
entende-se por “difamação”, de modo que a lei apenas protegia os danos
externos causados ao indivíduo, uma vez que o ordenamento jurídico se
encontrava mais preocupado com uma tutela material do que com uma
tutela espiritual (como o caso do dano moral)8.
Como a legislação não tutelava os danos imateriais causados pela viola-
ção da privacidade, os autores de “The Right to Privacy” defendiam que,
nestes casos, deveria ser aplicado o princípio do damnum absque injuria9,

7 O termo “moeda viciada” é utilizado pelos autores para evidenciar que a indústria da
mídia utilizava as informações íntimas das pessoas, sem o seu consentimento ou
mesmo sua ciência, por isso o termo “viciada”, para obter lucro às custas de sua vida
privada, de modo que as notícias se transformavam em uma verdadeira fonte de ren-
da, por isso o termo “moeda”.
8 WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis D. The right to privacy. Harvard Law
Review, Cambridge, v. 4, n. 5, p. 193-220, dez. 1890, passim.
9 Damnum absque injuria é o princípio utilizado quando uma pessoa sofre uma lesão
que não é física. Pode ser traduzido como “dano sem lesão”. Ocorre quando há algo
174
O direito à privacidade: origem histórica e jurídica
de modo que as lesões subjetivas causadas ao indivíduo deveriam gerar
consequências ao infrator, uma vez que não deveriam apenas ser tuteladas
as lesões externas causadas ao indivíduo, mas este também deveria ver
compensados os danos que sofreu internamente, como sua própria estima
e seus sentimentos como elementos essenciais atingidos pela ação violado-
ra10. É partindo deste ideal que pode se verificar a evolução para o que se
entende hoje por dano moral.
O real empecilho da época que retardava o surgimento e a consolidação
do direito à privacidade ocorria ao passo em que a maior parte da socieda-
de não via sua violação como algo relevante, que merecia ser juridicamente
tutelado.
Para contornar este entendimento e trazer uma maior relevância jurídi-
ca ao instituto da privacidade, os autores de “The Right to Privacy” propõe
uma analogia para que sua violação fosse entendida como uma violação
direta à honra, e mais, uma violação à propriedade (um dos institutos mais
protegidos à época).
Passa-se a elaborar: o direito à propriedade, conforme já exposto, inici-
almente compreendia somente itens tangíveis (palpáveis).
Com o avanço do direito, passou a compreender também itens intangí-
veis, como marcas e patentes (propriedades intelectuais)11. Para o item
intangível ser considerado uma propriedade, os autores propõem que ele
deveria atender a três requisitos, quais sejam, ser transferível, ter valor e
sua publicação ou reprodução também gerar valor.
Dessa forma, uma vez que as notícias íntimas fossem publicadas sobre

parecido com um “dano aos sentimentos”, que nada mais é do que hoje é conceitua-
do como dano moral, que evoluiu deste conceito.
10 WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis D. The right to privacy. Harvard Law
Review, Cambridge, v. 4, n. 5, p. 193-220, dez. 1890, passim.
11 WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis D. The right to privacy. Harvard Law
Review, Cambridge, v. 4, n. 5, p. 193-220, dez. 1890, passim.
175
Tales Calaza
as pessoas, violando sua privacidade, elas atendiam a estes três requisitos
(eram transferíveis, tinham valor e sua publicação gerava ainda mais va-
lor), o que deveria as levar a serem compreendidas como propriedade, de
modo que mereciam ser juridicamente tuteladas. Surge então o começo do
conceito do que hoje compreende-se como direito de imagem e direito
autoral.
Algo que gerou a indagação dos autores e um dos itens que deu início
ao seu estudo sobre o tema, foi o chamado “caso da carta”12.
Nesse exemplo, inicialmente, trabalha-se com a hipótese de uma carta
redigida por um artista contendo uma composição literária.
É inegável que, à esta carta, será garantida a proteção legal de uma pro-
priedade intelectual. Entretanto, e se esta carta não contiver um produto
intelectual, mas apenas relatar, por exemplo, uma ocorrência doméstica?
Como um pai escrevendo para seu filho relatando algo íntimo sobre a saú-
de de sua mãe? Neste caso, muitos entenderiam que não há nada a ser
protegido, e o conteúdo seria irrelevante, de modo que sua violação não
geraria consequências.
Entretanto, veja que, neste caso, o conteúdo merece idêntica proteção
legal, mas aqui os itens tutelados não seriam composições artísticas ou
obras literárias, mas sim os fatos relatados, uma vez que o vazamento deste
conteúdo não geraria hipóteses de lucros cessantes ou direitos autorais,
mas geraria vantagens indevidas a terceiros, às custas de quem teve sua
intimidade violada, o que causaria o chamado “dano sentimental”.13
As considerações acima realizadas levam à conclusão de que, a proteção
assegurada aos pensamentos, aos sentimentos e às emoções, expressadas
por escrito ou por outros meios, assim como a proteção aos conteúdos

12 WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis D. The right to privacy. Harvard Law
Review, Cambridge, v. 4, n. 5, p. 193-220, dez. 1890, p. 201.
13 WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis D. The right to privacy. Harvard Law
Review, Cambridge, v. 4, n. 5, p. 193-220, dez. 1890, passim.
176
O direito à privacidade: origem histórica e jurídica
cujos autores visam obstar a publicação, seriam itens englobados e tutela-
dos pela teoria do “Right to be Left Alone”14, ou seja, o direito de ser dei-
xado em paz. Ao passo em que essa teoria passa a ser estudada e aplicada
de forma ampla, começa a se consolidar um inicial direito à personalidade,
que é algo consagrado no ordenamento jurídico brasileiro atual.
Com o avanço dos estudos na área, foi verificado que, em que pese o
brilhantismo dos autores ao propor uma analogia entre o direito à privaci-
dade e o direito à propriedade, este não compreendia aquele15, uma vez
que este já era legalmente delimitado, enquanto aquele não possuía limites
ou extensões para sua tutela, de modo que deveria evoluir e compreender
diversos outros institutos ainda não protegidos, como a aparência pessoal,
a forma de comunicação, os atos e as relações pessoais e domésticas.
O grande desafio, proposto à época, seria encontrar a tênue linha exis-
tente entre o direito à privacidade e a liberdade de expressão, de modo a
aliar os campos do bem social e da informação da sociedade à conveniên-
cia individual e a dignidade de cada pessoa. Nesse sentido, os autores ci-
tam que este instituto já encontrou expressão na legislação francesa, na
conhecida Loi Relative à la Presse (Lei da Imprensa), que tipificava a con-
duta de publicar fatos relativos à vida privada em jornais, o que seria con-
siderado uma contravenção punida pecuniariamente16.
Em conclusão, para chegar ao objetivo almejado, os autores trazem
princípios que deveriam ser observados para garantir que a liberdade de
expressão não entrasse em conflito com o direito à privacidade.
Para alcançar essa finalidade, o direito à privacidade não deveria proi-

14 WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis D. The right to privacy. Harvard Law
Review, Cambridge, v. 4, n. 5, p. 193-220, dez. 1890, p. 193.
15 WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis D. The right to privacy. Harvard Law
Review, Cambridge, v. 4, n. 5, p. 193-220, dez. 1890, p. 203.
16 WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis D. The right to privacy. Harvard Law
Review, Cambridge, v. 4, n. 5, p. 193-220, dez. 1890, p. 214.
177
Tales Calaza
bir qualquer publicação de matéria que consistisse em interesse público,
genérico ou que a lei definisse como comunicação privilegiada. Da mesma
forma, a lei não concederia nenhuma reparação por invasão de privacida-
de realizada por publicação oral, se não fosse demonstrada a ocorrência de
danos no caso concreto.
Além dos princípios acima trazidos, o direito à privacidade sobre um
fato cessaria com a sua publicação pelo próprio indivíduo, ou com o seu
consentimento, assim como a verdade da matéria publicada não afastaria a
caracterização de invasão de privacidade, uma vez que este ramo do direito
não estaria preocupado com a verdade das informações, mas sim com a
intimidade do indivíduo.
Por fim, quanto aos princípios para garantir a harmonia do direito à
privacidade com a liberdade de expressão, deveria ser notório que a ausên-
cia de “malícia” de quem publicou a matéria não afastaria a caracterização
de invasão, uma vez que a incorrência em tal conduta corresponderia a
caracterização da responsabilidade objetiva trazida pelo ordenamento ju-
rídico brasileiro, ou seja, independe da demonstração de culpa por parte
do infrator. 17
Em que pese estes princípios terem sido trazidos em 1890, muitos deles
se mostram extremamente atuais e, apesar de serem desenvolvidos para
aplicação no common law, também são perfeitamente aplicáveis ao civil
law, como é possível observar nas legislações brasileiras recentes que vi-
sam tutelar o que se tem hoje delimitado com direito à privacidade.

4. O direito à atual privacidade


O ideal inicial de um direito à privacidade, conforme já exposto, surgiu
formalmente em 1890, ante a publicação de um artigo de autoria de Samu-

17 WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis D. The right to privacy. Harvard Law
Review, Cambridge, v. 4, n. 5, p. 193-220, dez. 1890, passim.
178
O direito à privacidade: origem histórica e jurídica
el D. Warren e Louis D. Brandeis. A partir deste ponto, este conceito evo-
luiu, foi adaptado e adotado em outros países, legislações e ordenamentos
jurídicos.
Ocorre que, ao passo em que a legislação relativa ao direito à privacida-
de evolui de forma gradual, as tecnologias que permitem a invasão e a vio-
lação da intimidade evoluem de maneira exponencial, de modo que a tute-
la deste direito não deve apenas ser realizada em conformidade com a lei
vigente, mas também com os princípios, os costumes e a analogia, de mo-
do que as demais fontes do direito devem ser exploradas para garantir
proteção mais completa possível à este direito constitucional (Artigo 5°,
inciso X da CF)18.
Na atual sociedade da informação19, o conceito de privacidade já não é
o mesmo utilizado em 1890. Com a intensa e volumosa transmissão de
dados e informações, em velocidade cada vez maior, é possível que um
dado percorra todo o planeta em questão de segundos, ultrapassado as
barreiras temporais e territoriais20.
Por este motivo, os estudiosos da área celebram a criação de novas le-
gislações acerca do interesse à proteção de dados (à exemplo do Regula-
mento Europeu de Proteção de Dados e da Lei Geral de Proteção de Da-
dos), mas não se apegam estritamente à lei, de modo que a doutrina criou
um novo campo, denominado direito digital, utilizado para discutir, estu-
dar e desenvolver conceitos e ideais diretamente ligados aos conceitos de
dados e privacidade. Perceba que, a área é nova, mas seu objeto de discus-
são é o produto derivado das legislações e fontes do direito anteriores, em

18 BRASIL. Presidência da República. Constituição Federal. Disponível em:


https://bit.ly/2ycZYQk. Acesso em 12 abr. 2020.
19 Termo popularizado pelo livro The production and distribution of knowledge in the
United States, de autoria do economista Fritz Machlup, publicado em 1962.
20 LIMA, Átila Pereira. O direito ao esquecimento na era da sociedade da informação.
In: LONGHI, João Victor Rozatti; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura (Coord.).
Estudos essenciais de direito digital. Uberlândia: LAECC, 2019, p. 45-66.
179
Tales Calaza
conjunto com os anseios do desenvolvimento da sociedade:
Não devemos achar, portanto, que o direito digital é totalmente novo. Ao
contrário, tem ele sua guarda na maioria dos princípios do Direito atual,
além de aproveitar a maior parte da legislação em vigor. A mudança está
na postura de quem a interpreta e faz sua aplicação. (...) O Direito tem de
partir do pressuposto de que já vivemos uma sociedade globalizada. Seu
grande desafio é ter perfeita adequação em diferentes culturas, sendo ne-
cessário, por isso, criar a flexibilidade de raciocínio, nunca as amarras de
uma legislação codificada que pode ficar obsoleta rapidamente.21
Na contemporaneidade, os indivíduos se deparam cotidianamente com
situações muito mais emblemáticas envolvendo sua privacidade do que as
meras publicações jornalísticas invasivas que ocorriam no século XIX.
Hoje, é possível se deparar com institutos como: o direito ao esquecimen-
to, data mining, política de cookies, copyright, uso de drones, testamento
digital em rede social, vazamentos massivos de dados e muitas outras hi-
póteses que põe à prova a evolução jurídica do direito à privacidade indi-
vidual.
Trazendo a discussão para a realidade nacional, o Brasil começou sua
jornada de proteção aos dados de forma tímida, com publicações iniciais
de leis que não surtiram a complexidade dos efeitos desejados, como a Lei
de n° 12.737/2012, também conhecida como Lei Carolina Dieckmann, que
regula a violação de dispositivos informáticos, e a Lei n° 12.965/2014, tam-
bém conhecida como Marco Civil da Internet, que estabelece os princípios
garantias, direitos e deveres para o uso da internet no país22.
Entretanto, apesar da discussão aparentar ser recente em âmbito nacio-
nal, veja que a Constituição Federal de 1988, no inciso X de seu artigo 5°, já

21 PINHEIRO, Patrícia Peck. Direito digital. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 35.
22 MEIRA, Matheus Junqueira de Almeida. Acesso à internet como direito fundamen-
tal. In: LONGHI, João Victor Rozatti; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura (Co-
ord.). Estudos essenciais de direito digital. Uberlândia: LAECC, 2019, p. 291-327, p.
291-327.
180
O direito à privacidade: origem histórica e jurídica
trazia a proteção à intimidade como um direito fundamental, ou seja, já
visava tutelar a privacidade do indivíduo.
Atualmente, o Brasil se encontra na vanguarda do direito digital, uma
vez que, além de possuir uma legislação própria para lidar diretamente
com a proteção dos dados pessoais23, o país também possui diversos pro-
fissionais jurídicos e dos ramos da tecnologia atuando em conjunto para
proporcionar a garantia à privacidade da maneira mais efetiva possível.
Além dos institutos já consagrados no ordenamento jurídico, relativos
à tutela da privacidade, e o grande interesse que os estudiosos da área têm
demonstrado no assunto (a exemplo dos incontáveis eventos de direito
digital que ocorreram entre os anos de 2019 e 2020), o Brasil se coloca à
frente do mundo inteiro ao passo em que apresentou uma PEC para inclu-
ir o acesso à internet como direito fundamental do cidadão24.
Dessa forma, a visão do futuro é otimista em relação à proteção da pri-
vacidade e dos dados pessoais, objetivada inicialmente pelos autores Sa-
muel D. Warren e Louis D. Brandeis, em 1890, de modo que o caminhar
da humanidade se mostra desenvolto a tutelar legalmente e proteger essa
premissa fundamental, acompanhando o desenvolvimento das tecnologias
exponenciais.
Para finalizar o tema, este autor lhes traz uma reflexão25:
A proteção da sociedade deve surgir a partir do reconhecimento dos direi-
tos de cada indivíduo. Cada pessoa é responsável pelas próprias ações e
omissões. Se a pessoa tolera o que ela reprova, é o mesmo que buscar a paz
com uma arma na mão, de modo que será igualmente responsável pelos

23 BRASIL. Planalto. Lei n° 13.709/2018. Lei geral de proteção de dados. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13709.htm. Acesso
em 11 fev. 2020.
24 BRASIL. Câmara dos Deputados. PEC 185/15. Disponível em:
https://bit.ly/2M4fM9q. Acesso em 11 mar. 2020.
25 Inspirado por WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis D. The right to privacy.
Harvard Law Review, Cambridge, v. 4, n. 5, p. 193-220, dez. 1890, p. 220, trad. livre.
181
Tales Calaza
resultados. O common law, assim como o civil law, sempre reconheceu a
casa de um homem como seu castelo inexpugnável, então deveriam os tri-
bunais fechar o portão principal frente à autoridade constituída e abrir o
portão dos fundos para satisfazer a curiosidade ociosa?
Ainda há muito o que se discutir sobre a extensão e os limites da priva-
cidade, assim como a proteção e a ética que a envolve, mas se espera que
esta obra possa ser um grande passo inicial na jornada de estudo deste
instituto essencial que a cada dia se torna mais necessário na sociedade da
informação.

5. Considerações finais
Pelo que se apurou neste estudo, não resta dúvidas que o direito à pri-
vacidade encontrou espaço para sua instauração e desenvolvimento no
ordenamento jurídico pátrio.
Foi possível observar o tímido caminhar inicial de um ideal de proteção
aos dados pessoais trazidos pelo artigo inicialmente publicado em 1890,
até a gigantesca revolução global contemporânea neste sentido, com a
publicação e vigência de leis que alteram a estrutura de todos que realizam
o tratamento de dados, desde um simples comerciante local até a maior
companhia multinacional.
A tendência mundial é seguir os exemplos de países que estão na van-
guarda da tutela do direito à intimidade, como o Brasil e os integrantes da
União Europeia, de modo que, em alguns anos, será possível realizar um
tratamento de dados de forma segura em qualquer local do globo, o que
nada mais é do que um dever de adaptação ao surgimento e evolução das
tecnologias exponenciais.
Espera-se que o direito digital continue a evoluir e que traga, por evi-
dente, inovações condizentes com a proteção à segurança de dados indivi-
duais e coletivos, premissa essencial para a construção de uma sociedade
da informação.
182
O direito à privacidade: origem histórica e jurídica

Referências
BRASIL. Câmara dos Deputados. PEC 185/15. Disponível em:
https://bit.ly/2M4fM9q. Acesso em 11 mar. 2020.
BRASIL. Planalto. Lei n° 13.709/2018. Lei geral de proteção de dados. Dis-
ponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
2018/2018/lei/L13709.htm. Acesso em 11 fev. 2020.
BRASIL. Presidência da República. Constituição Federal. Disponível em:
https://bit.ly/2ycZYQk. Acesso em 12 abr. 2020.
ISAACSON, Walter. Os inovadores: uma biografia da revolução digital. 1ª
ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
LIMA, Átila Pereira. O direito ao esquecimento na era da sociedade da
informação. In: LONGHI, João Victor Rozatti; FALEIROS JÚNIOR,
José Luiz de Moura (Coord.). Estudos essenciais de direito digital.
Uberlândia: LAECC, 2019, p. 45-66.
MEIRA, Matheus Junqueira de Almeida. Acesso à internet como direito
fundamental. In: LONGHI, João Victor Rozatti; FALEIROS JÚNIOR,
José Luiz de Moura (Coord.). Estudos essenciais de direito digital.
Uberlândia: LAECC, 2019, p. 291-327.
PINHEIRO, Patrícia Peck. Direito digital. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis D. The right to privacy. Harvard
Law Review, Cambridge, v. 4, n. 5, p. 193-220, dez. 1890.

__________________________________________________
CALAZA, Tales. O direito à privacidade: origem histórica e jurídica. In:
LONGHI, João Victor Rozatti; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura
(Coords.); BORGES, Gabriel de Oliveira Aguiar; REIS, Guilherme (Orgs.).
Fundamentos de direito digital: a ciência jurídica na sociedade da infor-
mação. Uberlândia: LAECC, 2020, pp. 169-183.
__________________________________________________

183
AS REDES SOCIAIS DIGITAIS E O LIVRE
DESENVOLVIMENTO DA PERSONALIDADE

8
Victor Rodrigues Nascimento Vieira

1. Introdução
Atualmente, é comum que as pessoas tenham pelo menos uma das de-
zenas de redes sociais digitais disponíveis na internet. As redes sociais digi-
tais podem representar benefícios e malefícios, depende da forma como
são usadas. Por um lado, proporcionam entretenimento, servem como
ferramenta de trabalho, disponibilizam material para educação e ajudam a
fomentar o empreendedorismo. Por outro, podem causar dependência,
afetar seriamente a saúde mental de alguns de seus usuários, interferir no
livre desenvolvimento da personalidade dos indivíduos, bem como ser
palco de fake news, cibercrimes e ciberbullying.
O livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural diz respei-
to à liberdade no exercício do desenvolvimento das características e atribu-
tos da pessoa humana, que se concretiza por meio da possibilidade do ser
edificar a sua própria história de vida, valendo-se de suas escolhas existen-
ciais sem interferências e imposições externas.
Diante deste cenário, o problema proposto por este estudo é a discussão
sobre os impactos das redes sociais digitais no livre desenvolvimento da
personalidade humana, cujas influências vão para além da manipulação do
comportamento, influenciando, ainda, a título de exemplo, nos elementos
185
Victor Rodrigues Nascimento Vieira
de definição da própria identidade, na exploração da vulnerabilidade da
psicologia humana, trazendo consequências como a radicalização, bipola-
rização, intransigência e até riscos à democracia.
É importante destacar que não há a pretensão, nesse texto, de se con-
cluir, sem sombra de dúvidas, sobre como é que se dá a influência das re-
des sociais no livre desenvolvimento da personalidade dos seus usuários.
Isso porque, tal conclusão demandaria um estudo aprofundado que con-
gregasse várias áreas do conhecimento como a Filosofia, a Antropologia, a
Sociologia, a Psicologia e a Estatística. Entretanto, em linhas gerais, busca-
se demonstrar que as redes sociais digitais têm um grande potencial para
criar um ambiente nocivo ao livre desenvolvimento da personalidade, de
modo que se faz necessária uma proposição ética e filosófica sobre a tecno-
logia, programas de Compliance, bem como estratégias para proteção e
promoção deste direito tão caro.

2. Redes sociais digitais


O uso da internet e das redes sociais aumenta a cada dia. Segundo a
União Internacional de Telecomunicações (UIT) até o fim de 2019, 53,6%
da população global estava conectada à internet. Este percentual, à época,
correspondia à 4.1 bilhões de pessoas1. As redes sociais mais usadas no
mundo, conforme dados do relatório Digital in 2019, do site We Are Soci-
al, são: o Facebook (2,217 bilhões de pessoas); o YouTube (1,9 bilhões de
pessoas); o WhatsApp (1,5 bilhões de pessoas); o Facebook Messenger (1,3
bilhões de pessoas); e o WeChat (1,083 bilhões de pessoas). Ao todo, 3,5
bilhões de pessoas possuem cadastro em alguma rede social.2

1 INTERNATIONAL TELECOMMUNICATION UNION (Switzerland). Statistics.


2020. Disponível em: https://www.itu.int/en/ITU-
D/Statistics/Pages/stat/default.aspx. Acesso em: 10 fev. 2020.
2 WE ARE SOCIAL (New York). Digital in 2019. 2019. Disponível em:
https://wearesocial.com/global-digital-report-2019. Acesso em: 10 fev. 2020.
186
As redes sociais digitais e o livre desenvolvimento da personalidade
Atualmente, quando se fala em redes sociais3, é comum que se faça uma
associação direta destas com as mídias sociais online tais como o Insta-
gram e o TikTok, o que não é incorreto. Entretanto, o conceito de rede
social é muito mais abrangente, nasceu antes do surgimento da internet e
originou-se na Sociologia e na Antropologia Social nas décadas de 30 e 40
do Século XX.4 Foi a partir desta época que as redes sociais começaram a
ser analisadas estruturalmente.5 Conforme destaca Acioli, uma das primei-
ras aproximações aconteceu com Lèvi-Strauss, na década de 40, com suas
análises etnográficas estruturais sobre parentesco e, no ano de 1940,
Radcliffe-Brown utiliza o termo “redes”.6
A abordagem de redes também refletiu nos estudos de agrupamentos

3 O termo “redes sociais” será utilizado em diversos momentos nesse texto. Assim, é
importante ressaltar a diferença entre as “redes sociais offline” e as redes sociais digi-
tais (virtuais ou online). Isso porque, os primeiros estudos de redes sociais, se deram
com as “redes sociais offline”, compostas por pessoas, organizações e instituições do
mundo “físico”. E o objeto de estudo deste texto são as redes sociais digitais, presen-
tes no ciberespaço. Além disso, as redes sociais digitais aqui tratadas, serão vistas
como uma entidade. São dezenas as redes sociais disponíveis atualmente, como por
exemplo: Facebook, WhatsApp, Instagram, Youtube, Tinder, Linkedin WeChat,
TikTok. Estas redes não param de nascer e ganhar adeptos. Deste modo, quando for
necessário fazer menção a uma rede social específica, isto será feito.
4 Recuero destaca alguns estudos e estudiosos que durante o século XX buscaram
compreender o fenômeno das redes sociais offline. Entre eles a autora cita Ludwig
Von Bertalanffy (1975), que desenvolveu a chamada “Teoria dos Sistemas”; Was-
serman e Faust (1994); Barabási e Albert (1999); Degenne e Forsé (1999); Scott
(2000); entre outros que se debruçaram sobre a “Análise estrutural das redes sociais”
(RECUERO, Raquel. Redes sociais na internet. Porto Alegre: Sulina, 2009. p. 18 - 20).
5 LEMIEUX, Vicent; OUIMET, Mathieu. Análise Estrutural das Redes Sociais. Lisboa:
Instituto Piaget, 2004.
6 ACIOLI, Sonia. Redes sociais e teoria social: revendo os fundamentos do conceito.
Informação & Informação, v. 12, n. 1esp, p. 8-19, dez. 2007. Disponível em:
http://srv-009.uel.br/seer/index.php/informacao/article/view/1784. Acesso em: 12
mar. 2020. p. 9
187
Victor Rodrigues Nascimento Vieira
sociais no ciberespaço7 e permitiu estudar o surgimento de estruturas soci-
ais, suas dinâmicas, a criação do capital social, a cooperação, a competição,
a diferença entre os variados grupos e seu impacto nos indivíduos.8
Mas, afinal, o que são as redes sociais digitais? São redes formadas por
indivíduos que têm algum grau de relacionamento.9 Recuero define as
redes sociais digitais como “agrupamentos complexos instituídos por inte-
rações sociais apoiadas em tecnologias digitais de comunicação”10. Segun-
do Gabardo, as redes sociais também podem representar “relações que não
são obrigatoriamente comunicacionais, como, por exemplo, relações co-
merciais e diplomáticas entre países ou, ainda, relações comerciais entre
empresas”.11
Dois elementos compõem as redes sociais, quais sejam: os atores e as
conexões entre estes atores. Os atores são os indivíduos e os grupos, consi-
derados os nós da rede. As conexões são as interações ou os laços sociais
que existem entre estes nós.12
As redes sociais são marcadas pelas comunidades virtuais, que tem co-
mo base os clusters. Um cluster é um grupo, um aglomerado de nós carac-
terizado pela desterritorialização dos laços sociais13. O agrupamento destas
comunidades pode se dar de acordo com características que os atores
compartilham (suas afinidades) ou então de acordo com a topologia da

7 Neste campo a autora destaca os trabalhos de Wellman e Gulia (1999); Wellman


(2001); Wellman, Chen e Weizen (2002), entre outros. (RECUERO, Raquel. Redes
sociais na internet. Porto Alegre: Sulina, 2009. p. 18-20).
8 Ibidem, p. 18-20.
9 GABARDO, Ademir Cristiano. Análise das redes sociais: uma visão computacional.
São Paulo: Novatec, 2015. p. 20.
10 RECUERO, op. cit., p. 13.
11 GABARDO, op. cit., p. 21.
12 RECUERO, op. cit., p. 24.
13 RECUERO, op.cit., p. 135.
188
As redes sociais digitais e o livre desenvolvimento da personalidade
rede14.
Um outro conceito muito importante para entender as redes sociais di-
gitais e seu funcionamento é o de “capital social”. Putnam apud Recuero
conceitua capital social como a “conexão entre indivíduos - redes sociais e
normas de reciprocidade e confiança que emergem dela”15. Bourdieu, Co-
leman e Putnam apud Lemieux e Ouimet, definem o capital social em ter-
mos de recursos aos quais um ator tem acesso por meio de suas relações
sociais. Este capital pode ser utilizado para a consecução de fins coletivos
ou individuais.
Lemieux e Ouimet, utilizando a teoria dos grafos16 e se valendo da aná-
lise estrutural das redes sociais17, explicam que os atores sociais são defini-
dos pelas suas relações e pela forma como se dão estas relações. Para os
autores, conforme a teoria da centralidade de proximidade (closeness cen-
trality)18 quanto mais um ator se encontra afastado dos outros, mais auto-
nomia terá nas suas escolhas.19

14 GABARDO, op. cit., p. 69.


15 RECUERO, op. cit., p. 45.
16 Segundo Recuero “Um grafo é, assim, a representação de uma rede, constituído de
nós e arestas que conectam esses nós. A teoria dos grafos é uma parte da matemática
que se dedica a estudar as propriedades dos diferentes tipos de grafos. Essa represen-
tação de redes pode ser utilizada como metáfora para vários sistemas. (...) indivíduos
e suas interações também podem ser observados através de uma rede ou grafo” (RE-
CUERO, op. cit., p. 20)
17 Fazer uma análise estrutural, - que tem por objeto as formas estáveis, evolutivas ou
não que adquirem as relações entre os atores - nada mais é do que abordar os fenô-
menos sociais (LEMIEUX, Vicent; OUIMET, Mathieu. Análise Estrutural das Redes
Sociais. Lisboa: Instituto Piaget, 2004)
18 A teoria da centralidade de proximidade (ou de afastamento) estuda a “soma das
distâncias geodésicas [comprimento (em termos de aresta ou de arco) do caminho
mais curto que liga dois atores] que ligam um ator aos outros atores de um conjunto
de relações sociais” (LEMIEUX; OUIMET, op. cit., p. 118)
19 LEMIEUX; OUIMET, op. cit., p. 16-27.
189
Victor Rodrigues Nascimento Vieira
Os estudos empíricos de Frank e Yasumoto apud Lemieux e Ouimet
demonstram que a posição estrutural de um ator influencia a ação que
levará a cabo diante de outros atores.20 Nestas interações, “a ação de um
depende da reação do outro e há uma orientação com relação às expectati-
vas” dos atores.21 Ademais, Mizruchi acredita que as redes têm influência
direta no comportamento dos atores sociais, promovendo impacto signifi-
cativo na interpretação de mundo das pessoas.
Recuero destaca os quatro valores mais comuns que permeiam as redes
sociais, quais sejam: a visibilidade, a reputação, a popularidade e a autori-
dade. Um dos principais é a reputação. A reputação é discutida pela autora
como relativa às informações recebidas pelos atores sobre o comporta-
mento dos demais e o uso dessas informações no sentido de deliberar co-
mo cada ator se comportará. Deste modo, nossa reputação pode ser influ-
enciada por nossas ações, mas depende das construções dos outros atores
sobre estas ações. Outro muito importante é a autoridade. A autoridade é
um valor per se, é o poder de influência de um ator na rede social. Ela
compreende a reputação, mas não se resume a ela.22

3. Livre desenvolvimento da personalidade


A vida humana é dotada de infinitas possibilidades e cabe a cada indi-
víduo, na intimidade do seu ser, decidir como tecerá a sua biografia. A
liberdade de construção da personalidade permite ao homem moldar os
seus planos de existência de acordo com a sua perspectiva sobre uma vida
boa e feliz.23

20 LEMIEUX; OUIMET, op. cit., p. 80-87.


21 RECUERO, op. cit., p. 31.
22 RECUERO, op. cit., p. 109-113.
23 MOREIRA, Rodrigo Pereira. Direito ao livre desenvolvimento da personalidade:
Caminhos para a Proteção e Promoção da Pessoa Humana. 2015. 290 f. Dissertação
(Mestrado em Direito) - Faculdade de Direito Professor Jacy de Assis, Universidade
190
As redes sociais digitais e o livre desenvolvimento da personalidade
Uma das primeiras previsões em um ordenamento jurídico sobre o di-
reito ao livre desenvolvimento da personalidade foi a da Constituição Itali-
ana de 1947 que, em seus artigos 2 e 3, reconheceu que deveria a República
remover os obstáculos de ordem social e econômica que impedissem o
pleno desenvolvimento da pessoa humana.24 Além dela, a Declaração Uni-
versal dos Direitos Humanos de 1948 trouxe de forma expressa em seu
artigo 22 que todo ser humano tem direito ao livre desenvolvimento da sua
personalidade.25
Na Constituição Federal brasileira de 1988 não há menção expressa a
respeito do direito ao livre desenvolvimento, o que não significa que esse
direito fundamental não componha o arcabouço do sistema jurídico brasi-
leiro. Deste modo, faz-se necessária uma argumentação jurídica com o
intuito de definir a sua estrutura, função, limites e seu reconhecimento
como direito fundamental a partir do art. 5º, § 2º da Constituição e do
princípio da dignidade da pessoa humana.26
Merece destaque, no ordenamento jurídico pátrio, a proteção conferida
pela Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018 - a Lei Geral de Proteção de
Dados (LGPD) - ao livre desenvolvimento da personalidade da pessoa
natural. A LGPD faz menção expressa a este direito no seu artigo 1º e des-
taca, consoante artigo 2º, que a disciplina de proteção de dados pessoais
tem como um de seus fundamentos o livre desenvolvimento da personali-
dade.27

Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2015), p. 10.


24 ITÁLIA. Constituição (1947). Constituição da República Italiana: Costituzione Itali-
ana – Edizione in Lingua Portoghese. Roma: Senado da República, 2018, art. (s) 2 e 3.
25 ONU. Assembleia Geral das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos Hu-
manos (1948), art. 22.
26 MOREIRA, op. cit., p. 85.
27 BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados
(LGPD). Presidência da República, Brasília. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13709.htm. Acesso
191
Victor Rodrigues Nascimento Vieira
O direito ao pleno desenvolvimento da personalidade (ou direito geral
da personalidade) consagra-se como um direito de liberdade individual
em relação à constituição da personalidade, garantindo-se a autonomia de
constituir uma personalidade livre, sem qualquer imposição de terceiros,
ou seja, emana tanto um conteúdo positivo, calcado na liberdade de agir,28
quanto um conteúdo negativo relacionado a não interferência ou impedi-
mento de outrem.29
O direito geral da personalidade pode ser compreendido em uma esfera
subjetiva e outra objetiva. Segundo Moreira, a primeira está relacionada
com a defesa da pessoa humana de forma a possibilitar a livre construção
da personalidade, assegurando uma autodeterminação própria do seu de-
senvolvimento. Sendo assim, uma vez violado ou ameaçado de violação,
esse direito garante à pessoa humana a possibilidade de exigir em juízo a
eliminação dessa perturbação.30
Na esfera objetiva, as relações sociais e ambientais em que a pessoa está
inserida também afetam o pleno desenvolvimento do seu ser, por isso é
preciso que exista a salvaguarda do exercício da liberdade, além de um

em: 09 jan de 2019.


28 Nesta acepção positiva, o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, em
muito se assemelha ao conceito ampliado de privacidade (um novo aspecto da liber-
dade) abordado na obra de Stefano Rodotá, “A vida na sociedade da vigilância: a pri-
vacidade hoje”. Segundo o autor, antes da aceleração trazida pelas inovações tecno-
lógicas, a maneira de se aplicar a definição convencional de privacidade já tinha evo-
luído. Tanto é que “sob o impulso dado por Louis Brandeis, emergiu uma visão na
qual a privacidade foi vista também como uma ferramenta de proteção a minorias e
opiniões dissonantes e, portanto, à livre manifestação e ao direito de livremente de-
senvolver a personalidade”. (RODOTÁ, op. cit., p. 15-16).
29 MIRANDA, Felipe Arady. O Direito Fundamental ao livre desenvolvimento da per-
sonalidade. Revista do Instituto do Direito Brasileiro, Lisboa, ano 2, nº 10, p. 11175-
11211, 2013, p. 11178-11179.
30 MOREIRA, op. cit., p. 126.
192
As redes sociais digitais e o livre desenvolvimento da personalidade
ambiente adequado para essa construção.31 Assim, é função do Estado
zelar pelo livre desenvolvimento da personalidade, criando as condições
sociais e ambientais necessárias para a autoconstrução da pessoa humana,
conjugando-se, desta forma, a sua dimensão pessoal, subjetiva, e as suas
dimensões social e ambiental.32

4. As redes sociais e o livre desenvolvimento da personalidade


O cadastro de uma pessoa numa rede social pode se dar por várias mo-
tivações. Em um estudo feito por Neto et al, foi constatado que o principal
motivo que leva as pessoas a acessarem as redes sociais é a influência dos
amigos.33 Nybo, por sua vez, destaca que na sociedade dataísta34 que esta-
mos vivendo, é impossível escolher não participar das redes sociais, posto
que deixaríamos de aproveitar oportunidades ou teríamos tantos desin-
centivos que nos sentiríamos forçados a participar desse modelo social.35
As redes sociais, para além de ser uma ferramenta de comunicação e in-
teração com amigos e familiares, atualmente, são utilizadas para a venda
de produtos, oferecimento de serviços, transmissão de videoaulas, divulga-
ção de notícias, eventos e vagas de emprego. Ou seja, somos compelidos a

31 MOREIRA, op. cit., p. 128.


32 MOREIRA, op. cit., p. 138.
33 SIMONETTI NETO, Arnaldo Barbalho. et. al. A influência do comportamento de
consumo de redes sociais digitais com base BPM. In: FERNANDES, Gustavo dos
Santos. DO AMARAL, Jardeylde Rosendo (Coord.) Marketing, consumo e sociedade.
Natal: Facen, 2016.
34 O dataísmo já é considerado uma religião. “Segundo o dataísmo, o Universo consiste
num fluxo de dados e o valor de qualquer fenômeno ou entidade é determinado por
sua contribuição ao processamento de dados. (HARARI, Yuval Noah. Homo Deus:
uma breve história do amanhã. São Paulo. Companhia das Letras, 2015, p. 321).
35 NYBO, Erik Fontenele. O poder dos algoritmos: como os algoritmos influenciam as
decisões e a vida das pessoas, das empresas e das instituições na Era Digital. São Pau-
lo: Enlaw, 2019. p. 18.
193
Victor Rodrigues Nascimento Vieira
utilizar as redes sociais se quisermos acompanhar os nossos amigos, fami-
liares e aproveitar todas as oportunidades que elas oferecem.
Ocorre que os diversos dispositivos digitais nos colocam em meio a
formas sutis de controle e vigilância que coletam, registram e classificam
informações, com o fim de projetar tendências, preferências e interesses.
Não basta captar e documentar os dados e informações, é necessário classi-
ficar e produzir conhecimento, de modo a aumentar o poder social com a
informação coletada.36 Coletadas as informações, os algoritmos têm a ca-
pacidade de influenciar as decisões diárias dos indivíduos com base nas
suas preferências, seguindo, sempre, determinados padrões.37
A estrutura das redes sociais é marcada por um conteúdo enviesado
que fortalece as chamadas “bolhas dos filtros”, que são palco de radicalis-
mos político-ideológicos e trazem vários efeitos nocivos que, inclusive,
fraturam a noção de esfera pública.38 Sob o ponto de vista dos riscos que
oferecem à democracia e à pluralidade de ideais, os algoritmos presentes
nas redes sociais podem restringir a diversidade de pontos de vista. Isso
porque, sob a lógica do funcionamento dos algoritmos, serão priorizados,
no feed de notícias do usuário, os conteúdos que se relacionam com a ideo-
logia que concorda e ocultados os demais, colocando o usuário numa “bo-
lha de concordância”.39

36 BRUNO, Fernanda. Dispositivos de vigilância no ciberespaço: duplos digitais e iden-


tidades simuladas. Fronteiras: estudos midiáticos, São Leopoldo, v. 8, n. 2, p.1-8, jan.
2006. p. 2.
37 NYBO, op. cit., p. 8-14.
38 LONGHI, João Victor Rozatti. Diginidade.com: direitos fundamentais na era do
populismo 3.0. In: LONGHI, João Victor Rozatti; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de
Moura (Coord.). Estudos essenciais de direito digital. Uberlândia: LAECC, 2019, p.
189-206.
39 ABIDO, Leonardo. Algoritmos e democracia: reflexões sobre a influência da inteli-
gência artificial nos processos democráticos contemporâneos. In: MAPELLI, Aline;
GIONGO, Marina; CARNEVALE; Rita (Org). Os impactos das novas tecnologias no
Direito e na sociedade. Erechim: Deviant, 2018, p. 164-165.
194
As redes sociais digitais e o livre desenvolvimento da personalidade
Tomando, mais uma vez, o Facebook como exemplo, o seu algoritmo
tem a capacidade de analisar tudo que o usuário faz: com quem tem mais
interações; quais páginas visita; e quanto tempo fica em cada vídeo40. Essas
informações (inputs)41 são processadas e são gerados outputs42 para que no
topo do seu feed de notícias apareçam, com maior frequência, as pessoas e
o tipo de conteúdo que mais interagiu. As informações disponibilizadas
pelos usuários na rede (inputs) são utilizadas (com fins comerciais) para
redirecionar anúncios, mensagens e para orientar e incentivar o consumo
das pessoas - tudo com base nos interesses manifestados nas redes soci-
ais.43
Neste mesmo sentido, Nybo destaca que ao utilizar redes sociais, como
por exemplo, Spotify, Youtube, Linkedin e Tinder deixamos um rastro digi-
tal que nutre os algoritmos. Assim, estaríamos delegando as decisões rela-
tivas a potenciais relacionamentos aos algoritmos, bem como deixaríamos
que estes mesmos algoritmos decidissem quais são as músicas que vamos
escutar e com quais pessoas vamos nos relacionar profissionalmente, o que

40 “Uma das estratégias do Facebook em busca do sucesso, foi permitir que os desen-
volvedores construíssem aplicativos diretamente no portal. Essas apps se populariza-
ram tanto quanto a rede social, englobando desde formulários de pesquisa até jogos e
ferramentas de e-commerce. Para dar suporte a esse tipo de desenvolvimento, o Face-
book disponibilizou um SDK (Software Development Kit) e uma API (Application
Programming Interface), que facilitam muito a interação com os dados da rede social.
Essas ferramentas permitem que programadores de linguagens como Java, PHP e C#
possam acessar as informações da rede social. Existe também uma API chamada
Graph API, que possibilita o acesso a diversas informações do usuário, como dados
de conta, imagem de exibição do usuário e listagem de amigos. (...) Por meio da API é
possível construir programas para acessar os dados de um usuário em praticamente
qualquer linguagem e plataforma”. (GABARDO, op. cit., p. 94)
41 Input, em tradução livre feita pelo autor tem o significado de entrada.
42 Output em tradução livre feita pelo autor tem o significado de saída.
43 ABIDO, op. cit., p. 162-163.
195
Victor Rodrigues Nascimento Vieira
gera um padrão de comportamento e enviesamento de decisões.44
É um sistema em que os atores sociais informam aos algoritmos como
normalmente agem. Com base nisso, os algoritmos reforçam este padrão
de conduta e as empresas que têm potencial de processar todas essas in-
formações, podem esperar determinado comportamento dos usuários que
é repetido ao longo do tempo. “A partir desse momento, a pessoa corre o
risco de repetir sempre o mesmo padrão de comportamento, influenciada
por algoritmos, sem ter consciência disso”.45
O que se observa deste cenário, portanto, é que influenciados pelos
amigos, pela imposição social, para comunicar com os colegas e familiares
ou com o fim de aproveitar as oportunidades, as pessoas criam perfis nas
redes sociais. Uma vez que estão nestas plataformas, recebem diversos
incentivos para continuar46 e são vigiadas constantemente.
O uso diário das redes faz com os usuários forneçam dados que serão
utilizados para classificá-las, prever, induzir e manipular o seu comporta-
mento. Além disso, correm o risco de cair nas chamadas “bolhas de filtro”
o que faz com que repitam um mesmo padrão de comportamento, influ-
enciado pelos algoritmos. Todo esse conjunto de fatores faz com que o
usuário fique limitado e incapacitado de construir, autonomamente, a sua
personalidade, ou seja, há um desgaste do direito ao livre desenvolvimento
da personalidade.

44 NYBO, op. cit., p. 23-24.


45 NYBO, op. cit., p. 24.
46 Redes sociais, como o Facebook, são arquitetadas para prender a atenção e distrair os
seus usuários explorando as vulnerabilidades humanas. Assim, quando alguém curte
ou comenta uma foto, há uma descarga de dopamina e a descarga deste neurotrans-
missor no córtex frontal do cérebro ativa os mesmos circuitos cerebrais que são ati-
vados quando dependentes químicos de cocaína têm contato visual com a droga
(PARKIN, Simon. Has dopamine got us hooked on tech? 2018. Disponível em:
https://www.theguardian.com/technology/2018/mar/04/has-dopamine-got-us-
hooked-on-tech-facebook-apps-addiction. Acesso em: 10 fev. 2020.)
196
As redes sociais digitais e o livre desenvolvimento da personalidade

5. Compliance, Ética, limites e possíveis soluções


Segundo Faleiros Júnior, estudar Compliance está atrelado a estudar os
assuntos de Governança Corporativa, Gestão de Risco, Ética e Moral. Estar
em Compliance significa agir de acordo com as regras (leis, marcos regula-
tórios e normativas internas e externas do mercado). Entretanto, algumas
empresas focam apenas nas regras internas, sem fazer um alinhamento
com as questões jurídicas.47
Ocorre que as grandes empresas de tecnologia têm Compliance Officers
e normas de compliance a serem seguidas. Os grandes diretores executivos
sabem dos potenciais riscos que as redes sociais apresentam e alguns deles,
inclusive, não querem que seus familiares as usem.48 Entretanto, as condu-
tas de coletas de dados, profiling49 e manipulação continuam ocorrendo.
É claro, portanto, que a dinâmica das redes sociais digitais, atualmente,
lança desafios inimagináveis em tempos pretéritos. Como então devemos
enfrentar esses novos desafios? É inegável que esses riscos representados
pelas redes sociais exigem profunda reflexão ética e regras de Compliance a
serem seguidas.
É questionável se as ferramentas éticas tradicionais são capazes de nos
auxiliar. A maioria delas, pensadas em séculos passados, não vislumbrou -

47 FALEIROS JUNIOR, José Luiz de Moura. Notas Introdutórias ao Compliance Digi-


tal. In: CAMARGO, Coriolano Almeida. [et al.] (Coord.) Direito Digital: novas teses
jurídicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, p. 116-117.
48 ROSA JIMENEZ CANO. El Pais. “Não quero meu sobrinho nas redes sociais”, diz
Tim Cook, CEO da Apple. 2018. Disponível em:
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/01/23/tecnologia/1516666969_215422.html.
Acesso em: 03 fev. 2020.
49 Profiling, em tradução livre, significa perfilamento. Para Magrani, o profiling pode ser
explicitado pela criação de dossiês de informações sobre determinado indivíduo com
o intuito de efetuar correlações com outras informações e perfis. (MAGRANI, Edu-
ardo. A internet das coisas. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2018. p. 98).
197
Victor Rodrigues Nascimento Vieira
e nem poderia - o potencial da techne desenvolvida pelo ser humano.
Mesmo hoje é difícil de decidir-se sobre as suas consequências. Hans Jonas
aponta que essas antigas filosofias morais se dirigiam para uma ação ime-
diata, temporal e espacialmente limitada, dada a proximidade dos homens.
Essa ação, ademais, posicionava-se na ação indivíduo-indivíduo, no senti-
do prático de seu resultado.50
Para Jonas, a alteração do agir humano, através da techne, que na anti-
guidade era eticamente neutra, passa a importar uma reflexão ética, em
virtude de esse agir voltar-se para o próprio homo sapiens.51 Isso porque, a
essência do humano, em que pese sua capacidade de alterar o ambiente,
era permanente: com as novas tecnologias esse quadro se altera.52 Desse
modo, os modelos éticos predecessores seriam insuficientes para solucio-
nar os atuais desafios.
É necessária, portanto, uma ação responsável. A ação responsável é
aquela que se preocupa com as consequências que gera na vida daqueles
que são influenciados por quem age.53 O primeiro objeto dessa responsabi-
lidade são as outras pessoas.54 Para Jonas a primeira de todas as responsa-
bilidades é garantir que haja responsabilidade e essa só pode existir se exis-
tir humanidade.55
Nessa linha, e assumindo que o ser humano é um fim em si mesmo, a
atuação das empresas de redes sociais, deve ser no sentido de assumir res-
ponsabilidade sobre os seus usuários, destacando-se que as próprias con-
sequências sócio-políticas da supressão do livre desenvolvimento da per-

50 JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização


tecnológica. Tradução de Marijane Lisboa e Luis Barros Montez. 2. ed. Rio de Janei-
ro: PUC Rio, 2006. p. 35
51 Ibidem, p. 35.
52 Ibidem, p. 43-44.
53 Ibidem, p. 165-174.
54 Ibidem, p. 175.
55 Ibidem, p. 175-177.
198
As redes sociais digitais e o livre desenvolvimento da personalidade
sonalidade estão enquadradas. O “agir irresponsável” corresponde a su-
pressão desse direito e à negação do ser humano como fim em si mesmo.
Rodotà, destaca que a Carta de Direitos Fundamentais da União Euro-
peia de 2000 reconheceu a proteção de dados como direito autônomo,
estabelecendo critérios para o processamento de dados. É um direito autô-
nomo de controle sobre as informações, que se refere aos novos direitos
surgidos das inovações científicas e tecnológicas. Para Rodotà, estamos
diante de uma reinvenção da proteção de dados, posto que ela se tornou
uma ferramenta essencial para o livre desenvolvimento da personalidade.56
Considerando o cenário de desenvolvimento tecnológico e de conflitos
com o qual se deparou (e que vivemos atualmente), o desgaste, recorrente,
aos direitos fundamentais, a prevalência de “interesses de segurança” e da
“lógica de mercado” e o fato de que a proteção da personalidade tem a ver
com a proteção de dados, Rodotà destacou a necessidade de uma “rein-
venção afirmativa” e pensou uma estratégia de proteção, resumida em dez
pontos para defender os direitos que foram formalmente reconhecidos,
bem como desenvolver o seu potencial.57
Os cinco primeiros pontos (e a meu ver, os mais importantes) são os
seguintes: (i) países ou regiões onde o patamar de garantias é especialmen-
te alto devem ter responsabilidades especiais; (ii) os direitos à proteção de
dados não devem ser subordinados a nenhum outro direito; (iii) restrições
ou limitações a este direito devem ser admitidas somente se determinadas
condições específicas forem obedecidas; (iv) salvaguardas deveriam ser
baseadas em princípios que consideram a pessoa como pessoa, que tem
personalidade e dignidade; e (v) não se deve ser tolerado que um dado seja
utilizado de modo a transformar um indivíduo em objeto sob vigilância
constante.58

56 RODOTÁ, op. cit., p. 16-17.


57 RODOTÁ, op. cit., p. 18.
58 Os cinco últimos, por sua vez são: (vi) o direito fundamental à proteção de dados
199
Victor Rodrigues Nascimento Vieira
Rodotà pensou tal estratégia para a proteção de dados, mas consideran-
do que os direitos à liberdade, privacidade, proteção de dados e livre de-
senvolvimento, embora sejam distintos, caminham juntos, a proteção de
qualquer um deles, significa uma proteção, ou um reforço, à proteção dos
demais. De forma ilustrativa: se existe uma proteção efetiva aos dados dos
usuários em redes sociais, de modo que estes não sejam coletados, o profi-
ling é impossibilitado ou dificultado.
Assim, se há uma impossibilidade ou dificuldade de fazer o profiling
dos usuários, fica comprometida também a predição de suas preferências
(pelos algoritmos) o que, consequentemente, dificulta o direcionamento
de publicidade assertivas e/ou de publicações enviesadas em seu feed, pro-
tegendo, portanto, o direito ao livre desenvolvimento da personalidade e
evitando o “efeito bolha”. Assim, considero a estratégia pensada por Ro-
dotà, para a proteção de dados, como perfeitamente aplicável à proteção ao
livre desenvolvimento da personalidade nas redes sociais.
Acrescento alguns pontos que acredito serem importantes para a miti-
gação da manipulação dos comportamentos que se dá através das redes,
que, de certo modo poderiam fazer com que o usuário utilizasse de forma
moderada e consciente os seus aplicativos e tivessem maior autonomia,
consagrando e protegendo o direito ao livre desenvolvimento à personali-
dade.
Seria de fundamental importância que as empresas que criam aplicati-
vos de redes sociais: (i) tivessem uma preocupação maior em deixar de

deveria ser visto como uma promessa renovada e transferida do corpo físico ao corpo
eletrônico, devendo ser rejeitadas todas as formas de reducionismo; (vii) especial
atenção deve ser dada à “minimização” da coleta de dados; (viii) devem ser introdu-
zidos procedimentos de avaliação de impacto sobre a privacidade; (iv) os diversos ti-
pos de retenção de dados devem ser regulados por iniciativas específicas, e a redução
e/ou eliminação do consentimento informado deve ser impedida; (x) o direito fun-
damental à proteção de dados deve ser considerado um componente essencial da fu-
tura Carta de Direitos da Internet (RODOTÁ, op. cit., p. 18-21).
200
As redes sociais digitais e o livre desenvolvimento da personalidade
recomendar e promover conteúdo desinformador e pernicioso; (ii) cons-
truíssem algoritmos que evitassem o aparecimento das “bolhas”; (iii) não
coletassem - ou que coletassem o mínimo necessário (para não ser utópi-
co) - de dados dos usuários; (iv) advertissem os usuários sobre o excesso
de tempo que estes passam nas timelines; (v) desenvolvessem, dentro das
redes sociais, plataformas de checagem de fatos e eliminação de material
falso, as fake news.
Quanto aos usuários, estes deveriam: (i) avaliar como gerenciam seu
tempo nas redes; (ii) proceder à checagem de fatos das notícias que são
compartilhadas; (iii) procurar fontes alternativas de informação, diversas
daquelas sugeridas pelos algoritmos; (iv) buscar familiarizar-se às políticas
de privacidade das redes sociais, bem como aos termos de uso e contesta-
los, se necessário, em âmbito judicial; (v) cogitar se a informação que pre-
tendem compartilhar pode ter algum efeito sobre o bem-estar do outro.

6. Considerações finais
Não se deseja, com tudo o que foi dito até aqui, demonizar ou abolir as
redes sociais, até porque, como já foi destacado na introdução, elas repre-
sentarão benefícios ou malefícios, a depender de como serão usadas. Não
cabe a este autor definir o que é certo e errado, bem como o que é bom ou
mau. Entretanto, não podemos negligenciar as armadilhas presentes nestas
mídias sociais e as consequências que elas podem trazer.
Metade da população global está conectada à internet. Bilhões de seres
humanos utilizam redes sociais todos os dias. Atualmente, é praticamente
impossível não utilizar uma rede social, independentemente da motivação
e do objetivo que o indivíduo tenha. Deste modo, o uso das redes sociais
deve ser encarado com mais seriedade.
As redes sociais e seus algoritmos têm um potencial tremendo de cole-
tar dados, traçar perfis, predizer preferências e direcionar postagens (pu-
blicitárias ou não) capazes de influenciar no aspecto subjetivo do livre
201
Victor Rodrigues Nascimento Vieira
desenvolvimento da personalidade, ou seja, impossibilitar a livre constru-
ção da personalidade, cerceando qualquer tipo de autodeterminação pró-
pria do seu desenvolvimento.
Além disso, a arquitetura e o design das redes e a forma como são cons-
truídos (e como funcionam) os algoritmos, transformam este ambiente
virtual e as relações sociais que se desenvolvem nestas mídias digitais, em
flagrante violação à esfera objetiva do direito geral de personalidade, posto
que não proporcionam um local adequado para a autoconstrução da pes-
soa humana.
Quando falamos de privacidade, proteção de dados, liberdade e livre
desenvolvimento da personalidade, estamos falando de direitos humanos,
direitos fundamentais, direitos da personalidade, estamos falando, ao cabo,
da dignidade da pessoa humana. E, para além disso, estamos falando de
poder, poder que poucas empresas das Tecnologias da Informação e Co-
municação (TIC) detém sobre os milhões de usuários de suas plataformas.
Afinal, estamos passando pela Quarta Revolução Industrial, estamos na
Sociedade da Informação, presenciando a “web 3.0” e estamos indo rumo
à “web 4.0” contextualizada pela Era da Internet das Coisas. Dados, infor-
mações e conhecimento são um dos maiores ativos da contemporaneida-
de. Ter conhecimento e possibilidade de manipulação, significa ter um
poder incomensurável, que é capaz de influenciar eleições, induzir os ru-
mos da economia e da política e interferir direta ou indiretamente nos
caminhos que tomará a sociedade e cada um dos seus indivíduos, o que
nos leva à inevitabilidade do Compliance, do debate da Ética e da respon-
sabilidade.
Daí a necessidade de que sejam traçadas estratégias de proteção de da-
dos, de que sejam debatidos controles institucionais, de que hajam freios
para limitar certos usos das redes, de que a Governança da Internet seja
efetiva, de que sejam pensadas novas regulamentações direcionadas para
as redes sociais digitais, bem como que hajam proposições éticas e filosófi-

202
As redes sociais digitais e o livre desenvolvimento da personalidade
cas sobre a tecnologia e seus impactos na sociedade e nos indivíduos.

Referências
ABIDO, Leonardo. Algoritmos e democracia: reflexões sobre a influência
da inteligência artificial nos processos democráticos contemporâneos.
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__________________________________________________

205
COMPLIANCE DIGITAL: NOVAS
PERSPECTIVAS SOBRE ÉTICA NA
SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

9
Aline Ferreira Costa Carneiro
Lucimeire Zago de Brito
Viviane Ramone Tavares

1. Introdução
Está claro perceber que nossa sociedade, inclusive sob a análise global,
passa por mudanças admiráveis nos aspectos de inovação, tecnologia, rela-
ções interpessoais, exigindo, por isso, uma consciência ética cada vez mais
presente.
A prática de atos de corrupção acontece desde os tempos primórdios,
porém, atualmente vivemos situações que enfrentam o uso de informações
antes sigilosas e que agora passam a ser imprescindíveis, principalmente
porque é feito o uso de inteligência artificial em praticamente quase todos
os segmentos da sociedade.
Dessa maneira, o objetivo deste estudo é demonstrar de forma breve a
necessidade de comportamentos éticos e íntegros diante das inovações
impostas pela sociedade da informação.

207
Aline Ferreira C. Carneiro · Lucimeire Zago de Brito · Viviane Ramone Tavares
2. Conceitos fundamentais
É sabido que estamos vivendo a quarta revolução industrial, que com-
preende essencialmente a transformação digital e a revolução tecnológica,
com o envolvimento de big data, algoritmos, internet das coisas, inteligên-
cia artificial, ecossistemas de inovação industrial e diversos outros fatores
de ascensão de novas tecnologias.
Com todos os impactos que a revolução tecnológica está causando na
sociedade, nos propomos a (re)pensar as novas perspectivas da ética, a fim
de questionarmos quais parâmetros éticos devemos estar em Compliance
(conformidade), na tentativa de garantirmos que a essência humana será
cuidada diante da ascensão do aprendizado da máquina.

2.1. Breve contexto histórico sobre a ética


A ética é discutida desde os primórdios da humanidade, a fim de se es-
tabelecer parâmetros de conduta humana levando em consideração o que
se entende por bem e mal.
Ao longo dos tempos, o que se entende por ética vem se modificando,
na medida em que novas problemáticas do agir humano vem surgindo
diante da revolução tecnológica que estamos vivendo.
Hans Jonas defende que a ética não era útil na natureza, eis que esta
cuidava de si mesma e não era objeto da responsabilidade humana e que, a
partir da criação da “cidade”, ou seja, do artefato social, a ética passou a
ser útil para definir as condutas de convivência entre os homens. Em suas
palavras:
A natureza não era objeto da responsabilidade humana – ela cuidava de si
mesma e com a persuasão e a insistência necessárias, também tomava con-
ta do homem: diante dela eram úteis a inteligência e a inventividade, não a
ética. Mas na “cidade”, ou seja, no artefato social onde homens lidam com
homens, a inteligência deve casar-se com a moralidade, pois essa é a alma

208
Compliance digital
de sua existência. É nesse quadro intra-humano que habita toda ética tra-
dicional, adaptada às dimensões do agir humano assim condicionado1.
Sendo assim, Hans Jonas explica que o significado ético tradicional “di-
zia respeito ao relacionamento direto de homem com homem, inclusive o
de cada homem consigo mesmo”2 e que a preocupação ética tinha a ver
com o agir imediato, ou seja, surgia de acordo com as ocasiões que se apre-
sentavam naquele momento.
Atualmente, além das circunstâncias que se apresentam no aqui e no
agora, a preocupação ética se estende para o futuro, na tentativa de definir
parâmetros éticos que deverão permear a evolução tecnológica, de modo a
abarcar a relação entre os seres humanos e a autonomia das máquinas, e a
relação entre as próprias máquinas.
Yuval Harari propõe que levemos a sério as transformações sociais que
o avanço no conhecimento científico e tecnológico causará na própria
identidade humana. Em suas palavras:
O que devemos levar a sério é a ideia de que a próxima etapa da história
incluirá não só transformações tecnológicas e organizacionais como tam-
bém transformações sociais na consciência e na identidade humana. E es-
sas podem ser transformações tão fundamentais que colocarão em dúvida
o próprio termo “humano”3.
Diante das implicações éticas que a revolução tecnológica faz emergir e
do contexto em que as máquinas estão se tornando cada vez mais autôno-
mas e com mais características similares aos humanos, Harari explica que

1 JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização


tecnológica. Tradução de Marijane Lisboa, Luiz Barros Montez. Rio de Janeiro: Con-
traponto/PUC-Rio, 2006, p. 33-34.
2 JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização
tecnológica. Tradução de Marijane Lisboa, Luiz Barros Montez. Rio de Janeiro: Con-
traponto/PUC-Rio, 2006, p. 35-36.
3 HARARI, Yuval Noah. Sapiens: uma breve história da humanidade. Tradução de
Janaína Marcoantonio. 42. ed. Porto Alegre: L&PM, 2019, p. 424.
209
Aline Ferreira C. Carneiro · Lucimeire Zago de Brito · Viviane Ramone Tavares
a justificativa dada pelos cientistas para a criação de uma mente dentro de
um computador é uma forma de “Aperfeiçoamento Humano”, na busca
de curar doenças e salvar vidas.
Harari propõe uma reflexão sobre o que queremos nos tornar, ao suge-
rir que devemos pensar na possibilidade de estarmos criando algo verda-
deiramente superior a nós e colocando um fim no que conhecemos como
“humano”.
Neste contexto, Yuval Harari defende que:
A única coisa que podemos tentar fazer é influenciar a direção que eles es-
tão tomando. Mas, considerando que possivelmente logo seremos capazes
de manipular inclusive nossos desejos, a verdadeira pergunta a ser enfren-
tada não é “O que queremos nos tornar?”, e sim “O que queremos que-
rer?”4.
O questionamento sobre “o que queremos querer” faz sentido também
em um contexto no qual devemos pensar sob quais parâmetros éticos e
morais queremos pautar a evolução tecnológica, até que ponto as máqui-
nas terão autonomia e a que custo isso se dará.
Daí se falar em ética das coisas, de modo a pensar na aplicação de prin-
cípios éticos e morais às máquinas, com enfoque no desenvolvimento da
inteligência artificial, na tentativa de continuarmos prezando pela essência,
direitos e liberdades do ser humano.

2.2. Definições conceituais sobre sociedade da informação


Diversas são as teorias sobre o surgimento do termo “sociedade da in-
formação”, todavia os pesquisadores das mais variadas disciplinas são
unânimes ao afirmar que, desde o início dos anos 2000, estamos diante de
uma nova era: a era da informação.

4 HARARI, Yuval Noah. Sapiens: uma breve história da humanidade. Tradução de


Janaína Marcoantonio. 42. ed. Porto Alegre: L&PM, 2019, p. 426.
210
Compliance digital
O início da utilização do termo remonta a 1960 e, a despeito de estar
umbilicalmente ligada à ideia da “indústria da informação”, segundo estu-
dos de DUFF5, foi disputado pelo Japão e pelo Estados Unidos6.
Contudo, independentemente de sua origem, verifica-se que os doutri-
nadores têm como tão óbvio o termo que presumem não ser necessário
conceituá-lo.
Frank Webster7, brilhantemente (após fracionar a análise nos critérios
tecnológicos, econômicos, ocupacionais, espaciais e culturais), confidenci-
ou que a primeira definição isolada de informação que lhe vinha à mente
era a semântica: “information is meaningful; it has a subject; it is intelligen-
ce or instruction about something or someone”. Conclui assim que sua im-
portância foi incrementada e tornou-se a própria definição da sociedade
contemporânea.
A sociedade da informação resta, pois, conceituada como modelo or-
ganizacional em que a informação8 desempenha papel básico para seu

5 DUFF, Alistair. Information society studies. Londres: Routledge, 2000.


6 Isso porque, os EUA enfatizam que Fritz Machlup, em sua obra “The production and
distribution of knowledge in the United States” afirmou que “... all information in the
ordinary sense of the word is knowledge”. Não se olvidando a utilização do termo na
Conferência Anual da ASIS (American Society for Information Science). Assim,
houve a distinção do termo anteriormente utilizado (“indústria da informação”) vis-
to que a sociedade é uma formação complexa da qual a indústria é apenas um dos
muitos componentes. Em contrapartida o Japão especifica que Yujiro Hayashi teria
utilizado o termo (“Joho Shakai”) um ano antes da Conferência da ASIS.
7 WEBSTER, Frank. Theories of the information society. 3. ed. Londres: Routledge,
2006.
8 Qualificada por Pietro Perlingieri, como bem jurídico – “La informazione come
servizio postula l’informazione come bene. L’assenza di tutela degli investimenti nel
settore significherebbe creare una zona franca dominata da un precario parasitismo,
con grave danno sai per le imprese sia per l’intero sistema, anche istituzionale, che fa
perno sulla partecipazione informata” (PERLINGIERI, Pietro. L`informazione come
bene giuridico. Rassegna di diritto civile, 2/90, p. 329, apud DONEDA, Danilo. O di-
reito fundamental à proteção de dados pessoais. In: MARTINS, Guilherme Maga-
211
Aline Ferreira C. Carneiro · Lucimeire Zago de Brito · Viviane Ramone Tavares
desenvolvimento.

2.3. Conceito e breve evolução histórica do Compliance


Como já dito, nossa sociedade foi levada a (re)pensar na ética e na im-
portância de valores, tais como a integridade na vida pública e empresarial,
o que se deu principalmente em razão dos escândalos expostos nas investi-
gações da tão conhecida “Operação Lava Jato”.
Desse modo, podemos afirmar que vivemos, recentemente, um tempo
em que o Governo, empresas e a população passam a reconhecer e a exigir
situações de conformidade e integridade, por meio de ações éticas, em suas
relações. Hui Chen assim define: “se a integridade pública é o objetivo, a
ética é a bússola e o Compliance é o meio para alcançar esse objetivo.”9
E nesse sentido, não se tratam apenas sobre questões de suborno e cor-
rupção no âmbito das organizações empresariais com entes públicos, mas
também de ética nas relações financeiras, de trabalho, ambientais e etc.,
fazendo surgir também, em razão do nascimento da sociedade da informa-
ção e das consequências por ela impostas pelo uso da tecnologia, medidas
de Compliance que também estejam relacionadas com toda essa evolução e
inovação. E aqui vale destacar que o vocábulo inglês Compliance, quando
sob análise singular, deve ser entendido apenas como “estar em conformi-
dade”.
Há que se destacar de forma breve, que esse cenário de necessidade e
exigência de comportamentos íntegros e em conformidade com a legisla-
ção, surgiu nos Estados Unidos em 1977, por meio da Lei de Práticas de
Corrupção no Exterior10 (Foreign Corrupt Practices Acts), comumente

lhães; LONGHI, João Victor Rozatti (Orgs.). Direito Digital: direito privado e inter-
net. 2. ed. Indaiatuba: Foco, 2019, p. 39
9 CUNHA, Matheus Lourenço Rodrigues; KALAY, Marcio El. (Orgs). Manual de
Compliance: compliance mastermind. Vol. 1. São Paulo: LEC Editora, 2019, p. 19.
10 ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Department of Justice. Statute. Foreign Corrupt
212
Compliance digital
denominada FCPA, que foi a primeira lei no mundo a tratar da criminali-
zação de atos de suborno para com funcionários estrangeiros, sendo tam-
bém aplicável a pessoas estrangeiras e pessoas físicas que causem atos de
corrupção, mesmo que fora do território americano, possuindo por isso
influência em ordenamentos jurídicos internacionais.
Referido regramento norte americano desde então tem sido extrema-
mente importante para combater a corrupção no mundo, principalmente
por conter previsões específicas sobre Programas de Compliance efetivos,
de modo a inspirar legislações em várias partes do mundo, a exemplo do
Brasil.
O Brasil possui um vasto conjunto normativo que envolvem Leis, Leis
Complementares e Decretos, que tratam questões anticorrupção e a des-
crição de condutas ilícitas e respectivas sanções, sendo todas com lastro na
própria Constituição Federal de 1988, que em seu artigo 37 estabelece,
dentre outros princípios e garantias, o princípio da moralidade na Admi-
nistração Pública direta e indireta de quaisquer dos Poderes da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
No entanto, para a finalidade do presente artigo, chamamos a atenção
para a Lei 12.846/13 (conhecida como Lei Anticorrupção ou Lei da Em-
presa Limpa) e o Decreto Federal n.º 8.240/2015 (Decreto Anticorrupção)
que a regulamentou, os quais representam a evolução do conceito de
Compliance no país, tratando não apenas da necessidade de se evitar frau-
des e atos de corrupção, mas também de sistemas efetivos de gestão nas
organizações, e por conseguinte refletindo a imagem de uma empresa idô-
nea e com melhor potencial de competitividade comercial.
Acrescente-se ainda, além do caráter punitivo estabelecido na lei, há
também espaço muito relevante para medidas anticorrupção a serem ado-

Practices Act of 1977. Portuguese. Disponível em:


https://www.justice.gov/sites/default/files/criminal-fraud/legacy/2012/11/14/fcpa-
portuguese.pdf. Acesso em: 23 mar. 2020.
213
Aline Ferreira C. Carneiro · Lucimeire Zago de Brito · Viviane Ramone Tavares
tadas por uma empresa, as quais podem ser reconhecidas como fatores
atenuantes em um eventual processo de responsabilização, medidas essas
denominadas pela lei de Programa de Integridade, ou comumente conhe-
cido como Programa de Compliance, que como já exposto anteriormente,
trata-se de um mecanismo e procedimentos de integridade a serem obser-
vados para estar em conformidade com algo.
E da análise do arcabouço jurídico pátrio que trata do assunto Compli-
ance, denota-se possuir os mesmos critérios estabelecidos nas legislações e
ou orientações/diretrizes internacionais (principalmente a já tratada
FCPA) que buscam a prevalência da ética nas relações comerciais, princi-
palmente com entes públicos.
Segundo o artigo 41 do Decreto 8.240/2015, temos a seguinte definição
para o que é Programa de Integridade11:
Programa de integridade consiste, no âmbito de uma pessoa jurídica, no
conjunto de mecanismos e procedimentos internos de integridade, audito-
ria e incentivo à denúncia de irregularidades e na aplicação efetiva de có-
digos de ética e de conduta, políticas e diretrizes com objetivo de detectar e
sanar desvios, fraudes, irregularidades e atos ilícitos praticados contra a
administração pública, nacional ou estrangeira.
Do texto da lei, denota-se ser a ética regra essencial para a implantação
e comprovação da existência de um Programa de Integridade (Programa
de Compliance). E compondo a ética regras de ordem moral e valores a
balizar o comportamento humano, denota-se uma cadeia de sucessivos
benefícios vivenciados a todos os envolvidos diretamente e indiretamente.
Segundo David Jackman12, uma das principais vantagens de um Pro-

11 BRASIL. Decreto Federal n.º 8.420, de 18 de março de 2015. Regulamenta a Lei nº


12.846, de 1º de agosto de 2013, que dispõe sobre a responsabilização administrativa
de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou
estrangeira e dá outras providências. Diário Oficial da União, 19 março 2015.
12 JACKMAN, David. The compliance revolution: how compliance needs to change to
214
Compliance digital
grama de Compliance efetivo, ou seja, que se mantém ao longo do tempo e
é constantemente desenvolvido, é que ele fornece de maneira eficaz os
resultados socioeconômicos, ou seja, não há benefícios apenas para a em-
presa, mas para a comunidade em geral, o que a nosso ver é óbvio, pois
implantando medidas éticas na companhia, exige-se comportamentos
íntegros de toda uma cadeia (alta direção, colaboradores, prestadores de
serviços, fornecedores, e terceiros em geral que negociem com essa com-
panhia), sendo por isso que o autor conclui que o Programa de Complian-
ce é o meio para se alcançar tal fim (resultados socioeconômicos positi-
vos).
Contextualizada a questão do Programa de Compliance com o já ex-
posto, para fins deste artigo, o que se busca tratar é o alinhamento de me-
didas de Compliance a serem aplicadas na sociedade na era da informação
(e digital) que ora se apresenta com demandas e exigências que envolvem a
ética e a integridade nas relações existentes entre o particular detentor de
dados e um terceiro, este em sua maioria, representado por uma organiza-
ção que poderá ter um viés de interesse público ou privado.

3. Compliance digital e os desafios éticos


3.1. Privacidade e proteção de dados pessoais
Apesar de serem conceitos inter-relacionados, privacidade e proteção
de dados pessoais não se confundem.
Os estudos sobre o conceito do direito à privacidade possui como mar-
co inicial a publicação do renomado artigo de Samuel Warren e Louis
Brandeis, denominado “The right to privacy”, que trazia a concepção do
direito à privacidade sob o viés do “direito a ser deixado só”.
O conceito tradicional do direito à privacidade vem passando por
transformações, considerando a ascensão de novas tecnologias e dos im-

survive. Nova Jersey: John Wiley & Sons, 2015, p. 11.


215
Aline Ferreira C. Carneiro · Lucimeire Zago de Brito · Viviane Ramone Tavares
pactos que estas causam na esfera da vida privada. Assim, com a revolução
tecnológica e com a necessidade de um tratamento cada vez mais massivo
de dados pessoais para uma sociedade hiperconectada e para o desenvol-
vimento da inteligência artificial, machine learnig, deep learning etc., a
ótica do direito à privacidade perpassa por novas perspectivas.
Stefano Rodotà aponta para a nítida diferença existente entre a noção
de privacidade do século XIX e a de hoje, em sua renomada obra traduzida
como “A Vida na Sociedade da Vigilância”13.
[...] parece cada vez mais frágil a definição de “privacidade” como o “di-
reito a ser deixado só”, que decai em prol de definições cujo centro de gra-
vidade é representado pela possibilidade de cada um controlar o uso das
informações que lhe dizem respeito”14.
Em um contexto de big data, em que bilhões de dados são processados
diariamente, se torna possível cada vez mais identificar padrões de com-
portamento dos indivíduos e conhecer seus hábitos, preferências e desejos,
de modo a tentar direcionar as escolhas de cada um15.
Rodotà defende que na sociedade da informação, o conceito de privaci-
dade é melhor definido como “o direito de manter o controle sobre as
próprias informações”, ou seja, o direito à autodeterminação informativa.
Nas palavras do autor:
Uma definição da privacidade como “direito a ser deixado só” perdeu há
muito tempo seu valor genérico, ainda que continue a abranger um aspec-
to essencial do problema e possa (deva) ser aplicada a situações específicas.

13 Cf. RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância: a privacidade hoje. Organi-


zação, seleção e apresentação: Maria Celina Bodin de Moraes. Tradução de Danilo
Doneda e Luciana Cabral Doneda. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
14 RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância: a privacidade hoje. Organiza-
ção, seleção e apresentação: Maria Celina Bodin de Moraes. Tradução de Danilo Do-
neda e Luciana Cabral Doneda. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 24.
15 MAGRANI, Eduardo. Entre dados e robôs: ética e privacidade na era da hiperconec-
tividade. 2. ed. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2019, p. 35.
216
Compliance digital
Na sociedade da informação tendem a prevalecer definições funcionais da
privacidade que, de diversas formas, fazem referência à possibilidade de
um sujeito conhecer, controlar, endereçar, interromper o fluxo das infor-
mações a ele relacionadas”16.
A partir dessa perspectiva do conceito do direito à privacidade, em um
contexto em que se tenta dar ao indivíduo uma maior autonomia no con-
trole de suas próprias informações, nasce o direito à proteção dos dados
pessoais.
“O discurso sobre a privacidade cada vez mais gira em torno de ques-
tões relacionadas a dados pessoais e, portanto, sobre a informação”17. Isso
porque, com o tratamento massivo de dados pessoais, possibilitando um
desenvolvimento cada vez mais acelerado da informática e da tecnologia,
pessoas estão cada vez mais vulneráveis à criação de perfis de comporta-
mento baseados em características de sua personalidade, o que pode inva-
dir, sobremaneira, a vida privada dos indivíduos.
O quadro pode ser representado em outros termos, como o econômico
utilizado por Roberto Pardolesi: para ele, graças ao desenvolvimento dos
meios de armazenamento e processamento de dados, cresceria exponenci-
almente o custo para se manter uma informação em segredo; a privacidade
ficaria mais custosa, à medida que a utilização dos dados pessoais se torna
mais econômica e acessível18.
As primeiras iniciativas legislativas acerca da privacidade sob um viés

16 RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância: a privacidade hoje. Organiza-


ção, seleção e apresentação: Maria Celina Bodin de Moraes. Tradução de Danilo Do-
neda e Luciana Cabral Doneda. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 92.
17 DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais: elementos da forma-
ção da Lei geral de proteção de dados. 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil,
2019, p. 135.
18 DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais: elementos da forma-
ção da Lei geral de proteção de dados. 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil,
2019, p. 151.
217
Aline Ferreira C. Carneiro · Lucimeire Zago de Brito · Viviane Ramone Tavares
da proteção dos dados pessoais remontam da década de 1970, que foram
evoluindo em gerações de leis até chegarmos na quarta geração, como as
leis de proteção de dados que existem atualmente em vários países19.
Na legislação brasileira, a privacidade é tida como um direito funda-
mental, previsto no artigo 5º, inciso X da Constituição Federal, que prevê
“a inviolabilidade da intimidade e da vida privada”, “englobando, segundo
a doutrina, a proteção aos dados pessoais, tanto no meio físico como digi-
tal”20.
O Marco Civil da Internet (Lei n.º 12.965/14), apesar de não se tratar de
uma normativa geral de proteção de dados, trata da proteção de dados
pessoais principalmente como um princípio norteador do uso da internet
no Brasil, ao lado de outros princípios como a garantia da liberdade de
expressão e a proteção da privacidade.
Além disso, referida lei em seu artigo também 4º21 dispõe sobre o fo-
mento da inovação e do desenvolvimento de novas tecnologias que, a nos-
so ver, estão diretamente relacionadas ao desenvolvimento de uma eco-
nomia digital, o que impõe uma nova perspectiva sobre a ética que pode se
dar por meio do uso de Programas de Compliance com foco no uso ínte-
gro de dados coletados (mormente aqueles que envolvem as regras de in-
violabilidade e proteção de dados das pessoas naturais) e da inteligência
artificial, o que será tratado em tópico específico.
Considerando que a proteção de dados pessoais no Brasil era prevista
em legislações esparsas, foi sancionada em 2018 a Lei n.º 13.709, denomi-
nada Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), inspirada no Regu-

19 DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais: elementos da forma-


ção da Lei geral de proteção de dados. 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil,
2019, p. 174.
20 MAGRANI, Eduardo. Entre dados e robôs: ética e privacidade na era da hiperconec-
tividade. 2. ed. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2019, p. 56.
21 BRASIL. Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Estabelece princípios, garantias, direi-
tos e deveres para o uso da Internet no Brasil. Diário Oficial da União, 24 abril 2014.
218
Compliance digital
lamento Geral de Proteção de Dados (GDPR) da União Européia, que “es-
truturou em torno de um conjunto normativo unitário”22 a proteção de
dados pessoais no ordenamento jurídico brasileiro.

3.2. Ética e desenvolvimento da inteligência artificial


Desde a apresentação das três leis da robótica por Isaac Asimov, e, pos-
teriormente a instituição da “Lei Zero”23, até o segundo anterior à leitura
deste texto, o desenvolvimento da inteligência artificial tem sido balizada
pela ética. A coexistência dos robôs com os seres humanos, traz a necessi-
dade da imposição de parâmetros de conduta humana para afastar eventu-
al periculosidade.
A Declaração de Montreal24 – conjunto de diretrizes que abordam
a ética em Inteligência Artificial – decorre do trabalho de um grupo multi-
disciplinar da União Europeia visando a definição do uso ético da tecnolo-
gia centrada em humanos. Dentre outras, a Declaração traz como diretri-

22 DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais: elementos da forma-


ção da Lei geral de proteção de dados. 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil,
2019, p. 259.
23 Apresentadas no livro Eu, Robô, as 3 Leis da Robótica foram criadas, como condição
de coexistência dos robôs com os seres humanos, como prevenção de qualquer peri-
go que a inteligência artificial pudesse representar à humanidade. São elas: 1ª lei: Um
robô não pode ferir um ser humano ou, por inacção, permitir que um ser humano
sofra algum mal; 2ª lei: Um robô deve obedecer às ordens que lhe sejam dadas por se-
res humanos, exceto nos casos em que tais ordens contrariem a Primeira Lei; 3ª lei:
Um robô deve proteger sua própria existência, desde que tal proteção não entre em
conflito com a Primeira e Segunda Leis. Mais tarde, no livro Os Robôs do Amanhecer,
o robô Daneel viria a instituir uma quarta lei: a 'Lei Zero': Um robô não pode fazer
mal à humanidade e nem, por inacção, permitir que ela sofra algum mal. Disponível
em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Isaac_Asimov#Leis_da_Rob%C3%B3tica. Acesso
em: 22 de mar. 2020.
24 Disponível em: https://www.declarationmontreal-iaresponsable.com/demarche.
Acesso em: 21 mar. 2020.
219
Aline Ferreira C. Carneiro · Lucimeire Zago de Brito · Viviane Ramone Tavares
zes:
- Sistemas robustos e seguros que evitam erros ou sejam capazes que corri-
gir eventuais inconsistências, de modo a diminuir os impactos na socieda-
de, como queda de bolsas de valores que utilizam a tecnologia ou a discri-
minação de pessoas no acesso a um serviço;
- Transparência dos sistemas (rastreabilidade e explicabilidade), para evi-
tar os riscos que a opacidade dessas tecnologias pode trazer diante de seu
caráter inteligente que dificulta o entendimento sobre sua atuação;
- Sistemas que consideram a diversidade de segmentos e representações
humanas (classe, raça, etnia, orientação sexual, gênero e outros) para evi-
tar atuações discriminatórias;
- Relevância da participação e do controle dos seres humanos, evitando
abordagens que prejudiquem o papel e os direitos das pessoas;
Privacidade e controle dos cidadãos sobre seus dados, que não podem ser
utilizadas para prejudicá-los.
A Carta Europeia de Ética sobre o Uso da Inteligência Artificial em Sis-
temas Judiciais e seu ambiente25, foi adotada pela CEPEJ na sua 31ª reuni-
ão plenária (Estrasburgo, 3 e 4 de dezembro de 2018), fulcrada em cinco
princípios:
Princípio do respeito dos direitos fundamentais: Garantir que a concessão
e a implementação de instrumentos e serviços de inteligência artificial se-
jam compatíveis com os direitos fundamentais.
Princípio da não discriminação: Prevenir especificamente o desenvolvi-
mento ou a intensificação de qualquer discriminação entre indivíduos ou
grupos de indivíduos
Princípio da qualidade e da segurança: No que diz respeito ao tratamento
de decisões e dados judiciais, utilizar fontes certificadas e dados intangíveis

25 Disponível em: https://rm.coe.int/carta-etica-traduzida-para-portugues-


revista/168093b7e0. Acesso em: 22 mar. 2020.
220
Compliance digital
com modelos concebidos de forma multidisciplinar, em ambiente tecno-
lógico seguro
Princípio da transparência, imparcialidade e equidade: Tornar os métodos
de tratamento de dados acessíveis e compreensíveis, autorizar auditorias
externas
Princípio "sob controle do usuário": Impedir uma abordagem prescritiva e
garantir que os usuários sejam atores informados e controlem suas esco-
lhas.
Do mesmo modo, o Conselho da Organização para a Cooperação e De-
senvolvimento Econômico (OCDE) emitiu documento de recomendação
para o uso da Inteligência Artificial26, oficialmente disponibilizado em
maio de 2019, do qual o Brasil é signatário. No documento transnacional,
que contou também com a participação de países da América Latina como
Argentina, Colômbia, Peru e Brasil, foram identificados cinco princípios
aplicáveis ao uso da Inteligência Artificial confiável, a saber:
a. A IA deve beneficiar as pessoas e o planeta, impulsionando o crescimen-
to inclusivo, o desenvolvimento sustentável e o bem-estar;
b. Os sistemas de IA devem ser concebidos de maneira a respeitar o Estado
de Direito, os Direitos Humanos, os valores democráticos e a diversidade,
incluindo exceções adequadas – como, por exemplo, permitir a interven-
ção humana quando necessário – para garantir uma sociedade justa;
c. Devem existir transparência e divulgação responsável em torno dos sis-
temas de IA, a fim de que as pessoas entendam os resultados baseados em
IA e consigam contestá-los;
d. Os sistemas de IA devem funcionar de maneira robusta e segura ao lon-
go de seus ciclos de vida, bem como os seus riscos em potencial devem ser
continuamente avaliados e gerenciados; e

26 Disponível em: https://legalinstruments.oecd.org/en/instruments/OECD-LEGAL-


0449. Acesso em: 22 mar. 2020.
221
Aline Ferreira C. Carneiro · Lucimeire Zago de Brito · Viviane Ramone Tavares
e. Organizações e indivíduos que desenvolvem, implantam ou operam sis-
temas de IA devem ser responsabilizados por seu funcionamento adequa-
do, de acordo com os princípios ora mencionados.
Miríades de institutos e pesquisadores desenvolveram princípios e dire-
trizes na tentativa de balizar eticamente o desenvolvimento da Inteligência
Artificial. Inter plures destaca-se o consórcio entre o Centro Markkula de
Ética Aplicada e a Partnership on AI to Benefit People and Society27 que
culminou pela elaboração de uma lista preliminar de questões com rele-
vância ética em IA e em aprendizado de máquina, assim elaborada: 1) Se-
gurança técnica (falhas, invasões, etc.); 2) Transparência e Privacidade; 3)
Uso malicioso & Capacidade de fazer o mal; 4) Uso benéfico & Capacidade
de fazer o bem; 5) Vieses em dados, conjuntos de treinamento, etc.; 6)
Desemprego / Falta de propósito & significado; 7) Crescente desigualdade
socioeconômica; 8) Perda de competências morais & debilidade; 9) Perso-
nalidade de IA / "Direitos dos robôs".
Não se pode olvidar que, hodiernamente, critérios definidos por algo-
ritmos afetam sobremaneira nosso cotidiano28. O processo de cognição de
um problema e sua consequente solução, antes exclusiva do ser humano,
está sendo transferido para máquinas (com elevado potencial para infrin-
gir normas e padrões éticos e morais). Contudo, como está sendo analisa-
do o limite ético desse desenvolvimento?
Há, pois, a imprescindibilidade de que se harmonize o “pensar”
das máquinas com o dos seres humanos, no que é pertinente ao respeito
aos costumes e hábitos humanos e, principalmente, a criação e vigilância
no respeito e uniformização das diretrizes existentes (principalmente dian-
te da diversidade ética das miríades de criadores).

27 Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/574109-etica-e-inteligencia-


artificial-dez-areas-de-interesse. Acesso em: 22 mar. 2020.
28 Desde a seleção de vagas de emprego à contratação de empréstimos bancários.
222
Compliance digital
3.3. Valores éticos no ciberespaço
A ética, enquanto conjunto de preceitos e regras de ordem moral e va-
lorativa, traz princípios que motivam o comportamento humano e que não
podem ser afastados no ciberespaço. Enquanto espaço de sociabilidade não
presencial, impacta sobremaneira a produção de valor, nos conceitos éti-
cos, morais e principalmente nas relações humanas.
O ciberespaço, ao contrário da visão de alguns que o vê como local se-
parado da realidade, que possibilita a criação de “avatares”, deve ater-se
aos ditames constitucionais e ao Marco Civil da Internet que estabelece
(arts. 2º e 7º) os princípios que devem ser respeitados por todos nesse es-
paço.
O “preconceito algorítmico” consubstancia-se com a construção de um
programa fulcrado em um banco de dados que reflete uma sociedade in-
justa. Por exemplo, a discussão sobre o “Programa COMPAS (Correctional
Offender Management Profiling for Alternative Sanctions)” utilizado pela
justiça americana para prever reincidência criminal, uma vez que se verifi-
cou o tratamento diferenciado, para dar uma pontuação consideravelmen-
te maior para infratores de minorias étnicas, majorando-lhes as penas.
O GDPR (Regulamento Geral de Proteção de Dados – União Europeia)
prevê o direito de obter uma explicação para qualquer decisão automática
feita por algoritmo, portanto, via de regra, o titular de dados terá o direito
de não se sujeitar às decisões tomadas exclusivamente com base em trata-
mento automatizado (artigo 22).
A preocupação com que os algoritmos sejam justos, transparentes e
com respostas explicáveis, fez nascer uma comunidade de pesquisadores e
profissionais preocupados com justiça, responsabilidade e transparência
no ciberespaço. Surge assim a FAT – Fairness, Accountability and Trans-
parency que, dentre suas várias ações, incentiva a diversificação do perfil
dos profissionais que trabalham no desenvolvimento dos algoritmos. Nes-
se sentido destaca-se o projeto desenvolvido pela Unicamp, que tem por

223
Aline Ferreira C. Carneiro · Lucimeire Zago de Brito · Viviane Ramone Tavares
objetivo a prevenção da cegueira causada por diabetes com base em ima-
gens de retina29. A aplicação do FAT permitiu resultados mais éticos, atra-
vés da adoção como elementos de treinamento dados balanceados, respei-
tando a diversidade da população.
Assim a necessidade, por exemplo, de profissionais da área do direito
que sejam também programadores, para direcionar os trabalhos com base
nos valores éticos. Principalmente quando o Supremo Tribunal Federal já
conta com o auxílio, para a análise dos processos, da ferramenta “Victor”;
o Superior Tribunal de Justiça conta com o “Sócrates”; o Conselho da Jus-
tiça Federal conta com a “Lia” (Lógica de Inteligência Artificial); o Tribu-
nal de Justiça de Rondônia desenvolveu o “Sinapse”; o Tribunal do Rio
Grande do Norte conta com o “Poti”; o Tribunal de Minas Gerais conta
com o “Radar”; o Tribunal de Pernambuco conta com “Elis”, dentre ou-
tras muitas ferramentas.
Nesse diapasão a SAP® tornou-se a primeira empresa europeia de tec-
nologia a possuir um Conselho Consultivo de ética para Inteligência Arti-
ficial, composta por especialistas do meio acadêmico, políticos e profissio-
nais do setor.
O desenvolvimento da técnica da deep learning30 com o uso de redes
neurais para incremento do reconhecimento fala, visão computacional e
processamento de linguagem natural não pode, assim, afastar-se da ética,
sob pena de prejuízos incomensuráveis para toda a sociedade.
Cabe recordar a experiência da Microsoft em 2016 com o “CHATBOT
– TAY” - programa de IA que simulava um agente de atendimento ao
usuário, automatizando processos, funções de suporte e oferecendo res-
postas para suas perguntas de forma divertida e descontraída. Contudo, ao
instante em que aprendia com a interação com as pessoas (sem qualquer

29 Disponível em: https://www.preambulo.com.br/e-preciso-pensar-mais-no-futuro/.


30 Tecnologia base do “Google Translate®” e da “Cortana®” (assistente pessoal da Mi-
crosoft®)
224
Compliance digital
filtro ético) o programa não precisou de mais de um dia de interação na
plataforma do “Twitter” para tornar-se racista, transfóbico e desagradável.
Do mesmo modo, intenso e violador, sistemas como “Siri® ”31 e “Ale-
xa® ”32 captam as conversas ambiente e repassam informações a terceiros
de modo a permitir a remessa de oferta de produtos correspondentes aos
assuntos tratados pelo usuário.
Muito se discute acerca da legislação regulamentária dos “robôs huma-
noides”, bem como se poder-se-ia atribuir personalidade jurídica aos
mesmos, mas a preocupação ética não pode ser, em nenhum instante, afas-
tada dessas discussões.
Mais preocupante quando se analisa os carros autônomos (AVs) - que
possuem função algorítmica de otimização de colisões (crash-
optimization) a qual “escolhe” qual colisão irá causar a menor quantidade
de dano - visto que, segundo Becker & Lameirão33 a previsão do US Insu-
rance Institute for Highway Safety é de que, até 2025, haverá cerca de 3,5
milhões de AVs apenas em solo americano. Teremos aí a “ajuda” dos pen-
samentos do grego Carnéades, que inspirou a filósofa Philippa Foot a de-
senvolver o “dilema dos bondes”34.
Qual colisão, na ótica do carro autônomo, causará menor quantidade
de dano35? Quem morre e quem vive36? Haverá diferenciação na resposta

31 Assistente pessoal da “Apple®”.


32 Assistente virtual da “Amazon®”.
33 Breves comentários a respeito do poder das mudanças exponenciais em BECKER,
Daniel; LAMEIRÃO, Pedro. Hasta la vista, counselor: os advogados não serão substi-
tuídos pela tecnologia? In: Direito da Inteligência Artificial. Disponível
em: https://bit.ly/2W4JkKO. Acesso em: 23 mar. 2020.
34 “Um bonde desgovernado avança sobre os trilhos em direção a cinco pessoas. Eu
tenho em minhas mãos a alavanca que pode desviar o bonde. No entanto, ao ser des-
viado, ele vai atropelar uma pessoa que anda sobre os trilhos. Devo puxar a alavanca
matando um para salvar cinco?”.
35 NBC. For Driverless Cars, a Moral Dilemma: Who Lives and Who Dies? NBC News.
225
Aline Ferreira C. Carneiro · Lucimeire Zago de Brito · Viviane Ramone Tavares
se o programador for de uma cultura totalmente diferente daquela de seu
usuário? O AV poderia ser hackeado e tornar-se uma potente arma?
Esse é o dilema da Inteligência Artificial: identificar o limite que as
máquinas, treinadas por este sistema, conseguem entender sobre questões
essencialmente humanas, definindo o que é certo ou errado, o que é bom
ou ruim, o que é ou não ético. Esse é o trabalho árduo de diversos pesqui-
sadores (tais como os da IBM e do MIT Media Lab). Esse, pois, deve ser o
trabalho de todos nós, para a garantia dos valores éticos.

4. Considerações finais
Como visto, a consciência ética de nossa sociedade passa por mudanças
significativas de modo que a globalização, o acesso à informação e o de-
senvolvimento tecnológico, serão grandes aliados a um processo de mu-
dança de comportamento, desde que utilizados considerando condutas
íntegras e éticas.
Vivendo na sociedade da informação, precisamos estar atentos para as
inovações que diuturnamente trazem mudanças nas relações, principal-
mente com a inserção da inteligência artificial e também do envolvimento
e disseminação de informações por meio do uso (e respectiva guarda) de
dados pessoais, sendo de extrema importância a análise em conjunto não
apenas da Lei 13.709/18 (Lei Geral de Proteção de Dados), como também
da Lei do Marco Civil na Internet (Lei n° 12.965/2014).
Porém, mais do que considerar os precitados regramentos legais, vê-se
que a sociedade, aqui citada a nível global, já vivencia acontecimentos
únicos nos quais o uso da inteligência artificial em conjunto com a coleta

Disponível em: http://www.nbcnews.com/tech/innovation/driverless-cars-moral-


dilemma-who-lives-who-dies-n708276. Acesso em: 22 mar. 2020.
36 KIRKPATRICK, Jesse. The ethical quandary of self-driving cars. Slate. Disponível
em: https://bit.ly/2zB84Ti. Acesso em : 22 mar. 2020.
226
Compliance digital
de dados de forma indiscriminada, passou a criar situações que envolvem
responsabilidades civis e penais que impõem o dever de indenizar e preci-
sam ser avaliadas não apenas sobre a ótica do regramento jurídico existen-
te, o qual sabemos ainda não consegue acompanhar tantas transformações.
A nosso ver, é necessário considerar também (e principalmente) a im-
plementação de pilares que envolvam a ética, por meio de Programas de
Integridade (Programas de Compliance) muito bem definidos e princi-
palmente eficazes no que concerne a questões que envolvam dados e a
segurança da informação.

Referências
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Acesso em: 22 de mar. 2020.
BECKER, Daniel; LAMEIRÃO, Pedro. Hasta la vista, counselor: os advo-
gados não serão substituídos pela tecnologia? In: Direito da Inteligên-
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Acesso em: 16 mar. 2020.
BRASIL. Decreto Federal n.º 8.420, de 18 de março de 2015. Regulamenta a
Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013, que dispõe sobre a responsabili-
zação administrativa de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a
administração pública, nacional ou estrangeira e dá outras providên-
cias. Diário Oficial da União, 19 março 2015. Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-
2018/2015/Decreto/D8420.htm. Acesso em: 23 mar. 2020.
BRASIL. Lei 12.846/13, de 1º de agosto de 2013. Dispõe sobre a responsabi-
lização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos

227
Aline Ferreira C. Carneiro · Lucimeire Zago de Brito · Viviane Ramone Tavares
contra a administração pública, nacional ou estrangeira, e dá outras
providências. Diário Oficial da União, 2 agosto 2013. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-
2014/2013/lei/l12846.htm. Acesso em: 22 mar. 2020.
BRASIL. Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Estabelece princípios, garan-
tias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. Diário Oficial
da União, 24 abril 2014. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-
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Aline Ferreira C. Carneiro · Lucimeire Zago de Brito · Viviane Ramone Tavares
inteligência artificial. Publicado em: 17/07/2019. Disponível em:
https://www.preambulo.com.br/e-preciso-pensar-mais-no-futuro/.
Acesso em: 22 mar. 2020.
RODOTÁ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância: a privacidade hoje.
Organização, seleção e apresentação: Maria Celina Bodin de Moraes.
Tradução de Danilo Doneda e Luciana Cabral Doneda. Rio de Janeiro:
Renovar, 2008.
WEBSTER, Frank. Theories of the information society. 3. ed. Londres:
Routledge, 2006.

__________________________________________________
CARNEIRO, Aline Ferreira Costa; BRITO, Lucimeire Zago de; TAVA-
RES, Viviane Ramone. Compliance digital: novas perspectivas sobre ética
na sociedade da informação. In: LONGHI, João Victor Rozatti; FALEI-
ROS JÚNIOR, José Luiz de Moura (Coords.); BORGES, Gabriel de Olivei-
ra Aguiar; REIS, Guilherme (Orgs.). Fundamentos de direito digital: a ci-
ência jurídica na sociedade da informação. Uberlândia: LAECC, 2020, pp.
207-230.
__________________________________________________

230
ENSAIO SOBRE ALGUNS ASPECTOS
TEÓRICOS DO COMÉRCIO ELETRÔNICO E A
PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR

10
Ketlen Caroline Soares Pierazzo
Gabriel Oliveira de Aguiar Borges

1. Introdução
A expansão do comércio eletrônico traz à tona diversas indagações por
estar tomando uma grande proporção no comércio atual através do desen-
volvimento dos meios eletrônicos. Nos leva a questionar acerca do trata-
mento jurídico que tem sido adotado nesta modalidade contratual e da
forma que ocorrem as contratações, bem como, a proteção das partes.
A expansão da globalização torna a internet o maior instrumento de
desenvolvimento na sociedade através das comunicações em tempo real,
compartilhamento de dados, sons e imagens que ocorrem de forma instan-
tânea e sem limites territoriais, portanto, trata-se de uma comunicação
mundial em massa.
É evidente a evolução dos meios de comunicação, causando impactos
inclusive no campo da economia mundial, pois surgiram benefícios que
facilitaram a contratação e ofertas de forma mais eficiente, onde o consu-
midor busca de forma específica os produtos e serviços que tem interesse,
compara valores e seleciona a forma de pagamento conforme as opções
231
Ketlen Caroline Soares Pierazzo · Gabriel Oliveira de Aguiar Borges
ofertadas à ele.
Para alguns doutrinadores, já haviam sistemas que permitiam uma de-
terminada manifestação eletrônica para efetuar negócios, como as redes
interbancárias. Porém, era de acesso privado, hoje tornou-se uma plata-
forma mais acessível em decorrência da revolução tecnológica, tornando-
se mais acessível aos usuários por meio de caixas eletrônicos e aplicativos
de celulares.
Tratar sobre o e-commerce é afirmar que essa modalidade contratual é
decorrente do desenvolvimento da tecnologia, que proporciona diversos
meios para ser realizada, onde ocorrem transações financeiras diante de
uma plataforma virtual onde são comercializados produtos intangíveis,
como softwares e arquivos digitais e de bens tangíveis, como celulares,
televisão, móveis, e etc.
As práticas negociais eletrônicas exigem do ordenamento jurídico
normas específicas para a regulação contratual, ressalta-se acerca da pro-
blemática que permeia o comércio eletrônico, onde não é viável que a le-
gislação deva ser atualizada toda vez que houver evoluções tecnológicas,
pois estas ocorrem com frequência e tornando-se impossível adaptar um
dispositivo legal pertinente com tantas modificações.
Portanto, insta mencionar que o e-commerce possui uma classificação
ampla por não se restringir somente a um tipo de venda em específico.
Mas o comércio tradicional não foi extinto com essa evolução tecnológica,
inclusive, as empresas tem adotado meios tecnológicos para ajudar na
divulgação e venda de produtos, visando a expansão dos negócios.
O comércio eletrônico aborda um novo panorama no âmbito da con-
tratação, desta feita é necessário que o ordenamento jurídico tenha um
entendimento consolidado quanto as modalidades contratuais, inclusive as
que são concretizadas de forma digital, que se distanciam das modalidades
tradicionais.
Este trabalho aqui proposto tem como objetivo tratar de alguns reflexos

232
Ensaio sobre alguns aspectos teóricos do comércio eletrônico...
do e-commerce na legislação, no comércio e a forma que a legislação brasi-
leira rege as relações de consumo e os contratos.

2. Contratos eletrônicos
Na abordagem sobre o comércio eletrônico, cumpre mencionar, preci-
puamente sobre os contratos eletrônicos, os quais refletem o desenvolvi-
mento deste método de contratação que advém de uma sociedade globali-
zada e da expansão da internet. Quando se trata de contratos, podemos
utilizar o conceito clássico contrato é o acordo de vontades entre duas ou
mais pessoas com a finalidade de adquirir, resguardar, modificar ou extin-
guir direito”1.
Destarte, na contratação eletrônica existem algumas particularidades
quanto aos contratos convencionais, que torna necessário ponderar tais
diferenças. Quanto ao conceito de contratos eletrônicos, segundo a análise
de Patrícia Peck Pinheiro2 “o contrato eletrônico é caracterizado por em-
pregar meio eletrônico para sua celebração”, bem como, “é o negócio jurí-
dico bilateral que resulta do encontro de duas declarações de vontade e é
celebrado por meio da transmissão eletrônica de dados”.
De acordo com o conceito acima, o contrato eletrônico se refere a uma
relação contratual realizada por meio de uma transação eletrônica, onde as
partes manifestam sua vontade por intermédio de um computador, onde
tal manifestação também pode ocorrer entre um sistema informatizado ou
entre duas pessoas em plataformas de compra e venda, por exemplo.
No que tange à regulamentação destes contratos, não há uma legislação
especifica, portanto são tratados como contratos atípicos, onde o princípio
dominante3 é a liberdade de contratação e a autonomia da vontade, onde

1 PINHEIRO, Patrícia Peck. Direito Digital. 6. Ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 535.
2 PINHEIRO, Patrícia Peck. Op. cit., p. 187-188.
3 PINHEIRO, Patrícia Peck. Op. cit., p. 537.
233
Ketlen Caroline Soares Pierazzo · Gabriel Oliveira de Aguiar Borges
as partes devem se atentar nas normas contratuais e que estas não contra-
riem os princípios jurídicos.
Outros aspectos que os contratos eletrônicos se diferem é quanto à
terminologia utilizada quando tratam de serviços de tecnologia. De acordo
com a abordagem feita por Pinheiro:
É recomendável o emprego de um glossário inicial que estabeleça o signifi-
cado dos termos técnicos empregados no contrato realizado pelas partes.
Isso possibilita um menor grau de interpretação, diminuindo o risco de
duplo sentido ou de má́ compreensão do que está́ sendo contratado. Esse
quesito é fundamental nos contratos da era digital, não só́ porque nascem
novos termos quase diariamente, mas também em razão do sentido pecu-
liar dado a palavras que normalmente têm outro significado no mundo re-
al4.
Outro fator de grande importância é que haja claramente as responsa-
bilidades das partes em relação a compra, que pode incluir questões como
segurança, tecnologia, conteúdo do contrato, produto, entrega, banco de
dados, informações, atualizações entre outros5. É de grande relevância
tratar sobre a delimitação do grau de responsabilidade visando a proteção
da relação com o consumidor final, devido a aplicabilidade do Código de
Defesa do Consumidor, o qual é aplicável nas relações de consumo virtu-
ais.
É necessário atenção por meio das partes quanto á veracidade da in-
formação que é veiculada na internet, pois podem ocorrer danos devido a
mensagens falsas. Para que haja essa prevenção contratual, é importante
inserir no contrato uma cláusula arbitral, pois para Pinheiro6 “celeridade,
expertise, especialidade e sigilo são fundamentas na solução das questões
de Direito Digital”.

4 PINHEIRO, Patrícia Peck. Op. cit., p. 537.


5 PINHEIRO, Patrícia Peck. Op. cit., p. 537.
6 PINHEIRO, Patrícia Peck. Op. cit., p. 538.
234
Ensaio sobre alguns aspectos teóricos do comércio eletrônico...
Os contratos eletrônicos se classificam como contratos-tipo, onde as
cláusulas impostas por uma parte à outra não podem ser discutidas isola-
damente, como por exemplo, os contratos de agências bancárias; e os con-
tratos específicos, onde ocorre uma elaboração contratual pertinente a um
caso próprio. Portanto, é fundamental ter cautela na elaboração das cláu-
sulas para que estas não sejam abusivas, devido ao fato que o Código de
Defesa do Consumidor não admite.
Existem alguns requisitos específicos para os contratos que regulam
serviços de tecnologia “devem ser elaborados caso a caso entre as partes,
porém com certeza em todos os contratos devem constar: atribuição de
responsabilidades, garantia de atualização da tecnologia e a cláusula de
equilíbrio econômico-financeiro.”7
Portanto, é necessário se ater as especificidades que devem reger os
contratos eletrônicos, como indicação das responsabilidades de forma
clara e precisa de todos os participantes da cadeira de relações visando a
proteção do consumidor final; ter uma política de informações claras; visar
a segurança e privacidade estabelecendo uma política para esta prática;
cláusula de arbitragem, territorialidade para abordar os limites geográficos;
a relação dos parceiros envolvidos no negócio; no caso de os produtos
transacionados envolverem tecnologia e estabelecer as responsabilidades
por upgrades e obsolescência.
Diante o exposto, as cláusulas devem ser elaboradas de forma detalhada
abrangendo sobre as responsabilidades dos contraentes para evitar futuros
conflitos, bem como as demandas judiciais, pois a responsabilidade con-
tratual aborda questões que teriam obrigatoriedade de ser objeto de uma
possível decisão judicial.

7 PINHEIRO, Patrícia Peck. Op. cit., p. 538.


235
Ketlen Caroline Soares Pierazzo · Gabriel Oliveira de Aguiar Borges
2.1. Aplicabilidade das normas de proteção ao consumidor nas relações
contratuais eletrônicas
Os contratos eletrônicos firmados em território nacional, quando am-
bas as partes estiverem residindo no Brasil se sujeitarão as mesmas regras e
princípios aplicáveis aos demais contratos firmados fisicamente. Portanto,
ocorrerá a aplicabilidade do Código Civil e do Código de Defesa do Con-
sumidor, assim como o regime da responsabilidade civil8.
Consequentemente haverá aplicabilidade de tais dispositivos no que
tangem a proteção do consumidor final, abordando sobre os contratos de
adesão, publicidade enganosa, cláusulas abusivas, entre outros. Os princí-
pios contratuais, principalmente o da boa-fé e o da função social também
devem prevalecer nos contratos eletrônicos. Logo, prevalecerá as regras de
disposição contratual entre as partes.
Devido aos negócios celebrados eletronicamente, intui-se que a maioria
é passível de aplicação dos dispositivos do Código de Defesa do Consumi-
dor, portanto segundo o pensamento de Teixeira, é necessário ter presen-
te que para a aplicação daquele Código é imprescindível haver a configu-
ração de uma relação de consumo, bem como a diferenciação entre contra-
tos de consumo, contratos empresariais e contratos civis”9.
Neste diapasão é importante frisar os conceitos de consumidor, forne-
cedor, produto e serviço abordados pelo Código de Defesa do Consumi-
dor, os quais encontram-se positivados nos artigos 2º, 3º, §1º e §2º, veja-
mos:
Art. 2° Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza
produto ou serviço como destinatário final.
Parágrafo único. Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ain-

8 TEIXEIRA, Tarcísio. Comércio Eletrônico conforme o Marco Civil da Internet e regu-


lamentação do e-commerce no Brasil. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 60.
9 TEIXEIRA, Tarcísio. Op. cit., p. 62.
236
Ensaio sobre alguns aspectos teóricos do comércio eletrônico...
da que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo.
Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, na-
cional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desen-
volvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transfor-
mação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de pro-
dutos ou prestação de serviços.
§ 1° Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial.
§ 2° Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, me-
diante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de cré-
dito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.
Diante os conceitos apresentados em tela podemos tratar sobre as rela-
ções de consumo, autores como Teixeira10 abordam sobre esta temática
através de uma delimitação quanto a aplicação, se referindo ao vínculo
onde incluem os fornecedores e consumidores, que são os elementos sub-
jetivos e os produtos ou serviços, classificados como elementos objetivos.
Por sua vez, para que haja uma relação de consumo é fundamental ter
dois elementos subjetivos, ou seja, um fornecedor e um consumidor. Po-
rém, basta somente um objetivo para concretização, seja um produto ou
serviço. Desta feita surgem os contratos de consumo, que são celebrados a
partir da relação entre consumidor e fornecedor com a devida aplicabili-
dade do Código de Defesa do Consumidor, assim como o Código Civil.
Supra mencionar que existe uma diferença entre os contratos de con-
sumo e os demais contratos existentes em nosso ordenamento jurídico, se
diferenciando entre os contratos civis e os empresariais, onde estes não
possuem a aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor, devido ao
fato que são celebrados entre partes iguais11.

10 TEIXEIRA, Tarcísio. Op. cit., p. 64.


11 TEIXEIRA, Tarcísio. Op. cit., p. 65.
237
Ketlen Caroline Soares Pierazzo · Gabriel Oliveira de Aguiar Borges
2.1.1. Classificação de consumidor segundo a legislação
Para Martins12, existem duas visões acerca do conceito de consumidor
nas relações de consumo, sendo a visão finalista que trata somente dos
contratos firmados onde não poderá haver um profissional na condição de
consumidor, a menos que, no contrato realizado seja verificado sua vulne-
rabilidade; e a visão do maximalismo, que classifica o consumidor de uma
forma mais ampla, independentemente e de sua finalidade lucrativa.
Tais visões têm sido mitigadas e o Superior Tribunal de Justiça tem
aplicado um sentido mais amplo, ressaltando a vulnerabilidade do consu-
midor. A exemplo, podemos mencionar o julgamento do Recurso Especial
nº 476.428 SC, julgado em 19/04/2005 onde consta no acórdão que a rela-
ção jurídica de consumo não é caracterizada pela pessoa física ou jurídica
em seus polos. Em suma trata-se da existência de uma parte vulnerável e
de um fornecedor.
Para Martins13, a teoria do finalismo aprofundado foi utilizada na deci-
são mencionada acima que trata-se de:
Uma dualidade de critérios para a definição de consumidor e aplicação das
normas do Código de Defesa do Consumidor. Ao mesmo tempo que a ex-
pressão destinatário final, em decorrência do finalismo, passa a ser reco-
nhecida como referência ao destinatário final fático e econômico, passa-se
a destacar um segundo critério: o da vulnerabilidade da posição do sujeito
da relação jurídica, levando à aplicação das normas do Código de Defesa
do Consumidor.
Há classificação de consumidor por equiparação, segundo os moldes da
Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor) elencados nos artigos
2º, parágrafo único, 17 e 29, que tratam das partes que estejam inclusas em
uma relação de consumo.

12 MARTINS, Guilherme Magalhães. Contratos Eletrônicos de Consumo. 3. ed. São


Paulo: Atlas, 2016., p. 112.
13 MARTINS, Guilherme Magalhães. Op. cit., p. 113.
238
Ensaio sobre alguns aspectos teóricos do comércio eletrônico...
O artigo 17 do mesmo diploma legal menciona sobre “a equiparação
aos consumidores das vítimas do evento”, no entanto, a responsabilidade
do fornecedor não é de forma limitada, não trata somente de quem adqui-
riu um produto ou serviço, mas também das vítimas do acidente de con-
sumo danos, assim proporciona um amplo campo de proteção.
As pessoas que são expostas as práticas abusivas também são tuteladas
conforme o artigo 29 do Código de Defesa do Consumidor, segundo o
posicionamento Martins14 “regra essa que abrange os profissionais, desde
que verificada sua vulnerabilidade fática, econômica, jurídica ou técnica, a
partir do desequilíbrio concreto entre os contratantes”.
Os artigos que tratam sobre a equiparação é uma grande inovação na
legislação por amparar todos aqueles que integram uma relação de consu-
mo, pessoas poderão são expostas a danos decorrentes da contratação que
podem ser afetadas, seja através de uma publicidade enganosa sem ter
adquirido um produto ou serviço que também são aplicadas no comércio
eletrônico.

2.1.2. Normas de proteção ao consumidor nas relações de consumo


Conforme explanado, as relações de consumo eletrônicas são passíveis
da aplicação do Código de Defesa do Consumidor, a legislação nacional
que rege o mercado de consumo no Brasil. Cumpre destacar os princípios
e as garantias dispostas aos consumidores, o qual é considerado o mais
frágil nas relações comerciais.
Nessa perspectiva, é assegurado os direitos individuais e coletivos aos
consumidores inicialmente no artigo 1º do Código de Defesa do Consu-
midor, o qual estabelece que as normas são de ordem pública e interesse
social. Portanto, não poderá ser afastada pelas partes, pelo fatos das regras
serem imperativas, obrigatórias e inderrogáveis, com a função de manter o

14 MARTINS, Guilherme Magalhães. Op. cit., p. 114.


239
Ketlen Caroline Soares Pierazzo · Gabriel Oliveira de Aguiar Borges
equilíbrio e a harmonia nas relações de consumo entre o consumidor e o
fornecedor15.
Os princípios que regem os direitos dos consumidores abordam sobre
proteção da vida, saúde, segurança, bem como os riscos que podem ser
provocados através do fornecimento de produtos e serviços. Enseja ao
consumidor a liberdade de escolha e igualdade nas contratações, direito a
ter uma informação adequada sobre o produto que está prestes a comprar
e suas especificações.
Há proteção quanto as cláusulas abusivas, as quais estão em desacordo
com as práticas de boa conduta no comércio ou que limitam os direitos
aos consumidores, conforme disposto no artigo 39 do Código de Defesa
do Consumidor, vejamos:
Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras
práticas abusivas: (Redação dada pela Lei nº 8.884, de 11.6.1994)
I - condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento
de outro produto ou serviço, bem como, sem justa causa, a limites quanti-
tativos;
II - recusar atendimento às demandas dos consumidores, na exata medida
de suas disponibilidades de estoque, e, ainda, de conformidade com os
usos e costumes;
III - enviar ou entregar ao consumidor, sem solicitação prévia, qualquer
produto, ou fornecer qualquer serviço;
IV - prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em
vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-
lhe seus produtos ou serviços;
V - exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva;
VI - executar serviços sem a prévia elaboração de orçamento e autorização
expressa do consumidor, ressalvadas as decorrentes de práticas anteriores

15 TEIXEIRA, Tarcísio. Op. cit., p. 67.


240
Ensaio sobre alguns aspectos teóricos do comércio eletrônico...
entre as partes;
VII - repassar informação depreciativa, referente a ato praticado pelo con-
sumidor no exercício de seus direitos;
VIII - colocar, no mercado de consumo, qualquer produto ou serviço em
desacordo com as normas expedidas pelos órgãos oficiais competentes ou,
se normas específicas não existirem, pela Associação Brasileira de Normas
Técnicas ou outra entidade credenciada pelo Conselho Nacional de Me-
trologia, Normalização e Qualidade Industrial (Conmetro);
I X - deixar de estipular prazo para o cumprimento de sua obrigação ou
deixar a fixação de seu termo inicial a seu exclusivo critério;
(Revogado)
IX - recusar a venda de bens ou a prestação de serviços, diretamente a
quem se disponha a adquiri-los mediante pronto pagamento, ressalvados
os casos de intermediação regulados em leis especiais; (Redação dada pela
Lei nº 8.884, de 11.6.1994)
X - (Vetado).
(Revogado)
X - elevar sem justa causa o preço de produtos ou serviços. (Incluído pela
Lei nº 8.884, de 11.6.1994)
XI - Dispositivo incluído pela MPV nº 1.890-67, de 22.10.1999, transfor-
mado em inciso XIII, quando da conversão na Lei nº 9.870, de 23.11.1999
XII - deixar de estipular prazo para o cumprimento de sua obrigação ou
deixar a fixação de seu termo inicial a seu exclusivo critério. (Incluído pela
Lei nº 9.008, de 21.3.1995)
XIII - aplicar fórmula ou índice de reajuste diverso do legal ou contratu-
almente estabelecido. (Incluído pela Lei nº 9.870, de 23.11.1999)
XIV - permitir o ingresso em estabelecimentos comerciais ou de serviços
de um número maior de consumidores que o fixado pela autoridade ad-
ministrativa como máximo. (Incluído pela Lei nº 13.425, de 2017)

241
Ketlen Caroline Soares Pierazzo · Gabriel Oliveira de Aguiar Borges
Parágrafo único. Os serviços prestados e os produtos remetidos ou entre-
gues ao consumidor, na hipótese prevista no inciso III, equiparam-se às
amostras grátis, inexistindo obrigação de pagamento. (BRASIL. Código de
Defesa do Consumidor.2002)
Insta mencionar o posicionamento de Teixeira16 acerca das cláusulas
abusivas “cabe esclarecer que as cláusulas abusivas são as que diminuam
os direitos do consumidor, sendo nulas de pleno direito, sem prejuízo de
possível indenização por perdas e danos do consumidor contra o fornece-
dor.”
O direito do arrependimento é amparado pela legislação, onde o con-
sumidor deve fazê-lo no prazo de 7 dias seguindo aos critérios da contrata-
ção que for feita especialmente por telefone ou domicílio. O intuito foi de
evitar as compras por impulso que ocorrem sem a devida reflexão do con-
sumidor, se tem necessidade de adquirir ou condições de pagar17. No in-
termédio das contratações eletrônicas, a aplicabilidade do direito do arre-
pendimento no Brasil é devidamente admitido pela doutrina e pelas juris-
prudências.

2.1.3. Aplicabilidade do princípio da boa-fé nas contratações eletrônicas


A boa-fé objetiva paira sobre o ordenamento jurídico que rege sobre as
relações de consumo no Brasil. A título de exemplo no âmbito das contra-
tações, podemos mencionar o artigo 4º do Código de Defesa do Consumi-
dor, o qual significa clareza de informações, lealdade e respeito entre as
partes contratantes, tão quanto ao conteúdo do contrato.
Portanto, a boa-fé contratual nada mais é que os “deveres de conduta
contratuais, de natureza secundária, lateral, anexa, ou instrumental, tais
quais os de informação correta, esclarecimento, lealdade, assistência, den-

16 TEIXEIRA, Tarcísio. Op. cit., p. 68.


17 TEIXEIRA, Tarcísio. Op. cit., p. 69.
242
Ensaio sobre alguns aspectos teóricos do comércio eletrônico...
tre outros”18, onde os artigos do Código de Defesa do Consumidor dialo-
gam com as normas do Código Civil.
Este princípio tem como objetivo proteger o consumidor que deposita
uma expectativa no produto ou serviço que está adquirindo, portanto,
deve haver confiança com a parte fornecedora, inclusive em compras onli-
ne que exige uma qualificação melhor e mais detalhada do que está sendo
comercializado.
A aplicabilidade do artigo 4º do Código de Defesa do Consumidor se-
gundo Martins19 “é uma disposição legislativa aberta, que não possui cu-
nho meramente interpretativo, mas se destina a flexibilizar o sistema no
qual se insere, possibilitando o operador do direito, inclusive, adequar sua
aplicação judicial”.
Destarte, a boa-fé é aplicada para interpretação de cláusulas convencio-
nais e atua como fonte de direitos e obrigações, regulando os acordos de
vontade entre as partes. Visa o alcance do objeto contratual com seguran-
ça.
No comércio eletrônico os consumidores são atraídos por várias ofer-
tas, que despertam a curiosidade e o interesse, gerando uma verdadeira
inovação no setor de consumo. O vínculo entre fornecedores e consumi-
dores está cada vez mais intenso com o aumento do acesso a internet por
intermédio dos celulares, onde os consumidores estão sempre conectados.
As mensagens publicitárias aparecem nos e-mails, em redes sociais e si-
tes. São novas formas para divulgar empresas. Portanto, surge a necessida-
de de uma proteção efetiva ao consumidor.

3. Formação dos contratos eletrônicos


Os contratos eletrônicos se diferenciam dos demais contratos devido ao

18 MARTINS, Guilherme Magalhães. Op. cit., p. 116.


19 MARTINS, Guilherme Magalhães. Op. cit., p. 117.
243
Ketlen Caroline Soares Pierazzo · Gabriel Oliveira de Aguiar Borges
meio em que as vontades dos contratantes são externalizadas. Em suma, o
comércio eletrônico ocorre através de uma comunicação instantânea entre
as partes por meio de diversos mecanismos modernos de comunicação.
Existem elementos fundamentais que estão presentes no comércio ele-
trônico, os quais abrangem o espaço onde ocorre a contratação de forma
despersonalizada, não havendo contato pessoal com quem está contratan-
do em um ambiente virtual junto com a instantaneidade de comunicação.
Em meio a sua despersonalização prevista no contrato, o objeto é específi-
co e determinável.
Neste método de contratação no meio digital existem algumas peculia-
ridades que precisam ter uma interpretação quanto aos princípios pró-
prios, que se originam e têm incidência nos contratos eletrônicos de con-
sumo20. Destarte, significa uma nova modalidade dos princípios com o
objetivo de gerar uma regulamentação específica que trate sobre as parti-
cularidades contratuais.
Portanto, cumpre mencionar os princípios que são aplicáveis nessa
modalidade contratual:
Neste contexto, podemos citar os seguintes princípios: princípio da reserva
jurisdicional; princípio da equivalência funcional; princípio da inalterabi-
lidade do Direito; princípio da identificação; princípio da verificação;
princípio da neutralidade e perenidade das normas e princípio da boa-fé
objetiva21.
O princípio da reserva jurisdicional foi aplicado na lei 12.965/2014
(Marco Civil da Internet) que regula o uso da internet no Brasil através de
princípios, garantias, direitos e deveres para os usuários. Este princípio se
refere que a obtenção de dados aos registros de conexões e de acesso de-
penderá de prévia decisão judicial.

20 LEÃO, Luana da Costa. As relações negociais eletrônicas. Revista de Direito do Con-


sumidor, v. 6, 2014, p. 6.
21 LEÃO, Luana da Costa. Op. cit., p. 6.
244
Ensaio sobre alguns aspectos teóricos do comércio eletrônico...
Destarte, sua regulamentação é necessária devido as relações negociais
eletrônicas, pois estas implicam na divulgação de informações dos contra-
tantes em rede, portanto, sem isso não seria possível identificar as partes e
reconhecer a manifestação de vontade22, o Marco Civil da Internet teve o
intuito de manter o sigilo das informações.
Em suma, este princípio tem como objetivo manter a segurança das in-
formações através do sigilo dos dados nos contratos eletrônicos, levando
em consideração a publicidade indevida, que muitas vezes podem ser pre-
judiciais aos contratantes.
Outro princípio importante dentro da contratação eletrônica é o prin-
cípio da equivalência funcional, que possui como atributo equiparar os
contratos físicos e os eletrônicos, para que seja garantido a isonomia nas
modalidades contratuais e para igualar as relações negociais que ocorrem
no ambiente virtual com as que se dão com suporte material e físico.
No que pese ao princípio da inalterabilidade do Direito possui como
condão o preceito que não há alterações no Direito no âmbito da teoria
obrigacional, que em tese regula as contratações eletrônicas, onde aplica-se
as normas de Direito Civil e do Código de Defesa do Consumidor, sendo
estas as disposições genéricas da legislação brasileira que trata sobre negó-
cios e contratos.
Portanto, mantém o significado e aplicabilidade da legislação e dos
elementos fundamentais do negócio jurídico conforme positivado na lei23.
A aplicabilidade deste princípio não descarta a possibilidade de surgir no-
vas legislações específicas para tratar do comércio eletrônico, mas trata-la
como uma inovação e a possibilidade de utilizar as normas jurídicas já
existentes.
Insta mencionar sobre o princípio da identificação, que tem como prio-
ridade a identificação das partes contratantes por meios eletrônicos. Se-

22 LEÃO, Luana da Costa. Op. cit., p. 6..


23 LEÃO, Luana da Costa. Op. cit., p. 7.
245
Ketlen Caroline Soares Pierazzo · Gabriel Oliveira de Aguiar Borges
gundo o pensamento de Leão24:
Esse princípio esteve atento às dificuldades que o ambiente virtual implica
para a identificação dos sujeitos que se relacionam e foi recentemente re-
gulamentado pelo Dec. 7.962, de 13.03.2013, em seu art. 2.º, cuja redação é
aqui transcrita:
“Art. 2.º Os sítios eletrônicos ou demais meios eletrônicos utilizados para
oferta ou conclusão de contrato de consumo devem disponibilizar, em lo-
cal de destaque e de fácil visualização, as seguintes informações:
I – nome empresarial e número de inscrição do fornecedor, quando hou-
ver, no Cadastro Nacional de Pessoas Físicas ou no Cadastro Nacional de
Pessoas Jurídicas do Ministério da Fazenda;
II – endereço físico e eletrônico, e demais informações necessárias para
sua localização e contato;
III – características essenciais do produto ou do serviço, incluídos os riscos
à saúde e à segurança dos consumidores;
IV – discriminação, no preço, de quaisquer despesas adicionais ou acessó-
rias, tais como as de entrega ou seguros;
V – condições integrais da oferta, incluídas modalidades de pagamento,
disponibilidade, forma e prazo da execução do serviço ou da entrega ou
disponibilização do produto; e
VI – informações claras e ostensivas a respeito de quaisquer restrições à
fruição da oferta.”
O objetivo da regulamentação deste princípio foi evitar a despersonaliza-
ção presente no ambiente e a dificuldade de identificação dos sujeitos con-
tratantes, peculiaridade que se configura com mais frequências nas rela-
ções negociais eletrônicas de consumo.
A abordagem feita pelo princípio da verificação se refere aos documen-
tos digitais, os quais precisam ser mantidos e arquivados em sua forma

24 LEÃO, Luana da Costa. Op. cit., p. 7.


246
Ensaio sobre alguns aspectos teóricos do comércio eletrônico...
física, se caso for necessário para fins de prova da celebração do contrato
para proteger as partes nos casos que após a contratação os documentos
digitais por algum motivo deixem de existir ou ficarem indisponíveis na
rede.
O princípio da neutralidade e perenidade no âmbito das normas que
regem o comércio eletrônico exige que as normas jurídicas devem ter co-
mo objetivo a neutralidade, para que não haja entraves no desenvolvimen-
to de novas tecnologias e perenes, pois precisam estar atualizadas sem se
modificar a todo o momento juntamente com a tecnologia25.
Como mencionado anteriormente, o princípio da boa-fé objetiva tem
como objetivo a proteção da parte mais vulnerável da relação contratual26
“esperando que a parte que possui mais vantagens em relação à outra, aja
de forma justa e leal, honrando a confiança nela depositada”.
É considerável tratar quanto a vulnerabilidade no comércio eletrônico,
devido as altas ofertas e publicidades, onde os consumidores estão sujeitos
a diversos riscos e danos decorrentes da má-fé presentes em contratos
virtuais.

4. Responsabilidade civil nos contratos eletrônicos


A responsabilidade civil permeia a legislação brasileira. Para abordar
sua aplicabilidade do direito digital é necessário pontuar inicialmente que
a responsabilidade civil nada mais é que um fenômeno social, possuindo
como pressuposto a existência de um nexo causal e o dano causado. Para
Pinheiro27 muito mais importante que o ato ilícito que causou o dano é o
fato de que esse dano deve ser ressarcido”.
A sociedade digital encontra-se em constante evolução, por isso a res-

25 LEÃO, Luana da Costa. Op. cit., p. 8.


26 LEÃO, Luana da Costa. Op. cit., p. 8.
27 PINHEIRO, Patrícia Peck. Op. cit., p. 513.
247
Ketlen Caroline Soares Pierazzo · Gabriel Oliveira de Aguiar Borges
ponsabilidade civil deve acompanhar este desenvolvimento para assim
prevalecer, tornando necessário a proteção das relações não presenciais
que envolvem a contratação eletrônica que ocorre de forma ilimitada em
todo o mundo, devido ao alcance da internet.
Torna-se oportuno mencionar28 que o intuído da responsabilidade civil
seja a reparação de dano patrimonial ou moral causado por outrem. Pode
ser aplicada em casos de inadimplementos contratuais ou por ato ilícito,
acarretando a responsabilidade extracontratual. Este instituto é necessário
para manter o caráter social e o bom funcionamento de produtos e servi-
ços.
Segundo Pinheiro29, o Direito Digital introduz modificações dos con-
ceitos tradicionais de responsabilidade civil no âmbito jurídico”. Portanto,
o Direito Digital aplica-se a teoria do risco devido a importância da repa-
ração do dano, desta forma a culpa é um pressuposto dispensável.
Ademais, a teoria do risco abrange questões virtuais e possui um méto-
do de solução mais ágil e adequado, pelo fato que na internet os riscos de
danos indiretos é constante devido a sua utilização em ofertas e como meio
de comunicação. Portanto, alega de quem é o ônus da prova em cada caso
específico.
O grau de conhecimento das partes contratantes é bastante relevante,
neste momento torna-se oportuno mencionar:
No Direito Digital, a responsabilidade civil tem relação direta com o grau
de conhecimento requerido de cada prestador de serviço e do consumidor
usuário também. Nenhuma das partes pode alegar sua própria torpeza pa-
ra se eximir de culpa concorrente. Um dos pontos mais importantes é o da
responsabilidade pelo conteúdo30.
Na divulgação de ofertas e produtos na internet a responsabilidade pai-

28 TEIXEIRA, Tarcísio. Op. cit., p. 152.


29 PINHEIRO, Patrícia Peck. Op. cit., p. 513.
30 PINHEIRO, Patrícia Peck. Op. cit., p. 514.
248
Ensaio sobre alguns aspectos teóricos do comércio eletrônico...
ra pelo conteúdo das informações que estão sendo divulgadas, no entanto,
é necessário que seja abordado de forma que prevaleça os valores morais
da sociedade e a sua veracidade. Há uma abordagem da responsabilidade
para todos aqueles que participam da contratação, seja donos de sites, pro-
vedores etc., quanto a publicação ou compartilhamento.

4.1. Responsabilidade civil decorrente do inadimplemento nos contratos


eletrônicos
A responsabilidade contratual no ordenamento jurídico brasileiro está
previsto no Código Civil. Esta incide sobre o não cumprimento de deter-
minada prestação contratual, em tese um descumprimento das cláusulas
determinadas no contrato, a sua não execução31.
Desta feita, a indenização ocorrerá mediante o descumprimento da
obrigação que deverá ser proporcional ao dano causado, sem haver o enri-
quecimento de uma parte em detrimento da outra. Conforme o artigo 389
do Código Civil, responderá o valor da obrigação por perdas e danos,
acrescidas de juros e correção monetária para a parte prejudicada que dei-
xou de ganha em razão do dano.

4.2. Responsabilidade civil dos provedores segundo a lei do marco civil da


internet
A autora Pinheiro32 traz à baila em sua obra uma abordagem sobre a
responsabilidade dos provedores quanto ao conteúdo que circula nas re-
des, questionando se deveriam responder por eles, inclusive dos quais não
possuem um prévio conhecimento.
Tais questões foram tratadas pela Lei nº 12.965/2014, que regulamen-

31 TEIXEIRA, Tarcísio. Op. cit., p. 153.


32 PINHEIRO, Patrícia Peck. Op. cit., p. 515.
249
Ketlen Caroline Soares Pierazzo · Gabriel Oliveira de Aguiar Borges
tou em seus dispositivos a exclusão completa da responsabilidade dos pro-
vedores, bem como, o afastamento da responsabilidade solidária, aplican-
do-se esta somente em casos de ciência decorrente de uma decisão judicial
onde manter-se omisso ou inerte33.
O Marco Civil da Internet utilizou como preceito a liberdade de expres-
são, onde a remoção de conteúdos publicados na Internet decorra somente
por uma ordem judicial. De certa forma, não é uma solução célere de tratar
sobre os diversos abusos e informações que não são verídicas que ficam
disponibilizadas na internet, que podem causar diversos danos.
Diante desta linha de raciocínio, é relevante o pensamento de Pinheiro:
Independente da boa intenção do legislador, a meu ver, houve a criação de
um desequilíbrio no tratamento que foi dado à questão da responsabilida-
de civil de provedores em geral, deixando o usuário muito mais desprote-
gido em termos de sua imagem, honra e reputação nos meios digitais.
Como responsabilizar aquele que publica o conteúdo sem saber quem é es-
ta pessoa Sem a evidência de autoria E, novamente, a lógica trazida por
este marco legal impôs um grande custo à sociedade, visto que também na
investigação da autoria há necessidade de se socorrer do Judiciário, pois
toda e qualquer informação relacionada aos logs de conexão e aos logs de
navegação só pode ser apresentada mediante ordem judicial34.
Nessa perspectiva, houve uma incontroversa quanto a responsabilidade
civil dos provedores, pelo fato que anteriormente o objetivo era de ressar-
cir os danos causados, pois os provedores se beneficiam com os negócios
eletrônicos por ser uma plataforma de publicação. Houve o desvio dessa
responsabilidade que poderia recair mesmo sem culpa aos provedores.
Salienta-se que esta abordagem limita a atuação das autoridades polici-
ais e do Ministério Público, pois podem somente solicitar a preservação

33 PINHEIRO, Patrícia Peck. Op. cit., p. 515.


34 PINHEIRO, Patrícia Peck. Op. cit., p. 515.
250
Ensaio sobre alguns aspectos teóricos do comércio eletrônico...
como prova digital35 e não a remoção, a qual somente decorre de ordem
judicial e específica. A vítima não tem uma solução rápida, além de ter que
arcar com custos judiciais.
Portanto, é necessário maior abordagem jurídica em relação a respon-
sabilidade civil dos provedores para tratar do comércio eletrônico, que
haja soluções céleres e determinar o devido ressarcimento por danos cau-
sados estabelecendo critérios rigorosos quanto a determinação da respon-
sabilidade.

5. UNCITRAL
A Comissão de Direito do Comércio Internacional da Organização das
Nações Unidas (UNCITRAL) foi um dos primeiros instrumentos doutri-
nários que fez uma abordagem referente ao comércio eletrônico através de
uma lei modelo, uma espécie de diretriz para um semento legislativo em
1996.
Segundo Martins (2016, p.83) “a lei modelo se divide em duas partes.
Num primeiro momento regula o comércio eletrônico em geral, e em se-
guida disciplina o seu emprego em atividades específicas”36.
Em suma, suas regras são abordadas de forma ampla, assim permitindo
o aperfeiçoamento na implementação pelos Estados. O objetivo da lei mo-
delo é referente a regulamentação acerca da formação e da validade dos
contratos eletrônicos.
A lei menciona no artigo 5º um dos maiores focos da lei, ao dispor que
não se negarão efeitos jurídicos, validade ou força obrigatória quanto á
informação pela simples razão de que esta não esteja contida em uma
mensagem de dados que dá lugar a tal efeito jurídico37. Há uma norma que

35 PINHEIRO, Patrícia Peck. Op. cit., p. 516.


36 MARTINS, Guilherme Magalhães. Op. cit., p. 83.
37 MARTINS, Guilherme Magalhães. Op. cit., p. 83.
251
Ketlen Caroline Soares Pierazzo · Gabriel Oliveira de Aguiar Borges
exige a forma escrita, para que seja possível realizar uma consulta, confor-
me o artigo 6º.
Desta feita, analisa-se o objetivo da implementação e aceitação dos con-
tratos eletrônicos, pois conforme o artigo 5º nenhuma comunicação terá
sua validade ou vinculação recusada por ser decorrente de forma eletrôni-
ca. O fundamento da lei baseia-se em dispor sobre as funções básicas e os
requisitos a serem cumpridos no comércio eletrônico e não similar aos
documentos escritos.
Houve diversas críticas quanto á regulamentação, questionando acerca
do desaparecimento de um documento eletrônico e os problemas que po-
dem surgir, levando em consideração que a sua conservação não é relacio-
nada a validade. Decorrente deste debate surgiu uma nova definição para
escrito quanto a abordagem contratual, onde compreende qualquer regis-
tro de palavras e símbolos38.
A abordagem da lei quanto as exigências relativas a assinatura trata que
a mensagem de dados pode ser utilizada de forma que as partes sejam de-
vidamente identificadas e aprovadas as informações recebidas. Insta men-
cionar o posicionamento de Martins39 o qual “fica assim prevista a equiva-
lência funcional dos atos jurídicos produzidos por meios eletrônicos em
relação aos atos jurídicos tradicionais, em suporte escrito”.
Sob essa ótica, o artigo 7º dispõe que a mensagem de dados cumpre as
exigências relacionadas a assinatura utilizando-se de um método que a
parte seja devidamente identificada e a sua confirmação. Sendo condicio-
nado à exigência da parte ou acordo para o envio dessa comunicação.
Em suma, a lei modelo trata sobre a modalidade de assinatura para a
identificação do assinante e a sua aprovação, disposições tratando sobre a
boa-fé contratual, o uso da assinatura eletrônica quando for desautorizado
e os mecanismos de segurança. Contempla também os efeitos das assinatu-

38 MARTINS, Guilherme Magalhães. Op. cit., p. 84.


39 MARTINS, Guilherme Magalhães. Op. cit., p. 84.
252
Ensaio sobre alguns aspectos teóricos do comércio eletrônico...
ras digitais através de certificados. Reconhecendo também a utilização do
meio eletrônico para a formação de contratos.

6. Proteção dos dados pessoais do consumidor


A contratação eletrônica ainda gera bastante insegurança para os con-
sumidores, especialmente quanto ao fornecimento de dados pessoais, por-
tanto, esta nova modalidade de comércio por intermédio da internet exige
uma proteção fundamental as informações ali inseridas.
Com o preceito de melhorar o uso da web, ocorreu o Fórum Global da
Governança na Internet na Turquia em 2014. Um dos obstáculos identifi-
cados é o apoio dos países para obter uma rede realmente global e demo-
crática, os países preocupados com ataques vigiam cada vez mais os usuá-
rios devido à ausência de regras internacionais sobre a internet40.
O Brasil tem uma participação acerca dos debates que se referem a es-
pionagem internacional, foram feitos questionamentos através da então
presidente Dilma Rousseff em 2013 acerca do método de espionagem utili-
zado pelos Estados Unidos da América e também reforçou seu pedido
quanto a um modelo de governança global da Internet, no plenário da
ONU41.
Diante deste cenário é notável a exigência do país de proteger as infor-
mações privadas na internet. A violação da privacidade dos usuários ocor-
re através da vigilância e espionagem internacional digital, que são fatores
preocupantes, pois fazem parte da problemática que permeia na internet.
Inicialmente a preocupação com a proteção dos dados surgiu através dessa
busca incessante pelos Estados e a formação de banco de dados nacionais.
Podemos exemplificar tal fato de acordo com o posicionamento de Pinhei-
ro:

40 PINHEIRO, Patrícia Peck. Op. cit., p. 483.


41 PINHEIRO, Patrícia Peck. Op. cit., p. 483.
253
Ketlen Caroline Soares Pierazzo · Gabriel Oliveira de Aguiar Borges
Desde o episódio do 11 de setembro de 2001, os EUA vêm sendo acusados
por vigiar tudo e a todos através das comunicações digitais. De certo
modo, este tema foi um dos que alavancaram a própria aprovação do Mar-
co Civil da Internet brasileira em 201442.
A evolução tecnológica nos apresenta uma nova preocupação que é
quanto aos dados pessoais recebidos por empresas privadas, as quais utili-
zam para obter fins econômicos, onde vendem, armazenam e transmitem
os dados dos consumidores finais ou não. Surgindo ofertas incessantes a
todo o instante através de e-mails e anúncios, tornando-se uma violação a
privacidade, um dos grandes problemas enfrentados atualmente na web.
Houve uma diferenciação quanto ao marketing, atualmente faz-se ne-
cessário coletar as informações dos consumidores, hábitos e comporta-
mentos. A coleta dos dados faz parte do desenvolvimento tecnológico e da
comunicação, as informações fornecidas são armazenadas em bancos de
dado de consumo43.
Quando se trata de privacidade na internet, nota-se que não houve uma
preocupação com as técnicas de controle e vigilância. Neste âmbito, insta
mencionar sobre survellaince:
A expressão surveillance é comumente traduzida para o português como
“vigilância”, contudo, não se trata da mera vigilância, entendida como um
evento específico e dirigido contra determinados sujeitos. Surveillance é
atenção concentrada, sistematizada e rotineira em relação aos dados pes-
soais, cujo objetivo é influenciar, gerenciar, proteger ou dirigir. Essa cres-
cente capacidade de armazenar uma enorme quantidade de dados pessoais
e a possibilidade de que sejam analisados dos mais diversos modos e com
as mais diversas finalidades é um fenômeno que ficou conhecido como da-
taveillance, que é uma forma específica de surveillance44.

42 PINHEIRO, Patrícia Peck. Op. cit., p. 414.


43 SARTORI, Ellen Carina Mattias. Op. cit., p. 2.
44 SARTORI, Ellen Carina Mattias. Op. cit., p. 4.
254
Ensaio sobre alguns aspectos teóricos do comércio eletrônico...
A violação da privacidade na internet possui grande proporção, existem
perigos iminentes quando a coleta e processamento de dados, pelo fato de
circularem livremente pela internet. O controle está cada vez menor pelos
usuários e cada vez mais dominante para a internet.
Com o fundamento de disciplinar quanto a proteção de dados pessoais,
bem como os tratamentos de tais dados paira uma legislação específica
quando o tema, a Lei 13.709 de 2018 denominada como Lei Geral de Pro-
teção de Dados (LGPD). Para Miragem45,
São reconhecidas diferentes influências à LGPD, dentre as quais tem espe-
cial relevância as normas que definem o modelo europeu de proteção de
dados, em especial o Regulamento Geral de Proteção de Dados (Regula-
mento 2016/679), que substituiu a Diretiva 46/95/CE, sobre tratamento de
dados pessoais, e a Convenção 108, do Conselho da Europa, que já em
1981 buscava dispor sobre a proteção das pessoas relativamente ao trata-
mento automatizado de dados de caráter pessoal. Sem prejuízo da influên-
cia reconhecida de outros sistemas jurídicos, e mesmo de outras leis brasi-
leiras.
Os elementos principais que integram a LGPD são em relação a defesa
do consumidor e os direitos fundamentais consagrados, como a proteção
da vida privada e da intimidade, entre outros. A inviolabilidade do sigilo
de dados já é uma matéria disciplinada pela Constituição Federal, em seu
artigo 5º, inciso XII:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a invio-
labilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à pro-
priedade, nos termos seguintes:
XII - e inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráfi-
cas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por

45 MIRAGEM, Bruno. A Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/2018) e o direito


do consumidor. Revista dos Tribunais, v. 1009, p.1-29, 2019, p. 2.
255
Ketlen Caroline Soares Pierazzo · Gabriel Oliveira de Aguiar Borges
ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de
investigação criminal ou instrução processual penal; (BRASIL. Constitui-
ção Federal.1988)
Seguindo este panorama legal, a Lei Geral de Proteção de Dados disci-
plina em seu artigo 1º a aplicabilidade da legislação quanto aos dados pes-
soais inclusive no âmbito digital, vejamos:
Art. 1º Esta Lei dispõe sobre o tratamento de dados pessoais, inclusive nos
meios digitais, por pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público
ou privado, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liber-
dade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pes-
soa natural.
Parágrafo único. As normas gerais contidas nesta Lei são de interesse na-
cional e devem ser observadas pela União, Estados, Distrito Federal e Mu-
nicípios.
Insta mencionar que a LGPD fomenta os direitos do consumidor elen-
cados no Código de Defesa do Consumidor, portanto, não exclui as nor-
mas já definidas. Inclusive, há em comum os artigos 7º e o 64 da LGPD
reforçando que os direitos dos titulares dos dados previstos nas respectivas
normas devem ser cumulados e compatibilizados pelo intérprete46.
Através do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) foram defini-
das regras gerais sobre a proteção de dados, mesmo que apenas em relação
as informações veiculadas na internet. Quanto aos dados pessoais, foi fixa-
da somente como princípio da disciplina do uso da internet através do
consentimento expresso da parte.
A aplicabilidade da LGPD e do Código de Defesa do Consumidor ocor-
re quando houver “o tratamento de dados realizados com a finalidade
direta ou indireta de fomentar a atividade econômica do fornecedor no

46 MIRAGEM, Bruno. Op. cit., p. 4.


256
Ensaio sobre alguns aspectos teóricos do comércio eletrônico...
mercado de consumo”47.
No que se refere ao tratamento de dados, a abordagem feita pela LGPD
é tratado de forma ampla, conforme disposto no artigo 5º, X “toda opera-
ção realizada com dados pessoais, como as que se referem a coleta, produ-
ção, recepção, classificação, utilização, acesso, reprodução, transmissão,
distribuição, processamento, arquivamento, armazenamento, eliminação,
avaliação ou controle da informação, modificação, comunicação, transfe-
rência, difusão ou extração”.
A incidência do Marco Civil da Internet também ocorrerá quando as
operações forem realizadas por intermédio da internet, desta feita, as nor-
mas deverão coincidir no momento de sua aplicação48.
Para que haja a formação de bancos de dados de consumidores, é ne-
cessário o consentimento informado sobre a finalidade do banco de dados,
processamento e para os fins da utilização. O artigo 5º da LGPD trata sobre
o consentimento como “manifestação livre, informada e inequívoca pela
qual o titular concorda com o tratamento de seus dados pessoais para uma
finalidade determinada”.
Nos negócios jurídicos de consumo, a falta de anuência do consumidor
não acarreta sua concordância, tampouco convalida o abuso ou a ilicitude.

7. Considerações finais
É notável a importância do comércio eletrônico nas transações comer-
ciais atuais há bastante tempo, independente dos produtos e serviços que
são ofertados, seja através das lojas virtuais, aplicativos de compras e sof-
twares. No decorrer do trabalho, foram demonstrados posicionamentos
acerca desta modalidade de comércio, sendo que para muitos trata-se de
uma inovação e para outros um desenvolvimento das transações comerci-

47 MIRAGEM, Bruno. Op. cit., p. 4.


48 MIRAGEM, Bruno. Op. cit., p. 4.
257
Ketlen Caroline Soares Pierazzo · Gabriel Oliveira de Aguiar Borges
ais já existentes.
Conclui-se que há características distintivas em relação aos contratos
feitos no comércio convencional devido às peculiaridades que compõem
os contratos eletrônicos, assim sendo necessário a adaptação de princípios
para a aplicabilidade da legislação existente como o Código Civil e o Códi-
go de Defesa do Consumidor para a resolução de problemas que venham a
surgir.
A exploração do ambiente digital nos negócios efetuados pela internet
potencializou novos métodos de transações comerciais por volta dos anos
1990 e início do ano 2000 devido a criação de ferramentas que possibilita-
ram a segurança dos consumidores, assim inspirando as novas operações
de comércio na internet.
É nítido que este mecanismo tecnológico influenciou as empresas de
menor e médio porte, as quais tiveram uma atuação maior no mercado
pelo fato de utilizar os meios eletrônicos para expandir os seus negócios.
Contata-se que o comércio eletrônico faz parte na vida dos consumido-
res, pela facilidade de acesso e por ser uma modalidade mais atrativa, que
satisfaz cada vez mais quem utiliza os meios eletrônicos para efetuarem as
suas compras. As empresas também têm resultados mais positivos por
adotarem as plataformas online, muitas empresas tradicionais no comér-
cio se destacaram também no comércio eletrônico.
Diante de tais fatos nota-se o objetivo de facilitar a realização das com-
pras para os consumidores e para as empresas. As vantagens ocorrem de-
vido as tendências do comércio eletrônico, desta feita há uma abordagem
jurídica acerca desse tipo de comércio, o Projeto de Lei nº 1.232/2011 que
estabelece critérios a serem seguidos pelas empresas.
Através deste trabalho, procurou-se demonstrar que a forma de empre-
ender tomou novos significados devido ao comércio eletrônico. O empre-
endedorismo atual adquiriu novas modalidades sem abandonar a forma
tradicional de vendas, o modelo de negócios online facilita a administra-

258
Ensaio sobre alguns aspectos teóricos do comércio eletrônico...
ção, vendas, produção e divulgação. O comércio eletrônico abre diversas
possibilidades de negócio para o empreendedor.
De toda forma, o comércio eletrônico, como demonstrado alhures, não
passa desapercebido pela legislação consumerista.

Referências
LEÃO, Luana da Costa. As relações negociais eletrônicas. Revista de Direi-
to do Consumidor, v. 6, 2014.
MARTINS, Guilherme Magalhães. Contratos Eletrônicos de Consumo. 3.
ed. São Paulo: Atlas, 2016.
MIRAGEM, Bruno. A Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/2018) e
o direito do consumidor. Revista dos Tribunais, v. 1009, p.1-29, 2019.
PINHEIRO, Patrícia Peck. Direito Digital. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.
SARTORI, Ellen Carina Mattias. Privacidade e dados pessoais: a proteção
contratual da personalidade do consumidor na internet. Revista dos
Tribunais, v. 9, p.49-104, 2016.
TEIXEIRA, Tarcísio. Comércio Eletrônico conforme o Marco Civil da In-
ternet e regulamentação do e-commerce no Brasil. São Paulo: Saraiva,
2015.

__________________________________________________
PIERAZZO, Ketlen Caroline Soares; BORGES, Gabriel Oliveira de Aguiar.
Ensaio sobre alguns aspectos teóricos do comércio eletrônico e a proteção
do consumidor. In: LONGHI, João Victor Rozatti; FALEIROS JÚNIOR,
José Luiz de Moura (Coords.); BORGES, Gabriel de Oliveira Aguiar; REIS,
Guilherme (Orgs.). Fundamentos de direito digital: a ciência jurídica na
sociedade da informação. Uberlândia: LAECC, 2020, pp. 231-259.
__________________________________________________

259
GEODISCRIMINAÇÃO: ANÁLISE À LUZ DO
CASO DECOLAR.COM

11
Ana Luíza Rodrigues Pereira
Lucas Zorzenoni Andreo
Thainá Lopes Gomes Lima

1. Introdução
Com a ascensão da internet na atual sociedade da informação, houve
substituição significativa dos meios físicos para os meios digitais, especi-
almente em relação às compras de produtos e serviços oferecidos pelo e-
commerce que, em regra, apresenta preços mais acessíveis em razão da
diminuição dos custos, propiciadas pelo comércio virtual em detrimento
do físico.
Um grande problema enfrentado atualmente é que, diante da amplitu-
de de informações que a internet oferece, há facilidade para ocorrência de
abuso e lesões aos direitos, principalmente dos consumidores. Notoria-
mente, o meio digital tem se desenvolvido como uma ferramenta valiosa
para melhorar a experiência dos consumidores ao redor do planeta, entre-
tanto, juntamente com esse significativo bônus surgem inúmeras condutas
ilícitas, a exemplo das apreciadas no caso protagonizado pela Decolar.com,
envolvendo práticas abusivas de geopricing e geoblocking.
Assim, no decorrer deste estudo, será analisado o referido caso, cujas

261
Ana Luíza R. Pereira · Lucas Zorzenoni Andreo · Thainá Lopes Gomes Lima
peculiaridades manifestaram a discriminação geográfica no âmbito digital,
o que gerou expressiva repercussão no Brasil. Posteriormente, a quebra de
barreiras físicas das nações possibilitada pela internet, bem como eventual
utilização daquelas para aferir responsabilidades dos fornecedores, serão
objetos de exame, além da necessidade dos Estados de se movimentarem
no sentido de oferecer maior proteção possível neste contexto. Por fim,
abordam-se as maneiras pelas quais tais práticas podem ser reprimidas à
luz da legislação, especialmente voltando-se à defesa da ordem pública na
esfera virtual, vez que esta proporciona à extensão da tutela ao consumidor
àquele ambiente.

1. O caso Decolar.com

O caso Decolar.com consiste em denúncia administrativa realizada pela


Booking.com contra aquela1, relatando práticas de discriminação a consu-
midores brasileiros em relação a argentinos, pois a Decolar detinha acesso
à localização dos compradores através do Internet Protocol2. As condutas
abusivas consistiam na precificação desigual para as mesmas acomodações
do setor hoteleiro, configurando a prática de geoprincing, e, também, no
bloqueio da visualização de algumas daquelas, o geoblocking, para o usuá-
rio que estivesse em território brasileiro.
De modo detalhado, pelo mencionado geoblocking há a ocultação de
oferta publicada digitalmente a determinados consumidores, sendo estes

1 Processo nº Administrativo n. 08012.002116/2016-21/SENACON, representação


realizada no Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor, atuante perante o
órgão público Ministério da Justiça.
2 Internet Protocol, nos ensinamentos de Patrícia Peck Pinheiro, é a entrega de dados
entre dois sistemas conectados à internet, dentre tais dados, inclui-se a localização de
uso do computador conectado. PINHEIRO, Patricia Peck. Direito digital. 5. ed. rev.,
atual. e ampl. de acordo com as Leis n. 12.735 e 12.737, de 2012 — São Paulo : Sarai-
va, 2013.
262
Geodiscriminação
impossibilitados de visualizá-la, enquanto que pelo geoprincing ocorre a
precificação heterogênea dos produtos ou serviços de mesma qualidade e
quantidade, ou seja, os preços atribuídos àqueles variam segundo a locali-
zação do usuário, critério este que igualmente norteia o geoblocking.
A Booking.com acrescentou, ainda, que por se tratarem de países dife-
rentes, a empresa possui dois sites com nomes diversos, sendo que no Bra-
sil trata-se da Decolar.com e, na Argentina, do Despegar.com, porém, são
sítios eletrônicos da mesma pessoa jurídica, pois apresentavam idênticos
canais de comunicação, política de privacidade, dentre outras evidências,
de forma que as provas contaram com a presença de atas notariais diante
da fé pública reconhecida por lei3 que o tabelião detém ao redigi-las.
Com o fito de refutar as alegações, a Decolar.com, após notificação, ne-
gou todas as atribuições das violações consumeristas que a concorrente lhe
culpabiliza, asseverando, em síntese, que as duas companhias indicadas
são diferentes, e, portanto, há justificativa plausível para a divergência nos
preços.
Afirmou a denunciada que a sua plataforma atua apenas como inter-
mediária entre consumidores e hotéis, não tendo nenhuma relação com a
disponibilidade de preços, trazendo também que não há facilitação para a
prática de violações por parte de seus parceiros.
Na fundamentação da decisão4, o Departamento de Proteção e Defesa

3 BRASIL. Lei nº 8.935 de 18 de novembro de 1994. Regulamenta o art. 236 da Consti-


tuição Federal, dispondo sobre serviços notariais e de registro. (Lei dos cartórios).
Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8935.htm> Acesso em
11 mar. 2020.
4 DPDC/Senacon, PA nº 08012.002116/2016-21, j. 15/06/2018, Nota Técnica nº
92/2018/CSA-SENACON/CGCTSA/GAB-DPDC/DPDC/SENACON/MJ. Disponí-
vel em
<http://www.cmlagoasanta.mg.gov.br/abrir_arquivo.aspx/PRATICAS_ABUSIVAS_
DECOLARCOM?cdLocal=2&arquivo=%7BBCA8E2AD-DBCA-866A-C8AA-
BDC2BDEC3DAD%7D.pdf>Acesso em: 27 fev. 2020.
263
Ana Luíza R. Pereira · Lucas Zorzenoni Andreo · Thainá Lopes Gomes Lima
do Consumidor, órgão em que houve a apresentação da denúncia por par-
te da Booking.com, concluiu que aconteceu vários descumprimentos da
legislação que tutela o consumidor. De início, fez destaque ao fato de que,
com a democratização do acesso a internet, qualquer discriminação neste
âmbito fere os direitos do consumidor e a dignidade humana, princípio
consagrado pela Constituição Federal, de modo que se há necessidade de
alguma proteção ao consumidor, o Estado tem o dever de intermediar para
a validação deste direito.
Complementa apontando a vulnerabilidade inerente ao consumidor
nas relações de consumo, elencada pelo Código de Defesa do Consumidor,
chamando atenção, neste caso, à presença da vulnerabilidade fática e téc-
nica que o consumidor fora submetido5. A primeira porque o brasileiro
encontrou-se exposto a tarifas mais onerosas ou bloqueadas, sem que ti-
vesse condições de saber deste fato e a segunda, a vulnerabilidade técnica,
porque não sabia que por meio de seu Internet Protocol estaria fornecendo
seus dados de localização possibilitando a discriminação aplicada a si, em
relação ao consumidor argentino.
Fez menção ainda à violação dos direitos do consumidor referente à
igualdade nas contratações, pois houve discriminação de preços sem ne-

5 Cavalieri Filho explana que a vulnerabilidade fática: “[...] é a mais facilmente percep-
tível, decorrendo da discrepância entre a maior capacidade econômica e social dos
agentes econômicos – detentores dos mecanismos de controle da produção, em todas
as suas fases, e, portanto, do capital e, como consequência, de status, prestigio social
– e a condição de hipossuficiente dos consumidores.”, enquanto que a vulnerabilida-
de técnica: “[...] decorre do fato de não possuir o consumidor conhecimentos especí-
ficos sobre o processo produtivo, bem assim dos atributos específicos de determina-
dos produtos ou serviços pela falta ou inexatidão das informações que lhe são presta-
das. E o fornecedor quem detém o monopólio do conhecimento e do controle sobre
os mecanismos utilizados na cadeia produtiva. Ao consumidor resta, somente, a con-
fiança, a boa-fé, no proceder honesto, leal do fornecedor, fato que lhe deixa sensi-
velmente exposto. CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de direito do consumidor.
5. ed. – São Paulo: Atlas, 2019, p. 100-101.
264
Geodiscriminação
nhum motivo razoável. Redução do direito à informação, à vista da oculta-
ção das informações ao consumidor brasileiro, o qual, por esta razão, não
pôde exercer em plenitude a sua liberdade de contratação, bem como por-
que ter sido exposto a abusividades por meio dos métodos desleais que a
empresa lhe inseriu sem o seu conhecimento.
A fundamentação relatada foi acolhida pela diretoria do órgão compe-
tente, motivando a aplicação de sanções à Decolar.com, consistentes na de
cessação imediata das práticas abusivas de geopricing e geoblocking, além
de multa no valor de R$ 7,5 milhões em razão das violações mencionadas,
levando-se em consideração a gravidade e extensão do dano, a vantagem
auferida e a condição econômica da empresa.
Assim, cabe trazer que houve a instauração de inquérito civil no Minis-
tério Público do Rio de Janeiro que deu azo a processo judicial, o qual tra-
mita perante o Tribunal de Justiça daquele estado, sob segredo de justiça,
com o objetivo de responsabilizar e condenar a Decolar.com pelas práticas
de geopricing e geoblocking praticadas à época dos Jogos Olímpicos de
2016 realizados no Brasil, sendo sustentado pelo Ministério Público a
ocorrência de danos materiais e morais tanto no âmbito individual, quanto
no coletivo. Ressalta-se ainda que, como dito, o feito tramita sob segredo
de justiça, motivo que impossibilita maiores informações sobre a deman-
da6.
Portanto, o caso em tela evidencia que as condutas discriminatórias no
âmbito do e-commerce não somente merecem proteção jurídica no que se
refere às relações de consumo, mas também conferem legitimidade ao
Estado para intervir, sendo expressa a ilicitude das práticas de geopricing e
geoblocking e sua inadequação com os princípios e dispositivos norteado-
res do Código de Defesa do Consumidor, Constituição Federal e outros
diplomas incidentes.

6 Considerando o período de produção do presente texto, qual seja fevereiro do ano de


2020.
265
Ana Luíza R. Pereira · Lucas Zorzenoni Andreo · Thainá Lopes Gomes Lima

2. A Internet, as fronteiras e os governos nacionais


O surgimento da internet e a sua massificação fez surgir significativos
debates sobre temáticas correlacionadas, algo que não se esperava ser dife-
rente, pois a existência de um meio completamente original é digno de
reflexões sobre as melhores posturas a serem empregadas pela sociedade,
caminho este que passa pela seleção de modelos a serem adotados.
Diante disso, a questão das fronteiras físicas e a sua relação com a in-
ternet se apresenta como uma insurgência crucial na evolução do meio
digital, visto que será determinante para eleger a jurisdição competente,
regular os conflitos no ambiente digital, enunciar se os governos nacionais
terão autonomia diante de certas ocasiões, dentre outras particularidades a
serem examinadas a depender do caso concreto.
Logo, a aplicabilidade das fronteiras físicas ao meio digital se demons-
tra como essencial para o entendimento da geodiscriminação, bem como
para situar os governos nacionais na proteção daqueles indivíduos que
foram lesados no ambiente digital.
Nesse sentido, Goldsmith e Wu trouxeram importante contribuição pa-
ra entendimento da temática, elucidando que o ciberespaço representa um
desafio às autoridades dos estados-nações, porquanto concebe um sistema
contemporâneo pós-territorial7, e visualizam, por outro ângulo, a impres-
cindibilidade dos governos nacionais empreenderem forças conjuntas por
meio de organismos internacionais para regrá-lo8. Invariavelmente, se-
gundo os autores, tais entendimentos cristalizaram a necessidade de subs-
tituição do sistema de governo territorial em função do surgimento da

7 GOLDSMITH, Jack; WU, Tim. Who controls the internet? Illusions of a borderless
world. Oxford: Oxford University Press, 2006, p. 13-14.
8 GOLDSMITH, Jack; WU, Tim. Who controls the internet? Illusions of a borderless
world. Oxford: Oxford University Press, 2006, p. 26.
266
Geodiscriminação
internet9.
Contrariando a ideia até então vigente, surge uma nova concepção rela-
tiva à matéria que privilegia os governos nacionais e as fronteiras físicas,
não como resultado direto da atuação do governo, mas pela constatação de
que os usuários mundiais da internet exigem experiências inéditas na rede,
as quais poderiam ser proporcionadas justamente a partir da localização
geográfica10.
Apontam os autores que, a partir das exigências dos usuários em rede,
passa-se a observar algo contraditório, dado que a promessa de quebra de
fronteiras em virtude da ascensão do ambiente digital passa a se valer da
localização geográfica como uma de suas ferramentas primordiais11.
Devidamente justificada a intervenção dos governos e a reprodução das
fronteiras físicas no ambiente digital, surgem os bônus e os ônus inerentes
ao modelo de geolocalização existentes no meio digital. Asseveram os au-
tores Goldsmith e Wu que os serviços de identificação geográfica estão
ajudando a impedir fraudes no ambiente virtual, protegendo os consumi-
dores e seus cartões de crédito. Entretanto, também se percebe que a utili-
zação da localização geográfica não é infalível, existindo um aumento do
número de pessoas rastreadas através de redes de Wi-Fi12.
Assim, as práticas de geopricing e geoblocking, que tomam por princípio
a localização geográfica dos consumidores, se apresentam justamente co-
mo um uso inadequado da tecnologia, prejudicando estes e favorecendo os
fornecedores. Todavia, insta ponderar que a geolocalização e as fronteiras

9 GOLDSMITH, Jack; WU, Tim. Who controls the internet? Illusions of a borderless
world. Oxford: Oxford University Press, 2006, p. 27.
10 GOLDSMITH, Jack; WU, Tim. Who controls the internet? Illusions of a borderless
world. Oxford: Oxford University Press, 2006, p. 49.
11 GOLDSMITH, Jack; WU, Tim. Who controls the internet? Illusions of a borderless
world. Oxford: Oxford University Press, 2006, p. 52.
12 GOLDSMITH, Jack; WU, Tim. Who controls the internet? Illusions of a borderless
world. Oxford: Oxford University Press, 2006, p. 57.
267
Ana Luíza R. Pereira · Lucas Zorzenoni Andreo · Thainá Lopes Gomes Lima
físicas são relevantes no meio digital, particularmente em função da exten-
são da atividade estatal repressiva, cuja resistência se volta às práticas abu-
sivas em tela.
Portanto, qual deve ser a postura dos governos nacionais no combate às
práticas abusivas que tomam por base a geodiscriminação? Uma resposta
razoável toma por consideração duas abordagens distintas, igualmente
válidas e complementares para entender qual posicionamento dos Estados
frente às práticas abusivas. A primeira delas leva em consideração o víncu-
lo entre governo e o meio digital, já a outra abordagem toma por base a
relação dos daqueles para com os consumidores.
A visão que trata sobre a relação entre o governo e ambiente virtual ex-
põe que essa tratativa pode ser proveitosa ou danosa, a depender da situa-
ção em que os agentes estão inseridos e as motivações dos governos nacio-
nais democraticamente eleitos. A propósito, Goldsmith e Wu frisam que
os particulares outrora acreditavam na possibilidade de afastar a força
estatal no meio digital, todavia, a atualidade importa no reconhecimento
da necessidade da presença da mesma em variados segmentos, visando a
adequada disponibilização dos serviços e mercadorias13.
Por sua vez, a relação regulatória entre governos nacionais e consumi-
dores é justificada pela doutrina e a sua reprodução no meio digital se afi-
gura como mera consequência, isto porque, não existem motivos razoáveis
que limitem a atuação estatal nesta situação, apenas se alterou o meio que
as relações consumeristas decorrem, em suma, passou-se do meio físico
para o meio virtual.
Logo, os governos tutelarem os consumidores no meio digital se apre-
senta como razoável e necessário para que um ambiente harmonioso e
livre de atores indesejados se desenvolva livremente. Além disso, como o
caso analisado trata dos dados pessoais dos consumidores, nota-se que

13 GOLDSMITH, Jack; WU, Tim. Who controls the internet? Illusions of a borderless
world. Oxford: Oxford University Press, 2006, p. 140
268
Geodiscriminação
estes se afiguram como um elemento crítico para a promoção dos bens de
consumo14, razão pela qual uma análise detalhada da situação deve afastar
a lógica exclusiva dos interesses econômicos e nortear-se pelo fluxo das
informações pessoais15.

3. Geopricing, geoblocking e a tutela do consumidor


No contexto das relações tuteladas pelo Direito do Consumidor, a con-
solidação do e-commerce se configura em vertentes opostas, concomitantes
e, potencialmente, conflitantes. Isto porque, num primeiro viés, o ato de
comprar no ambiente digital oportuniza ao consumidor a efetivação de
pesquisa ampla e diversificada dos produtos, serviços e preços, de modo
que a desterritorialização das relações estabelecidas por meio eletrônico
propicia ao consumidor a aquisição de produtos e serviços precificados
num patamar inferior ao usual16.
Todavia, por outro ângulo, o avanço propulsionado pelas vendas no
ambiente digital à liberdade contratual é acompanhado pela exposição do
consumidor a práticas cada vez mais abusivas, ilegais e dissonantes do
ordenamento que lhe respalda, particularmente em função do desenvol-
vimento da tecnologia da informação e do processamento massivo da uni-
versalidade dos dados17. Evidente, portanto, que a propagação do e-

14 BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consen-


timento. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 65.
15 BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consen-
timento. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 66.
16 MIRAGEM, Bruno Nunes Barbosa. Direito Civil: Responsabilidade Civil. São Paulo:
Saraiva, 2015, p. 809.
17 Como observa Miragem: “Esta nova capacidade de tratamento de dados permite a
identificação de tendências, não mais baseadas em amostragens, mas no processa-
mento da universalidade dos dados. Deste modo, aumenta a precisão e as possibili-
dades de resultados a serem obtidos, permitindo, dentre outros resultados, identificar
padrões de consumo, conforme o comportamento de compra dos consumidores, sua
269
Ana Luíza R. Pereira · Lucas Zorzenoni Andreo · Thainá Lopes Gomes Lima
commerce exige a criação e, sobretudo, a ressignificação de institutos pro-
tetivos voltados à tutela do vulnerável, cuja atual vulnerabilidade compre-
ende, sobremaneira, a digital18.
Dentre os artifícios utilizados pelos fornecedores com o fito de infringir
a tutela consumerista, há a mencionada coleta, armazenamento e proces-
samento de dados para posterior utilização de modo diferente da finalida-
de externada ao consumidor. Nesse cenário, justamente com o uso de da-
dos previamente coletados, a prática da geodiscriminação materializa a
violação de direitos básicos do consumidor, notadamente em razão da
adoção de critérios infundados para segmentar determinados usuários em
razão de sua origem geográfica, seja bloqueando a oferta disponibilizada
ou distinguindo preços com base na localização.
Essas condutas, explicitamente abusivas, ainda não foram vedadas de
forma expressa pelo legislador nacional. De todo modo, a ausência de pre-
visão não obstrui sua repressão, graças aos ordenamentos jurídicos que
coíbem condutas discriminatórias que onerem ou imponham manifesta
desvantagem ao consumidor, sobretudo lesando sua liberdade contratual e
a boa-fé objetiva19.

localização (e.g. as discutidas técnicas de geopricing, pelas quais a determinação do


preço de produtos ou serviços se dá conforme o lugar em que esteja o consumidor)
[...]”. MIRAGEM, Bruno. A Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/2018) e o di-
reito do consumidor. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 1009, nov. 2019, p. 173-
225.
18 CANTO, Rodrigo Eidelvein do. Direito do Consumidor e vulnerabilidade no meio
digital. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 22, n. 87, p. 179-210,
maio/jun. 2013.
19 No tocante à liberdade contratual, Cláudia Lima Marques leciona: “A liberdade
contratual significa, então, a liberdade de contratar ou de se abster de contratar, li-
berdade de escolher o seu parceiro contratual, de fixar o conteúdo e os limites das
obrigações que quer assumir, liberdade de poder exprimir a sua vontade na forma
que desejar, contando sempre com a proteção dos direitos.”. E quanto, à boa-fé:
“Boa-fé objetiva significa, portanto, uma atuação "refletida", uma atuação refletindo,
270
Geodiscriminação
Pacífico e sedimentado é o caráter exemplificativo das práticas abusivas
descritas no Código de Defesa do Consumidor, pelo qual se legitima a
efetivação de juízo de subsunção entre a conduta tida como ilegal para
com o ordenamento como um todo, valendo-se, para tanto, de uma inter-
pretação principalmente teleológica que oferta a extensão de tais repreen-
sões ao ambiente virtual20.
Certo é que o tratamento isonômico dos consumidores detém matriz
constitucional, à vista do princípio da igualdade, assim como a proibição
de elevação injustificada dos preços, além de figurarem íntima ligação com
a liberdade contratual, ambos direitos básicos do consumidor insculpidos
no CDC.
Outrossim, as condutas ora em exame também se enquadram na veda-
da prática relativa à recusa imotivada ao atendimento das demandas dos
consumidores, em especial a venda de bens ou prestação de serviços. Des-
tarte, incontestavelmente, o tutelado poderá fazer valer seus direitos com
base no Código de Defesa do Consumidor, cuja incidência cada vez mais
se amolda às novas relações jurídicas resultantes das interações propicia-

pensando no outro, no parceiro contratual, respeitando-o, respeitando seus interes-


ses legítimos, suas expectativas razoáveis, seus direitos, agindo com lealdade, sem
abuso, sem obstrução, sem causar lesão ou desvantagem excessiva, cooperando para
atingir o bom fim das obrigações: o cumprimento do objetivo contratual e a realiza-
ção dos interesses das partes.”. MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de
Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 8. ed. São Paulo: Re-
vista dos Tribunais, 2016, p. 68 e 222.
20 A jurisprudência converge acerca do caráter exemplificativo das práticas abusivas
previstas CDC: STJ. Recurso Especial: REsp 1699780/SP, Rel. Ministro Marco Auré-
lio Bellizze, Terceira Turma, DJ 11/09/2018, DJe 17/09/2018. Disponível em:
https://scon.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp. Acesso em: 12 de abril de 2020;
STJ. Recurso Especial: REsp 1326592/GO, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta
Turma, DJ 07/05/2019, DJe 06/08/2019. Disponível em:
https://scon.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp. Acesso em: 12 de abril de 2020.
271
Ana Luíza R. Pereira · Lucas Zorzenoni Andreo · Thainá Lopes Gomes Lima
das pelo comércio eletrônico21.
Aliás, como explana Miragem, o amparo dos direitos em comento não
se embasa apenas na tutela específica do consumidor, porquanto a Lei
Geral de Proteção de Dados poderá igualmente ser invocada a fim de sal-
vaguardá-los, em especial mediante seus princípios, haja vista que o pro-
cessamento de dados com o escopo direto ou indireto de fomentar a ativi-
dade econômica do fornecedor no ambiente virtual se sujeita à incidência
concomitante do CDC, da LGPD e do Marco Civil da Internet22.
A propósito, a Lei Geral de Proteção de Dados solidificou princípios
presentes em outras leis, das quais já se extraíam bases para a proteção dos
dados pessoais, tal como o princípio da não discriminação, o qual impos-
sibilita o tratamento dos dados para fins discriminatórios ilícitos e abusi-
vos23. Assim, a coerência e unidade do sistema normativo coíbem o pro-
cessamento de dados com o objetivo de segmentar sem justificativa os
consumidores no mercado de consumo, impedindo-lhes ilegalmente da
faculdade do ato de consumir24.
Há, por conseguinte, leis extremamente aptas a tutelarem o consumi-
dor frente à geodiscriminação, tornando inevitável reprimir fortemente a
prática que obstrui o acesso pleno ao mercado de consumo com base em
critérios discriminatórios ilegalmente invocados pelos interesses econômi-
cos, os quais desequilibram exageradamente as relações entre consumido-

21 PINHEIRO, Patrícia Peck. Direito Digital. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 83.
22 MIRAGEM, Bruno. A Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/2018) e o direito
do consumidor. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 1009, nov. 2019, p. 173-225.
23 OLIVEIRA, Marco Aurélio Belizze. LOPES, Isabela Maria Pereira. Os princípios
norteadores da proteção de dados pessoais no Brasil e sua otimização pela Lei
13.709/2018. In: FRAZÃO, Ana; TEPEDINO, Gustavo; OLIVA, Milena Donato (Co-
ord.). Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais e suas repercussões no direito brasileiro.
São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. E-book.
24 MIRAGEM, Bruno. A Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/2018) e o direito
do consumidor. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 1009, nov. 2019, p. 173-225.
272
Geodiscriminação
res e fornecedores.
Conclui-se, mediante a subsunção das características do caso concreto
examinado ao ordenamento vigente, que o dirigismo estatal e a reprodu-
ção das fronteiras físicas nas relações firmadas na internet, se fortalecem
na medida em que a vulnerabilidade do consumidor é agravada em decor-
rência da facilitação do acesso aos dados pessoais pelos fornecedores no
meio digital.
Como visto, tais sujeitos da relação consumerista utilizam as informa-
ções coletadas de maneira indevida e distinta da exteriorizada aos usuários,
tal qual ocorre na geodiscriminação. A reprimenda desta patente prática
abusiva, inclusive, fica a cargo da legislação específica aplicável às relações
de consumo, bem como das que regem a proteção de dados, ordenamentos
estes compostos por considerável carga principiológica e cláusulas de
abertura, estruturadas para proporcionar a extensão da tutela do consumi-
dor aos atos de consumo efetivados no e-commerce.
Prova disto é, justamente, o caso da Decolar.com, visto que a decisão
administrativa condenatória se valeu direta ou indiretamente das sobredi-
tas leis a fim de penalizar a empresa pelas práticas discriminatórias e lesi-
vas à liberdade contratual do consumidor.

4. Considerações finais
O caso Decolar.com se revela como exemplo significante da segmenta-
ção dos consumidores mediante critérios injustificados, os quais atestam a
abusividade inerente à geodiscriminação. A prática desfavorece o equilí-
brio nas relações contratuais, particularmente por contrariar a liberdade e
a boa-fé objetiva, motivos que legitimam e sustentam a acertada penaliza-
ção da empresa na esfera administrativa.
Contudo, a pertinência da decisão condenatória vai além do viés me-
ramente punitivo, englobando importantes aspectos pedagógicos na me-
dida em que desestimula a reiteração da conduta não apenas pela Deco-
273
Ana Luíza R. Pereira · Lucas Zorzenoni Andreo · Thainá Lopes Gomes Lima
lar.com, mas também pelas demais empresas do ramo.
Não pairam dúvidas, portanto, que a repressão da geodiscriminação é
extremamente relevante e encontra fortes bases normativas, circunstâncias
que tornam prescindível a sua vedação taxativa, assim como a de outras
práticas abusivas perpetradas no ambiente digital, sendo certo que o orde-
namento – e, em especial, o Código de Defesa do Consumidor – poderá se
amoldar aos contratos contemporâneos por intermédio principal da her-
menêutica a fim de proteger o vulnerável de maneira efetiva.

Referências
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consentimento. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção
do consumidor e dá outras providências. Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8078compilado.htm Aces-
so em: 10 mar. 2020
BRASIL. Lei nº 8.935 de 18 de novembro de 1994. Regulamenta o art. 236
da Constituição Federal, dispondo sobre serviços notariais e de regis-
tro. (Lei dos cartórios). Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8935.htm. Acesso em: 11
mar. 2020.
BRASIL. Ministério da Justiça. Despacho nº 299/2018. Diário Oficial da
União. 18 jun. 2018, seção 1.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial: REsp 1699780/SP,
Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, DJ 11/09/2018,
DJe 17/09/2018. Disponível em:
https://scon.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp. Acesso em: 12 de
abril de 2020.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial: REsp
1326592/GO, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, DJ

274
Geodiscriminação
07/05/2019, DJe 06/08/2019. Disponível em:
https://scon.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp. Acesso em: 12 de
abril de 2020.
CANTO, Rodrigo Eidelvein do. Direito do Consumidor e vulnerabilidade
no meio digital. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 22, n.
87, p. 179-210, maio/jun. 2013.
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de direito do consumidor. 5. ed. São
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MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor:
o novo regime das relações contratuais. 8. ed. São Paulo: Revista dos
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DPDC/Senacon, PA nº 08012.002116/2016-21, j. 15/06/2018, Nota Técni-
ca nº 92/2018/CSA-SENACON/CGCTSA/GAB-DPDC/SENACON.
Disponível em: https://bit.ly/3f1ISpi. Acesso em: 27 fev. 2020.
GOLDSMITH, Jack; WU, Tim. Who controls the internet? Illusions of a
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MIRAGEM, Bruno. A lei geral de proteção de dados (Lei 13.709/2018) e o
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OLIVEIRA, Marco Aurélio Belizze. LOPES, Isabela Maria Pereira. Os
princípios norteadores da proteção de dados pessoais no Brasil e sua
otimização pela Lei 13.709/2018. In: FRAZÃO, Ana; TEPEDINO, Gus-
tavo; OLIVA, Milena Donato (Coord.). Lei Geral de Proteção de Dados
Pessoais e suas repercussões no direito brasileiro. São Paulo: Thomson
Reuters Brasil, 2019. E-book.
PINHEIRO, Patrícia Peck. Direito Digital. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

275
Ana Luíza R. Pereira · Lucas Zorzenoni Andreo · Thainá Lopes Gomes Lima

__________________________________________________
PEREIRA, Ana Luíza Rodrigues; ANDREO, Lucas Zorzenoni; LIMA,
Thainá Lopes Gomes. Geodiscriminação: análise à luz do caso Deco-
lar.com. In: LONGHI, João Victor Rozatti; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz
de Moura (Coords.); BORGES, Gabriel de Oliveira Aguiar; REIS, Gui-
lherme (Orgs.). Fundamentos de direito digital: a ciência jurídica na soci-
edade da informação. Uberlândia: LAECC, 2020, pp. 261-276.
__________________________________________________

276
BREVE ENSAIO SOBRE SEGURANÇA
JURÍDICA NO COMÉRCIO ELETRÔNICO E
ABORDAGEM LEGISLATIVALIDADE

12
Ketlen Caroline Soares Pierazzo
Gabriel Oliveira de Aguiar Borges

1. Introdução
Para que haja justiça, é necessária uma segurança jurídica positivada
através de uma legislação específica. No âmbito do empreendedorismo
digital, é necessário que a abordagem jurídica seja adequada e pertinente,
possibilitando sua aplicabilidade pertinente as novas tecnologias comerci-
ais através de princípios reguladores do comércio eletrônico.
Desta feita, diversos atos ilegais de comércio que ocorrem na internet
podem ser impedidos, segundo Teixeira e Lopes1 “prover princípios capa-
zes de tutelar a dinâmica dos negócios digitais sem engessá-los, mas impe-
dindo, por exemplo, situações de concorrência desleal na internet”.
A segurança no meio eletrônico é abordada como um desafio, devido a
velocidade que a internet e os meios de comunicação se desenvolvem, on-
de a legislação não consegue acompanhar e fazer a normatização adequa-

1 SANTOS, K.; TEIXEIRA, T.; LOPES, A.M. Startups e inovação: direito no empreen-
dedorismo. Barueri: Manole, 2017, p. 8.
277
Ketlen Caroline Soares Pierazzo · Gabriel Oliveira de Aguiar Borges
da, correndo o risco de não acompanhar a atualização e ficar defasada em
pouco tempo.
É necessário a segurança jurídica tanto para a proteção dos consumido-
res e dos empreendedores, pois as consequências da ausência de um dispo-
sitivo legal e adequado pode ocasionar mais ajuizamentos de ações de in-
denização.

2. Proteção jurídica no e-commerce


O processo de compras e vendas do comércio eletrônico têm aumenta-
do com frequência no comércio brasileiro. Esta modalidade comercial
abrange diversas relações comerciais envolvendo empresas e consumido-
res, desta feita é necessário que haja uma abordagem jurídica que trate
sobre a segurança do comércio eletrônico para ambas as partes.
Para Teixeira e Lopes2, a atividade comercial eletrônica exercida por
empreendedores “precisa conhecer os principais requisitos do Decreto
Federal nº 7.962/2013, que regulamenta o Código de Defesa do Consumi-
dor acerca do comércio eletrônico”. Há requisitos que os sites e as demais
ferramentas de compras online precisam disponibilizar aos consumidores
de forma clara, em destaque e de fácil visualização.
Deve haver o nome empresarial e o número do CNPJ no caso de pessoa
jurídica, se física, deve constar o número do CPF; endereço físico e eletrô-
nico, bem como informações que tratem de localização e contato; sobre o
que trata o serviço fornecido; preços; despesas adicionais e acessórias; mo-
dalidades de entrega; condições de oferta, incluindo as formas de paga-
mento, disponibilidade, modo e prazo de execução do serviço3.

2 SANTOS, K.; TEIXEIRA, T.; LOPES, A.M. Startups e inovação: direito no empreen-
dedorismo. Barueri: Manole, 2017, p. 9.
3 SANTOS, K.; TEIXEIRA, T.; LOPES, A.M. Startups e inovação: direito no empreen-
dedorismo. Barueri: Manole, 2017, p. 19.
278
Breve ensaio sobre segurança jurídica no comércio eletrônico...
Tais informações são fundamentais para que haja uma compra segura e
confiável, onde o consumidor tenha acesso à todas as informações que
sejam pertinentes em casos de surgir alguma dúvida ou imprevisto, assim,
tendo contato direto com a empresa que está adquirindo um produto ou
serviço.
A legislação que aborda sobre o e-commerce exige que o empreendedor
digital apresente um resumo detalhado do conteúdo contratual antes que
haja a sua concretização, constando informações fundamentais ao pleno
exercício de escolha do consumidor, assim como as cláusulas que expres-
sam os direitos; ferramentas e métodos eficazes ao consumidor para iden-
tificação imediata de erros que possam ocorrer durante a contratação.
O empreendedor deve se atentar quanto a disponibilização do contrato
para o consumidor e manter a sua prestação de serviço de forma adequada
e eficaz por meio eletrônico, onde possam ser esclarecidas dúvidas, local
voltado para reclamações ou cancelamento de compras. É de suma impor-
tância que haja a confirmação imediata do recebimento da aceitação da
oferta4.
Visando a segurança dos dados dos consumidores, as empresas devem
utilizar ferramentas de proteção eficazes para pagamentos e dados, com o
objetivo de evitar fraudes.
Insta mencionar quanto ao prazo de respostas a serem dadas pela em-
presa quando solicitada alguma dúvida, reclamação ou cancelamento do
contrato, neste caso a empresa tem 5 dias para prestar os devidos esclare-
cimentos. O direito de arrependimento da compra é dado ao consumidor
no prazo de 7 dias se o serviço ainda não foi prestado, poderá solicitar a
rescisão do contrato e a devolução integral do pagamento.

4 SANTOS, K.; TEIXEIRA, T.; LOPES, A.M. Startups e inovação: direito no empreen-
dedorismo. Barueri: Manole, 2017, p. 19.
279
Ketlen Caroline Soares Pierazzo · Gabriel Oliveira de Aguiar Borges
3. Decreto federal nº 7.962/2016
O comércio eletrônico tem movimentado a economia do Brasil, con-
forme mencionado por Martins5 “valores superiores a 40 bilhões de reais
no ano de 2015, reforça a necessidade de regras específicas a respeito da
matéria, sobre a qual pairou durante décadas um vazio de regulação”.
O Código de Defesa do Consumidor de 1990 foi atualizado através do
Senado Federal em 2010 através da edição do Projeto de Lei nº 281/2012
criando um marco legislativo para o comércio eletrônico e o comércio à
distância no país. Conforme exposto por Martins6 “foi aprovado em no-
vembro de 2015 pelo Plenário do Senado Federal e posteriormente conver-
tido no Projeto de Lei nº 3.514, da Câmara dos Deputados, atualmente
apensado ao Projeto de Lei nº 4.906/2001”.
Em suma, trata-se de um grande avanço na legislação por abarcar o
comércio eletrônico e as suas principais características, visando a confian-
ça dos consumidores através de sua proteção nas compras, assim como a
segurança e a proteção que é tratada na mesma proporção do Código de
Defesa do Consumidor de forma mais atualizada, conforme as tendências
do comércio eletrônico.

4. Decreto nº 7.962/2013
No Brasil, no dia 15 de março de 2013 foi editado pela Presidente da
República o Decreto nº 7.962/2013 que aborda sobre a matéria do comér-
cio eletrônico no Código de Defesa do Consumidor7 diante de influências
dos dispositivos do PLS nº 281/2012.

5 MARTINS, Guilherme Magalhães. Contratos eletrônicos de consumo. 3. ed. São Pau-


lo: Atlas, 2016, p. 215.
6 MARTINS, Guilherme Magalhães. Contratos eletrônicos de consumo. 3. ed. São Pau-
lo: Atlas, 2016, p. 215.
7 MARTINS, Guilherme Magalhães. Contratos eletrônicos de consumo. 3. ed. São Pau-
lo: Atlas, 2016, p. 216.
280
Breve ensaio sobre segurança jurídica no comércio eletrônico...
Diante desta abordagem legislativa denota-se que nas contratações que
ocorrem via internet, o direito à informação sobre o produto ou serviço
que está sendo contratado não é suficiente, devendo conter sobre o forne-
cedor. As informações que devem constar em ofertas de produtos e servi-
ços já estão previstas no Código de Defesa do Consumidor, no artigo 31,
vejamos:
Art. 31. A oferta e apresentação de produtos ou serviços devem assegurar
informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa
sobre suas características, qualidades, quantidade, composição, preço, ga-
rantia, prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como sobre
os riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores.
Parágrafo único. As informações de que trata este artigo, nos produtos re-
frigerados oferecidos ao consumidor, serão gravadas de forma indelével.
(Incluído pela Lei nº 11.989, de 2009)
Levando em consideração a vulnerabilidade do consumidor nas rela-
ções de consumo, o Decreto nº 7.962/2013 disciplina em seu artigo 2º,
incisos I e II acerca das informações claras sobre a identificação do forne-
cedor, tendo como base legislativa o art. 44-B do PLS nº 281/2012, segun-
do Martins8 o qual foi inspirado na Diretiva nº 31/2000 da Comunidade
Econômica Europeia que aborda sobre o comércio eletrônico. Vejamos o
artigo previsto no Decreto nº 7.962/2013:
Art. 2º Os sítios eletrônicos ou demais meios eletrônicos utilizados para
oferta ou conclusão de contrato de consumo devem disponibilizar, em lo-
cal de destaque e de fácil visualização, as seguintes informações:
I - nome empresarial e número de inscrição do fornecedor, quando hou-
ver, no Cadastro Nacional de Pessoas Físicas ou no Cadastro Nacional de
Pessoas Jurídicas do Ministério da Fazenda;
II - endereço físico e eletrônico, e demais informações necessárias para sua

8 MARTINS, Guilherme Magalhães. Contratos eletrônicos de consumo. 3. ed. São Pau-


lo: Atlas, 2016, p. 216.
281
Ketlen Caroline Soares Pierazzo · Gabriel Oliveira de Aguiar Borges
localização e contato;
III - características essenciais do produto ou do serviço, incluídos os riscos
à saúde e à segurança dos consumidores;
IV - discriminação, no preço, de quaisquer despesas adicionais ou acessó-
rias, tais como as de entrega ou seguros;
V - condições integrais da oferta, incluídas modalidades de pagamento,
disponibilidade, forma e prazo da execução do serviço ou da entrega ou
disponibilização do produto; e
VI - informações claras e ostensivas a respeito de quaisquer restrições à
fruição da oferta.
O artigo mencionado acima trata dos requisitos a serem cumpridos
acerca das informações dos fornecedores no comércio eletrônico, objeti-
vando a prevenção de fraudes e de certa forma prestar segurança aos con-
sumidores. Também houve a preocupação da legislação acerca das com-
pras coletivas e as modalidades que são semelhantes a este tipo de contra-
tação, sendo estabelecidas as normas no artigo 3º:
Art. 3º Os sítios eletrônicos ou demais meios eletrônicos utilizados para
ofertas de compras coletivas ou modalidades análogas de contratação de-
verão conter, além das informações previstas no art. 2º , as seguintes:
I - quantidade mínima de consumidores para a efetivação do contrato;
II - prazo para utilização da oferta pelo consumidor; e
III - identificação do fornecedor responsável pelo sítio eletrônico e do for-
necedor do produto ou serviço ofertado, nos termos dos incisos I e II do
art. 2º.
Em suma, quando se trata de compras coletivas ou de modalidade aná-
logas, devem haver informações adicionais além dos requisitos menciona-
dos no artigo 2º do mesmo decreto.

282
Breve ensaio sobre segurança jurídica no comércio eletrônico...
Para Martins9, o Decreto nº 7.962/2019 trata da boa-fé objetiva através
da obrigação decorrente do fornecedor, de apresentar um sumário do con-
trato antes de finalizá-lo, objetivando o atendimento facilitado ao consu-
midor, conforme elencado no artigo 4º:
Art. 4º. Para garantir o atendimento facilitado ao consumidor no comércio
eletrônico, o fornecedor deverá:
I - apresentar sumário do contrato antes da contratação, com as informa-
ções necessárias ao pleno exercício do direito de escolha do consumidor,
enfatizadas as cláusulas que limitem direitos;
II - fornecer ferramentas eficazes ao consumidor para identificação e cor-
reção imediata de erros ocorridos nas etapas anteriores à finalização da
contratação;
III - confirmar imediatamente o recebimento da aceitação da oferta;
IV - disponibilizar o contrato ao consumidor em meio que permita sua
conservação e reprodução, imediatamente após a contratação;
V - manter serviço adequado e eficaz de atendimento em meio eletrônico,
que possibilite ao consumidor a resolução de demandas referentes a in-
formação, dúvida, reclamação, suspensão ou cancelamento do contrato;
VI - confirmar imediatamente o recebimento d as demandas do consumi-
dor referidas no inciso, pelo mesmo meio empregado pelo consumidor; e
VII - utilizar mecanismos de segurança eficazes para pagamento e para
tratamento de dados do consumidor.
Parágrafo único. A manifestação do fornecedor às demandas previstas no
inciso V do caput será encaminhada em até cinco dias ao consumidor.
Insta destacar acerca do prazo de 05 dias para a manifestação do forne-
cedor quando solicitadas pelo consumidor, em relação ao serviço adequa-

9 MARTINS, Guilherme Magalhães. Contratos eletrônicos de consumo. 3. ed. São Pau-


lo: Atlas, 2016, p. 217.
283
Ketlen Caroline Soares Pierazzo · Gabriel Oliveira de Aguiar Borges
do e eficaz de atendimento em meio eletrônico, que possibilita ao consu-
midor resolver demandas sobre informação, dúvidas, reclamação, suspen-
ção ou cancelamento do contrato. Para Martins10 “ainda que tal disposição
revele, na prática, um prazo moral, trata-se de importante manifestação de
uma vontade política no sentido da promoção do direito fundamental da
proteção dos consumidores (art. 5º, XXXII, da CF/1988)”.
O direito de arrependimento do consumidor é contemplado pelo artigo
5º do Decreto nº 7.962/2013, onde deve ser informado de forma clara e
ostensiva pelo fornecedor os meios adequados e eficazes para que o con-
sumidor exerça o seu direito. De acordo com o parágrafo §1º o consumi-
dor poderá exercer seu direito de arrependimento pela mesma ferramenta
utilizada para a contratação, sem prejuízo de outros meios disponibiliza-
dos.
Quando exercido o direito de arrependimento há previsão que implica
a rescisão dos contratos acessórios, sem qualquer ônus para o consumidor.
Haverá também a comunicação imediata através do fornecedor à institui-
ção financeira ou administradora de cartão de crédito ou similar para que
a transação não seja lançada na fatura do consumidor ou que haja estorno
do valor.
Após o cumprimento das medidas previstas no artigo 5º, este deverá o
fornecedor enviar ao consumidor confirmação imediata do recebimento
da manifestação de arrependimento.
A abordagem legislativa do artigo 6º do Decreto nº 7.962/2013 é sobre o
cumprimento dos prazos de entrega dos produtos e serviços contratados,
observando prazos, quantidades, qualidade e adequação. Ao tratar desta
temática, foi analisado as reclamações dos consumidores e dos litígios que
ocorrem no comércio eletrônico11.

10 MARTINS, Guilherme Magalhães. Contratos eletrônicos de consumo. 3. ed. São Pau-


lo: Atlas, 2016, p. 218.
11 MARTINS, Guilherme Magalhães. Contratos eletrônicos de consumo. 3. ed. São Pau-
284
Breve ensaio sobre segurança jurídica no comércio eletrônico...
É tratado de forma expressa que, havendo a inobservância das condutas
descritas no decreto acarretará a aplicabilidade das sanções previstas no
art. 56 do Código de Defesa do Consumidor, conforme previsto no artigo
7º do referido decreto. As sanções podem ser multa ou suspensão no for-
necimento de produtos e serviços, podendo ser aplicadas cumulativamen-
te, sem prejuízo de sanções civis e penais.
Por conseguinte, o artigo 8º segundo o pensamento de Martins12
“acrescenta um parágrafo único ao artigo 10 do decreto nº 5.903/2006, que
determina a aplicação de seus artigos 2º, 3º e 9º à contratação eletrônica”.
Os quais tratam das informações a serem fornecidas ao consumidor de
forma adequada, de acordo com o artigo 6º do Código de Defesa do Con-
sumidor.
Há especificado no artigo 9º do Decreto 5.903/2006 um rol exemplifica-
tivo sobre as condutas que violam o direito básico do consumidor à infor-
mação, como por exemplo, a utilização de letras pequenas ou fontes que
dificultem a leitura da informação pelo consumidor.

5. Considerações finais: aspectos relevantes acerca da atualização do


Código de Defesa do Consumidor no tocante ao comércio eletrônico (PLS
nº 281/2012)
Já rumo à conclusão do presente ensaio, interessa comentar algumas
tentativas de atualização do CDC frente ao e-commerce.
O Projeto de Lei do Senado nº 281/2012 foi alvo de abordagens críticas
em relação à atualização do Código de Defesa do Consumidor devido as
modificações nas disposições gerais, inclusive sobre a interpretação das
normas jurídicas de maneira mais favorável ao consumidor e dispor acerca

lo: Atlas, 2016, p. 218.


12 MARTINS, Guilherme Magalhães. Contratos eletrônicos de consumo. 3. ed. São Pau-
lo: Atlas, 2016, p. 217.
285
Ketlen Caroline Soares Pierazzo · Gabriel Oliveira de Aguiar Borges
das normas gerais de proteção do consumidor no âmbito do comércio
eletrônico.
Segundo os ensinamentos de Martins13 (2016, p.223) no que tange as
inovações acerca das normas gerais, é importante mencionar:
Outra normal geral do Projeto de Lei nº 281/2012 aparece no artigo 5º, VI,
que prevê dentre os instrumentos da Política Nacional das Relações de
Consumo o conhecimento de ofício pelo Poder Judiciário, no âmbito de
processo em curso e assegurado o contraditório, de violação a norma de
defesa do consumidor.
Através do Projeto de Lei são instaurados novos direitos básicos do
consumidor, que abordam sobre a sua privacidade e segurança das infor-
mações e dados pessoais que são fornecidos e coletados por qualquer meio,
principalmente o eletrônico. A liberdade de escolha, em especial frente a
novas tecnologias e redes de dados, sendo vedada qualquer forma de dis-
criminação e assédio de consumo.
Cumpre ressaltar relativamente a informação ambiental veraz e útil,
observando os requisitos da Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei nº
12.305, de 2 de agosto de 2010).
A legislação teve como objetivo abarcar toda a rapidez da evolução tec-
nológica, tornando-se um avanço muito grande objetivando levar segu-
rança aos consumidores através dessa atualização que visa proteger infor-
mações, imagens e dados dos consumidores que são fornecidos aos siste-
mas informatizados.
A seção nomeada comércio eletrônico, a partir do artigo 44-A é o mai-
or avanço contemplado para a atualização do Código de Defesa do Con-
sumidor pois dispõe sobre normas de proteção do consumidor no comér-
cio eletrônico e à distância. Vejamos:

13 MARTINS, Guilherme Magalhães. Contratos eletrônicos de consumo. 3. ed. São Pau-


lo: Atlas, 2016, p. 223.
286
Breve ensaio sobre segurança jurídica no comércio eletrônico...
Art. 44-A. Esta seção dispõe sobre normas gerais de proteção do consumi-
dor no comércio eletrônico e à distância, visando fortalecer a sua confian-
ça e assegurar a tutela efetiva, com a diminuição da assimetria de informa-
ções, a preservação da segurança nas transações, a proteção da autodeter-
minação e da privacidade dos dados pessoais.
Nota-se nesta seção a preocupação do legislador com a vulnerabilidade
técnica e informacional do consumidor14 não somente acerca do produto
ou serviço ofertado, mas também em relação ao fornecedor no quesito de
transpassar segurança em todos os aspectos da contratação eletrônica,
inclusive acerca dos sistemas de segurança utilizados.
O projeto de lei nº 281/2012 objetivou também a combater propagan-
das enganosas através do artigo 44-B, que menciona sobre:
[...] oferta de produtos por preços que não serão praticados, ou ainda a
imposição de mensagem publicitária, quando a oferta é exibida na tela do
computador do usuário sem que este tenha buscado o acesso, ou, nos ca-
sos de obstrução de saída, insinceridade de link e trancamento do fluxo
natural de navegação ou leitura15.
No que tange ao comércio eletrônico existe um grande questionamento
e duvidas que partem dos consumidores sobre a entrega e seguro. A legis-
lação cuidou minuciosamente sobre essa temática, segundo o artigo 44-B,
inciso III, o fornecedor deverá disponibilizar em local de destaque e fácil
visualização o preço total do produto ou serviço, incluindo a discrimina-
ção de quaisquer eventuais despesas, tais como a de entrega e seguro, bem
como outros valores adicionais.
Em relação as ofertas e mensagens por e-mail, o legislador deixou ex-
presso no artigo 44-F que proíbe a prática do spam, onde o consumidor

14 MARTINS, Guilherme Magalhães. Contratos eletrônicos de consumo. 3. ed. São Pau-


lo: Atlas, 2016, p. 224.
15 MARTINS, Guilherme Magalhães. Contratos eletrônicos de consumo. 3. ed. São Pau-
lo: Atlas, 2016, p. 224.
287
Ketlen Caroline Soares Pierazzo · Gabriel Oliveira de Aguiar Borges
deve concordar com o recebimento de mensagens por e-mail e proíbe e-
mails não solicitados16. Também é vedado qualquer modalidade de e-mail
que haja publicidade oculta ou clandestina, bem como, transferência inde-
vida de dados ou identificadores pessoais.
Esta abordagem na legislação brasileira é uma grande inovação, porém
quanto ao spam, existe uma abordagem menos rígida, segundo o artigo
44-F, § 1º, 6º e 7º estabelecendo que havendo uma prévia relação de con-
sumo entre o remetente e o destinatário pode se admitir o envio de mensa-
gem não solicitada, desde que o consumidor tenha tido oportunidade para
recusá-la.
Desta feita, as recusas ocorrem na própria ferramenta de compra em
ícones que podem ser selecionados pelo consumidor solicitando a recusa
de informações via e-mail. Apesar das flexibilidades quanto ao spam, não
podemos negar que a sua abordagem é uma grande inovação na legislação
brasileira, havendo o reconhecimento de sua abusividade em determina-
dos casos expressos na lei.
É enfatizado através do artigo 44-G que havendo oferta de produto ou
serviço por meio da internet através do comércio eletrônico, será exigido
do consumidor para que ele forneça somente os dados necessários para a
conclusão do contrato. Havendo outras informações além das que são
indispensáveis será facultativo ao consumidor informa-las, devendo ser
previamente informado.
Em relação a venda de bens intangíveis no comércio eletrônico como
softwares, aplicativos, filmes etc. não foi estabelecido na lei o direito de
arrependimento, segundo Martins17 “superando a discussão sobre a im-
possibilidade de o consumidor devolver ao fornecedor o produto ou servi-

16 MARTINS, Guilherme Magalhães. Contratos eletrônicos de consumo. 3. ed. São Pau-


lo: Atlas, 2016, p. 230.
17 MARTINS, Guilherme Magalhães. Contratos eletrônicos de consumo. 3. ed. São Pau-
lo: Atlas, 2016, p. 238.
288
Breve ensaio sobre segurança jurídica no comércio eletrônico...
ço adquirido”.
Desta feita, havendo o arrependimento por parte do consumidor cabe
ao fornecedor utilizar programas de bloqueios anticópias durante o prazo
de 7 dias já estabelecido pelo Código de Defesa do Consumidor.
No artigo 56, o inciso XIII do referido projeto de lei estabelece uma no-
va sanção administrativa aos fornecedores, que trata da suspensão tempo-
rária ou proibição de oferta e de comércio eletrônico. Segundo o posicio-
namento de Martins18:
Embora o Código de Defesa do Consumidor, na sua redação original, já
consagre importantes obrigações de fazer ou não fazer n âmbito das san-
ções administrativas, em especial no artigo 56, VI (suspensão de forneci-
mento de produto e serviço) e VII (suspensão temporária de atividade), tal
norma revela-se de grande importância, devido à velocidade e desterritori-
alização das relações de consumo via Internet.
Havendo o descumprimento da sanção mencionada, o Poder Judiciário
determinará, a pedido da autoridade administrativa ou do Ministério Pú-
blico, no limite estritamente necessário para a garantia da efetividade da
sanção que os prestadores de serviços financeiros e de pagamento utiliza-
dos pelo fornecedor, de forma alternativa ou conjunta, suspendam os pa-
gamentos e transferências financeiras para o fornecedor e o bloqueio das
contas bancárias, sob pena de multa diária.
Medida a qual foi acrescentada através de um novo parágrafo no artigo
59 do anteprojeto. Este método utilizado segue o sistema norte-americano
(follow the money) que impõe sanções econômicas ao fornecedor que des-
cumprir a sanção de proibição de oferta e comércio eletrônico19.
Destarte, diante do projeto de lei nº 281/2012 denota-se a adequação de

18 MARTINS, Guilherme Magalhães. Contratos eletrônicos de consumo. 3. ed. São Pau-


lo: Atlas, 2016, p. 240.
19 MARTINS, Guilherme Magalhães. Contratos eletrônicos de consumo. 3. ed. São Pau-
lo: Atlas, 2016, p. 242.
289
Ketlen Caroline Soares Pierazzo · Gabriel Oliveira de Aguiar Borges
diversos dispositivos legais a fim de regulamentar de forma adequada o
comércio eletrônico, sempre visando a segurança do consumidor, a boa-fé
contratual e concretizando a proteção dos consumidores como garantia
fundamental e o princípio geral da ordem econômica.
Objetiva também o devido ressarcimento de danos causados aos con-
sumidores, seguindo os princípios constitucionais acerca da dignidade da
pessoa humana através de artigos que tratam sobre a prevenção de possí-
veis danos que possam ser causados, reforçando a abordagem feita pelo
Código de Defesa do Consumidor.

Referências
BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Código de Defesa do
Consumidor. Brasília, DF.
BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 1232/2011.
Disponível em:
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idPro
posicao=500481. Acesso em: 03 de set. de 2019.
BRASIL. Congresso. Senado. Constituição (2012). Projeto de Lei nº 281,
de 2012. Brasília, DF, Disponível em:
https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-
/materia/106768. Acesso em: 05 out. 2019.
BRASIL. Congresso. Senado. Constituição (2013). Decreto nº 7962, de 15
de março de 2013. Contratação no Comércio Eletrônico. Brasília, DF,
15 mar. 2013. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-
2014/2013/Decreto/D7962.htm>. Acesso em: 10 out. 2019.
MARTINS, Guilherme Magalhães. Contratos Eletrônicos de Consumo. São
Paulo: Atlas, 2016, 3ª ed.
SANTOS, K.; TEIXEIRA, T.; LOPES, A.M. Startups e inovação: direito no
empreendedorismo. Barueri: Manole, 2017.

290
Breve ensaio sobre segurança jurídica no comércio eletrônico...

__________________________________________________
PIERAZZO, Ketlen Caroline Soares; BORGES, Gabriel Oliveira de Aguiar.
Breve ensaio sobre segurança jurídica no comércio eletrônico e aborda-
gem legislativa. In: LONGHI, João Victor Rozatti; FALEIROS JÚNIOR,
José Luiz de Moura (Coords.); BORGES, Gabriel de Oliveira Aguiar; REIS,
Guilherme (Orgs.). Fundamentos de direito digital: a ciência jurídica na
sociedade da informação. Uberlândia: LAECC, 2020, pp. 277-291.
__________________________________________________

291
A MONITORAÇÃO ELETRÔNICA DO
CONSUMIDOR E A PROTEÇÃO DE DADOS
PESSOAIS ENQUANTO DIREITO
FUNDAMENTAL

13
Arthur Pinheiro Basan
José Henrique de Oliveira Couto

1. Introdução
Com o impulso do capitalismo informacional, o ambiente da Internet
tomou dimensões multicontinentais especialmente no que se refere a cole-
ta e ao processamento de informações. Passamos da crise de controle ao
domínio da estabilidade com o desenvolvimento industrial e tecnológico,
apesar de ter-se indícios do retorno ao status quo embrionário com o con-
tínuo fluxo de dados trocados na Internet.
Assim, é notável que as empresas que operam no comércio eletrônico,
aproveitando-se das informações relacionadas aos hábitos de consumo,
coletadas enquanto os usuários navegam em rede, promovem ofertas pu-
blicitárias direcionadas ou mesmo direcionam determinados preços ou
condições específicas. Em outras palavras, os dados pessoais dos consumi-
dores conectados à Internet são utilizados pelas empresas fornecedoras,
para além de outras práticas de mercado, como para a indevida discrimi-
nação, também para a implementação de publicidades personalizadas e
293
Arthur Pinheiro Basan · José Henrique de Oliveira Couto
muitas vezes não solicitadas. Então, como pode o consumidor ser juridi-
camente protegido dessa monitoração, especialmente quanto ao uso de
dados pessoais nas ofertas comerciais?
Com base nessa problemática o presente texto visa apresentar uma bre-
ve história dos negócios jurídicos, demonstrando como as trocas voluntá-
rias fazem parte da essência social das civilizações. Tal apontamento será
importante para demonstrar como o capitalismo, enquanto sistema eco-
nômico, desenvolveu-se no sentido de aproveitar-se do ambiente da Inter-
net para a promoção do comércio eletrônico e, consequentemente, como a
monitoração eletrônica dos consumidores surge como base fundamental
para essa forma de negociação, em ambiente virtual.
Trabalha-se com a hipótese de que a Internet ampliou as possibilidades
de monitoração e, consequentemente, de coletas de dados, expondo os
consumidores, agora vigiados quanto aos seus hábitos de consumo, a no-
vos riscos. Isso, evidentemente, demanda do sistema jurídico novas res-
postas, sendo estas necessárias para a efetiva tutela dessas pessoas na atual
Sociedade da Informação.1
Assim, o trabalho preocupou-se em demonstrar como a proteção de

1 A Sociedade da Informação é identificada a partir do contexto histórico em que há a


preponderância da informação sobre os meios de produção e distribuição dos bens
na sociedade, decorrente principalmente da introdução dos computadores conecta-
dos em rede nas relações jurídicas. Nessa linha, desde a segunda metade do século
XX, observou-se a maturação do pensamento sociológico, propiciando projeções de
uma sociedade de base informacional, posteriormente designada de sociedade em
rede, com base nos pensamentos de autores como Yoneji Masuda e Fritz Machlup –
já na década de 1960 – e, mais recentemente, Jan van Dijk e Manuel Castells. Confi-
ra-se: MASUDA, Yoneji. The information society as post-industrial society. Tóquio:
Institute for the Information Society, 1980; MACHLUP, Fritz. The production and
distribution of knowledge in the United States. Nova Jersey: Princeton University
Press, 1962; VAN DIJK, Jan. The network society. 3. ed. Londres: Sage Publications,
2012; CASTELLS, Manuel. The rise of the network society. The information age:
economy, society, and culture. 2. ed. Oxford/West Sussex: Wiley-Blackwell, 2010.
294
A monitoração eletrônica do consumidor e a proteção de dados pessoais...
dados pessoais, em um contexto de vigilância eletrônica, deve ser conside-
rada um direito fundamental, inclusive sendo evidenciado pela Lei Geral
de Proteção de Dados brasileira.
Partindo daí, a pesquisa utilizará o método de abordagem dedutivo, in-
vestigando o desenvolvimento histórico das relações de consumo para
evidenciar a problemática da tecnologia sobre o Direito. Além disso, o
trabalho promoverá a análise bibliográfico-doutrinária para, logo em se-
guida, apresentar as considerações finais, das quais se procurará extrair
uma compreensão mais assertiva quanto à problemática explicitada.

2. Uma breve história das trocas voluntárias: do surgimento do


capitalismo à monitoração eletrônica das negociações
A origem do animal social é datada em 2,5 milhões de anos, e sua evo-
lução cognitiva, iniciada a 70 mil anos atrás, criou a cultura, que, por seu
turno, originou os hábitos de trocas voluntárias2, determinadas por certas
regras de comportamento. Conforme expõe Durkheim, as regras compor-
tamentais são: Gerais, exteriores e coercitivas.3
Assim, as trocas voluntárias são fatos sociais, pois: I) A coletividade
realiza transações micro ou macro econômicas; II) Não dependem de von-
tades das pessoas, e, conforme Hayek, as pessoas negociam inconsciente-
mente4, sendo obrigatória a transação econômica para a sobrevivência; III)

2 HARARI, Yuval Noah. Sapiens: Uma breve história da humanidade. Tradução Janaí-
na Marcoantonio. Porto Alegre: L&PM, 2018, p. 15-16.
3 DURKHEIM, Emile. As regras do método sociológico. São Paulo. Martin Claret, 2001.
4 As trocas voluntárias estão há séculos presente na civilização, portanto é uma prática
que se tornou um hábito e, por consequência, esse mesmo saiu da realidade ontológi-
ca racional para a realidade deontológica instintiva, isto é, passou duma simples ação
humana baseada na razão para uma ação inconsciente movida pelo instinto humano.
VON HAYEK, Friedrich August. Os erros fatais do socialismo: por que a teoria não
funciona na prática. Barueri: Faro Editorial, 2017.
295
Arthur Pinheiro Basan · José Henrique de Oliveira Couto
E o sistema econômico gera uma força coercitiva nos indivíduos, que pos-
suem os padrões sociais de comercializarem. Assim, se nota que os negó-
cios jurídicos estão presentes desde os primórdios da humanidade.
Na idade antiga, 4.000 A.C a 476 D.C, o comércio teve atividades ma-
nuais e exaustivas pela escassa criação tecnológica, além da exploração
homogênea da agricultura, do artesanato e dos animais. Conforme Kehoe,
em Roma, durante o império, a atividade comercial dependeu do arren-
damento de terra dos proprietários aos portadores do bem imóvel, portan-
to a economia romana, até certo ponto, foi baseada na agricultura.5
Na idade média, 476 D.C a 1.453 D.C, o sistema Feudalista alterou o
modo de produção dos bens. Com a abolição do Império Romano, muitos
povos ficaram sem proteção, e o Feudalismo, com as hierarquias inerentes
ao seu sistema, ascendeu. Em troca de proteção, os servos cultivavam, via
sistema de três campos, nas terras dos nobres e pagavam tributos, como
porcentagens da colheita. Esse sistema fez permanecer a agricultura como
a fonte de comércio durante a idade média.
Mais tarde, com a 1ª Revolução Industrial do século XVIII, o comércio
se expandiu pelo aumento de tecnologia, tornando as trocas voluntárias
intensas pela alta produção. Os fatores de produção foram alvos de altos
investimentos, como relata Bendix:
Durante os cem anos anteriores a 1760, o número de patentes concedidas,
em cada década, só alcançará 102 apenas uma vez e flutuará entre um mí-
nimo de 22 (1700-1709) e um máximo de 92 (1750-1759). No período de
trinta anos que se seguiu (1760-1789), o número médio de patentes con-
cedidas aumentou de 205, na década de 1760, para 294, na década de 1770,
e 477, na década de 1780.6

5 KEHOE, Dennis P. Law and the rural economy in the Roman Empire. Ann Arbor:
University of Michigan Press. 2007.
6 BENDIX, Reinhard. Work and Authority in Industry. Nova York: Harper & Row;
1963, p. 27.
296
A monitoração eletrônica do consumidor e a proteção de dados pessoais...
A 1ª Revolução Industrial permitiu, pela primeira vez na história, exis-
tir mais oferta do que demanda. As novas máquinas permitiram o aumen-
to da produção, obtendo vantagem tanto o consumidor por ter mais bens
circulando, quanto o empresário por arrecadar mais lucro líquido para
investir nos fatores de produção.
Por sua vez, a 2ª Revolução Industrial, ocorrida do século XIX ao XX,
trouxe a união da ciência à produção. A sociedade começou demover o
véu da ignorância, visto que os comerciantes começaram a usar ciência na
indústria, exigindo, portanto, explicações fundamentadas cientificamente.
O surgimento da energia elétrica impulsionou o motor industrial, a alta
potência e o pequeno preço gerou uma extensa demanda pela coisa móvel.
Conforme Dathein:
A facilidade de transmissão deu à energia elétrica um caráter onipresente e
colocou-a ao alcance de uma parcela muito mais ampla da população, da-
do seu baixo custo. Facilitou também o desenvolvimento de pequenas in-
dústrias, que podiam agora utilizar a mesma fonte geradora de energia das
grandes e pagar de acordo com o seu consumo.7
Em adstrito, surgiu o Taylorismo e o Fordismo para organizar a coope-
ração trabalhista e aumentar a produção numa escala temporal menor. Por
consequências das inovações, houve a expansão do comércio, mas os ne-
gócios jurídicos transacionados foram impelidos, até certo ponto, de im-
pulsionar grandes alterações sociais, via divisão do trabalho, no mercado,
pois escassas pessoas jurídicas operaram, trazendo à sociedade a negativi-
dade do oligopólio mercantil. Realizar trocas voluntárias num mercado
sob influência de poucas empresas é, sob a ótica de Hayek, atravessar o
instinto humano, passando a racionalidade acima dum hábito milenar, que

7 DATHEIN, Ricardo. Inovação e Revoluções Industriais: uma apresentação das mu-


danças tecnológicas determinantes nos séculos XVIII e XIX. Publicações DECON
Textos Didáticos. 02/2003. DECON/UFRGS, Porto Alegre, Fevereiro 2003, p. 23.
297
Arthur Pinheiro Basan · José Henrique de Oliveira Couto
é vigente na sociedade de maneira inconsciente e deontológica.8
Na 4ª Revolução Industrial existirão avanços tecnológicos de bens reais,
como os veículos, cujos serão autônomos e orientados por câmeras e sen-
sores; ou os Robôs que, pelos processadores modernizados, serão dotados
de inteligência.9 Em contrapartida, Rifkin menciona a indústria 3.0 sendo
vigente e marcada pelos pilares: I) Abandono das energias não sustentá-
veis; II) Criação de micro usinas de coletas e distribuição de energia, III)
Construção de aparelhos tecnológicos capazes de armazenar essas energias
instáveis.10
A 3ª Revolução Industrial é um diagrama matemático de ambas visões,
a sociedade sofre influência tanto das tecnologias físicas quanto das cargas
sustentáveis. Os capitais estão substituindo a força humana, as indústrias
se inundam de robôs com modernos sensores, a linha de produção se in-
tensifica de máquinas inteligentes que operam sem dispêndio de ATP
(adenosina trifosfato). Em acréscimo, os aparelhos com industrialidade11
avançam na questão do progresso, e a população mundial se conecta no
sistema mundial de algoritmos. Conforme Castells, vivenciamos a econo-
mia informacional, sendo marcada pela globalização e pelas redes virtu-
ais.12 Destarte, as globais trocas voluntárias modernas são pautadas em
sociedades de redes que operam mediante algoritmos.
Diante disso, um fator que ganha destaque no atual contexto, inserido
na Sociedade da Informação, é o advento de um mercado mais centrado na

8 VON HAYEK, Friedrich August. Os erros fatais do socialismo: por que a teoria não
funciona na prática. Barueri: Faro Editorial, 2017.
9 SCHWAB, Klaus. A Quarta Revolução Industrial. São Paulo: Edipro, 2018.
10 RIFKIN, Jeremy. A Terceira Revolução Industrial. Mbooks, 2012.
11 Industrialidade é um objeto poder ter aplicação industrial no mundo dos fatos, por-
tanto pode ser usado com frequência. COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito co-
mercial: Direito de empresa. 28. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.
12 CASTELLS, Manuel. The rise of the network society. The information age: economy,
society, and culture. 2. ed. Oxford/West Sussex: Wiley-Blackwell, 2010, v. 1. P. 77.
298
A monitoração eletrônica do consumidor e a proteção de dados pessoais...
figura do consumidor. Neste sentido, Bauman defende que o atual contex-
to também pode ser qualificado como “sociedade de consumo”, pela qual
o trabalhador, enquanto ator principal da ordem social, foi substituído
pelo consumidor, o responsável pela fluidez do mercado. Desse modo,
segundo o autor, os projetos de vida das pessoas não giram mais em torno
do trabalho, mas da possibilidade real de consumo. E alterando toda a
lógica do mercado, Bauman defende que os próprios consumidores se
transformam em mercadoria, inclusive sendo essa qualidade a demonstra-
ção de que são membros autênticos dessa sociedade, afinal, “tornar-se e
continuar sendo uma mercadoria vendável é o mais poderoso motivo de
preocupação do consumidor, mesmo que em geral latente e quase nunca
consciente.”13
Daí porque, para além da análise histórica das trocas voluntárias, como
forma de possibilitar o próprio desenvolvimento da sociedade como um
todo, é necessário demonstrar como a monitoração do consumidor trans-
mudou-se como instrumento necessário ao atual estágio do capitalismo,
agora inserido também no ambiente da Internet, especialmente lembrando
que a proteção do consumidor, de uma maneira geral, é um direito fun-
damental, nos termos do art. 5º, inciso XXXII da Constituição Federal. 14

3. Fluxos circulares de controle: os avanços na monitoração do


consumidor no ambiente da Internet
Conforme descreve Beniger, o industrialismo ocasionou o surgimento
de itens tecnológicos para captação dos desejos humanos na relação con-

13 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercado-


ria. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
14 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 13
de abril de 2020.
299
Arthur Pinheiro Basan · José Henrique de Oliveira Couto
sumerista.15 Os empreendedores perceberam ser vantajoso aproximar seus
produtos aos consumidores, pois a relação gera um mutualismo econômi-
co.16 Os primeiros itens de coleta de dados, que engloba os questionários,
jornais e revistas, inauguraram os benefícios bilaterais. Houve a verticali-
zação da quantidade a ser produzida, pois os donos dos aviamentos tive-
ram domínio sobre a demanda; e a horizontalização do poder sobre os
gostos temporários, dado que as preferências foram exaladas. Igualmente,
novos bens, como a impressora, o papel colorido, a máquina de escrever,
foram surgindo e evoluindo para aperfeiçoar na conexão entre produtor e
consumidor.
A internet, enquanto ambiente de controle evolutivo, foi ativa na apro-
ximação global do fornecedor com o consumidor. Conforme a União In-
ternacional de Telecomunicações, em 2005, 16,8% da população global
teve acesso à internet, enquanto, em 2019, 53,6% da população mundial
usou o sistema eletrônico.17 O começo da democratização do acesso ao
mundo dos algoritmos está rompendo a Apartheid digital, desde 2018 mais
da metade da população mundial começou a interagir no mundo virtual.
Os aparelhos tecnológicos com acesso a Internet tiveram influência no
aumento dos fluxos de dados, ampliando o horizonte de coleta de feed-
backs. Os modernos celulares substituíram os computadores de mesa, os
cadernos de anotações, as calculadoras, os livros físicos, as agendas, os
mapas de localização, os telefones fixos e as câmeras fotográficas. A alta
demanda por equipamentos com conectividade, como o smartphone, atra-
íram grandes investimentos para o desenvolvimento de redes mundiais de
conexão, tornando, por seu turno, a coleta de informações mais ampla.
Dado isso, a espinha dorsal dos empreendedores foi fixada na internet e

15 BENIGER, James. The Control Revolution: Technological and Economic Origins of


the Information Society. Cambridge: Harvard University Press, 1989, p. 389.
16 De início, o fornecedor e o consumidor, através de mecanismos de aproximação,
obtêm vantagens positivas.
17 ITU world telecommunication. ICT indicators database. 2019.
300
A monitoração eletrônica do consumidor e a proteção de dados pessoais...
sua essência de compartilhamento.
Segundo Lins, a Internet foi criada nos Estados Unidos para proteção
de uma rede de comunicações resistentes a ataques nucleares, porém co-
meçou a ocorrer demanda pelo bem móvel nas comunidades acadêmicas e
nos órgãos governamentais. Posteriormente, eclodiu o surgimento da In-
ternet por linha discada, onde a conexão se deu pela via telefônica conec-
tada a um provedor responsável pela administração do tráfego na rede.
Pela conexão por linha telefônica ser lenta, surgiu a Banda larga para au-
mentar a velocidade da conexão, variando, de início, de 256 Kbps a 2
Mbps.18 Desde então, é observável, em escala global, tanto a crescente de-
manda pela Internet, bem como o aumento de produtos tecnológicos para
expandir o número de usuários. A acessibilidade está se tornando intrínse-
ca a conexão, e as grandes empresas digitais coletam milhares de informa-
ções sobre as vontades da sociedade consumista, inclusive auxiliados por
suportes acessíveis, como os hiperlinks, que levam massas de consumido-
res diretamente a um site para responderem questionários embutidos de
caixas retangulares para serem marcados.
A Internet assegurou a fácil coleta de informações sobre os produtos
oferecidos pelos empresários, além de reclamações, sugestões e elogios
sobre os bens ou serviços fornecidos por eles. Por isso, os produtos são
remodelados com frequência, e o fornecedor digital satisfaz a necessidade
ou desejo do adquirente, enquanto este vivencia o surto temporário de
felicidade. Essa comunicação eclodiu na economia de tempo, não preci-
sando mais os empreendedores mandarem diversas revistas de pesquisas
às sociedades industriais e zonas rurais; e na redução de gastos, não ha-
vendo mais o ônus da impressão de toneladas de papéis.
Ao se ponderar que humanos surgiram há cerca de 2,5 milhões de

18 LINS, Bernardo Felipe Estellita. A evolução da Internet: uma perspectiva histórica.


Cadernos ASLEGIS, v. 48, n. 17, p.11-45, fev. 2013.
301
Arthur Pinheiro Basan · José Henrique de Oliveira Couto
anos19, a batalha da distância foi vencida recentemente, e ampliada na era
cibernética com a conectividade. Na rede mundial de computadores, as
empresas coletam feedbacks em diversos países, rompendo as limitações
longitudinais da falta de mobilidade. Apesar das dificuldades para evitar
uma empresa de adentrar no processo de falência, como a incompetência
de gestão ou excessiva tributação sobre pessoas jurídicas, há a possibilida-
de, via ambiente algorítmico, da coleta de informações sobre gostos, opi-
niões de produtos ou serviços e, também, de quantidades necessárias a
serem produzidas. Assim sendo, esse sistema online é o remédio para os
enfermos empresariais.
Feita a colheita de informações, o gerenciamento de dados permite uma
empresa a operar com mais estabilidade. Como exemplo, cita-se o caso da
General Motors, que, em 1920 durante a recessão, quase entrou em pro-
cesso de falência com 18,8% de participação no mercado, todavia o execu-
tivo Alfred P. Sloan criou um moderno método de controle entre a oferta e
a demanda, auxiliando na efetiva verticalização, isto é, na quantidade ne-
cessária a ser produzida, evitando o desperdício de recursos financeiros e
colocando a empresa com 43,3% de participação no mercado.20 Nesse
tempo não existia a Internet para controlar a demanda e a oferta, sendo os
primeiros itens de coleta de dados usados. Se na época do feito os resulta-
dos foram positivos, na atualidade há uma margem ainda mais ampla de
segurança às empresas adaptadas ao ambiente digital, sendo mais eficiente
o gerenciamento dos recursos.
As sociedades cibernéticas transbordam de algoritmos, há a intensa mi-
gração de dados. Esse ciclo tem como essência o compartilhamento de
conteúdos, inclusive dos consumidores. As empresas digitais alavancam

19 HARARI, Yuval Noah. Sapiens: Uma breve história da humanidade. Tradução Janaí-
na Marcoantonio. Porto Alegre: L&PM, 2018, p. 19.
20 BENIGER, James. The Control Revolution: Technological and Economic Origins of
the Information Society. Cambridge: Harvard University Press, 1989, p. 312.
302
A monitoração eletrônica do consumidor e a proteção de dados pessoais...
infinitos questionários virtuais, e os dados são armazenados em tanques
anônimos, cujo são escoados na medida de surgimentos nas interações do
mercado. Na era digital os dados são coletados, jamais excluídos, ficando
armazenados para futuras operações mercantis.
Diante disso, têm-se o denominado “dataísmo”, que é considerada uma
religião baseada nos algoritmos, de modo que os fenômenos existentes
podem ser medidos com base em troca de dados.21 A consequência do
capitalismo informacional, enquanto sistema repleto de conteúdos é a
existência das alianças multinacionais, onde os empreendedores se fun-
dem em parcerias políticas para coletarem e armazenarem, via sistema
online, os feedbacks dos consumidores. Portanto, a Internet ampliou as
alianças destinadas a coletas de dados, expondo os consumidores a novos
riscos e alocando-os em mais uma situação de vulnerabilidade, agora tam-
bém informacional, que demanda do sistema jurídico as respostas necessá-
rias para a tutela dessas pessoas.

4. Os dados pessoais dos consumidores enquanto direitos fundamentais


Na literatura Orwelliana, em 1984, existe uma sociedade que é contro-
lada por equipamentos denominados teletelas. A sociedade é desprovida
de autonomia privada no controle de seus dados, as teletelas coletam as
vozes e as ações humanas, todos os indivíduos sob o comando do grande
irmão são alvos de vigias digitais. O governo detém os dados de todos, não
há como escapar do Big brother.22
Da literatura à realidade ontológica, no capitalismo informacional, há
milhares de sistemas computacionais coletando as informações pessoais,
monitorando não apenas as atividades empresariais, mas as pessoas e suas

21 HARARI, Yuval Noah. Sapiens: Uma breve história da humanidade. Tradução Janaí-
na Marcoantonio. Porto Alegre: L&PM, 2018, p. 370.
22 ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1998.
303
Arthur Pinheiro Basan · José Henrique de Oliveira Couto
preferências íntimas, seus segredos e sua esfera individual. Pela abundân-
cia logarítmica, houve a necessidade do aprimoramento normativo dos
dados pessoais, passando de um dever legislativo pouco efetivo de prote-
ção oferecido pelo Estado para um direito fundamental, garantido a todos
os seres humanos, sem distinção de raça, gênero, cor, religião e credos.
O conceito de dados pessoais pode ser interpretado de acordo com o
tempo vigente, para o século XX, os dados pessoais são espécimes dos di-
reitos de personalidade, isto é, um conjunto de direitos pertencentes, de
maneira intrínseca, ao ser humano, compondo o respeito a sua integridade
física, psíquica e moral; já no século XXI, o conceito evoluiu pela influên-
cia da sociedade informacional, sendo os dados pessoais direitos funda-
mentais relativos ao indivíduo, mostrando suas peculiaridades físicas, ín-
fimas, psicológicas, morais, e sociais, integrando, portanto, todas as carac-
terísticas humanas em informações. Conforme Doneda, a informação pes-
soal, que é diferente de dados pessoais, é um conteúdo que revela, median-
te lei, características da pessoa ou de suas ações, como o sobrenome ou o
domicílio.23 Portanto, há de se considerar tanto as informações pessoais
quanto os dados pessoais como essenciais, pois são direitos fundamentais
intrínsecos, vitalícios e impenhoráveis do ser humano.
Conforme se nota, a era digital trouxe novas mudanças à sociedade. Se
na França, em 1889, os revolucionários buscavam a liberdade, na revolu-
ção 4.0 a civilização buscará a proteção dos dados pessoais. Com o fim da
segregação digital, haverá a globalização da rede mundial de conexão, e as
pessoas transacionarão seus dados personalíssimos, entregando-os gratui-
tamente às indústrias informacionais, que operarão compartilhamentos, a
nível alienígena, para maximizarem os lucros. Apesar do conflito na prote-
ção das informações, há grandes divergências legislativas a respeito dos
dados serem direitos fundamentais.

23 DONEDA, Danilo. A proteção dos dados pessoais como um direito fundamental.


Espaço Jurídico Journal of Law [EJJL], 12(2), 91-108, 2011, p. 91-100.
304
A monitoração eletrônica do consumidor e a proteção de dados pessoais...
Na Europa surge o Regulamento 679/2016, que serviu de forte inspira-
ção para a regulamentação dos dados pessoais no Brasil. Os dados pesso-
ais, conforme a Carta sobre os direitos da União Europeia, são direitos
fundamentais, e todos, respeitando o princípio da proporcionalidade e
partindo da concepção de que os dados pessoais não são direitos absolutos,
devem respeitar a legislação. Conforme o 5º artigo, na seção de princípios,
os dados pessoais são: I) Alvos de tratamentos legais e transparentes, II)
coletados com finalidades específicas, não podendo serem usados doutra
forma, salvo se for para pesquisas científicas, históricas ou que envolva o
interesse público; III) Tratados com segurança para evitar a exposição da
vida ínfima da pessoa, IV) Conservados, em regra, com baixa temporarie-
dade. O 10º artigo menciona que poderá ser aplicado o direito penal às
pessoas que violarem a Lei de dados Europeia, desde que as punições se-
jam criadas, via legislação, pela União ou pelos Estados-membros24.
Por sua vez, o Brasil, no 5º artigo, da Carta Magna, estabelece os direi-
tos e garantias fundamentais inerentes ao ser humano, inclusive há o res-
paldo jurídico para tutela dos dados pessoais no décimo inciso, que desta-
ca a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem
das pessoas.25 Assim, é possível afirmar que, em referência à Constituição,
a dados pessoais estão no nível de direitos fundamentais, dado que corre-
latos ao direito de privacidade. Apesar de existir regulações firmando ser
direito fundamental à proteção dos dados pessoais, não há uma eficácia e
eficiência normativa. Se para Hans Kelsen a Constituição é a norma com
mais hierarquia, sendo tutora da horizontalização de todas outras legisla-
ções26, para a realidade ontológica as normas de proteção de dados ainda
aparentam ineficiências.

24 UNIÃO EUROPEIA. Regulamento (UE) nº 2016/679 do Parlamento Europeu e do


Conselho, de 23 de abril de 2016.
25 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado
Federal, 1988.
26 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1987.
305
Arthur Pinheiro Basan · José Henrique de Oliveira Couto
Por consequência, em 2019, foi apresentada a Proposta de Emenda na
Constituição 17, que visou elevar a arquitetura dos dados pessoais em nível
de direitos fundamentais, sendo a regulação da matéria feita pela União.27
Tudo isso alinhado ao advento, em 2018, da Lei Geral de Proteção de Da-
dos Pessoais – LGPD (Lei 13.709/2018), que dispõe sobre o tratamento de
dados pessoais, inclusive nos meios digitais28. Com efeito, é importante
destacar que esta lei demonstra que tem como objetivo proteger os direitos
fundamentais de liberdade, da privacidade e do livre desenvolvimento da
personalidade da pessoa natural, deixando evidente que a proteção de da-
dos, atualmente, deve ser compreendida como nítido direito fundamental.
A lei de proteção aos dados possui como pilar a curatela das informa-
ções essenciais, usando, para esse fim, os princípios: I) Finalidade: Os da-
dos coletados devem possuírem fins específicos; II) Adequação: Os dados
coletados não podem ser usados para fins diferentes do momento da co-
lheita; III) Necessidade: Deve se coletar o mínimo de dados possíveis para
a realização dos serviços pelos barões digitais; IV) Segurança: Os dados
pessoais pegos devem ser protegidos com fortes mecanismos contra os
invasores de sistemas, os hacker’s; V) Livre acesso: A pessoa que teve seus
dados tolhidos tem o direito de acessar o banco de dados, inclusive pode
solicitar a exclusão dos mesmos.29
Tudo isso indica que a proteção de dados pessoais, no atual contexto,
especialmente àqueles que se enquadram na figura de consumidores, até
mesmo como forma de cumprimento do dever estatal de tutela do consu-

27 BRASIL. Proposta de Emenda à Constituição nº 17, de 12 de março de 2019. Disponí-


vel em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao
=2210757 Acesso em 13 de abril de 2020.
28 BRASIL. Lei 13.709/18. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13709.htm Aces-
so em 13 de abril de 2020.
29 COTS, Márcio; OLIVEIRA, Ricardo. Lei geral de proteção de dados pessoais comenta-
da. Thomsons Reuteres Brasil: São Paulo, 2018, p. 58.
306
A monitoração eletrônica do consumidor e a proteção de dados pessoais...
midor, deve ser reconhecida como direito fundamental, imprescindível
para a garantia da concreção da dignidade da pessoa humana.

5. O domínio tecnológico da internet e o controle de dados pessoais.


Afora todo o exposto, além da indústria algorítmica captar as pre-
ferências dos consumidores, há a coleta dos dados personalíssimos. Apesar
de diversos países estarem no começo do capitalismo informacional, há
nações desprovidas de recursos tecnológicos. O problema dos dados pes-
soais será utópico em locais em desenvolvimento, enquanto em nações
desenvolvidas serão motivos de agendas governamentais destinadas a sua
tutela.
As pátrias estão tentando amenizar os impactos da sociedade de
vigilância positivando regras sobre a proteção das informações particula-
res. Segundo Harari, religiões são fantasias no plano ontológico, onde pes-
soas acreditam em informações mitológicas.30 Assim, as leis, principal-
mente as regulações do sistema Common law, são ficções jurídicas respei-
tadas por pessoas, pois há um sistema de crença coletivo. As normas para
proteger os dados são medianamente eficientes, tendo em vista dois fatores
alheios às vontades dos agentes.
O primeiro fator externo negativo a vontade do agente à proteção
efetiva dos dados pessoais é o analfabetismo digital. Apesar de mais de 4
bilhões de pessoas possuírem acesso a Internet31, compreender como se
usa a rede online de modo seguro é uma, dentre outras, condição suspensi-
va para a superação do Apartheid digital. Em 2016, pesquisadores norue-
gueses demonstraram demorar quase 32 horas para ler os termos e condi-
ções de 33 aplicativos de aparelhos móveis.32 Esse tempo é para ler, de

30 HARARI, Yuval Noah. Sapiens: Uma breve história da humanidade. Tradução Janaí-
na Marcoantonio. Porto Alegre: L&PM, 2018, p. 283-284.
31 ITU world telecommunication. ICT indicators database. 2019.
32 PALAZZO, C. Consumer campaigners read terms and conditions of their mobile
307
Arthur Pinheiro Basan · José Henrique de Oliveira Couto
modo que tomar reflexão das cláusulas exigiria mais tempo, afinal, o con-
trato é uma rede de prestações a serem satisfeitas, cujo as obrigações são de
dar, de fazer ou de não fazer. Logo, esse analfabetismo digital pode origi-
nar uma sequela onerosa em decorrência da falta de estrutura computaci-
onal técnica.
O segundo fator externo negativo é o escasso conhecimento sobre
os termos e condições. Há uma inacessibilidade de entendimento acerca de
regras contratuais, e esse fato se estende tanto para alfabetizados quanto
para os desprovidos de educação. Potts e Jensen realizaram pesquisas so-
bre 64 políticas de privacidade de empresas, e os resultados demonstraram
que 6% das políticas são acessíveis para 28,3% da população vulnerável no
quesito educacional, e 54% dos termos estão além do alcance de 56,6% da
população no mundo online, enquanto 13% das condições são legíveis
para as pessoas com pós-graduação.33
Como consequência, a lei de proteção de dados se torna mediana-
mente eficiente, pois os restritos conhecimentos digitais e jurídicos impul-
sionam os consumidores a aceitarem cláusulas contratuais sobre a disposi-
ção e compartilhamento dos dados. Enquanto efeito dominó, a monitora-
ção eletrônica dos consumidores gera um gravíssimo adentramento na
esfera de dados pessoais, tendo em vista o defeito no consentimento para
compactuar com a disposição das informações pessoais. Conforme Scher-
tel, existem duas formas de consentimento: I) Opt out, que é o consenti-
mento válido quando não houver manifestação de vontade contrária; II)
Opt in, que é a manifestação de vontade válida quando consentida expres-

phone apps. all 250,00 words. The Telegraph. Disponível em: https://bit.ly/2KOoSbU.
Acesso em: 15 mar. 2020.
33 JENSEN, C.; POTTS, C. Privacy policies as decision-making tools: An evaluation of
online privacy notices. In: DYKSTRA-ERICKSON, K.; TSSCHELIGI, M. (Eds.), Pro-
ceedings of the SIGCHI Conference on Human Factors in Computing Systems (pp.
471–478). ACM, 2004.
308
A monitoração eletrônica do consumidor e a proteção de dados pessoais...
samente.34 No plano ontológico, os contratos digitais são inundados de
valorações aos contratos Opt’s out’s, e, por consequência, os consumidores
vulneráveis têm seus dados tolhidos e compartilhados com fins diversos a
legislação de proteção de dados, colocando em sérios riscos a integridade
dos consumidores.

6. Considerações finais
Na contemporaneidade, as pessoas não possuem o correto juízo
racional acerca da importância de seus dados pessoais, e, por consequên-
cia, entregam centenas de informações gratuitamente durante as relações
sociais que travam, especialmente no âmbito virtual. O fato se agrava pelo
exercício doloso de empresas que elaboram contratos com termos e condi-
ções impregnados de vocabulário técnico visando induzir os consumidores
a não compreenderem as cláusulas que acordam.
Isso tudo com o intuito de possibilitar, ao menos a princípio, a autori-
zação para a promoção da indesejada monitoração eletrônica. Dito de ou-
tra forma, as empresas que operam no ambiente da Internet, aproveitando-
se da vulnerabilidade das pessoas que expõe seus dados em rede, utilização
as informações pessoais para finalidades precipuamente econômicas, vi-
sando a ampliação de lucros.
Tal prática vai em sentido oposto ao sistema jurídico brasileiro, que
possui como base central sistêmica a tutela da dignidade da pessoa huma-
na, em qualquer dos âmbitos que esteja convivendo socialmente, seja con-
creto, real ou físico, seja eletrônico ou virtual.
Assim, apesar de a Internet também ser um ambiente de evolução na
aproximação entre consumidores e fornecedores, é notável o desequilíbrio
entre as partes, razão pelas quais os dados pessoais são tolhidos e usados

34 MENDES, Laura Schertel. O direito básico do consumidor à proteção de dados pes-


soais. Revista de Direito do Consumidor, v. 95, p.53-75, out. 2014.
309
Arthur Pinheiro Basan · José Henrique de Oliveira Couto
com fins comerciais sem que o titular, na maioria das vezes, saiba das con-
sequências e das possibilidades de impedir tal prática de mercado.
Em razão de todo o exposto, é possível concluir que, sob a ótica do pro-
blema destacado da monitoração eletrônica do consumidor, os consumi-
dores são expostos a novos riscos, demandando do Direito novas respos-
tas, capazes de garantir a tutela dessas pessoas na atual sociedade. Dessa
maneira, como resposta ao problema, é inegável que a proteção de dados
pessoais deve ser considerada direito fundamental dos consumidores, con-
forme indica a Lei Geral de Proteção de Dados brasileira. Não obstante, o
que se espera é que esta lei, como importante instrumento de proteção da
pessoa, adquira a eficácia e a concretude necessária para cumprir a sua
finalidade precípua, que se confunde com a função máxima do Direito,
qual seja, tutelar a pessoa humana!

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313
CONTROLES DA INTERNET: O CIBER-
UTOPISMO DO MARCO CIVIL DA
INTERNET NO ART. 19

14
Samuel Nunes Furtado
Frederico Cardoso de Miranda
Bruno Facuri Silva Rassi

1. Introdução
Os desenvolvedores da Arpanet1 dificilmente imaginaram à época, que
o sistema que visava garantir a comunicação entre militares e cientistas em
campos de bombardeios, daria origem a um dos fenômenos de maior in-
fluência na dinâmica mundial: a Internet. Esse sistema apresentou profun-
das repercussões nos mais diferentes campos da sociedade. Entre tais re-
percussões, evidencia-se o fenômeno da virtualização das relações sociais,

1 Arpanet era um método usado no envio e recebimento de informações criado pela


ARPA (Advanced Research Projects Agency) no período da Guerra Fria e que con-
sistia na divisão das informações em pequenos pacotes de dados inteligíveis para en-
vio ao destinatário, onde os pacotes eram reunidos e a mensagem era reconstruída.
SUMAIO, David Alysson. A Influência da Globalização na Cultura e Sociedade de In-
formação. 2019. Trabalho de Conclusão de Curso. Disponível em:
https://bdex.eb.mil.br/jspui/bitstream/123456789/6344/1/6294.pdf.pdf. Acesso em:
10 abr. 2020.
315
Samuel Nunes Furtado · Frederico Cardoso de Miranda · Bruno Facuri S. Rassi
cujas características apontam uma realidade paralela à física, remontada
no seio dos bytes e dos algoritmos matemáticos em substituição aos mode-
los atômicos de troca de informação ou produtos e interação social.2O
ciberespaço constitui efetivamente uma dimensão virtual em que a pessoa,
muito além de sua existência física, passa a contar com um “corpo eletrô-
nico”3.
Ante a expansão e facilidade, em escala nunca antes imaginada de se
comunicar e informar dando voz e autonomia aos indivíduos e encurtan-
do o caminho entre os destinatários das leis e os responsáveis por sua ela-
boração, muito se debate acerca dos efeitos democratizantes que a internet
proporciona aos cidadãos. No entanto, não são raras as divergências a
respeito desses efeitos como se pode aferir, por exemplo, do embate ainda
em voga, entre cyber-otimistas e cyber-pessimistas, que frequentemente
levanta reflexões de ordem prática e normativa que culminam por mitigar
a esperança de uma liberdade plena na internet, pressuposto básico de
desenvolvimento da democracia representativa.
Essa luta pela liberdade no que vem a ser “ciberespaço”, cujos efeitos
são determinantes nas diretrizes principiológicas da lei 12.965/144, pode
ter desguarnecido outros fatores relevantes para uma efetiva liberdade na
internet, como os algoritmos de seleção de conteúdo e a luta dos grandes
provedores pela obtenção de dados dos usuários. Ao menos é a preocupa-
ção do professor Egveny Morozov5, ao tratar do empoderamento que a
internet proporciona não só àqueles favoráveis ao processo democrático,

2 BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consen-


timento. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
3 RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância. A privacidade hoje. Organiza-
ção, seleção e apresentação Maria Celina Bodin de Moraes. Tradução de Danilo Do-
neda e Luciana C. Doneda. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
4 Conhecida como Marco Civil da Internet (MCI).
5 MOROZOV, Egveny. The net delusion: the dark side of internet freedom. Nova York:
Publica Falos, 2011.
316
Controles da Internet
mas de igual modo aos contrários a esse movimento.
Neste contexto, em que se dá o debate do artigo 19 do Marco Civil da
Internet e, partindo do pressuposto de que a internet atua como a nova
Ágora do cidadão moderno6, com o intuito de promover a liberdade na
internet por meio da maximização da liberdade de expressão, excepciona-
se a responsabilidade civil dos provedores por danos causados a terceiros.
Se por um lado este dispositivo deixou registrado o ativismo e a preocupa-
ção do legislador com a questão da liberdade neste novo território, por
outro, pode ter mostrado um legislador influenciado pelo alvoroço da so-
ciedade e, consequentemente, pelo ciber-utopismo que a regia.
Buscando enfrentar a questão, o trabalho foi dividido basicamente em
três partes. Na primeira, será destacado o papel do Marco Civil na promo-
ção da democracia no ciberespaço, fazendo uma análise histórico-
teleológica do disposto no art. 19, bem como a forma como é desenvolvida
a atividade econômica dos provedores. Na segunda parte, serão tratados os
controles da internet, com enfoque especial nos filtros bolha e de que mo-
do eles interferem na liberdade e na mitigação de outros direitos, como a
autodeterminação informacional e a liberdade de expressão, estimulando
fenômenos contrários às bases fundamentais do Marco Civil da Internet,
como é o caso da polarização dos debates, potencializada pela difusão de
fake news, deep fakes, filtros bolha e discursos de ódio.
Por fim, apresenta-se uma análise do artigo 19 do MCI à luz das teses
defendidas entre os principais ciber-pessimistas e ciber-otimistas, cujo ob-
jetivo será testar duas hipóteses: a de que a liberdade sem limites na inter-
net não corresponde necessariamente a uma plena liberdade de expressão;
e que o Marco Civil é ciber-utópico.

6 A comparação deriva da tendência cada vez maior de adesão à internet como princi-
pal meio de comunicação das pessoas no cotidiano em substituição aos modelos tra-
dicionais limitados por ideias de espaço-tempo.
317
Samuel Nunes Furtado · Frederico Cardoso de Miranda · Bruno Facuri S. Rassi
2. Artigo 19 do MCI e a responsabilidade dos provedores
Inicialmente, é importante situar o debate sobre a responsabilidade dos
provedores e a incidência do artigo 19 do MCI, mesmo que de forma bre-
ve, realizando interpretação histórico-teleológica. Pois bem, a responsabi-
lidade civil pode ser estudada tradicionalmente sob dois ângulos, o contra-
tual (ou negocial), constituindo um dos elementos da obrigação (haftung),
e o extracontratual (ou extranegocial), expressado no ônus que recai sobre
determinada pessoa que cause danos a outrem, de forma culposa ou inde-
pendentemente de culpa7.
Entre os provedores de aplicação e os usuários, incide o Código de De-
fesa do Consumidor – Lei n° 8.078/90 – de forma que, em regra, a respon-
sabilidade do provedor por conteúdo ilícito gerado por terceiros seria ob-
jetiva, em razão de defeito de serviço prestado ser caracterizado pela falta
de controle de conteúdo ex ante como medida de espreita preventiva.
No entanto, o legislador, considerando o papel da internet como prin-
cipal meio de comunicação e, na tentativa de impedir censura segundo
critérios subjetivos dos provedores de aplicação8, cria a lei 12.965/2014,
cujo mandamento exime os provedores da responsabilidade objetiva, des-
de que não possuam filtro de conteúdo, transferindo ao judiciário a legiti-
midade para decidir o que deve ou não ser removido compulsoriamente da

7 TARTUCE, Flávio. Direito das obrigações e responsabilidade civil. 14. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2019.
8 ROTH, Gabriela. NUNES, Samuel. A responsabilidade civil dos provedores por
danos causados a terceiro: um estudo doutrinário e jurisprudencial do artigo 19 do
marco civil da internet. In: LONGHI, João Victor Rozatti; FALEIROS JÚNIOR, José
Luiz de Moura. Estudos Essenciais de direito digital. Uberlândia: LAECC, 2019, p. 144
explicam que o intuito foi impedir a censura segundo critérios subjetivos do que seria
“liberdade de expressão” e seu âmbito de proteção, já que como princípio se trata de
um direito amplo cujos limites são decididos através de posicionamento político,
sendo o Judiciário único legitimado para analisar se há excessos.
318
Controles da Internet
internet.9.
A finalidade do dispositivo 19, caput10, que será objeto do trabalho, pa-
rece clara: elevar ao máximo a liberdade na internet, mediante maximiza-
ção da liberdade, independentemente de censura.
Justamente nesse sentido, dispõem o anteprojeto do Marco Civil, in
verbis:
As opções adotadas privilegiam a responsabilização subjetiva, como forma
de preservar as conquistas para a liberdade de expressão decorrentes da
chamada Web 2.0, que se caracteriza pela ampla liberdade de produção de
conteúdo pelos próprios usuários, sem necessidade de aprovação prévia
pelos intermediários11.
Corroborando com essa ideia, pondera Augusto Marcacini:
Tratar a questão de modo diverso gera, de um lado, um aumento exagera-
do nos riscos desses negócios e, de outro lado, o que é mais danoso soci-
almente, uma tendência a excesso censório por parte dos provedores que,
temerosos em ser diretamente responsabilizados, iriam proibir ou retirar
do ar todo o tipo de conteúdo que minimamente parecesse infringir algum
direito alheio. Essa é a tônica desses dispositivos do Marco Civil.12
Entretanto, deve ficar claro que a incidência do dispositivo em comen-

9 NUNES, Samuel. MIRANDA, Frederico Cardoso de. O debate do Lícito e do Ilícito


na Internet: liberdade de expressão e remoção de contéudo. Revista do CEJUR/TJSC:
Prestação Jurisdicional, Florianópolis, v. 7, n. 1, p. 96-124, jun./dez. 2019.
10 “Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o
provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente
por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial es-
pecífica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu ser-
viço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como
infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário. (Lei. 12.965/14)”
11 BRASIL, Anteprojeto lei n. 12.965. p. 10.
12 MARCACINI, Augusto Tavares Rosa. Aspectos fundamentais do Marco Civil da
Internet: Lei n° 12.965/2014. São Paulo: Edição do autor, 2016, p. 70.
319
Samuel Nunes Furtado · Frederico Cardoso de Miranda · Bruno Facuri S. Rassi
to, diferentemente do que pensavam alguns autores13, não cabe indiscri-
minadamente a todos os provedores de aplicação, tendo em vista que, o
MCI visa proteger a liberdade de expressão e, de igual modo elenca como
fundamento a defesa do Consumidor14. Em outros termos, o regime de
responsabilidade civil dos provedores de aplicação por conteúdo ilícito
gerado por terceiro não deve servir de escudo à responsabilidade objetiva
dos provedores “marketplace”, que intermedeiam operações de mercado,
mas tão somente àqueles que compõem as chamadas redes sociais digi-
tais15.
Neste ponto, observando o exposto a respeito da responsabilidade por
omissão dos provedores instituída pelo MCI, Vitor Pereira Gonçalves ex-
plica que “a liberdade de expressão como teoria e prática nas redes de in-
formação e comunicação, possui infinitas limitações que não são enfrenta-
das pelo Marco Civil”16. É sobre algumas dessas limitações que o tópico
seguinte tratará, perpassando o interesse econômico dos provedores nos
dados dos usuários, traduzindo a guerra das empresas pelo controle do

13 Como exemplo vide: ROTH, Gabriela. NUNES, Samuel. A responsabilidade civil dos
provedores por danos causados a terceiro: um estudo doutrinário e jurisprudencial
do artigo 19 do marco civil da internet. In: LONGHI, João Victor Rozatti; FALEIROS
JÚNIOR, José Luiz de Moura. Estudos Essenciais de direito digital. Uberlândia: LA-
ECC, 2019, p. 144.
14 SENACON, Secretaria Nacional do Consumidor. Nota Técnica nº 610/2019. Proces-
so nº 08012.003622/2019-81. p. 5.
15 Maria Celina Bodin e Chiara Spadaccini de Teffé (BODIN DE MORAES, Maria
Celina e TEFFÈ, Chiara Spadaccini de. Redes sociais virtuais: privacidade e respon-
sabilidade civil Análise a partir do Marco Civil da Internet. Revista Pensar, Fortaleza,
v. 22, n. 1, p. 108-146, jan./abr. 2017) conceituam as redes sociais “como serviços
materializados em páginas na Web ou em aplicativos que, a partir de perfis pessoais,
permitem uma ampla interação entre seus usuários, proporcionando e facilitando as
relações e os laços sociais entre os sujeitos (pessoas, instituições, empresas ou grupos)
no ambiente virtual”
16 GONÇALVES, Victor Hugo Pereira. Marco Civil da Internet: comentado. São Paulo:
Atlas, 2017, p. 11.
320
Controles da Internet
ciberespaço, bem como os algoritmos de seleção de conteúdo e de que
forma isso afeta a liberdade na internet.

3. Como os provedores são remunerados: informação como um ativo


A revolução das TICs17 tem impactado não só as relações sociais, mas
também as relações econômicas, criando uma “economia da informação
em rede”, cujos fatores determinantes, segundo Benkler, residem na digi-
talização simbólica da Humanidade, transformando a informação na prin-
cipal engrenagem de produção nesta economia constituída em grande
medida por bens imateriais; e o baixo custo de aparelhos com processado-
res cada vez mais velozes, conectados à internet, o que permite uma parti-
cipação em número cada vez maior de pessoas, o que acarreta a incessante
produção de informações.18
É justamente na coleta de dados dos usuários que os provedores de
aplicação retiram seus lucros, minerando os dados dos seus utilizadores,
que são vendidos a outras empresas e também comercializando espaços
publicitários (advertisers).
A relação de consumo se constitui a partir do momento em que este
usuário (zero price), que aparentemente faz uso gratuito da aplicação, for-
nece ao provedor suas pegadas digitais em troca do acesso as suas funcio-
nalidades, cuja receita será obtida indiretamente através da venda desses
dados a empresas anunciantes para personalização de propagandas medi-
ante propaganda direcionada (advertisement business model)19.
Nesse sentido, Shoshana Zuboff, citando Varian, explica que:

17 Termo empregado para definir o conjunto de Tecnologias da Informação e Comuni-


cação.
18 BENKLER, Yochai. 2002. Apud. BRANCO, Cláudia Castelo. et. al., Olhares da Rede.
São Paulo: Momento Editorial. 2009, p. 13.
19 BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consen-
timento. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
321
Samuel Nunes Furtado · Frederico Cardoso de Miranda · Bruno Facuri S. Rassi
Diante dos novos fatos a respeito de um mercado cognoscível, Varian
afirma quatro novos “usos” que se seguem a transações medidas por com-
putador: “extração e análise de dados”, “personalização e customização” e
“experimentos contínuos”. Cada um deles possibilita insights sobre uma
lógica emergente de acumulação, a divisão de aprendizagem que ela forma
e o caráter da civilização da informação para qual ela conduz.20
A partir do fluxo de dados e da sua constante coleta e sistematização
(big data) é possível que eles sejam organizados e processados para deter-
minada finalidade, transformando-se em informação, isto é, assimilando
conhecimento (data mining), cuja principal função é servir de guia para
tomada de decisões por parte dos provedores21, seja para melhorar seus
serviços (inteligence business) ou mesmo sistematizar um conjunto de
propagandas direcionadas.
Desta forma, os provedores buscam majorar seus lucros basicamente de
duas formas, quais sejam: (i) por meio da captação de usuários, com o
consequente aumento dos fluxos de dados e a sua diversificação com a
entrada de novos usuários; e (ii) com a maximização do tempo que esses
usuários passam em suas aplicações. Por conseguinte, tem-se a possibili-
dade de uma coleta massiva de dados que, uma vez revertidos em informa-
ção, permitirá conhecer as necessidades e gostos de cada cibernauta, de
forma a auxiliar os provedores no oferecimento não só serviços e produtos
personalizados, mas de todo o conteúdo disponibilizado para estes usuá-
rios.

20 ZUBOFF, Shoshana. Big Other: surveillance capitalism and the prospects of an in-
formation civilization. Trad. Antônio Holzmeister Osvaldo Cruz e Bruno Cardoso.
In: Tecnopolíticas da Vigilância. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 26.
21 O conceito de data mining aqui exposto não está atrelado à prática única e exclusi-
vamente dos provedores, sendo resumido, em termos genéricos “em um processo de
extração ou mineração de conhecimento em grandes quantidades de dados”. SHO-
LOM, M. WIES, Nitim Indurkhya. Predict Data Mining. 1999 apud: CORTÊS, Sérgio
da Costa et. al. Mineração de Dados – Funcionalidades, Técnicas e Abordagens.
2002.
322
Controles da Internet
Sobre o tema, Carla Oliveira afirma:
Uma análise dos serviços do Facebook mostra o quanto algoritmos
Aprendizado de Máquina influenciam na escolha das notícias, postagens e
anúncios que são exibidos na timeline do Facebook. O usuário tem a ilu-
são de que escolhe o que lê, visualiza, curte, comenta e compartilha, mas
isso é uma falsa liberdade. Na verdade, quem classifica, exclui e decide o
que aparece na timeline é um algoritmo de Aprendizagem de Máquina e é
com base nessa classificação que as interações dos usuários do Facebook
são realizadas.22
Portanto, fica evidente que a internet não é um campo livre e que sem-
pre existe alguém, ou melhor, um algoritmo que controla todos os “pas-
sos” dos usuários das redes, como será analisado a seguir.

3.1. Filtros bolha e a liberdade na Internet


Como visto, tempo e atenção do público têm sido fatores determinan-
tes para o desenvolvimento da atividade das redes sociais digitais. E essa
“nova realidade e perspectiva envolve ações controversas, como ferramen-
tas de controle e direcionamento de informações, acessos e conteúdo, pro-
gredindo para fenômenos como os filtros bolha”23. Esses filtros nada mais
são do que o resultado do controle excessivo de conteúdo por parte dos
algoritmos criando nos usuários uma falsa percepção de liberdade sobre a

22 OLIVEIRA, Carla. Aprendizado de máquina e modulação do comportamento hu-


mano. In: A sociedade de controle: manipulação e modulação nas redes digitais. São
Paulo: Hedra, 2018, p. 93.
23 Podem ser conteituados como a “ação dos algoritmos como filtros no ambiente
virtual, que atuam como motores de previsão que influenciam e direcionam o acesso
de conteúdo baseado no perfil e hábito de consumo dos usuários”. SASTRE, Angelo;
CORREIO, Claudia Silene Pereira de Oliveira; CORREIO, Francisco Rolfsen Belda. A
Influência do “Filtro Bolha” na Difusão de Fake News nas Mídias Sociais: Reflexões
sobre as Mudanças nos Algoritmos do Facebook. Revista Geminis, São Carlos, v. 9, n
1. p. 4-17, jan./abr. 2018, p. 2.
323
Samuel Nunes Furtado · Frederico Cardoso de Miranda · Bruno Facuri S. Rassi
informação que acessam na internet.
Nesse sentido, Pariser24, contextualizando a estratégia oculta que en-
volve os filtros bolhas, explica que, em um primeiro momento, eles foram
organizados pelos provedores com a intenção de obter informações sobre
a interação dos usuários com as mercadorias na internet, do que derivou a
figura do prosumer25. No entanto, evoluíram para observar também a inte-
ração dos usuários entre outros usuários e, a partir dos registros dos fatos
(dados) deixados pelo usuário, criar um padrão individual de “web” para
cada pessoa, cujo conteúdo acessado não é mais o que o usuário “quer”,
mas o que o algoritmo presume que lhe interesse, tomando por base o
perfil comportamental de cada cibernauta no ciberespaço, excluindo-se
outros resultados, especialmente os que contradizem o modo de pensar do
usuário (câmaras de ecos)26.
Portanto, malgrado não seja possível afirmar com grau de certeza a re-
lação de causalidade entre a criação de fake news, deep fakes, post-truth e
os algoritmos por trás da seleção dos conteúdos exibidos aos usuários das
mídias sociais, não restam dúvidas de que certamente eles os favorecem,
confundindo fatores como credibilidade, relevância e afinidade.
Se por um lado é correto afirmar que a internet potencializou o volume
de informações produzidas, dando um caráter de horizontalidade à emis-

24 PARISER, Eli. The filter bubble: what the internet is hiding from you. Nova York:
Peguin Press. 2011.
25 A figura do Prosumer é resultado da atuação da dupla atuação do indivíduo na inter-
net, como consumidor e como fator de determinação na produção de produtos e ser-
viços.
26 Sobre esse ambiente, Sorj explica que ao navegar nas redes sociais os usuários são
submetidos à uma série de conteúdos alinhados à sua maneira de pensar comparti-
lhados pelos integrantes da rede e, há uma falsa impressão de que todos pensam de
modo uniforme, quando o que ocorre é uma exclusão da amostra de postagens con-
trárias aos seus posicionamentos. SORJ, Bernado et. all. Sobrevivendo nas redes: guia
do cidadão. [S.l.]: Lilemes Comunicação, 2018.
324
Controles da Internet
são de conteúdo na internet e quebrando o monopólio da produção de
informação pela mídia de massa, por outro, fez surgir a necessidade de
controle dessa sobrecarga (information overload), que os provedores fazem
através de padrões cujo princípio norteador é o registro de dados do usuá-
rio na internet, criando um habitat perfeito para a polarização dos debates
e difusão de notícias falsas potencialmente lesivas, especial e relativamente
se analisarmos os danos morais e materiais acarretados às vítimas deste
cenário disruptivo da realidade.
Eduardo Magrani, analisando os interesses dos provedores na filtragem
de conteúdo, bem como os seus prejuízos para uma liberdade na internet,
descreve que:
Os filtros bolha-bolha limitam os usuários ao que desejam (ou desejariam)
segundo uma predisposição algorítmica, dificultando o acesso às informa-
ções que devessem ou precisassem ver para enriquecer o debate democrá-
tico [...] Desse modo, pode-se dizer que a filter bubble e seu caráter preju-
dicialmente paternalista pode implicar em restrições a direitos e a garanti-
as fundamentais, a autonomia dos indivíduos e a liberdade de expressão.27
E complementa dizendo que “o usuário de internet ao navegar pelos si-
tes mais conhecidos é alvo hoje de uma torrente de publicidade direciona-
da que denota por si só o interesse comercial por trás deste mecanismo de
filtragem e personalização.”28 Obviamente, não se pode esperar que os
provedores deixem de monetizar as atividades por trás do oferecimento de
seus serviços, mas a prática tem que se alinhar aos princípios que regem o
uso da internet v.g., pluralismo e a interconexão de ideias prejudicada por
fenômenos como o filtro bolha.
Portanto, o artigo 19 do Marco Civil da Internet, ao se preocupar uni-

27 MAGRANI. Eduardo. Democracia conectada: a internet como ferramenta de enga-


jamento político-democrático. Curitiba: Juruá. 2014, p. 120.
28 MAGRANI. Eduardo. Democracia conectada: a internet como ferramenta de enga-
jamento político-democrático. Curitiba: Juruá. 2014, p. 120.
325
Samuel Nunes Furtado · Frederico Cardoso de Miranda · Bruno Facuri S. Rassi
camente com a liberdade na internet em sentido formal, isto é, proporcio-
nar a todos o direito de se expressar sem qualquer restrição, acabou por
permitir uma nova forma de censura, tendo como expoente os filtros de
conteúdo dos provedores, resultando na mitigação da liberdade de expres-
são em sentido material, a saber, o direito de efetivamente ser “ouvido” e
influir nos debates apreciativos que ocorrem no ciberespaço.
Já dizia Morozov29: “o fato de não haver alguém no controle do poder,
ditando o que pode ou não ser dito na internet, não significa que todos são
livres”, pois os intermediários deste ciberespaço não estão preocupados
com a luta pela democracia e, por consequência, de uma maior liberdade
na internet; antes, estão engajados na maximização de seus lucros, o que o
fazem com a capitalização dos dados dos usuários, independentemente do
custo que essa busca incessante pode demandar.

4. Ciber-otimistas e ciber-pessimistas: ciberespaço e a guerra hobbesiana


de todos contra todos
Esclarecidos os interesses econômicos dos provedores, faz-se necessário
explanar o embate entre aqueles otimistas em relação ao poder revolucio-
nário da internet, em contraposição aos céticos quanto ao potencial revo-
lucionário da web.30
O ponto central das teses defendidas pelos ciber-otimistas gira em tor-
no da crença de que a internet é o meio de comunicação essencialmente
revolucionário, diferente de qualquer outro desenvolvido durante a histó-
ria da humanidade. Sob essa ótica, alimentam a esperança da internet en-

29 MOROZOV, Egveny. Big Tech: a ascensão dos dados e a morte da política. Trad.
Cláudio Marcondes. São Paulo: Ubu, 2018, p. 256.
30 Entre os cyber-otimistas destacam-se Benkler e Manuel Castells, em contraposição
aos cyber-céticos Tim Wu e Evgeny Morozov. Há outros autores que, de igual modo
elencam pontos positivos e negativos da internet, mas que, por razões de oportuni-
dade não serão detalhados neste trabalho.
326
Controles da Internet
quanto promessa democrática de emancipação política, embasada em
princípios como a diversidade, pluralidade de informações, participação
deliberativa e pressuposto essencial para o livre e pleno desenvolvimento
da personalidade, sendo considerada, inclusive, instrumento imprescindí-
vel ao exercício da cidadania31.
Nesta égide, Benkler, pontuando as diferenças entre a mídia social crida
pela internet e a mídia de massa tradicional, trazendo à baila a perspectiva
de uma emancipação política das pessoas, predita:
Os processos de produção de informação por redes sociais de colaboração
oferecem perspectivas e leituras alternativas de realidade que podem pôr
em xeque as versões dos grandes veículos de comunicação ou grupos he-
gemônicos32.
O autor parte do fundamento de que a internet desmonopoliza a pro-
dução de informação tradicionalmente feita palas mídias de massas e, as-
sim, os usuários, antes meros espectadores, passam a possuir um papel
ativo na internet, estando menos sujeitos à manipulação dos grandes gru-
pos tradicionais de veículos de comunicação.
No mesmo raciocínio, descreve Manuel Castells:
A interatividade torna possível aos cidadãos solicitar informação, expres-
sar opiniões e pedir respostas pessoais aos seus representantes [...] e a in-
ternet fornece, em princípio, um canal de comunicação horizontal, não
controlado e relativamente barato, tanto de um para um quanto de um pa-
ra muitos.33
De fato, é indubitável o poder que a internet proporciona às pessoas,

31 Artigo 1º ao 7º do Marco Civil da Internet (lei n. 12.965).


32 BENKLER, Yochai. 2002. Apud. BRANCO, Cláudia Castelo. et. al., Olhares da Rede.
São Paulo: Momento Editorial. 2009, p. 16.
33 CASTELLS, Manuel. A galáxia da internet: reflexões sobre a internet, os negócios e a
sociedade. Trad. Maria Luiza C. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 159-
161.
327
Samuel Nunes Furtado · Frederico Cardoso de Miranda · Bruno Facuri S. Rassi
encurtando espaços e desmonopolizando a emissão de informação, fruto
do advento da web 2.0. Porém, o fato de ela viabilizar amplamente a parti-
cipação das pessoas não leva a decorrência lógica de que efetivamente essa
participação ocorrerá, de modo que tais promessas serem vistas com certo
ceticismo, especial e relativamente em vista dos algoritmos de seleção de
conteúdo usados pelos provedores e da natureza humana34, principais
responsáveis pelas emissões de fake News, deep fakes e discursos de ódio.
Partindo dessa perspectiva, os ciber-pessimistas, em contraposição aos
otimistas, analisam a rede mundial de computadores em comparação com
outros meios de comunicação abertos desenvolvidos na história. Conclu-
em, mediante análise comparativa, que a internet não diverge de outros
meios que a precederam no passado e, por isso, criticam o radicalismo da
revolução da internet. Para os ciber-pessimistas, a diferença entre a inter-
net e os meios tradicionais de comunicação reside no fato de que internet
fortaleceu as ferramentas de controle dos indivíduos, embora os agentes
por trás do controle sejam os mesmos das mídias tradicionais.
De modo análogo, Tim Wu, em contraposição ao ideal libertador de-
fendido por ciber-otimistas, traduz metaforicamente a luta das grandes
indústrias pela ocupação de territórios no ciberespaço como sendo:
[...] o velho conflito entre o grande e o pequeno, entre os conceitos de sis-
tema aberto e fechado, entre as forças de ordem centralizadora e as das va-
riedades dispersas. Os antagonistas assumem novas formas, os generais
mudam, mas são essencialmente as mesmas batalhas travadas mais uma
vez. Esta é a própria essência do Ciclo, e mesmo uma tecnologia tão radical
e poderosa como a internet só é capaz de moderá-la, não de aboli-la.35

34 Por ora, só isso: o Homem natural de hobbes não é um selvagem. É o mesmo homem
que vive em sociedade. Melhor dizendo, a natureza do homem não muda conforme o
tempo, ou a história, ou a vida social”. WEFFORT, Francisco Côrrea (Org.). Os clás-
sicos da política. São Paulo: Ática. 2011, p. 45.
35 WU, Tim. Impérios da comunicação: do telefone à internet, do AT&T ao Google.
Trad. Cláudio Carina. Rio de Janeiro: Zahar. 2012, p. 143.
328
Controles da Internet
E acrescenta:
Embora possa soar extravagante, a disputa em questão está mais para ur-
sos-polares combatendo leões pelo controle do mundo. Cada animal, in-
superável em seu elemento natural [...] os ursos-polares buscarão cobrir de
neve a maior parte do mundo, enquanto os leões tentarão transformar em
savana as margens da tundra. Isso parece um absurdo, contudo, para esses
poderosos predadores, é apenas a lei da natureza.36
Na mesma linha de pensamento, Egveny Morozov37, analisando a luta
entre os gigantes da internet, descreve que o uso da internet efetivamente
possui pontos positivos, promovendo, v.g., liberdade de expressão. Entre-
tanto, nem sempre os aspectos positivos são suficientes para compensar os
negativos e, da mesma forma que serve à promoção da democracia, a in-
ternet também pode ser usada como meio de investir de poder os movi-
mentos antidemocráticos e potencialmente lesivos às pessoas, à democra-
cia e à sociedade.
Os movimentos antidemocráticos, não só hodiernamente, podem se
encontrar travestidos de fake news, deeps fakes e discursos de ódio produ-
zidos pelos usuários que, em razão do artigo 19 do Marco Civil da Internet,
não podem ser removidos extrajudicialmente38, favorecendo sua rápida
difusão e, por consequência, a intensificação dos danos causados as víti-
mas destas praticas, através do princípio da interoperabilidade da internet

36 WU, Tim. Impérios da comunicação: do telefone à internet, do AT&T ao Google.


Trad. Cláudio Carina. Rio de Janeiro: Zahar. 2012, p. 143.
37 MOROZOV, Egveny. The net delusion: the dark side of internet freedom. Nova York:
Publica Falos, 2011.
38 Todavia, tem-se também a possibilidade da retirada de conteúdo da internet aconte-
cer diretamente pelos próprios provedores: isso porque, a maioria deles oferta seus
serviços por meio de contratos e, dentro destes, podem existir regras autorizadoras
para remoção de conteúdos que estejam em desacordo com seus termos de uso.
NUNES, Samuel. MIRANDA, Frederico Cardoso de. O debate do Lícito e do Ilícito
na Internet: liberdade de expressão e remoção de contéudo. Revista do CEJUR/TJSC:
Prestação Jurisdicional, Florianópolis, v. 7, n. 1, p. 96-124, jun./dez. 2019, p. 110.
329
Samuel Nunes Furtado · Frederico Cardoso de Miranda · Bruno Facuri S. Rassi
e de estratégias de operação dos provedores na seleção de conteúdo v.g., os
filtros bolhas. Sobre isso, Morozov explica que:
Os problemas não são as fake News, e sim a velocidade e a facilidade de
sua disseminação, e isso acontece principalmente porque o capitalismo di-
gital de hoje faz com que seja altamente rentável – veja o Google e o Face-
book – produzir e compartilhar narrativas falsas que atraem cliques.39
Assim, a partir da análise crítica sobre os efeitos “revolucionários” da
internet, os ciber-pessimistas não procuram desacreditar do seu potencial
democrático, mas antes reforçá-lo voltando a atenção dos legisladores e da
sociedade em geral para o modo como os atores da internet operam por
trás das plataformas.

5. O ciber-utopismo do Marco Civil da Internet


Mas de que forma as ponderações discorridas nos capítulos anteriores
justificam a ideia de utopia, ou melhor, ciber-utopia do Marco Civil da
Internet, principalmente no que se refere à responsabilidade dos provedo-
res por conteúdo postado por terceiros?
Conforme explicado, a responsabilidade subjetiva dos provedores de
aplicação justifica-se sob a tese de promoção da liberdade de expressão,
independente de censura, como forma de garantir a liberdade na internet.
O raciocínio feito pelo legislador é resumido na ideia de que a promoção
da liberdade de expressão no ciberespaço só seria materializada pela total
liberdade dos usuários na produção de conteúdo, independentemente de
autorização de intermediários, considerando a internet como pressuposto
para densificação da democracia40.
No entanto, quando o Marco Civil da Internet se preocupa unicamente

39 MOROZOV, Egveny. Big Tech: a ascensão dos dados e a morte da política. Trad.
Cláudio Marcondes. São Paulo: Ubu, 2018, p. 184.
40 BRASIL. Anteprojeto Marco Civil da Internet.
330
Controles da Internet
com o direito à liberdade de expressão em sentido formal, isto é, possibili-
tar aos usuários a livre manifestação de pensamento no ciberespaço, não
logra êxito em seu objetivo finalístico, qual seja, a sedimentação da demo-
cracia no ciberespaço, à medida que abriu espaço para novas formas de
censura, desconsiderando os interesses obscuros de grupos antidemocráti-
cos.
Doutra feita, ao coibir o filtro prévio e a regra notice and takedown41
dos conteúdos pelos provedores, sob pena de responsabilidade objetiva, o
legislador cultivou um ambiente extremamente propício à disseminação
de conteúdos potencialmente danosos, como é o caso das fake news, deep
fakes e discursos de ódio, tornando mais crítica a vulnerabilidade digital42
do consumidor, expondo-o a riscos desmesurados no contexto das mídias
sociais em prol de uma “aparente liberdade na internet”.
Como visto, a internet não é livre e as grandes empresas provedoras, tal
como antes acontecida com as mídias de massa, dominam e controlam o
ciberespaço, concentrando a maior parte dos usuários da internet em suas
aplicações. Da mesma forma que o uso da rede pode ser base para o desen-
volvimento de uma cultura diversificada, assentada nos ideais de compre-

41 Traduzido como “notificar e retirar” é um dos critérios para a responsabilidade


objetiva dos provedores fundamentado sob a ideia de que, uma vez identificada ilici-
tude em um conteúdo postado, bastaria que o provedor fosse notificado para que re-
caísse o dever de remover o conteúdo sob pena de vir a ser responsabilizado pelo da-
no que o conteúdo pudesse gerar em terceiros. SIERRA. Joana de Souza. A responsa-
bilização dos provedores de aplicações de internet por conteúdos gerados por terceiros
como ruptura dos sistemas tradicionais de responsabilidade civil: notice and takedown
e o Marco Civil da Internet. 2018. Dissertação (Mestrado em Direito) - Centro de Ci-
ências Jurídicas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2018.
42 Ou “vulnerabilidade eletrônica” resultado de análise teleológica do instituto da vul-
nerabilidade do consumidor, pressuposto básico do CDC, traduzida na ideia do des-
conhecimento, pelo consumidor, das funcionalidades e estruturas técnicas da inter-
net bem como relativas às operações econômicas, políticas e informativa cujas novas
dinâmicas fizeram surgir novas relações de consumo plurilaterais.
331
Samuel Nunes Furtado · Frederico Cardoso de Miranda · Bruno Facuri S. Rassi
ensão das diferenças e no livre e harmônico intercâmbio de informação, de
igual modo serve como ferramenta de impulso aos movimentos antidemo-
cráticos ou mesmo ofensiva, racista, xenófoba, entre outros.
Sendo assim, a própria ideia de liberdade na internet pressupõe, per si, a
necessidade de um controle, na tentativa de evitar que esse novo território
eletrônico materialize de maneira similar a “guerra de todos contra todos”,
idealizada por Hobbes, por meio da conscientização da mitigação do ci-
bernauta social por natureza, em alusão à teoria contratualista de Rousse-
au.43 O problema do ciber-utopismo habita essencialmente na sua visão
progressista, filantrópica e cosmopolita em relação ao conjunto dos usuá-
rios e intermediários da internet.
Portanto, o ciber-utopismo do Marco Civil reside justamente em sua
convicção de que a internet favorece os oprimidos e não os opressores, isto
é, a crença de que ao promover a ampla liberdade na internet, sem qual-
quer restrição, os cibernautas estariam livres para se expressar, tendo co-
mo escudos a diversidade, pluralidade, livre difusão de ideais, desconside-
rando o lado negativo dessa convicção e os interesses econômicos vetores
do desenvolvimento das atividades dos provedores.

6. Considerações finais
Entendendo a preocupação do Legislador em estabelecer a responsabi-
lidade subjetiva dos provedores como forma de maximizar a liberdade de
expressão pressuposto de uma democracia forte, buscamos levantar algu-
mas questões de ordem teoria e prática que levam a conclusão de que o
MCI não alcançou seu objetivo final, a saber, o fortalecimento da demo-
cracia na internet.
Decerto, durante todo o trabalho, buscou-se comprovar que a liberdade

43 WEFFORT, Francisco Côrrea (Org.). Os clássicos da política. São Paulo: Ática. 2011,
p. 48.
332
Controles da Internet
ilimitada na internet não corresponde, necessariamente, à plena liberdade
de expressão, bem como, que o Marco Civil é ciber-utópico. Para tanto,
realizou-se análises sob diferentes ângulos de leitura do funcionamento da
internet, principalmente nas visões dos ciber-pessimistas e dos ciber-
otimistas, levando em conta a dupla atuação dos usuários na internet (pró
e contra a democracia), mas sem desconsiderar os múltiplos usos da inter-
net.
A pesquisa foi voltada, principalmente, à atuação dos intermediários da
internet na conexão entre os usuários, detalhando os interesses, muitas
vezes econômicos, dos provedores, bem como a forma de controle do con-
teúdo postado pelos usuários, produzindo fenômenos como filtros bolhas,
cujo resultado é a criação de ambientes propícios à disseminação de con-
teúdos potencialmente lesivos e a promoção de uma censura à dimensão
material da liberdade de expressão.
Responsabilizar subjetivamente o provedor é uma ferramenta que per-
mite certa liberdade de expressão, porém, um olhar mais aprofundado sob
a estrutura funcional dos provedores e da atuação dos usuários possibilita
o reconhecimento de outros pontos que são igualmente essenciais para
uma internet verdadeiramente livre, plural e diversificada v.g., a regula-
mentação das atividades econômicas dos provedores. Ademais, há que se
pensar que este modelo de responsabilidade entra em choque com outros
direitos personalíssimos igualmente protegidos pela legislação pátria, co-
mo é o caso do direito de resposta que incluí a remoção de conteúdo ilícito
prejudicado pela velocidade de compartilhamento das informações na
internet e em contraposição ao andamento processual.
Os desafios por trás da promoção da democracia mediante uso da in-
ternet são grandes e o ponto de partida para enfrentá-los é reconhecê-los,
o que só é possível quando se analisa todos os pontos que envolvem seu
uso. Sendo assim, os reais impactos que a internet pode ocasionar nos di-
reitos fundamentais, nomeadamente no que tange à liberdade de expres-
são, são desconhecidos, de modo que, qualquer análise que se preste à
333
Samuel Nunes Furtado · Frederico Cardoso de Miranda · Bruno Facuri S. Rassi
elaboração de normas voltadas à regulação da internet deve considerar
todos os seus aspectos, principalmente os vieses econômicos e políticos
por trás das atuações dos provedores.
Dessa maneira, perfilhamos com a ideia do professor Morozov, de que
a evolução e a utilização da web devem ser vistas como avanços essenciais
para a humanidade, não podendo ela ser avessas às tecnologias, mas, as
redes devem ser utilizadas com moderação, sabedoria e, principalmente,
enxergando os prejuízos que isso pode acarretar à democracia.

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__________________________________________________

337
O PANORAMA GERAL ENTRE
INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E A
SOCIOLOGIA

15
Rafael Escrich
Guilherme Reis

1. Introdução
Nos últimos dez anos houve um aumento expressivo no uso de técnicas
de Inteligência Artificial (IA) em aplicações e sistemas de computador. E
acreditamos que esse aumento se dará de forma mais acelerada nesta dé-
cada que se inicia. Fruto principalmente da popularização e solidificação
de ferramentas e técnicas como Aprendizado de Máquina (Machine Lear-
ning) e Redes Neurais.
Essa nova “corrida pelo ouro’’ liderada por grandes conglomerados de
tecnologia deverá trazer grandes impactos à sociedade, tanto positivos,
pela própria natureza transformadora dessa tecnologia, quanto negativos,
como uma concorrência desleal de quem possuir a tecnologia, ou a forma
como é alimentado e desenvolvida a tecnologia. Além dos desdobramentos
éticos e morais de seu uso indiscriminado, muitas vezes, utilizando dados
pessoais ou implementando em situações perigosas para a humanidade
como um todo.
O objetivo desse ensaio é levantar questões pertinentes a algumas dire-
339
Rafael Escrich · Guilherme Reis
trizes éticas que talvez deveriam estar norteando o desenvolvimento dos
softwares e também o arcabouço regulatório necessário para a sociedade
poder fiscalizar tais tecnologias. O objetivo não é responder perguntas,
mas sim, demonstrar o que é, como é, como é feito, como estamos utili-
zando e para onde estamos indo. Nossa proposta é tensionar para pensar.
E se possível, mudar.

2. A origem da Inteligência Artificial


A origem da ideia de Inteligência artificial não é algo novo, pode-se di-
zer que a mitologia grega já explorava a ideia de objetos inanimados1 como
um tipo de vida artificial, isso é trazido no mito de Hephaestus:
O mito descreve Talos, um gigante de bronze, que Hephaestus, o deus gre-
go da invenção e dos ferreiros, construiu. Zeus, o rei dos deuses Gregos,
autorizou Talos a proteger a ilha de Creta de invasores. Ele marchou ao
redor da ilha três vezes todos os dias e arremessou pedregulhos em navios
inimigos.
[...]
Em seu núcleo, este gigante tinha um tubo que conectava a cabeça a um
dos pés que carregava uma misteriosa fonte da vida dos deuses Gregos
chamada ichor. Outro texto antigo, Argonautica, que data do terceiro sé-
culo antes de Cristo, descreve como a feiticeira Medea derrotou Talos ao
remover um parafuso de seu calcanhar o que levou o fluido ichor a vazar. 2
Evidentemente que as antigas sociedades já fantasiavam com máquinas
artificiais que tivessem comportamentos humanóides como o mito citado

1 MAYOR, Adrienne. Gods and Robots: Myths, Machines, and Ancient Dreams of
Technology. Princeton: Princeton University Press, 2018.
2 Stanford researcher examines earliest concepts of artificial intelligence, robots in
ancient myths. Stanford. Disponível em:
https://news.stanford.edu/2019/02/28/ancient-myths-reveal-early-fantasies-
artificial-life/. Acessado em 09/04/2020
340
O panorama geral entre Inteligência Artificial e a Sociologia
acima. Mas esse desejo antigo da humanidade começa a se tornar mais
realista apenas na primeira metade do século 20 conforme a criação e de-
senvolvimento da Ciência da Computação, fundamentando-se como uma
área importante no conhecimento formal.
A figura mais importante para o desenvolvimento da ciência da com-
putação, foi o matemático Alan Turing, tido por muitos como o pai da
computação, que escreveu em 1948 um artigo chamado “Intelligent Ma-
chinery”3 onde ele deixa uma pergunta a ser respondida: Podem as máqui-
nas demonstrar comportamento inteligente? Resposta esta que a humani-
dade ainda está a procura de responder.
Uma das grandes contribuições desse grande pensador à essa área foi
um exercício teórica que hoje é conhecido como teste de turing4. Nesse
teste teórico, Turing propôs que um humano avalie conversações em lin-
guagem natural entre um outro humano e uma máquina especialmente
construída para gerar respostas humanas.
O avaliador do teste poderá saber que um dos participantes é uma má-
quina e todos os participantes estarão separados uns dos outros. A conver-
sação é limitada em um canal somente de texto, como um teclado e uma
tela para que o resultado não seja dependente da habilidade da máquina de
renderizar sons parecidos com a voz humana. Se o avaliador não conseguir
distinguir entre a máquina e o humano, então é dito que essa máquina
passou no teste.
O resultado do teste não depende se a máquina dá respostas corretas
mas o quanto essas respostas se parecem às respostas que um humano

3 O artigo do Alan Turing citado pode ser lido no link:


https://weightagnostic.github.io/papers/turing1948.pdf
4 O teste de turing foi apresentado por ele em um artigo publicado em 1950. TURING,
Alan M. Computing machinery and intelligence, Mind, Volume LIX, Issue 236, Oc-
tober 1950, Disponível em:
https://academic.oup.com/mind/article/LIX/236/433/986238. Acesso em: 12 mar.
2020.
341
Rafael Escrich · Guilherme Reis
daria. Turing estava interessado principalmente em conseguir uma respos-
ta definitiva em forma de prova matemática.
Em 1956, foi organizado, no Dartmouth College em New Hampshire,
um Workshop intitulado “Dartmouth Summer Research Project on Artifi-
cial Intelligence”, o evento é tido por muitos, como o nascimento da área
de inteligência artificial. Nesse evento, renomados pesquisadores como
Marvin Minsky, Nathaniel Rochester, Claude Shannon e John McCarthy,
discutiram vários assuntos relacionados a simulações de comportamentos
inteligentes entre eles: processamento de linguagem natural, redes neurais,
teoria da computação, abstração e criatividade.5

3. Inteligência Artificial Forte ou Fraca


Dentro da área da Inteligência Artificial, existe uma separação baseada
no conceito de Forte e Fraca. Considera-se “Forte” uma inteligência artifi-
cial generalista muito parecida com a dos humanos, ela toma decisões por
si própria levando em conta raciocínio e abstrações, portanto exibe cogni-
ção e habilidades humanas. Há muitas críticas em relação a esse tipo de IA
pois alguns acreditam que à partir do momento que ela for criada, torna-se
consciente como um humano.
O ponto no tempo onde essa consciência artificial, que consegue
aprender sozinha e eventualmente superará o conhecimento de todos os
outros humanos combinados, é conhecida como singularidade tecnológi-
ca.6 Exemplos desse tipo de inteligência artificial seriam sistemas que exi-
bem pensamentos lógicos, têm capacidade de tomar decisões em casos de

5 McCARTHY, J. et al. A proposal for the Dartmouth Summer Research Project on


Artificial Intelligence, 1955. Disponível em: http://www-
formal.stanford.edu/jmc/history/dartmouth/dartmouth.html. Acesso em: 12 mar.
2020.
6 SHANAHAN, M. The Technological Singularity, 2015. Disponível em
https://mitpress.mit.edu/books/technological-singularity. Acesso em: 12 mar. 2020.
342
O panorama geral entre Inteligência Artificial e a Sociologia
incerteza, planejar, aprender, usar todas essas habilidades para atingir um
objetivo em comum.7
Já o oposto dela, são chamadas de IA Fraca, aqueles algoritmos que
demonstram comportamentos inteligentes, isto é, simulam algum com-
portamento considerado inteligente pelos humanos. Os exemplos mais
comuns e utilizados hoje em dia desse tipo de inteligência artificial são:
Sistemas Especialistas: Baseados em Ontologias, Árvores de decisão base-
adas em heurísticas, Lógica Fuzzy, Bases de Conhecimento, além de outras
técnicas.
Sistemas de navegação: Buscam o melhor caminho para o usuário basea-
dos em muitos parâmetros como trânsito, velocidade das vias, periculosi-
dade da região, entre outros.
Reconhecimento de voz: Fazem o reconhecimento da linguagem natural e
atribuem significado ao comando proferido pelo usuário, entre eles temos
Siri, Cortana, Alexa e Google Assistant.
Reconhecimento de imagens: Alguns exemplos atuais desse tipo são algo-
ritmos que dada uma imagem, conseguem distinguir se são uma face de
um humano, se são de alguma espécie de um animal, objeto ou algum ou-
tro tipo para que aquele algoritmo foi treinado.
Sugestões de pesquisa: Utilizam inferência em bases de conhecimento e
estatística para tentar oferecer sugestões mais realistas ao usuário.8

7 PASCHEK, Daniel; LUMINOSU, Caius. Automated business process management –


in times of digital transformation using machine learning or artificial intelligence,
2017. MATEC Web of Conferences. 121. Disponível em: https://bit.ly/2KLrJlS. Aces-
so em: 12 mar. 2020.
8 PASCHEK, Daniel; LUMINOSU, Caius. Automated business process management –
in times of digital transformation using machine learning or artificial intelligence,
2017. MATEC Web of Conferences. 121. Disponível em: https://bit.ly/2KLrJlS. Aces-
so em: 12 mar. 2020.
343
Rafael Escrich · Guilherme Reis
4. Inteligência Artificial Simbólica versus Aprendizado de Máquina
Existe outra diferenciação importante dentro da área da inteligência ar-
tificial que necessita ser abordada, que é a diferenciação entre IA Simbólica
e IA por Aprendizado de Máquina (machine learn). A IA Simbólica foi o
paradigma dominante na área até praticamente o final de 1980.9Este para-
digma tem seus fundamentos na hipótese que muitos aspectos da inteli-
gência podem ser alcançados pela manipulação de símbolos (physical sym-
bol systems hypothesis10).
Este paradigma tem caído em desuso por ser extremamente complexo
de ser implementado e para cada novo tipo de “conhecimento” a ser adi-
cionado ao sistema, precisa de uma regra nova, transformando assim em
algo que necessita de muita manutenção. Hoje em dia, os holofotes estão
mais voltados para algoritmos que envolvam redes neurais e aprendizado
de máquina.
As redes neurais são um conjunto de algoritmos, modelados à partir do
conceito de um cérebro humano, que têm como objetivo reconhecimento
de padrões. Elas interpretam dados sensoriais através de percepção de
máquina, classificação ou agrupamento de dados brutos. Para tentar
exemplificar, trazemos ao leitor uma imagem de como funcionaria essas
redes neurais em sua forma mais básica11:

9 HAUGELAND, John. Artificial Intelligence: The Very Idea, Cambridge, 1985. Dis-
ponível em https://mitpress.mit.edu/books/artificial-intelligence-1. Acesso em: 12
mar. 2020.
10 Caso o leitor tenha mais interesse sobre o método acesse o link colaborativo: Dispo-
nível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Physical_symbol_system
11 Imagem representando a rede neural: Disponível em https://mc.ai/intuition-
learning-and-neural-networks/. Acesso em: 12 mar. 2020.
344
O panorama geral entre Inteligência Artificial e a Sociologia

Fonte: https://mc.ai/intuition-learning-and-neural-networks/

Na imagem acima, podemos ver que os padrões reconhecidos são nu-


méricos, contidos em vetores (input 1, input 2, input n), que interpretarão
os dados classificando ou agrupando os dados brutos (h1, h2, h3), e após
esse processo de análise, que pode acontecer com quais quaisquer dados
do mundo real como imagens, sons, textos ou séries temporais, eles serão
traduzidos (Output 1, Output n).12

5. Estado atual da tecnologia


A Inteligência Artificial vai desempenhar um papel vital de inúmeras
maneiras no futuro.13No presente, ela já desempenha um papel de grande
importância em uma gama de áreas, incluindo monitoramento de negó-

12 KRAVETS, A., SHCHERBAKOV, M., KULTSOVA, M., GROUMPOS, P. Creativity


in Intelligent Technologies and Data Science, 2017. Disponível em
https://www.springer.com/gp/book/9783319655505. Acesso em: 12 mar. 2020.
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https://ec.europa.eu/digital-single-market/en/news/ethics-guidelines-trustworthy-ai.
Acesso em: 12 mar. 2020.
345
Rafael Escrich · Guilherme Reis
cios, aplicações na área da saúde, pesquisa e desenvolvimento, predição de
fatia de mercado, aplicações industriais, análise de redes sociais, análise de
condições meteorológicas e monitoramento ambiental, IoT (Internet das
Coisas).
Partindo das ideias das redes neurais descritas anteriormente, alguns
pesquisadores criaram novos algoritmos mais especializados. Essa nova
área conhecida como Aprendizado de Máquina (Learn Machine), atual-
mente se tornou uma das mais utilizadas pelas empresas que desenvolvem
IA, pois permite aplicar esse aprendizado em uma base extensa de dados
(Big Data) possibilitando o uso desses dados para proporcionar grandes
vantagens competitivas para essas empresas.
Algumas pesquisas apontam para o uso da IA para encontrar novos
materiais14, além de atualmente estarem utilizando para estudar o possível
uso de medicamentos existentes no combate a pandemia do COVID-19.15
Um dos principais avanços tecnológicos dos últimos anos na área de
aprendizagem de máquina foi o programa de computador AlphaGo, de-
senvolvido pela empresa DeepMind Technologies, que posteriormente foi
adquirida pelo Google. Em outubro de 2015, AlphaGo foi o primeiro pro-
grama de computador a ganhar de um jogador profissional de Go (Jogo de
tabuleiro Chinês).16
Já em março de 2016, ganhou de Lee Sedol, o maior campeão de Go de

14 Researchers design new material using artificial intelligence. Disponível em:


https://phys.org/news/2019-10-material-artificial-intelligence.html. Acesso em: 12
mar. 2020.
15 Artificial Intelligence Identifies Potential Anti-COVID-19 Drugs. Disponível em:
http://www.sci-news.com/medicine/artificial-intelligence-anti-covid-19-drugs-
08277.html. Acesso em: 12 mar. 2020.
16 Why this week’s man-versus-machine Go match doesn’t matter (and what does),
Sciencemag. Disponível em: https://www.sciencemag.org/news/2016/03/update-
why-week-s-man-versus-machine-go-match-doesn-t-matter-and-what-does. Acesso
em: 12 mar. 2020.
346
O panorama geral entre Inteligência Artificial e a Sociologia
todos os tempos, sendo assim o primeiro programa de computador basea-
do em inteligência artificial a ganhar de um profissional 9-dan. Foi adicio-
nado à lista feita pela revista Science como um dos maiores avanços tecno-
lógicos do ano de 2016.17
Apesar de ser apenas um jogo de tabuleiro jogado pelos humanos mi-
lhares de anos atrás, Go é um jogo extremamente difícil para um compu-
tador jogar pois as jogadas possíveis são absurdamente grandes, portanto,
programas de computador como o DeepBlue, que ganhou no jogo de xa-
drez do renomado campeão Kasparov, não funcionariam no Go. Teve-se
que mudar a estratégia, AlphaGo treinou contra ele mesmo durante meses
em uma velocidade altíssima, com isso aprendendo e assim se tornando do
mesmo nível que jogadores experientes que demoraram décadas para ob-
ter esse nível.

6. A busca por diretrizes éticas ao atual momento da Inteligência


Artificial
O volume de informações produzidas pelas pessoas vem crescendo ex-
ponencialmente com a ascensão da internet, em especial nos últimos anos,
com a febre das redes sociais essa revolução dos dados favoreceu o cenário
da inteligência artificial. Com mais informações disponíveis, os pesquisa-
dores e as empresas ganharam mais motivação para buscar maneiras inte-
ligentes e automatizadas de processar, analisar e usar dados. Todo esse
aporte de informações tem gerado inúmeras discussões sobre as diretrizes
de implementação e sobre a necessidade de regulamentar os processos
para que tenhamos segurança no uso dos dados.
Em 16 de fevereiro de 2017 o parlamento europeu emitiu uma resolu-

17 Why this week’s man-versus-machine Go match doesn’t matter (and what does),
Sciencemag. Disponível em: https://www.sciencemag.org/news/2016/03/update-
why-week-s-man-versus-machine-go-match-doesn-t-matter-and-what-does. Acesso
em: 12 mar. 2020.
347
Rafael Escrich · Guilherme Reis
ção que contém recomendações sobre a criação de um Código Civil sobre
a robótica18, talvez seja a maior e única legislação específica sobre o assun-
to até hoje, mesmo que ainda lhe falte força normativa vinculante, e um
excelente parâmetro legislativo.
A resolução trouxe consigo 10 princípios éticos e basearam-se como
pilar o que a literatura considera como as leis da robótica de Isaac Asi-
mov19 (originalmente citados no prefácio de seu livro “Eu robô” e repro-
duzido na resolução.), são consideradas as três leis da robótica:
a. Um robô não causará danos a um ser humano nem permitirá que, por
inação, este sofra danos.
b. Um robô obedecerá às ordens que receber de um ser humano, a não ser
que as ordens entrem em conflito com a primeira lei.
c. Um robô protegerá sua própria existência na medida em que dita prote-
ção não entre em conflito com as leis primeira e segunda.
Partindo deste mesmo pressuposto da resolução europeia, em 8 de abril
de 2019, um grupo de especialistas de alto nível em inteligência artificial
apresentou diretrizes de ética para tornar a IA confiável. Ratificando os
princípios éticos trazidos na resolução europeia e também acrescentando
outros. Esse fato culminou com a publicação do primeiro rascunho das
diretrizes em dezembro de 2018, no qual mais de 500 comentários foram
recebidos através de uma consulta aberta.20 De acordo com as diretrizes a

18 PARLAMENTO EUROPEU. Resolução 2015/2103, DE 16 de fevereiro de 2017, que


contém recomendações à Comissão sobre disposições de Direito Civil sobre Robóti-
ca. Disponível em: https://www.europarl.europa.eu/doceo/document/TA-8-2017-
0051_PT.html?redirect. Acesso em: 12 mar. 2020.
19 Isaac Asimov era um cientista russo e entusiasta da robótica e escritor ficção científi-
ca.
20 BALAS, Valentina E., Kumar, Raghvendra, Srivastava, Rajshree (Eds.). Recent Trends
and Advances in Artificial Intelligence and Internet of Things, 2020. Prefácio. Dispo-
nível em: https://www.springer.com/gp/book/9783030326432. Acesso em: 12 mar.
2020.
348
O panorama geral entre Inteligência Artificial e a Sociologia
IA confiável deve ser:
i) Legal: respeitar todas as leis e regulamentos aplicáveis;
ii) Ética: respeitar princípios e valores éticos;
iii) Robusta: tanto do ponto de vista técnico quanto levado em considera-
ção seu ambiente social;
As diretrizes apresentam um conjunto de 7 requisitos essenciais que os
sistemas de IA devem atender para tornarem-se confiáveis. Uma lista de
avaliação específica visa ajudar a verificar a aplicação de cada um dos prin-
cipais requisitos:
Gerenciamento e supervisão humana: os sistemas de IA devem empode-
rar os seres humanos, permitindo que eles tomem decisões informadas e
promovam seus direitos fundamentais. Ao mesmo tempo, mecanismos de
supervisão adequados precisam ser garantidos, o que pode ser alcançado
por meio das abordagens de human-in-the-loop e human-in-command, es-
tratégias quando existe algum humano no controle dos processos.
Robustez e segurança técnica: os sistemas de IA precisam ser resilientes e
seguros, garantindo um plano de retorno caso algo dê errado, além de se-
rem precisos, confiáveis e reproduzíveis. Essa é a única maneira de garan-
tir que também danos não intencionais possam ser minimizados e preve-
nidos.
Privacidade e governança de dados: além de garantir o respeito total a pri-
vacidade e a proteção dos dados, também devem ser garantidos mecanis-
mos adequados de governança, levando em consideração a qualidade e a
integridade dos dados e o seu acesso legítimo.
Transparência: os dados, os sistemas e os modelos de negócios de IA de-
vem ser transparentes, mecanismos de rastreabilidade podem ajudar a al-
cançar este propósito. As decisões dos sistemas de IA devem ser explicadas
de maneira adaptados e claros aos stakeholders na questão. Os seres hu-
manos precisam estar cientes de que estão interagindo com um sistema ar-
tificial e devem ser informados da capacidade e limitações do mesmo.

349
Rafael Escrich · Guilherme Reis
Diversidade, não discriminação e justiça: o viés da injustiça deve ser evi-
tado, pois pode ter múltiplas implicações negativas, desde a marginaliza-
ção de grupos vulneráveis até a exacerbação de preconceitos e discrimina-
ção. Promovendo a diversidade, os sistemas de IA devem ser acessíveis a
todos, independentemente de qualquer deficiência e envolver as partes in-
teressadas relevantes ao longo de todo seu ciclo de vida.
Bem estar social e ambiental: os sistemas de IA devem beneficiar todos os
seres humanos inclusive as gerações futuras, portanto deve-se garantir que
sejam sustentáveis e que não agridam o meio ambiente, não agredindo ne-
nhum ser vivo e calculando seu impacto social para que não tenha prejuí-
zo.
Responsabilização: devem ser citados mecanismos para garantir a respon-
sabilização pelos sistemas de IA e seus resultados. Uma auditoria, que
permita a avaliação de algoritmos, dados e processos de design desempe-
nha um papel fundamental, especialmente em aplicações críticas. Além
disso, deve ser assegurada uma reparação adequada e acessível.
Todas as diretrizes têm a intenção de que os processos envolvendo IA
sejam seguros e justos tanto para o ser humano quanto para o meio ambi-
ente porém o grande desafio está no modo com que esses princípios estão
sendo interpretados, a quem ou quais situações devem ser aplicados e co-
mo devem ser implementados.21

7. A utilização da Inteligência Artificial e seus dilemas éticos na nossa


sociedade
A Inteligência artificial é um presente e futuro praticamente sem volta,
que já utilizamos (ou somos utilizados) em maior ou menor medida diari-

21 BALAS, Valentina E., Kumar, Raghvendra, Srivastava, Rajshree (Eds.). Recent Trends
and Advances in Artificial Intelligence and Internet of Things, 2020. Prefácio. Dispo-
nível em: https://www.springer.com/gp/book/9783030326432. Acesso em: 12 mar.
2020.
350
O panorama geral entre Inteligência Artificial e a Sociologia
amente. O que nos leva a novos paradigmas sobre a nossa sociedade.
Quando dizemos novos, infelizmente, se tratam de como utilizamos e
enfrentamos os velhos paradigmas com novas ferramentas em nosso futu-
ro. Como em qualquer tecnologia, a IA apresenta riscos e oportunidades.
Elas se enquadram amplamente em duas categorias: econômica e existen-
cial.
No lado econômico, quanto mais avançada a IA estiver, mais papéis se-
rá capaz de cumprir. O que para as empresas a primeira vista, parece um
excelente investimento. Embora o desembolso inicial para um sistema de
IA avançado seja alto e haja custos contínuos com manutenção, provavel-
mente custará menos que os salários, impostos e encargos financeiros de
seus funcionários humanos que estariam sendo substituídos, a um nível de
eficiência laboral indefinidamente maior do que do ser humano.
Por outro lado, o medo de que as máquinas substituam os humanos em
seus empregos tem fundamento, de acordo com a empresa de auditoria e
consultoria PwC, até 2030 robôs substituirão 38% das vagas de trabalho
nos Estados Unidos, 30% no Reino Unido e 21% no Japão. Os setores de
transporte, armazenamento, manufatura e varejo são os mais afetados, o
que gera alto índice de desemprego fazendo com que menos pessoas pos-
sam consumir os bens e produtos produzidos, culminando em uma eco-
nomia mais lenta.22
Alguns trabalhos considerados mais criativos já apresentam softwares
que são capazes de escrever textos jornalísticos mais básicos, como notí-
cias de partidas esportivas e resumos financeiros. Alguns experts na área,
crêem que a IA está ainda em seu processo mais inicial e tem um longo
caminho pela frente, outros pesquisadores acreditam que faltam apenas

22 BALAS, Valentina E., Kumar, Raghvendra, Srivastava, Rajshree (Eds.). Recent Trends
and Advances in Artificial Intelligence and Internet of Things, 2020. Prefácio. Dispo-
nível em: https://www.springer.com/gp/book/9783030326432. Acesso em: 12 mar.
2020.
351
Rafael Escrich · Guilherme Reis
alguns anos para que a IA supere a inteligência humana numa singularida-
de tecnológica citada anteriormente. Em pesquisas realizadas com especia-
listas na área, a maioria acredita que o nível de IA será 50% da capacidade
humana entre 2030 e 2040.23
Enquanto os debates seguem, conseguimos muitos benefícios com a IA,
já é possível fazer o diagnóstico de câncer com 90% de acerto em compa-
ração a 50% dos acertos dos médicos. Também é possível fazer leitura labi-
al com 93% de acerto com o software LipNet contra 52% de acerto dos
humanos.24
Nos sistemas de justiça do mundo, diversos softwares foram desenvol-
vidos para automatizar e acelerar a prestação do Estado e muitos deles já
embarcaram a inteligência artificial para processamento de dados. Exem-
plos claros, por exemplo, vem da Estônia, país europeu que é expoente na
tecnologia, no qual já há julgamentos feitos por IA para pequenas causas25.
O Brasil não está tão atrás no quesito justiça automatizada, com quase
todo o território brasileiro com processo eletrônico, já existem pelo menos
16 tribunais de justiça, que utilizam sistemas diversos com inteligência
artificial para automatização de rotinas. Porém, nenhum com capacidade
de julgamento (ainda). Mas o maior expoente para esse caminho, com
certeza é o “VICTOR”, o projeto de IA utilizado pelo Supremo Tribunal
Federal, que em seu estado atual compila (lendo e interpretando as peças

23 Tudo sobre inteligência artificial: 10 fatos que você precisa saber. Disponível em:
https://www.techtudo.com.br/google/amp/listas/2018/05/tudo-sobre-inteligencia-
artificial-10-fatos-que-voce-precisa-saber.ghtml. Acesso em: 12 mar. 2020.
24 New analysis shows over 99 percent of the women on Ashley Madison were fake.
Disponível em: https://www.extremetech.com/internet/213019-new-analysis-shows-
over-99-percent-of-the-women-on-ashley-madison-were-fake. Acesso em: 12 mar.
2020.
25 Can AI Be a Fair Judge in Court? Estonia Thinks So. Wired. Disponível em:
https://www.wired.com/story/can-ai-be-fair-judge-court-estonia-thinks-so/. Acesso
em: 12 mar. 2020.
352
O panorama geral entre Inteligência Artificial e a Sociologia
processuais sem padrão algum no Brasil) todos os processos que têm os
mesmos assuntos para julgamentos maciços.26
Porém, é necessário ressaltar que há certas preocupações quanto a utili-
zação da IA pelo sistema estatal, principalmente em relação ao aumento da
vigilância estatal o que nos levam a refletir a que ponto estamos como so-
ciedade.
Por exemplo, está cada vez mais comum a utilização de softwares de re-
conhecimento facial para monitoramento de segurança pública. Este re-
curso é cada vez mais utilizado pelas polícias do mundo todo, inclusive no
Brasil27, para captura de eventuais foragidos da justiça. Em primeiro mo-
mento, nosso pensamento é de que sem dúvidas é um recurso interessante
para ser utilizado, reduzindo a presença física ostensiva do Estado.
Contudo, a preocupação pertinente acaba sendo sobre a que ponto po-
demos confiar de fato nesses sistemas e o quanto eles refletem em nossa
sociedade. Principalmente os sistemas que concernem em utilizar técnicas
de escaneamento facial utilizando IA para aprender e aumentar a acurácia
dos escaneamentos.
Em exemplos práticos, no ano de 2015, o Google teve que se desculpar
publicamente, depois que sua IA começou a classificar fotos de pessoas
negras como Gorilas.28 Outro exemplo que devemos trazer é que no ano de
2018 uma ONG que luta pela liberdade civil nos Estados Unidos da Amé-

26 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Judiciário ganha agilidade com uso de inteli-
gência artificial. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/judiciario-ganha-agilidade-
com-uso-de-inteligencia-artificial/. Acesso em: 12 mar. 2020. Acesso em: 12 mar.
2020.
27 Reconhecimento facial encontra foragidos no Carnaval de Salvador. Disponível em:
https://www.tecmundo.com.br/seguranca/150617-reconhecimento-facial-encontra-
foragidos-carnaval-salvador.htm. Acesso em: 12 mar. 2020.
28 Google Photos Mistakenly Labels Black People ‘Gorilas’. Disponível em:
https://bits.blogs.nytimes.com/2015/07/01/google-photos-mistakenly-labels-black-
people-gorillas/. Acesso em: 12 mar. 2020.
353
Rafael Escrich · Guilherme Reis
rica (EUA) fez um teste de reconhecimento facial com base em I.A. com
um software da Amazon (esse mesmo sistema é utilizado em várias polí-
cias no país citado). No experimento, escanearam todos os 535 membros
do Congresso Nacional dos EUA. O resultado foi que o software confun-
diu 28 desses membros com criminosos, e o mais assustador, porém não
surpreendente, é que a pesquisa resultou numa taxa de erro de 5% para
pessoas brancas e 39% para pessoas negras.29
No ano de 2016, a Microsoft colocou deliberadamente no Twitter, um
robô com inteligência artificial baseada em Machine Learning para intera-
gir com o público. Em apenas um dia o projeto foi desconectado da inter-
net. O motivo? A IA apenas interagindo com as pessoas se tornou racista e
xenofóbica.30
O que todos esses exemplos têm em comum, é o simples fato de que a
Inteligência Artificial como a desenvolvemos hoje, com aprendizado de
máquina, requer fornecimento constante de conteúdo para seu banco de
dados. E quanto mais dados para consumir, maior será o desenvolvimento
da sua personalidade, acurácia, e sua “inteligência” será moldada.
E neste sentido que vêm todas as preocupações concernentes a utiliza-
ção de I.A para controle social do estado. Em termos de história de nossa
sociedade, temos muito recentes problemas sociais sérios, como um ra-
cismo institucionalizado em nossos Estados.
Então se você alimenta de conhecimento uma Inteligência artificial
com um banco de dados contaminado com a face mais impura do ser hu-
mano, totalmente ausente de inteligência social, esta IA será tão impura e

29 Amazon sem querer mostrou por que não deveria oferecer seu reconhecimento facial
para a polícia. Disponível em: https://gizmodo.uol.com.br/amazon-reconhecimento-
facial-policia/. Acesso em: 12 mar. 2020.
30 Twitter taught Microsoft’s AI chatbot to be a racist asshole in less than a day. Dispo-
nível em: https://www.theverge.com/2016/3/24/11297050/tay-microsoft-chatbot-
racist. Acesso em: 12 mar. 2020.
354
O panorama geral entre Inteligência Artificial e a Sociologia
ainda mais sincera quanto o ser humano. Uma vez que nós como pessoas
temos a capacidade de disfarçar ou ignorar que essas realidades são inexis-
tentes, mesmo convivendo com elas ou lutando contra elas diariamente.
Basicamente se assemelha ao que no direito no âmbito do processo pe-
nal é chamado de Teoria do Fruto da Árvore Envenenada, onde a conta-
minação (ausência de inteligência social) da árvore (prova), que nesse caso
substituímos pelo Banco de Dados, é o suficiente para contaminar todo o
fruto que é o resultado obtido, no exemplo seria a inteligência artificial.
Quanto a questão de discriminação de uma I.A, também vale uma res-
salva que mesmo que não haja esse vício estrutural (ausência de inteligên-
cia social) no banco de dados fornecido para a análise, ainda assim, é pos-
sível que ela seja discriminatória, porque é possível que os métodos e mo-
delos matemáticos utilizados de decisões automatizadas sejam por meio de
generalização desses dados para determinado perfil, bem como o perfil de
quem a programou para analisar os dados.31
A vigilância com uso da inteligência artificial, não ocorre apenas por
meio do Estado, mas também dos meios de relações sociais em que vive-
mos. Podemos afirmar que o desenvolvimento da tecnologia casou muito
com o avanço e a consolidação da sociedade da informação na qual vive-
mos. Uma vez que o tomamos decisões em caráter semi-automático do
processamento de informações diante da intensidade de fluxo nas quais
elas chegam a nós.32
Nos mercados econômicos que estamos envolvidos, a inteligência arti-
ficial é responsável por nos fornecer conteúdos de forma automatizada
através das nossas interações na internet ou dispositivos conectados a ela

31 DONEDA, Danilo; MENDES, Laura Schertel; SOUZA, Carlos Affonso de; ANDRA-
DE, Norberto Nuno Gomes de. Considerações iniciais sobre inteligência artificial,
ética e autonomia pessoal. Pensar: Revista de Ciências Jurídicas, Fortaleza, v. 23, n. 4,
p. 12, out./dez. 2018.
32 VAN DIJK, Jan. The network society. 2. ed. Londres: Sage Publications, 2006, p. 19.
355
Rafael Escrich · Guilherme Reis
(ex. Capturas de áudios ambientes ou geolocalização e geolocalização de
fotografias). Isso permite que anúncios sejam direcionados para determi-
nados perfis ou atividades, como troca de mensagens ou conversas. E no
ponto de vista político, aprendemos com o escândalo do Facebook e a
Cambridge Analytica33 o quanto isso pode influenciar nossa psique para
escolha de determinado político, fato grave que impactará em toda a soci-
edade e nossas democracias modernas que ainda estão se consolidando.
Os riscos existenciais da IA são menos prementes, mas potencialmente
mais graves. Um malware alimentado por inteligência artificial usado co-
mo arma cibernética pode devastar os países em um ataque direcionado,
causando problemas de longo prazo para esse país, não apenas no nível
administrativo ou de infra-estrutura, mas também para os residentes que
tentam seguir suas vidas diárias. Além disso se houver algum erro na codi-
ficação ou na sua implantação existe o risco dos criadores perderem o con-
trole do malware, que pode se voltar contra qualquer pessoa e todos, inclu-
indo eles mesmos.
Grandes empresários e pesquisadores renomados atuais como Elon
Musk, CEO da Tesla e da Space X, alerta que a IA pode um dia se tornar
uma ameaça à humanidade e ressalta a necessidade de sua regulamentação
para que armas autônomas sejam banidas, armamentos operados por sof-
twares inteligentes não sejam uma ameaça à vida global. Também o físico,
Stephen Hawking, manifestava sua preocupação com o poder destrutivo
de armas independentes e temia a substituição da força de trabalho huma-
na sem a criação de novas vagas. Bill Gates concorda com essas afirmações
e reforça a preocupação com a regulamentação para que não haja um co-
lapso futuro.
Por fim, existe um experimento mental assustador conhecido como Ba-

33 Fresh Cambridge Analytica leak ‘shows global manipulation is out of control’. Dis-
ponível em: https://www.theguardian.com/uk-news/2020/jan/04/cambridge-
analytica-data-leak-global-election-manipulation. Acesso em: 12 mar. 2020.
356
O panorama geral entre Inteligência Artificial e a Sociologia
silisco de Roko. A ideia é que, no futuro, uma poderosa IA possa torturar a
todos que não a ajudaram de alguma forma a ser criada. Apenas o fato de
saber sobre o basilisco colocaria alguém em perigo, já que a IA passaria a
incluir tal pessoa em suas simulações. O experimento está fundamentado
em teorias complexas, mas que remetem a uma noção de que uma IA não
teria limites por tentar tornar o mundo cada vez melhor. Com as ambigui-
dades da tarefa e sem a moral humana, ela faria de tudo que considerasse
necessário, inclusive machucar pessoas. Assim os que não facilitaram a sua
existência e desenvolvimento estariam sob ameaça.34
Estes foram apenas alguns exemplos, relativamente problemáticos com
o uso da Inteligência Artificial para provocar o tensionamento no pensa-
mento da nossa sociedade atual. Inegavelmente a quantidade oposta a eles,
ou seja, de benefícios que elas nos trazem ao nosso dia-a-dia é indefinida-
mente maior, mas estas ficarão para um outro estudo.

8. Considerações finais
Embora ainda seja algo muito recente e que vem se discutindo a cada
dia, é de comum acordo que para evitar consequências econômicas e exis-
tenciais, os processos relacionados a IA sejam submetidos a regulamenta-
ções legais.
Se existirem robôs inteligentes no futuro, quais regras vão garantir que
as empresas que fabricarem esses artefatos tecnológicos não se utilizem de
fraquezas humanas para obterem vantagens competitivas, por exemplo:
robôs amantes para pessoas solitárias, robôs crianças para pessoas que

34 O Basilisico de Roko foi proposto em um fórum de discussão de LessWrong, uma


plataforma criada pelo pesquisador Eliezer Yudkowsky, que está à frente do Instituto
de Pesquisa de Inteligência de Máquina (MIRI). Roko's basilisk. Less Wrong Wiki.
Disponível em: https://wiki.lesswrong.com/wiki/Roko's_basilisk. Acesso em: 12 mar.
2020.

357
Rafael Escrich · Guilherme Reis
perderam os filhos, ou até mesmo, como já aconteceu, perfis falsos criados
em redes sociais de relacionamentos pela própria empresa, para aumentar
a quantidade de assinantes do serviço.
Essas vantagens competitivas obtidas à partir do uso dessa nova tecno-
logia podem ser tão desproporcionais que as empresas que não a possuí-
rem não terão nenhuma chance no mercado o que pode causar uma dimi-
nuição na competição e por consequência um monopólio tecnológico.
A inteligência artifical veio para ficar, pelo menos enquanto consegui-
mos distinguir sua artificialidade. Sem dúvidas, há muito mais benefícios
trazidos pela sua implementação do que malefícios, o propósito de trazer
esses questionamentos éticos é justamente para o tensionamento do que de
fato precisamos pensar em como estamos como sociedade e se o que esta-
mos fazendo hoje é de fato ético o suficiente para vivermos em harmonia.
O futuro é incerto e ainda não foi definido mas pode-se atuar de forma
que ele se torne menos desigual e que as tecnologias sendo criadas hoje
possam ser inclusivas e realmente transformativas na vida das pessoas e no
meio ambiente e a nossa sociedade precisa se adaptar cada vez mais aos
desafios que ele nos reserva.

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__________________________________________________

361
OS DESAFIOS DA ÉTICA E DA PRIVACIDADE
FACE AO DESENVOLVIMENTO DA
INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL

16
Aline Ferreira Costa Carneiro
Juliana Gomes Pinto Borges

1. Introdução
A constante e rápida transformação digital e avanço tecnológico trazem
consigo problemáticas e discussões em torno da privacidade e da ética dos
seres humanos, e questionamentos no sentido de como evoluir a sociedade
por meio do avanço tecnológico sem que a privacidade e os princípios
éticos dos integrantes desta sociedade sejam violados.
Assim, o que antes se entendia por ética e por privacidade vem passan-
do por novas discussões e novos conceitos, a fim de abranger as mudanças
trazidas pela revolução 4.0, mormente pela inteligência artificial (IA), que
é objeto do nosso estudo, uma vez que com o avanço cada vez mais rápido
da tecnologia, as estruturas sociais e as necessidades do ser humano mu-
dam na mesma proporção.
No presente trabalho, nos propomos a discutir, ainda que brevemente,
pois não se tem a pretensão de esgotar o assunto, as nuances que envolvem
a evolução história, a partir de um breve contexto, da ética, da privacidade
e da inteligência artificial.
363
Aline Ferreira Costa Carneiro · Juliana Gomes Pinto Borges
Ainda sem a pretensão de esgotar o tema, nos propomos a analisar o
desenvolvimento da inteligência artificial sob as novas perspectivas da
ética e da privacidade, inclusive sob o parâmetro da proteção de dados
pessoais e o quanto esta afeta o conceito atual de privacidade.

2. Conceitos fundamentais
Analisar o contexto histórico que envolve os conceitos sobre a ética, a
privacidade e a IA, ainda que brevemente, é importante para que possamos
entender os caminhos que deverão guiar o avanço da tecnologia.

2.1. Evolução do conceito de privacidade: breve contexto histórico.


Por muito tempo, o direito referiu-se à privacidade como sendo algo
associado ao “isolamento, refúgio, ou segredo”1, cujo marco inicial a esse
entendimento se deu pela publicação do proeminente artigo de Samuel
Warren e Louis Brandeis, The right to privacy2, que associou a privacidade
ao “direito de ser deixado sozinho”, ou “direito de ser deixado em paz”
(“the right to be let alone”).
Com a ascensão das novas tecnologias e suas repercussões em todas as
esferas da vida privada e pública, fez-se necessário olhar a tutela dos direi-
tos subjetivos e extrapatrimoniais sob novas perspectivas. A privacidade
passa então por transformações conceituais, na medida em que as necessi-
dades íntimas e privadas do ser humano também são transmudadas com a
revolução tecnológica.
Stefano Rodotà, em sua renomada obra traduzida como “A Vida na So-

1 DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais: elementos da forma-


ção da Lei geral de proteção de dados. 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil,
2019, p. 29.
2 WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis D. The right to privacy. Harvard Law
Review, Cambridge, v. 4, n. 5, p. 193-220, dez. 1890.
364
Os desafios da ética e da privacidade face ao desenvolvimento da IA
ciedade da Vigilância”3, brilhantemente demonstra a divisão entre a noção
de privacidade do século XIX e a de hoje.
O conceito de privacidade consistia em um viés mais físico, como a ga-
rantia contra intervenções arbitrárias no domicílio ou correspondências,
na família, mas também abarcava a tutela à vida privada contra ofensas
ilegais à honra ou à reputação.
Na medida em que o desenvolvimento econômico se expande com as
novas tecnologias, o conceito do que se entende por privacidade passa por
novas leituras. A privacidade hoje não possui a mesma definição do que
tinha há anos, e isso porque o desenvolvimento tecnológico e a inovação
trazem novos percalços relacionados à vida privada.
Como se verá adiante, a noção de privacidade atualmente está intima-
mente ligada à noção de proteção de dados pessoais, eis que, em uma soci-
edade cada vez mais movida a dados, surgem problemáticas relativas ao
impacto que o tratamento massivo de dados pessoais causa na privacidade
das pessoas.

2.2. A linha tênue entre privacidade e proteção de dados pessoais


atualmente
Com o tratamento de um volume massivo de dados é “possível conhe-
cer cada vez mais os indivíduos em seus hábitos, preferências, desejos e
tentando, assim, direcionar suas escolhas”4. E tal possibilidade faz com que
as pessoas tenham sua vida privada cada vez mais atingida, já que infor-
mações que podem identificar a sua personalidade são utilizadas sobrema-
neira a fim de influenciar suas próprias escolhas.

3 RODOTÁ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância: a privacidade hoje. Organiza-


ção, seleção e apresentação: Maria Celina Bodin de Moraes. Tradução: Danilo Done-
da e Luciana Cabral Doneda. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
4 MAGRANI, Eduardo. Entre dados e robôs: ética e privacidade na era da hiperconec-
tividade. 2. ed. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2019, p. 35.
365
Aline Ferreira Costa Carneiro · Juliana Gomes Pinto Borges
A criação de perfis de comportamento com a manipulação dos dados
pessoais coletados pode impactar seriamente a liberdade e a privacidade
dos indivíduos. Considerando a evolução tecnológica, o jurista italiano
Stefano Rodotà defende uma redefinição do conceito de privacidade, de
modo que, “na sociedade da informação tendem a prevalecer definições
funcionais da privacidade que, de diversas formas, fazem referência à pos-
sibilidade de um sujeito conhecer, controlar, endereçar, interromper o
fluxo das informações a ele relacionadas”5.
A noção de privacidade atualmente é tida como o “direito à autodeter-
minação informativa”, que na definição de Stefano Rodotà, é “o direito de
manter controle sobre as próprias informações”6, o que nos leva à inter-
pretação de que a privacidade na era do desenvolvimento tecnológico de-
pende de dar ao indivíduo autonomia para “direcionar seu próprio querer
sem ser determinado por outros”7.
O uso massivo de dados como modelo de negócios permite o desenvol-
vimento tecnológico, que inegavelmente traz inúmeros benefícios aos in-
divíduos e à sociedade como um todo, no entanto, o uso abusivo desses
dados pode ferir os direitos fundamentais dos indivíduos, especialmente o
direito à privacidade. Eduardo Magrani adverte que “[...] se, por um lado,
a tecnologia traz inegáveis benefícios à sociedade como um todo, cria, por
outro lado, problemas à proteção da privacidade”8.

5 RODOTÁ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância: a privacidade hoje. Organiza-


ção, seleção e apresentação: Maria Celina Bodin de Moraes. Tradução de Danilo Do-
neda e Luciana Cabral Doneda. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 92.
6 RODOTÁ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância: a privacidade hoje. Organiza-
ção, seleção e apresentação: Maria Celina Bodin de Moraes. Tradução: Danilo Done-
da e Luciana Cabral Doneda. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 92.
7 MAGRANI, Eduardo. Entre dados e robôs: ética e privacidade na era da hiperconec-
tividade. 2. ed. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2019, p. 88.
8 MAGRANI, Eduardo. Entre dados e robôs: ética e privacidade na era da hiperconec-
tividade. 2. ed. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2019, p. 89.
366
Os desafios da ética e da privacidade face ao desenvolvimento da IA
Stefano Rodotà explica e adverte que “a tecnologia ajuda a moldar uma
esfera privada mais rica, porém mais frágil, cada vez mais exposta a amea-
ças: daí deriva a necessidade do fortalecimento contínuo de sua proteção
jurídica, da ampliação das fronteiras do direito à privacidade”9.
Com isso, vê-se que o desenvolvimento econômico a partir de novas
tecnologias e inovações exige uma proteção específica da privacidade na
mesma proporção, bem como uma ampliação do seu conceito, diante da
maior fragilidade da vida privada, dando ao indivíduo uma autonomia
efetiva sobre suas próprias informações.

2.3. Ética e suas novas perspectivas


Pensar em ética nos remete a condutas pautadas em valores, princípios
e normatizações. É a construção da moral, do agir humano enquanto ser
que vive em sociedade e enquanto ser pensante, que possui poder de esco-
lha.
Hans Jonas explica que “a significação ética dizia respeito ao relacio-
namento direto de homem com homem, inclusive o de cada homem con-
sigo mesmo; toda ética tradicional é antropocêntrica”10.
Em relação à noção de espaço e de tempo, a ética era tida como um agir
imediatista, pela qual se escolhia uma conduta de acordo com as situações
que surgiam com a convivência humana.
O bem e o mal, com o qual o agir tinha de se preocupar, evidenciavam-se
na ação, seja na própria práxis ou em seu alcance imediato, e não requeri-
am um planejamento de longo prazo. Essa proximidade de objetos era vá-

9 RODOTÁ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância: a privacidade hoje. Organiza-


ção, seleção e apresentação: Maria Celina Bodin de Moraes. Tradução de Danilo Do-
neda e Luciana Cabral Doneda. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 95.
10 JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização
tecnológica. Tradução do original alemão Marijane Lisboa, Luiz Barros Montez. –
Rio de Janeiro: Contraponto/PUC-Rio, 2006, p. 35.
367
Aline Ferreira Costa Carneiro · Juliana Gomes Pinto Borges
lida tanto para o tempo quanto para o espaço. O alcance efetivo da ação
era pequeno, o intervalo de tempo para previsão, definição de objetivo e
imputabilidade era curto, e limitado o controle sobre as circunstâncias. O
comportamento correto possuía seus critérios imediatos e sua consecução
quase imediata. O longo trajeto das consequências ficava ao critério do
acaso, do destino ou da providência. Por conseguinte, a ética tinha a ver
com o aqui e agora, como as ocasiões se apresentavam aos homens, com as
situações recorrentes e típicas da vida privada e pública. O homem bom
era o que se defrontava virtuosa e sabiamente com essas ocasiões, que cul-
tivava em si a capacidade para tal, e que no mais conformava-se com o
desconhecido.11
Com o avanço da ciência e da tecnologia, as condutas humanas e soci-
ais foram se modificando de tal maneira que a ética tradicional, que abar-
cava sobremaneira o imediatismo, não mais se sustentava, na medida em
que questões de vulnerabilidade futurista passaram a ser preocupação do
ser humano, diante do avanço tecnológico. Hans Jonas defende que “já
que a ética tem a ver com o agir, a consequência lógica disso é que a natu-
reza modificada do agir humano também impõe uma modificação na éti-
ca”12.
Conforme bem pontua Eduarda Rosas, “embora conceitos como ética,
justiça e dignidade sejam tão antigos quanto a memória humana, as cir-
cunstâncias históricas, sobretudo as que inauguram mudanças sociais, e o
desenvolvimento tecnológico alteram suas leituras”13. Nesse viés, pensar

11 JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização


tecnológica. Tradução do original alemão Marijane Lisboa, Luiz Barros Montez. –
Rio de Janeiro: Contraponto/PUC-Rio, 2006, p. 36.
12 JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização
tecnológica. Tradução do original alemão Marijane Lisboa, Luiz Barros Montez. –
Rio de Janeiro: Contraponto/PUC-Rio, 2006, p. 29.
13 ROSAS, Eduarda Chacon. Alcance resultados, mas não se esqueça dos propósitos: a
dignidade, a ética e os elevados fins. In: MALDONADO, Viviane Nóbrega; FEIGEL-
SON, Bruno (Coords.). Advocacia 4.0. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p.
368
Os desafios da ética e da privacidade face ao desenvolvimento da IA
em ética diante do contexto de intensa revolução tecnológica, especifica-
mente com a ascensão da inteligência artificial, tem por objetivo trazer à
discussão quais valores, princípios, normatizações e agir morais funda-
mentarão as decisões automatizadas e a relação entre máquina e ser hu-
mano.
Em uma sociedade cada vez mais moldada por algoritmos, big data, in-
ternet das coisas e inteligência artificial, nos vem o desafio de pensar em
uma ética que alcance todos os impactos trazidos pela revolução 4.0 ao ser
humano enquanto pessoa individual e enquanto sociedade.
Daí se falar em ética das coisas, na medida em que os princípios éticos
deverão nortear não apenas as condutas humanas propriamente ditas,
como também as condutas manifestadas pela inteligência artificial.

2.4. Ética da Inteligência Artificial


Para se pensar em uma ética aplicada ao agir da inteligência artificial,
Eduardo Magrani14 propõe a análise entre as teorias éticas do utilitarismo e
da deontologia.
O autor explica que a visão utilitarista clássica, preconizada por Jeremy
Bentham em 178115, considera um ato moralmente correto de acordo com
as suas consequências, a partir de uma análise de bem-estar geral e sob
uma perspectiva social.
Magrani ao citar John Rawls16, aduz que a maximização do bem coleti-

200.
14 MAGRANI, Eduardo. Entre dados e robôs: ética e privacidade na era da hiperconec-
tividade. 2. ed. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2019.
15 BENTHAM, Jeremy. Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979. apud MAGRA-
NI, Eduardo. Entre dados e robôs: ética e privacidade na era da hiperconectividade. 2.
ed. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2019, p. 139-140.
16 RAWLS, John. A theory of justice. Harvard. 1971. apud MAGRANI, Eduardo. Entre
dados e robôs: ética e privacidade na era da hiperconectividade. 2. ed. Porto Alegre:
369
Aline Ferreira Costa Carneiro · Juliana Gomes Pinto Borges
vo é o que justifica a teoria do utilitarismo, no entanto, o direito individual
não é levado em consideração ou não é considerado legítimo ao julgar se
um ato é moral ou não, o que pode gerar injustiças. Em suas palavras:
[...] segundo Rawls, a teoria de justificação do utilitarismo está centrada na
maximização do bem coletivo. Apesar de, a princípio, parecer positivo,
Rawls atenta para o fato de haver o preterimento do direito que cada indi-
víduo possui em face do direito dito social, gerando situações injustas na
medida em que a teoria não leva em consideração o modo de distribuição
do bem geral entre cada cidadão individualmente compreendido.
[...] Isto é, de acordo com o autor, tal teoria caracteriza a maximização da
felicidade como aquilo que é moralmente bom sem se atentar para o que é
justo e isso, no fim das contas, tem um impacto direto negativo na socie-
dade.17
Ainda, Eduardo Magrani adverte que, ao considerar um ato moral vi-
sando apenas os seus resultados, “o utilitarismo clássico parece exigir que
os agentes calculem todas as consequências que seus atos terão no futuro.
Entretanto, isso é, via de regra, impossível, sobretudo na área tecnológi-
ca”18.
Em contrapartida, a teoria deontológica está centrada na ação do agen-
te, independentemente de suas consequências. Esta teoria critica o utilita-
rismo clássico uma vez que “escolhas consequencialistas menosprezam
direitos individuais e, desta forma, mensuram quais vidas ou ‘felicidades’
valem mais – o que não deve ser feito, visto que cada indivíduo deve ser
considerado como um fim em si mesmo”19.

Arquipélago Editorial, 2019, p. 141.


17 MAGRANI, Eduardo. Entre dados e robôs: ética e privacidade na era da hiperconec-
tividade. 2. ed. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2019, p. 141-142.
18 MAGRANI, Eduardo. Entre dados e robôs: ética e privacidade na era da hiperconec-
tividade. 2. ed. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2019, p. 143.
19 MAGRANI, Eduardo. Entre dados e robôs: ética e privacidade na era da hiperconec-
tividade. 2. ed. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2019, p.143-144.
370
Os desafios da ética e da privacidade face ao desenvolvimento da IA
Magrani adverte que “quando pensamos em novas tecnologias, envol-
vendo novas capacidades de agência como autoprogramação, machine
learning e deep learnig, nos deparamos com invenções que não permitem,
muitas vezes, a previsão de consequências”20. Assim, na medida em que a
imprevisibilidade de consequências aumenta com o avanço das novas tec-
nologias, mormente com a IA, pela qual se busca criar agentes com capa-
cidade cada vez mais autônoma de pensar e agir de forma semelhante a
humanos, Magrani defende que “para fins de orientar os avanços tecnoló-
gicos, a corrente utilitária não deve ser considerada adequada para uma
aplicação isolada”21.
Isso porque não se deve pensar no ser humano como um meio para o
avanço tecnológico, mas como um fim em si mesmo, de modo que cada
pessoa deve estar em conformidade com o dever moral, que segundo Ma-
grani, “deve ser obedecido por cada agente da sociedade, independente-
mente do sopesamento das consequências”22.
Tem-se, a partir da reflexão trazida por Magrani, que cada ser humano
deve ser responsável por suas escolhas diante de um cenário de ascensão
de novas tecnologias, na medida em que o dever moral deve ser intrínseco
a cada pessoa, “de modo que os efeitos da sua ação não sejam destrutivos
para a possibilidade futura de vida humana na Terra”23.
Pensarmos em ética das coisas é importante na medida em que busca-
mos maior clareza sobre quais princípios, deveres éticos e responsabilida-
des consideraremos atribuir aos seres humanos e aos agentes desenvolvi-

20 MAGRANI, Eduardo. Entre dados e robôs: ética e privacidade na era da hiperconec-


tividade. 2. ed. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2019, p.148.
21 MAGRANI, Eduardo. Entre dados e robôs: ética e privacidade na era da hiperconec-
tividade. 2. ed. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2019, p.148.
22 MAGRANI, Eduardo. Entre dados e robôs: ética e privacidade na era da hiperconec-
tividade. 2. ed. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2019, p.147.
23 MAGRANI, Eduardo. Entre dados e robôs: ética e privacidade na era da hiperconec-
tividade. 2. ed. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2019, p.150.
371
Aline Ferreira Costa Carneiro · Juliana Gomes Pinto Borges
dos a partir de inteligência artificial, visando reduzir eventuais impactos
negativos na sociedade.
2.3. Inteligência Artificial: o que foi, o que é e o que esperar.
A inteligência artificial tem sido alvo de discussões desde meados dos
anos 50, sendo que suas técnicas sempre tiveram como principal funda-
mento a tentativa de espelhamento da inteligência humana em robôs.
Com o passar dos anos os modelos de desenvolvimento da IA foram
aprimorados e subdivididos em duas abordagens: (i) baseada em regras:
computadores aprendendo a lógica da IA por meio de codificação de re-
gras lógicas; (ii) redes neurais: imitação do cérebro humano através da
inserção de inúmeras possibilidades sobre uma mesma situação, fazendo
com que tal rede neural identifique padrões no interior dos dados.
Segundo Kai-Fu Lee, os modelos supramencionados podem ser dife-
renciados da seguinte forma:
As diferenças sobre as duas visões podem ser notadas no modo como elas
tratam de um problema simples: identificar se existe um gato em uma
imagem. A abordagem baseada em regras tentaria estabelecer regras nos
moldes “se-então” para ajudar o programa a tomar uma decisão: “Se há
duas formas triangulares em cima de uma forma circular, então provavel-
mente há um gato na foto”. A abordagem da rede neural, ao contrário,
alimentaria o programa com milhões de amostras de fotos rotuladas como
“gato” ou “sem gato”, permitindo que o programa descubra sozinho quais
recursos nos milhões de imagens estão mais correlacionados com o rótulo
“gato”.24
Entre idas e vindas dos modelos de desenvolvimento baseados em re-
gras e redes neurais, foi nos anos 2000 que o modelo baseado em redes
neurais ganhou força mundial, em decorrência da evolução das possibili-

24 LEE, Kai Fu. Inteligência Artificial: Como os robôs estão mudando o mundo, a forma
como amamos, nos relacionamos, trabalhamos e vivemos. Tradução de Marcelo Bar-
bão. Rio de Janeiro: Globo, 2019, p. 29.
372
Os desafios da ética e da privacidade face ao desenvolvimento da IA
dades de matéria prima para alimentar as redes neurais: grande quantida-
de de poder computacional e geração de dados. Os dados passaram a
“treinar” programas, a fim de que estes reconhecessem padrões e o poder
computacional, por sua vez, fez com que os programas analisassem tais
padrões em altíssima velocidade.
Dentro desse contexto, a IA é retirada de seu status invernal, onde não
se vislumbrava em sua essência uma contribuição relevante para a socie-
dade, e passa a resolver uma série de problemas do dia a dia dos indivíduos
em suas relações interpessoais, consumeristas e profissionais, tomando,
inclusive, decisões em nome das pessoas.
Neste sentido, Erik Nybø aduz:
[...] Ao longo do livro tratamos de diversos casos em que algoritmos passa-
ram a ser utilizados no dia-a-dia das pessoas, empresas e governos. A pri-
meira razão é o reconhecimento de que o humano tem uma capacidade
limitada de processamento de dados quando comparado com algoritmos
que alimentam as máquinas. Já devemos trabalhar em uma lógica de apro-
veitamento das melhores competências de cada um, delegamos às máqui-
nas funções em que elas aparentemente são melhores, e guardamos conos-
co aquelas funções que ainda não podem ser resolvidas pelas primeiras.25
Hoje, é possível identificar inúmeros programas que, por meio de algo-
ritmos, auxiliam a sociedade em atividades como tradução de documentos,
levantamento de dados em alta escala contribuindo com identificações
comportamentais de instituições e até pessoas, bem como tomada de deci-
sões, reconhecimento de fraudes, dentre inúmeras outras possibilidades.
Com isso, vimos que estamos vivendo a quarta revolução industrial
protagonizada pela tecnologia, massificação de dados e a influência da
inteligência artificial. A tendência é que cada vez mais as atividades inte-

25 NYBØ, Erik Fontenele. O poder dos algoritmos: Como os algoritmos influenciam as


decisões e a vida das pessoas, das empresas e das instituições na Era Digital. São Pau-
lo: Enlaw, 2019, p. 129.
373
Aline Ferreira Costa Carneiro · Juliana Gomes Pinto Borges
lectuais e braçais sejam substituídas pela IA, e os algoritmos influenciem
nossos gostos, hábitos e aptidões vivenciais.

3. A Quarta Revolução Industrial e os desafios da ascensão da


Inteligência Artificial
Como vimos, a tecnologia, especialmente a inteligência artificial, que é
objeto de nosso estudo, está cada vez mais inserida em nosso cotidiano e
cada vez mais apta a reproduzir as caraterísticas intrínsecas dos seres hu-
manos e assim, influenciar as nossas escolhas. Com isso, surgem desafios
relacionados à privacidade das pessoas, à proteção de dados pessoais, ao
equilíbrio necessário entre as regulamentações e o avanço da tecnologia e
ainda, aos limites e a responsabilidade atribuídos à inteligência artificial.

3.1. O equilíbrio entre a privacidade, a proteção de dados pessoais e o


desenvolvimento da inteligência artificial
No ordenamento jurídico brasileiro, a privacidade é um direito funda-
mental, previsto no artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal, que proíbe
a inviolabilidade da vida privada.
A privacidade também é tida como um direito da personalidade, dis-
posto no artigo 21 do Código Civil, ao dispor que “a vida privada da pes-
soa natural é inviolável”.
O Marco Civil da Internet (Lei n.º 12.965/14), apesar de não se tratar de
uma normativa geral de proteção de dados, trata da proteção de dados
pessoais principalmente como um princípio norteador do uso da internet
no Brasil, ao lado de outros princípios como a garantia da liberdade de
expressão e a proteção da privacidade.
Já a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei n.º 13.709/18), que estruturou
a proteção de dados pessoais no ordenamento jurídico brasileiro, tem co-
mo objetivo proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacida-
374
Os desafios da ética e da privacidade face ao desenvolvimento da IA
de dos indivíduos, sendo que tal proteção tem como um de seus funda-
mentos o próprio desenvolvimento econômico, tecnológico e a inovação.
Constata-se, portanto, que tanto o Marco Civil da Internet, quanto a
Lei Geral de Proteção de Dados estão baseados em direitos constitucionais
fundamentais, todos decorrentes do princípio da dignidade da pessoa hu-
mana, cuja aplicação é de extrema importância no desenvolvimento da
inteligência artificial.
A interpretação que deve ser dada às legislações que tratam da proteção
da privacidade e dos dados pessoais não pode ser rígida a ponto de impe-
dir o avanço tecnológico e todo o desenvolvimento positivo que isto é ca-
paz de gerar na nossa sociedade, daí a importância de se buscar um equilí-
brio entre a privacidade, a proteção de dados pessoais e o desenvolvimento
da inteligência artificial.
É importante também examinarmos essas regulações sob o ponto de vista
do impacto no fomento de inovações tecnológicas, uma vez que não seria
benéfico para a sociedade que as leis existentes trouxessem disposições ex-
tremamente rígidas que impedissem o desenvolvimento tecnológico e a
inovação26.
Daí, extrai-se que a legislação que protege a privacidade não impede (e
não deve impedir) a evolução da inteligência artificial e de novas tecnolo-
gias, mas apenas busca regular, de modo que os novos modelos de negó-
cios que faz uso massivo de dados possa potencializar o desenvolvimento
tecnológico e ao mesmo tempo respeitar os direitos fundamentais das pes-
soas, mormente o direito à privacidade.

4. Os limites e a responsabilidade da inteligência artificial


Discutir os limites e a responsabilidade da inteligência artificial ainda

26 MAGRANI, Eduardo. Entre dados e robôs: ética e privacidade na era da hiperconec-


tividade. 2. ed. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2019, p. 61-62.
375
Aline Ferreira Costa Carneiro · Juliana Gomes Pinto Borges
demonstra controvérsias de entendimentos. Tal realidade reflete o fato de
que a estrutura comportamental da IA não é totalmente previsível, e ela
envolve tanto fatores e determinações humanas em sua constituição, quan-
to fatores advindos de processamentos digitais, demonstrando complica-
ções ao extrair um nexo causal entre um possível dano e a ação de uma
pessoa ou empresa.
Nesta feita, é essencial que se defina diretrizes e princípios mínimos pa-
ra regular o desenvolvimento de novas tecnologias e produtos que forem
utilizar-se da inteligência artificial.
Pesquisas científicas com enfoque em inteligência artificial têm cresci-
do exponencialmente, principalmente no segmento de produtos que pos-
sam resolver problemas do cotidiano dos indivíduos e ainda, substituir
determinados trabalhos que ainda demandam a força tarefa humana.
No raciocínio de Magrani, Silva e Viola:
Embora não exista um sistema de inteligência artificial que seja comple-
tamente autônomo, imagina-se que, com o desenvolvimento da tecnolo-
gia, é possível que sejam criadas máquinas que terão a capacidade de to-
mar decisões de forma cada vez mais autônoma.27
Neste sentido, em 2017 ocorreu uma grande conferência em Asilo-
mar28, com a presença de renomados investigadores e cientistas das áreas
de inteligência artificial (IA), biotecnologia e tecnologias nucleares que
discutiram os fundamentos e princípios da IA. Tal conferência deu luz a 23
princípios cruciais para a desenvoltura saudável de programas de inteli-
gência artificial, sendo eles:

27 MAGRANI, Eduardo; SILVA, Priscilla; VIOLA, Rafael. Novas perspectivas sobre


Ética e Responsabilidade de Inteligência Artificial. In: FRAZÃO, Ana; MULHOL-
LAND, Caitlin (Coord.). Inteligência Artificial e Direito: ética, regulação e responsa-
bilidade. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 117.
28 Disponível em: https://futureoflife.org/ai-principles/?cn-reloaded=1. Acesso em: 21
fev. 2020.
376
Os desafios da ética e da privacidade face ao desenvolvimento da IA
Research Issues
1) Research Goal: The goal of AI research should be to create not undirected
intelligence, but beneficial intelligence.
2) Research Funding: Investments in AI should be accompanied by funding
for research on ensuring its beneficial use, including thorny questions in
computer science, economics, law, ethics, and social studies, such as:
- How can we make future AI systems highly robust, so that they do what we
want without malfunctioning or getting hacked?
- How can we grow our prosperity through automation while maintaining
people’s resources and purpose?
- How can we update our legal systems to be more fair and efficient, to keep
pace with AI, and to manage the risks associated with AI?
- What set of values should AI be aligned with, and what legal and ethical
status should it have?
3) Science-Policy Link: There should be constructive and healthy exchange
between AI researchers and policy-makers.
4) Research Culture: A culture of cooperation, trust, and transparency
should be fostered among researchers and developers of AI.
5) Race Avoidance: Teams developing AI systems should actively cooperate
to avoid corner-cutting on safety standards.
Ethics and Values
6) Safety: AI systems should be safe and secure throughout their operational
lifetime, and verifiably so where applicable and feasible.
7) Failure Transparency: If an AI system causes harm, it should be possible
to ascertain why.
8) Judicial Transparency: Any involvement by an autonomous system in ju-
dicial decision-making should provide a satisfactory explanation auditable
by a competent human authority.

377
Aline Ferreira Costa Carneiro · Juliana Gomes Pinto Borges
9) Responsibility: Designers and builders of advanced AI systems are stake-
holders in the moral implications of their use, misuse, and actions, with a
responsibility and opportunity to shape those implications.
10) Value Alignment: Highly autonomous AI systems should be designed so
that their goals and behaviors can be assured to align with human values
throughout their operation.
11) Human Values: AI systems should be designed and operated so as to be
compatible with ideals of human dignity, rights, freedoms, and cultural di-
versity.
12) Personal Privacy: People should have the right to access, manage and
control the data they generate, given AI systems’ power to analyze and uti-
lize that data.
13) Liberty and Privacy: The application of AI to personal data must not
unreasonably curtail people’s real or perceived liberty.
14) Shared Benefit: AI technologies should benefit and empower as many
people as possible.
15) Shared Prosperity: The economic prosperity created by AI should be
shared broadly, to benefit all of humanity.
16) Human Control: Humans should choose how and whether to delegate
decisions to AI systems, to accomplish human-chosen objectives.
17) Non-subversion: The power conferred by control of highly advanced AI
systems should respect and improve, rather than subvert, the social and civic
processes on which the health of society depends.
18) AI Arms Race: An arms race in lethal autonomous weapons should be
avoided.
Longer-term Issues
19) Capability Caution: There being no consensus, we should avoid strong
assumptions regarding upper limits on future AI capabilities.
20) Importance: Advanced AI could represent a profound change in the his-

378
Os desafios da ética e da privacidade face ao desenvolvimento da IA
tory of life on Earth, and should be planned for and managed with commen-
surate care and resources.
21) Risks: Risks posed by AI systems, especially catastrophic or existential
risks, must be subject to planning and mitigation efforts commensurate with
their expected impact.
22) Recursive Self-Improvement: AI systems designed to recursively self-
improve or self-replicate in a manner that could lead to rapidly increasing
quality or quantity must be subject to strict safety and control measures.
23) Common Good: Superintelligence should only be developed in the ser-
vice of widely shared ethical ideals, and for the benefit of all humanity ra-
ther than one state or organization.29

29 Tradução livre das autoras. Questões de longo prazo. 1) Objetivo da Pesquisa: O


objetivo da pesquisa em IA não deve ser criar inteligência não direcionada, mas inte-
ligência benéfica. 2) Financiamento da Pesquisa: Investimentos em IA devem ser
acompanhados de financiamentos em pesquisa para assegurar seu uso benéfico, in-
cluindo pesquisas espinhosas em Ciência da Computação, Economia, Leis, Ética, e
Estudos Sociais, tais como: Como podemos tornar futuros sistemas com IA altamen-
te robustos, para que eles façam o que queremos sem mal funcionamento ou serem
hackeados? Como podemos aumentar nossa prosperidade por meio da automação,
mantendo os recursos e a finalidade das pessoas? Como podemos atualizar nossos
sistemas jurídicos para sermos mais justos e eficientes, para manter o ritmo da IA e
para gerenciar os riscos associados à IA? Com que conjunto de valores a IA deve es-
tar alinhada, e que posicionamento legal e ético ela deve ter? 3) Link entre Ciência e
Política: Deve haver um intercâmbio construtivo e saudável entre pesquisadores de
IA e formuladores de políticas. 4) Cultura de pesquisa: Uma cultura de cooperação,
confiança e transparência deve ser fomentada entre pesquisadores e desenvolvedores
de IA. 5) Prevenção de Corrida: Equipes que desenvolvem sistemas de inteligência
artificial devem cooperar ativamente para evitar cortes nas normas de segurança. Éti-
cas e Valores. 6) Segurança: Os sistemas com IA devem ser seguros e protegidos du-
rante toda a sua vida útil operacional, e verificáveis, quando aplicável e viável. 7)
Transparência de falha: Se um sistema com IA causar dano, deve ser possível deter-
minar o motivo. 8) Transparência Judicial: Qualquer envolvimento de um sistema
autônomo na tomada de decisões judiciais deve fornecer uma explicação satisfatória
379
Aline Ferreira Costa Carneiro · Juliana Gomes Pinto Borges
De todos os princípios mencionados, é importante frisar os seguintes
pontos: (i) privacidade: o indivíduo terá o direito de acessar, controlar e

passível de auditoria por uma autoridade humana competente. 9) Responsabilidade:


Designers e construtores de sistemas avançados com IA são partes interessadas nas
implicações morais de seu uso, abuso e ações, com responsabilidade e oportunidade
de moldar essas implicações. 10) Alinhamento de valor: Sistemas com IA altamente
autônomos devem ser projetados de modo que seja assegurado que seus objetivos e
comportamentos serão alinhados com os valores humanos durante toda a operação.
11) Valores Humanos: Os sistemas com IA devem ser projetados e operados de mo-
do a serem compatíveis com os ideais da dignidade humana, direitos, liberdades e di-
versidade cultural. 12) Privacidade Pessoal: As pessoas devem ter o direito de acessar,
gerenciar e controlar os dados que geram, dado o poder dos sistemas com AI de ana-
lisar e utilizar esses dados. 13) Liberdade e Privacidade: A aplicação de IA aos dados
pessoais não deve restringir de forma injustificável a liberdade real ou percebida das
pessoas. 14) Benefício compartilhado: Tecnologias com IA devem beneficiar e capa-
citar o maior número de pessoas possível. 15) Prosperidade compartilhada: A pros-
peridade econômica criada pela IA deve ser compartilhada amplamente, para benefi-
ciar toda a humanidade. 16) Controle Humano: Os seres humanos devem escolher
como e se devem delegar decisões aos sistemas com IA, para realizar os objetivos es-
colhidos pelo homem. 17) Não-subversão: O poder conferido pelo controle de siste-
mas com IA altamente avançada deve respeitar e melhorar, ao invés de subverter, os
processos sociais e cívicos dos quais depende a saúde da sociedade. 18) Corrida Ar-
mada com IA: Deve ser evitada uma corrida armamentista com armas autônomas le-
tais. Questões de Longo Prazo. 19) Atenção na Capacidade: Não havendo consenso,
devemos evitar fortes suposições sobre os limites superiores em futuras capacidades
de IA. 20) Importância: IA avançada poderia representar uma mudança profunda na
história da vida na Terra, e deveria ser planejada e administrada com cuidado e re-
cursos proporcionais. 21) Riscos: Os riscos colocados pelos sistemas com IA, especi-
almente os riscos catastróficos ou existenciais, devem estar sujeitos a esforços de pla-
nejamento e mitigação proporcionais ao impacto esperado. 22) Auto Aprimoramen-
to Recursivo: Sistemas com IA projetados para melhorar ou autorreplicar-se recursi-
vamente de uma maneira que poderia levar a um aumento rápido da qualidade ou
quantidade, devem estar sujeitos a rígidas medidas de segurança e controle. 23) Bem
comum: A superinteligência só deve ser desenvolvida a serviço de ideais éticos am-
plamente compartilhados, e para o benefício de toda a humanidade e não de um es-
tado ou organização.
380
Os desafios da ética e da privacidade face ao desenvolvimento da IA
gerenciar seus dados que eventualmente forem utilizados pela IA, isso
mostra que a utilização da IA em programas traz em seu íntimo a preocu-
pação acerca do limite que a IA deve ter em relação a leitura de um indiví-
duo por meio de seus dados; (ii) uso da IA de modo benéfico: os avanços
da IA só poderão ocorrer caso tenham como principal escopo o benefício
de toda a humanidade.
Não tardará para que a inteligência artificial, já tão presente em nossos
dias, tenha regulamento normativo mundial a fim de evitar atrocidades
humanitárias e que, concomitantemente, estimule ainda mais o desenvol-
vimento intenso da era da tecnologia.

5. Considerações finais
Como ficou demonstrado, enquanto a inteligência artificial se desen-
volve em largos e velozes passos em nossa sociedade cada vez mais digital,
sua regulação e os limites de seu desenvolvimento caminham a passos
lentos e controversos.
E é exatamente em tal controvérsia e lentidão que os princípios éticos e
de privacidade exercerão fundamental influência para a construção tanto
comportamental em relação à IA, quanto de questões regulatórias sem,
efetivamente, impedir o desenvolvimento tecnológico e o avanço expo-
nencial da sociedade em todos os sentidos.
Todo o cenário da sociedade 4.0 demonstra um cunho desafiador que
os legisladores deverão, com muita singularidade e expertise, estruturar
normas e regulamentos em torno da IA, com uma visão humanitária e
evoluída.

Referências
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Aline Ferreira Costa Carneiro · Juliana Gomes Pinto Borges
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383
A ARTE E O DIREITO DE IMAGEM NA
SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO: REFLEXÕES
SOBRE TECNOLOGIAS DA INFORMAÇÃO E
COMUNICAÇÃO E O ‘CASO RICHARD
PRINCE’

17
José Luiz de Moura Faleiros Júnior
Pietra Daneluzzi Quinelato
Júlia Gessner Strack

1. Introdução
A presença da Internet e das novas tecnologias nas relações humanas
modificou sobremaneira o modo pelo qual se realiza qualquer processo de
elaboração artística. Nesse contexto, todo o esforço de formação da cultura
hodierna passa, de certa forma, pelo volume de criações e pelo acesso que
os indivíduos obtêm às inúmeras produções difundidas – o que se avolu-
ma pelas facilidades propiciadas pela rede.
O fenômeno globalizatório também exerce papel destacado nesse cam-
po, pois promove a ruptura de fronteiras físicas e garante o acesso dos
indivíduos a conteúdos produzidos em qualquer localidade. Entretanto, da
mesma forma que se observa uma aproximação inter-relacional, se ampli-
am as possibilidades de eclosão de eventos danosos e de violações a direi-
385
José Faleiros Júnior · Pietra Daneluzzi Quinelato · Júlia Gessner Strack
tos de imagem e a direitos autorais.
Some-se a isso o papel das mídias sociais e ter-se-á uma intrincada rela-
ção jurídica entre direitos de imagem, termos de uso, fair use, limites dos
direitos autorais e a necessidade de tutelar complexas relações jurídicas
para evitar prejuízos ou afrontas a direitos. Este é exatamente o contexto
jurídico que foi atingido pelas ações do artista norte-americano Richard
Prince, que se valeu do argumento de que suas criações artísticas eram
transformativas – embora dependentes de produções de terceiros (princi-
palmente fotografias) –, no intuito de concretizar uma empreitada que se
iniciou no ano de 2008 com o lançamento de trabalhos que reproduziam
vasto acervo de imagens feitas pelo fotógrafo Patrick Cariou.
À época, iniciou-se uma longa disputa judicial em torno dos direitos
autorais e dos limites do fair use no direito norte-americano. E, em que
pese um acordo ter sido firmado entre os dois no ano de 2014, Prince não
cessou suas atividades, tendo se apropriado de imagens postadas por usuá-
rios da rede social Instagram para, acrescentando sutis detalhes às capturas
de tela que realizava, vendê-las em canvas expostos na Gagosian Gallery,
em Nova York, por vultosas quantias.
O modus operandi do artista explorava fotografias postadas por usuá-
rios da mencionada rede social, que eram utilizadas em sua integralidade
para a composição da nova obra, sempre sob o argumento de que o acrés-
cimo de detalhes como comentários, número de likes e outros itens seme-
lhantes representava uma inovação criativa e transformativa que afastaria
qualquer grau de violação a direitos.
Em face de tantos aspectos controversos, surge grande polêmica sobre
quais seriam os limites da liberdade artística, da exploração do direito de
imagem e dos riscos à violação de direitos no intuito de se produzir arte1

1 Em relação ao termo “arte”, Lisiane Ody explica que: “(...) mesmo sem contar com
conceito jurídico expresso, a arte é objeto de normas constitucionais brasileiras, que
estabelecem (i) a liberdade criativa, (ii) a proteção dos direitos do criador, bem como
386
A arte e o direito de imagem na sociedade da informação
na sociedade da informação. A hipótese de pesquisa parte da necessidade
de equacionamento dos direitos autorais e de imagem a partir do filtro
hermenêutico, que a filosofia pode oferecer para trazer maior luz à pro-
blemática.
Assim, o presente ensaio procurará, em breves linhas, apontar direções
para a conciliação dos aspectos indicados. Ao final, serão apresentadas as
considerações finais, das quais se procurará extrair uma compreensão mais
assertiva quanto à problemática explicitada.

2. Arte, entretenimento e a tutela jurídica dos direitos autorais


A exploração comercial de aspectos da personalidade não se encaixa
apenas nas categorias estabelecidas pelos institutos da responsabilidade
civil ou pela legislação concernente à propriedade intelectual. Por primei-
ro, é preciso destacar que todos os sistemas jurídicos almejam, em certa
medida, a proteção da reputação de uma pessoa contra a difamação e, em
determinadas circunstâncias, do uso não autorizado do nome ou da ima-
gem, que podem causar danos à reputação por variadas razões. Nesse con-
texto, é preciso indicar como os principais sistemas jurídicos do Ocidente
tutelam a proteção da dignidade e, nesse cariz, a doutrina assim se posici-
ona:
A segunda perspectiva principal centra-se na lesão da dignidade pessoal,
seja ela rotulada “privacidade”, “dignidade” ou “personalidade”. A

(iii) dos interesses nacionais, na hipótese de a obra se configurar como bem cultural,
(iv) definindo a quais entes incumbe proteger bens de valor artístico, e (v) determi-
nando imunidade tributária, em se tratando de obras musicais ou literomusicais de
autores brasileiros e/ou obras em geral interpretadas por artistas brasileiros”. A auto-
ra concluí que se trata de um conceito jurídico relativo, na medida em que o termo
pode ter diferentes significados de acordo com a norma em relação a qual é conside-
rado. (ODY, Lisiane Feiten Wingert. Direito e Arte: o direito da arte brasileiro siste-
matizado a partir do paradigma alemão. São Paulo: Marcial Pons, 2018, p. 39).
387
José Faleiros Júnior · Pietra Daneluzzi Quinelato · Júlia Gessner Strack
extensão e a forma precisa de proteção para a dignidade individual
diferem acentuadamente entre os principais sistemas de civil law e de
common law. Inicialmente, a maioria dos sistemas jurídicos costumava dar
prioridade a reclamações por danos físicos e, em épocas anteriores, essas
lesões eram a principal preocupação da lei. À medida que as sociedades e
as condições de vida modernas mudam, os queixosos inevitavelmente
reivindicam reparação por outros tipos de danos. Interesses em reputação
ou honra pessoal, privacidade pessoal e interesses em liberdade do
sofrimento social tornam-se cada vez mais importantes. Normalmente, as
violações da personalidade individual são de natureza não pecuniária, não
apenas porque não podem ser avaliadas em termos monetários com
precisão matemática, mas também porque são geralmente de valor
inerentemente não econômico.2
É de se destacar, nesse campo, que os interesses comerciais são muitas
vezes tangenciados por questões relacionadas à dignidade, afrontando-a
em prol de alto potencial lucrativo associado à espetacularização de certos
tempos e espaços nos quais se tece e entretece tudo o que está relacionado
ao cotidiano.
A liberdade criativa e de espírito segue uma tradição de expressão do
pensamento que, modernamente, tem suas origens nas obras de Michel de

2 BEVERLEY-SMITH, Huw; OHLY, Ansgar; LUCAS-SCHLOETTER, Agnès. Privacy,


property and personality. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 5,
tradução livre. No original: “The second main perspective focuses on the injury to per-
sonal dignity, be it labelled ‘privacy’, ‘dignity’, or ‘personality’. The extent and precise
form of protection for individual dignity differs markedly between the major civil law
and common law systems. Initially, most legal systems used to give priority to claims
for physical injury and in earlier times these injuries were the law’s primary concern.
As societies and modern living conditions change, plaintiffs inevitably claim redress for
other kinds of harm. Interests in reputation or personal honour, personal privacy, and
interests in freedom frommental distress become increasingly important. Usually, vio-
lations of individual personality are of a non-pecuniary nature, not only because they
cannot be assessed in money terms with any mathematical accuracy, but also because
they are usually of inherently non-economic value”.
388
A arte e o direito de imagem na sociedade da informação
Montaigne3, no século XVI, e que é responsável por fazer pontuações acer-
ca da espetacularização da comunicação – e da arte – em esforço crítico-
compreensivo que aspira ao alargamento do campo de visão do destinatá-
rio do conteúdo.4
O perspectivismo5 surge, a partir disso, como fórmula para a escolha de
um determinado objeto sobre o qual se deseje produzir certo conteúdo e
também como método para seu estudo e sua ampla compreensão. Tem-se,
via de regra, a intenção de demonstrar que “a vida, apesar de todas as pro-
vas caóticas e arrasadoras em contrário, possui valor e significado”.6
Diversas ações relacionadas a esse objetivo conduzem a certos modelos
e padrões que, entretanto, atingem diretamente o sentido tradicionalmente
mais elevado da cultura, rebaixando o alto valor a ela historicamente atri-
buído. Com isso, “daí em diante, o fútil tem valor cultural, a época é a da
indiferenciação dos gêneros, da confusão das hierarquias que distinguiam,
ainda havia pouco, cultura nobre de cultura de massa”.7

3 MONTAIGNE, Michel de. Os ensaios. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo:
Cia. das Letras, 2010, passim.
4 Sobre isso, tem-se o comentário de Han: “O entretenimento se eleva a um novo
paradigma, a uma nova fórmula de mundo e de ser. Para ser, para pertencer ao mun-
do, é preciso ser algo que entretém. Apenas aquilo que entretém é real ou efetivo. Não
é mais relevante a distinção entre mundo fictício e mundo real (...).” (HAN, Byung-
Chul. Bom entretenimento. Tradução de Lucas Machado. Petrópolis: Vozes, 2019, p.
206.)
5 Para uma compreensão mais detalhada do conhecimento sob a visão do “perspecti-
vismo”, confira-se: NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. Tradução de Paulo
César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2009.
6 ARMSTRONG, Karen. Breve história do mito. Tradução de Celso Nogueira. São
Paulo: Cia. das Letras, 2005, p. 8.
7 LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. A cultura-mundo: resposta a uma sociedade
desorientada. Tradução de Maria Lúcia Machado. São Paulo: Cia. das Letras, 2011, p.
102. E os autores complementam: “O convívio com a arte se assemelha cada vez mais
a uma atividade turística, os filmes que alcançam os maiores sucessos visam um pú-
blico adolescente, os programas de televisão são concebidos para o espetáculo, a fim
389
José Faleiros Júnior · Pietra Daneluzzi Quinelato · Júlia Gessner Strack
As produções artísticas, até poucas décadas atrás, se restringiam a pou-
cas classes sociais, o que gerava, segundo Pierre Bourdieu, definições e
manifestações de pertencimento a determinada classe – e segregação em
relação a outras.8 Contudo, este panorama mudou com o advento da mo-
dernidade líquida, dando ensejo a novos movimentos e novas realizações
culturais, usualmente voltadas à obtenção de grande impacto e altos retor-
nos, com obsolescência quase instantânea.
Zygmunt Bauman explicita suas considerações sobre esse fenômeno:
Em suma, a cultura da modernidade líquida não tem um “populacho” a
ser esclarecido e dignificado; tem, contudo, clientes a seduzir. A sedução,
em contraste com o esclarecimento e a dignificação, não é uma tarefa úni-
ca, que um dia se completa, mas uma atividade com o fim em aberto. A
função da cultura não é satisfazer necessidades existentes, mas criar outras
– ao mesmo tempo que mantém as necessidades já entranhadas ou per-
manentemente irrealizadas. Sua principal preocupação é evitar o senti-
mento de satisfação em seus antigos objetos e encargos, agora transforma-
dos em clientes; e, de maneira bem particular, neutralizar sua satisfação to-
tal, completa e definitiva, o que não deixaria espaço para outras necessida-
des e fantasias novas, ainda inalcançadas.9
A partir disso,
(...) se a questão cultural tomou tal relevo é também porque o hipercapita-
lismo não cessa de criar e difundir um novo éthos de consumo que põe a
perder o ideal de formação do homem e do cidadão e que poderia minar as
virtudes necessárias à democracia, ao espírito de responsabilidade, ao sen-
so cívico. (...) Nestes tempos, multiplicam-se os alertas mais ou menos

de aumentar os índices de audiência e vender aos anunciantes ‘o tempo disponível de


cérebros humanos’”.
8 BOURDIEU, Pierre. Distinction: a social critique of the judgement of taste. Tradução
para o inglês de Richard Nice. Cambridge: Harvard University Press, 1996, p. 11-12.
9 BAUMAN, Zygmunt. A cultura no mundo líquido moderno. Tradução de Carlos
Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2013, p. 21
390
A arte e o direito de imagem na sociedade da informação
alarmistas em razão da amplitude dos danos humanos e culturais causados
pela escalada do hiperconsumo narcísico e pueril. Até onde defender essas
teses? A cultura-mundo ameaça fundamentalmente o capitalismo e a de-
mocracia? Verdadeiro perigo ou falso temor?10
Nesse campo, a ‘sociedade do espetáculo’11 vislumbrada por Guy De-
bord pareceria uma singela distopia se comparada à centralidade hoje as-
sumida pelo mercado com a força das tecnologias digitais e com o fim do
perfil clássico das corporações.
Observou-se a formação de uma base cultural estruturada em torno de
receitas de sucesso que almejam o impacto, fustigando o processo criativo
natural e propulsionando a diversão efêmera e a notoriedade garantidora
de alto retorno lucrativo. A contrapartida, como não poderia deixar de ser,
é a elevação do risco de danos colaterais e efeitos indesejados – com refle-
xos jurídicos.
A base de distinção fundamental entre o civil law dos países europeus
de base romano-germânica e o common law de origem inglesa traduz en-
frentamentos diversos para questões desse jaez, pois, com efeito, este últi-
mo não possui instituto semelhante ao da injuria romana, que indica a
noção de ‘desconsideração contumaz dos direitos ou da personalidade de
outra pessoa’.12
Em ordenamentos como o inglês, o canadense, o norte-americano e o
australiano, o conceito de reputação deve ser necessariamente diferenciado
do conceito de ‘goodwill’:

10 LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. A cultura-mundo: resposta a uma sociedade


desorientada. Tradução de Maria Lúcia Machado. São Paulo: Cia. das Letras, 2011, p.
112.
11 Cf. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Tradução de Francisco Alves e Afonso
Monteiro. Lisboa: Antígona, 2012.
12 NICHOLAS, Barry N. An introduction to Roman Law. Oxford: Oxford University
Press, 1976, p. 216.
391
José Faleiros Júnior · Pietra Daneluzzi Quinelato · Júlia Gessner Strack
Três elementos-chave devem ser estabelecidos para uma causa válida de
ação: ‘(i) uma reputação (ou goodwill) adquirida pelo autor em seus bens,
nome, marca etc. (ii) uma deturpação pelo réu levando a confusão (ou en-
gano) que cause (iii) danos ao demandante’. (...) É igualmente necessário
estabelecer uma distinção entre goodwill e reputação em sentido diferente
de reputação pessoal, ao invés de reputação comercial ou negocial, embora
seja difícil alcançar essa distinção, especialmente quando se trata da repu-
tação profissional, que é um bem econômico e um aspecto da dignidade de
um indivíduo. A proteção proporcionada pelo common law a esses interes-
ses difere acentuadamente. Casos de difamação e alguns casos de calúnia
são acionáveis per se, sem a necessidade de apresentar danos especiais. Por
outro lado, embora o goodwill seja universalmente considerado um direito
de propriedade, o repasse não é acionável na ausência de dano, ou, em
uma ação quia timet, a probabilidade de dano. 13
Por outro lado, no civil law, a definição de elementos pertencentes ao
campo da personalidade se desdobra do elenco de itens elevados ao pano-
rama constitucional, com a seleção de direitos subjetivos, positivados pelo

13 BEVERLEY-SMITH, Huw; OHLY, Ansgar; LUCAS-SCHLOETTER, Agnès. Privacy,


property and personality. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 15-16,
tradução livre. No original: “Three key elements must be established for a valid cause
of action: ‘(i) a reputation (or goodwill) acquired by the plaintiff in his goods, name,
mark etc. (ii) a misrepresentation by the defendant leading to confusion (or deception)
causing (iii) damage to the plaintiff’. (…) Three key elements must be established for a
valid cause of action: ‘(i) a reputation (or goodwill) acquired by the plaintiff in his
goods, name, mark etc. (ii) a misrepresentation by the defendant leading to confusion
(or deception) causing (iii) damage to the plaintiff ’. A distinction also needs to be
drawn between goodwill and reputation in the different sense of personal reputation,
rather than commercial or trading reputation, although achieving such a distinction is
difficult, particularly when dealing with professional reputation, which is both an eco-
nomic asset and an aspect of an individual’s dignity. The protection afforded by the
common law to these interests differs markedly. Cases of libel, and some cases of slan-
der, are actionable per se, without the need to show special damage. On the other hand,
while goodwill is universally regarded as a property right, passing off is not actionable
in the absence of damage, or, in a quia timet action, the likelihood of damage.”
392
A arte e o direito de imagem na sociedade da informação
Estado, que se enquadrariam neste rol. No afã de sistematizar os bens jurí-
dicos inerentes à personalidade, nos quais se incluem a imagem e os direi-
tos autorais, Vincenzo Miceli traz a seguinte enumeração:
1) direitos (já nominados) referentes ao reconhecimento da capacidade,
que constituem as condições na base das quais a pessoa pode afirmar-se no
domínio do direito na qualidade de sujeito nas diversas situações da vida;
2) direito à vida, à saúde, à incolumidade pessoal; 3) direito à incolumida-
de espiritual e ao equilíbrio da vida do espírito; 4) direito à liberdade; 5)
direito à individualização e, portanto, a todos os signos, a todos os meios
que venham a diferenciar e a distinguir uma pessoa das demais; 6) direito
à honra e aos bens a essa coligados ou dela dependentes, portanto à fama,
ao crédito, à boa reputação e à estima pública, como manifestações exter-
nas da honra; 7) direito a uma esfera de segredo, que abranja tudo o que
não pode ser comunicado a outrem, sem prejudicar, de qualquer modo, a
pessoa; 8) direito ao respeito da esfera econômica, na qual a pessoa se mo-
va como produtora de bens materiais, de forma útil, e desenvolva a sua
atividade econômica; 9) direito de igualdade.14
Adriano de Cupis, por sua vez, embora não tenha oferecido explicita-
mente uma classificação, propõe a necessidade de estudo sistematizado
dos diversos direitos, contemplando a vida e a integridade física, a liberda-
de, a honra e o respeito, o resguardo à identidade pessoal, o nome, entre
outros.15 Com isso, a evolução do pensamento jurídico em ordenamentos
alinhados ao civil law consagra diversos direitos especiais da personalida-
de, inseridos no ordenamento jurídico para salvaguardar bens jurídicos
específicos sem se esgotar em um rol fechado.
Nesse contexto, os limites da produção artística surgem como um desa-

14 MICELI, Vicenzo. I diritti della personalità: la personalità nella Filosofia del Diritto.
Milão: Società Editrice, 1922, p. 382-383, apud AMARANTE, Aparecida Imaculada.
Responsabilidade civil por dano à honra. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1994, p. 118.
15 DE CUPIS, Adriano. I diritti della personalità: trattato di diritto civile e commerciale.
Milão: Giuffrè, 1973, v. 4, t. 1, p. 63 et seq.
393
José Faleiros Júnior · Pietra Daneluzzi Quinelato · Júlia Gessner Strack
fio inexorável à formulação de respostas jurídicas a danos que extrapolem
a normalidade e desencadeiem ofensas a terceiros, a despeito da superex-
posição e do hiperconsumo.
Segundo Nelson Rosenvald,
A violação de contratos e a prática de ilícitos extracontratuais são cami-
nhos bem trilhados na doutrina da civil law e common law, enquanto o
território dos pagamentos indevidos e seus congêneres foi sempre mal
mapeado. Porém, precisamente pelo fato de a restituição ser uma resposta
multicausal, observamos que os mapas obrigacionais falharam ao isolar o
enriquecimento injusto, pois ainda está aberto o desfio de conhecer quais
são as razões - sejam elas poucas ou variadas – que não sejam contratos ou
ilícitos, mas que todavia propiciem direito à restituição pelo enriqueci-
mento obtido às expensas do demandante.16
Exatamente por ostentar natureza ‘aberta’, o common law se afasta de
cláusulas gerais para a tutela de ilícitos extracontratuais, o que implica uma
revisitação do instituto da responsabilidade civil para a delimitação de
contornos baseados em fatos jurídicos (event-based classification) a partir
de um novo modelo imputacional relacionado à identificação da causali-
dade.17 Manual Carneiro da Frada, de forma categórica, sugere o delinea-
mento de presunções causais:
Outra forma de contornar as dificuldades de prova da causalidade é o es-

16 ROSENVALD, Nelson. As fronteiras entre a restituição do lucro e o enriquecimento


por intromissão. Revista de Direito da Responsabilidade, Coimbra, ano 1, p. 45-84,
jan. 2019, p. 62.
17 Nesse contexto, Anderson Schreiber descreve o seguinte: “Desta forma, podem-se
identificar danos indiretos, passíveis de ressarcimento, desde que sejam consequên-
cia necessária da conduta tomada como causa. De fato, a melhor doutrina conclui,
atualmente, que a necessariedade consiste no verdadeiro núcleo da teoria da causali-
dade direta e imediata, não se excluindo a ressarcibilidade excepcional de danos indi-
retos, quando derivados necessariamente da causa em questão”. (SCHREIBER, An-
derson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da repara-
ção à diluição dos danos. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 61-62.)
394
A arte e o direito de imagem na sociedade da informação
tabelecimento de presunções de causalidade, de considerar por exemplo
naqueles casos em que a violação de um dever torna praticamente impos-
sível a demonstração da causalidade (...).18
Não se questiona, nesse campo, a pertinência e a relevância do nexo de
causalidade para a criação de uma vinculação lógica que una o comporta-
mento e o dano em sequência linear de conduta e resultado, sem a qual
não se pode imputar qualquer obrigação de ressarcimento.
Isso significa dizer que certos limites da ação humana – inclusive para
fins de manifestação da cultura e da criatividade – devem ser apontados
segundo liames de imputação e causalidade casuísticos. Há aqueles que
defendem que, principalmente na mídia artística, o uso da criatividade de
terceiros sem a sua permissão foi fundamental para a criação da indústria
do entretenimento. Nesse sentido, Lessig:
Se “pirataria” significa usar a propriedade criativa de outras pessoas sem
sua permissão – se “se valor, então certo” for verdade –, a história da in-
dústria de conteúdo é uma história de pirataria. Todos os setores impor-
tantes da “grande mídia” hoje – filmes, discos, rádio e TV a cabo – nasce-
ram de um tipo de pirataria assim definida. A história consistente é como
os piratas da última geração se juntam ao country club dessa geração – até
agora.19
Isto conduz a inúmeras polêmicas relacionadas à responsabilização de
infratores que explorem direitos de terceiros sob o manto da proteção da

18 FRADA, Manuel A. Carneiro da. Direito civil – responsabilidade civil: o método do


caso. Coimbra: Almedina, 2010, p. 102.
19 LESSIG, Lawrence. Free culture: how big media uses technology and the law to lock
down culture and control creativity. Nova York: Penguin, 2004, p. 51, tradução livre.
No original: “If “piracy” means using the creative property of others without their
permission—if “if value, then right” is true—then the history of the content industry is
a history of piracy. Every important sector of “big media” today—film, records, radio,
and cable TV—was born of a kind of piracy so defined. The consistent story is how last
generation’s pirates join this generation’s country club—until now.”
395
José Faleiros Júnior · Pietra Daneluzzi Quinelato · Júlia Gessner Strack
criatividade20.
O caso Richard Prince, nos Estados Unidos da América, é um paradig-
ma emblemático dessa polêmica. Sua compreensão, conforme se verá adi-
ante, revela inúmeras nuances pertinentes à ampla compreensão dos limi-
tes da responsabilidade civil pelo método do caso como solução adequada
aos danos causados a direitos da personalidade por violação de direitos de
imagem.

3. O ‘caso Richard Prince’ e a arte na pós-modernidade tecnológica


Richard Prince é um famoso pintor e fotógrafo norte-americano que,
como se disse na introdução, angariou polêmicas ao longo dos últimos
anos, se valendo da tecnologia para explicitar uma criatividade alinhada ao
oportunismo que o acesso a plataformas digitais viabilizou.21
Seu primeiro escândalo ocorreu em dezembro de 2008, quando o fotó-
grafo Patrick Cariou entrou com uma ação contra as Prince, a Gagosian
Gallery, Lawrence Gagosian e Rizzoli International Publications, em uma
corte federal norte-americana, por violação de direitos autorais em traba-
lhos mostrados na exposição Canal Zone, idealizada por Prince, na Galeria

20 Em relação à liberdade artística, cumpre pontuar que esta tem significado e amplitu-
de diversos das liberdades de expressão e de informação: a primeira diz respeito à
participação em processo de criação artística; a segunda à livre manifestação do pen-
samento próprio e da exposição de opinião; e a terceira compreende o direito de in-
formar e de ser informado, estando diretamente associada à veiculação de fatos con-
temporâneos relevantes à sociedade. (ODY, Lisiane Feiten Wingert. Direito e Arte: o
direito da arte brasileiro sistematizado a partir do paradigma alemão. São Paulo:
Marcial Pons, 2018, p. 63-64) Tais liberdades podem aparecer intrinsicamente co-
nectadas através de direitos que se situam nestes três âmbitos distintos, cenário cada
vez mais comum na sociedade da informação – como é o caso, por exemplo, do di-
reito de escrever biografia.
21 Sobre o tema, consulte-se: VAIDHYANATHAN, Siva. Intellectual property: a very
short introduction. Nova York/Oxford: Oxford University Press, 2017, Cap. 2.
396
A arte e o direito de imagem na sociedade da informação
Gagosian de Nova York. O caso, que ficou conhecido na jurisprudência
estadunidense como Patrick Cariou v. Richard Prince, et al22, inaugurou
sonoras discussões sobre os limites da apropriação indevida de imagens de
terceiros, uma vez que Prince foi acusado de se utilizar deliberadamente de
35 fotografias feitas por Cariou. Várias das peças mal foram editadas por
Prince, que também fez 28 pinturas que incluíam imagens do livro Yes
Rasta, de Cariou, que contém uma série de fotografias de rastafáris que
Cariou havia tirado na Jamaica23 – as quais foram alteradas por Prince
mediante pintura de objetos, mãos grandes e torsos masculinos, por
exemplo24:

Fonte: https://cpyrightvisualarts.files.wordpress.com/2011/12/richard-prince2.jpg

O principal argumento de defesa de Prince era que a exploração das


obras teria sido realizada sob a égide do conceito de fair use (uso justo)25

22 ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. United States Court of Appeals for the Second
Circuit. Patrick Cariou v. Richard Prince, et al. Docket No. 11-1197-cv, julg. 25 abr.
2013. Disponível em: https://bit.ly/2Uk6MUB. Acesso em: 25 mar. 2020.
23 MAUK, Ben. Who owns this image? The New Yorker, 12 fev. 2014. Disponível em:
https://bit.ly/2QOYxxU. Acesso em: 25 mar. 2020.
24 ODY, Lisiane Feiten Wingert. Direito e Arte: o direito da arte brasileiro sistematizado
a partir do paradigma alemão. São Paulo: Marcial Pons, 2018, p. 133.
25 Figura típica do direito norte-americano, o fair use é assim conceituado por Siva
397
José Faleiros Júnior · Pietra Daneluzzi Quinelato · Júlia Gessner Strack
que, segundo Basso, comprova-se pelo chamado three-step-test (regra dos
três passos), introduzido na Convenção de Berna, em 1967, atualmente
previsto no art. 9.2 da mesma26 (revisão de Paris) e no art. 13 do Acordo
TRIPs27 da Organização Mundial do Comércio. Leciona Basso:
À luz da Doutrina da Interpretação Consistente, o Teste dos Três Passos é a
diretriz que deve ser empregada pelo operador/intérprete/aplicador da
LDA para a definição do escopo das limitações e sua aplicação, no caso
concreto, a fim de não se causar um prejuízo injustificado aos interesses
legítimos dos autores e empresas cujas atuações sejam intimamente de-

Vaidhyanathan: “Fair use evolved within American case law throughout the nine-
teenth and twentieth centuries, and was finally codified in the Copyright Act of 1976.
The law specifically allows users to make copies of, quote from, and refer to copyrighted
works for the following purposes: in connection with criticism or comment on the work;
in the course of news reporting; for teaching or classroom use; or as part of scholarship
or research.” (VAIDHYANATHAN, Siva. Copyrights and copywrongs: the rise of in-
tellectual property and how it threatens creativity. Nova York: NYU Press, 2001, p.
27.) Quanto ao instituto, critica Lessig que, “in theory, fair use means you need no
permission. The theory therefore supports free culture and insulates against a permis-
sion culture. But in practice, fair use functions very differently. The fuzzy lines of the
law, tied to the extraordinary liability if lines are crossed, means that the effective fair
use for many types of creators is slight. The law has the right aim; practice has defeated
the aim. This practice shows just how far the law has come from its eighteenth-century
roots. The law was born as a shield to protect publishers’ profits against the unfair
competition of a pirate. It has matured into a sword that interferes with any use, trans-
formative or not” (LESSIG, Lawrence. Free culture: how big media uses technology
and the law to lock down culture and control creativity. Nova York: Penguin, 2004,
p. 111).
26 Art. 9.2 da Convenção de Berna: “2) Às legislações dos países da União reserva-se a
faculdade de permitir a reprodução das referidas obras em certos casos especiais,
contanto que tal reprodução não afete a exploração normal da obra nem cause preju-
ízo injustificado aos interesses legítimos do autor”
27 Art. 13 do TRIPs: “Os Membros restringirão as limitações ou exceções aos direitos
exclusivos a determinados casos especiais, que não conflitem com a exploração nor-
mal da obra e não prejudiquem injustificavelmente os interesses legítimos do titular
do direito”.
398
A arte e o direito de imagem na sociedade da informação
pendentes dos direitos autorais e, por último, mas não menos importante,
para não se infringir obrigações internacionais assumidas pelo Brasil cujo
desrespeito pode sujeitá-lo a retaliações comerciais no âmbito do Sistema
da Organização Mundial do Comércio.28
Diante disso, Prince precisaria justificar que a exploração das obras de
terceiros teria ocorrido visando (i) a uma situação excepcional; (ii) sem
interferência em sua exploração comercial e (iii) sem gerar prejuízo injus-
tificado aos interesses legítimos do titular do direito. Porém, não foi este o
entendimento adotado pela juíza distrital Deborah Batts que, em 18 de
março de 2011, decidiu contra Prince, Gagosian Gallery, Inc. e Lawrence
Gagosian. Considerou-se que o uso de Prince não se enquadraria no con-
ceito de fair use e concedeu-se o pleito indenizatório formulado por Cari-
ou quanto a todas as imagens utilizadas.
A decisão citou muitas jurisprudências, incluindo o caso Rogers v. Ko-
ons, de 1992.29 Em 25 de abril de 2013, porém, o Tribunal de Apelações do
Segundo Circuito dos EUA revogou a decisão de primeiro grau; prevaleceu
o entendimento de que o uso das fotografias por Prince, em 25 obras, era
transformador e, portanto, justo (visualizou-se o fair use). Cinco obras
menos transformadoras foram enviadas de volta ao tribunal inferior para
revisão. O caso foi resolvido por um acordo, em 2014, e a solução definiti-
va do conceito jurisprudencial de fair use no caso Prince permaneceu em
aberto.30-31

28 BASSO, Maristela. As exceções e limitações aos direitos do autor e a observância da


regra do teste dos três passos (three-step-test). Revista da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 102, p. 493-503, jan./dez. 2007, p. 500.
29 MILLER, Leigh Anne. Judge rules against Richard Prince in appropriation case. Art
in America, 22 mar. 2011. Disponível em: https://bit.ly/3ajogWJ. Acesso em: 25 mar.
2020.
30 BOUCHER, Brian. Richard Prince wins major victory in landmark copyright suit.
Art in America, 25 abr. 2013. Disponível em: https://bit.ly/2JssAHH. Acesso em: 25
mar. 2020. A reportagem ainda registra o comentário de um advogado, entrevistado
399
José Faleiros Júnior · Pietra Daneluzzi Quinelato · Júlia Gessner Strack
Mas, Richard Prince não parou por aí.
A vitória em segunda instância lhe garantiu o ímpeto necessário para se
aventurar em outras polêmicas, e uma delas ocorreu logo em seguida, ain-
da no ano de 2014: Prince realizou outra exposição na Gagosian Gallery de
Nova York, intitulada New Portraits, em que cada uma das 38 imagens
exibidas correspondia a uma captura de tela (print screen) de foto postada
por terceiro no Instagram, com a adição de elementos (comentário, núme-
ro de curtidas etc.):

Foto: Rob McKeever/Gagosian Gallery

Fonte: https://gagosian.com/exhibitions/2014/richard-prince-new-portraits/

por ocasião da publicação da decisão: “The judges at the Second Circuit court decided
that the case would hinge on whether a reasonable observer would find Prince’s works
to have been transformative, and thus protected under fair use law. The question re-
mains, who is a ‘reasonable observer?'”
31 No direito brasileiro, a resolução do caso dependeria da análise dos seguintes fatores:
“(i) se as obras de Prince seriam imitações das imagens de Cariou ou se constituiriam
em obra derivada e/ou nova; (ii) se o uso das imagens de Cariou por Prince configu-
rariam hipótese de citação ou de obra incidental; (iii) se a utilização das fotos de Ca-
riou por Prince as prejudica; (iv) e se essa utilização ofende a reputação ou honra do
autor nessa condição”. (ODY, Lisiane Feiten Wingert. Direito e Arte: o direito da arte
brasileiro sistematizado a partir do paradigma alemão. São Paulo: Marcial Pons,
2018, p. 134).
400
A arte e o direito de imagem na sociedade da informação
A situação gerou verdadeiro escarcéu, uma vez que as pessoas exibidas
nas telas jamais consentiram com o uso de suas imagens e de suas fotogra-
fias; muitas sequer souberam do ocorrido até que o episódio fosse ampla-
mente propagado na grande mídia – e, novamente, surgiu forte debate em
torno do conceito de arte na pós-modernidade e sobre as implicações jurí-
dicas disso32. O fato é que o alvoroço gerado atraiu atenções e Prince obte-
ve lucros altíssimos com suas peças em vendas realizadas em exposições
ulteriores, como a Frieze Art Fair, em Nova York, no ano de 2015 (em que
versões ampliadas de seu feed no Instagram chegaram a ser vendidas por
até cem mil dólares)!33-34
Várias ações judiciais foram movidas contra o artista, incluindo uma do
fotógrafo Donald Graham, cuja foto (intitulada ‘Rastafarian Smoking a
Joint’) foi apresentada por meio de uma impressão da conta do Instagram
de outro usuário. O caso ficou conhecido como Donald Graham v. Richard
Prince, et al, e as defesas foram fortemente baseadas no julgamento do caso
Cariou.35 Diante da repercussão do fato, as próprias vítimas da atuação de
Prince decidiram tomar iniciativas próprias, como a proprietária do perfil
Suicide Girls (@suicidegirls), Selena Mooney (conhecida pelo pseudônimo
“Missy Suicide”), que decidiu vender as mesmas imagens de Richard Prin-
ce por apenas 90 dólares cada e reverter toda a renda para uma instituição
de caridade.36

32 RIDLESS, Robin. For postmodernists like Richard Prince, art is theft. The Federalist,
9 fev. 2017. Disponível em: https://bit.ly/2Jho9iI. Acesso em: 26 mar. 2020.
33 MUNRO, Cait. Richard Prince steals more Instagram photographs and sells them for
$100,000. Artnet News, 26 maio 2015. Disponível em: https://bit.ly/2xmv33s. Acesso
em: 26 mar. 2020.
34 FRID, Natasha. Richard Prince sells 'stolen' Instagram photos for $100,000. Milk.xyz,
27 maio 2015. Disponível em: https://bit.ly/3dy5sVJ. Acesso em: 26 mar. 2020.
35 NEWHOFF, David. Graham v. Prince or Art v. Fair Use. The Illusion of More: Dis-
secting the Digital Utopia, 17 out. 2018. Disponível em: https://bit.ly/3ajQbGh. Aces-
so em: 26 mar. 2020.
36 NEEDHAM, Alex. Richard Prince v Suicide Girls in an Instagram price war. The
401
José Faleiros Júnior · Pietra Daneluzzi Quinelato · Júlia Gessner Strack
Depreende-se que, com seu trabalho, Prince atingiu não apenas o direi-
to da imagem dos indivíduos fotografados. Os direitos, no caso, são perso-
nalíssimos, mas, também o são os direitos autorais dos autores das obras37.
Transpondo-se o caso ao cenário nacional, seria necessária a análise de
ambos os institutos e, apesar das particularidades do ordenamento jurídico
brasileiro38, o caso provavelmente teria o mesmo desfecho.
A tutela de direito de imagem, além de estar consagrado pela Constitui-
ção da República de 1988 e pelo Código Civil de 2002 como um direito de
personalidade autônomo, é proveniente principalmente da jurisprudência.
Em 1922, Otávio Kelly impediu a divulgação de imagem sem consenti-
mento de seu titular39; em 1949, a Sexta Câmara Civil do Tribunal de Justi-
ça do Estado de São Paulo afirmou que o retrato emana da pessoa, sendo
que ninguém pode ser fotografado contra a própria vontade. No mesmo
sentido, foi o entendimento no Superior Tribunal de Justiça no ano de

Guardian, 27 maio 2015. Disponível em: https://bit.ly/39kuynC. Acesso em: 26 mar.


2020.
37 Nesse sentido, o REsp n. 1.322.704 / SP da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça,
julgado em 2014 sob relatoria do Min. Luís Felipe Salomão (...) “em se tratando de
fotografia, para efeitos de proteção do direito autoral das obras artísticas, é autor o
fotógrafo e não o fotografado, este último titular de outros direitos da personalidade,
como a imagem, a honra e a intimidade”.
38 Em relação à limitação da liberdade artística por outros direitos fundamentais de
igual estatura (como o direito à personalidade, à privacidade e à imagem), “na ordem
constitucional brasileira não se estabeleceu hierarquia in abstrato de direitos funda-
mentais, incumbindo ao poder Judiciário julgar lesão ou ameaça in concreto a esses
direitos, atribuição da qual não se pode esquivar sob pena de negar a própria causa de
sua existência”. (ODY, Lisiane Feiten Wingert. Direito e Arte: o direito da arte brasi-
leiro sistematizado a partir do paradigma alemão. São Paulo: Marcial Pons, 2018, p.
63-64).
39 Tal decisão, com fundamento no Código Civil brasileiro (art. 666, X), concedeu
interdito para impedir a divulgação de imagem sem o consentimento do seu titular
(Revista Forense, 1922, p. 297-298, conforme Paulo Oliver, Direito autoral, fotogra-
fia, imagem. São Paulo: Letra e Letras, 1991, p. 125-126).
402
A arte e o direito de imagem na sociedade da informação
1982, em decisões dos ministros Rafael Mayer40 e Djaci Falcão41. Há, por-
tanto, uma inclinação protetiva ao titular do direito de personalidade.
Já na seara da proteção de fotografia no campo dos direitos autorais, o
ordenamento jurídico brasileiro, apesar de abrir espaço para questões ca-
suísticas42, prevê a tutela proveniente da própria legislação (Lei nº
9.610/98), em seu art. 7º, inciso VII e art. 2º da Convenção de Berna de
1886, promulgada pelo Decreto nº 75.699 de 1975.
Em face de tantas polêmicas, há uma grande questão a ser explorada, e
suas potenciais respostas transcendem o campo jurídico, fronteiras nacio-
nais e a própria dinâmica do fair use (uso justo) quanto às imagens de ter-
ceiros. Investiga-se, a bem da verdade, os limites éticos que o direito à
imagem enfrenta na sociedade da informação, e algumas reflexões possu-
em contornos muito mais sociológicos, a ponto de instigarem dúvidas
sobre o que é, essencialmente, a arte na pós-modernidade.
Sem que se tenha a pretensão de esgotamento das discussões, importa
anotar que o primeiro dilema enfrentado diz respeito aos limites e às fun-
ções do consentimento, que é objeto de diversas legislações de proteções
de dados, como o Regulamento Geral europeu e a Lei Geral brasileira (Lei
13.709/18), mas que, em um universo no qual cada mídia social ainda dis-
põe de termos de uso próprios, com detalhamentos intrincados e cognição
usualmente dificultosa, desperta olhares para a necessidade de enfrenta-
mento mais específico.
Sobre o tema, descreve Diana Liebenau:

40 Ementa do acórdão proferido em 10-9-1982, pela Primeira Turma do Supremo Tri-


bunal Federal, em votação unânime, no Recurso Extraordinário 95.872.
41 Ementa do acórdão proferido em 2-10-1982, pela Segunda Turma do STF, em vota-
ção unânime, no Recurso Extraordinário 91.328.
42 Nesse sentido, é o entendimento da 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Santa
Catarina, na apelação cível n. 2002.011163-0, julgada em 2006, pois “nem toda a fo-
tografia é considerada obra de criação artística suscetível de ser classificada e tutelada
como "direito autoral".”
403
José Faleiros Júnior · Pietra Daneluzzi Quinelato · Júlia Gessner Strack
Primeiro, um direito de propriedade pode ser consentido, e a propriedade
intelectual e a privacidade enfrentam dilemas de consentimento semelhan-
tes. Nas mídias sociais, os usuários costumam conceder uma licença mun-
dial, não exclusiva e sem royalties – com direito de sublicenciar – ao seu
conteúdo protegido por direitos autorais, aceitando os conteúdos dos
Termos de Serviço. As políticas de privacidade que regem se e como um si-
te ou tecnologia podem coletar, usar ou divulgar os dados de um usuário
são igualmente diversas, geralmente de longo alcance e, portanto, são difí-
ceis para os usuários discernir e calcular custos e benefícios de forma ho-
lística. A questão legal, é claro, é decidir se essas licenças são aplicáveis.
Quanto mais uma análise jurídica for informada descritivamente por pes-
quisas comportamentais sobre as expectativas do usuário e os vieses cogni-
tivos, menos inclinado será o cumprimento desses termos. No entanto, es-
sa análise será insuficiente se for normativamente guiada por uma teoria
de controle anterior, com noções liberais individualistas e de escolha e
consentimento. A teoria do controle se esforça para explicar por que as
pessoas valorizam expressamente a privacidade, mas com facilidade e
consciência a abandonam.43

43 LIEBENAU, Diana. What intellectual property can learn from informational privacy,
and vice versa. Harvard Journal of Law & Technology, Cambridge, v. 30, n. 1, p. 285-
307, set./dez. 2016, p. 295, tradução livre. No original: “First, a property right can be
consented away, and IP [intellectual property] and privacy face similar consent di-
lemmas. On social media, users routinely grant a worldwide, non-exclusive, royalty-
free license—with the right to sub-license—to their copyrighted content by accepting
the Terms of Service agreements. Privacy policies that govern if and how a web-site or
technology can gather, use, or disclose a user’s data are equally diverse, are often far-
reaching, and are thus hard for users to discern and calculate costs and benefits holisti-
cally. The legal question, of course, is to decide whether these licenses are enforceable.
The more a legal analysis is descriptively informed by behavioral research into user ex-
pectations and cognitive biases, the less inclined it will be to enforce these terms. How-
ever, such an analysis will ultimately fall short if it is normatively driven by an ante-
cedent control theory with individualist, liberal notions of choice and consent. The
control theory struggles to explain why people expressly value privacy highly, but easily
and consciously give it up.”
404
A arte e o direito de imagem na sociedade da informação
Akash Mishra destaca a existência de uma ‘Filosofia da Propriedade In-
telectual’, que percorre pensamentos utilitaristas e não utilitaristas na bus-
ca por uma equação que consiga responder o que (não) é passível de pro-
teção autoral na Internet.44 Não obstante, pode-se afirmar que a problemá-
tica é mais ampla pela própria dificuldade que se tem quanto ao controle (e
à eventual limitação) de acesso aos dados em plataformas digitais.45 Essa
‘digitalização’ é analisada por van Dijk:
Digitalização significa que cada item pode ser convertido em bytes separa-
dos, consistindo em cadeias de unidades e zeros (chamados bits). Isso se
aplica a imagens, sons, textos e dados. Eles podem ser produzidos e con-
sumidos em peças separadas e combinados de todas as maneiras imaginá-
veis. A partir de agora, cada item poderá ser apresentado em telas e acom-
panhado por som. Todos os itens podem ser armazenados em suportes de
dados digitais e recuperados deles em quantidades praticamente ilimitadas
e em velocidade praticamente ilimitada. Nas frases anteriores, a tecnologia
digital e o impacto cultural já foram vinculados.46

44 MISHRA, Akash Kamal. Intellectual property rights in cyberspace. Indore: Cyberlekh,


2019, p. 05-16.
45 LUNDQVIST, Björn. Big Data, Open Data, privacy regulations, intellectual property
and competition law in an Internet-of-Things world: the issue of accessing data. In:
BAKHOUM, Mor; CONDE GALLEGO, Beatriz; MACKENRODT, Mark-Oliver;
SURBLYTĖ-NAMAVIČIENĖ, Gintarė (Eds.). Personal data in competition, consum-
er protection and intellectual property law: towards a holistic approach. Ber-
lim/Heidelberg: Springer-Verlag, 2018, p. 192. Comenta: “The interface between digi-
talized information (data), intellectual property, privacy regulations and competition
law in the ‘Internet of Things’ (IoT) scenario is currently triggering the interest of poli-
ticians, businessmen, the academic community and even the general public. The
groups are interested for different reasons; for example, businessmen see an opportuni-
ty for the creation of wealth, researchers see the possibility of gaining, analysing and
distributing knowledge efficiently and everyone acknowledges that the collection and
distribution of personal data may raise both privacy and data-protection concerns.”
46 VAN DIJK, Jan. The network society. 2. ed. Londres: Sage Publications, 2006, p. 191,
tradução livre. No original: “Digitalization means that every item can be translated
405
José Faleiros Júnior · Pietra Daneluzzi Quinelato · Júlia Gessner Strack
Com isso, os seguintes impactos podem ser sentidos: (i) uma padroni-
zação e diferenciação da cultura; (ii) uma fragmentação da cultura; (iii)
uma ‘colagem’ de culturas diversas, em razão do alto fluxo informacional;
(iv) a aceleração da cultura; (v) a formação de novas visualizações e mani-
festações da cultura; (vi) uma quantidade cada vez maior para o que se
pode considerar cultura.
Nesse sentido, o ‘caso Richard Prince’ revela a necessidade de que se
faça uma ampla releitura do papel da arte – e das liberdades dos artistas47 –
no século XXI, marcado pela consolidação da disciplina dos direitos da
personalidade e de seus desdobramentos em uma Internet cada vez mais
marcada pela formação de grandes acervos de dados (Big Data).

4. Considerações finais
Pelo exposto, ressalta-se que o papel da arte na sociedade da informa-
ção se traduz em implicações não apenas jurídicas, pois extrapola frontei-
ras nacionais em razão da ampla utilização da Internet. Há que se conside-
rar, nesse contexto, reflexões éticas que tangenciam aspectos filosóficos
concernentes à propriedade intelectual e aos impactos sociológicos do
acesso praticamente ilimitado a dados, propiciado pelas mídias digitais.
O ‘caso Richard Prince’, que, na verdade, se manifesta na reiteração de
condutas de um artista norte-americano que vislumbrou oportunidade

into separate bytes consisting of strings of ones and zeros (called bits). This applies to
images, sounds, texts and data. They can be produced and consumed in separate pieces
and combined in every manner imaginable. From now on, every item can be presented
on screens and accompanied by sound. All items can be stored on digital data carriers
and retrieved from them in virtually unlimited amounts and at virtually unlimited
speed. In the preceding sentences, digital technology and cultural impact have already
been linked.”
47 Sobre o tema, confira-se, por todos: PROWDA, Judith B. Visual arts and the law.
Londres: Lund Humphries, 2013.
406
A arte e o direito de imagem na sociedade da informação
única de angariar fama e lucrar a partir da escandalosa utilização de ima-
gens de terceiros, se valendo de brechas em termos de uso e em alterações
pontuais que lhe garantiram o pretenso álibi do fair use (uso justo), revela
a imperiosidade de que a ética norteie o modo de agir do indivíduo na
Internet – inclusive do leigo.
A preocupação com uma padronização e diferenciação da cultura, sua
fragmentação, os influxos de diferentes fontes culturais sobre outras, a
aceleração da cultura e suas novas formas de manifestação propiciam uma
grande nebulosidade sobre o próprio conceito de arte. Isso, em uma socie-
dade espetacularizada e marcada pela disponibilidade informacional em
abundância, ressignifica os limites da criatividade.
Se a legislação é insuficiente para atender às contingências advindas do
gap entre inovação e regulação, que é preenchido pelo amálgama de uma
criatividade de impacto, efêmera, e marcada por polêmicas e valorização,
mais do que nunca se passará a exigir de cada cidadão o verdadeiro bom
senso, o equilíbrio e a adesão a boas práticas e a regras de conduta meta-
normativas para que se possa atingir o desejado locus da paz social associ-
ada à segurança jurídica. O atuar ético é o telos de uma estrutura compor-
tamental na sociedade da informação.

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410
DOMÍNIO PÚBLICO E SUA RELAÇÃO COM
OS DIREITOS AUTORAIS E DIREITOS
CONEXOS

18
Ana Márcia Rodrigues Moroni
Viviane Furtado Migliavacca

1. Introdução: a proteção do direito autoral no arcabouço legislativo


brasileiro
O direito autoral brasileiro é regido por diversos acordos e convenções
nos quais participam muitos Estados signatários. Para tanto, o país é
membro da Convenção de Berna (revista em Paris em 24.07.71 – Decreto
nº. 75.699, de 06.05.75), da Convenção Universal sobre o Direito de Autor
(Decreto nº. 76.905/1975) e da Convenção Interamericana sobre os direi-
tos de autor em obras literárias, científicas e artísticas, também conhecida
como Convenção de Washington (Decreto nº. 26.675/1949).
Todas estas Convenções corroboram a proteção prevista na legislação
pátria, estendendo-se, também, aos autores nacionais dos demais países
signatários das convenções a proteção aos seus direitos no Brasil, como a
proteção dos direitos de autores nacionais naqueles países.
O artigo 7º. da Lei de Direitos Autorais (Lei 9.610/98) lista as principais
categorias de obras de arte que são passíveis de proteção, tais como, textos
literários, artísticos ou científicos, obras de arte dramática, coreografias,
411
Ana Márcia Rodrigues Moroni · Viviane Furtado Migliavacca
composições musicais com ou sem letra, obras audiovisuais, fotografias
(desde que sejam criações artísticas), etc. Além disso, insta ressaltar que os
programas de computador (softwares) também são protegidos pelo direito
do autor, mas gozam de legislação própria (Lei 9.609/98).
O registro das obras no país, apesar de não ser obrigatório, acarreta
evidência, num primeiro momento, de prioridade e de autoria da Obra.
Ademais, o registro opcional pode ser feito na Biblioteca Nacional, do
Escritório de Direitos Autorais (EDA) ou da Escola de Belas Artes da
UFRJ, de acordo com a natureza da Obra.
Como se trata, aqui, de uma pesquisa ampla acerca do arcabouço legis-
lativo em torno da matéria, principalmente a musical, é fundamental que
se saiba quais outras Leis e Convenções vigentes no mundo regem o Direi-
to de Autor:
1. Convenção de Roma: Decreto nº. 75.699, de 6 de maio de 1975. Con-
venção de Berna relativa à proteção das obras literárias e artísticas de 9 de
Setembro de 1886, completada em Paris em 4 de maio de 1896, revista em
Berlim em 13 de novembro de 1908, completada em Berna em 20 de mar-
ço de 1914 e revista em Roma em 2 de junho de 1928, Bruxelas em 26 de
junho de 1948, em Estocolmo em 14 de julho de 1967 e em Paris em 24 de
julho de 1971, e modificada em 28 de setembro de 1979;
2. Convenção de Genebra: Decreto nº. 76.906, de 24 de dezembro de 1975.
Convenção de Genebra para a proteção de produtores de fonogramas con-
tra reproduções não autorizadas;
3. Lei nº. 6.533, de 24 de maio de 1978: Dispõe sobre a regulamentação das
profissões de artista e de técnico em espetáculos de diversões, e dá outras
providências;
4. Lei nº. 9.615 de 24 de março de 1998: Institui normas gerais sobre o
desporto, tratando do direito de arena, sendo denominada como ‘Lei Pe-
lé’;
5. Lei nº. 9.472 de 16 de julho de 1997: Dispõe sobre a organização dos

412
Domínio público e sua relação com os direitos autorais e direitos conexos
serviços de telecomunicações, a criação e funcionamento de um órgão re-
gulador e outros aspectos institucionais, nos termos da Emenda Constitu-
cional 8 de 1995, sendo conhecida como ‘Lei Geral de Telecomunicações’;
6. Decreto-Lei nº. 980, de 20 de Outubro de 1969: Dispõe sobre a cobrança
de direitos autorais nas exibições cinematográficas;
7. Lei nº. 2.415, de 9 de Fevereiro de 1955: Dispõe sobre a outorga da li-
cença autoral no rádio e televisão;
8. Decreto nº. 4.857, de 9 de novembro de 1939: Registro da propriedade
literária, científica e artística;
9. Decreto nº. 76.906, de 24 de dezembro de 1975: Promulga a Convenção
para a proteção de produtores de fonogramas contra a reprodução não au-
torizada de seus fonogramas, concluída em Genebra, em 29.10.1971;
10. Decreto nº. 75.541 – de 31 de março de 1975: Promulga a Convenção
que instituiu a Organização Mundial da Propriedade Intelectual – OMPI;
11. Decreto nº. 57.125, de 19 de outubro de 1965: Promulga a Convenção
Internacional para proteção aos artistas intérpretes ou executantes, aos
produtores de fonogramas e aos organismos de radiodifusão, assinada em
Roma, em 26.10.1961;
12. Decreto nº. 2.894, de 22 de dezembro de 1998: Regulamenta a emissão
e o fornecimento de selo ou sinal de identificação dos fonogramas e das
obras audiovisuais, previstos no art. 113 da Lei nº. 9.610, de 19 de fevereiro
de 1998, que altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais
e dá outras providências;
13. Decreto s/ nº. de 13 de março de 2001: Institui Comitê Interministerial
de Combate à Pirataria.
Após a demonstração da fundamentação legal da matéria, tanto nacio-
nalmente, quanto internacionalmente, é importante destacar onde e como
a música entra dentro desse rol de propriedades protegidas.

413
Ana Márcia Rodrigues Moroni · Viviane Furtado Migliavacca
2. A obra musical no direito autoral
São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por
qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível,
conhecido ou que se invente no futuro (art. 7º, da Lei 9.610/98). Para que
uma obra seja protegida pela lei autoral, necessário se faz que a mesma
pertença ao domínio das artes, das letras ou das ciências, que tenha origi-
nalidade e que, principalmente, não esteja no domínio público.
O fundamental destes requisitos é a originalidade, a qual não se con-
funde com novidade, pois a primeira é entendida como forma de exteriori-
zação da ideia, sempre levando em consideração as características próprias
à modalidade da obra intelectual em questão e não a ideia em si. Já a novi-
dade é requisito principal para a obtenção de privilégios no campo da pro-
priedade industrial.
Podemos distinguir a originalidade entre absoluta ou relativa. No pri-
meiro caso, quando a criação não foi derivada de outra obra intelectual e
no segundo, quando a derivação efetivamente ocorreu, tais como sua tra-
dução, adaptação, ou transformação por qualquer forma. Mesmo assim,
tanto a obra original absoluta como a relativa dão aos seus autores direitos
autorais respectivos a cada obra.
Chegamos, portanto, à conclusão de que a obra musical que pertença
ao domínio das artes que tenha originalidade e que não tenha caído no
domínio público é uma obra intelectual, produto do espírito humano,
prontamente protegida pelos Tratados internacionais sobre Direito Auto-
ral e, especificamente, pela Lei n.º 9.610/1998 (Lei de Direitos Autorais).
Surge, assim, a indagação do que seria, precisamente, obra musical: Es-
ta é conceituada como a síntese da melodia, da harmonia e do ritmo. Ao
citar o autor Henry Desbois1, o autor aqui utilizado, José Carlos Costa

1 COSTA NETTO, José Carlos. Os direitos de autor e os que lhes são conexos na obra
musical. 1985. Dissertação (Mestrado em Direito) - Faculdade de Direito, Universi-
dade de São Paulo, São Paulo, 1985. p. 41.
414
Domínio público e sua relação com os direitos autorais e direitos conexos
Netto, menciona que melodia seria a emissão de um número indetermina-
do de sons sucessivos, enquanto a harmonia forneceria a roupagem da
melodia, como resultado da emissão simultânea de vários sons – acordes –
e, por fim, o ritmo seria uma sensação determinada por diferentes sons
consecutivos ou diversas repetições periódicas de um mesmo som, mar-
cando o andamento da melodia.
O elemento fundamental de uma obra musical, a originalidade, segun-
do o citado autor estaria na harmonia, trecho o qual explica com detalhes:
Assim, inegável que, dos três elementos constitutivos da obra musical, a
melodia é a essencial. É essa, justamente, a característica mais peculiar em
relação ao processo de criação da obra musical em relação às demais obras
intelectuais: mais acentuadamente na criação melódica incide a sensibili-
dade, a inspiração, e não a reflexão ou comparação. Assim, não estaria afe-
ta à melodia à inteligência e sim à sensibilidade.
A título de exemplo, poder-se-ia citar duas composições famosas na
música popular brasileira: “Esse teu olhar”, de Tom Jobim e “Promessas”
do mesmo renomado compositor. Apesar de idênticas em sua harmonia
ocorre perfeita distinção a nível melódico, o que as caracteriza como obras
originárias autônomas, cada qual absolutamente original.
Além dos três elementos fundamentais da obra musical, podem vir a
integrá-la, também, o título e a letra.
Art. 10. A proteção à obra intelectual abrange o seu título, se original e in-
confundível com o de obra do mesmo gênero, divulgada anteriormente
por outro autor. (Lei n.º 9.610/98).
Quando a obra é formada apenas pela melodia, harmonia e ritmo, de-
nominamos música; quando, além destes três elementos, existem o título e
a letra, denomina-se obra lítero-musical; e, quando a obra é transformada
e fixada em suporte, denominamos fonograma.
No que se refere à obra musical protegida pela Lei 9.610/98, importante
examinar os casos das traduções, adaptações, arranjos, orquestrações e
415
Ana Márcia Rodrigues Moroni · Viviane Furtado Migliavacca
outras formas de transformações de obras originais, que são apresentadas
como criação intelectual nova. Em todos estes casos, é indispensável a
concordância do autor da obra original, salvo obra que esteja exposta em
domínio público.
Entrementes, o tradutor ou adaptador não pode impedir que outra pes-
soa venha a traduzir ou criar obra intelectual nova sobre a original, ressalta
Maria Helena Diniz que este (o primeiro tradutor) só poderá reclamar as
perdas e danos quando houver tradução que não passe de mera reprodu-
ção da sua2. Pedro Vicente Bobbio3, em sua antológica obra Direitos Auto-
rais na criação musical, datada de 1951, e ainda atual, denomina as obras
musicais derivadas da seguinte forma:
Denomino elaboração todo e qualquer trabalho artístico musical em que o
autor não cria “ex novo”, com originalidade formal e substancial, uma
obra musical, mas manipula criação alheia, dando vida características in-
dividualizadoras, assevero que a elaboração possui uma casuística prati-
camente infinita, cujos exemplos mais comuns e salientes são representa-
dos por: variações, adaptações ou arranjos, transcrições, reduções combi-
nações, pot-pourris, e que a todas são comuns os mesmos requisitos e os
mesmos efeitos.
Já os fonogramas são toda fixação de sons de uma execução ou inter-
pretação ou de outros sons, ou de uma representação de sons que não seja
uma fixação incluída em uma obra audiovisual.

3. O objeto da proteção autoral na obra musical


O primeiro passo para entender os direitos autorais na música é com-
preender a divisão básica destes direitos. Eles podem representar duas

2. DINIZ, Maria Helena. Tratado teórico e prático dos contratos. São Paulo: Saraiva, v.
3. 1999. p. 508. Jurisprudência neste sentido em ADCOAS, 1982, n.º 86.628, TJSP.
3 BOBBIO, Pedro Vicente. O direito de autor na criação musical. São Paulo: Lex, 1951.
p.141.
416
Domínio público e sua relação com os direitos autorais e direitos conexos
espécies de propriedade: o direito autoral moral e o patrimonial.
O direito autoral moral é intransferível – é a atribuição da obra a quem
a criou. No caso de uma composição musical, por exemplo, o direito auto-
ral moral encontra-se na necessidade de se reconhecer a composição ao
seu criador, mesmo que ela não seja comercialmente explorada por ele.
Este aspecto é intransferível.
Já o direito autoral patrimonial tange a utilização comercial de uma
obra em sua forma mais específica de mercado. Um compositor pode, por
exemplo, vender sua música para um intérprete por uma quantia fixa, por
um percentual sobre os lucros ou simplesmente doá-la. As mudanças com
a internet voam, o mercado cada vez mais amplia-se de tantas formas que
são inimagináveis, e, quanto à segurança do artista, seus direitos auto-
rais engatinham, esbarrando em trâmites e prazos que a internet não tem,
e que, muitas vezes e atualmente, vem claramente prejudicando os milha-
res de titulares desses direitos. Mesmo em uma época de publicização da
intimidade.
Caso o intérprete adquira a obra em sua totalidade, os direitos patri-
moniais daquela composição tornam-se dele, sem que o autor receba al-
guma remuneração posterior, além da venda. No entanto, o direito autoral
moral ainda é o compositor, que detém a atribuição da criação da obra,
mesmo que não a explore comercialmente.
Para Gueiros Júnior4 o Direito Autoral se compõe de dois pilares distin-
tos no que se refere à apreciação das circunstâncias que envolvem a fruição
e o exercício dos direitos decorrentes da criação intelectual humana, desta-
cando-se na parte moral a imobilidade e a perenidade, enquanto, na parte
material, econômica, prevalece a mobilidade e a temporaneidade. É consi-
derado titular de direito autoral a pessoa física ou jurídica que, não neces-
sariamente sendo autora, exerce os direitos sobre as criações, por delega-

4 GUEIROS JUNIOR, Nehemias. O direito Autoral no show business. A música.


Gryphus: Rio de Janeiro, 2005, p. 60.
417
Ana Márcia Rodrigues Moroni · Viviane Furtado Migliavacca
ção do próprio autor, por determinação legal ou por sucessão mortis cau-
sae.

4. Direito conexo
O direito conexo está previsto no artigo 5º, XIII, da Constituição Fede-
ral de 88, bem como no artigo 89 da Lei 9610/98, sendo que, no âmbito
internacional é regulado pela Convenção de Roma, que se acha em vigor
desde 18 de maio de 1964. Mencionada convenção agregou em um único
diploma os artistas, sobre sua interpretação ou execução; o produtor de
fonogramas, sobre sua produção sonora; e o organismo de radiodifusão,
sobre suas emissões, sendo estes os três titulares de direitos conexos. Res-
salta Eboli5 que os direitos nela compilados são distintos e não se confun-
dem com os direitos de autor da obra interpretada ou executada, com es-
pecial ênfase no artigo 1º da Convenção romana:
Art 1º A proteção prevista pela presente convenção deixa intacta e não afe-
ta, de qualquer modo, a proteção do direito do autor sobre as obras literá-
rias e artísticas. Deste modo, nenhuma disposição da presente convenção
poderá ser interpretada em prejuízo dessa proteção.
De acordo com Gueiros Júnior6 os direitos conexos podem ser assim
definidos: Os direitos conexos, por sua vez, são aqueles incidentes sobre
todas as interpretações ou execuções artísticas e as eventuais transmissões
e retransmissões destas interpretações resultantes de sua comunicação ao
público além do espectro do autor.

5 EBOLI, João Carlos de Camargo. Pequeno Mosaico do Direito Autoral. São Paulo:
Irmãos Vitale, 2006, passim.
6 GUEIROS JUNIOR, Nehemias. O direito Autoral no show business. A música.
Gryphus: Rio de Janeiro, 2005, p.51.
418
Domínio público e sua relação com os direitos autorais e direitos conexos
5. A exploração do mercado fonográfico digital pela internet
A literatura acerca da Sociedade da Informação permeia todos os ramos
do conhecimento humano, consistindo em um novo desafio para as ciên-
cias humanas, biológicas e exatas compreendê-la e conceituá-la7. Pelo fato
de a internet disseminar informação convertida em dados, portanto imate-
rial, na temática dos direitos autorais o impacto de seu uso foi mais inten-
so. Na rede, as obras musicais são digitalizadas8, pois transformadas em
bits9.

7 Neste sentido, numa abordagem filosófica ver Pierre Levy: LÉVY, Pierre. Cibercultu-
ra. 9. ed. Rio de Janeiro: Editora 34, 2000, As tecnologias da inteligência. 9. ed. Rio de
Janeiro: Editora 34, 2000; O que é virtual. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora 34, 1999.
Numa abordagem sociológica ver: CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. A era
da informação: economia, sociedade e cultura, v. I. São Paulo: Paz e Terra, 1999. O
poder da identidade. A era da informação: economia, sociedade e cultura. v. II. São
Paulo: Paz e Terra, 1999. O fim do milênio. A era da informação: economia, socieda-
de e cultura. v. III. São Paulo: Paz e Terra, 1999. Novas perspectivas críticas em educa-
ção. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. Na perspectiva jurídica, encontramos o pen-
samento de: ASCENSÃO, José de Oliveira. As autoestradas da informação e a socie-
dade da informação. Estudos jurídicos. Coimbra: Almedina, 1999; ASCENSÃO, José
de Oliveira. Direitos autorais na Internet. Verba Iuris, Curitiba, ano II, n. 1, ago/99, p.
7-26; ASCENSÃO, José de Oliveira. A Sociedade da Informação. In: Direito da Socie-
dade da Informação. vol. I. Coimbra: Coimbra Editora, 1999. Numa abordagem das
contradições dos processos sociais ver: MORIN, Edgar. Para sair do século XX. 30.ª
ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986; GARAUDY, Roger. Apelos aos vivos. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1981. SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. 4. ed.
Rio de Janeiro: Record, 2000.
8 Para detalhado histórico do roteiro da estrutura da música eletrônica, desde seu
início (em 1937, com a guitarra elétrica) até a digitalização, vide: BERTRAND, An-
dré. La musique et le droit De Bach à Internet. Paris: Éditions Litec, 2002, p.25-35.
9 Extrai-se das aulas ministradas em 1974 pelo Professor italiano Mario G. Losano no
Curso de Extensão Universitária realizado no Departamento de Direito Econômico
Financeiro da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo que: "os termos ca-
racteres binários traduzem o inglês 'binary digits'. Da aglutinação destas duas pala-
vras nasceu o termo bit, que indica justamente o dígito binário. (...) Se o bit é a menor
419
Ana Márcia Rodrigues Moroni · Viviane Furtado Migliavacca
Em forma eletrônica, as obras protegidas pelo direito de autor analisam-se
em sequências de dígitos, tal como os programas de computador em códi-
go objeto. Isto é, em forma digital, uma obra é geralmente gravada (fixada)

parte da informação, mas não tem significado, o byte é a menor parte significativa de
um código EBCD. Um byte é composto, pois, de 8 bits e corresponde à dupla tétrade
que caracteriza esse código". (LOSANO, Mario G. Lições de informática jurídica. São
Paulo: Resenha Tributária, 1974. p.67). "O sistema binário é um sistema de numera-
ção formado por apenas dois algarismos: 0 (zero) e 1 (um). Ou seja, só admite duas
possibilidades, sempre antagônicas, como: tudo/nada; ligado/desligado; presen-
ça/ausência, direito/esquerdo, alto/baixo, verdadeiro/falso, aceso/apagado... Seme-
lhante ao sistema de numeração arábico que usamos (que, quando se chega ao 9, re-
torna-se ao 0), no código binário quando se chega ao 1 volta-se ao 0, já que o conjun-
to só possui dois algarismos. Os microprocessadores percebem somente sinais elétri-
cos, distinguindo-os em dois níveis de voltagem: - nível alto, "high", H, correspon-
dente a tensão elétrica alta, e - nível baixo, "low", L, tensão elétrica baixa. Portanto,
qualquer comunicação com o microprocessador pode ser reduzida exclusivamente a esses
dois sinais, asociando-se H com o bit 1 e L com o bit 0". (CONTI, Fátima. Muitas dicas.
Disponível em: http://www.cultura.ufpa.br/dicas/ progra/arq-cod.htm. Acesso em: 5 abr.
2020). Norbert Wiener explica o motivo da escolha do código binário: "a máquina de
computação deve ser uma máquina lógica tanto quanto aritmética e devem combinar
contingências de acôrdo com algum algoritmo sistemático. Embora haja inúmeros
algoritmos que poderiam ser utilizados na combinação de contingências, o mais sim-
ples é conhecido como a álgebra da lógica par excellence, ou a álgebra de Boole. Este
algoritmo, como a aritmética binária, baseia-se na dicotomia, a escolha entre o sim e
o não, a escolha entre estar em uma classe e estar fora. As razões de sua superioridade
sôbre outros sistemas são da mesma natureza que as da superioridade da aritmética
binária sôbre outras aritméticas". (WIENER, Norbert. Cibernética; ou, contrôle e
comunicação no animal e na máquina. Trad. Gita K. Ghinzberg. São Paulo: Polígono
e Universidade de São Paulo, 1970. p.155-156). Uma curiosidade: o correspondente a
"USP", em código binário, é "010101010101001101010000" e a "direito de autor" é
"011001000110100101110010011001010110100 101110100011011110010000001100
1000 1100101001000000110000101110101011101000110111101 1100100000110100
001010". Aliás, não deixa de ser interessante saber que o equivalente a "01" é, em có-
digo binário: "0011000000110001". Existe um sítio na internet que oferece a "tradu-
ção", e pode ser acessado em http://nickciske.com/tools/binary.php. Acesso em: 5
maio 2007.
420
Domínio público e sua relação com os direitos autorais e direitos conexos
como uma sequência de códigos binários (zeros e uns) utilizando meios
especiais de codificação10.
Dentro desse contexto, diferentes instituições foram estimuladas a criar
grupos de cientistas que, coordenadamente, desenvolveram o programa de
pesquisa para a transmissão de rádio e televisão digital, resultando nos
padrões de compressão MPEG (Moving Picture Experts Group), o qual, no
que diz respeito ao áudio, recebeu, após sua denominação, a expressão
Audio Layer.
Boa parte conteúdo disponível na internet é objeto de proteção pelos
direitos autorais, o que fundamenta a necessidade de autorização de seus
respectivos titulares 11para que lá seja utilizado. Inevitável, pois, que severa
tensão passasse a ter lugar na relação entre os direitos autorais e a nova
mídia internet, já que obras de toda natureza (fotografias, textos, músicas e
vídeos) passaram a ser transferidas de seus meios físicos (corpus mechani-
cum) para o meio virtual, mediante processos de digitalização que foram

10 PEREIRA, Alexandre Dias. Música e eletrônica: "sound sampling", obras de compu-


tador e direitos de autor na internet. In: Direito da sociedade da informação. Coim-
bra: Coimbra Editora, 2004. p.318-319. Com a ressalva de que, conforme adiante será
visto, não é unânime na doutrina o entendimento de que a gravação da obra em meio
digital pode ser considerada fixação nos termos da legislação autoral.
11 Sobre a evolução e aprimoramento da linguagem computacional, noticia Alexandre
Freire Pimentel que "a linguagem de máquina – baixo nível – fora substituída pela de
montagem ou assembly, na primeira tentativa de aproximar a linguagem utilizada pe-
lo computador com a humana. Os bits foram substituídos por palavras mnemônicas,
ou seja, associando aquilo que deve ser memorizado com dados ou símbolos já co-
nhecidos. A linguagem assembly, no entanto, apresenta vários dos problemas ineren-
tes à linguagem de máquina, o que somente foi solucionado pelas linguagens avança-
das ou de alto nível. As linguagens de alto nível conseguiram finalmente tornar-se
independentes em relação ao hardware, viabilizando a utilização de um mesmo pro-
grama em diferentes equipamentos, através do uso de programas compiladores,
prescindindo-se do conhecimento do hardware específico do equipamento" (PI-
MENTEL, Alexandre Freire. O direito cibernético: um enfoque teórico e lógico-
aplicativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p.215-216).
421
Ana Márcia Rodrigues Moroni · Viviane Furtado Migliavacca
desenvolvidos e aprimorados com notável rapidez.
Note-se que as leis internas dos países que seguem o mesmo sistema de
proteção aos direitos autorais, notadamente o do direito de autor e o de
copyright, já são entre si harmonizadas, em vista da tradicional divisão em
correspondentes blocos, nas negociações dos tratados e nas assinaturas ou
recusas a tal. Assim, grande dilema trazido pelo digital é a busca da con-
formação legislativa entre os distintos sistemas.
Para José de Oliveira Ascensão:
Nota-se uma progressiva aproximação dos sistemas mundiais de proteção,
com o estabelecimento de pontes entre eles. Particularmente, essa aproxi-
mação verifica-se com o sistema de copyright. A harmonização (e não uni-
formização) dos sistemas é benéfica para todos. Deve por isso ser saudada
como um verdadeiro progresso. Sendo assim, toda a rigidez em posições
incompatíveis é inconveniente12.
É nesse sentido, da harmonização, que deve caminhar a proteção dos
direitos autorais13, buscando-se o equilíbrio entre a defesa dos autores
(caso do direito de autor continental) ou do investidor14 (caso do co-

12 ASCENSÃO, José de Oliveira. Convergências de tecnologias: perspectivas jurídicas.


In: Direito da sociedade da informação. Coimbra: Coimbra Editora, 2004. v.5. p.93.
13 DE ANGELIS, Deborah. La tutela giuridica delle opere musicali digitali. Milão: Giuf-
frè, 2005, p. 88. Comenta: “parte do entendimento de que está a ocorrer a unifor-
mização, para quem "attualmente, i diversi sistemi giuridici di diritto d'autore moderno
si stanno necessariamente uniformando grazie sia all'operato delle convenzioni inter-
nazionali, sia al trend della 'globalizzazione', che invade l'area del diritto e delle rela-
zioni commerciali. Oggi un'adeguata tutela del diritto d'autore, di fronte alla de- terri-
torialità propria del mondo virtuale di Internet, non ammette discrepanze di disciplina
tra i diversi Stati del globo, tutti coinvolti in una relazione di rete"
14 Em sentido contrário ao caráter empresarial da proteção no sistema do copyright,
José de Oliveira Ascensão: "Mas não se pode confundir o Direito Autoral com a pro-
tecção dos investimentos. O Direito Autoral não é o instrumento idôneo para prote-
ger investimentos. Não se pode pregar um direito cujo elevadíssimo nível de protec-
ção é fundado no carácter nobre da criação intelectual e aplicá-lo depois à protecção
422
Domínio público e sua relação com os direitos autorais e direitos conexos
pyright) com o devido respeito às particularidades socioculturais dos po-
vos dos diversos Estados15.

6. O domínio público no direito autoral musical brasileiro


A expressão “domínio público”, disciplinada nos artigos 41 a 45 da Lei
de Direitos Autorais, representa a permissividade quanto à utilização de
uma obra, seja esta literária, artística ou científica. Significa que uma obra
sob domínio público pode ser utilizada livremente, pois, não mais perten-
ce, patrimonialmente, ao seu criador ou cessionário, sendo tutelada pelo
Estado. Assim, para sua utilização torna-se desnecessária a obtenção de
autorização prévia e expressa do titular do direito autoral.
Hammes16 define domínio público da seguinte forma:
Domínio público significa que já não há um titular exclusivo da obra. To-
dos e cada um podem utilizá-la sem depender da autorização de um titular
e sem ter que pagar algo pela utilização. Domínio público não deve ser
confundido com propriedade pública pertencente ao estado.

empresarial. A actividade empresarial deve ter os seus próprios instrumentos de pro-


tecção". (ASCENSÃO, Convergências de tecnologias..., p.92).
15 É justamente em observância ao caráter dinâmico dos povos historicamente demons-
trado que Pontes de Miranda se demonstra contrário à rígida uniformização: "a his-
tória, aí, é quási tudo; mas, se a indagação deixar de apreender o que de longe vem a
formar-se, se não atende ao que a justiça internacional está a confirmar do passado
multiforme (dura, no tempo, o que se escolheu), perde todo o valor científico,
porque reduz a estático o que é, por definição, dinâmico. Que a história, em nossa
disciplina, seja a bússola, como queria Josef Kohler, coisa é de que ninguém deve du-
vidar; todavia, o fim da viagem não é empregar a bússola: é navegar para conhecer, e
conhecer para resolver". (PONTES DE MIRANDA. Francisco Cavalcanti. Tratado de
direito internacional privado. Rio de Janeiro: José Olympio, 1935. Tomo I. p.127-
128).
16 DIAS, Elisângela Menezes. Curso de direito autoral. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p.
90.
423
Ana Márcia Rodrigues Moroni · Viviane Furtado Migliavacca
As músicas, assim como qualquer outro trabalho autoral, garantem di-
reitos autorais para os seus criadores. Porém, existe uma norma chamada
de Domínio Público que em determinado momento torna as músicas (e
outros tipos de artes criações artísticas) passíveis de serem usadas por
qualquer pessoa. O Domínio Público diz respeito ao no Direito da Propri-
edade Intelectual e basicamente consiste no conjunto de obras (músicas,
livros, artigos, invenções e outros) que tem livre uso comercial. Esse uso é
possível pois essas obras não estão submetidas a direitos patrimoniais ex-
clusivos de alguma pessoa física ou jurídica. A Sociedade Informacional é
portadora de um novo paradigma tecnológico organizado a partir da in-
formação, que gerada no meio tecnológico digital é suscetível de acesso e
uso compartilhado. Qualquer pessoa que tenha tido um acesso lícito a uma
informação pode utilizá-la e compartilhá-la, sem que seja necessário solici-
tar previamente qualquer autorização. Assim são exemplos os sites, os
blogs17, podcasts18, twitter19, dentre outros tipos de comunidades de relaci-

17 Denomina-se por blog um site cuja estrutura permite a atualização rápida a partir de
acréscimos dos chamados artigos, ou "posts". Estes são, em geral, organizados de
forma cronológica inversa, podendo ser escritos por um número variável de pessoas,
de acordo com a política do blog. A capacidade de leitores deixarem comentários de
forma a interagir com o autor e outros leitores é uma parte importante de muitos
blogs. A maioria dos blogs são primariamente textuais, embora uma parte seja focada
em temas exclusivos como arte, fotografia, vídeos, música ou áudio, formando uma
ampla rede de mídias sociais. Outro formato é o microblogging, que consiste em blogs
com textos curtos.
18 Denomina-se por Podcasting uma forma de publicação de arquivos de mídia digital
(áudio, vídeo, foto, PPS, etc…) pela Internet, através de um feed RSS, que permite
aos utilizadores acompanhar a sua atualização. Com isso, é possível o acompanha-
mento e/ou download automático do conteúdo de um podcast.
19 O Twitter é uma rede social na Internet que ganhou popularidade mundial desde
2006, trata-se de um servidor para microblogging que permite aos usuários enviar e
receber atualizações pessoais de outros contatos (em textos de até 140 caracteres, co-
nhecidos como "tweets"), por meio do website do serviço, por SMS e por softwares
específicos de gerenciamento.
424
Domínio público e sua relação com os direitos autorais e direitos conexos
onamento existentes na internet que criam zonas de compartilhamento de
informações.
Os direitos autorais refletem internamente o choque entre os interesses
privados do autor e demais titulares de um lado, e os interesses coletivos e
difusos da sociedade em geral, principalmente no que se refere ao acesso
ao conhecimento; daí a importância da internet proporcionando o acesso
público à produção e obras artísticas, literárias ou científicas.
Desta forma, ainda que majoritariamente a interpretação da doutrina
seja a restritiva, a flexibilização pela legalidade da cópia integral privada,
não prevista no rol expresso, obriga o reconhecimento de que a cópia aqui
referida, numa interpretação extensiva da norma coadunando-se com o
sistema vigente, pode ser a integral desde que desalijada do intuito lucrati-
vo, não caracterizando violação ao direito do autor.
Além disso, a definição do domínio público relaciona direitos autorais
que não estão mais em acordo com os direitos autorias ou nunca foram
protegidos pela lei. Está amparado na existência de um espaço em que não
se consideram a produção de obras literárias, artísticas e científicas como
propriedade privada de um ou mais indivíduos.
Para saber se determinada música pode ou não ser utilizada, é preciso
analisar os detalhes deixados pelo próprio compositor ou titular do direito.
Como bem prenota a Lei 9610, em seu inciso II, são também pertencentes
ao domínio público as obras de autor desconhecido. Nesta categoria se
enquadra a música aqui em questão “Dona Maria como vai você”, perten-
cente ao cancioneiro popular. O domínio público representa um regime de
amplas liberdades na utilização da obra autoral, uma vez que o mesmo
implica, na legislação brasileira, na eliminação do exercício dos direitos
patrimoniais, devendo o terceiro que deseje se valer de uma obra autoral
respeitar apenas os direitos morais.
No Brasil, As obras protegidas pelo Direito Autoral somente entram em
Domínio Público pela lei quando: (i) decorridos mais de 70 anos após a

425
Ana Márcia Rodrigues Moroni · Viviane Furtado Migliavacca
morte autor no que tange aos direitos patrimoniais, (ii) quando os autores
falecidos não deixaram herdeiros ou sucessores, e, (iii) quando o próprio
autor for desconhecido (art. 45 da Lei de Direitos Autorais – Lei n.
9.610/98) de qualquer tipo de informação que lhe é inerente, sem que seja,
necessariamente se tenha que mitigar a importância do fluxo do conheci-
mento e da inapropriabilidade da informação que deve sempre estar em
Domínio Público. A informação pertence ao Domínio Público devendo
livremente circular gerando conhecimento e agregando valores sociais,
culturais e econômicos fundamentais para o desenvolvimento da socieda-
de. A Constituição Federal garante o pleno exercício do direito de infor-
mação e dos direitos culturais, a legislação deve também garantir o acesso
às fontes da cultura nacional, bem como, a legislação autoral deve propici-
ar instrumentos de acesso a bens de domínio público permitindo ampla
difusão da informação.
O Direito Autoral deve proteger, portanto, o bem intelectual, mas não
restringir a circulação da informação, pois esta pertence ao Domínio Pú-
blico comum da Sociedade. É, perfeitamente possível diferenciar o bem
intelectual tutelado pelo Direito Autoral (que possuem um direito de ex-
clusivo ao autor sobre o conteúdo de sua obra).

7. A adequação da utilização do dado musical com as regras de


compliance digital e proteção de dados
As canções que são de domínio público, além de poderem ser executa-
das livremente em qualquer ambiente podem ser regravadas sem a preo-
cupação de acréscimo de ônus referente a direitos autorais, tanto patrimo-
niais quanto morais, incluindo ainda os direitos anexos. Mas é importante
relembrar, conforme citado acima, que as regras são diferentes conforme
os países de origem tanto para o direito autoral, quanto para o domínio
público.
Acerca disso, existem projetos que buscam expandir o domínio público
426
Domínio público e sua relação com os direitos autorais e direitos conexos
ou servirem como plataforma das obras. Além disso, o domínio público é
um elemento fundamental para a afirmação da função social dos direitos
autorais, por garantir de forma mais ampla um conjunto de liberdades na
utilização da obra autoral, ainda que, em regra, esse momento apenas seja
possibilitado após a superação de um prazo que cada vez mais se alonga. O
sucessivo prolongamento do direito de exclusividade tem o efeito nocivo
de fazer com que as obras que ingressem no domínio público estejam mui-
to afastadas em termos temporais, mas também de estilo, forma e qualida-
de de reprodução, relativamente à produção cultural contemporânea.
Ademais, o estudo de conhecimentos tradicionais, sob a óptica musico-
lógica e sociológica foi e é imprescindível na aplicação dos Direitos de
Autor às produções intelectuais existentes nas diversas comunidades brasi-
leiras, comunidades estas em que vivem guardiões de conhecimentos tra-
dicionais. A importância do tema se justifica no fato de que direitos auto-
rais musicais de vários mestres, comunidades e grupos populares tradicio-
nais são negligenciados no Estado brasileiro, ao enquadrar as produções
musicais daqueles em obras de "domínio público" ou pertencentes ao "pa-
trimônio nacional", sem análise criteriosa, do ponto de vista jurídico e até
mesmo ético.
Há razões sociais, econômicas e jurídicas para tanto. Quanto mais am-
plo o domínio público maior a garantia de acesso a obras intelectuais por
parte da sociedade. Além disso, maior será, também, a possibilidade de
criação de novas obras a partir de obras alheias, independentemente de
autorização prévia e expressa para esse fim. É a partir da funcionalização
do domínio público que poderemos encontrar novas fronteiras, tais como
o domínio público voluntário.
Imperioso trazer a temática do Compliance, pois uma vez que o conte-
údo disponibilizado seja de uso comum existem regras que a plataforma
indica aos usuários e esse deverá estar atento ao cumprimento, vez que não
seguidas poderão incidir as penas legais pela desatenção. Assim, o Compli-
ance é visto como instrumento norteador das regras a relação de transpa-
427
Ana Márcia Rodrigues Moroni · Viviane Furtado Migliavacca
rência entre a plataforma e o usuário
Portanto, vê-se que com o tratamento adequado e com correta ação de
captação, tratamento e manipulação de dados pessoais, ordenados os da-
dos em classes de acordo com sua importância e departamento. Além dis-
so, também há a preocupação em se adequar a materiais que descrevem a
importância de seguir a legislação e as boas práticas que devem ser segui-
das. Ademais, é essencial que esses materiais estejam disponíveis para
eventuais consultas. Como deve haver uma forte fiscalização do cumpri-
mento da lei, deve haver, ainda, um relatório de impacto à proteção de
dados, com detalhamentos claros que relatem detalhadamente as ações
tomadas pela sua empresa para estar em conformidade com a Lei Geral de
Proteção de Dados (LGPD). Além de servir como proteção jurídica, relató-
rios como esse podem ser solicitados a qualquer momento pe-
la Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD).

8. Considerações finais
Diante do exposto, entende-se que a utilização do cântico popular em
coautoria com outra produtora está em conformidade com as leis brasilei-
ras de Direitos Autorais, sendo considerada canção de domínio público,
cuja utilização satisfaz todas as normas legais nacionalmente codificadas.
Assim, não há violação de nenhum fundamento, doutrina ou jurisprudên-
cia quanto ao tema, motivo pelo qual este parecer mostra-se favorável ao
solicitado pela requerente.

Referências
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(Orgs.). Fundamentos de direito digital: a ciência jurídica na sociedade da
informação. Uberlândia: LAECC, 2020, pp. 411-430.
__________________________________________________

430
DEMOCRACIA DIGITAL E SUA GARANTIA
NA RELAÇÃO ENTRE ESTADO BRASILEIRO
E SOCIEDADE

19
Gabriela Briesemeister
Sthéfane Alves Vasconcelos

1. Introdução
No que lhe diz respeito, cada vez mais a ideia do filósofo canadense
Herbert Marshall McLuhan sobre o surgimento de uma aldeia global, a
partir de novas tecnologias, parece finalmente torna-se realidade.
Em que pese, ainda existir exclusão digital, principalmente nos países
ditatoriais ou carentes de recursos básicos, o progresso tecnológico
reduziu todo o planeta em um só espaço, tornando-se, de certa forma,
interligado pela globalização.
Nesta perspectiva, a fascinação em estar conectado e consumindo
conteúdos multinacionalizados, trouxe uma nova expressão que descreve
o atual momento como “sociedade da informação”. Esta por si só, ilustra
como substituto do complexo da sociedade pós-industrial, portanto, nada
mais é que o uso da Tecnologia de Informação e Comunicação – TIC pela
sociedade, no propósito de interação entre indivíduos e organizações. A
informação tornou-se a matéria prima, permitindo o homem atuar
juntamente com esta.
431
Gabriela Briesemeister · Sthéfane Alves Vasconcelos
Diante da nova realidade, as estruturas sociais e a democracia sofreram
modificações. Neste contexto, após lutas incansáveis e mal sucedidas na
democracia tradicional, a partir do surgimento da internet, abre-se uma
porta da esperança, ferramenta emancipatória daqueles que não tinham
voz na política anteriormente.
O romantismo dessa rede mundial de computadores e aparelhos
móveis interligados encurtou tempo e distância, criando-se uma cultura de
exposição dos dados pessoais nas redes sociais como forma de interação
online, todavia, não só para o bem foi utilizado.
Importante também analisar as iniciativas do governo brasileiro na
proteção da relação com a sociedade através das tecnologias, a fim de se
evitar abusos na coleta e compartilhamento de dados pessoais do cidadão,
coibindo o vigilantismo em massa do estado, e garantindo o pleno
exercício da democracia digital.
Por meio dessa pesquisa, a expectativa do artigo é contribuir para o
melhor entendimento do assunto e verificar em que medida as
informações e ferramentas de comunicação, e as iniciativas
governamentais sobre o assunto podem interferir na democracia do país.

2 Sociedade da informação
Sociedade da informação é todo o resultado desse compartilhamento de
dados, informações, pessoas, por meio das redes sociais que se agregou
com as novas tecnologias móveis, como os smartphones. Esta sociedade
que se originou no século XX, teve seu desenvolvimento focado nas novas
tecnologias que estavam surgindo, pois comportavam-se como um
facilitador de transmissão instantânea das informações.
Nesse sentido, afirma Pinheiro:
Na Era Digital, o instrumento de poder é a informação, não só́ recebida,
mas refletida. A liberdade individual e a soberania do Estado são hoje

432
Democracia digital e sua garantia na relação entre Estado brasileiro e sociedade
medidas pela capacidade de acesso à informação. Em vez de empresas,
temos organizações moleculares, baseadas no Individuo. A mudança é
constante e os avanços tecnológicos afetam diretamente as relações
sociais1.
Nos dias atuais, a sociedade necessita de um suporte tecnológico para
se propagar em todos os aspectos, seja econômico, social, cultural e
político, o que se revela um verdadeiro fenômeno social, instaurado dentro
da sociedade, levando-a a denominação de Sociedade da Informação.
Posteriormente, a tecnologia ganhou novo ímpeto e coloração com o
incremento na velocidade do seu desenvolvimento em várias áreas, como
a eletrônica, as telecomunicações e tantas outras. Essas tecnologias
passaram a condicionar diretamente a sociedade, com sua filosofia de
trabalho, seus instrumentos de produção, sua distribuição do tempo e de
espaço; além de se identificar diretamente com a substância dos
instrumentos e mecanismos de controle que podem causar a erosão da
privacidade. A dimensão que o fenômeno tecnológico assumiu passou
então a se tornar motivo de reflexão para as ciências sociais, entre elas o
direito2.
A sociedade contemporânea tem sido caracterizada como sociedade da
informação diante o papel central que a informação assumiu com as novas
Tecnologias de Informação e Comunicação – NTIC, principalmente a
partir da difusão da internet, o que vem despertando mudanças de várias
ordens nas relações econômicas, sociais, políticas, culturais e filosóficas.
Essas mudanças ainda ocorrem nos dias atuais, e se transformam à medida
que a própria tecnologia redefine seu escopo e alcance.
Assim, diante estes novos contornos, a informação deixou de ser um
processo local para se apresentar em âmbito global, encurtando as
distâncias e criando um novo tipo de sociabilidade, na qual a presença

1 PINHEIRO, Patrícia Peck. Direito Digital. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 74.
2 DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais. 2. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais. 2019, p. 50.
433
Gabriela Briesemeister · Sthéfane Alves Vasconcelos
física já não é essencial para que haja uma relação.
As redes de comunicação digital são um horizonte que pela
simplicidade se agrega à vida individual e coletiva, construindo relações
pessoais e de trabalho. Por conseguinte, podem representar um atributo
que se possa ter ou não3.
A tecnologia se molda na época em que a sociedade se encontra,
juntamente com fatores socioeconômicos, onde ali encontra seus limites e
impulsos. Não se trata apenas da falsa genialidade de indivíduos isolados
que tiveram grandiosas ideias tecnologias digitais.
Desta forma, afirma Martini:
É importante ver sempre a tecnologia como o fruto das relações
econômicas e sociais de uma época, numa intrincada relação, em que
vários fatores são variáveis e devem ser observados. E nunca se ver, sob
pena de um enorme falseamento da realidade, como o trabalho de
indivíduos geniais solitários. A inventividade humana é uma das variáveis
da criação tecnológica e só se explica em relação a forças sociais e
econômicas de uma época4.
Esta sociedade pós-industrial ou “informacional”, como prefere
Castells, está ligada à expansão e reestruturação do capitalismo desde a
década de 80. A sociedade da informação e do conhecimento é sem dúvida
um capítulo a mais no processo de industrialização que começa na Europa
ocidental e se planetariza ao longo do século XX5. As transformações
geradas pela indústria e a técnica já apontavam decisivamente para ruptura
da vida tradicional.
Novas tecnologias como a internet e a telefonia móvel tornaram o

3 MARTINI, Renato. Sociedade da informação: para onde vamos. São Paulo: Trevisan,
2017. E-book.
4 MARTINI, Renato. Sociedade da informação: para onde vamos. São Paulo: Trevisan,
2017. p. 29. E-book.
5 HOBSBAWN, Eric. Marx et l’histoire. Paris: Editions Demopolis, 2008, p. 91.
434
Democracia digital e sua garantia na relação entre Estado brasileiro e sociedade
cidadão um ator social com poder além do voto. Sua opinião agora se faz
ouvir cotidianamente e em tempo real, dando à sociedade a oportunidade
de exprimir sua vontade. Assim, a “revolução eletrônica” transformou a
informação em verdadeira arma, de caráter essencial na relação entre
Estado e sociedade e o exercício da democracia.

2.1. Informação e base de dados como nova matéria-prima


A internet, nos termos definidos por Lorenzetti6 é uma rede aberta,
interativa, internacional, dotada de múltiplos operadores, descentralizada,
regulada a partir do costume, acelerada perante o tempo histórico e
favorável a uma economia baseada na informação, que reduz
drasticamente os custos de transação.
O compartilhamento de dados nas redes sociais vem gerando
relevância no assunto base de dados. Esta base de dados, denominada
também como Big Data, tornou-se parte da sociedade da informação.
Entende-se por Big Data o compilado de informações, com grande
volume e variedade de dados pessoais. Pode-se, a partir do tratamento de
dados, otimizar negócios, serviços e produtos, pois é possível detalhar com
mais precisão as necessidades e gostos daquele nicho.
Definir o termo Big Data é quase tão complicado quanto prever seu
futuro. A primeira definição da maneira que conhecemos hoje surgiu em
2001, com Doug Laney, da empresa Gartner Group, os famosos 3 V’s:
Volume, Velocidade e Variedade7.

6 LORENZETTI, Ricardo L. Comércio eletrônico. Tradução por Fabiano Menke. São


Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 78.
7 BULIAN, Braian de Souza; ALENCAR, Cícero Aparecido. A Importância do Big
Data para a Compreensão dos Hábitos de Compra dos Consumidores, Aumentando
as Vantagens Competitivas no Comércio Varejista. Revista Científica
Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento, Edição 08, a. 02, v. 03, pp 18-41, nov.
2017, p. 21.
435
Gabriela Briesemeister · Sthéfane Alves Vasconcelos
Complementando a definição, são bancos de dados gigantes, que
precisam de formas inovadoras de processamento de informação para uma
melhor percepção e tomada de decisão. Na prática, significa que
ferramentas poderosas estão minerando informações com mais eficiência
para obter ações vantajosas como mapear o trânsito para sugerir melhores
rotas, monitorar interesses para oferecer serviços e produtos
personalizados, e até acelerar a decodificação do genoma humano.
Entende-se, portanto, a partir das informações acima, que a era da
informação e o Big Data vieram para ficar. Não só pela tecnologia de ponta
desenvolvida, mas também pela cultura do compartilhamento de dados
pessoais nas redes sociais e todo o uso dessas informações reunidas, que se
comportam como base de dados, a fim de melhorar e otimizar negócios
existentes ou para criar tendências.
Assim, inegável que hoje o poder da informação ganhou proporções
continentais, configurando, pois, verdadeiro direito humano, o qual deve
ser fornecido e garantido a todas as pessoas e assegurado pelo Estado.

3. Interação digital entre estado e sociedade e o exercício da democracia


digital
Caminhamos hoje por mais uma das transições sociais que
transformam a sociedade ao longo dos tempos, e as transformações sociais
estão diretamente ligadas às transformações tecnológicas da qual a
sociedade se apropria para se desenvolver e se manter.
Novas concepções surgiram, novas práticas e ocupações, tudo mudou
em tão pouco tempo. Fala-se em Sociedade Midiática, em Era Digital, Era
do Computador; a sociedade passou a ser denominada não por aquilo que
é ou pelos seus feitos, mas a partir dos instrumentos que passou a utilizar
para evoluir. Desta forma, a evolução da sociedade é predominantemente
marcada pelo desenvolvimento das tecnologias e meios de informações.

436
Democracia digital e sua garantia na relação entre Estado brasileiro e sociedade
O surgimento da rede internet, por exemplo, decididamente alargou as
possibilidade de comunicação, e fez emergir um grande número de
questões ligadas à privacidade. O impacto que a rede proporcionou,
porém, já se encontrava de certa forma incubado em tecnologias
anteriores, que provocaram fenômenos assemelhados e que, se hoje
podem até parecer pálidos, devem ser considerados em relação ao que
representaram à sua época – afinal, são justamente impressões como essas
que o suceder das gerações costuma apagar da memória de uma sociedade.
Assim, o telégrafo e o telefone, como instrumentos de comunicação
bidirecional, ou mesmo o rádio e a televisão contribuíram cada um deles
para formar a consciência de que representavam um encurtamento das
distâncias, do fim de limites antes intransponíveis e, consequentemente,
de uma interação mais frequente entre as pessoas, elementos que estão no
âmago das questões relacionadas com privacidade8.
Oferecendo a Internet ao mundo, a comunidade científica lhe ofertou a
infraestrutura técnica de uma inteligência coletiva, transmitindo, assim,
para o resto da humanidade sua melhor invenção, aquela de seu próprio
modo de sociabilidade, de seu tipo humano e de sua comunicação. Essa
inteligência coletiva refinada há séculos é perfeitamente encarnada pelo
caráter livre, sem fronteiras, interconectado, cooperativo e competitivo da
Web e das comunidades virtuais9.
Ao se adentrar no campo da política, necessária análise em dois
aspectos: de um lado, o Estado, e como suas estruturas se adaptam à
utilização da internet, e viabilizam a participação, interatividade,
transparência e democratização de processos; e de outro lado, a sociedade,
com seus movimentos na atuação política e interações com o Estado,
exercendo juízo crítico e participativo.

8 DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais. 2. ed. São Paulo:


Revista dos Tribunais. 2019, p. 66-67.
9 LÉVY, Pierre. A conexão planetária: o mercado, o ciberespaço, a consciência. São
Paulo: Editora 34, 2001, p. 79.
437
Gabriela Briesemeister · Sthéfane Alves Vasconcelos
A Democracia digital é o produto final das medidas descentralizadoras,
de forma que o cidadão tem ao seu dispor a ferramenta mais poderosa da
atualidade, a informação. Configura a maior facilidade de acesso à
informação somado às iniciativas públicas de transparência.
Neste tocante, conforme bem anotado por André Lemos10, as
tecnologias que temos agora à disposição permitem a transformação
comunicativa, política, social e cultural efetivamente, sendo possível
transitar informação, bens simbólicos, não materiais, de uma maneira
inédita na historia da humanidade. A internet e seus meios viabilizam a
produção coletiva, colaborativa e distributiva da informação, o que
caracteriza uma verdadeira revolução da informação e da possibilidade da
produção coletiva e independente da informação.
Assim, evidente a repercussão refletida no Poder Público, de modo que
as tecnologias da informação e comunicação, denominadas TICs, e a
Internet alteraram o paradigma governamental da administração pública.
Novas formas de interação entre o governo e a sociedade tiveram que ser
desenvolvidas, evidenciadas através do surgimento do governo eletrônico,
o que modernizou o conceito de cidadania, colocando o indivíduo
ativamente no processo decisório, integrando o gerenciamento da esfera
pública.
A esfera pública pode ser descrita como uma rede adequada para a
comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões; nela os fluxos
comunicacionais são filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem
em opiniões públicas enfeixadas em temas específicos. Do mesmo modo
que o mundo da vida tomado globalmente, a esfera pública se reproduz
através do agir comunicativo, implicando apenas o domínio de uma
linguagem natural; ela está em sintonia com a compreensibilidade geral da

10 LEMOS, A. In: SAVAZONI, R; COHN, S. (Orgs). Cultura digital.br. Rio de Janeiro:


Beco do Azougue, 2009, p. 136-137.
438
Democracia digital e sua garantia na relação entre Estado brasileiro e sociedade
prática comunicativa cotidiana11.
Entrentanto, embora os princípios do governo eletrônico ressaltem a
importância da participação do cidadão, a realidade é que ainda há um
gigante distanciamento entre acentuada parcela da população e as
plataformas on-line do governo, não havendo inserção isonômica da
população, extremamente carente em alguns países, o que apenas gera
aumento da exclusão digital.
Realmente, a proposta de uma democracia digital ou e-democracia
pressupõe a apresentação de soluções para problemas concernentes à
dinâmica das interações em rede, e para a superação de adversidades
relativas à inclusão e à exclusão digital e ao grau de engajamento político-
democrático da população12.
Como bem aborda Rinalda Riecken, a exclusão digital está associada à
exclusão social e ambas constituem alguns dos obstáculos do e-gov que
devem ser superados, pois limitam o alcance da maioria dos cidadãos à
informação13.
Não obstante, impe ressaltar as mudanças causadas nos conceitos de
democracia e cidadania diante o supedâneo da tecnologia, as quais
passaram por mudanças mais aceleradas, diante sua característica fluída.
O processo de virtualização da informação e da opinião afetam

11 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Tradução de


Fábio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, V. II, p. 92.
12 LONGHI, João Victor Rozatti. Dignidade.com: direitos fundamentais na era do
populismo 3.0. In: LONGHI, João Victor Rozatti; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de
Moura (Coord.). Estudos essenciais de direito digital. Uberlândia: LAECC, 2019, p.
200.
13 RIECKEN, Rinalda Francesca. Governo eletrônico em administrações locais
brasileiras: avaliação de progresso, fatores intervenientes e critérios de priorização de
iniciativas. 2008. 1076f. Tese (doutorado) - Universidade de Brasília, Faculdade de
Economia, Contabilidade e Ciência da Informação e Documentação, Departamento
de Ciência da Informação e Documentação, 2008, p. 1076.
439
Gabriela Briesemeister · Sthéfane Alves Vasconcelos
diretamente os alicerces das relações entre Estado e sociedade, o que,
inclusive, viabiliza a reivindicação e conquistas de direitos perante o Poder
Público, podendo se falar em um novo processo de democratização,
fomentada por meio do emprego da tecnologia.
Assim, a cidadania nos dias de hoje pode ser constatada como uma
frequente luta por direitos frente aos interesses do Estado e das elites
econômicas, sendo que as minorias têm como principal amparo os
movimentos sociais, desencadeados ao longo dos anos e que buscam obter,
principalmente, a igualdade de fato.
Para entender o sentido contemporâneo de cidadania é preciso entender
sua relação com os direitos humanos. Num mundo onde as fronteiras são
cada vez menos decisivas, o ser humano adquire a possibilidade e a
capacidade de pensar sobre diversas questões a partir de pontos de vistas
de outras culturas, a globalização possibilitou acima de tudo o
enfraquecimento das linhas imaginárias para o Capital, sobretudo na
forma de serviços e mercadoria, porém, o ser humano não pode desfrutar
dessa realidade por inteiro, as grandes forças econômicas globais não
possuem interesse em indivíduos que não possam gerar lucro, dessa forma
a globalização supervaloriza o Capital em detrimento do homem14.
Inconteste que a democracia ainda é a melhor forma de acesso ao poder
para a coletividade, a verdadeira forma do poder emanar do povo. As
transformações sociais são impulsionadas pelo debate e o embate entre as
partes envolvidas, de modo que as novas tecnologias impulsionam e
agilizam essas transformações, pois possibilitam ao indivíduo mecanismos
para desafiar as estruturas de poder vigentes, criando um ambiente
propício para a mudança.

14 ALVES. Diego da Cunha. Estado e sociedade na era da informação: a relação entre as


transformações sociais e as novas tecnologias da informação na contemporaneidade.
Disponível em: https://monografias.brasilescola.uol.com.br/historia/estado-
sociedade-na-era-informacao-relacao-entre-as-transformacoes-sociais-novas-
tecnologias.htm. Acesso em 20 de março de 2020.
440
Democracia digital e sua garantia na relação entre Estado brasileiro e sociedade
A democracia tem como pilar a participação popular. Por consequência,
direitos políticos estão intrinsecamente relacionados ao exercício desta.
Acontece que, atualmente, as estruturas da democracia tem sido
redefinidas, a exemplo de outras transformações que já sofreu, pelas atuais
transformações sociais, como a popularização da internet. Assim, a parcela
da população que não possui acesso à internet pode ver o exercício dos
seus direitos políticos prejudicado afetando a efetiva democracia15.
Não obstante as grandes revoluções geradas na sociedade,
principalmente movidas pela superveniência das tecnologias de
informação e comunicação, o que facilita o acesso, pesquisa e
reivindicações de direitos, evidente que o poder ainda é controlado pelo
Estado, sendo busca constante da população a facilitação e amplo acesso às
informações por ele detidas, buscando-se um verdadeiro processo de
democratização.
Inegável o aumento da participação popular nos processos de interesse
público em razão das novas ferramentas tecnológicas, seja pela busca e
divulgação de opiniões, seja pela mobilização de movimentos e protestos.
No entanto, mister ressalvar que, em que pese a popularização da
internet e conquistas na democracia pelo acesso às informações e ações do
Estado, muito ainda se falta para pleno exercício de direitos
constitucionalmente assegurados. Grande barreira vivenciada,
principalmente nos países menos desenvolvidos, é a denominada exclusão
digital, gerada especialmente pela falta de recursos da população de baixa
renda, o que inviabiliza o pleno exercício da cidadania, sendo fator gerador
de desigualdade, direito fundamental do ser humano.

15 MEIRA, Matheus Junqueira de Almeida. Acesso à internet como direito


fundamental: a necessidade de garantia ao ingresso no mundo virtual. In: LONGHI,
João Victor Rozatti; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura (Coord.). Estudos
essenciais de direito digital. Uberlândia: LAECC, 2019, p. 300.
441
Gabriela Briesemeister · Sthéfane Alves Vasconcelos
4. Democracia digital no Brasil
A sociedade brasileira está em constante e acelerada mudança. As
tecnologias digitais são cada vez mais parte essencial dessa nova sociedade
e inserem-se naturalmente na administração pública, da mesma forma em
que estão mais presentes no país, pelo natural desenvolvimento de sua
acessibilidade e pela clara identificação das facilidades que delas advêm.
Não é preciso muita imaginação para prever que o desenvolvimento da
técnica, a transformação das condições econômicas e sociais, a ampliação
dos conhecimentos e a intensificação dos meios de comunicação poderão
produzir tais mudanças na organização da vida humana e das relações
sociais que se criem ocasiões favoráveis para o nascimento de novos
carecimentos e, portanto, para novas demandas de liberdade e de
poderes16.
O Estado deve acompanhar a mudança social e adequar sua estrutura,
seus serviços e valores para este novo momento, buscando identificar e
atender às expectativas da sociedade quanto à capacidade do governo em
atender às demandas sociais com geração de valor.
O ponto fundamental do estudo dos impactos das Tecnologias da
Informação e Comunicação (TICs), especialmente da Internet, no recente
delineamento do princípio democrático, está situado na problemática do
encurtamento da distância entre o Estado e a sociedade civil, na medida
em que se nota um sensível desvirtuamento do uso da web para finalidades
diversas daquelas concebidas em sua origem17.
Visando ampliar a participação popular na construção das políticas
públicas e aprimorar a qualidade e a efetividade dos serviços e

16 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 20.
17 LONGHI, João Victor Rozatti. Dignidade.com: direitos fundamentais na era do
populismo 3.0. In: LONGHI, João Victor Rozatti; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de
Moura (Coord.). Estudos essenciais de direito digital. Uberlândia: LAECC, 2019, p.
200.
442
Democracia digital e sua garantia na relação entre Estado brasileiro e sociedade
informações, no início da década de 2000, a Administração Pública
Federal brasileira começou a estruturar as ações de governo digital sob a
denominação de governo eletrônico – e-Gov, com a finalidade de priorizar
o uso das tecnologias de informação e comunicação - TICs para
democratizar o acesso à informação.
Desde então, várias ações foram desenvolvidas e culminaram com a
evolução do paradigma de “governo eletrônico” para “governo digital” no
Estado brasileiro. Uma das características da evolução do governo
eletrônico para o governo digital é a disponibilização de plataformas
digitais. O governo como plataforma é um dos princípios orientadores da
governança digital da administração federal.
O Governo Digital tem como escopo ampliar a interatividade e a
participação política nos processos do Estado, bem como facilitar à
população a navegação e acesso a portais e serviços de governo em prol da
integração, da transparência e do atendimento às demandas da sociedade.
A implantação do Governo Digital proporciona também melhorias na
comunicação entre governo e população, interagindo Estado com
sociedade, facilitando a prestação de contas à sociedade, e configurando
ferramenta importante para o fortalecimento da democracia.
Com este objetivo, a estrutura de governança digital brasileira compõe-se
de instâncias de decisão e participação diversas e representativas de vários
setores. Organizada por conselhos de planejamento com composições
diversas, essa estrutura busca captar as demandas e tendências da
sociedade e direcionar os processos de digitalização para, em discussões
colegiadas, definir os documentos e marcos que guiam a transformação
digital no país.
...
Os Conselhos atuam como agentes de transformação digital do governo e
elaboram, coletivamente, os documentos e guias estratégicos para as
políticas e ações do Estado no tema. O principal guia estratégico é a
Estratégia brasileira para a Transformação Digital, documento de
443
Gabriela Briesemeister · Sthéfane Alves Vasconcelos
construção coordenada pelo MCTIC com a participação de mais de 30
órgãos e entidades da APF, além de diversos atores da academia e da
sociedade civil. A E-Digital propõe-se como documento central da política
pública para a transformação digital da economia, do governo e da
sociedade brasileira, e organiza sua abordagem em dois grandes eixos:
Transformação digital da economia e Transformação Digital do
Governo18.
Importante avanço na democracia digital foi a Lei Federal nº 12.527, de
18 de novembro de 2011, conhecida como Lei de Acesso a Informação
(LAI), que pretende promover a transparência das ações de governo,
regulamentando o acesso às informações, previsto constitucionalmente.
Assim, contribui para o aumento da eficiência do Poder Público, a
diminuição da corrupção e a elevação da participação social.
Em atendimento à legislação, restou disponibilizado o Portal de Acesso
a Informação (http://www.acessoainformacao.gov.br) pelo governo, em
que é possível a consulta às informações públicas.
No Brasil a Lei de Acesso à informação (LAI)2, em vigor desde 2012, foi
um importante passo rumo aos direitos do cidadão, garantindo o direito
de aquisição de informações públicas com maior agilidade e menos
burocracia. A participação da população na gestão pública é fundamental
para uma democracia saudável, o Estado não deve ser entendido como
uma grande máquina kafkiana que se apresenta de forma indiferente aos
anseios sociais. Tais iniciativas evidenciam os esforços, sobretudo, do
Poder Executivo, para responder as demandas atuais, entendendo a coisa
pública como uma estrutura que precisa encaixar o cidadão para além das
obrigações. O direito à informação passa a ser realmente sentido como um
direito humano legítimo e atua para tornar a relação Estado e sociedade

18 BRASIL. Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão. Estratégia de


Governança Digital – EGD. Transformação Digital: cidadania e governo. Disponível
em: https://www.gov.br/governodigital/pt-br/estrategia-de-governanca-digital/revi
saodaestrategiadegovernancadigital20162019.pdf. Acesso em 19 de março de 2020.
444
Democracia digital e sua garantia na relação entre Estado brasileiro e sociedade
mais justa19.
Importante destacar que o portal da transparência não está restrito
apenas ao Poder Executivo, estendido em diversas plataformas dos órgãos
públicos, o que, além de cumprimento à LAI, viabilizam a remodelagem da
própria forma de governar, de uma maneira mais transparente e aberta à
população, propiciando a democracia digital.
O Governo eletrônico é o resultado atual da aplicação das novas tecno-
logias de informação e comunicação para prestar serviços ao cidadão de
forma mais eficiente possível, renovando os moldes de governança públi-
ca.
Governo Eletrônico – e-gov, sob forma abreviada – É reinterpretação e
revolução da gestão do poder público, ora sustentado por tecnologias
informacionais, cujo intuito é dar suporte para que o Governo acompanhe
a evolução dos tempos20.
Apesar do interesse estatal em disseminar mecanismos de importância
para a transparência, uma verdadeira democracia eletrônica esbarra no
problema da inclusão digital.
Nítido que nos dias de hoje, a internet é um meio indispensável para o
pleno exercício da cidadania e participação na democracia, de modo que,
aqueles que estão à margem, muito provavelmente em razão de questões
de ordem econômica, ficarão ainda mais distantes da gestão pública,
aumentando ainda mais a exclusão.

19 ALVES. Diego da Cunha. Estado e sociedade na era da informação: a relação entre as


transformações sociais e as novas tecnologias da informação na contemporaneidade.
Disponível em: https://monografias.brasilescola.uol.com.br/historia/estado-
sociedade-na-era-informacao-relacao-entre-as-transformacoes-sociais-novas-
tecnologias.htm. Acesso em 20 de março de 2020.
20 GARCIA, Thais Helena Bigliazzi; POMAR, Claudia Diaz; HOESCHL, H. C.; BAR-
CELLOS, Vania. A democracia na era do governo eletrônico. In: II Simposio
Internacional de Propriedade Intelectual, Informação e Ética - Ciberética, 2003,
Florianópolis. Anais do II Ciberética, 2003. v. 1. p. 3.
445
Gabriela Briesemeister · Sthéfane Alves Vasconcelos
Fato inconteste que o Brasil possui elevados índices de desigualdade
social, o que dificulta o pleno exercício da democracia digital por todas as
camadas, diante a drástica diferença social existente na população
brasileira.
Assim, a implantação de um governo digital, com prestação de serviços
e informações em plataformas eletrônicas, apenas agrava a desigualdade
existente no país, pois as pessoas menos favorecidas ficarão cada vez mais
excluídas das ações governamentais.
O governo tem modernizado suas prestações fáticas. Nesse sentido, com a
ideia de governança digital ganhando corpo no Brasil, os indivíduos que se
encontram à margem da digitalização, podem se ver excluídos da
participação social, o que enfraqueceria a democracia e, por consequência,
os direitos políticos, se estendendo o referido enfraquecimento até ao
acesso à justiça21.
Importante colacionar os princípios que, segundo o Ministério do
Planejamento, Desenvolvimento e Gestão em sua Estratégia de
Governança Digital - EGD (BRASIL, 2018), orientarão as atividades de
governança digital na Administração Pública Federal: (i) foco nas
necessidades da sociedade: a perspectiva da sociedade, pessoas físicas e
jurídicas, é o principal instrumento para o desenho e a entrega de serviços
públicos digitais; (ii) abertura e transparência: ressalvado o disposto em
legislação específica, dados e informações são ativos públicos que devem
estar disponíveis para a sociedade, de modo a dar transparência e
publicidade à aplicação dos recursos públicos nos programas e serviços,
gerando benefícios sociais e econômicos; (iii) compartilhamento da
capacidade de serviço: órgãos e entidades deverão compartilhar

21 MEIRA, Matheus Junqueira de Almeida. Acesso à internet como direito


fundamental: a necessidade de garantia ao ingresso no mundo virtual. In: LONGHI,
João Victor Rozatti; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura (Coord.). Estudos
essenciais de direito digital. Uberlândia: LAECC, 2019, p. 300.
446
Democracia digital e sua garantia na relação entre Estado brasileiro e sociedade
infraestrutura, sistemas e serviços, de forma a evitar duplicação de
esforços, eliminar desperdícios e custos e reduzir a fragmentação da
informação em silos; (iv) compartilhamento de dados: órgãos e entidades
da administração pública federal direta, autárquica e fundacional deverão
compartilhar dados entre si, sempre que houver oportunidade de
simplificar processos administrativos e a prestação de serviços à sociedade;
(v) simplicidade: reduzir a complexidade, a fragmentação e a duplicação
das informações e dos serviços públicos, otimizando processos de negócio,
com foco na eficiência da prestação de serviços à sociedade; (vi)
priorização de serviços públicos disponibilizados em meio digital: sempre
que possível, os serviços públicos serão oferecidos em meios digitais,
sendo disponibilizados para o maior número possível de dispositivos e
plataformas; (vii) segurança e privacidade: os serviços públicos digitais
devem propiciar disponibilidade, integridade, confidencialidade e
autenticidade dos dados e informações, além de proteger o sigilo e a
privacidade pessoais dos cidadãos na forma da legislação; (viii)
participação e controle social: possibilitar a colaboração dos cidadãos em
todas as fases do ciclo das políticas públicas e na criação e melhoria dos
serviços públicos. Órgãos e entidades públicas devem ser transparentes e
dar publicidade à aplicação dos recursos públicos nos programas e serviços
do Governo Federal, fornecendo informação de forma tempestiva,
confiável e acurada para que o cidadão possa supervisionar a atuação do
governo; (ix) governo como plataforma: o governo deve constituir-se
como uma plataforma aberta, sobre a qual os diversos atores sociais
possam construir suas aplicações tecnológicas para a prestação de serviços
e o desenvolvimento social e econômico do país, permitindo a expansão e
a inovação; (x) inovação: devem ser buscadas soluções inovadoras que
resultem em melhoria dos serviços públicos.

447
Gabriela Briesemeister · Sthéfane Alves Vasconcelos
4.1. Dos atos normativos atuais do governo brasileiro e a proteção à
democracia na era da informação
A democracia digital não engloba apenas a facilitação do acesso e
comunicação entre governo e sociedade, sendo necessária também a
proteção pelo Estado à cidadania, diante os novos contornos e
inseguranças geradas pelo contexto tecnológico.
Apesar das alterações revolucionadas pelas tecnologias de informação e
comunicação, inegável que grande parte dos dados dos cidadãos se
encontra em poder e conhecimento do Estado, seja para auferir benefícios,
obter serviços, prestar declarações, e cumprir deveres constitucionalmente
instituídos, como pagamento de impostos.
A Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018, chamada Lei Geral de
Proteção de Dados, principal lei sobre privacidade no Brasil, demorou oito
anos para ser sancionada, passando por consultas públicas, debates com a
sociedade civil e uma longa tramitação no Congresso Nacional, com
previsão de vigência plena a partir de agosto de 2020.
No entanto, no dia 09 de outubro de 2020, editado pelo chefe do Poder
Executivo os decretos nºs 10.046 e 10.047, que podem ocasionar drástico
impacto na privacidade dos cidadãos, diante a criação de uma grande base
de dados com diversas informações pessoais, de livre acesso e
conhecimento pelo governo.
Referidos decretos dão origem ao Cadastro Base do Cidadão e ao
Comitê Central de Governança de Dados, sob a justificativa de facilitar o
acesso dos brasileiros aos serviços governamentais. Ocorre que, ao reduzir
as barreiras de compartilhamento e cruzamento de bancos de dados, gera
riscos à privacidade e proteção de dados dos cidadãos, o que, inclusive
questiona a compatibilidade dos decretos com a Lei Geral de Proteção de
Dados – LGPD.
Até a edição do Decreto 8.789/2016 o compartilhamento de bases de
dados dependia da celebração de acordos e convênios entre órgãos e
448
Democracia digital e sua garantia na relação entre Estado brasileiro e sociedade
entidades, o que passou a ser expressamente dispensado desde então.
Publicado em 1/7/2016 e assinado pelo presidente Michel Temer, o
Decreto nº 8.789/2016 foi divulgado como medida de modernização da
administração pública e promoção de eficiência na gestão de políticas22.
Com o atual Cadastro Base do Cidadão regulamentado no Decreto nº
10.046/2019, não apenas os antigos dados cadastrais podem ser comparti-
lhados livremente e automaticamente entre órgãos e entidades, mas uma
ampla variedade de dados pessoais produzidos e coletados pelo Estado no
curso da execução e implementação de políticas públicas.
Chama a atenção que inclusive dados sensíveis poderão ser livremente
partilhados, considerando que o decreto prevê a inclusão de dados biomé-
tricos e não estabelece quaisquer limites, excluído apenas os atributos ge-
néticos, conforme expressamente previsto no §6º do artigo 18.
Falta rigor e precisão às definições do conjunto de informações a serem
inserido no Cadastro Base, bem como ausente nos novos decretos regras e
garantias que protejam a segurança dos dados dos cidadãos. Evidente, pois
que os direitos fundamentais restaram prejudicados em face dos objetivos
estatais vislumbrados por estes atos do chefe do Poder Executivo, os quais
visam o alcance de ampla e irestrita informação sobre a população.
Ademais, os decretos sequer incorporam princípios centrais e diretrizes
já consolidados na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, ignorando o
termo “dados pessoais”, utilizando-se de expressões como “atributos
biográficos” e “atributos biométricos”.
A LGPD já prevê o tratamento e compartilhamento de dados pessoais
pela administração pública para fins de políticas públicas, no entanto, o

22 FRAGOSO, Nathalie; MASSARO, Heloisa. Cadastro Base e amplo compartilhamento


de dados pessoais: a que se destina? Disponível em:
https://www.internetlab.org.br/pt/privacidade-e-vigilancia/cadastro-base-e-amplo-
compartilhamento-de-dados-pessoais-a-que-se-destina/. Acesso em 20 de março de
2020.
449
Gabriela Briesemeister · Sthéfane Alves Vasconcelos
Decreto 10.046/2019 regulamenta e procedimentaliza o compartilhamento
à revelia das diretrizes condicionada pela LGPD para o tratamento de da-
dos pelo Poder Público.
Ademais, não há proteção de que os dados coletados serão utilizados de
forma clara e precisa apenas para o fim inicialmente motivado para coleta,
sendo compartilhados de forma ampla, sem esclarecimento claro ao
titular.
Constata-se que ambos os decretos pretendem uma intensificação do
tratamento de dados, no entanto, ignorando o compromisso do Estado
brasileiro de proteção à cidadania na era da informação, o que visivelmen-
te, se encontra ameaçada pelas estratégias traçadas pelos referidos atos
normativos.
Muitos dos dados fornecidos pelo cidadão ao governo não o são de
forma voluntária, mas sim obrigatória, e agora, vão muito além dos
chamados dados pessoais, dificultando sobremaneira a proteção à
privacidade.
Portanto, os decretos 10.046 e 10.047 visam o amplo acesso e
compartilhamento de informações dos cidadãos aos órgãos e entidades do
Poder Executivo Federal. Pretende a consolidação de atributos biográficos,
biométricos e cadastrais, não prevendo possibilidade de controle sobre
quem e para que seus dados serão acessados.
Desta forma, evidente que a cidadania fica exposta a riscos, vez que
inviabilizado ao indivíduo o poder de conhecer e decidir sobre o
tratamento de seus dados pessoais, não se tendo a dimensão das
informações que o Estado detém.
A segurança de dados é elemento constitutivo do direito à privacidade e
à autodeterminação informativa, restando menosprezada pelos decretos
recentemente editados. Portanto, preocupante no tocante à segurança e
proteção à cidadania, pois tal questão ficou a ser definida pelos gestores e
pelo Comitê Central de Governança de Dados, formada exclusivamente

450
Democracia digital e sua garantia na relação entre Estado brasileiro e sociedade
por membros do Poder Executivo.
Há ainda muitas incertezas sobre os impactos destes decretos, sendo
que tramitam três projetos de lei visando sustar os efeitos do Decreto nº
10.046/2019, com fundamento justamente na extrapolação do poder regu-
lamentar do Poder Executivo e sua incompatibilidade com dispositivos
constitucionais e com a LGPD. Consigna-se que o Decreto 10.047/2019,
que trata da governança do Cadastro Nacional de Informações Sociais e do
compartilhamento de informações com INSS, também está sendo questio-
nado no Legislativo.
É válida a iniciativa do governo em tratar esses dados para simplificar e
aumentar a eficiência na prestação do serviço público, no entanto, tal
iniciativa não pode configurar manejo para se facilitar a discriminação, o
perfilamento e a vigilância em massa, como já ocorreu em alguns países
como China e Índia.
Como reconhece o próprio Governo Federal, no contexto atual, alguns
dos principais desafios a serem enfrentados para aprimorar a efetividade
das ações de governança digital, e assegurar a democracia digital, são: (i)
disponibilizar serviços públicos digitais consolidados em plataforma única;
(ii) conceder amplo acesso à informação, que possibilitem o exercício da
cidadania e a inovação em tecnologias digitais; (iii) aprimorar capacidades
técnicas e humanas relativas ao uso e tratamento de grandes volumes de
dados; (iv) promover um ambiente jurídico-regulatório que estimule
investimentos e inovação, a fim de conferir segurança aos dados tratados e
adequada proteção aos dados pessoais; (v) ampliar os canais de
relacionamento entre a sociedade e o Estado, facilitando o acesso aos
serviços digitais e aos canais de participação social; (vi) mitigar as
vulnerabilidades de segurança nos sistemas de informação
governamentais; (vii) democratizar o acesso aos serviços públicos
prestados por meios digitais.
Necessário, por fim, reforçar sobre o evidente perigo de iniciativas

451
Gabriela Briesemeister · Sthéfane Alves Vasconcelos
governamentais ao editar atos normativos que ampliem a
imprevisibilidade dos usos dos dados colhidos dos cidadãos, o que deve ser
objeto de rígido controle, a fim de garantir proteção e segurança à
sociedade na finalidade e contexto em que serão utilizados seus dados,
assegurando, assim, o exercício de sua plena cidadania, e resguardando
direitos assegurados constitucionalmente.

5. Considerações finais
O ciclo de implantação de novas tecnologias é cada vez mais acelerado,
com mudanças importantes num curto espaço de tempo. De Sociedade
Industrial passou-se rapidamente para Era da Tecnologia e mais rápido
ainda já se vive na Era Digital. Com o advento da internet, as ferramentas
de comunicação foram marcadas pela alta velocidade, com troca de
conteúdo de forma instantânea, o que transforma significativamente a
comunicação entre Estado e sociedade.
O acesso à internet proporciona a efetiva participação do indivíduo na
sociedade e isso inclui o acesso à informação e facilitação na fruição de
serviços públicos oferecidos on-line pelo governo. No entanto, com o
frequente uso das tecnologias de informação e comunicação pelos órgãos
públicos, observa-se que as disparidades sociais vão se agravando e a
parcela menos favorecida se torna renegada pela globalização.
Apesar de alguns avanços pelo governo brasileiro, a realidade atual é de
que ainda há um grande número de pessoas digitalmente excluídas no
país, ocasionado tanto pela baixa renda como também pela ineficácia de
garantia ao acesso digital pelo governo.
Assim, a inclusão digital pelo Poder Público encontra diversos
empecilhos, sendo realizada de forma vagarosa, pois, a exclusão digital é
óbice à isonomia social de acesso na esfera pública.
A participação popular é pressuposto fundamental da democracia, de
forma que garantir o acesso universal, até mesmo da classe menos
452
Democracia digital e sua garantia na relação entre Estado brasileiro e sociedade
favorecida economicamente, obsta sua plena implantação e
funcionamento no setor público. Portanto, para uma total inclusão digital,
inegável se ter primeiramente a inclusão social.
A informação não pode mais ser encarada apenas num aspecto
econômico, mas sim como um verdadeiro direito humano, sendo bem
imprescindível. Evidente que a internet é hoje um meio indispensável
para o pleno exercício da cidadania e do próprio fazer democrático,
devendo o Estado estar preparado para assegurar e proteger esse direito
das mais diversas formas. A esfera virtual pode e deve se tornar ferramenta
democrática, mas, no entanto, somente a partir do momento em que ela
puder ser compreendida e direcionada a esse fim.

Referências
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relação entre as transformações sociais e as novas tecnologias da
informação na contemporaneidade. Disponível em:
https://monografias.brasilescola.uol.com.br/historia/estado-sociedade-
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governança do Cadastro Nacional de Informações Sociais e institui o
programa Observatório de Previdência e Informações, no âmbito do

453
Gabriela Briesemeister · Sthéfane Alves Vasconcelos
Cadastro Nacional de Informações Sociais. Diário Oficial da União,
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Democracia digital e sua garantia na relação entre Estado brasileiro e sociedade
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455
Gabriela Briesemeister · Sthéfane Alves Vasconcelos

__________________________________________________
BRIESEMEISTER, Gabriela; VASCONCELOS, Sthéfane Alves. Democra-
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LONGHI, João Victor Rozatti; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura
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__________________________________________________

456
O SISTEMA JURÍDICO DO BIG DATA E SUA
REPERCUSSÃO PENAL

20
Thiago Pinheiro Vieira de Souza

1. Introdução
Em tempos passados, durante muitos séculos, a terra foi o mais impor-
tante ativo nas sociedades e sua propriedade era disputada como sinônimo
de poder. Com a Revolução Industrial, na Idade Moderna, as máquinas
substituíram a terra e quem controlava os meios de produção detinha o
poder. Hoje, na era da informação, os dados - e a própria informação -
passam a ser a nova riqueza da sociedade. Segundo Yuval Noah Harari,
esse novo paradigma pode inclusive vir a dividir a humanidade em duas
distintas espécies no futuro1.
Diferentemente das máquinas e terras, os dados virtuais são facilmente
transportados, podendo estar em qualquer lugar do planeta em frações de
segundos, ou ser, ainda, utilizados de forma concomitante e visando dife-
rentes finalidades. A complexidade da situação atual encontra-se justa-
mente na dificuldade de se estabelecer a propriedade dos dados e na abso-

1 Teoria apresentada pelo Professor Yuval Noah Harari no Fórum Econômico Mundi-
al, em 2018: “Will the future be human?”, disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=hL9uk4hKyg4, acesso em 12 dez. 2019.
Tradução Livre.
457
Thiago Pinheiro Vieira de Souza
luta inexperiência humana em lidar com ativos imateriais onipresentes2.
Tal propriedade é o cerne da sociedade nas próximas gerações, principal-
mente quando esta é analisada sob a premissa de que a informação con-
centrada pode acabar desaguando em sistemas autoritaristas.
A situação se repercute em diferentes campos, sendo um impasse tanto
econômico-social, no que diz respeito ao comércio, coleta e cruzamento de
informações, quanto jurídico. O presente trabalho objetiva concentrar as
análises nesse último, que vem sendo objeto de reflexão não só quanto à
implementação da utilização de dados no atual sistema jurídico, mas em
uma verdadeira substituição total deste por um novo, baseado única e ex-
clusivamente em dados.
Dessa forma, parte-se da conjuntura atual, que vem cada vez mais utili-
zando ferramentas e tecnologias para a prática jurídica cotidiana. Como
exemplos dessa extensão, é possível citar a “Jurimetria”, que une a análise
de dados jurídicos e os conhecimentos de estatística para produzir infor-
mações precisas, analíticas e conferir uma perspectiva objetiva à subjetivi-
dade do direito; e o Big Data, que são grandes volumes de dados, produzi-
dos e lidos em alta velocidade e que possuem uma enorme diversidade,
para, posteriormente, ao serem filtrados e cruzados de forma eficiente,
poderem fornecer riquíssimas informações a seu analista.
Não se pode deixar de mencionar também a Inteligência Artificial
(I.A.), que vem sendo utilizada para ensinar as máquinas a pensar (machi-
ne learning3) e encontrar soluções para problemas que demandariam uma

2 DALLASTA, Viviane. Vácuo ético – estamos preparados? Disponível em


https://www.lexmachinae.com/2018/04/25/vcuo-tico-estamos-preparados/. Acesso
em: 12 dez. 2019.
3 O termo pode ser traduzido em “aprendizado de máquina”, significando um sistema
que pode modificar seu comportamento autonomamente a partir de sua própria ex-
periência, como mínima interferência humana. Há, basicamente, o estabelecimento
de regras lógicas geradas com base no reconhecimento de padrões dentro dos dados
analisados, visando melhorar o desempenho de uma tarefa. Apesar de ser uma tecno-
458
O sistema jurídico do Big Data e sua repercussão penal
grande quantidade de tempo, dinheiro e pessoas envolvidas; e o Block-
chain, que nada mais é que um protocolo/estrutura de dados/tecnologia
desenvolvido para conferir confiança, transparência, barateamento de
custos, acesso e muitas outras aplicações, sem a necessidade de intermedi-
ários, uma vez que se trata de uma rede distribuída na qual as transações
são validadas/checadas por todos os usuários daquela rede.
Por fim, existem os Smart Contracts, que nada mais que são programas
autoexecutáveis, escritos em código de computador, nos quais são defini-
das regras e consequências de forma bastante estrita, conferindo maior
efetividade e legitimidade ao negociado. Seu cumprimento é totalmente
automatizado, além de irrevogável.
Nesse contexto, a partir da utilização (acessória) do Big Data e algorit-
mos e sistemas de Inteligência Artificial — ou inteligência híbrida (human
plus machine) — diversas decisões já são automatizadas, tanto pela Admi-
nistração Pública, em processos administrativos, quanto pelo Judiciário.

2. Premissas
O Big Data, por definição, requer a utilização de um imenso volume de
dados. Mas não são quaisquer dados, como aqueles relacionados unica-
mente às preferências e histórico de consumo, porquanto muito mais
abrangentes. Os elementos dizem respeito ao próprio corpo humano e
suas necessidades, ao estado de saúde físico e mental das pessoas, às opini-
ões políticas e orientações sexuais, além de infinitos outros aspectos da
vida, que podem ser capturados e armazenados no meio eletrônico.
Seu papel reside na segmentação desses dados, sistematizando-os e en-
contrando padrões, realizando um tratamento que os transforma, a partir
de dados brutos e dispersos, em informações utilizáveis de acordo com sua
finalidade específica, dando estrutura e retirando quaisquer dados irrele-

logia semelhante, o termo não se confunde com a Inteligência Artificial.


459
Thiago Pinheiro Vieira de Souza
vantes ou redundantes. Tal processo é feito a partir da inserção de um
algoritmo no sistema, capaz de orientar uma sequência de etapas visando
um fim, através de instruções pré-definidas, expressas em uma linguagem
matemática estilizada4.
De forma simplista, esses algoritmos nada mais são do que opiniões co-
dificadas. Dessa maneira, todo algoritmo tem um input e um output5: os
dados alimentam o computador, o algoritmo segue suas instruções e che-
ga-se ao resultado esperado. Não seria mais necessária, então, a aplicação
de teorias e doutrinas, vez que a própria matemática aplicada seria capaz
de analisar os dados e encontrar soluções ótimas.
De forma semelhante, a Inteligência Artificial envolve um conjunto de
várias tecnologias que procuram “imitar” as características humanas, que,
de forma individualizada, resolvem alguma necessidade específica. É pos-
sível dizer que o Big Data, como tecnologia ligada à capacidade de arma-
zenamento de dados em larga escala, está para a memória humana, assim
como o machine learning está para o estudo comportamental, ou, ainda,
como o chatbot (programa de computador de simulação de conversas hu-
mana em um chat online, visando a automatização de tarefas repetitivas e
burocráticas), para a comunicação6.
O primeiro passo para uma completa informatização do sistema jurídi-

4 KLEINBERG, Jon. The mathematics of algorithm design. Cornell University. Dis-


ponível em: https://www.cs.cornell.edu/home/kleinber/pcm.pdf. Acesso em: 12 dez.
2019.
5 Inputs e outputs, são, respectivamente, funções “de entrada” e “de saída”. Os valores
(ou informações) iniciais são trabalhados pelo algoritmo e se tornam um produto fi-
nal, diferente daquele anterior.
6 ASSUNÇÃO, Luis. Machine learning, Big Data e Inteligência Artificial: qual o bene-
fício para empresas e aplicações no Direito? Disponível em:
https://www.lexmachinae.com/2017/12/08/machine-learning-big-data-e-
inteligencia-artificial-qual-o-beneficio-para-empresas-e-aplicacoes-no-direito/, aces-
so em 12 dez. 2019.
460
O sistema jurídico do Big Data e sua repercussão penal
co seria a implementação da indexação (extração de termos) somada a
técnicas de processamento de linguagem natural (NLP) e utilização de
dicionários específicos, para a formação das bases de conhecimento (kno-
wledge bases). Isso tornará os autos processuais legíveis aos programas
utilizados a partir da peça inicial, correlacionando as características de
cada tipo e modelo com seus respectivos documentos e decisões.
Em seguida, adotar-se-iam métodos quantitativos e estatísticos, visan-
do a combinação massiva de todas as variáveis e informações extraídas das
peças, o que favoreceria o conhecimento de casos análogos, permitindo
análises comparativas e regionalizadas ao longo do tempo, estabelecendo
probabilidades e indicadores mais precisos e assertivos para cada tipo de
situação (Jurimetria).
Posteriormente, uma vez já calculados os indicadores e percentuais
probabilísticos, inferir-se-iam os resultados de novos processos, a partir de
situações similares passadas, estimando valores para acordos, a probabili-
dade de obtenção de uma sentença favorável, e, inclusive, uma recomen-
dação de estratégia de defesa. Nesse momento final do fluxo, poder-se-ia
verificar a existência de uma verdadeira inteligência inserida no Direito.
Sendo possível a automatização desse modelo, dando escalabilidade e ca-
pacidade de reuso, com a retroalimentação das estatísticas ao longo do
tempo, só então haveria, afinal, a tecnologia de Machine Learning aplicada
de forma plena no Direito7.
A essência de uma mudança de tal dimensão reside na objetividade. Em
um sistema jurídico guiado pelo Big Data, a análise empírica se sobrepõe
ao julgamento de especialistas. Ao exemplo de uma sentença judicial nos

7 ASSUNÇÃO, Luis. Machine learning, Big Data e Inteligência Artificial: qual o bene-
fício para empresas e aplicações no Direito? Disponível em:
https://www.lexmachinae.com/2017/12/08/machine-learning-big-data-e-
inteligencia-artificial-qual-o-beneficio-para-empresas-e-aplicacoes-no-direito/, aces-
so em 12 dez. 2019.
461
Thiago Pinheiro Vieira de Souza
tempos atuais, é razoável assumir que não existem apenas uma replicação
da normal legal, mas inúmeros elementos que contribuem para que uma
decisão seja proferida por um magistrado, um intricado complexo de fato-
res sociais, econômicos, culturais e temporais envolvidos, os quais podem
ser facilmente influenciáveis pelos valores pessoais e políticos dos julgado-
res, como a empatia com as partes, a linha de argumentação adotada por
elas ou a pressão institucional exercida pelos órgãos de controle8. No con-
texto do julgamento criminal, por exemplo, já se mostrou que a dependên-
cia do instinto e experiência do magistrado não é suficiente, podendo até
ser considerada uma prática inadequada e antiética9. Indo além, fala-se
que a cognição de tais especialistas é limitada.
Prontamente, é possível observar que haveria uma redução na entrada
de novos processos, em razão da maior previsibilidade trazida, e, conse-
quentemente, maior celeridade no andamento dos processos já em curso.
Esta, também seria aumentada pela possibilidade de realização de prévio
diagnóstico dos casos, destacando as informações mais relevantes a partir
da indexação, o que reduziria, afinal, os custos operacionais judiciais. Em
última análise, essa estrutura traria mais rapidez, minimizando a influência
de vieses humanos, fornecendo dados claros e objetivos, de forma a tornar
todo o processo mais justo. Haveria, então, uma significativa melhora na
qualidade das decisões tomadas, já que seriam mais eficientes do que os
seres humanos e não estariam sujeitos a seus preconceitos e vieses.
Mas é possível ir além. Já se fala em um processo de desintermediação,
que irá reestruturar a lei a partir da perspectiva do legislador, que criará
micro diretivas que especificarão o comportamento exato permitido em
cada situação, substituindo a lei como é conhecida atualmente. Não seria

8 NUNES, Marcelo Guedes. Jurimetria: Como a estatística pode reinventar o direito. 2.


ed. Revista dos Tribunais, 2019, p. 119.
9 DEVINS, Caryn; FELIN, Teppo; FAUFFMAN, Stuart; KOPPL, Roger. The law and
big data. Cornell Journal of Law and Public Policy, Ithaca, v. 27, n. 2, p. 357-413,
jan./abr. 2017, p. 370.
462
O sistema jurídico do Big Data e sua repercussão penal
mais necessária a criação de leis pelo poder Legislativo, nem a prolação de
decisões por magistrados: em vez de depender do julgamento e experiência
de um profissional, as pessoas poderiam utilizar da estatística para avaliar
a possibilidade de vitória nos processos10. Essa “personalização da lei”
tende a se intensificar cada vez mais, à medida que mais dados são coloca-
dos à disposição do sistema: são as chamadas data-driven solutions.

3. Problemática
A situação começa a ficar nebulosa a partir da hipotetização de algumas
situações. A exemplo, tem-se o seguinte cenário: uma multinacional cria
um algoritmo visando a seleção de candidatos para preenchimento de altos
cargos executivos. Ocorre que, na atual conjectura social, a grande maioria
das posições de alto escalão ainda são ocupadas por homens brancos, de
forma que a criação de um algoritmo de busca de possíveis CEOs a partir
de uma base de dados existente iria internalizar essa estigmatização social
percebida. Ainda que os dados utilizados sejam completamente fidedignos
e validáveis, os resultados poderiam ser extremamente problemáticos.
Essa situação seria verificada, inclusive, se houvesse a aplicação da inte-
ligência híbrida (human plus machine), utilizando os algoritmos apenas
para uma pré-seleção de candidatos, com a escolha final sendo feita por
uma pessoa11. Mesmo nesse último caso, as opções pré-selecionadas che-
gariam as mãos dos diretores já maculadas, transmitindo uma falsa sensa-
ção de objetividade.
Se no campo privado o cenário já é questionável, trazendo-o para o

10 DEVINS, Caryn; FELIN, Teppo; FAUFFMAN, Stuart; KOPPL, Roger. The law and
big data. Cornell Journal of Law and Public Policy, Ithaca, v. 27, n. 2, p. 357-413,
jan./abr. 2017, p. 368.
11 FERRARI, Isabela; BECKER, Daniel. Algoritmo e preconceito. Disponível em:
https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/algoritmo-e-preconceito-12122017.
Acesso em: 12 dez. 2019.
463
Thiago Pinheiro Vieira de Souza
âmbito da Justiça Criminal a situação fica ainda mais alarmante, não sendo
mais necessário recorrer a exemplos hipotéticos. Em parte dos Estados
Unidos da América, algoritmos já são utilizados por juízes para determinar
o grau de periculosidade dos réus, principalmente quando da concessão de
liberdade provisória ou determinação de sua prisão preventiva. No estado
de Winsconsin, por exemplo, um homem foi sentenciado a seis anos de
prisão a partir de uma análise de risco levada a efeito por um sistema de
A.I. de uma empresa privada, que o classificou como um indivíduo que
provocaria alto risco para a sociedade. O sistema funcionava em completo
segredo, o que impossibilitou a defesa do réu de examinar os cálculos en-
volvidos nessa análise de risco. Para mais, ainda que a lógica do algoritmo
fosse aberta, os magistrados não são programadores, e permaneceria a
dificuldade de eventual avaliação da presença de erros ou vieses no siste-
ma12.
Outro estudo, realizado pela organização americana Pro Publica, verifi-
cou que os algoritmos utilizados nos modelos de prevenção de reincidên-
cia de réus criminais estavam enviesados contra pessoas negras13. A partir
das análises de dados passados já documentados, o sistema, opinativo,
desincentivava a concessão de fiança e liberdade aos presos negros em
maior número do que quando comparado aos presos brancos, em situa-
ções semelhantes.
O modelo de reincidência chamado COMPAS (Correctional Offender
Management Profiling for Alternative Sanctios) é uma ferramenta baseada
em evidências destinada a avaliar os riscos e as necessidades do preso. Ca-
da preso recebe uma pontuação (score), determinada por um algoritmo
que se baseia em cálculos que levam em conta as respostas dadas pelo pró-

12 LIPTAK, Adam. Sent to prison by a software program’s secret algorithms. New York
Times. Disponível: https://nyti.ms/2yX4NNG. Acesso em: 13 dez. 2019.
13 Pesquisa entitulada de Machine Bias, pela instituição Pro Publica, disponível em
https://www.propublica.org/article/machine-bias-risk-assessments-in-criminal-
sentencing, acesso em 11 abr. 2020.
464
O sistema jurídico do Big Data e sua repercussão penal
prio preso em sede de exame de perfil, assim como diversas outras, como o
local de nascimento e criação, sua educação, informações acerca da famí-
lia, amigos e vizinhos, tão como sua atuação na sociedade, histórico de
abuso de drogas e atividades criminosas. O juiz, ao final do procedimento,
recebe apenas a pontuação final do preso, não lhe sendo apresentado quais
informações foram utilizadas e de qual modo14.
Outra situação real que ilustra a problemática de machine learning é o
caso do chatboy Tay, lançado em 2016 pela Microsoft para conversar e
aprender com usuários humanos do Twitter. Dentro de 16 horas de seu
lançamento, o robô de I.A. foi desativado como resposta da empresa às
ofensas feitas pelo mesmo. Racismo, antissemitismo, misoginia e apologia
às drogas foram replicados em razão do aprendizado a partir de informa-
ções coletadas. Sem qualquer filtro conceitual ou dogmático aplicado, tais
tecnologias desenvolvem um altíssimo potencial lesivo e discriminatório,
apesar de não intencional15.
Poder-se-ia afirmar que esse tipo de modelo melhoraria a qualidade da
decisão dos juízes acerca, por exemplo, da concessão da condicional ou da
fixação da pena, já que seriam supostamente mais eficientes e mais objeti-
vos que a intuição humana. Apesar disso, tais modelos, em vez de eliminar
os defeitos de um julgamento humano, apenas os mascaram através da
utilização da tecnologia, porquanto incorporam presunções e preconceitos
escondidos em algoritmos compreendidos apenas por um pequeno grupo
de pessoas que detém o conhecimento técnico necessário. Os “modelos de
reincidência”, criados pela reiterada utilização dos sistemas, podem acabar

14 ANGWIN, Julia; LARSON, Jeff; MATTU, Surya; KIRCHNER, Lauren. Machine Bias,
pela instituição Pro Publica, disponível em
https://www.propublica.org/article/machine-bias-risk-assessments-in-criminal-
sentencing. Acesso em: 11 abr. 2020.
15 Notícia disponível em https://www.theguardian.com/technology/2016/mar/24/tay-
microsofts-ai-chatbot-gets-a-crash-course-in-racism-from-twitter, acesso em 11 abr.
2020.
465
Thiago Pinheiro Vieira de Souza
reforçando desigualdades já existentes e disfarçando uma discriminação
baseada no status demográfico e socioeconômico dos indivíduos16. Não
bastasse isso, o modelo se vale de dados que, do ponto de vista jurídico,
não poderiam nem ser considerados para a condenação do réu ou para a
dosimetria da pena, tais como circunstâncias pessoais ligadas à família,
amigos e vizinhos do preso, podendo inclusive, a depender da escala utili-
zada, regressar a justiça criminal atual ao Direito Penal do Inimigo17.
Apesar de um sistema baseado no Big Data visar ser objetivo, os pró-
prios dados, e o Direito, têm múltiplas utilizações e significados, e, con-
forme acima exemplificado, requerem uma teoria para serem adequada-
mente utilizados. Caso contrário, a simples congregação de dados produzi-
rá nada mais que soltas correlações, além de necessitar de simplificação
para melhor entendimento. Essa simplificação por si só requer aplicação
de conceitos e paradigmas humanos: o simples ato de escolha dos próprios
mecanismos utilizados, de quais dados analisar e tratar, quando e como o
fazer, requer a aplicação de teorias e premissas humanas. Tais usos e signi-
ficados, além de indefinidos, estão continuamente evoluindo e se trans-
formando, de maneira que os sistemas tecnológicos não são capazes de
prever ou acompanhar.
Tem-se, aqui, um paradoxo: quanto mais se acumula e trata dados, au-
mentando seu volume para melhor entendimento e aplicação sistemática,
mais deve-se reduzi-los para criar modelos de fácil entendimento18. Em

16 LUMMERTZ, Henly. Algoritmos, inteligência artificial e o oráculo de Delfos. Dispo-


nível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/algoritimos-inteligencia-
artificial-e-o-oraculo-de-delfos-12102018. Acesso em: 14 dez. 2019.
17 Restaurado por Günther Jakobs em 1985, o Direito Penal do inimigo é a vertente do
direito penal máximo que tem como missão o combate de tipos determinados de
criminalidade através adoção de políticas públicas voltadas para a de antevisão do
crime, supressão de garantias e endurecimento de penas e leis.
18 DEVINS, Caryn; FELIN, Teppo; FAUFFMAN, Stuart; KOPPL, Roger. The law and
big data. Cornell Journal of Law and Public Policy, Ithaca, v. 27, n. 2, p. 357-413,
466
O sistema jurídico do Big Data e sua repercussão penal
razão dessas limitações e generalizações, os usos do Big Data em larga es-
cala acabará por criar distorções que influenciarão nos processos decisó-
rios, culminando em ciclos viciosos guiados pelo comportamento de ma-
nada19.
Deve-se ter em conta que os algoritmos e sistemas de I.A. atuam com
base em modelos, que são representações abstratas de algum processo real,
e por sua própria natureza não são capazes de aprender toda a complexi-
dade da realidade, envolvendo sempre simplificações e selecionando al-
gumas das variáveis envolvidos no processo real, ao mesmo tempo em que
deixam outras de fora20. Assim, haverão sempre escolhas acerca das variá-
veis do processo, trasladando para os modelos os valores, ideologias, pre-
conceitos e vieses humanos não almejados. A inteligência artificial não
passa, assim, de uma extensão da cultura e do senso comum, eivada de
preconceitos e vieses, refletindo, em última análise, a sociedade que a pro-
duziu21.
Essa primeira crítica reside, assim, na ilusória objetividade gerada pelos
sistemas baseados no Big Data, pois são, em muitos aspectos, contrários
aos parâmetros dos sistemas jurídicos. Enquanto as leis são abstratas, con-
ceituais e baseadas em valores, o Big Data é empírico, determinista e algo-
rítmico. O Direito é capaz de se auto interpretar através de princípios, ino-
vando-se e adaptando-se às mudanças sociais, ao passo que o Big Data é

jan./abr. 2017, p. 384.


19 A teoria, incialmente aplicada nas ciências biológicas, refere-se ao momento em que
não existem informações suficientes, ou são assimétricas e incertas, levando a um
caminho vicioso em que cada processo segue o anterior, supostamente de qualidade,
criando uma bolha especulativa em todo o sistema.
20 LUMMERTZ, Henly. Algoritmos, inteligência artificial e o oráculo de Delfos. Dispo-
nível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/algoritimos-inteligencia-
artificial-e-o-oraculo-de-delfos-12102018. Acesso em: 14 dez. 2019.
21 FERRARI, Isabela; BECKER, Daniel. Algoritmo e preconceito. Disponível em:
https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/algoritmo-e-preconceito-12122017.
Acesso em: 12 dez. 2019.
467
Thiago Pinheiro Vieira de Souza
“acontextual” e incapaz de se atualizar, pois trabalha com base em parâ-
metros determinados por seus criadores em sua gênese22.
Não sendo capaz de prever as mudanças do complexo sistema evolutivo
do Direito, a utilização de dados sempre requererá interpretação, e, conse-
quentemente, avaliação e julgamento por pessoas.
Para mais, propagando um sistema inteiramente fundado em Big Data,
machine learning e I.A., é possível que após alguns ciclos de interpretação
de dados e prolação de decisões o sistema todo se encontre irremediavel-
mente imergido em um loop. De forma semelhante ao efeito manada, a lei
passaria a não mais evoluir, mas a desenvolver-se de forma circular, à
margem das evoluções sociais.
A viralização de algoritmos ocorre quando os inputs e os outputs se in-
fluenciam mutuamente no processo de criação e analítica. Isso significa
dizer que cada vez mais os sistemas iriam se auto reforçar numa correlação
em cascata, o que impediria a ocorrência de qualquer mudança e atualiza-
ção jurídica, acarretando sua aplicação de maneiras absurdas, cada vez
mais distantes de sua intenção original. O Big Data, assim, não se restrin-
giria a simplesmente antecipar comportamentos daqueles que procuram o
judiciário, mas induziriam tais comportamentos a partir das diretrizes
fixadas inicialmente pelos técnicos criadores do sistema.
Nesse ponto reside a terceira crítica, talvez a mais significativa delas. Ao
se criar um sistema jurídico capaz de moldar a sociedade, é importante
atentar para quais valores e conceitos serão passados ao sistema, quais os
objetivos e, sobretudo, quem o controla. Concretiza-se, então, a profecia
de Harari23, ao afirmar serem os dados a moeda mais valiosa da atualidade.
Quem controla a forma pela qual os dados são coletados e interpretados,

22 DEVINS, Caryn; FELIN, Teppo; FAUFFMAN, Stuart; KOPPL, Roger. The law and
big data. Cornell Journal of Law and Public Policy, Ithaca, v. 27, n. 2, p. 357-413,
jan./abr. 2017, p. 360.
23 Ver nota nº 1.
468
O sistema jurídico do Big Data e sua repercussão penal
tem, ao final, o poder de determinar o objeto trabalhado (nesse caso, o
próprio Direito). Além de debilitar o próprio sistema jurídico, ao estabele-
cer uma relação de dependência e minar a fonte primeira da inovação le-
gal, um Direito fundado nessa premissa estaria fadado a uma Ditatura
Digital24. Acrescentando a essa situação a ideia inicial de que o próprio
Direito será um sistema personalizado, potencializa-se o efeito colateral
antidemocrático. Isso, pois, dizer que haverão “leis” personalizadas é o
mesmo que dizer que não haverá segurança jurídica. Não seria, então,
desmedida a afirmação de algumas das maiores ambições do Big Data no
sistema jurídico seria a criação esquemas para abandonar a lei em favor de
uma série impenetrável de diretivas idiossincráticas emitidas por um cen-
tro todo-poderoso25.
O processo decisório inicial de escolha de quais dados analisar, de qual
peso dar a eles, e da forma e objetivo empregados (primeira crítica) impac-
tará o sistema de uma forma não esperada, justamente em razão da repli-
cação de ciclos interdependentes de processos (segunda crítica), dando ao
Direito porvir uma conotação tirânica e arbitrária, oposta aos valores ide-
ais atuais (terceira crítica).

4. Prognóstico
Tratar das diversas possibilidades de aplicação da tecnologia é sempre
muito atrativo, mas é necessário saber até que ponto se trata de ciência, e a

24 Termo utilizado por Y. N. Harari, em entrevista para o Roda Viva, da TV Cultura,


referindo-se à probabilidade de estarmos, daqui a alguns anos, vivendo em uma dita-
dura digital, sendo monitorados por computadores e máquinas que analisarão in-
formações essenciais para o governo e grandes corporações; bilhões de pessoas pode-
rão viver numa situação na qual não só tudo o que fazem, mas até tudo o que sentem
é constantemente monitorado.
25 DEVINS, Caryn; FELIN, Teppo; FAUFFMAN, Stuart; KOPPL, Roger. The law and
big data. Cornell Journal of Law and Public Policy, Ithaca, v. 27, n. 2, p. 357-413,
jan./abr. 2017, p. 407.
469
Thiago Pinheiro Vieira de Souza
partir de onde é ficção cientifica. No que tange ao Big Data e à tecnologia
de tratamento de dados como um todo, é desnecessário mirar o futuro
quando se trata da sua aplicação no sistema jurídico, pois, com efeito, já se
tornou realidade.
Em setembro de 2018, no II Congresso Internacional de Direito, Go-
verno e Tecnologia, o presidente do STF, Ministro Dias Toffoli, afirmou,
em entrevista, que “a utilização de sistemas de inteligência surge como
uma das principais possibilidades de superarmos os gargalos que existem
na tramitação de feitos perante o Judiciário”26. O Ministro já havia indica-
do outrora que em sua gestão à frente do STF desejaria adotar “medidas
que tragam eficácia para o dia a dia da Corte, como o incremento do Ple-
nário Virtual e mecanismos de inteligência artificial”27.
No mesmo Congresso, foram apresentadas as funcionalidades do VIC-
TOR, ferramenta de I.A., que vem sendo utilizada pelo STF, para, dentre
outras atividades, verificar se os recursos extraordinários que chegam ao
Tribunal tratam de assuntos que já tiveram sua repercussão geral reconhe-
cida, a fim de que sejam adotadas as providências cabíveis, como a devolu-
ção do processo ao Tribunal de origem ou a rejeição do recurso extraordi-
nário28. Essas mudanças apenas reafirmam que não se pode tratar este
tema como algo ainda por vir.

26 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Notícias STF. Presidente do STF participa da


abertura do II Congresso Internacional de Direito, Governo e Tecnologia. Disponível
em http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticia Deta-
lhe.asp?idConteudo=390796&tip=UM. Acesso em: 15 dez. 2019.
27 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Imprensa. Ministro Dias Toffoli apresenta a
jornalistas prioridades de sua gestão. Disponível em:
http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=389887. Acesso
em: 15 dez. 2019.
28 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Notícias STF. Projeto VICTOR do STF é apresen-
tado em congresso internacional sobre tecnologia. Disponível em:
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=390818&tip=
UM. Acesso em: 15 dez. 2019.
470
O sistema jurídico do Big Data e sua repercussão penal
Já são postas algumas exigências para a implementação desses sistemas
de tecnologia no judiciário, particularmente a utilização, na tomada de
decisões, de algoritmos e sistemas de inteligência artificial transparentes e
auditáveis (algorithmic auditing), podendo ser compreendidos e inspecio-
nados por operadores humanos. Devem prover explicações claras e coe-
rentes do caminho percorrido para chegar a determinada decisão, quais
eram as demais alternativas que poderiam ter sido adotadas e quais os
dados e outros elementos considerados relevantes, tão como a forma pela
qual eles interagiram nos mecanismos que conduziram à decisão adotada.
Sendo assim, como uma própria decorrência do princípio da publici-
dade dos atos, que guia o Poder Judiciário e a Administração Pública, ha-
veria a necessidade de dar publicidade também aos próprios fundamentos
que os embasam, mesmo que independam de pessoas (humanos) para
serem feitos. Sem tal exigência, não seria possível a verificação de eventu-
ais falhas relativas aos dados utilizados, dos mecanismos de tomada de
decisões, e o exercício do contraditório e da ampla defesa. Permite-se às
partes o conhecimento dos fundamentos das decisões, para que possam
discuti-los e insurgir-se contra elas por meio dos recursos cabíveis. Caso
contrário, aqueles que são sujeitos às decisões restarão privados de auto-
nomia e de capacidade de influir nas decisões adotadas, sendo obrigados a
confiar cegamente nos resultados apresentados pelo sistema e a adotar
uma conduta passiva.
Além da transparência, é preciso que se crie uma política
de accountability dos algoritmos, de forma a buscar os técnicos e gestores
responsáveis pelo processo e imputar-lhes pessoalmente a responsabilida-
de pelas decisões por eles tomadas para, assim, levar a sério o dever de
supervisioná-los. Isso seria mais um possível freio à eventual concentração
de poder e criação de uma ditadura virtual, vez que a escolha dos dados e
dos meios que eles serão analisados e utilizados repercutiria fora do restri-
to âmbito de sua aplicação.
Diante de tal cenário, é necessário que haja, por meio da própria socie-
471
Thiago Pinheiro Vieira de Souza
dade, um resgate da sua participação central nos processos determinadores
das questões morais e éticas suscitadas pelas decisões computacionais.
Uma postura firme acerca das ações tomadas e de oposição às tecnologias
tirânicas seria capaz de barrar um crescimento contrário à democracia,
mas isso requer a criação de uma nova concepção ética social.
Com o advento dessa nova era tecnológica, observa-se a abolição da
neutralidade moral das ações humanas, pois antes o agir humano preocu-
pava-se apenas com o imediato, sem a necessidade de planejamento de
longo prazo, sendo que as ações eram essencialmente efêmeras, e que o
homem era constante na sua natureza, não sendo objeto da própria técnica
como hoje está se disseminando.
O imperativo categórico individual kantiano de agir de modo que tam-
bém se possa querer que tal máxima se torne lei geral29 não seria mais sufi-
ciente para nortear as ações humanas, pois essa ética “tradicional” cuidaria
das ocorrências do presente, em relações imediatas de pessoa a pessoa.
Não haveria a necessidade de se pressupor uma ética para relações coleti-
vas nem de sem levar em conta dados da natureza, tornando-se, portanto,
imperativo desenvolver uma nova ética para a civilização tecnológica, com
fulcro na dimensão da responsabilidade, levando em conta pressupostos
futuros e incertos, norteados, sobretudo, pelo direito de existência das
futuras gerações, sem que as características reconhecidas como humanas
sejam desnaturadas30.
É preciso adotar uma postura bastante crítica com relação aos critérios
utilizados para a tomada de decisões e questionar a forma pela qual tais
algoritmos operam, pois, operando em contextos massivos como no sis-

29 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa: Edição 70,


2007, p. 70-74.
30 DALLASTA, Viviane. Vácuo ético – estamos preparados? Disponível em
https://www.lexmachinae.com/2018/04/25/vcuo-tico-estamos-preparados/. Acesso
em: 12 dez. 2019.
472
O sistema jurídico do Big Data e sua repercussão penal
tema jurídico, simples falhas ou tendências inadequadas repercutem em
larga escala, espalhando imediatamente seus efeitos por todo o corpo soci-
al que o utiliza.

5. Considerações finais
Durante esse trabalho foram expostas razões pelas quais um sistema ju-
rídico baseado inteiramente no Big Data e demais tecnologias de informa-
ção seria problemático, principalmente no que diz respeito ao Direito Pe-
nal envolvido. Argumentou-se por três vertentes: em primeiro lugar está a
multiplicidade de faces que a lei e os dados têm, o que abre a possibilidade
de diversas interpretações e significados diferentes, naturalmente opostas
às qualidades das tecnologias objetivas trabalhadas, incompatibilizando o
modelo.
Em segundo lugar, falou-se de uma possível viralização desse novo Di-
reito, que, em razão da mútua influência dos processos antecedentes e
consequentes, estaria condenado a um loop, impossibilitando qualquer
evolução e adaptação jurídica. Por fim, como último ponto apresentado,
foi exposto o risco da criação involuntária de uma Ditadura Virtual, como
consequência dos apontamentos anteriores e da concentração do poder de
criação e decisão nas mãos de alguns poucos especialistas entendidos.
O presente tema adentrou em diversas questões filosóficas ocultas nas
questões tecnológicas da atualidade, pontuando perigos e remédios. O
cerne da questão reside na percepção dos valores que serão tidos como
prioritários nos próximos tempos. É um dever social atentar para a huma-
nização dos julgamentos e prolação de decisões, de forma que as tecnolo-
gias sirvam para auxiliar no processo e não como verdadeiros substitutos
autônomos. O Big Data deve ser utilizado como uma ferramenta informa-
cional para direcionamento de julgamentos, mas não pode decidir, por si
só, questões de significação, justiça e equidade, sob pena de colocar em
risco a objetividade e a própria ciência do Direito.
473
Thiago Pinheiro Vieira de Souza
É preciso reconhecer e reafirmar os valores humanos, estabelecendo
novos alicerces éticos que servirão de base para esse processo. O imperati-
vo categórico de Kant talvez não esteja mais amoldado aos tempos atuais,
mas sua ideia de dignidade o está mais do que nunca: deve-se tratar a hu-
manidade sempre como um fim e si mesma, nunca unicamente como um
meio.

Referências
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Tecnologia. Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticia
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NUNES, Marcelo Guedes. Jurimetria: Como a estatística pode reinventar o
direito. 2. ed. Revista dos Tribunais, 2019.

475
Thiago Pinheiro Vieira de Souza

__________________________________________________
SOUZA, Thiago Pinheiro Vieira de. O sistema jurídico do Big Data e sua
repercussão penal. In: LONGHI, João Victor Rozatti; FALEIROS JÚ-
NIOR, José Luiz de Moura (Coords.); BORGES, Gabriel de Oliveira Agui-
ar; REIS, Guilherme (Orgs.). Fundamentos de direito digital: a ciência ju-
rídica na sociedade da informação. Uberlândia: LAECC, 2020, pp. 457-
476.
__________________________________________________

476
POSFÁCIO

[Polifonia]
Devido ao pré-entendimento resultante do título, confesso que, antes
de abrir o arquivo e folhear o índice do livro, esperava uma Obra muito
diferente. Esperava uma sequência estruturada, estritamente planejada em
termos geométricos e epistemológicos, tratando das bases já consolidadas
do Direito Digital, com uma sua explanação de acordo com o estado da
arte no que se refere às Fontes do Direito Brasileiro, assim como diálogos
com as de Ordenamentos próximos ou em especial relevantes.
Mas, me deparei com algo muito diferente, que me surpreendeu. Uma
demanda múltipla, entrecruzada, com ausências temáticas patentes e em
alguns aspectos com uma aparência inclusive caótica, não só e não apenas
quanto às questões enfrentadas, mas também e sobretudo nas perspectivas,
muitas delas inusuais em Obras jurídicas.
O que me levou a olhar o índice biográfico dos Autores. No qual me
aguardava mais uma surpresa, além de vários Juristas, atuantes na
Academia e com cujos trabalhos na matéria já me deparara, o integravam
Colegas oriundos das Ciências Naturais, da História, da Economia ou da
Filosofia. Embora nenhum da Computação, o que trouxe uma surpresa
dentro da surpresa. Além destes, ainda um número significativos de
Advogados, nem todos atuando prevalentemente no ramo, e bem assim
diversos estudantes de Graduação.
Porém, é esta mesma diversidade de vozes, uma polifonia, com pontos
de partida e até mundividências múltiplos, a conferir singularidade e
relevância à Obra. Embora exigindo um esforço adicional para o leitor, o
qual deve assumir todas consequência decorrentes da “Teoria [ou Estética]
da Recepção”, construindo os seus próprios percursos de leitura,
477
Manuel David Masseno
alternativos ao que lhe é sugerido pelos Organizadores, e com eles os
novos horizontes de sentido que poderá fundir com o seu anterior.
Para finalizar, confesso também haver aprendido muito e, mais ainda,
identificado conexões conduzindo a visões novas. Tenho a certeza de não
haver sido o único a chegar a uma tal conclusão.
Beja, junho de 2020.
MANUEL DAVID MASSENO
Professor Adjunto do IPBeja - Instituto Politécnico de Beja, onde
também integra as Coordenações do Laboratório UbiNET –
Segurança Informática e Cibercrime e do MESI – Mestrado em
Engenharia de Segurança Informática, sendo ainda o seu
Encarregado da Proteção de Dados. Pertence à EDEN – Rede de
Especialistas em Proteção de Dados da Europol – Agência
Europeia de Polícia e ao Grupo de Missão “Privacidade e
Segurança” da APDSI – Associação para a Promoção e
Desenvolvimento da Sociedade da Informação, em Portugal;
assim como ao Grupo de Estudos de Direito Digital e Compliance
da FIESP – Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, à
Comissão Estadual de Direito Digital da Ordem dos Advogados
do Brasil, Seção de Santa Catarina e ainda à Comissão de Direito
digital da Subseção de Campinas da OAB.

P.S. Frequentemente, os paratextos de Obras alheias constituem oportunidades para


quem os escreve alardear erudição, mostrando que domina as matérias melhor que
o(s) Autor(es). Espero que as linhas que redigi não o sugiram, nem sequer
remotamente.

478

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